por Abby
Fanfic finalizada em abril de 2013

Capítulo 21

’s P.O.V.

- Anda logo, Noel! Vou chegar atrasada! – esbravejei da porta da sala de aula do meu irmão, que parecia enrolar para me estressar. – Ah, dane-se, vou embora. – dei as costas, andando rápido e o ouvindo pedir para esperar. Já era 12h10, eu teria vinte minutos para chegar, comer, me arrumar e ir para casa da nova vizinha. Qual era mesmo o nome dela?
Ainda com Noel me chamando, porém caminhando, atravessei o portão da frente e parei por ali perto para aguardá-lo. Passando as vistas ao redor, vi e Emma juntos. Não só juntos, como abraçados. As mãos dadas, as brincadeiras típicas de casal, tudo. ficaria arrasada quando soubesse. Se soubesse.
Deixando de lado a imagem ruim, cacei meu irmão com os olhos, alcançando-o e o puxando para o rumo de casa, quase correndo. Precisava causar uma boa impressão no meu primeiro dia, e chegar atrasada não era a melhor forma.
Poucos minutos e estava em casa. Tomei um banho rápido e pus a primeira roupa que vi, me esquecendo até de coisas básicas, como o prendedor de cabelo e par de meia certo. Tive de praticamente aspirar a comida, mas consegui terminar meu asseio e tocar a campainha do sobrado na hora exata. Livie – consegui, enfim, me lembrar – logo atendeu, arrumada para trabalhar.
- Isso que eu chamo de pontualidade! – disse em tom de brincadeira. – Vem, entra. Tenho que te passar as informações necessárias.
Consenti, adentrando o pequeno vestíbulo. Era uma casa pequena, de primeira instância, com móveis clássicos e cheiro de alfazema. Ainda não tinha fotos ou plantas, tampouco artigos de decoração além do básico. Eu ia descobrindo os cômodos enquanto seguia Livie, que não parava para respirar enquanto falava:
- Deixei uma lista de atividades e horários, para eu ter controle do que você tem feito. – ela adiantou, apontando para uma folha amarela presa por ímãs à geladeira. – Na hora de ela dormir, como o berço ainda não chegou, você vai ter que ficar tomando conta. Não precisa montar guarda do lado da cama, só ir checar de vez em quando.
- Angie tem alguma alergia ou coisa do tipo? – me mostrei empenhada.
- Não, não! – respondeu ela, contente por me ver atenciosa. – Ela vai com qualquer um, não costuma enjoar nem ter cólicas, não tem problemas com comida nem produtos de higiene e limpeza. É bem fácil cuidar dela. Qualquer coisa, me ligue. Deixei uma lista de telefones úteis no verso da lista de tarefas. Tem também o notebook, se eu não puder atender, mande um email.
- Certo. – assenti, repetindo toda a sequência de informações para não esquecer.
- Mais alguma coisa? – perguntou ela para si. – Ah, sim! Otto e eu chegaremos entre seis e seis e meia já para acertar as contas, ok?
- Aham. – era essa a parte que me interessava. – E onde Angie está?
- Na cama, tirando um cochilo depois do almoço. Quer vê-la?
Respondi com um som positivo, seguindo Livie pelo estreito corredor entre a sala e a copa. Assim como no hall, as paredes eram revestidas de madeira envernizadas, e no fim do corredor residia um pequeno aparador da mesma cor delas. O último cômodo era onde as duas dormiam, um quarto simples, mas amplo e bem arejado/iluminado. Angie, uma menininha realmente inha, estava deitada no meio de uma cama de casal encostada à parede, com seu vestidinho rosa-chá lotado de babados. Parecia uma boneca, os dedinhos delicados e a aparência angelical que faziam jus ao nome. Sorri enquanto a observava, encantada com aquela criança de ralos cabelos loiros.
- Ela é linda, não? – disse baixo a mãe, para não acordar a neném. Concordei com a cabeça, temendo acordá-la. Angie parecia tão frágil, fiquei com medo de pegá-la no colo quando precisasse. – Agora, tenho que ir. Promete cuidar bem da minha menina? – brincou Livie, indo em direção à sala.
Assim que ouvi a porta bater, procurei o que fazer. Fui até a cozinha, vendo quais as atividades Livie tinha me encarregado.
“Passear;
Dar de mamar (a temperatura ambiente);
Dar banho;
Pôr para dormir”

Como dito por ela, seria fácil. Eu teria liberdade e tempo suficientes para estudar ou decorar as falas da peça que eu mais tinha dificuldade. Ficaria mais descansada trabalhando que desempregada. Que irônico.

’s P.O.V.

- Lembra da Livie?
- Quem? – perguntou , retirando um dos fones do ouvido. Estávamos no escritório de sua casa, ele no computador, eu atirando bolas de papel na lixeira. – Aquela de Southsea, a filha do caseiro?
- Exatamente.
- O que tem? – ele continuou olhando para o monitor. Joguei uma das bolinhas em sua cabeça, fazendo-o se voltar para mim com cara de ódio.
- Peguei de novo. Ontem. – respondi, me gabando. – E ela continua no meu Top 5.
- Pensei que você estivesse com . – não pareceu surpreso, e sim conformado.
- Acho que você não entendeu. – me ajeitei na cadeira. – Com Livie foi tudo que eu tinha direito. Tenho certeza de que não vou ter nem perto disso com , então por que desperdiçar a chance? – indaguei retoricamente. – É mais ou menos o que você fez sábado.
- Com a diferença de que eu não comi a . – ele lembrou, a voz mais firme. Franzi a testa, estranhando-o. não perdia uma chance também.
- Que mal lhe pergunte, qual é a de vocês dois? – disse, interrogador.
- Eu tava a fim dela e ela de mim. A gente ficou e acabou a graça. – ele foi indiferente, o que era incomum. Nunca tinha o visto se tornar amigo de uma garota tão rápido quanto com , ainda que não tivesse dado certo a investida. Principalmente pelo “fator Emma”. Eles continuavam se vendo depois da festa, como me contava, mas eu não sabia a quantas andavam.
Talvez eu estivesse evitando conversas demais, e agora notava a diferença.
- E você voltou com a Emma? – perguntei por curiosidade, apesar de já desconfiar.
- Nós não namoramos mais, mas fizemos as pazes. – voltou a encarar o computador.
- Hm. – disse em compreensão. – Isso aqui tá um saco, vamos pra rua. – me levantei, jogando a última bolinha de papel na lixeira.
- Pra onde? – ele enfim se animou, fechando os programas que usava.
- Camden Town, sei lá. – dei de ombros, pegando minha mochila. concordou, alcançando suas chaves de casa e carteira. Despedindo-nos da sra. com a desculpa de que jantaria na minha casa. Ainda que fosse o meio da semana, eu precisava voltar à ativa.

Chegamos em cima da hora no colégio. Meu celular desligou por estar sem bateria, e a mistura de sono e ressaca não ajudou em nada. Acordamos com Susan batendo à porta, pois estava de saída e não havia me visto pela casa ainda. Foi uma surpresa para ela, inclusive, ver jogado na poltrona reclinável que ficava no canto do meu quarto.
Eu estava sonolento, exausto e com a sede de trinta camelos, mas satisfeito. Porém, não era só de satisfação que eu me manteria o resto do dia, precisava comer e dormir. O sono eu recuperaria durante as aulas, a fome eu só poderia matar durante o intervalo. O teatro eu não podia faltar, infelizmente.
E indo ao ensaio, notei que, pela segunda vez seguida na semana, não estava ali. De primeiro instante, pensei que seu irmão ainda estivesse mal, no entanto, tinha o visto em pleno estado de manhã. Qualquer motivo que fosse, Elizabeth sabia. Depois do esporro que ouvi por não aparecer uma única vez, me negava a faltar. (E achava que faria o mesmo.)
Por mais que não quisesse, estava preocupado. não me esconderia algo, a menos que fosse sério. Ela própria dizia que não gostava de segredos sem justificativas. Eu queria saber o que estava acontecendo para ela agir tão furtivamente, omitindo-se e faltando. Não era bem a que eu conhecia.
A princípio, não tomei nenhuma providência. Aguardei mais um dia, e nada de ela dar sinais de que me contaria uma pequena parte, pelo menos. Tive de abordá-la na saída, uma vez que ainda estávamos – eu acho – sendo discretos no colégio e conversávamos pouco – o que, a propósito, eu já estava me cansando.
- Não posso conversar agora, – disse ela, esquivando-se para o jardim.
- Pode, sim. – segui seus passos. estava sozinha, saindo quase em disparada.
- Eu realmente não posso. – ela mal se virou para falar. – Tenho que ir, desculpa.
- Ir aonde? – alcancei seu antebraço, mas apenas o toquei, para que ela me olhasse.
- Pra casa. – a ouvi responder, impaciente. – Por favor, , me deixa ir. Eu te conto tudo que você quiser depois, juro.
Avaliei rapidamente o que ela tinha dito. A certeza de que suas palavras seriam cumpridas era pouca, pois já que não soube de nada até o momento, não havia segurança de que eu saberia depois. Porém, assim como diversas vezes me dera um voto de confiança, eu tinha a obrigação de fazer o mesmo. Ainda que não quisesse. Desarmado pelas circunstâncias, concordei com um aceno de cabeça.
- Tudo bem. – disse, deixando a má vontade presente na minha voz. – Mas quando eu vou poder te ver?
- Amanhã na aula, ué. – ela riu, parecendo não entender exatamente o que eu queria. Arqueei a sobrancelha, chamando sua atenção sem dizer nada. – Ah... Hoje, às sete. Liga pra minha casa quando estiver chegando.
- Ok. – consenti, as expressões mais abertas. murmurou “Tchau”, com um pequeno sorriso e olhar terno, e eu senti uma ponta de saudades daquilo. Quando a vi dar as costas, chamei seu nome enquanto voltava a segui-la, rodeando seu quadril e a beijando ali, sem dar chances para que ela resistisse. Como artifício para escapar, riu, partindo o beijo instantaneamente.
- Mais tarde, . – disse, olhando para os lados, envergonhada.
- Só mais um, pra eu te deixar ir. – murmurei, a testa colada à dela.
- Pra me deixar ir? – ela indagou em tom de riso. – Eu sou sua?
- Nesse momento, sim. – respondi de imediato, notando que ela tentava desconversar. – E você me deve um beijo ainda. Lembre-se que não sou eu quem está atrasado.
- Olha só o que você me faz! – resmungou ela, apesar de bem humorada.
- O tempo tá passando, ... – apressei, tocando seu rosto para acariciá-lo.
- Tá bom, tá bom. – ela riu baixo, nervosa. Me deu somente um selinho e se esquivou, ligeira.
- Você chama isso de beijo? – questionei, indignado; ela assentiu. – Quero outro.
- Você pediu um, eu dei. – respondeu, rindo mais uma vez. – Outros, só se você for mais tarde.
Se não fosse você, ...
- Tudo bem. – assenti, soltando-a. Observei seus passos leves, a forma como seu cabelo balançava enquanto andava de costas, o jeito que enrolava alguns fios na ponta do dedo, os lábios erguidos discretamente, como se quisesse guardar o motivo do sorriso só para si. Eu me senti diferente ao vê-la feliz, e também me senti estranho por vê-la partir. Estava já acostumado a passar as tardes com ela, não ter mais isso repentinamente e sem uma razão conhecida acabava diferenciando os últimos dias ainda mais que os primeiros.
Por mais que eu me negasse a dizer, ela fazia falta. Principalmente depois dos ensaios.

’s P.O.V.

“Eu sou sua?” “Nesse momento, sim.”
Talvez ele tivesse dito da boca pra fora. Talvez tivesse dito somente para me desarmar. Talvez fosse só para conseguir mais um beijo. Não me importava. Porque de todas as possibilidades, também havia a de que talvez ele fosse sincero. E por mais que as outras falassem alto, era nessa última que eu mais queria acreditar. Por acreditar nela, vieram as dúvidas: O que sentia por mim? O que pensava sobre nós? O que eu sentia por ele, principalmente?
Não podia negar que passei toda a tarde pensando no que ele havia falado, tentando desvendar através dos seus sinais quais as suas reais intenções. Eu queria saber se de alguma forma ele desejava um futuro para nós. Se ele desejava que existisse um “nós”. Porque, no fundo, eu sentia que era a pessoa certa naquele momento. Todos os nossos gostos em comum, todas as nossas conversas... Havia um significado, não? Devia haver, sim, afinal, quem iria mudar tanto em tão pouco tempo simplesmente para agradar uma pessoa? Quem se abriria de cara para quem quer que fosse, tendo os problemas que ele tem? Ninguém além de . Eu tinha sorte de ser a pessoa por quem ele mudou e pela qual ele trocava confidências. Em algum momento eu quis uma razão para lhe dar uma chance real?
Bem, já tinha conseguido. E precisava mostrar a ele.
Mas o tempo, Livie e Otto não colaboravam. Faltava apenas um minuto para as seis, e os dois, que costumavam chegar antes, não tinham dado sinal se já estavam voltando do trabalho ou se iriam demorar – por favor, não demorem! Angie já dormia, sem o mínimo sinal de que despertaria tão cedo, e eu estava no sofá, esperando ansiosamente que meu expediente se encerrasse.
Entretanto, o universo conspirava contra mim – eu devia ter percebido desde manhã, quando esqueci parte do material em casa. Angie, a pequena e linda Angie, que nunca chorava, resolveu se tornar uma monstrinha e abrir o berreiro. Prontamente fui socorrê-la, vendo sua roupa e parte da manta que cobria a cama com aquela nojeira que os bebês fazem quando estão enjoados. Cobri meu rosto imediatamente, pois o cheiro de azedo era insuportável, segurando as lágrimas de nojo e a careta que fiz.
Que seja só hoje, por favor!
Corri pela casa atrás de uma bacia com água morna, uma fralda de pano e uma nova roupa de cama. Enquanto dava um banho seco em Angie, ouvia a porta da sala bater e deduzi ser Livie e Otto finalmente.
Eles não podiam ter chegado três minutos antes? Eu agradeceria.
- , você tá aí? – ouvi a dona da casa se aproximando pelo corredor.
- Sim, tô sim! – respondi alto, pondo já outra roupa na bebê. Livie apareceu na soleira da porta, surpreendendo-se com a manta embolada no chão, ao lado de uma tigela cheia d’água e o vestido que Angie usava até cinto minutos atrás. – Deu um probleminha aqui, mas já tá tudo sobre controle.
- Não precisa de mais nada? – ela perguntou, caminhando até nós.
- Não, pode ficar tranquila. – disse sem olhá-la. – Só preciso que tire a pequena daqui, pra eu trocar a roupa de cama.
- Menina, onde você estava escondida, hein? – Livie disse em tom de brincadeira. Sem entender, encarei-a com as sobrancelhas arqueadas. – Nunca vi ninguém tão prestativo desse jeito!
Ri sem jeito, dando de ombros.
- Agora, a gente vai lá pra sala, pra não atrapalhar. – anunciou ela, alcançando a filha e a pondo no colo. Observei as duas até que sumissem no corredor, voltando então a arrumar a bagunça. Alguns minutos depois, tendo já guardado tudo em seus devidos lugares, voltei para a sala, para acertar o dia e ir para casa. Ainda tinha de me arrumar para encontrar , não o deixaria me ver com a mesma roupa que usei de manhã, seria, no mínimo, desagradável.
Chegando ao cômodo, me vi totalmente sem graça por espiar (sem querer) o casal; Otto e Livie nem repararam a minha presença enquanto se beijavam, Angie ainda no colo da mãe. Dei alguns passos para trás, me escondendo no corredor para fingir não os ver. Fui obrigada a prestar muita atenção nos ruídos da sala para saber o momento certo de aparecer.
- Chega, Otto. – murmurou Livie. – Da outra vez foi assim que começou, e olha o resultado no meu colo. Além do mais, ainda está aqui.
“O resultado”? Angie? Mas ela não era afilhada?
- Tinha me esquecido desse detalhe. – disse ele. Ainda surpresa com a novidade, respirei fundo e mudei as expressões, tornando a chegar à sala. – Falando nela!
- Espero que tenham falado bem. – sorri somente por educação, sem conseguir olhá-los nos olhos. Qual seria a razão para esconderem a relação? Por que Livie não deixava Otto chamar Angie de filha, se aparentemente era essa a associação correta?
- Contei para ele da sua eficiência. – ela retribuiu meu sorriso. – Então, vamos acertar seu dia para te liberar logo, né, ?
.
!
Agora eu me lembrava de onde o conhecia. Das fotografias presas às paredes da casa de . Otto estava em grande parte delas, ao lado de Susan. Ele era o pai de , a única pessoa que eu não sabia o nome, mesmo ouvindo histórias sobre ele. A pessoa que mais evitava citar por seus próprios motivos. Que estava traindo Susan debaixo do nariz dela.
Estava atônita. A notícia chegou com tal força que não pude evitar o susto, por mais que não o demonstrasse. Era um ultraje, como ele conseguia? Por que fazia aquilo? Por que fez?
Me senti enojada. Como um homem de vida feita poderia se prestar àquilo? Envolver-se com uma mulher anos mais nova e criar uma família pelas costas da esposa e dos filhos era uma atitude além da minha compreensão. Otto estava lidando com um círculo de pessoas que devia ser respeitado, em vez de substituído às escondidas. Não havia só os interesses dele em jogo. Mas, ao meu ver, ele não se importava. Só então entendi por que o renegava. Eu lhe dava razão. Seu pai não prestava.
Com o desgosto crescendo, tive de me esforçar para não demonstrar meus novos pensamentos sobre Otto e Livie. Apesar de dois mentirosos, eles ainda eram as pessoas que estavam me ajudando com os figurinos. Eu não podia simplesmente dar as costas, principalmente por causa de Angie. Não tinha a mínima autonomia para me meter na vida dos dois, era somente a babá há três dias. Talvez eu nem devesse coagi-los, repreendê-los ou o que fosse, eu não era absolutamente nada nem ninguém dentro daquela casa, apenas uma empregada. E nessa posição, não me restava o que fazer além de ficar quieta e ignorar. A situação era muito mais delicada que eu havia imaginado. O pior de tudo era me ver impotente, fora ter de ver em seguida e não poder lhe dizer um terço do que eu queria naquele momento. Eu teria que guardar um segredo horrível que me sufocaria para não magoá-lo.
Mas e se ele descobrisse? Se ele soubesse que eu tinha ciência do caso de seu pai e sobre a... irmã que ele ganhou? Eu nem mesmo o havia lhe contado que estava trabalhando para custear os vestidos, e por isso vinha faltando os ensaios. Qual seria sua reação ao receber todas essas notícias?
Instantaneamente comecei a pensar em saídas que não afetassem ninguém, e mais uma vez a resposta era fingir que nada aconteceu.
Ótimo, em que buraco eu fui me meter?
Assim que recebi meu pagamento, fui rapidamente para casa. Precisava apagar todo aquele assunto em menos de uma hora, sozinha – essa era a pior parte. Não deixaria que sequer notasse que algo me preocupava, estava decidido.
De mente feita, tomei um banho corrido. Apesar dos pesares, estava ansiosa para encontrar . O que eu mais queria naquela hora era esquecer o mundo em meio a qualquer conversa boba – ou falta de conversa, no melhor dos casos.

’s P.O.V.

não atendia as minhas ligações, mesmo que tivesse pedido para eu fazê-las quando estivesse perto de sua casa. Era quase sete, eu havia estacionado na rua de trás para esperá-la, pois seus pais – como ela tinha me dito – costumavam chegar do trabalho naquele horário, e ela não queria mais um incidente como o de sábado passado. Mas eu precisava saber o que tinha de errado, se ela estava me evitando tão nitidamente, mesmo não me dispensando de uma vez, com palavras, pela manhã. Ficar esperando não era minha atividade favorita, mesmo.
Por essa razão, fui a pé até a casa de . As luzes estavam acesas e eu podia ouvir os ruídos que vinham de lá dentro. Então parei para pensar melhor: Por que eu estava ali? Ainda faltava pouco para a hora que combinamos, eu talvez estivesse pressionando-a demais. Além do mais, quando ela disse onde e quando nos veríamos, não incluiu dentro da sua casa. Eu estava me oferecendo, dessa forma.
Me afastei da fachada, aguardando a alguns metros. Péssima ideia ter deixado o carro em outro lugar, eu poderia esperar no mesmo, assim não pareceria um stalker e me reconheceria. Pensar também não era minha atividade favorita.
Já não me restando muito que fazer, uma vez que estava ali e não voltaria, liguei de novo para . Secretária eletrônica novamente. Voltei a olhar a casa, percebendo que um dos cômodos tinha a luz acesa. Logo em seguida aproximou-se um carro, parando em frente à garagem.
Fodeu, pensei de imediato.
Saindo do carro, exatamente quem eu evitava encontrar apareceu. A sra. me encarou, desconfiada por eu estar parado à frente de sua casa. Já o sr. , pro meu azar, me reconheceu após alguns instantes.
- Pois não? – se dirigiu a mim, e desconfio que seu tom não era cordial.
- Eu... – titubeei, intimidado e não reconhecendo minha própria reação. – Estou esperando .
A mãe de parou, virando-se para mim. Desfiz o contato visual com seu marido, descobrindo seu olhar de curiosidade sobre mim.
- , não é? – perguntou ela, e eu assenti. – Não quer esperar lá dentro?
- Acho melhor não. – hesitei, observando o próximo passo do pai de : me encarar ainda mais fixamente.
- Vem, não vou te deixar plantado do lado de fora. – ela disse, simpática. Concordei, um pouco receoso e desconfortável, sob o olhar reticente do sr. . Entramos, e a mãe de fez sala para mim, pedindo ao pai dela para ir chamá-la. – Finalmente fui apresentada oficialmente ao parceiro de palco da ! – ela puxou assunto. – Pensei que isso só fosse acontecer na noite da estreia.
- Pensei o mesmo. – falei baixo, evitando novamente contatos visuais. Prestei mais atenção à mobília, coisa que não tinha feito na última oportunidade, percebendo uma foto de e Noel pequenos, os dois de pijamas. – Posso ver? – pedi à mãe deles, vendo-a assentir.
Não era o simples fato de ser quando criança que chamou minha atenção. Foi o detalhe de ver Noel de olhos abertos, observando a irmã mais à frente. Ele não era cego desde nascido, então?
- Os dois eram lindos, não é? – indagou a sra. , com o olhar de mãe-coruja. – Ainda são, melhor dizendo.
Concordei, totalmente sem graça, afinal de contas, era para a mãe de que eu estava dizendo que ela era bonita. Eu nem mesmo tinha dito isso para a própria . Por essa razão eu odiava conhecer os pais de qualquer garota, sempre acabava falando menos que o normal e mais que o ideal, só pra agradar.
Eu precisava deixar de fazer o que desse vontade. Tipo ficar parado à porta da casa de alguém.
- Ela já vem. – o pai de desceu as escadas, indo direto para a cozinha. Já sabia quem não gostava de mim naquela casa.
- Então, , aonde vocês vão? – Pra rua de trás, ficar nos pegando no meu carro, quis dizer de uma vez, para quebrar o gelo e fazê-la parar de me tratar como uma amiga de , mas seria estupidez e falta de bom senso.
- Ao atelier. – respondi a segunda coisa que me veio à cabeça. – Teve uma mudança no figurino, a gente precisa acertar antes das nove. – acrescentei em disparada, e na minha mente eu me perguntava “Que porra...?” – Que é a hora que fecha.
- Hm, sim...
- Te fiz esperar muito? – irrompeu na sala, ajeitando a roupa e os cabelos de forma desajeitada.
- Não, acabei de chegar. – menti para manter as aparências, me levantando. – Vamos logo, senão vai reclamar porque ficou mofando lá no atelier. – apressei em explicar subjetivamente a desculpa dada. franziu o cenho, e eu arqueei a sobrancelha de modo a lhe dizer “colabore”.
- Claro! Claro. – ela concordou. – Ah, mãe, depois a gente vai comer alguma coisa, tá? Mas eu volto antes das dez.
- Tchau, até mais. – cumprimentei rapidamente, seguindo , que já se encaminhava para a saída. Após a sra. responder e nós nos afastarmos da casa, disparou:
- Ficou doido? Eu disse que meus pais chegam nesse horário!
- Eu sei. – rebati, alto e rápido. – Mas você não me atendia, fora que mal falou comigo nesses últimos dias, pensei que estivesse me dando o fora, só não queria confessar.
- E a sua solução é aparecer de surpresa, pra ser rendido pelo meu pai, que de cara não gostou de você? – ela usou um tom mais ameno.
- Na teoria... – inclinei a cabeça para o lado, dando de ombros.
- Isso é tão idiota quanto botar um saco na cabeça pra evitar uma briga. – ela observou. – A propósito, eu não atendi porque não ouvi. Estava no banho e, depois, secando o cabelo. Desculpe.
- Tudo bem, o pior já passou.
- Não seja tão dramático. – riu. – Eles são só meus pais.
- Eles são uma espécie da qual eu não me dou muito bem. – brinquei. – Além do mais, você mesma disse que seu pai não gosta de mim.
- Demora até ele gostar de qualquer pessoa que eu e meu irmão apresentemos. Você não é o primeiro. – ela confessou, e, no fundo, eu não queria que o fizesse. Era o mesmo que assumir que outros garotos passaram pela mesma situação que eu. E eu não queria saber de outros, porque estava comigo.
- De qualquer jeito... – mudei de assunto, indicando que devíamos virar à esquina. – Precisamos arrumar um lugar pra ficar até as dez. Aqui vai dar muita bandeira.
- Shopping?
- Muito cheio.
- A’la Pizza!
- Comi pizza no almoço.
- Alguma ideia, então? – ergueu as sobrancelhas, esperando alguma sugestão brilhante.
- Não queria ir pra nenhum lugar lotado, quero ficar mais à vontade. – expliquei a razão das minhas recusas. – A gente pode ir lá pra casa. O que você acha?
- Pra sua casa? – ela pareceu hesitar.
- É. – respondi simplesmente, tentando passar confiança. – A gente nem precisa entrar, podemos ficar no jardim.
- Mas não é meio tarde pra isso? – continuou a questionar, agora mais interessada.
- Claro que não, lá tem iluminação. – observei rápido. – Eu só não ligo quando tô sozinho, acho desnecessário.
- Hm... – ela balançou a cabeça em sinal de compreensão. – Por mim, tudo bem.
- Quer passar em algum lugar pra comer, antes? – ofereci por educação. Já havia comido, mas não sabia se ela também tinha.
- Você vai me fazer não caber nos vestidos, . – disse ela por fim, enquanto parávamos à frente do Land Rover.
- Eu só quero te tratar bem, mas se você tá reclamando, eu paro. – ergui as mãos para me ausentar da culpa, fazendo-a murmurar negativamente.
- Seja homem e vá até o fim! – ela brincou. – Agora que ofereceu, eu quero. – e entrou no carro, logo depois de mim.
- Às ordens. – prestei continência, ouvindo seu riso baixo. Permanecemos alguns minutos em silêncio, sem a necessidade de ter o que dizer para o clima não murchar. Fomos, como sugerido por , ao A’la Pizza comprar comida, que comemos grande parte pelo caminho, a cada sinal vermelho. Ao chegarmos à minha casa, guardei o carro na garagem e destranquei o portão para o jardim, sendo empurrado por para o pequeno campo. – Ei!
- Você é muito lerdo. – disse ela de modo infantil, dando a volta por mim para ir à árvore central, segurando as sacolas de papel, que faziam barulho enquanto ela caminhava rápido.
- Eu não sou lerdo, você que tá agitada. – corrigi, procurando o painel de luz. – Nunca mais te deixo comer pizza.
- Nunca mais, é? – ela guinchou. – Quem garante?
- Eu garanto. – encontrei os interruptores, pondo os quatro holofotes superiores para funcionar. A luz rapidamente alcançou , que escondeu o rosto atrás de uma das sacolas, reclamando. Ri brevemente, acendendo também as luzes secundárias ao redor do concreto, que não por acaso cercavam o banco abaixo da árvore, atrás de . E ela, cercada por tanta luz, abaixou a mão para observar melhor o cenário cultivado há anos por Susan, maravilhada.
- Não sabia como aqui era bonito. – confessou, deixando as bolsas de papel sobre o banco e examinando atentamente os arbustos, as videiras e as árvores ainda novas espalhadas pela grama molhada pelos irrigadores. – Você tem um paraíso particular, praticamente.
- Minha visão de paraíso é um pouco diferente. – comentei, caminhando até ela. – Aqui é mais um refúgio.
- Quais outras surpresas você tem pra me mostrar? – sorriu, seus olhos cintilando.
- O que mais você quer ver? – segurei suas mãos, erguendo-as à altura dos seus ombros.
- Você. – a ouvi responder com firmeza, decidida. – Quem é você realmente, sem os problemas, os julgamentos.
- Digamos que eu seja uma pessoa que até pouco tempo não acreditava em destino. – a encarei com mais seriedade, e surpreendentemente não via nenhum defeito. – E o resto não importa muito nesse momento.
- Parece que temos o mesmo pensamento, então. – ela entrelaçou nossos dedos, deixando um beijo nas costas de uma das minhas mãos.
- Fui induzido pelas circunstâncias. – ponderei, balançando a cabeça para os lados. – E influenciado por certa pessoa que conheci aqui mesmo.
- Se essa pessoa acreditasse em sorte, não saberia dizer se é sorte dela ou sua tudo isso. – novamente sorriu, e eu fiz o mesmo.
- De nós dois. – concluí. – E quem é você, ?
- Por enquanto, o que você sabe é suficiente. – disse ela por fim. E eu tive certeza de que ela não estava me evitando quando nos beijamos. não costumava dar o primeiro passo, existia uma razão para tê-lo feito. Eu apostava que era, assim como da minha parte, por ela também sentir a minha falta.
Abaixei, então, suas mãos para trazê-la para mim, os lábios ainda colados aos dela. Guiei seus passos até o banco, jogando as sacolas para o canto, fazendo-a se sentar e a prendendo entre meu tronco e o encosto. E a beijei com mais intensidade que todas as outras vezes. Correspondi à sua atitude com mais expectativas que costumava. Mesmo que eu não soubesse por quê, eu a queria muito mais que antes. Queria além do que já tinha, e só poderia me dar. Eu tinha que esperar por ela. Tinha de lhe dar a mão e aguardar que ela aceitasse minha oferta, metaforicamente falando.
Seus dedos delicados não se portaram tão puritanos como sempre, uma vez que se espalharam pelas minhas costas e me pressionaram contra ela. Segurei seu quadril e nuca, unindo-a a mim com a mesma intensidade. De pouco em pouco, fui ganhando espaço e avançando do quadril para a cintura, da cintura para a barriga, sentindo cada pedaço de sua pele tenra sob os meus dedos. E dos lábios, passei a beijá-la no queixo, ombro e, por fim, pescoço. deixou a cabeça pender para o lado oposto, me dando a liberdade para conquistar mais aquele lugar. Seu cheiro adocicado me invadindo a cada respiração, eu não quis nada além de tocá-la.
- ? – ela murmurou em um tom diferente, me fazendo retomar a posição inicial, onde eu sabia ser seguro.
- ? – falei em tom de brincadeira, me afastando para vê-la melhor.
Sua mãe estava certa. era linda.
- O que tá acontecendo com a gente? Entre a gente? – como uma criança esperando que os pais lhe digam se Papai Noel existe ou não, ela tinha um brilho inocente nos olhos. Eu me senti mal por não saber o que lhe dizer, pois nem mesmo havia parado para pensar mais a fundo sobre nós.
- Eu... – balbuciei. – Não sei o que te dizer, na verdade. – e a soltei, desviando parcialmente o contato visual. – Há um mês não éramos os mesmos de hoje. Eu me negaria a aceitar a sua ajuda e riria da possibilidade de estar a sós contigo. Principalmente pela parte de estar gostando.
Ela sorriu. Inclinou-se na minha direção e beijou minha testa, acariciando a região.
- Também tenho gostado de passar esse tempo com você. – disse, indiferente às outras coisas que eu confessei. – Assim como você, também achava absurda essa possibilidade, uns tempos atrás.
- Hm... E por que você tá perguntando isso? – indaguei, curioso, alcançando sua mão livre. Estava com a estranha necessidade de um contato físico.
- Tenho sido calculista demais até agora, queria um pretexto pra relaxar e te dizer isso. – me pareceu bastante centrada. Dei-lhe um beijo rápido em aprovação.
E em grande parte, me senti aliviado por não ouvir um “gosto muito de você”. O que tínhamos ainda era prematuro demais para envolver tanto sentimentalismo. Da nossa forma, estávamos nos acertando no mesmo tempo. Se continuássemos assim, talvez déssemos certo – tudo dependia das circunstâncias, não só de nós. Mas acho que não estávamos muito longe disso, a julgar a “forcinha” que estávamos recebendo do destino. Até os pais dela eu já conhecia – e já tinha a inimizade do pai –, mesmo que por acidente. Havia um significado para toda essa conspiração positiva, não?
- Você não precisa de pretexto pra me dizer nada. – tentei agradá-la novamente, porém, sua reação foi menos significativa, talvez um pouco distante, não sabia ao certo. Queria lhe perguntar por quê, mas me contive; se quisesse o fazer, ela já teria me dito. Era melhor respeitar seu espaço, por mais que eu intimamente quisesse estar incluído por todo nele. Seria até mesmo contraditório se eu a forçasse a falar.
De repente, se levantou, estendendo a mão para que eu a seguisse. Franzi o cenho, um pouco confuso, ouvindo-a insistir com um “Por favor” apelativo. Segurei sua mão, sendo guiado para o meio do pequeno campo.
- Love is like oxygen. Love is a many splendore thing, love left us up where we belong… All we need is love! – ela disse, soando familiar. Ainda não entendendo, continuei parado, quieto. – Vamos lá, , a cena do Medley!
- Você disse a minha fala. – observei, vendo-a revirar os olhos.
- Era pra te situar, esperto. – resmungou ela. – Vai, começa logo a música. – e soltou minha mão, me aguardando.
- I was made for loving you, baby, you were made for loving me... – me aproximei novamente, mas escapou de mim como areia entre os dedos.
- The only way of loving me, baby, is to pay a lovely fee.
- Just one night, just one night. – tornei a segui-la, desta vez com os olhos.
- There’s no way, ‘cause you can’t pay.
- In the name of love, one night in the name of love.
- Your crazy fool
– ela riu –, I won’t give in to you.
- Don’t – ergui a voz, tentando tocar seu rosto – leave me this way. I can’t survive without your sweet love... Oh baby, don’t leave me this way.
- You'd think that people would have had enough of silly love songs.
afastou minha mão.
- I look around me and I see, it isn't so, oh no.
- Some people want to fill the world with silly love songs.
- Well, what's wrong with that? I'd like to know…
– pisquei para ela, que retribuiu com um meio-sorriso. – ‘Cause here I go again! – abri os braços, saltando sobre o banco (e exagerando na encenação). – Love left us up where we belong, where the eagles fly, on a mountain high.
- Love makes us act like we are fools.
apontou para mim, rindo. – Throw our lives away for one happy day.
- We could be heroes, just for one day.
- You… You will be mean. And I… I’ll drink all the time. –
não se segurando com a ironia de citar a frase, ela riu.
- We should be lovers. – estendi a nota, oferecendo a mão para minha parceira, que apenas ameaçou aceitar.
- We can’t do that. – ela se afastou mais uma vez.
Na verdade, eu odiava vai e vens como os da cena, mas naquele momento não estava reagindo como costumava. A presença de e a certeza de que era apenas representação atenuavam. Havia semelhanças entre Satine e Christian e nós dois, coincidências acontecem, não é mesmo? (Semelhanças essas que chegavam a certo limite, até porque a não era uma prostituta.)
- We should be lovers... – me ajoelhei, vendo-a rir de surpresa. – And that’s a fact.
- Though nothing will keep us together.
– novamente concentrada, pôs a mão em meu rosto, me olhando com ternura. E eu esqueci totalmente o que devia dizer e fazer por longos segundos em que a encarei. – O que foi, ? – ela sussurrou, parecendo preocupada e me despertando do transe. Envolvi firmemente seus dedos, me levantando.
- We could steal time…
- Just for one day.
– cantamos juntos. – We could be heroes, for ever and ever. – demos cada um um passo à frente. – We could be heroes, for ever and ever. – os rostos alinhados, sorrisos largos e olhares intensos. – We could be heroes…
- Just because I will always love you…
– aproveitei a chance para abraçá-la.
- I can’t help loving…
- You.
– terminei por ela, observando cada traço do seu rosto.
- How wonderful life is now you’re in the world. – encerrou , acompanhando os meus olhos. – Satine diz que não, mas isso vai ser muito bom pros nossos negócios. – acrescentou baixo, em tom de riso, antes de eu, por fim, beijá-la de maneira que compensaria todos os dias que ficamos sem nos ver. Da forma que Christian e Satine nunca puderam, porque aquele não era ficção. Eu, , estava lá; ela, , também. Éramos as únicas testemunhas necessárias para comprovar que tudo aquilo era real, verdadeiro.


Capítulo 22

’s P.O.V.

Eu não queria e odiava ter de fazer isso, contudo, menti e omiti sobre os acontecimentos dos últimos dias para . Minha consciência pesava em relação a isso, porém, o bom senso me apoiava quanto a resguardá-lo de tantas informações que o chocariam. não merecia mais uma dor de cabeça em um período tão crítico quanto o que passava, e não seria eu a pessoa que causaria isso. Principalmente depois da incrível noite anterior, desde o reincidente com meus pais ao Santi aparecendo do nada, com seus muitos pelos que ficaram agarrados à minha roupa quando ele quis me “cumprimentar”.
Eu devia mesmo arriscar acabar com momentos assim, consciência? Porque eu não queria de jeito nenhum.
Preferia esquecer – ou fingir esquecer –, como fiz ao chegar de manhã no colégio. e conversavam no fundo da sala, próximos à janela; surpreendentemente ainda não havia chegado, e os outros não me importavam muito.
- Veja só, se não é a senhora ! – me recebeu, me fazendo fuzilá-lo com os olhos, enquanto parecia um pouco surpreso.
- Não seja exagerado. – respondi ao seu cumprimento caloroso, me aproximando dos dois. – Bom dia, .
- Traduzindo: vá se foder, idiota. – o repreendeu, e apesar de rude, eu agradeci com um sorriso. – Bom dia, . Seus pais disseram alguma coisa por você ter passado da hora?
- Vocês já estão assim, é? – perguntou com tom sugestivo, fitando-nos com os olhos semicerrados.
- Assim como? – ri baixo, notando meu já nervosismo por estar sendo exposta. Onde estava para me salvar?
- Você sabe do que eu tô falando, ...
- Um pouco de privacidade é bom, sabia? – o cortou, já não parecendo mais tão apto a brincadeiras. – E só pra te responder, não, não estamos do jeito que você pensa.
- Tudo bem, não tá mais aqui quem falou! – erguendo as mãos em sinal de inocência, disse.
Percebendo, também, que tinha me visto desconfortável e por essa razão tinha vetado o próprio amigo, eu quis agradecê-lo de maneira mais significativa. Um beijo de bom dia, talvez, no rosto. Ou até na boca, se não demorasse muito. Ainda não estava completamente acostumada com a ideia de que estávamos juntos até mesmo dentro do colégio. Mas de qualquer maneira, não queria ficar o olhando e só. Totalmente compreensível, não?
- , eu – titubeei, vendo-o me dar toda a atenção – queria falar contigo. A sós.
- Acho melhor eu deixar o casal. – comentou , se distanciando, sem antes nos lançar um olhar sacana.
- O que foi, ? – indagou de forma paternal, seu semblante era tranquilo.
- Vamos lá pra fora, aqui não é o melhor lugar. – sugeri como quem não quer nada.
- Por que não?
- Porque não quero falar, na verdade. – separei uma mecha fina de cabelo para enrolar nos dedos, desviando do olhar, até então curioso, de .
Não fomos tão longe por causa do horário, nem apelamos para o clichê almoxarifado porque não éramos imbecis de arriscar sermos pegos pelo zelador. Nos escondemos – deixando claro, “escondemos” é só uma figura de linguagem – no ginásio, afinal, era sexta e não existia nenhuma atividade por ali, fora que não precisaríamos nos espremer entre quatro metros quadrados e materiais de limpeza. (Juro que nunca entendi esse fetiche. Tão... antiquado.) Sentamos na primeira fileira da arquibancada, onde mal esperamos para fazer o que queríamos – e que não precisa ser frisado, já que eram só beijos.
Tivemos pouco tempo ali, mas já valeu pela manhã. Voltando para sala, eu o expliquei mais uma vez a (falsa) razão das faltas, porque confessou não ter prestado a mínima atenção na noite passada – já sabia como convencê-lo sem esforço, que útil! E nos primeiros minutos de aula, recebi um bilhete seu.
“Olha pra trás”, dizia. Fiz o que me foi pedido, sendo surpreendida pelo celular de apontado para mim. “Ficou ótima, obrigado”, ele articulou, me fazendo reprová-lo com o olhar, boquiaberta na tentativa de resmungar qualquer coisa.
“Apague isso! Devo ter ficado horrível, por favor!”
“Me dê três bons motivos.”
“1: eu com certeza absoluta saí feia na foto. 2: eu odeio fotos-surpresa. 3: estou pedindo por favor.”
“Engano seu. Na verdade, você ficou muito bem. Mais ou menos assim:”
E um desenho feito às pressas, um pouco borrado de caneta azul, me ilustrava. Ri, em seguida tampando a boca por perceber que tinha sido alto o suficiente para o professor ouvir.
- Desculpe. – falei, extremamente envergonhada. Assim que o sr. Prophet se virou para o quadro, voltei meu olhar para , que parecia se divertir às minhas custas. – Bastardo. – grunhi para ele, que riu de novo.

- ! ----! – guinchei assim que cheguei à sala do grupo de teatro, ao meu encalço (usamos essa desculpa para não acompanhar e Noel, no meu caso, e , Emma e Allison, no dele).
- Que é?! – minha amiga berrou, me olhando ferozmente. – Se vieram encher o meu saco, deem meia-volta. Tô numa pilha por causa de uma prova de Álgebra.
- Calma, bebê, não viemos pra isso. – amaciei a voz, rindo do estresse dela. – É que ontem nós lembramos que temos de fazer a prova final dos figurinos, e, se der, um ensaio geral com tudo pronto.
- Vocês tiveram tempo pra isso? – disse com ironia, procurando alguma coisa debaixo das apostilas sobre a mesa.
- Conversar faz parte de qualquer relação entre pessoas, engraçadinha. – censurei seu comentário, revirando os olhos. – O que você tá procurando?
- Agenda. – ela respondeu, achando sua agendinha minúscula e preta. – Aqui, dia... 19 de julho. E lembre-se que amanhã tem ensaio oficial no auditório.
- Ah, eu não sabia, sério?! – fui pega de surpresa, vendo-a assentir. – Logo amanhã, que eu queria dormir até mofar?
- Parece que vocês precisam rever o conceito “conversa”. – mais uma vez, implicou, e minha cara foi ao chão.
- Falha minha. – enfim se pronunciou. Ele e tinham encerrado a rixa, mas não eram grandes amigos ainda. Estavam mais para desconhecidos com denominador em comum. O denominador era a peça. – Que horas?
- Oito e meia. – ela disse em um tom cansado. – Provavelmente vai ter uns atrasadinhos, então cheguem às nove. Meia hora a mais de sono pra todo mundo, exceto Elizabeth, a preço de um puxão de orelha. Oferta irrecusável para um sábado, não?
- Quase. – dissemos e eu, olhando-nos com surpresa na mesma hora.
- Vocês já estão na fase da sincronia, que bonitinho! – apertou as próprias bochechas, e eu murmurei “De novo” para . – Daqui a pouco começa a da carência, depois apego extremo, acomodação e costume. Essa última é a pior, é quase como casamento, e vocês serão obrigados a aguentar as mínimas manias do outro, só pra agradar.
- Só pra te lembrar, não estamos namorando. – enfatizei, acabando com o incômodo discurso da minha amiga.
- Questão de tempo. – ela insistiu.
- Não só essa, como outras questões. – concluí, mostrando-me fechada para discutir minha relação de forma tão franca. – Enfim, só queria falar sobre os ensaios, mesmo.
- Então acabamos por aqui. – sorriu como se nada tivesse acontecido, ainda que soubesse o quanto me irritava quando se metiam nos meus assuntos do jeito que tinha feito.
- Certo. – concordei, ignorando-a com alguma dificuldade. – Até amanhã, . E procure o , por favor. Você tá um saco, hoje.
Ouvi um riso de deboche dela antes de dar as costas. Mal humorada, era pior até que eu mesma. Sua indisposição chegava a infectar as pessoas ao seu redor. Contudo, eu não me deixaria levar, assim, quando me afastei, esqueci. Ou melhor, amenizei a parte em que nosso diálogo se tornou um fórum sobre o que acontece nos namoros e em que parte e eu nos enquadrávamos. Ou, pelo menos, tentei.
- Você ficou chateada com o que a e o disseram? – me perguntou quando já alcançávamos o fim do corredor.
- Não muito. – confessei, cruzando os braços. – Só acho chato ficarem ditando os nossos próximos passos, querendo saber descaradamente o que acontece com a gente, até porque eu só fui saber ontem. – soprei um riso no fim. – Imagina só se não fosse apenas eles, mas o colégio inteiro? – então olhei para ele, que parecia pensar sobre o que eu dissera. – Entende agora por que eu não gosto de sair divulgando a minha vida por aí? Eu conto pras minhas amigas porque, afinal de contas, elas são minhas amigas. No momento eu quero socar uma delas, mas ainda assim...
- Entendo, sim. – ele riu, provavelmente da maneira como eu atropelei as palavras. – Eu contei pro porque, apesar de meio inconveniente, ele também é meu amigo.
- Não, tudo bem! – me apressei em dizer. – Não é justo só eu poder contar pras pessoas que quero, você também pode, claro. O problema é fazer todo mundo não encher o saco, fazendo questão de mostrar que sabe sobre nós. Isso me incomoda. Bastante, na verdade.
- Por quê? – soou curioso.
Porque eu nunca cheguei a ter um namorado e era infernizada por isso. Porque a ideia de ter um relacionamento me apavorava. Porque eu não conseguia confiar completamente em ninguém, e me tornava uma paranoica em algum momento. Porque de tudo, o que eu mais sentia medo era da dependência e vulnerabilidade. Perder minha autossuficiência seria como apagar de mim uma característica marcante. Eu sabia que tudo viria a acontecer se eu andasse por aí abraçada a , se desse a razão para os outros comentarem sobre minha vida pessoal. Das fofocas inocentes para as maldosas só faltava um pulo.
- Não sei, é coisa minha. – dei de ombros, como se aquilo não fosse tão importante.
- Coisa sua? – ele indagou, desconfiado. Preferi fingir não o ouvir a responder.
- Vamos voltar pra sala? – desconversei. – Não tô no espírito pra ver gente.
- Você não quer me ver também, então. – implicou, fazendo-se de ofendido.
- Há uma razão pra você estar do meu lado e eu ainda não ter fugido. – observei, sorrindo de soslaio. A mensagem chegou a ele perfeitamente, a julgar seu sorriso em resposta.

Só mais uns dias. Uma semana, e eu não precisaria mais estar naquela casa. Eu preferi trabalhar para conseguir, pelo menos, metade do orçamento, devia aguentar até o fim. Ainda que isso significasse estar debaixo do mesmo teto da mulher que trai toda uma família. Eu não podia julgá-la nem repreendê-la nos próximos dias. Também não podia deixar a oportunidade que praticamente caiu no meu colo, muito menos podia contar o que acontecia ali para mais alguém. E em hipótese alguma eu deixaria que descobrisse. Da forma como tudo surgiu tão rápido, mal tive tempo para pensar em por que razão eu o escondia que estava de babá de meio-período, mas a verdade era que eu estava com vergonha.
Me sentia a mais ínfima das pessoas por ter de me sacrificar para conseguir cobrir custos de uma peça, enquanto ele poderia arcar com todos seus custos sem problemas. Eu morria de vergonha e medo de ser subjugada por isso. Era mais fácil mentir, dizendo que eu estava ocupada ajudando Noel em seu curso de Italiano, que confessar que eu não tinha a mesma vida fácil, luxuosa e cômoda de .
Mais uma pequena mentira, mas cheia de segredos, nas minhas costas. Quando elas iriam acabar, mesmo?
Distraída pela quantidade de assuntos pendentes na cabeça, mal me lembrei da hora de passear com Angie, quando o fiz já era quase seis. Ao voltar, Livie, preocupada, já estava em casa, e o meu pagamento foi feito por ela – aliás, não havia sinais de Otto. Me desculpando pelo descuido, fui para casa encerrar logo o dia. Ao menos eu teria o ensaio no dia seguinte, para aliviar a tensão.
Além do elenco principal, extra e os envolvidos na produção, também estava lá. Pelo rosto mal humorado, não de boa vontade, e eu não me atreveria a perguntar por que razão, apesar da curiosidade.
Quando chegou, ao me cumprimentar, teve de ser mais comum e frio, assim como eu. Sinceramente, na minha parte era mais fácil, com todos os últimos acontecimentos me atormentando e me deixando alheia a detalhes, principalmente os que envolviam sentimentos. Eu torcia para que ele não percebesse e não quisesse me ver depois. E pior de tudo era que mesmo que eu esperasse isso, me incomodava essa minha vontade de não querer passar o tempo com . Pensativa, a maior fração do ensaio em que não estava atuando, passei quieta. Tinha receio de falar demais, como sempre.
- Aconteceu alguma coisa? – ouvi perguntar durante a segunda passagem de texto, onde apenas narrava.
Obviamente, eu não tinha pensado na parte que acabava com meu plano, uma vez que eu nunca ficava quieta durante a peça. Tinha o terrível mau costume de murmurar as falas dos outros que havia decorado como referência de tempo.
- Não, nada. – respondi rápido, forjando surpresa. – Por quê?
- Você tá calada desde que chegou, não fez aquele negócio de repetir as falas dos outros... – disse ele. – Achei estranho.
- Por acaso você tá tomando conta de mim? – brinquei, tentando mudar o rumo da conversa.
- Não, é que geralmente os outros reclamam quando você faz isso, e hoje ninguém disse nada. – ele me contou, me deixando surpresa de verdade. – Na verdade, Cecile achava que você tinha perdido o papel, por causa das faltas.
- Algo me diz que ela tá bem frustrada e com raiva, agora. – concluí, segurando o riso. fez o mesmo.
- Ela tem que se acostumar com a ideia de ser só a substituta. – acrescentou, olhando para Cecile de modo indiferente. – Mas que mal lhe pergunte, por que ela tem te substituído tantas vezes nessa semana?
- É um pouco complicado. – desviei o olhar, implorando mentalmente para que eu entrasse logo em cena. – e Elizabeth sabem o que é, já é suficiente.
- Se quiser conversar... – sugeriu, dando de ombros como se dissesse que não se importava em ouvir.
- Acho melhor não. – neguei com a cabeça, soando o mais amena possível. – Daqui a pouco passa, e antes da estreia eu já tô de volta.
- Isso é bom, pelo menos. – ele sorriu, e agora que eu tinha certeza de que tudo estava esclarecido entre nós, voltei a ver a doçura do seu sorriso e a gentileza dos seus olhos.
- Também acho, já tava com saudades daqui. – concordei, contente com sua empatia. Em um daqueles momentos em que o assunto acaba, mas a vontade de falar não, lembrei-me de uma conversa minha com sobre . Do jeito como ele dava total atenção à pessoa com quem conversava e como se comprometia por completo em qualquer situação com qualquer um. – Eu tava pensando... Quer conhecer uma amiga minha? Garanto que vocês vão se dar bem de cara!
- Talvez... Quando? – ele quis saber, curioso com a minha pergunta repentina.
- Hoje. – respondi no ato, empolgada. – Às oito, no Flavours, o que você acha?
- Pode ser. – o vi assentir com a cabeça. Eu teria de avisar a Saskia que não seria mais uma “noite de caça”, como ela dizia. O pedido estava feito por encomenda e sob medida. – Daqui a pouco é a sua vez, melhor prestar atenção.
- Aham. – mais uma vez concordei, me pondo a postos, atrás das cortinas.
- Eles a chamavam de “Diamante Cintilante”. – ouvi dizer em tom de anúncio.
- The frech are glad to die for love. – recite, ainda escondida. – They delight in fighting duels. But I prefer a man who lives… - sinalizei para dois colegas de palco que seguravam as cortinas, para que abrissem caminho para mim. –... and gives me expensive... – uma fenda foi aberta, em seguida eu entrei em cena. –... jewles.
Um aluno do primeiro ano deu introdução à música, e os figurantes apareceram também, de todos os lados, me rodeando. Ao mesmo tempo, se afastava e surgia, os dois se sentando ao fundo, de costas para o outro. Mesmo já acostumada com a ideia de que os dois tinham papéis parecidos na peça e na minha vida, continuava achando engraçada a coincidência.
No meio de Sparkling Diamons, Gerard – que interpretava Zidler – me tirou para dançar, dando sequência ao nosso diálogo. Apontou para Christian e o Duque, enquanto girávamos em meio aos outros. Toulouse, que nessa versão não era um anão, logo surgiu para retirar o Duque de cena, e quase no fim da canção, me aproximei de , sentando-me em seu colo.
- Me esperando? – cruzei as pernas e enlacei seu pescoço, após o último verso.
- Acho que sim. – ele disse, esforçando-se para olhar nos meus olhos. Eu nunca havia confessado, mas a principal razão para eu gostar de ser Christian era a de que eu poderia me atrever mais que o comum, pois ele pensaria que era apenas encenação. Apesar de eu querer fazer o mesmo fora dos palcos às vezes, eu não poria em prática com a mesma facilidade. Minha ousadia sempre fora muito limitada.
- Essa noite a escolha é da casa! – anunciei, me levantando. – E eu já fiz a minha. – voltei o olhar para , que não estava com a expressão de espanto que devia. – Por favor, senhor. – estendi a mão a ele, que só então pareceu voltar a si.
- Nã-não. Eu não danço, não. – ele balbuciou, estático e assustado. Emiti um som de tristeza em resposta, assumindo feições infantis de decepção, tornando a olhar os figurantes.
- Ele não dança, e agora?
- Here we are now, entertain us! – cantaram os outros, me fazendo rir.
- Vamos lá, meu senhor. – mais uma vez me voltei para , segurando seu rosto em uma das minhas mãos. – Uma dança e nada mais, pode ir embora depois, se não gostar.
- Eu... – ainda se fazendo desnorteado, ele disse.
- When the light’s out is less dangerous... – o coro cantou novamente.
- Então? – deslizei devagar minha mão pelo rosto dele, estendendo-a de novo. Sem dizer nada, a aceitou, então nós caminhamos pelo palco ao tempo que as dançarinas iam aos seus pares. O piano voltou a ser tocado, e aproveitando a deixa, sussurrei: – Tá livre hoje à noite? Vamos ao Flavours.
- “Vamos”, quem? – indagou , franzindo o cenho.
- , Saskia, e eu. – respondi, imediatamente mudando as expressões dele de curioso para insatisfeito. – Depois a gente fala sobre isso, sim ou não?
- Ok, eu vou. – apesar de ser a contragosto, consentiu.
- A gente se encontra lá às oito, tudo bem? – disse por fim, apenas o vendo concordar com a cabeça.

Dois terços de hora e o ensaio, enfim, terminou. não me levaria para casa por opção minha, e exceto a sra. Moore, , , ele e eu, todos já tinham ido embora. A professora ainda acertava detalhes – ou somente falava ao telefone – quando saímos do auditório, nos acompanhava até o portão, enquanto meus amigos iriam pelo mesmo caminho que eu.
- Então, , por que você veio? – perguntei enquanto passávamos pelo pátio. – Nem pra ver a peça, ou fingir, você viu. Ficou dormindo o ensaio quase todo.
- Tínhamos combinado de passar o dia inteiro juntos, porque mal nos vimos durante a semana. – respondeu por ele.
- Quer dizer, você me fez prometer. – a corrigiu. – Hoje eu mal posso respirar sem essa barriga de mingau.
- Isso inclui sair com seus amiguinhos Neandertais, . – ela brincou, dando-o um beijo rápido.
- Uma adaptação dessa promessa cairia bem pra nós. – observei, muito mais para mim que para .
- Adaptação seria na parte de ver os “amigos”, não é? – ele retorquiu, seco. Arqueei a sobrancelha, não o entendendo. – .
- Oh céus, não. – murmurei, revirando os olhos. – O tempo todo é você reclamando dele, ele de você... Isso cansa, tá legal? é só um amigo, já deixei mais que claro pros dois.
- E você acha que ele aceitou assim, na boa? – usou seu tom de ironia. – Nenhum garoto é bonzinho sem querer algo em troca. Nós dois sabemos muito bem o que ele quer.
- Você tá sendo estúpido e irracional. – frisei os adjetivos. – Mesmo que ele até queira alguma coisa, eu não quero. Já é o suficiente pra você deixar essa rixa de lado.
- Você tá sendo ingênua e passional demais. – ele fez o mesmo. – É melhor me ouvir, porque eu sei do que eu tô falando.
- Quer saber? Pode continuar falando. – dei de ombros, mostrando que não ligava. – Eu não vou escutar essa sua desculpa territorialista, até porque não sou um pedaço de chão sendo disputado.
- Não é nada disso, garota!
- Não importa, não ligo. – o interrompi antes mesmo de ele voltar a falar.
- Que método maduro de encerrar uma discussão. – zombou.
- Eu não quero discutir, é por isso. – me justifiquei. – Agora, se você quer falar, eu te dou duas opções: quer que eu evite te olhar e ouvir ou prefere que eu o ignore olhando no seu rosto? Posso fazer os dois.
- Tá bom, você não quer conversar, não precisa. – ele se deu por vencido, mais uma vez insatisfeito. – Eu nem sei por que comecei isso, nós não somos nada. Nem precisamos de adaptação de porra nenhuma.
Somente aquelas quatro palavras – “nós não somos nada” – foram realmente ouvidas e entendidas. Era isso o que ele achava, na verdade? Se sim, eu só conseguia pensar uma coisa: burra. Acreditar que um garoto como iria realmente se interessar por mim era pura burrice. Não pelos meus defeitos ou pela minha aparência, mas por ele mesmo. Um egoísta sem escrúpulos era a melhor forma de defini-lo. Durante todo esse tempo eu soube disso, mas preferia camuflar a insegurança porque ele parecia real. Parecia, no passado.
Apesar do choque de realidade, não mudei minha postura. Queria, sim, parar por ali e ir para casa sozinha, pois sabia que somente assim eu iria me acalmar. Porém, não mostraria a que ele havia me afetado; iria tirar dele o gosto de irritar alguém. Olhei para ele com um misto de apatia e desdém, sustentando um sorriso carregado de sarcasmo.
- Que bom que chegamos a um consenso, . – comecei, querendo ser cruel. Eu queria o atingir da mesma forma que ele fez comigo. – Eu também não sei por que você quis marcar território, se não somos nada. Se eu quiser convidar pra sair, não é você quem vai me impedir. Se eu quiser fazer qualquer coisa, eu vou fazer. Só não quero que você tente bancar o namorado ciumento e carente de atenção, até porque você não chega nem perto disso. E também não quero que apareça na minha casa de surpresa. Eu odeio esse tipo de surpresa.
- Anotado. – ele disse sem expressão, mas eu sabia que sua indiferença era para disfarçar a ofensa.
- Ah, a propósito, eu ia apresentar a Saskia. Por isso o chamei. – expliquei por fim, um trunfo para fazê-lo se sentir culpado. – Pode me ligar pra pedir desculpas quando quiser.
Pedi a e que fossemos mais rápido, deixando para trás. Durante o percurso, os dois me deram apoio, ainda que estivessem fazendo piadas também. E mesmo que, no fundo, eu sentisse arrependimento por ter chegado ao ponto de receber desaforos de graça e explodir por um simples comentário, eu estava grata pelo suporte deles. Ajudava a diminuir a mágoa pelo acontecido e o indescritível sentimento de culpa que surgia.
Meu Deus, como eu odiava empatia.
Ao chegar em casa, me afundei no sofá de qualquer jeito, permanecendo inanimada enquanto ninguém aparecesse. Pelo cheiro de comida pronta, eu sabia que um dos meus pais estava em casa, contudo, não queria encontrá-los, pois eles veriam logo o meu estado e questionariam sobre isso. Fui, então, para o meu quarto, retirando os sapatos e me jogando de qualquer maneira na cama, sem nem mesmo olhar. Acabei deitando as costas em uma caixa, que, ao levantar para ver, descobri ser de um Blackberry novo em folha, o número escrito em um post-it sobre ela. Com as expressões mais que abertas, corri em busca de meu pai ou minha mãe, estrilando enquanto rasgava a embalagem.
- O que foi, menina? – perguntou meu pai, quem eu topei primeiro. Eu o abracei forte, fazendo-o rir de surpresa.
- Brigada, brigada, brigada! – repeti sem parar, empolgada.
- Gostou? – assenti à sua pergunta. – Agora que você tá trabalhando, já pode me pagar.
- É sério isso? – me afastei, boquiaberta. Foi a vez dele de assentir. – Mãe! Mãe, que história é essa?!
- É palhaçada do seu pai. – ela respondeu, saindo do banheiro da suíte segurando o protetor solar, o rosto branco daquela gosma. – Isso é um presente, já que você ainda tá sem celular. Quero dizer, estava.
- Já disse que amo vocês, hoje? – mandei um beijo no ar para cada um. – Você um pouco menos, só por causa do susto. – acrescentei para meu pai. Rindo, minha mãe voltou para o banheiro.
- Ah, Livie ligou. – avisou ela. – Pediu pra você ir até lá quando chegasse, mas não adianta sair antes de almoçar, senão te busco na base do cinto.
Meu pai e eu trocamos olhares descrentes. Como se ela fosse capaz disso..., pensamos os dois.
- Vocês vão sair? – perguntei por curiosidade, me sentando à beira da cama, para mexer melhor no meu celular.
- Vamos ao mercado. – respondeu meu pai, alcançando a caixa rasgada para ler. – Noel vai junto. Aproveita que a comida ainda tá quente e vai comer. Depois você cutuca isso.
- Ok. – falei, meio alienada ao que ele dizia. Desci para comer, e em seguida vieram meus pais, que foram chamar Noel para irem. Meu irmão não havia nem se arrumado ainda, o tempo que ele gastou no banho foi suficiente para que eu almoçasse, escovasse os dentes e saísse, sem antes pedir à minha mãe que passasse o número novo, caso alguém me ligasse no meio tempo em que eles estivessem em casa.
Livie queria que eu ficasse com Angie pelo resto da tarde – já era por volta de 14h –, porque precisava resolver uns assuntos de família. Eu não tinha mesmo o que fazer até a hora de encontrar as meninas (e ), então aceitei. Novamente, ela me passou as instruções do dia antes de sair, despediu-se da filha e disse a que horas voltaria.
- Somos só eu e você, Angelique – disse para a menina no meu colo. Passei a chamá-la dessa forma quando me recordei que era essa a variante francesa do nome dela, que, assim como o da mãe, era um diminutivo.
Angie, com seus enormes olhos , bocejou, e eu logo a levei para o quarto. Mais uma vez eu não teria muito que fazer, além de velar seu sono. E vê-la tão pequena e frágil nos meus braços, precisando dos meus cuidados, me lembrou de Noel. Por lembrar ele e nossa relação sanguínea, me veio à cabeça. Como ele reagiria a Angie?
- Ele te amaria, tenho certeza. – respondi sem dúvidas a mais. Apesar do desapego visível dele com relação aos pais, eu sabia que ele se importava com a família. A forma como falava de Leonard era com idolatria, eu não podia estar errada. – Mesmo ele sendo um idiota, ele iria te adorar.
Angie piscou os olhos, e eu preferi entender aquilo como um “Concordo”.
- É engraçado eu estar me queixando do seu irmão pra você, Angelique – ri comigo mesma. Eu parecia uma louca por falar com uma criança com menos de um mês. Era quase como falar com um cachorro; ele ouve tudo, mas não responde. – Mas que ele é um idiota, é. Você tem sorte de não ter dezesseis anos e ele não te conhecer, porque ele seria tão babaca e possessivo quanto foi comigo, hoje. Porque, logicamente, não era ciúmes que ele sentia. Não existe ciúmes sem motivos, eu acho, e me deixou claro que não havia absolutamente nada entre nós. – diminuí o volume da minha voz, incomodada com a lembrança das palavras duras dele. – é um babaca. Como qualquer garoto.
E eu era tão babaca quanto, por ainda esperar um bom pedido de desculpas dele. Não conseguia compreender o motivo de eu sempre esperar o arrependimento de todo mundo. Nem todos vão enxergar as coisas do mesmo ponto de vista que o meu, muito menos vão abrir mão do orgulho para voltar atrás. Nem todos dariam o braço a torcer quando achariam estar certos, no caso de . Eu devia entender isso de uma vez por todas e esquecer falsas expectativas que criava após uma briga, discussão ou o que fosse. Devia deixar de ser cabeça dura e achar que estava sempre certa, porque aquela não era a primeira vez que eu estragava um lance legal com alguém. Sempre fiz isso e, no fim, eu que me arrependi. Entretanto, por mais que as minhas intenções fossem boas por pensar nisso, não seriam postas em prática no minuto seguinte. Refletir sobre esse meu defeito era somente um lembrete para o futuro.
Já alguns instantes sem dizer nada em voz alta, preferi continuar quieta. Não podia criar o hábito de conversar com Angie – uma vez que ela não respondia nem reagia exatamente a mim. Mesmo que eu ainda tivesse muito que falar.
Indo para o quarto para fazer Angie dormir, aproveitei o tempo livre para pôr no celular os números que sabia de cor – antes de dormir eu tentaria organizar os outros contatos. Exatamente no meio de “Saskia”, no entanto, o telefone tocou. Pelo número, desconhecido por mim, julguei ser engano (quanta sorte a minha) e ainda assim atendi, em nome da boa educação.
- Pois não?
- ? – respondi com um som positivo, tentando reconhecer a voz. – Eu sei que sou a pior pessoa pra pedir desculpas e sei também que só vou conseguir dizer isso pelo telefone e uma vez. – as palavras soaram atropeladas, umas por cima das outras, mas ainda assim eu entendi perfeitamente. E pelo que diziam, não era difícil saber quem as falavam. – Não foi a minha intenção falar aquele monte de merda, foi só o momento. Eu já te disse que mesmo que não saiba o que somos, tô gostando desse tempo que estamos passando. Eu nem sei por que disse aquilo.
Ele sabia, sim. Eu também. E e idem.
- Na verdade, sei, sim. – parecendo ouvir meus pensamentos, se corrigiu. – Por mais que você já tenha reparado e reclamado disso, não adianta, , eu não gosto dele. E não vou gostar nem tão cedo. Quer você aceite ou não.
- Mas por quê? – indaguei em um fio de voz, comovida com suas desculpas desajeitadas e irritada com toda aquela história entre ele e .
- Eu só não consigo o aturar, ok? – foi o que tive em resposta. – Não insista, por favor.
- Tudo bem, não vou te forçar a isso. – concordei sem vontade. – Mas, , sem ofensas, por que a babaquice de não querer me ver falando com ? Sempre que ele chega perto, você aparece e fica estranho comigo. Eu me sinto mal com isso, sabia?
- Da mesma forma que você me evita quando Ally tá por perto.
- É diferente. Vocês namoraram por meses, e há boatos de que ela ainda gosta de você.
- Não é diferente, não. – o ouvi bastante sério. – Vocês já ficaram, e eu duvido que ele não queira mais uma vez.
- Já te disse que não quero nada com ele. – frisei, tão séria quanto. – Eu tô contigo, lembra? Mesmo que nem todo mundo saiba.
- É escolha sua eles não saberem, lembra também?
Eu lembrava, claro que sim. Mas se ele queria saber, não gostava tanto da situação. Porém, gostava menos ainda da ideia de todos saberem. Ruim por pior, eu prefiro a primeira opção.
- Enfim... – o ignorei. Já havíamos batido nessa tecla diversas vezes, sem chegar a lugar algum. – Te vejo mais tarde?
- Provavelmente. – seu tom suavizou, não deixando de ser mais neutro que alegre.
- Até, então. – respondi, tentando soar simpática.
- Até, . – disse .
- Ah, e como conseguiu meu número? – perguntei rápido, antes que ele desligasse.
- Digamos que seu pai me odeie, mas sua mãe até me suporte. – ele riu, e eu o acompanhei.
- Certo. – falei por fim, percebendo que o gelo, enfim, tinha sido quebrado. – Tchau, .

***

Seja qual fosse a situação, ela odiava esperar. Seja por quem fosse a pessoa. Contudo, era exatamente o que Livie estava dando a como única opção. Ainda que estivesse planejando a ida à Lua, não se importava. O combinado era de que às seis ela já estaria liberada, no entanto, passava das oito e seu estresse emocional fazia sua vontade de explodir cada vez maior.
Já havia recebido três ligações de e cinco de Saskia, ambas ávidas e indignadas com seu atraso. Nem mesmo observar a pequena Angie a acalmava, uma vez que seu rosto infantil lembrava o da mãe. A garota tinha de por à prova sua sensatez diversas vezes, pois não foram poucos os planos arquitetados para sair da enrascada em que aceitara se colocar. O pagamento não valia a encheção de saco das amigas. Fora o previsível desconforto por e estarem no mesmo lugar, sem sua supervisão para que seus planos dessem certo.
O pior era ela saber que, ainda que quisesse jogar para o alto a história de ser babá, não conseguiria demonstrar sua insatisfação. Só mais uns dias, disse a si mesma, tentando se convencer de que não seria tão torturante quanto parecia. Mas, no fundo, ela se arrependia da escolha que tinha feito. Não estava lá tão pronta para equilibrar trabalho, estudo e lazer como uma adulta. Ela não era adulta. Talvez grande parte de suas atitudes fosse atribuída a mais anos de experiência, porém, ainda existia aquela minoria que deixava claro quem ela realmente era: uma garota cheia de anseios e força para batalhar, mas que ainda não tinha o bastante para suportar todo o peso que jogava nas próprias costas.
tinha ciência de que cobrava demais de si. Pensava todos os dias sobre isso, e em seguida se confortava com a promessa de que era um estágio temporário. Entretanto, nos últimos dias a ansiedade a consumia de tal formal que seu desejo por uma pausa era gritante, por mais que estivesse reprimido; guardado, na verdade, ele só fazia crescer. Assim, quando seus pequenos momentos de distração lhe eram privados, ela mal conseguia se concentrar. Era como uma panela com água fervente, e a temperatura subindo, subindo... E ouvir o celular tocar, com suas amigas a pressionando do outro lado da linha, só piorava.
- Eu já disse, vou demorar. – falou de imediato assim que atendeu. – Não adianta me ligar a cada quinze minutos, isso só me deixa com mais vontade de não sair.
- Tudo bem, não precisa me morder! – disse , fazendo-a se envergonhar pelo desaforo mal direcionado. Só então ela percebeu a importância de, em momentos como aquele, olhar o visor.
- Desculpa, desculpa. – murmurou a garota, que se não estivesse sozinha, seria motivo de riso pelo tom avermelhado que as bochechas adquiriram. – Pensei que fosse ou Sassie, já perdi as contas de quantas vezes elas me ligaram pra saber se eu já estava chegando.
- Também pudera, entre vinte minutos e duas horas de atraso tem uma grande distância. – ele observou, rindo, apesar de falar sério.
- Dessa vez sou eu quem digo que não foi por mal. – novamente se desculpou, resignada.
- Mas o que houve? – o garoto quis saber. – Quando eu perguntava, elas só diziam que você já estava vindo.
- Tô com uns probleminhas aqui em casa, meus pais saíram e tenho que esperar até eles chegarem. – ela mentiu descaradamente, surpreendendo-se por não gaguejar. – Assim que eles aparecerem, peço pra me darem uma carona até aí, pra chegar mais rápido.
- Se eu te buscar, ajuda? – o ouviu dizer, sentindo o medo de ele descobrir seus segredos subindo pela espinha. – Você sabe que não é nenhum problema, em dez minutos eu tô aí.
- Não, não precisa se preocupar, . – respondeu de imediato. – Eles já devem estar chegando, dessa vez é de verdade.
Assim espero, Livie, pensou consigo.
- Tem certeza? – ele insistiu.
- Absoluta. – disse ela, julgando-se horrível por mentir tanto assim. Ele parecia tão preocupado... – Você deve estar louco pra sair daí, né?
- Bom... Não louco, mas me faria bem. confessou, rindo sem vontade.
- Que roubada que eu te botei... – a garota murmurou mais para si que para ele.
- Não é pra tanto, também ficou sobrando, a gente tá se consolando e enchendo a cara de Coca-cola. – contou ele, fazendo-a rir. – Mas já que você tá pra vir logo, não vai durar muito essa sessão deprê.
- Eu sou uma péssima amiga. – ela se lamentou em tom de riso.
- Você não é minha amiga. – ele a corrigiu, fazendo-a procurar palavras por certo tempo. Como ele conseguia fazer aquilo? – ?
- Oi... – disse ela, a voz manhosa. – Desculpa, fiquei distraída. O que você disse? – acrescentou em evasiva, apesar de pôr duplo sentido na pergunta.
- Nada demais, quando você chegar, eu digo. – ele fez o mesmo, e a garota jurava que era de propósito.
- Por que você adora fazer isso comigo? – resmungou, levando-o a rir. – É sério, eu odeio ficar curiosa e parece que você gosta de fazer isso!
- Talvez eu goste. deixou a certeza no ar. – E não sei se eu finalmente entrei no clima do musical ou só piorei da minha mania de sempre ter uma música pra uma situação, mas falar com você me lembrou dum pedaço de uma música.
- Qual?
- Enjoy the Silence. – respondeu, certo de que ela não conhecia.
- Canta pra mim? – a garota pediu, tendo um som negativo em resposta. – Por favor, . Gosto tanto da sua voz...
Algo entre o tom de voz dela, a vontade de vê-la e a não-novidade de ela gostar de ouvi-lo o convenceu, ainda que ficasse com um pé atrás por ter de cantar ao telefone, no meio da calçada – havia saído da lanchonete para não ser ouvido pelos outros, que nem mesmo sabiam que era para que ele ligava.
Ainda que ele fosse acatar ao seu pedido, aguardou até o fluxo de pessoas diminuir – ela apenas ouvia sua respiração, não perguntava se estava ali ou o que estava acontecendo. Enquanto quieto, além de esperar as pessoas, esperava a vergonha sair. Era idiotice ter tanta vergonha da própria voz, se queria tanto ser um músico, ele sabia; mas tanto tempo escondendo dos outros seu grande sonho o fazia hesitar nos momentos em que precisava se apresentar. Todas as vezes.
- Words like violence break the silence, come crashing in into my little world. – começou, como se apenas recitasse.
- Cante, . – o interrompeu, usando tom ameno. – Não estamos mais conversando.
- Painful to me, pierce right through me… Can’t you understand? Oh, my little girl… – contrariado, ele aumentou uma oitava. – All I ever wanted, all I ever needed is here in my arms. Words are very unnecessary, they can only do harm. Vows are spoken to be broken, feelings are intense, words are trivial. Pleasures remain, so does the pain. Words are meaningless and forgettable… – continuou apenas murmurando, insinuando que não havia nada além.
- Eu devia ter gravado isso. – a garota o provocou, sabendo que ele se sentiria desconfortável mesmo sem olhá-la.
- Eu devia ter desligado antes de chegar a esse ponto. – rebateu ele. – Pra minha sorte, só você ouviu e vai ser a única a ouvir. Essa música não tem nada a ver comigo.
- Tem a ver com a gente. – disse ela, sugestiva. Ouviu a porta se abrir. – Tenho que ir, te vejo mais tarde. – Desligou sem nem aguardar resposta, pondo o celular no bolso de trás da calça.
- Voltamos! – Livie anunciou, dando passagem a Otto, que carregava sacolas e mais sacolas. – Trouxemos um presentinho pra você, , espero que goste.
Sem reação – sua indignação pelo atraso tinha perdido sua intensidade com o que fora dito, o que ela poderia dizer naquele momento? –, ela recebeu uma das bolsas de Otto, tentando um novo começo para aquele assunto chato.
- Abre, vê se você gosta. – pediu ele, atencioso. assim fez, descobrindo um par de brincos de pino, que mesmo fora de contexto, havia a agradado. Naquele momento ela desejou que Livie e Otto, apesar de tudo, não fossem tão bons para ela. Seria mais fácil lidar com a situação se fossem indiferentes ou desprezíveis. – Então?
- São adoráveis. – disse. – Mas...
- Ah, não, nada de “mas...” – Livie a interrompeu, indo até a filha para pegá-la no colo, ainda que esta dormisse. – É seu, não aceito devoluções. Você tem sido tão prestativa e agradável, esse é um pouco do nosso reconhecimento.
Preferia que não me dessem presentes, mas chegassem no horário, a garota pensou em resposta.
- Tá, tudo bem. – desistiu da recusa, após um suspiro cansado. – Sabe, eu tenho um compromisso e já tô um pouco atrasada, tem como acertarmos tudo segunda?
- Eu falei para irmos logo, não falei? – Otto foi reticente a Livie. – Se quiser, deixo seu pagamento com seus pais.
Como um insight, se lembrou que – em uma possibilidade remota – seus pais poderiam se lembrar de Otto das reuniões do colégio, não obstante da vez que vira sua mãe e ela não se ligara da coincidência. Foi preciso mais de um encontro para que ela o reconhecesse das fotos que vira, o mesmo poderia acontecer com seu pai ou sua mãe.
- Não se importe tanto, é só deixar aqui que segunda eu recebo. – decidiu, contando mentalmente os segundos para sair dali. – Eu realmente preciso ir, minhas amigas estão me esperando.
- Ok, então sem falta, na segunda, te pagamos. – Otto concordou.
assentiu, encaminhando-se para porta ao som de “Tchau” e “Até mais”. Quase correu até sua casa, o mesmo até seu quarto. Arrumou-se tão rápido que mal pôde aproveitar o alívio de não estar mais naquela atmosfera incômoda. Ao ser perguntada sobre o motivo de voltar para casa naquela hora, disse à sua mãe que houve um imprevisto e precisava de carona. Quarenta minutos depois – o mínimo que conseguiria de tempo, devido ao trânsito –, estava entrando pela porta do Flavours, avistando seus amigos em uma mesa mais distante, envergonhada pelo atraso e com frio na barriga por estar prestes a mostrar a (e ) o principal motivo de estar ali.
Saskia, ao vê-la, comemorou, despertando a atenção dos outros, que fizeram o mesmo. Os pedidos de todos já estavam à mesa, exceto o de . Cumprimentando seus amigos com um aceno, se sentou ao lado dele, sendo cercada por um de seus braços.
- Pensei que não viesse mais. – o ouviu dizer com alívio na voz. Ela sorriu, sem jeito.
- Desculpa, tentei vir mais cedo possível, mas o trânsito tá horrível. – justificou-se, omitindo as partes mais importantes. Sentia as pontas dos dedos dele acariciando seu ombro, via os lábios dele a convidando. – Quase reconsiderei a sua proposta de me buscar em casa.
- Minha fome agradeceria. – ele riu, esquivando-se de possíveis perguntas dos outros. O que não tirava da cabeça de que ele havia, sim, ligado para sua amiga, mas não iria admitir. olhou para a mesa, conferindo o que já havia visto, mas não notado.
- Meu Deus, , por que você não pediu nada? – perguntou, sentindo-se culpada. – Ficou até agora vendo todo mundo comer, não precisava me esperar!
- Eu quis, relaxa. – ele tirou a importância que ela deu ao acontecido. – Mas se quiser pedir alguma coisa agora, não vou me incomodar, juro.
- Claro – ela riu –, vamos lá. – e se levantou, aguardando que ele fizesse o mesmo para irem ao balcão. Mesmo o garoto insistindo, ela não o deixou pagar a conta (“Já te fiz esperar esse tempo todo, ainda quer ser gentil comigo? Tem certeza?”). Aguardaram os lanches por ali mesmo, ela de frente para ele, cuja mão repousava agora sobre o quadril da garota; os dois conversando como se nem tivessem brigado horas mais cedo. Para eles, estavam quites, na verdade. O momento em que ele não suportou mais e a beijou, ainda que rápido, selou o acordo não dito de paz.
Porque palavras não importavam ali, elas eram feitas para serem esquecidas.


Capítulo 23

No fim, a noite havia dado certo. e Saskia, ainda que não passassem das conversas, não deram a mínima atenção para os outros; , mesmo reclamando que não queria ser empata, não foi embora, porque a chantageou, e a levaria em casa, se ficasse; solidária com a amiga, não cedeu à enorme vontade de escapar dali com . Ainda que a mão dele se atrevesse, escondida pela mesa, a subir por suas costas por dentro da blusa, arrepiando cada pedaço que tocava. Apesar de desejar aquilo (e muito mais) com todas as suas forças, a garota se segurava. Às vezes o repreendia com o olhar, mas ambos sabiam que não era porque ela não queria.
E ele estava adorando provocá-la. Senti-la reagir a cada toque em sua pele nua compensava cada minuto em que esperou. Saber que estava ganhando sua confiança para avançar o dava mais estímulo para continuar investindo. Caso não estivessem ali, quem saberia o que poderiam estar fazendo? Ele poderia, talvez, ter muito mais que só suas mãos nas costas delas. Teria, com certeza, mais além de alguns beijos rápidos, dados às escondidas quando não olhava. Teria, com certeza, só para si, talvez do jeito que tanto queria. A ideia do “E se...” era boa e distante demais daquele instante.
À meia-noite, entretanto, todos tiveram de voltar para casa. pediu a um primo seu, também vizinho de porta, para buscá-lo e levar Saskia em casa, sob comentários sugestivos de e , fazendo os dois ficarem ruborizados. Deixando-os finalmente a sós, as amigas e partiram.
- É só nessas horas que sinto falta do Ben. – confessou , vendo ao longe cochichar no ouvido de Saskia. – Não era eu que sobrava, e sim você, .
- Muito engraçadinha, você. – disse a amiga, enquanto ria baixo. – É bom tomar do próprio veneno, né? Você devia era me agradecer por não ser uma vaca e te deixar na mão pra ir me agarrar por aí.
- Eu bem gostaria... – ele observou, olhando de canto para a garota ao seu lado, que riu.
- Fica quieto, você acabou de chegar e já tá achando que pode tirar minha amiga de mim? – ralhou.
- Você tirou meu amigo de mim por uns dias. – respondeu ele. – Nada mais justo.
- Aliás, qual a de vocês dois, hein? – se virou para trás, para olhar a amiga.
- Não sei, sinceramente. – disse ela. – Ele é super legal, a gente se deu bem, mas somos um pouco diferentes. Ou isso, ou nos falávamos pouco demais pra saber. – completou, rindo.
- é estranho, mesmo. – explicou. – Acho que se vocês conversarem, pode ser que role alguma coisa de novo. Tenta falar com ele.
- Já tentei uma vez. – contou a garota. – Não foi lá essas coisas, ele não deu o menor sinal de interesse. Nem um elogio.
- Não espere isso de um garoto, nos dias de hoje. – afirmou. Quando indagada pelo olhar de , acrescentou: – Não adianta me olhar assim, é verdade. Garotos não elogiam.
- Elogiamos, sim. – discordou ele. – A diferença é que fazemos isso quando temos certeza do que estamos falando, e não saímos falando pra todo mundo só pra agradar. Tem que ter um significado de verdade.
- É por isso que se ouve tanto “gostosa” por aí – constatou –, é tudo mentira, só pra levantar a autoestima.
- Gostosa não é um elogio, é um fato. – corrigiu. – Se a garota é gostosa, a gente tem a obrigação de falar. E eu não preciso conhecer ninguém a fundo pra achar isso.
- Pensamentos masculinos são tão... – gesticulou, tentando achar a palavra certa.
- Práticos?
- Pitorescos, na verdade. – concluiu, lançando um sorriso vitorioso para . – Acho que se fosse feito um livro sobre vocês, só teria pinturas rupestres e filosofias baratas.
- Existiria um sobre nós, pelo menos. – ele instigou. – Sobre as mulheres não existiria, nem se uma fizesse.
- Somos todas obras-primas, únicas no mercado. – defendeu, recebendo o apoio da amiga.
- Verdade, e são bem caras, também. – completou o garoto, divertindo-se às custas da indignação das duas.
- Vocês que nos dão de tudo, quer reclamar do quê? – questionou . – A gente aceita com maior prazer, não gosto de fazer desfeita.
- Além do mais, se dinheiro realmente me importasse, eu que seria sua namorada de anos, não Allison. – disse por fim, vendo-o sem réplicas. – Touché.
- Desce do meu carro. Anda, desce. – se fingiu de ofendido, fazendo-as rir. – Depois dessa eu ainda tenho que te levar pra casa?
- Claro que sim. – a garota respondeu em tom de obviedade. – Acha que é só chegar, dar uns beijinhos e ir embora?
- É pra ser sincero? – ele novamente a olhou, irônico.
- Não ouse. – ela o alertou, da mesma forma. – E só pra constar, não adianta desistir de me levar pra casa depois de passar por mais da metade do caminho. É burrice.
- Ou canalhice, porque largar a garota a três quadras de casa é muita sacanagem até pra você, . – , que até então só ria, exagerou nas feições. – Por falar nisso, minha casa é na próxima rua.
- Ele sabe. – disse .
- Por que ele sabe?
- Tenho um computador de bordo muito útil aqui. – respondeu , batendo de leve no joelho da garota. – Ocupa um pouco de espaço, mas funciona.
- Você tá doido pra me ouvir te mandar ir àquele lugar, não tá? – ela supôs, semicerrando os olhos. O garoto riu, parando à porta do residencial em que morava.
- Então, gente, foi bom ver vocês dois discutindo – começou –, mas amor e ódio são dois lados da mesma moeda, e eu não quero ver o outro lado, porque, convenhamos, seria bem desagradável. Boa noite pra vocês, e brigada pela carona, .
- Não foi nada, encalhada. – ele zombou, levando a gargalhar.
- Tenho permissão pra bater nele, ? – perguntou à amiga, que assentiu. Acertou o topo da cabeça do garoto antes de desembarcar, desdenhosa.
- Me liga amanhã. – disse a garota de dentro do carro. – Boa noite, .
Viu a amiga acenando em resposta e indo em direção à portaria, dando sinal de que poderiam ir assim que não enxergava mais a silhueta de . Pondo a bolsa no banco de trás e retirando as sandálias para ficar mais à vontade, reclinou-se no banco, suspirando enquanto massageava os próprios ombros. Estava exausta, não via a hora de se deitar.
, por outro lado, ainda estava muito bem disposto. Os pensamentos ainda eram milhares, porém todos convergidos na insistente imagem dele explorando não só as costas da garota ao seu lado. Ouvir o som do ar passando por entre seus lábios e ver o deleite dela por ser tocada, ainda que pelos próprios dedos, era como faíscas perto da pólvora. Ela estava ali, tão perto, tão vulnerável, tão sua. Não havia competição, as dificuldades para chegar a ela eram quase nulas. Prestar atenção ao trânsito era uma tarefa árdua.
- ? – e ela ainda o chamava com tamanha delicadeza... Ele estava perdendo o controle, as mãos começavam a esquentar demais.
- O que foi? – disse ele, esforçando-se para parecer equilibrado.
- Já estamos indo pra casa? – perguntou sem abrir os olhos. – Digo, pra minha casa?
- Sim. – “Infelizmente”, ele quis acrescentar. – Por quê?
- Eu tava pensando... – ela virou-se de lado para finalmente vê-lo. – A gente não teve muito tempo só pra nós dois hoje, né?
- Não tivemos nenhum, praticamente. – o garoto respondeu, satisfeito por saber que não ficaria só na imaginação. – Quer parar em algum lugar?
- Seria bom. – a garota sorriu, escondendo dois ou três significados.
- Desviando o caminho agora mesmo. – ele anunciou em tom servil. Pôde ver de soslaio que ela sustentou aquele erguer enviesado de lábios, analisando-o com toda atenção. – O que foi, ?
- Por que a pergunta?
- Você tá com esse olhar engraçado, diferente. – notou o garoto. – Tá escondendo alguma coisa?
Ela sentiu o peito se apertar por segundos. não tinha percebido, tinha?” Mal tinha pensado em outro assunto que não fosse os dois, não havia razão para desconfiar de atitudes impensadas. Podia ser apenas sobre aquele segundo em que ela o admirou. Ele estava particularmente atraente naquela noite, o cabelo bem penteado dava vontade de colocar os dedos e embaraçá-lo, aproveitando o contato para vencer espaços restantes entre eles.
Deus, ela nem mesmo passava dois minutos inteiros sem imaginar cenas menos puritanas com .
- Claro que não. – disse em tom de riso, controlando-se ao sentir o calor vindo do sul de seu corpo. – Só tava te olhando. Não é pecado, é?
- Não, não é. – ele concordou, guardando para si alguns pensamentos nada católicos. – Mas você não devia ficar com essa carinha de quem quer alguma coisa, é perigoso.
- Jura? – ela ria por dentro, nervosa, ansiosa. – Acho que eu quero me arriscar.
O carro parou, o motor foi desligado, os cintos foram desafivelados. A luz da rua entrava, distribuindo-se fraca e difusamente pelo espaço. O peito de ambos parecia pequeno para caber tanto ar que eles sorviam, tentando mostrarem-se tranquilos e confiantes. Estavam com os nervos explodindo, na verdade. Ele, pela insegurança; ela, por desconhecer tamanho desejo.
- Tem certeza? – a olhou diretamente, pondo seus dedos levemente trêmulos no rosto dela. – Não me responsabilizo por nada.
- Não vou me arrepender. – ela sentenciou, afirmando muito mais para si que para ele. Dando o ultimato, a informação que ele precisava ouvir para saber que, enfim, estava sendo recompensado por agir corretamente. Bem que lhe disseram uma vez, as coisas boas sempre vêm para aqueles que esperam.
Cansado de tanto esperar, a abraçou forte, esquecendo-se de bons modos, etiqueta e tudo mais ao beijá-la intensamente – seus hormônios nunca foram fáceis de controlar. O cabelo dela logo foi alvo de uma de suas mãos atrevidas, que se colocaram ali para que, assim, tivesse ainda mais poder de ação sobre a garota, enquanto a outra retornava ao lugar que havia descoberto mais cedo. Subindo ainda mais que horas antes, ele alcançou o fecho do sutiã dela, mas parou por ali. Não deu a entender que iria abri-lo de imediato, apenas mexeu aqui e ali, pedindo permissão a ela, que não o mandou recuar. Estava ocupada pressionando suas mãos espalmadas nas costas dele, trazendo-o para si. Vez ou outra, se a mão escorregasse, levava novamente para cima, carregando consigo a camiseta do garoto. Quando notou o que ele fazia, por instinto, sorriu entre um beijo e outro.
, em lapsos de consciência, viu-se satisfeita por não se regular naquele momento. A sensação de estar livre, ainda que presa nos braços , era impagável. Até mesmo se divertiu em ousar pôr a mão sob o tecido que já tinha erguido, e em reação, ele – com um pouco de dificuldade – abriu seu sutiã, imediatamente puxando uma das alças para baixo. A mão dele, quente demais, causou-lhe um choque ao tocar seu busto, onde começou a massageá-la. O garoto esqueceu-se dos lábios dela quando desceu pelo seu pescoço, abrindo o caminho de botões com a outra mão até alcançar o colo.
- Aí tá você. – disse ele sobre a pequena estrela no decote dela, fazendo-a rir. – Posso? – perguntou a , que assentiu, mesmo sem saber exatamente o que tinha permitido. beijou a tatuagem, descendo mais para alcançar a zona mais sensível dela. Fechando os olhos, a garota apertou as costas dele. – Vamos pro banco de trás. – o ouviu dizer, novamente assentindo. – Fale comigo, , não precisa ficar muda.
- Falar o quê? – ela perguntou em retórica, já passando entre os bancos dianteiros. – Eu nem sei o que falar.
- Hm... – ele mordeu o próprio lábio, fazendo menção para que ela se pusesse de maneira confortável. – Me diz se você gosta, ok?
não tinha ideia do que ele iria fazer para ela gostar ou não, mas não questionou. Até tentou, contudo, sua sinapse era tão falha que apenas abriu a boca quando sentiu a mão de apertando sua coxa, deslizando para a parte interna dela – ele realmente queria que ela dissesse algo? O garoto se encaixou entre as pernas dela, sendo atentamente observado. Faltava pouco, estava quase lá. fervia de ansiedade. Voltou, ávido, aos lábios dela, distraindo-a ao tempo que abria os últimos botões, deixando à mostra o ventre da garota, o sutiã desajeitado sobre os seios na medida certa. A pele tenra e suave, a estrela decorando suas curvas delicadas.
Admirado, quando parou para fitar o corpo de , sentiu medo de acabar ferindo-a. Ela parecia frágil, intocada, virginal; uma imagem até mesmo surreal, distante. Ele receou, mas logo tornou a beijá-la em todos os locais possíveis. Próximo à barra da calça dela, ergueu os olhos, encontrando os da garota – maravilhados, embora houvesse, também, medo pelo desconhecido. Quando botão e zíper foram abertos, ela travou. Era realmente para ser ali, naquela hora?
- , eu... – titubeou, despertando a atenção dele. – Acho melhor a gente parar.
- Por quê? – o garoto perguntou, visivelmente frustrado. Seu semblante, segundos antes carregado de desejo, murchou instantaneamente.
- Você me disse pra falar se eu tava gostando, e eu gostei, sim – ela rodeou, envergonhada –, mas acho que não é a hora certa.
- Por quê? – ele repetiu, desapontado e apelativo.
- Porque eu – por um pouco não desistiu, gaguejando – sou virgem... E não seria legal fazer isso no banco de trás do seu carro.
- Virgem? – se mostrou espantado. – Não é, não.
- Sim, sou. – a garota o corrigiu, confusa.
- Mas... como? – atordoado, ele se esqueceu até de sair de cima dela.
- Não fazendo sexo...? – respondeu com uma careta, desconfortável com o clima quebrado.
- Mas você sempre é tão madura, experiente... – ele analisou imagens passadas, como se tentasse provar a veracidade do que a garota havia dito. Havia chegado tão perto, e agora tinha voltado dez passos para trás. – É difícil acreditar.
- Hm... Obrigada? – ela sorriu amarelo. – Posso até ser o que você disse, mas não com isso.
- Tem certeza? – indagou o garoto, ainda inconformado.
- Claro que sim, ! – se sentiu completamente nua, física e psiquicamente. Tentou encontrar uma posição para que pudesse se repor. – Não é como um objeto, que eu posso perder sem saber.
- Não, você tá certa. – ele finalmente se deu conta de como agia estranhamente, erguendo-se. – Me desculpa se acabei te pressionando, é complicado pra mim também. – e riu, embaraçado.
- Imagino... – ela fez o mesmo, tão sem graça quanto ele. Começou a se ajeitar. – É que, pra mim, isso tudo é muito íntimo, tenho que me acostumar com a ideia pra não parecer, sei lá, vulgar. E eu nunca tive um namorado, então...
- Tudo bem, eu entendo. – o garoto a interrompeu. – Não precisa se explicar pra mim, se não te deixa à vontade.
concordou com a cabeça, agradecendo mentalmente a compreensão. Se já era desconfortável ter que pedir para pararem, justificar-se era muito pior. Ficar quieta, mais ainda.
- Então... – disse, rompendo o silêncio. Arrumava os cabelos, que tinham duplicado o volume. – Acho que agora é melhor eu voltar pra casa.
Cada palavra que dizia naquele instante soava com um traço de arrependimento. havia sido tão atencioso, tão adorável, a garota sentia como se tivesse cometido uma injustiça. Mas dois segundos pensando em boas razões a faziam se perdoar por cortá-lo.
- Certo. – ele concordou. – Só deixa eu... Bem... Você sabe. – continuou, olhando para baixo com certa vergonha. cobriu a boca para impedir o riso de escapar, também envergonhada. Quando retornaram o contato visual, ele se ausentou da culpa pelas expressões.
- Deve ser um pouco desconfortável ficar assim. – disse ela, tentando não se mostrar afetada. Xingou-se mentalmente pela besteira que havia dito.
- É, mais ou menos. – respondeu o garoto. Por muito pouco ele não foi quem se lembraria o resto da vida, mesmo que sem saber. tinha noção do quanto isso a tocaria, da importância que teria para ela. E ainda que fizesse o máximo para que fosse inesquecível (afinal, sóbrio ele não se esqueceria de nada), caso transassem ali, acabaria sendo somente mais uma transa. A confissão da garota tocou um ponto da vaidade de que nem ele mesmo se lembrava de ter; ele quis, a partir daquele momento, ser o cara. Não pela vida toda de – ele já estava se esforçando o máximo que podia para dá-la toda sua atenção durante aquelas semanas –, mas por aquele período, pelo menos.
Seu novo anseio finalmente o despertou do transe. Devia demonstrar compreensão e fazer sua parceira de palco voltar a se sentir à vontade em sua presença.
- Então... – começou, chamando a atenção dela. – Você disse que nunca teve um namorado, quer ter um?
- Hein? – a garota guinchou, transformando seu rosto em uma interrogação. segurava o riso pela careta que a viu fazer. Era só uma brincadeira, uma forma de descontrair.
- Quer ou não?
- É sério isso? – se viu surpreendida. Ele estava tão sério que mal pôde desconfiar.
- Não. – respondeu o garoto, em tom de riso. Poderia jurar que ouviu um suspiro de alívio da parte dela. – Só falei isso pra te comer.
- ! – a garota o vetou. Ele enfim riu, divertido.
- É brincadeira, . – explicou. – Tô só te enchendo o saco.
- Tá conseguindo. – ela admitiu, revirando os olhos, cansada.
- Deixa de ser rabugenta. – o ouviu replicar.
- Não é por ser rabugenta, . – piou.
- O que é, então? – ele perguntou por perguntar, não muito interessado.
- Cansaço. Sono.
- Isso tudo leva a pessoa a ficar rabugenta. – concluiu, fazendo-a encará-lo, sem ânimo. – Tudo bem, eu paro. – ergueu as mãos em sinal de trégua. – Vem cá, que eu te consolo.
- Não quero consolo, quero dormir. – a garota riu fraco, encostando a cabeça no peito dele e sendo abraçada.
- Estamos a duas quadras da sua casa, quer mesmo dormir aqui? – indagou o garoto, afastando-a o suficiente para que ela o olhasse.
- Só cinco minutinhos... – disse ela, os olhos fechados com força desnecessária, formando uma careta engraçada. – É bom sentir seu cheiro antes de dormir.
apenas sorriu, para então fazê-la se recostar novamente. Ele não a tinha como queria, mas ali sentiu que a tinha por completo. E a sensação era ótima.
- Também acho. – falou, apesar de saber que não emitira nenhum som.

’s P.O.V.

A luz da sala ainda estava acesa quando cheguei, beirando uma da manhã. Atravessando o corredor sem fazer barulho, vi Susan vendo algum filme antigo – a qualidade do som não era das melhores, e Elizabeth Taylor não era nova desde que eu tinha nascido, ou antes – enquanto a fumaça de Vogue pairava pelo ar. Para minha mãe estar acordada depois da meia-noite em um sábado, ainda por cima fumando, algo estava errado. O que estava começando a se tornar rotina, percebi.
- Boa noite. – falei sobre o som da TV, com o significado de “já estou em casa, pode baixar a guarda e dormir”.
- Boa noite. – respondeu Susan, sem nem me olhar, distraída. – Ah, , espera.
Parei no meio da escada, olhando-a com a sobrancelha erguida. ?
- Que foi?
- O que acha de chamar seus amigos para jantarem aqui na semana que vem? – ela perguntou, me surpreendendo mais que por ter se referido a mim pelo apelido. – também. Chame os pais dela, quero conhecer a família de uma menina com a reputação tão boa.
- Isso não vai dar certo. – sentenciei, levando-a me perguntar o porquê com as expressões. – Eles não se dão muito bem. O pessoal e , quero dizer.
- Também pudera... – a ouvi comentar com desdém. Embora adorasse , Susan não suportava nem fazia esforço para fingir que gostava de Emma e Allison. Lembro que ela dizia que meu namoro era só para atingi-la. Como se fosse realmente essa a intenção... – Mas não tem problema, seus amigos eu já conheço, a família de , não.
- Por que isso agora? – questionei, intrigado. – Vai juntar meia dúzia de pessoas pra mostrar pra elas que não sou metade do que você queria? Nesse caso, pra mostrar que eu não sou metade do que é? Aliás, de onde você tirou essa de “boa reputação”?
- Não tem nada a ver com você ou o que você quer da sua vida, não venha na defensiva comigo. – ela respondeu sem emoções, me cortando. – Eu só fiquei sabendo de como ela é uma boa moça, mal nos falamos quando nos conhecemos.
- Hm. – me calei, resignado. – Vou ver o que eu consigo, não prometo nada. Ela vive ocupada.
- Sim, por favor. – Susan voltou ao tom afável de antes, retornando sua atenção para o filme novamente.
Perguntando-me de onde ela tinha tirado aquela história, por que insistia tanto e com quem havia falado de , subi para o meu quarto. Susan que esperasse sentada, eu não iria chamar para ter de aturá-la. Diria, sim, sobre o convite, mas não a convenceria a aparecer. A minha parte – comunicar – eu já teria feito, parecesse pirraça ou não. Eu não ligava. No fim das contas, seria tudo só um saco, estava poupando esforços.


Capítulo 24

’s P.O.V.

- Sabe no que eu tava pensando ontem? – disse Emma, de braços dados com Allison, que estava ao lado de , enquanto eu estava de frente para elas, formando um semicírculo. – Foi tão pouco tempo e tanta coisa acontecendo... E isso porque nem chegamos nas férias.
- Quando chegar, vai ser o contrário. – comentei com desânimo. – Do jeito que tá tudo um inferno, a tendência é piorar.
- Não seja pessimista. – soou como advertência.
- Já tá indo mal com a Drama Queen? – Allison perguntou, com menos interesse que tentava mostrar.
- Não falei dela. – desconversei, com o pé atrás para tocar no assunto. Mesmo que tentasse manter as aparências sobre sermos amigos, Ally ainda mantinha parte de sua pose de ex-namorada ciumenta. O motivo para sua pergunta, inclusive, era só sondagem. Eu a conhecia o suficiente para saber isso. – É lá em casa, que cada dia fica mais estranho e insuportável. Aliás, inventaram de fazer um jantar na sexta, vocês podem ir, se quiserem.
- Você só diz isso agora, quarta-feira? – indagou Allison, um pouco surpresa. Assenti, sem dar importância. – Vou ter que ir às pressas comprar algo novo, graças a você.
- Não precisa tentar impressionar, vai ser algo mais simples, pelo que parece. – dei de ombros. – Não sei bem o que deu em Susan, ela resolver reunir a família e quer até conhecer os pais de .
- Sério? – ela, além de surpresa, pareceu irritada. Motivos óbvios.
- Vocês já estão namorando? – perguntou, um tanto alarmado.
- Do jeito que as coisas estão, é capaz de já estarem casando e a gente nem sabe. – Emma falou com bom humor, apesar de eu notar seu olhar cínico para a amiga logo após se pronunciar.
- Claro que não. – resmunguei, entediado. Mesmo que, assim como , Saskia e , Emma e Allison estivessem fazendo piada de mim e , eu sabia que elas estavam sendo maldosas. O tom de voz, seus olhares furtivos e expressões forçadas as denunciavam.
- O que rola entre vocês, então? – Ally cruzou os braços da maneira que pôde, exigindo de mim uma resposta. Eu preferia que em seguida ela assumisse a postura de uma Lolita e tentasse me seduzir, escorregando uma das mãos para entre minhas pernas e apertasse o volume ali presente, sussurrando alguma cachorrada para eu arrastá-la para um canto qualquer, como uma forma de me convencer de quem era melhor. Mas logicamente isso não aconteceu, não estávamos em nenhum American Pie e garotas não se prestam a isso (para a minha infelicidade).
Ao contrário do meu pensamento transviado, ela continuava séria e questionadora, nem um pouco a fim de me fazer mudar de ideia e trocar por ela.
- Por que a pergunta? – arqueei a sobrancelha. Não iria tocar muito no assunto por saber que não era bem aceito entre nós.
- Não posso saber? – Allison fez exatamente o mesmo que eu.
- Você nunca quis, é estranho querer agora, de uma hora pra outra.
- O que te custa contar? – rebateu ela, irritada.
- Nada, mas quero saber por que tenho que te dar satisfação. – respondi com tédio, procurando meu celular para ver as horas. Faltavam dez minutos para a primeira aula.
- Não precisa dizer, se não quiser, seu escroto. – ouvi suas palavras carregadas de acidez. – Também não precisa ficar defendendo sua queridinha de mim.
- Sei que não. Aparentemente, ela sabe cuidar de você, não é? – sorri com sarcasmo, vendo seu resto de humor razoável indo embora.
- Vá se foder, . – disse Ally por fim, dando as costas e se afastando, sozinha.
- Precisava tudo isso? – Emma indagou, tomando as dores da amiga.
- Não, não precisava. – falei, dando de ombros. – Bastava evitar chegar a esse ponto.
- Ah, agora a é assunto proibido? – ela forçou o riso.
- Nunca será. – retorqui. – Mas não quero que seja motivo de piadinha interna de vocês. Pelo menos não na minha frente, o que vocês fazem longe de mim não me interessa, mesmo.
- Alguns dias e ela já tem você de quatro. – Emma continuou irônica. – Meus parabéns a ela. – acrescentou, batendo palmas.
- Há uma grande diferença entre estar apaixonado – frisei o termo – e não querer ouvir piadas de mau gosto.
- Quando uns tempos atrás era você quem fazia isso, o que te faz mudar de ideia?
O respeito era o primeiro fator. Mesmo que em poucos dias, havia aprendido a respeitar . A princípio, o fazia porque eu precisava dela para não falhar no colégio e, por consequência, perder o ano e minha vida em Londres; depois, não tinha mais sentido não tratá-la bem tendo sempre sua predisposição em me ajudar. Fora que ela se dava ao respeito e merecia ser tratada à altura.
Outro motivo era para não contribuir com as esperanças de Allison de eu estar sentindo sua falta como minha namorada – por mais prepotente que parecesse. Se existisse alguma possibilidade remota na cabeça dela, eu devia fazê-la pensar o contrário. Defender da sua inveja e seu ciúme era tarefa de prioridade um, pra mim. Quer ela entendesse minha psicologia ou não.
Fora o detalhe de eu ter mudado minhas concepções sobre , e não parecia mais tão legal – ou sequer normal – comentar o que eu já sabia não ser verdade. Ela era bem melhor do que um dia pensei que fosse.
E ainda que existissem mais razões, não citei nenhuma. Parecia absurdo e fora de mim dizer coisas desse tipo para Emma ou qualquer conhecido.
- Você não entende. – foi o que argumentei, eloquente como um mudo.
- Entendo, sim, . – rebateu ela. – Você que não entende a si mesmo.
Contrariado por vê-la estar certa, desviei o olhar para o portão, avistando , e Noel. Emma, como pude ver pela visão periférica, seguiu meu olhar.
- Falando, quero dizer, não falando nela... – anunciou. – Vou atrás da Ally, que é o melhor que eu faço.
Eu mal a ouvi, na verdade, e não foi porque tinha aparecido e todas as minhas funções vitais começaram a agir focalizadas nela, longe disso. Estava mais preocupado comigo, com minha falta de atitude perante a questão levada à tona por Emma. Até pouco tempo tinha – ou achava que tinha – tanta certeza sobre o que pensava sobre tudo, e de repente não existia o mesmo sentido, a mesma importância e até a mesma significância em nada. Eu havia pensado, no início, que era apenas troca de favores; me ajudaria, eu mostraria gratidão de um jeito mais divertido. Naquele instante não soava da mesma forma, porque estar com ela não tinha o ar de obrigação de antes. Eu... queria estar com ela. E essa sentença acabava com muitas ideias que eu vinha acreditando até agora.
Puta merda, eu realmente não estava me entendendo mais.
- Só uma pergunta... – me fez lembrar que estava ali. – Se é pra ficar se tratando desse jeito, por que vocês insistem em se falar?
- Eu quero voltar a ser amigo de Ally. – respondi, o olhar ainda fixo em um ponto qualquer. – Ela que não percebeu que entre nós é amizade, daqui pra frente.
- Bom dia, ! – guinchou, acenando. Estava sozinha. – ...
- Hey. – ele a cumprimentou. Depois do dia no Flavours, comentei sobre minha conversa com as garotas na volta, o que resultou em um iceberg quebrado entre os dois. Menos mal, levando em consideração que várias vezes estavam no mesmo lugar que o outro por causa de e eu.
- Do que vocês falavam? – disse , chegando com o semblante aberto, apesar de eu tê-la visto discutindo com Noel momentos antes. Era natural isso acontecer entre eles, percebi com os dias.
Ela estava ao meu lado, perto demais. Ao invés de querer abraçá-la para ouvi-la me censurar e tentar se afastar, eu quis sair de perto sem razão aparente. Era como se não fôssemos mais polos opostos em atração, mas sim iguais, e eu queria repeli-la.
Segundos depois, quis o contrário. Gostava do jeito que ela ria enquanto me empurrava, sem graça. Gostava ao mesmo tempo de não estar em contradição, mas estava bem nesse estado, e não fora eu quem percebera. Eu mal havia notado, e isso só me deixava mais confuso e nervoso.
- Allison. – respondeu por mim, devido ao meu silêncio.
- Ah, sim... – ela suspirou, não muito surpresa. – Estamos atrapalhando?
- De jeito nenhum. – respondi rapidamente, abrindo um pouco os braços para que ela viesse em minha direção por livre e espontânea vontade. – Vem cá, Satine.
sorriu, um pouco acanhada, me abraçando de leve. Apertei-a pelos quadris, respirando fundo entre seus cabelos. Ao se afastar para me olhar novamente, vi que ainda sorria. Dei-lhe um beijo no canto dos lábios, fazendo-a ruborizar. A oscilação de vontades não cessava, mas aos poucos se tornava mais controlada. Eu não podia simplesmente ir embora e deixá-la no vácuo. Seria muita canalhice até mesmo para mim, como dizia .
- Bom humor? – perguntou , referindo-se ao meu cumprimento.
- Não exatamente. – falei, omitindo a parte que tudo aquilo era uma espécie de provação para mim mesmo de que podia fazer o que quisesse sem me abalar com o que pareceria. Tese falha, pois continuava martelando em minha cabeça o que Emma tinha dito. “O que mudou?” – Eu que te pergunto. Você não reclamou de ter gente por perto...
- Recebi uma ligação ontem que me deixou alegre. – ela disse, me encarando de modo significativo, dando a entender que tinha sido a minha ligação na noite anterior que a deixou naquele estado. Fiquei contente em saber. – Não vou me incomodar com muita coisa, hoje.
- Então você não vai se incomodar se eu disser de última hora que Susan inventou um jantar e quer que você leve seus pais, né? – perguntei por perguntar. Estava fazendo a minha parte como mensageiro, apenas.
- Pelo contrário, vou me sentir honrada. – ela respondeu de imediato, entusiasmada. Diferença básica entre e minha ex: enquanto uma se preocupava com a aparência, outra se preocupava com retribuir o favor de alguma forma, mesmo que só com reações. – Mas por que ela quer que meus pais vão?
- Parece que ela ouviu falarem bem de você e quer conhecer os responsáveis por isso, blá, blá, blá, não ouvi o resto. – expliquei de qualquer jeito, já mal lembrava o que minha mãe tinha dito no sábado.
- Meu Deus... sério? – ela pareceu surpresa, um pouco desconfiada também, posso afirmar. – Preciso causar uma boa impressão, então.
- Você tá me ajudando mais que ela mesma, já é suficiente pra chamar a atenção dela. – argumentei, tentando diminuir a importância que parecia dar ao evento. – E não seria muito difícil, as duas são mege...
- Termine a frase e não precisa me procurar mais.
- Preciso dizer mais alguma coisa? – ri de um jeito sacana, vendo-a rolar os olhos.
- É bom saber que eu tô convidada. – reclamou, as mãos na cintura.
- Acredite, não é nem perto de legal ir a esses jantares. – disse com desdém, sendo bastante sincero. – Gente velha, música velha e bebida de jantar. – todos nós olhamos de maneira estranha para ele. – Vinho. Odeio vinho. Não que os pais de deixem a gente beber nesses jantares, ainda mais na frente dos convidados, mas eu prefiro ficar longe daquela merda.
- Não deve ser tão ruim assim... – olhou em minha direção, esperando que eu desmentisse meu amigo.
- Na verdade, é. – confessei, sem muito que dizer. – Não gosto de ficar fazendo sala pra gente que eu nem conheço.
- Ser simpático não é o seu forte, eu sei disso. – ela zombou, desviando o olhar do meu para parecer séria.
- Ah, quer dizer que eu não posso, mas você pode fazer gracinha? – indaguei, pondo meu rosto de frente ao seu novamente.
- Mas é claro, quem é que manda aqui? – ela continuou segurando o riso, fugindo da minha encarada.
“Quem é que manda aqui?” “Alguns dias e ela já tem você de quatro.”
Ela não mandava. Ela não me controlava. Eu tinha plena consciência do que fazia, e fazia porque queria e quando queria. Emma estava errada; também estava. Ainda que aquilo fosse somente uma brincadeira, com a mente ainda maquinando o que Emma tinha falado, eu havia me sentido ameaçado. Era a minha autonomia que estava sendo posta em xeque, e não que eu fosse um animal selvagem e indomável, mas depois de tantos anos “preso” a Allison, eu queria minha liberdade. Estava gostando, sim, de estar com , mas me comprometer novamente estava fora de questão. Passar por todos os estágios que passei por quase dois anos sem sequer ter uma pausa era assustador. E, no fim, eu sabia que acabaria não sentindo nem um terço do que imaginaria quando oficializássemos. Eu simplesmente não conseguia gostar por muito tempo de alguém, não sabia amar. Amor era muito além de mim, eu sequer entendia o que era e o que causava.
E desconfiava que não conseguiria tão cedo.
Portanto, Emma estava errada. Ela, , Allison e todos que sabiam sobre e eu. Eu não estava apaixonado, “de quatro” ou algo perto disso. Era tudo conveniência. Ficar com me beneficiava, as coisas se tornavam mais fáceis, e se eu tivesse que ceder ao romantismo para isso, que seja. Se fosse o preço a se pagar, então eu pagaria. Sem me arrepender, voltar atrás ou hesitar. Essa era a certeza que não devia sair da minha cabeça ou ser mudada. Mesmo que os outros pensassem que eu estava, de fato, totalmente na de . E mesmo que eu tivesse de fingir que concordava com isso.
- Você sabe quem. – respondi com duplo sentido, ouvindo o sinal bater. – Vamos pra sala?
- Vamos, amor. – respondeu no lugar de , me puxando pelo braço, dizendo nas entrelinhas que estávamos o esquecendo.
- ! – estrilou, rindo, enquanto acabava sendo puxada também, já que eu ainda segurava sua cintura.
- Você fica roubando meu bofe, quer que eu faça o quê? – ele perguntou de modo afeminado.
- Tem uma garota bem ali. – ela apontou para . – Por que não vai atrás dela?
- Eu não me incomodaria. – comentou baixo, fingindo examinar as unhas.
- Quem disse que ele gosta de racha? – entrei na brincadeira de . – Vocês estão aqui só pra manter as aparências, eu gosto mesmo é de macho, e ele também.
- É assim, então? – se soltou, parando de andar, fazendo ceninha. Assenti, parando também, de frente para ela. – , será que já foi pra sala dele?
- ? – perguntou a outra, sorrindo com malícia.
- Ele não tava se metendo com a sua amiga, graças a você mesma? – me recordei, não me abalando.
- Saskia nunca foi muito de se apegar, muito menos de ser ciumenta. – a ouvi dizer, e aquilo me incomodou. A segurança dela me preocupou, ainda que uma atitude como a que ela sugeria fosse de se duvidar. – E vai que aquela sua teoria de que garotos não são bonzinhos sem querer algo em troca é verdade?
Era verdade. Eu era um exemplo notável.
- Você não ousaria. – caminhei em sua direção, levando a provocação a sério. – Você não é louca.
- Não duvide de mim. – também pareceu mais séria, desafiadora e petulante. Ela parecia eu.
- Não estou duvidando, estou te intimando a não fazer isso. – corrigi, fitando diretamente seus olhos, que não desviavam dos meus, retornando a mesma intensidade do meu olhar.
- Me dê três bons motivos pra não ir atrás dele nesse exato momento. – ela ergueu a sobrancelha, empinando o nariz na vã tentativa de manter seu rosto à altura do meu.
- Primeiro, você nunca faria isso com sua própria amiga. – enumerei, decifrando-a naquele instante sem nem me esforçar muito. – Segundo, você tá atuando. Sua voz tá tranquila demais em comparação às vezes que você realmente ficou irritada comigo.
Ela riu, enfim virando o rosto, como se assumisse que eu estava certo. Ponto para mim.
- E por último, você não vai porque eu vou te agarrar agora mesmo. – concluí, envolvendo-a no instante seguinte, não dando brechas para que ela fizesse algo além de espalmar as mãos em meu peito. Era apenas charme dela, assim como tudo que havíamos falado, logo, ela não relutou em me beijar, pelo contrário.
- Ei, vocês, arrumem um quarto! – berrou, nojentamente colocando o dedo entre o beijo.
- Porra, ! – esbravejou, fazendo uma careta indecifrável. Ri por ouvi-la xingando, chegava a ser engraçado vê-la tão irritada a ponto de fazer isso. – Do que é que você tá rindo, ?
- Nada. – respondi, segurando o riso. Ela franziu a testa, aproveitando as mãos no meu peito para me empurrar. – O que foi? Você ficou com raiva?
- É claro! – disse em tom de obviedade.
- Foi só uma brincadeira, . – alegou .
- Isso lá é brincadeira que se faça? – ela lançou um olhar mortal a ele. – Foi nojento e desnecessário.
- Ainda assim, foi uma brincadeira. – dei ênfase à palavra, tentando amansá-la, apesar de dá-la razão.
- Mas eu não gostei, tá legal? – rebateu, dando passos em direção ao corredor.
- Relaxa, daqui a dois minutos ela esquece. – disse a nós dois, seguindo a amiga.
- Mas durante esses dois minutos, não me olhem com essas caras de bunda que vocês estão. – disse por fim, afastando-se cada vez mais. Encarei , acusador.
- Que é? – ele perguntou na defensiva. – Você riu.
- Se ela não falar comigo o resto do dia, você vai ver só. – ameacei, apontando para seu rosto. apenas rolou os olhos.
Os “dois minutos” demoraram bem mais que o certo, e só voltou a falar comigo decentemente no intervalo, usando a desculpa de que tinha de prestar atenção à aula. Talvez nem fosse desculpa, uma vez que ela realmente estava fazendo o que dissera, contudo, eu preferia acreditar que era só um motivo para me evitar. Ainda assim, tive que me dedicar bastante para fazê-la esquecer da história de privacidade, inconveniência e essas coisas; disse a ela que devíamos aproveitar o máximo de tempo que tínhamos durante a manhã, pois ela ficaria a tarde toda com o irmão e à noite seus pais estariam em casa, e como eu me negava a aparecer por lá nessas circunstâncias, só nos veríamos de novo no dia seguinte. Foi o suficiente para que passássemos o resto do intervalo mais à vontade.

Quando cheguei em casa, uma surpresa: meu Mustang estava de volta. Dei uma checada após descer do Land Rover, e não havia sinais de travas nas rodas ou no volante, sequer no câmbio. Devia ser uma pegadinha ou algo tipo, pois geralmente os castigos de Susan duravam meses, por mais raros que fossem. Porém, já estava notando há alguns dias seu temperamento mais pacífico e controlado, bem mais agradável, admito. Ainda assim, fora do comum, me fazendo manter uma distância segura dela.
Mas nada até então tinha me afetado tanto quanto a suposta devolução do meu carro. Parecia que estávamos revivendo uns anos anteriores, quando ela tentava conseguir minha atenção através de presentes, antes de desistir até mesmo dessa tática porque não tinha tempo para receber o que queria em troca – que, confesso, nem eu sabia exatamente o que era. Eu não era mais tão novo assim para esquecer por que estava bravo no momento em que ganhava um presente, mas havia, sim, sido mexido com aquele, por mais que não fosse um presente novo. Ela devia saber a importância que o Mustang tinha para mim. Era o sonho de Leonard. E por ele desejar tanto aquele carro, eu o quis também, como uma forma de me sentir mais próximo do meu irmão.
Alguns consideravam seus pais os seus heróis. Eu entregava ao meu irmão esse posto, por isso suas escolhas eram as minhas também.
Pensar nele me fazia sentir um vazio sufocante. Como se dentro de mim não houvesse mais vísceras, nada além do vácuo. Meu peito se enchia, mas eu sequer me sentia respirar, puxando mais e mais o ar até que precisasse sorver o oxigênio com a boca, arfando sem conseguir me controlar. Minha garganta parecia fechar, e junto a ela, minha cabeça latejou, meus olhos arderam. Eu sabia o que estava por vir, por mais que resistisse, mas após tanto tempo, tantas vezes que me repreendi e reprimi, evitando levar à tona a tristeza que me assolava há sete anos arrastados e turbulentos, a inundação de lembranças despertou um lado meu que eu desconfiava estar muito além de adormecido. Eu sentia saudades, a falta de Leo era o que mais me desestabilizava, entretanto, exceto no ano que decorreu o da sua morte, eu não conseguia demonstrar nem um terço do que me afligia. Mostrar-me fraco, tendo Otto por perto para me julgar erroneamente – vetante de ele ser o errado –, tinha ficado fora de questão. Por essa razão, quase que exclusiva, eu estava tão trancado dentro de mim mesmo. E eu continuava me censurando por querer assumir minhas angústias, pois elas me tornariam inferior.
Eu não era inferior. Eu não era vulnerável, fraco, dependente. Não precisava me abrir e ouvir algumas palavras que me fariam acreditar temporariamente que os problemas que passei não eram os piores para alguém que conhecia tão pouco do mundo, como eu aos onze anos. Não iria me apoiar em alguém, pois me sentia impotente para lidar com a minha própria vida. Eu era capaz de suportar o que quer que me surgisse.
Mas no momento, só precisava pôr algumas coisas para fora, para me sentir renovado, a postos para refazer as ideias. Precisava me permitir refletir o que sentia, deixar meu peito inflar, a respiração falhar, a cabeça palpitar e os olhos marejarem. Encostar a cabeça nos antebraços cruzados, postos sobre a lataria do carro, e me deixar levar pelo choro silencioso que se deu início sem que eu percebesse, molhando todo meu rosto.
Eu não estava desesperado, tampouco em estado crítico; deprimido e frustrado, sim. Pressionado e zonzo. E a mistura dessas sensações fazia minha mente entrar em curto.
Como podia, depois de anos, alguém continuar a fazer tanta falta? Como a morte de alguém conseguia destruir tudo que era perfeito? Como eu tinha chegado ao ponto de não valer nada além de um cheque? Não era somente Leonard quem sustentava os alicerces da nossa família, ele era novo demais para ser encarregado dessa tarefa, assim como eu. Por mais que nele eu visse meu melhor amigo e exemplo para seguir, coisa que eu não andava fazendo ultimamente. Bastava olhar para trás e comparar, e eu via as nítidas diferenças entre ele e eu, de modo algum Leo se deixaria abater e agiria com pirraça do jeito que fiz.
Porque, no fundo, eu sabia que grande parte era pirraça. Mas depois de tantas tentativas fracassadas de mostrar que – ainda que diferente – eu podia ser um bom filho, ver que o único meio para despertar a atenção dos meus pais era causando problemas foi minha rota de fuga. Era o meu jeito torto de dizer “Eu posso ser o que quiser, foram vocês que me ensinaram isso, olhem”.
Contudo, eu já estava cansado. Era como bater a cara contra a parede para fazer um furo na mesma – eu me machucaria à toa, sem nenhum resultado positivo. O que eu fazia voltava na mesma intensidade. (Eu entendia agora aquela história de “Tudo que vai, volta”.) Estava estagnado no mesmo ponto, quando o que mais queria era sair dali. Por esse e por outros motivos me encontrava transtornado daquela forma. Eu dizia que conseguia aguentar, mas era difícil.
E cada pensamento convergia nesse último, minha mente rodava em círculos. Sem que notasse, soluços cortavam o silêncio, e eu não os ouvia ecoar, mas sim saindo de mim, como se meus ouvidos estivessem tampados e o exterior não pudesse me transmitir seus sons. Eu estava isolado do mundo naquele espaço de tempo que já não sabia ser curto ou longo. No entanto, me trazendo de volta, senti alguém me abraçando, e sem mesmo ver seu rosto, eu me virei e escondi o meu entre seus cabelos, surpreendentemente soltos.
- O que foi, meu filho? – disse Susan, afagando minha cabeça. Mais uma vez eu entrava em contradição naquele dia, porque tê-la ali me fez criar a dependência de apoio instantânea.
Não de qualquer apoio.
Eu queria o apoio dela, minha mãe.
Porém, não sabia se conseguiria formalizar meu pedido, ainda que fosse claro o meu apelo. Mal conseguia parar de soluçar, primeiramente.
- Fica calmo, . – ela pediu, solidária. – Você é forte, tudo que está te magoando vai passar, você vai ver.
- Quando? – murmurei, rouco. – Como?
- Quando for a hora certa. – respondeu ela, apertando seu abraço. Eu me sentia uma criança indefesa, entretanto, não queria fugir, como sempre. Eu me sentia seguro, protegido, em casa. – E tudo depende de você. – ri sem humor, virando a cabeça para o outro lado, repousando-a em seu ombro. – Mas se precisar de ajuda, não pense duas vezes antes de me chamar.
Ouvir suas palavras me acalmou aos poucos – eu deixava de me sentir dormente e sufocado. Não simplesmente por serem palavras de conforto, mas sim porque soavam verdadeiras. E eu não precisei pedi-las.
Susan estivera distante por anos, porém, não era rancor que nos separava, era a falta de diálogo. Os que ocorreram, até mesmo os que nos confrontávamos, sempre tinham fundamento, e ainda que não tivessem, ela era minha mãe. E ela estava ali, mostrando que zelava por mim. Eu podia me importar com aquele gesto mais que as várias vezes em que ela esteve ausente, não podia? Algo dentro de mim clamava pelo “sim”.
Fiquei durante alguns minutos quieto, aproveitando o raro momento em que estávamos em paz, relembrando o quanto gostava do carinho que Susan fazia na minha cabeça. Todas as vezes que eu chorava, se estivesse por perto, ela me acudia. Sempre. Eu era novo demais para entender qualquer explicação que ela me desse sobre vida e morte, mas agora que entendia, não queria saber; preferia aquele silêncio cúmplice que sarava minhas feridas e secava minhas lágrimas. Aquela áurea de conforto que eu tinha perdido no meio das memórias das brigas recentes.
Meu Deus, como eu sentia falta disso.
- Quer entrar e tomar café? – ouvi minha mãe dizer baixo, com medo de interromper aquele momento. Respirei fundo, não preparado para falar ainda, então assenti com um “Aham”. – Vem. – ela chamou, afastando-se para me abraçar somente pelos ombros, agora.
Percebi somente ao me separar dela o quanto meu rosto estava úmido, pois ao sair de perto do seu corpo quente, de imediato senti minhas bochechas esfriarem. Ao olhar para frente, notei também a luz da sala de jantar acesa, que jurava ter visto apagada ao chegar. Entramos e fomos até a cozinha, onde me sentei de frente à ilha, observando-a. Susan calmamente servia o café já pronto em duas canecas; três cubos de açúcar para ela, dois para mim e um pouco de leite. Do outro lado do balcão, à minha frente, ela me entregou uma das canecas, que antes de levar à boca eu assoprei. Aéreo como eu estava, acabaria me queimando sem dificuldade.
Levamos certo tempo para terminarmos de tomar nossos cafés. Eu porque pressentia algum tipo de conversa que tentava evitar, ela porque respeitava meu receio, talvez sentisse o mesmo. Mas eu sabia que ela ainda queria terminar o que Otto interrompera na semana passada. E quando eu soube que não tinha mais como adiar, fiquei acuado.
Susan suspirou, afastando sua caneca, os olhos abaixados.
- Acho que sua reação não foi de felicidade. – disse sem emoções. – Na verdade, desconfio dos motivos reais para isso.
- Estou disposto a ouvir sua teoria. – desenhava o contorno da caneca.
- Você sente a falta dele. – parei meu indicador no meio do caminho, prestando mais atenção. – Eu também sinto, todos os dias. Da mesma forma, ou talvez até mais que você. – uma pausa, um novo suspiro. – Você não sabe o quanto dói perder um filho.
- Entre perder um filho e um irmão não há muita diferença, nenhum dos dois pode ser repostos. – fui reticente. – Era com ele que eu mais passava meu tempo, tudo que aprendi foi com Leonard. Ele foi um pai pra mim, e nem era tão mais velho.
- Tudo que ele te ensinou foi comigo que ele aprendeu. – ela enfatizou. – Eu sei que não estive o tempo todo ao seu lado, mas confiei a ele a tarefa de cuidar de você. E ele fez o trabalho muito bem. Apesar de estar causando algumas dores de cabeça, você está bem parecido com ele. – e a vi sorrir languidamente, magoada por tocar no assunto. Susan mal conseguia proferir o nome de Leonard. – Também sei que agora estamos meio atrasados para recuperar o tempo perdido. Daqui a pouco o meu caçula já vai sair debaixo da minha asa – ela tocou minha mão, acariciando-a –, e se eu já não consigo prendê-lo perto de mim agora, que dirá depois.
- Não é como se eu fosse fugir de casa. – desviei o olhar, me sentindo incomodado com o que ouvia.
Incomodado não, tocado.
- Mas cada vez mais você vai deixando a nossa casa. – rebateu ela, a voz chorosa. – E como você mesmo disse, eu já perdi um filho e estou me distanciando do único que me resta. Te ver chorando sozinho, escondido de mim, me fez ver o quão errada é a nossa relação, . – “Me desculpe”, era o que eu queria dizer, inundado em empatia. – Nós devíamos ser um time. Você devia confiar em mim, e eu em você. Do mesmo jeito que me dói sentir saudades do seu irmão, dói te ver triste e não ser quem você procura por ajuda.
Eu queria mais uma vez dizer tudo que sentia e pensava, agora menos acusador e agressivo, mas como no outro dia, eu não sabia como começar. Além disso, queria ouvir mais do que Susan tinha para me falar.
- Sei que se mudarmos de ideia e tentarmos, não vai ser do dia para a noite que seremos realmente mãe e filho. Apesar de desejar que seja, imagino que não será tão fácil ou rápido. – ela começou a rodear, em vez de deixar claro de uma vez o que tentava pedir.
Meu peito se apertou e meu coração batia contra ele, na tentativa de achar algum espaço.
Eu queria o mesmo. Queria ter novamente alguém com quem contar dentro de casa, pois eu não era tão forte quanto achava, estava sempre usando uma pessoa ou sua imagem para me manter firme, me motivar. Durante os sete anos, no caso, usava a figura do meu irmão mais velho para não sucumbir. E agora tinha a possibilidade de substituir pensamentos por atos, palavras, presença. Podia ter minha mãe de volta ao posto que lhe pertencia por direito.
- Mas tentar não custa nada, nós...
- Eu quero tentar. – interrompi, falando por impulso. Vi seu rosto apreensivo se aliviar, então se alegrar. Sorri em resposta, as mãos formigando de nervosismo.
- Oh, ... – e no meio de suas expressões felizes, uma lágrima solitária, fina. Uma intrusa. – Vem cá me dar um abraço.
Assenti, rapidamente dando a volta no balcão para fazer o que me foi pedido.
- Prometo que as coisas vão mudar daqui pra frente. – ela sussurrou, abafada por mim. – Eu te amo, meu filho.
Tentei, juro pela minha própria vida que tentei dizer “Eu também”, porém, não consegui soltar nada mais que um suspiro. Eu tinha dito que queria mudar nossa situação, estava cansado e arrependido pelo que havia causado, no entanto, no fundo, ainda estava machucado demais para me expor tão de supetão. E esperava que minha mãe entendesse.
Mas mesmo sem dizer nada, apertei o máximo que pude meu abraço, correspondendo-a em gestos. Tudo dependia de mim, ela disse, eu não podia vacilar, não dessa vez. E nos braços de quem mais me amava, eu mais uma vez me senti em casa. Após quase uma década, sentia que tudo tendia a voltar ao normal a partir dali.


Capítulo 25

Um toque. Dois. Três, quatro. O telefone quase foi desligado, mas do outro lado da linha alguém atendeu. Ela suspirou, aliviada.
- Alô?
- Hey, . – disse meio cantarolado, deitando-se de bruços na cama, apoiada nos cotovelos. – É a .
- Oi, . – ele a cumprimentou cordialmente, levantando-se do sofá da sala para ir ao quarto em busca de privacidade. – Tudo bem?
- Tudo, sim, e você? – ela perguntou por educação, ouvindo-o confirmar. – Liguei pra saber sobre o jantar, como preciso ir vestida e esses detalhes.
- De lingerie. – o garoto brincou, tendo uma repreensão como resposta enquanto fechava a porta de seus aposentos. – Não precisa se preocupar muito, é algo mais em família.
- Só você e seus pais? Mas não vai ser um pouco estranho?
- Ah, não. – respondeu. – Uns conhecidos nossos também vem, uma amiga chegada há pouco tempo de Manchester e a família dela. Se fôssemos só nós três, não teria jantar nenhum.
- Entendo. – soou menos animada devido ao assunto. – E como andam as coisas entre vocês?
Ele não gostava de conversar sobre aquilo, ela sabia – assim como lembrava muito bem de não dizer “Otto”, e sim “seu pai”. Porém, depois de tantas tentativas dela de entrar em sua redoma de emoções, poderia deixá-la passar por alguns minutos. Não seria tão ruim, a garota não descobriria tudo que se passava, de qualquer maneira.
- Otto continua a mesma coisa de sempre, não tem muito que dizer. – falou com indiferença, indo à sacada e apoiando o celular no ombro, prendendo-o ali com a cabeça. – Já Susan resolveu fazer as pazes comigo, espero que não seja da boca pra fora.
Ele tinha ciência de que não era, mas estava resguardando-se da exposição que seria contar tudo que havia ouvido, dito, pensado e sentido algumas horas antes.
- Fico feliz por você. – foi honesta. – Tomara que tudo dê certo agora.
- Também. – ele fez o mesmo, sacando do bolso o maço de cigarros e o isqueiro, acendendo um cigarro. – E você, como tá indo com Noel?
- Como assim? – a garota questionou, franzindo o cenho. Ouviu o som de um sopro forte. – , você tá fumando?
- Depois que voltei pra casa meu dia só foi piorando, preciso de um trago. – ele respondeu em tom malcriado. – O curso dele, alemão, não é?
- Ah... Italiano. – corrigiu ela, sentindo o estômago revirar com a mentira, preferindo até mesmo esquecer o que ele fazia do outro lado da linha. “Preciso te contar uma coisa”, pensou em dizer, refletindo melhor em seguida. – Ela tem um pouco de dificuldade porque só ouve a mim a tarde toda, mas tá saindo tudo bem. Eu fico exausta, mas ela é um amor.
- Ela?
“Ela?!” Tinha pensado em Angie e nem notara, quase fizera uma besteira.
- Ele. Ele é um amor. – retificou, apressada. – Tô distraída e um pouco cansada, desculpa.
- Você sempre tá cansada, tira um dia de folga. – o garoto sugeriu, soando bem mais como um pedido preocupado.
- Se eu pudesse... – ela soprou um riso. – Se eu deixo de ficar com Noel, tenho de ir ao ensaio. Daria no mesmo.
- Pelo menos você estaria comigo. – disse entre uma tragada e outra. – Não gosto disso de você estar me trocando por outro garoto.
- Ele é meu irmão, . – ela rolou os olhos, rindo.
- Mesmo assim, não é de mim que você tá tomando conta. – o garoto fingiu birra.
- E enquanto isso a Cecile fica se esfregando em você. – resmungou a garota, com uma pontada de ciúmes.
- Tenho que ter algum consolo, né?
- Consolo, pra mim, é apelido pra outra coisa. – disse com acidez.
- Que coisa?
- Nada, esquece. – riu mais uma vez, agora da inocência dele. Os dois ficaram em silêncio, ouvindo suas respirações ecoando. Ela olhando para as estrelas coladas no teto; ele, as luzes das casas ao longo da rua. Não exigiam assunto um do outro, apenas saberem que estavam ali bastava. Mas em um instante a presença física quis ser preenchida. – ?
- Hm? – ele pareceu despertar, apagando o resto de cigarro no alabastro da sacada.
- Quer vir aqui? – ela mordeu o lábio, olhando para o relógio. Passava das oito, seus pais tinham ido à casa de sua tia e levado Noel antes mesmo de ela retornar da casa de Livie, soubera apenas quando recebera uma mensagem de aviso. torceu para que ele não achasse ser tarde e, principalmente, que seus pais demorassem tanto quanto costumavam para retornar. se surpreendeu com o convite, ainda que soubesse não significar o que outras garotas queriam quando o faziam.
- Agora? – indagou, o tom de voz incerto.
- É... – sibilou ela. – Quer saber, não precisa, deixa. – ajeitou-se sobre a cama, envergonhada e se julgando estúpida.
- Não, não! – rapidamente ele tentou convencê-la do contrário. – Eu vou, sem problemas.
- Não precisa, já é tarde e você não gosta de dirigir à noite, não é? Além do mais, temos aula amanhã. – justificou-se a garota.
- Como se isso fosse realmente problema pra mim. – riu o garoto, finalmente jogando o filtro do cigarro no telhado. Voltou para dentro do quarto. – Já apareço por aí, tá?
- Aham. – consentiu ela. – Até, .
- Até, . – desligou após ouvir o tom de ocupado da linha. Respirou fundo, coçando a nuca. Precisava tirar o cheiro de fumaça mentolada, por mais que a noite não estivesse lá tão quente para se tomar banho e sair no sereno, e ele estava morrendo de preguiça. Sua cama parecia muito mais convidativa, de repente ele se sentiu exausto e sonolento. Será que podia dormir dez minutos?
Não, ele nunca dormiria dez minutos. Esse tempo, aliás, era suficiente para que tomasse um bom banho para despertar. Deixando de lado a má vontade, separou uma roupa e fez seu asseio. Quando, a caminho da garagem, encontrou sua mãe, disse-lhe que pegaria algo na casa de um amigo. Caso Susan não soubesse que ele não perderia alguns maus hábitos tão cedo, até acreditaria pela convicção com que seu filho se pronunciou.

Ela havia o convidado, mas só depois se tocou de que ainda estava de pijamas, meias e chinelos. Droga! Estava tão quentinha, devia mesmo trocar de roupa? Mas que pergunta, claro que sim. não era tão íntimo para vê-la com aqueles trajes – por mais que dias antes tivesse chegado às suas roupas íntimas, mas eram situações diferentes. Era o mesmo que vê-la nua, pois seus pijamas velhos (até mesmo os novos) eram todos apertados, curtos ou transparentes. Naquela hora ela percebeu que fazia sentido o que sua mãe dizia sobre ter um guarda-roupa sempre em dia, desde as lingeries aos sapatos, incluindo o que se usava para dormir.
Preguiçosa, ela se espalhou pela cama. Esqueceu-se por alguns minutos do que deveria fazer, sendo pega de última hora por uma euforia que a deixava tonta: estava a caminho dali, para ficarem sozinhos. Sozinhos. Isso a apavorava, mas não de um mau jeito. No pavor existia a ansiedade, a curiosidade e a expectativa.
Céus, aquela não era a que conhecia.
A de sempre era comedida, medrosa, pensava três vezes antes de tentar arriscar – por mais que tivesse raríssimos surtos de espontaneidade. Ela nunca se sentiria tão atraída por um garoto, pois não se permitiria chegar perto dele, a menos que existisse uma boa razão. Mas com era diferente. O ardor com que suas personalidades se chocavam, notavelmente opostas, refletia-se nas sensações que sentia quando estava com ele. Logicamente, sabia que ele tinha mais experiência com o sexo oposto que ela, contudo, esse não devia ser um fator a se usar como contra, e sim como pró. Afinal, havia mudado – um pouco – para se adaptar a ela, timidamente, e ele saberia manusear bem sua vantagem.
Sorrindo sozinha, a garota se levantou e vestiu algo mais apropriado sem pestanejar. Ajeitou os cabelos, um ou dois cremes para a pele ficar mais macia e perfumada. Ela sabia que ele gostava do seu cheiro, notou algumas vezes durante os abraços que o dava que ele inspirava o ar por mais tempo que expirava. Existiam nela coisas pequenas que gostava em segredo, e a garota fazia questão de mantê-las sempre presentes. Gostava de tê-lo procurando por aquele detalhe nela.
E parecendo adivinhar seus pensamentos, o celular tocou Better – toque escolhido a dedo –, sendo atendido enquanto a garota espiava pela janela.
- Já cheguei. – ele disse. – Desce aqui.
- Onde você tá?
- Bem na frente da sua casa, do outro lado da rua. – respondeu em tom de obviedade.
- Ah, sim. – ela fingiu tê-lo achado, vendo apenas um carro escuro. – Já tô indo, dois minutos.
parou antes de abrir a porta, fazendo exercícios rápidos de respiração. Contando até três – era exagero, ela mesma sabia –, girou a maçaneta. Nada além do carro que vira, coisa que a fez murchar. Em seguida, ela se viu confusa assim que saiu do automóvel.
- Por que essa cara? – ele indagou, indo em direção a ela.
- Seu carro. – disse a garota, aceitando os lábios dele sobre os seus.
- Ah... – murmurou ele, olhando para trás. – Aquele é o meu carro. O outro é da Susan, lembra?
- Na verdade, não. Mas já entendi. – ela deu passagem ao garoto. – Quer comer ou beber alguma coisa? A gente faz um lanche e sobe, pra evitar mais uma surpresa dos meus pais.
- Eles não estão? – ele só entendeu bem a última parte, era a única que interessava. – Nem seu irmão? – perguntou após vê-la negar, recebendo semelhante resposta.
- Foram visitar uma tia minha em Bexley. – respondeu ela. – Geralmente passam o dia todo lá e voltam um pouco tarde, não gosto de passar tanto tempo sozinha.
“Me traz más recordações”, ela pensou em completar. Ele correspondeu com um som positivo.
- Mas então, quer alguma coisa? – tornou a perguntar com hospitalidade.
- Tô bem assim, já tinha comido antes de você me ligar. – sorriu, agradecido. – Só preciso me sentar para descansar.
- Então vem. – pediu ela sem o olhar, oferecendo a mão. – Vamos ficar no meu quarto, é mais seguro, tudo bem?
- Por mim...
Quando as luzes do quarto de foram acesas, um – literalmente – novo universo se mostrou ao garoto. Havia fotografias e uma pintura em alto-relevo ao centro do que parecia um mosaico, as paredes turquesa e o teto anil, nem sinais de ursinhos de pelúcia e coisinhas fofinhas que toda garota tem. Ela era surpreendente naquele quesito.
- Você fez? – investigou, aproximando-se do quadro.
- Não exatamente. – respondeu a garota, um pouco sem graça, sendo questionada com um olhar. – A paisagem fui eu quem fotografou, o quadro foi um presente.
- Você fotografa? – procurou a foto que originou a tela.
- Meu pai, sim. – a garota apontou para a imagem mais ao alto, indicando a ele o que procurava. – Ele me ensinou o básico, mas só pratico durante as férias. Falta tempo, inspiração, gosto mais da iluminação natural do verão... Enfim, é só um hobby que só minhas amigas sabem. Quase como você e sua .
- Summer.
- Hein? – franziu o cenho, voltando-se para ele.
- O nome da , Summer. – confessou o garoto, achando-se idiota. – Ganhei aos doze, achava legal dar um nome pra uma coisa inanimada.
- Entendo. – os dois riram.
- E quem é que te deu esse quadro? – ele observou bem os detalhes, vendo uma assinatura pequena e fina no canto inferior. Kurt Noegle.
- Uma pessoa que conheci ano passado. – ela deu de ombros, afastando-se para esconder o riso de satisfação. era tão infantil e manipulável...
- Pessoa? – o ouviu perguntar com desconfiança, parado no mesmo lugar, porém de frente para sua silhueta.
- É. – ela se sentou à beira da cama, olhando-o, divertida. – Um pessoa. – apenas arqueou a sobrancelha. – Você viu pelo nome que era um cara, não é? Senão nem tinha tocado no assunto.
- Então seja direta.
- Eu fiquei com ele, se é o que quer saber. – examinou as próprias unhas. – Gostei bastante, foi alguém que marcou.
- Não tá com ele por quê? – o garoto ensartou as mãos no bolso.
- Caso de verão. – teve como resposta em tom de obviedade. – Eu não teria ficado com ele se não soubesse que teria um fim.
Ele novamente ergueu a sobrancelha, surpreso. Mais uma vez ela riu.
- Sei que não parece algo vindo de mim, mas pra tudo tem a primeira vez, né? – disse como um estalo, cruzando as pernas sobre a cama. – E vou confessar, foi divertido bancar a sedutora. Não gosto de fazer isso todo dia, o dia todo, mas uma vez ou outra, quem sabe?
- Você seduziu um cara? – indagou ele, espantado. Era um absurdo vê-la confessando aquilo com tanta confiança e naturalidade.
- Por que não o faria? – ela juntou os cabelos em um nó alto e um tanto frouxo. – Ele era um pouco mais velho, eu queria me distrair e as chances de cruzar o Canal e encontrá-lo de novo são mínimas. Ainda mais porque Kurt é volúvel demais, não sabia nunca o que queria, não suporto isso.
O garoto se manteve quieto, tentando ser reticente, provocando nela orgulho de si mesma por causar tal abalo no ego dele.
- Ele me deu esse quadro uns dias antes de eu voltar, mas na verdade era pro Noel. – surgiu no rosto da garota um sorriso lânguido. – O alto-relevo é pra ele sentir e perceber como o dia tava lindo quando fotografei.
- E você roubou o presente do seu irmão? – ele disse em tom de brincadeira, notando a falta de ânimo dela. – Não tem vergonha, ?
- Não é bem isso. – ela riu sem humor, desviando os olhos, desconfortável. – Ele não quis, disse que não precisava de caridade minha.
- Como assim? – relaxou os músculos ao reparar que Kurt não passava mais pela cabeça dela. No entanto, vê-la abatida de uma hora para a outra o preocupou. Droga, ele não devia se importar tanto.
- Ele não pode viajar durante as férias, meus pais acham perigoso demais. – disse ela, disfarçando o incômodo na voz. – Eu sempre vou sozinha, passo dias fora, e ele, nada. Até dou razão a ele por ficar tão chateado.
- A culpa não é sua. – ele tentou abstê-la da culpa, aproximando-se com cuidado.
Ela pensou em dizer que ele estava errado, mas se conteve. Era melhor esquecer aquela história e mudar o foco.
- Aham. – murmurou. – O caso é que o quadro ficou pra mim, já é o suficiente pra me lembrar de Avignon.
- Avignon, só?
- É você quem tá provocando, não reclame se ouvir o que não quer. – a garota o cortou. – Além do mais, já disse que tudo com Kurt só aconteceu porque tinha um fim marcado.
- Você tá comigo pela mesma razão, então? – pareceu ressentido. – E o que foi esse “tudo”?
- Claro que não, . – ela respondeu com sinceridade. – Se você acha que eu quero que você vá pra outro país, pensou errado. Depois da , que põe maior fé em você, sou uma das que mais torce pra que você fique. – completou, ajoelhando-se sobre o colchão para ficar da altura dele. Segurou seu rosto com as duas mãos, o polegar acariciava-o na bochecha. – E o “tudo” não é mais nada além de uma lembrança comum, hoje. Quantas vezes vou ter que dizer que quando tô com alguém, só ele que importa?
Quantas vezes o ego dele pedisse.
- Eu às vezes esqueço que existem garotas desse tipo e que você é uma delas. – ele sorriu, levando-a a fazer o mesmo. – E também. é mesmo um idiota.
- Esquece aqueles dois. – franziu o cenho, apertando as bochechas dele, fazendo-o ficar com biquinho. – Não te chamei aqui pra ficar falando dos outros.
- Chamou pra quê, então? – ele enviesou os lábios.
- Pra me fazer companhia, ué. – ela respondeu simplesmente, tendo um beijo roubado no lugar de um “Só?”. – Pra isso também. – outro beijo. – Não podemos mais que isso. – então viu o garoto de feições desapontadas. – Não me olha assim, ! Não tenho culpa.
Ele não se importou por ouvi-la chamando-o pelo sobrenome, continuou sustentando as expressões. o imitou, beijando-o em seguida, sendo envolvida cuidadosamente. se sentia infantil por toda a brincadeira entre eles, mas não faria mal bancar o idiota bobo depois de um dia tão cinzento como o que tivera.
E o perfume dela. tinha até mesmo orgulho do cheiro de . A pele macia sob seus dedos e os fios de cabelo que caíam sobre a nuca dela... Tudo parecia tão intocado, como ele pôde ser besta de duvidar? Ela causava espasmos e calafrios nele com seus toques delicados, a atmosfera leve anulava a insegurança. Dela e dele.
percebeu que suas pernas, mesmo bem apoiadas, não estavam mais firmes. O que tinha, que a fazia esquecer as palavras há pouco ditas? Ela queria romper as barreiras do comportado e comedido, queria ser a mesma do verão passado; ousada, ainda que efêmera. Bastou o menor sinal de que ela o desejava para que ele se inclinasse e a fizesse deitar. seria sua, o garoto fervilhava com o misto de alegria e nervosismo. Queria tanto aquilo que receava errar. Um passo em falso poderia tirá-la de seus braços. Mal sabia ele que não queria nem iria fugir. Se fosse para acontecer, assim seria, sem hesitação. Mesmo que três minutos antes ela tivesse dito o contrário, a garota sempre acabava cedendo a ele sem que houvesse insistência. não tinha noção de como a controlava.
Sobre ela, apoiado nos joelhos, distribuiu beijos por todas as partes nuas acima de seu busto. o segurava pelas costas e nuca, por vezes deslizando para os cabelos e dorso, por cima da jaqueta dele. Em uma velocidade que se igualava à sede de um pelo outro, os dois perderam a noção do tempo. Contudo, antes que roupas começassem a ser retiradas – o que talvez não levasse tanto tempo – entre beijos veementes de intervalos mínimos, o telefone tocou, interrompendo-os em um sobressalto. O garoto se jogou para o lado, frustrado, ao ouvi-la dizer que precisava atender.
- Desculpa, pode ser importante. – alegou a garota, sem jeito, olhando-o de lado. Ele assentiu em sinal de que não tinha problema, apesar de ser uma grande mentira. Quando o calor chegava-lhe ao sul, era difícil fazer a temperatura voltar a baixar. se levantou devagar, a cabeça leve demais e o equilíbrio não era o de sempre, e assim que chegou ao corredor, indo em direção à suíte de seus pais, deixou de ouvir o toque do telefone. Ajeitando os cabelos, voltou para o cômodo em que estava, confusa. – Parou de tocar.
- Foi só pra atrapalhar. – reclamou, olhando seu celular. De certo modo, estava conformado, já que aquela era a segunda vez que acontecia uma interrupção. “Não apresse as coisas” ecoava na sua cabeça.
Em seguida, o tom de mensagem do celular dela em cima do criado-mudo. “Filha, destranca o portão da garagem, estamos quase aí.”
- Oh, merda! – a garota grasnou, chamando a atenção de . – Eles estão chegando, você precisa ir embora logo.
- A única vantagem de não ter feito nada. – ele soou mal humorado, fazendo-a rir baixo em concordância. Levantou-se rapidamente, abraçando pela cintura, pondo-a à sua frente. – Seus pais não demorariam pra voltar?
- Teoricamente... – ela respondeu, as mãos sobre as dele. – Talvez tenham voltado cedo por causa do meu irmão. – passando os olhos pela sala, viu os faróis do carro de seu pai atravessando a cortina, parando no último degrau. Não imaginava que “quase aí” fosse “a menos de um minuto de casa”. – Meus pais chegaram! Sobe e fecha a porta, não faça nenhum barulho, por favor.

’s P.O.V.

Concordando, subiu as escadas de dois em dois degraus. Não fazia muito tempo que ele estava ali comigo, agora não sairia tão cedo e nem era por um bom motivo. Novamente tínhamos adiado o que até na minha cabeça já estava na hora de acontecer – eu não era de ferro –, por mais precoce que parecesse. A culpa não era bem minha, mas dos hormônios que ficavam caóticos quando estava com . A culpa era dele, na verdade, e seu jeito de me tocar e beijar. Nem Kurt, nem , nem outro tinham chegado perto do quanto me deixava fora de mim. Era insano.
Sorri ao pensar nisso, tendo que disfarçar quando encontrei o controle da garagem e abri o portão para meus pais, pois eles me encaravam como se eu tivesse demorado uma eternidade. Forjei uma cara de sono, entregando à minha mãe o controle antes de dizer que ia voltar a dormir. Aproveitando que ninguém me via do lado de dentro da casa, corri escada acima, trancando a porta ao entrar ao meu quarto. estava deitado sobre minha cama, sem os sapatos, mexendo no celular. Virou seu rosto para mim, esperando más notícias.
- Vamos ter de esperar todos irem dormir. – anunciei, me encaminhando até ele. – E eu disse que voltaria a dormir, não podemos fazer barulho nenhum.
- Sem problemas – ele assentiu –, só não esquece a luz acesa.
Olhei para o teto, me dando conta do detalhe ignorado pela afobação. Apaguei a luz de má vontade, vendo o visor do meu celular iluminar o quarto enquanto Better voltava a tocar. Coloquei o blackberry no silencioso, antes de ler a mensagem.
“Quero te fazer ver estrelas”, era o que acabara de me enviar.
!”, respondi, repreendendo-o.
“Que foi? É só deitar do meu lado e olhar pra cima.”
Ri, me sentando sobre o colchão com cuidado para não cair ou passar qualquer constrangimento. se mexeu, dando espaço para mim. De barriga para cima, recebi mais uma mensagem. “Temos estrelas, mas a falta da Lua pra comparar com os teus olhos tirou a breguice do momento, desculpa.”
“Não precisa disso”
, escrevi. Ele estar ao meu lado sem a ebriedade dos beijos ou a sede de algo mais já era suficientemente romântico, que era o termo evitado por ele. não estava ali só para saciar a carência, tinha despencado de Camden até aqui depois de um dia exaustivo para me ver, não o faria se não achasse valer a pena.
“Mas eu quero fingir que sou esse tipo de cara, de vez em quando.”
“Sabemos que não é bem esse o seu tipo.”
“Me deixa tentar, pelo menos?”
Iluminei seu rosto, vendo-o sorrir de forma a me pedir permissão.
“O que meus pais vão dizer, se souberem de nós dois?”
“Já ouviu falar que escondido é sempre melhor? Eles não precisam (nem vão) saber, é o nosso segredo.”
“É bom que você realmente faça tudo direito, quero saber qual o seu melhor.”
Ele riu um pouco alto, abafando em seguida.
“Você não sabe com o que tá brincando...”
“O que você tá esperando pra mostrar?”

Suas mãos roubaram meu celular, que – pelo som – foi parar no chão junto ao dele. Mesmo no escuro, acompanhava sua silhueta em cada movimento, até que novamente estava sob seu tronco e nossos lábios mais uma vez se tocavam. Meu sangue acelerou imediatamente, gerando um calor intenso e delicioso. Mas ao contrário de antes, o beijo de era calmo, suas mãos não estavam famintas. Diferente, mas tão bem correspondido quanto antes. Sua pele morna aderia perfeitamente aos meus dedos, de modo que era difícil eu querer deixar de tocá-la. Sentia-me perigosamente tentada a deslizar para dentro de sua camisa branca, curiosa para saber o que ele faria a seguir – parecia ter esfriado, eu entendia exatamente o porquê, porém, uma vez provocada, não deixaria uma oportunidade como aquela ser perdida. Conforme minha vontade, escorreguei, com certa dificuldade devido aos beijos rápidos seguidos dos de tirar o fôlego, pelo casaco dele até chegar à barra de sua camiseta, erguendo-a apenas para acomodar minhas mãos em suas costas. Puxei-o contra mim, os dedos estendidos e espalhados em sua lombar, e em vez de meus lábios, sua boca se pôs no meu pescoço, como se eu finalmente o despertasse. Dali para frente, qualquer atitude minha não seria examinada antes de eu realizá-la; simplesmente a faria e sofreria suas consequências, mesmo que sofrer fosse um paradoxo, no caso.
Antes apoiado apenas nos cotovelos, se pôs também sobre os joelhos, cercando minhas pernas.
- Eu te perguntei uns dias atrás, mas você recuou. – falou baixo, quase num sussurro. – Tem certeza mesmo de que quer isso? É um passo muito além do lugar em que estamos.
- Não tinha uma boa razão pra eu aceitar, até você me fazer lembrar Kurt. – confessei, ouvindo-o bufar. – Fazia um tempo que eu não me sentia em segurança como no verão passado, e você reviveu isso em mim, . Ultrapassou até mesmo o cara que eu achava ser o melhor. Se eu esperar pelo momento certo, posso deixar passar o que sinto ser certo. Foi você quem me ensinou a não ficar sempre analisando tudo que faço ou irei fazer, vai querer que eu aja assim bem agora?
Eu estava o envaidecendo, mas não me importava. Se ele se sentisse confortável, eu também estaria. Com o que já sabia sobre ele, fazê-lo ser o melhor conquistava sua confiança.
- Parece que você tem aprendido direitinho. – ele riu, a voz tão rouca e sedutora que parecia perfeita para murmurar um “Amo você”. Não que eu quisesse ouvir aquilo, só a ideia me apavorava. Retiro o que disse. – Não vou te desapontar, eu juro.
- Você dá conta? – sorri, ainda que a falta de iluminação o impedisse de enxergar.
- Eu dou conta. – ele selou seu juramento com mais um beijo, então roçou a boca pelo meu rosto, tentando relembrar cada curva, voluptuosa ou levemente saliente, do meu corpo numa forma cega de me ver.
Eu me sentia leve. Cada parte do meu corpo em contato com o dele parecia se desfazer, me deixando apenas em nervos expostos e sensações triplicadas. Sentir seu cheiro de almíscar era como o ar quando eu respirava, e quando o sorvia pela boca, podia jurar que a textura da sua pele estava junto. Talvez estivesse e eu mal notasse, entorpecida. Não sabia bem se era real ou delírio, pois nunca sentira tanto desejo por alguém. E agora estava na minha própria cama, fingindo para os meus pais que voltava a dormir enquanto passava longe de adormecida. Estava muito bem acordada. Aérea e longe de consciente do que acontecia ao redor, mas ainda assim acordada.
Depois de anos me controlando, havia me permitido um momento de liberdade, e o gosto de tê-la era o gosto de . Não me sentia com vergonha, como as muitas vezes em que me expunha a alguém, ainda que desta vez fosse ao extremo. A segurança que emanava me tranquilizava, eu era mais confiante ao seu lado. Esquecia as obrigações que impunha para mim mesma, eu era mais alegre. Mesmo me negando, ele me fazia bem. Eu gostava mais de mim quando estava com ele. Não podia ser mau esquecer ideais que eu tinha desde mais nova em prol do meu bem-estar. Castidade parecia trivial, se comparada à minha felicidade. E naquele momento eu me sentia feliz.
Eu me entregaria a . Dane-se o mundo.
Sem mais pensar, instintiva, fiz o casaco de ser retirado, seguido da camiseta. Acostumada com o breu, conseguia distinguir algumas formas, sendo o corpo de uma delas. Ele não era másculo e bem definido como dos esportistas, mas tinha sua vantagem sobre os demais. Aos meus olhos, no escuro, era perfeito. Era o certo pra mim.
Certo também era o modo como meu corpo reagia. Geralmente eu não sabia o que fazer, mas minhas mãos encontraram seu caminho nos cabelos dele, trazendo seus lábios de volta para os meus. tocou meu quadril com as pontas dos dedos, me acariciando levemente, em seguida os fazendo caminhar por meu abdômen acima, alcançando as costelas e, logo, meu sutiã. Mordeu meu lábio, parecendo hesitar.
- Você realmente quer isso? – murmurou contra minha boca, os dedos sobre a costura da lingerie.
- Não tenha medo, . – sorri, alienada, segurando seu rosto da mesma maneira que minutos antes. Era eu quem supostamente devia estar receosa. Mas ele estava preocupado comigo, eu compreendia. E agradecia. – Dessa vez eu quem pediu. Eu quero mais que nunca.
- Se você pedir, também, eu paro, não tem problema. – ele quis ter certeza de que eu não recuaria. Beijei-o com calma.
- Me prometa que você não vai parar, se eu pedir. – disse ao me afastar, achando que soava sedutora.
Só achando, mesmo.
sussurrou “Prometo”, tornando a me beijar avidamente, retirando minha blusa. Eu era pura brasa, tão quente que fiquei. E me atrevi a descer minha mão em suas costas, segurando a barra da boxer que ele sempre deixava à mostra, pois suas calças nunca tinham cinto. Distraído com meus seios, aprovou minha atitude e pôs sua mão sobre a minha, guiando-a exatamente para onde devia estar.
O que se seguiu, então, foi a melhor recompensa que tive por ser uma boa garota. De forma irresponsável e perigosa, eu sabia, mas havia sido tão cuidadoso e atencioso que acabei deixando de lado a neura de agir corretamente. E fiquei aliviada de confirmar a hipótese de que todo garoto (como o ) carrega uma camisinha na carteira. Cortar o clima à altura em que tínhamos chegado talvez não fosse fácil de lidar como da outra vez. No fim, eu me senti tão mais leve quanto antes. Eu me senti completa.
me completara. Além de me fazer feliz, tinha sido meu encaixe perfeito. E a constatação disso me deixou em alerta.
Eu não podia me apaixonar. Não por ele. Existia um limite entre apenas gostar e se apaixonar, eu devia me manter atrás dele. Porque paixão era o primeiro estágio do amor, e eu não me via correndo o risco de amá-lo.
Confesso que me arrependi por pensar dessa forma naquele exato momento. Podia ter prolongado meu estado de ausência da realidade e aproveitado melhor os carinhos de enquanto descansávamos, já vestidos com as roupas de baixo. Talvez minha relutância tivesse sido potencializada naquele instante em que ficamos em absoluto silêncio cúmplice, em vez de termos uma “conversa de travesseiro”, como dizia ser comum. Era como se nem nos conhecêssemos, apesar de eu saber que sim.
- ... – sibilei, tímida, a voz quase não saiu. , que tinha o rosto sobre meu ombro e o braço cercando meu ventre, mexeu-se em resposta. Estava sonolento, a julgar sua calma ao se mover. Não tive coragem de lhe dizer nada, pois, ao fitar seus olhos (a luz que vinha da rua era mais forte, já que tudo estava apagado), a imagem de Angie me veio à cabeça. O que eu queria, exigindo a atenção dele, sendo que andava lhe escondendo parte de sua própria vida? Eu era mesmo uma imbecil. – Obrigada por não me deixar sozinha, mesmo por pouco tempo e você estando cansado.
- Como se realmente fosse por favor que eu estivesse aqui. – ele sussurrou, beijando meu ombro nu. Estávamos apertados numa cama de solteiro, sob o edredom fofo e quentinho. Ainda que fizesse dez graus negativos, acho que estaria aquecida somente em razão do abraço de . Em partes, essa era a causa de estarmos apertados; ele me aninhara de tal forma que eu não poderia sair.
Mas eu não queria sair. Estava vendo estrelas ao lado de .
- Se não é porque pedi, por que veio?
- Por causa do jeito como você me pediu. – ele se mostrava cheio de ternura, como se olhasse uma criança dar os primeiros passos. Eu me sentia uma, na verdade, sob seus cuidados. A sensação de ter alguém que se importava comigo era ótima, em contraste às que eu mesma me provocava. Eu podia me deixar ser leve e voar, pois, se caísse, apararia minha queda. – Depois do dia em que você foi assaltada por minha culpa, me senti em débito com você.
- A culpa não foi sua. – tive vontade de niná-lo. Abri um enorme sorriso, agradecida por sua preocupação.
- E desde aquilo, quando te ouço com o mesmo tom de voz, é meio que obrigação minha te fazer esquecer isso. – continuou, levando sua mão para meu braço, próxima ao ombro. – Aliás, queria saber por que você parecia tão triste ao telefone.
Prendi a respiração, desviando o olhar. Estava tão na cara assim?
A verdade era que eu odiava ficar sozinha, mesmo. Naquela noite tinha sido pega de surpresa ao retornar da casa de Livie. Havia tentado me distrair com a TV, internet e um banho longo, mas só de lembrar que não tinha mais ninguém além de mim, os tormentos voltavam. Já tinha perdido as contas de quantas vezes passei a noite em claro, tentando esquecer a enorme culpa que carregava, ficar com a casa vazia a intensificava, fazendo-a se libertar da minha cabeça e bater contra as paredes, ecoando como gritos sem fim.
- ? – tocou meu rosto, e então notei como estava fria ao entrar em contato com seus dedos mornos. – Tá tudo bem?
A quem eu iria enganar? Mesmo que não visse exatamente minhas feições – assombradas, aposto –, ele sentia minhas reações por estar tão próximo a mim. Eu queria mais que nunca, mas não podia fugir e correr o risco de sermos pegos por meus pais. E negar seria dar um tiro no meu próprio pé.
- Tem algo... – comecei, minha voz trêmula de nervosismo. O bom astral de quando recebera desapareceu e me levou para um abismo insano de angústia. Eu não queria tocar no assunto, porém, com tantos segredos guardados, meu peito parecia pequeno para suportar reprimir o que pedia para sair, quase me rasgando pela demora. – É antigo, eu odeio pensar nisso, mas sempre que tô sozinha, sou obrigada a fazer.
- Não precisa contar, se não quiser, . – o ouvi de modo compreensivo, afagando meus cabelos. Era o mesmo que dizer “Eu sei como se sente, sei que não quer se abrir, mas guardar só vai piorar; se quiser desabafar, estou aqui.”
Perguntei-me em que minuto tinha sucumbido à tristeza. Até tão pouco tempo atrás nem mesmo pensava sobre como fora meu dia, e naquele momento fantasmas do passado vinham me atormentar. Justo quando enfim me sentia nos eixos, ainda que momentaneamente.
Senti raiva de mim mesma por ser pateticamente tão ligada ao passado. Por me preocupar demais com o que devia ser esquecido. Por simplesmente não conseguir esquecer e remoer a culpa em forma de martírio para me deprimir quando tinha qualquer tipo de vitória em qualquer aspecto. Eu era mesmo uma babaca sem tamanho por arruinar meus próprios momentos de felicidade.
O pior de tudo era que eu não via por que ser diferente.
Mas, independente disso, precisava pôr para fora minha enorme frustração.
- Não, eu quero. – disse rapidamente minhas poucas palavras firmes. – Preciso. – respirei fundo, tentando me acalmar. Por que era tão difícil agir, se eu sabia atuar tão bem? Por que ser verdadeira era mais complicado que fingir ser outra pessoa? Por que me abrir de verdade não era como um monólogo? Era simples: só dizer e pronto, não era? – É que, quando tô sozinha, tem uma coisa que fica martelando na minha cabeça sem parar. Sinto um remorso tão grande que não tem como esquecer.

’s P.O.V.

Disparada como o coração de era sua respiração. Sua voz oscilava, e ela rodeava em vez de ir direto ao ponto, sem nem saber como chegar a ele. nunca fora tão fechada com determinado assunto, mas o que estava prestes a tocar parecia ser íntimo de forma que a tirava o chão.
Fiz algumas avaliações rápidas, tentando descobrir o que era; de tudo, o que mais a fazia mudar repentinamente era Noel.
- Tem a ver com seu irmão? – perguntei, tendo de aguardar pela resposta, que veio baixa em um resmungo. – O que tem ele?
Silêncio novamente. Mesmo apreensivo pelo estado de estresse de , aguardei pacientemente.
- Você não deve saber, mas ele nunca foi cego. – a ouvi dizer pausadamente, medindo as palavras. Eu sabia, na verdade, me lembrava da foto que vira dias atrás, quando esperava na sala. – Fui eu quem o deixou assim.
A revelação foi um choque para mim. Minha primeira atitude foi arregalar os olhos, mas poderia me olhar a qualquer segundo e voltar atrás. Eu mesmo tinha comprovado que se expor aliviava a tensão, tinha de lhe dar esse direito.
- Mas foi um acidente, não foi? – controlei meu tom de voz.
- Não... foi de propósito. – se diminuía cada vez mais, virando-se de costas para mim. Ainda atônito, demorei até reagir e tornar a abraçá-la, tentando trazê-la de volta para mim. – Eu o empurrei de propósito da escada, e agora ele não vê mais nada.
- Eu duvido. – retorqui, tomado por súbita clareza. – Você nunca faria mal a ninguém, , muito menos ao Noel.
- Mas eu fiz! – ela ralhou, quase sem voz.
De repente, soluços. estava chorando. A proporção daquela maldita pergunta que lhe fiz era muito maior que eu esperava. Era culpa minha ela chegar àquele estado de angústia. Que merda eu tinha feito?! Estava em débito com e só piorava as coisas, mesmo sem saber. E não tinha nem ideia de como contornaria aquele problema, uma vez que era difícil de convencer.
Eu me sentia mal por deixá-la daquela forma, por ter ido fundo demais em um assunto dela. Dizer que sentia muito seria tapar o Sol com a peneira, não consertaria nada. Sabia exatamente como era se sentir desolado por pendências antigas, dificilmente algo que eu dissesse a faria melhorar. Eu só poderia oferecer conforto a ela, contudo, havia se fechado instantaneamente em uma redoma que eu nem sabia se tinha permissão para entrar – não obstante a isso, eu insistiria.
Sentei-me e encostei à cabeceira, observando seu tronco crescer e diminuir rapidamente. Eu imaginava o tamanho de sua tristeza, seu desolamento era tanto que ela mal se importava se parecia fraca. Logo ela, que exalava firmeza. , em vez de maciça como diamante, estava frágil como vidro rachado. E por mais que me machucasse o sentimento de impotência por não poder consolá-la, não tinha o que fazer, além de dizer o que ela já tinha ouvido diversas vezes. Sabia que não funcionaria de imediato, me escutaria somente quando esfriasse a cabeça. Era meu dever, então, ficar ao seu lado naquele momento. Ela precisava de um apoio; eu seria seu apoio. Ela precisava de mim; eu estaria lá.
Minutos de silêncio – fora a respiração cansada de entrecortada pelos soluços – se estenderam, até que eu a vi menos tensa, ainda encolhida. Apoiei-me em seu dorso, acariciando seu rosto e secando o caminho que suas lágrimas deixaram.
- Não se culpe por um acidente, . – tornei a dizer, mesmo que não soubesse exatamente como tudo tinha corrido. – Você mesma vive falando sobre destino, se ele estava destinado a ser cego, iria acontecer. Você infelizmente estava presente, mas nem por isso é causadora do que o aconteceu.
Ela mordeu o lábio, provavelmente exausta para rebater de qualquer forma.
- Eu aposto minha vida que você não seria capaz de lhe causar mal. – chegava a ser patético me ouvir repetindo as palavras, mas eu não tinha outras. De todos os envolvidos, conhecia apenas , só podia lhe dizer coisas sobre ela mesma. – Você ama Noel como se fosse a própria mãe dele, e eu entendo que por essa razão sinta remorso. Mas ele é grande agora e já aprendeu a viver por si mesmo, querendo você ou não. Você tem que o deixar dar os próprios passos sem a sua ajuda, tem que o libertar e se libertar também.
Virando-se levemente para me olhar, ela se manteve quieta. Entretanto, seus olhos me pediam quase com desespero para que eu a tirasse daquela atmosfera de angústia.
- Vem – abri os braços –, vamos deixar isso de lado, agora. É muito tarde pra ficar pensando na vida. A gente pode se esquecer dela e aproveitar o pouco tempo que temos. Não é melhor ficarmos juntos, de conchinha, curtindo um ao outro? – concordou, silenciosa, sorrindo languidamente. – Eu não ouvi.
- É. – respondeu em um fio de voz.
- Hein? – a cerquei, aproximando-a de mim e tornando a me deitar, contente por tê-la distraído. – Só consigo escutar um ruído, você disse alguma coisa?
- Sim, é melhor aproveitar o tempo, . – ela riu, pondo o braço sobre o meu. Seu riso me fez cócegas, e me peguei sorrindo.
Era daquele jeito que ela devia estar, eu gostava de vê-la feliz. Fazê-la feliz. Eu ficava feliz por vê-la e fazê-la feliz.
Poderia mais uma vez estar entrando em contradição, mas já não me importava mais tanto quanto antes – já estava até me acostumando a tamanha confusão. Eu não podia voltar atrás depois de tudo que tínhamos passado. Na verdade, acho que não conseguiria mais. Dias atrás eu tinha procurado me satisfazer com Livie, porém, agora tinha de tudo que me faltava em uma garota.
Continuava não querendo compromisso, mas a possibilidade de me envolver com outras ao mesmo tempo parecia inviável, principalmente se isso viesse a desapontá-la – não daria a mais uma preocupação. Eu queria ser livre e, ao mesmo tempo, não queria a adrenalina da conquista de alguém. De certo modo, já tinha passado por essa etapa com , e havia sido de forma natural. Eu não precisava destacar o que tinha de bom para impressioná-la, podia ser eu mesmo. Não existiam disfarces na frente dela. me fazia ser sincero sem perceber. Eu queria continuar assim. Continuar com ela.
A pergunta já não era mais “O que”, mas “Quando tudo havia mudado?”. Se é que havia mudado. Mas depois de notar o modo que eu me portava ao lado dela, não era mais uma dúvida: eu estava diferente. provocava um lado bom de mim que eu sentia falta.
Era como se eu estivesse vivo. Eu devia tudo a ela.
Beijei várias vezes o ombro de . De repente, senti como se precisasse mais uma vez de cada pedaço dela.
- Posso te dizer uma coisa? – sussurrei ao pé de seu ouvido, vendo-a assentir com a cabeça. – Com todo respeito... – mordi o lóbulo de sua orelha. – Você é linda, . – voltei a beijar sua pele nua. – Perfeita.
- Eu não sou perfeita, . – ela murmurou, me interrompendo para me encarar. – Você conhece partes boas de mim, mas também sou ruim, tenho defeitos.
- Nesse exato momento, não consigo ver defeito nenhum. – retorqui, desenhando o contorno de seu rosto com a ponta dos meus dedos. – Não consigo ver muita coisa, na verdade – ri baixo, ela fez o mesmo –, mas vejo a melhor garota que já conheci em toda essa cidade.
- Quem diz isso é o pegador, que nem espera terminar o namoro pra ficar com outra e deve estar querendo algo em troca – senti uma fisgada de desconforto no estômago –, ou o cavalheiro, educado e dócil que eu descobri umas semanas atrás?
- O verdadeiro. – respondi, dando-lhe um selinho. – O que fica desajeitado até mesmo no telefone quando quer pedir desculpas. O que odeia cantar em público, mas que ultimamente tem encontrado boas razões pra fazer isso. O que começou a acreditar em destino e admirar estrelas.
- É desse que eu realmente gosto. – sorriu, novamente me beijando. Processei bem as palavras ditas, parecendo não ter ouvido direito. Ela gosta de mim?
Não havia muito que contestar ou desconfiar, aquilo era uma certeza. Da mesma forma que eu estava totalmente enganado e tentando me convencer do contrário pela manhã, pois eu não estava mais cumprindo uma troca de favores. Eu não precisava me envolver com , chegar àquele patamar para garantir que teria sua ajuda. De algum modo tinha sido guiado até ali, e ali que eu queria estar. Eu gostava de , então.
A não-novidade acelerou meus batimentos, e somente a presença dela os fez voltarem ao normal. Contudo, ainda havia uma dúvida:
- Por que eu?
- Por que você o quê? – ela retornou minha indagação, confusa.
- Por que eu pra ser o primeiro, o seu primeiro? – refiz a pergunta. Aquilo que realmente definiria o “gostar” de .
- Eu não sei bem... – respondeu ela, com uma careta. – Já te disse, no momento, me parece a coisa certa a se fazer. Como se minha intuição dissesse “É ele”, e eu confiasse nela. Fora que... Bem, eu não sei se você vai viver aqui pra sempre, e se um dia você for embora, quero guardar uma boa memória de você. Talvez você nem se lembre de mim daqui a uns anos, se nossas vidas se separarem completamente, mas eu vou, por causa de hoje.
- Não fale como se tivéssemos um fim marcado. – pedi, confesso que amuado. – Nós mal começamos.
- Eu digo pelo futuro incerto. – notou minha mágoa, tentando se corrigir. – Quero que você fique, , quero muito. Mas querer nem sempre é poder. – fiquei quieto, transtornado com aquela verdade chata e clichê. – Se fosse, você ficaria aqui até o amanhecer e meus pais não brigariam. Só que você tem que ir, e acho melhor ser agora.
A contragosto, concordei. Já estávamos dando bandeira demais com toda aquela falação, uma hora notariam minha presença e estaríamos fodidos. Como sempre, enrolei com mais uns amassos, até que ela me empurrou e me mandou ir me vestir. Enquanto eu estava ocupado, ela rapidamente se vestiu também, me privando de ver e memorizar as curvas do seu corpo – merda! Andando pé ante pé – ambos de meias, para evitar qualquer ruído –, descemos as escadas, e destrancou a porta com monumental discrição; nem mesmo a porta rangeu. Com um último beijo, me despedi dela e andei de costas até o carro, vendo-a sorrindo abertamente. Mordi o lábio inferior de um jeito canalha, deixando claro que a fitava dos pés à cabeça – um pijama nunca me foi tão atraente –, e ela rolou os olhos, ainda rindo, me repreendendo de longe ao dizer...” para si mesma.
Sorri. Sempre gostei de ouvir meu nome sendo pronunciado, mas pela garota em questão era ainda melhor.


Capítulo 26

- Tô pensando em pedir demissão. – confessou à mãe enquanto olhavam as vitrines no shopping. Ao saber do jantar, a sra. correu para o centro comercial mais próximo com a filha. “É um acontecimento importante, precisamos de roupas novas. Todos nós”, dissera ela.
- Por quê? – perguntou a senhora. – Você mal fez um mês lá e tem recebido tão bem...
- Eu sei. – a garota meneou a cabeça. – Mas tenho ficado muito cansada. Semana que vem é a reta final, e eu nem pude estudar, vou acabar bombando no fim do semestre e perder as férias. Fora que já tenho o suficiente pra bancar os vestidos, não preciso mais cuidar de Angie pra isso.
- É o que você realmente quer? – perguntou a mulher, chamando a filha para entrar em uma loja.
- Pois não? – disse a atendente a elas.
- É. – respondeu com pesar. – Eu adoro a Angie, vai ser ruim ficar sem ela, mas tenho as provas... E também o teatro! – recordou-se de supetão. – Tinha até me esquecido dos ensaios finais!
- Me vê o vestido da vitrine, tamanho 44, por favor. – A sra. pediu à vendedora, voltando-se para a filha em seguida. – Você não tinha sido liberada dos ensaios?
- Tinha, mas é a última semana, preciso mostrar que tenho capacidade de protagonizar, senão perco o papel pra Cecile. – a garota cruzou os braços, desconfortável com a possibilidade. Era o seu papel, ela tinha trabalhado duro em função daquilo. – Parece que eu tinha tudo sob controle, aí se revoltaram contra mim e resolveram pôr tudo ao mesmo tempo. Não tenho nem como levar Angie ao ensaio, ela é pequena demais para ir tão longe sem a mãe.
- Então peça demissão, oras. – concluiu a mulher, analisando as roupas expostas em uma arara. – Não gostou de nada daqui?
- Você tá me ouvindo, mãe? – silvou, entrando no campo de visão da sra. .
- Sim. – respondeu ela, empurrando levemente a filha.
- O que eu disse, então?
- Que não pode levar Angie para escola, mas precisa ir ao ensaio e também precisa estudar, só que não tudo ao mesmo tempo. – resumiu, levando a garota a se dar por vencida. – Você já sabe o que fazer e fica arrumando impedimento. Ou faz esse livra de uma preocupação, ou não faz e continua na mesma.
- Do jeito que você disse, parecia que eu estava fazendo o maior drama do mundo. – resmungou a mais nova.
- E estava. – observou a mais velha, encarando-a. – Ficou dando voltas quando já tinha tomado a decisão. Seja prática, .
- Ah, é que... – sua objeção morreu no ar. Estava apenas se lamentando, não era o mesmo que estar indecisa. Mas não iria prolongar as justificativas. Pais e mães não costumam ver as coisas do mesmo ângulo que os filhos.
- Mas então, não gostou de nada? – a sra. esqueceu de vez o assunto. – Aproveita que seu pai liberou o cartão!

Susan não tinha ido ao trabalho naquela tarde, preparando os detalhes para o jantar da noite seguinte. Assim, quando chegou (morto de cansaço) do ensaio, ela já estava em casa. Diversos papéis sobre a mesa, o telefone mal esfriava e já estava de novo à orelha dela. E o sinal claro de que Susan estava estressada era os cabelos desgrenhados, presos apenas pelos óculos, como um arco. passou por ela sem nem ser notado, dando a volta e roubando o telefone para desligá-lo.
- Opa, acabou a bateria! – disse em tom travesso. – Olhe o seu estado, mulher. Você tá fazendo isso desde que horas?
- Desde a hora do almoço. Ou menos. – ela respondeu, aliviada pela pausa forçada. – Preciso saber quem vem, se o buffet já está com todos os ingredientes a postos, se o designer conseguiu a cortina de flores e luzes...
- Tire quinze minutos antes disso, pelo menos. – o garoto sugeriu, pondo a mochila sobre uma cadeira e se sentando em outra. – Quem ainda falta ligar?
- Jude e Lucy, do clube... – sua mãe checou a lista. – e a família dela, seus amigos, Sloan, o designer e o serviço de buffet. Os outros já confirmaram, Vica deve estar chegando daqui a pouco.
- Vica vem? – se animou ao ver sua mãe assentir. – Precisa que a busque na rodoviária?
- Aham. Ela já está por chegar, disse que avisa assim que estiver na cidade, então esteja pronto já.
- Estarei! – prontificou-se o garoto, contente. O último encontro com a senhora fora rápido, de modo que mal pôde aproveitar sua presença.
- Preciso que vá ao mercado comprar água mineral e lenços umedecidos para Angie. – Susan pediu em tom ameno. – Gosto de ter tudo pronto para recebê-la, ainda mais com Jonsey e Stephen vindo também.
- Se Stephen não viesse, não faria muita diferença. – resmungou, ciumento. Uma coisa era não desejar mais Livie, outra era vê-la em sua casa com outro homem.
- Não fale assim, ele é o namorado dela. – sua mãe o reprovou, voltando a atenção para o telefone. – Agora, me deixa terminar isso, antes que eu fique louca de verdade.
- Você já tá perto disso. – o garoto falou com naturalidade, puxando sua mochila para se levantar. – Vou tomar um banho, passo no mercado quando for buscar Vica.

- As senhoras desejam mais alguma coisa? – perguntou a vendedora, doida para aumentar sua comissão.
- Não, querida, pode fechar a venda. – respondeu a sra. , entregando as peças escolhidas por . Assim que a moça se afastou, ela se virou para a filha. – E esse menino, ...
- O que tem ele? – indagou de imediato, desprendendo sua atenção do visor do celular.
- Vocês estão namorando? – ouviu, surpreendendo-se. Sua mãe parecia até mesmo animada com a hipótese.
- Não, claro que não, mãe! – revirou os olhos, sentindo um calafrio na espinha. Era tão adverso assim ser a namorada de ? No momento, para assumir à sua mãe, sim. – A gente é bem amigo – ela quase riu – por causa da peça, mas é o máximo em que chegamos.
Se eu ignorar tudo que aconteceu ontem à noite, às suas costas, é claro.
- Ah, sim. – a sra. disse com falsa satisfação. – Não sei se já te disseram, mas ser bem amigo faz parte de qualquer relacionamento. Não é exatamente uma resposta negativa à minha pergunta.
ficou sem jeito, murmurando um “Oh” enquanto pensava no que dizer, ainda que desse razão à sua mãe.
- Não tem problema não me dizer o que está acontecendo entre vocês. – a mulher sorriu, compreensiva. Já tivera a idade da filha e se lembrava de como era constrangedor ter aquele tipo de conversa, apesar de realmente estar interessada. parecia um bom rapaz. – Só não demore muito pra decidir o que você quer. Às vezes achamos bom estar em determinada posição, mas as circunstâncias mudam e o mundo vira de cabeça para baixo. Basta uma escolha errada pra você se arrepender pelo resto da vida.
- Mas por que você tá dizendo isso pra mim? – resmungou a garota, achando sua mãe dramática demais.
- Porque, por mais que a gente mude, as paixões duram pra sempre. – respondeu a mais velha, novamente dando um choque de realidade na filha. – Principalmente as que acontecem durante o colegial. É a época da sua vida que você mais vai sentir falta.
- Mas eu não estou apaixonada. – disse pausadamente, procurando ajeitar as roupas para evitar o olhar da sra. .
- Quem tem quarenta e dois e quem tem dezesseis anos aqui, mesmo? – a mulher alfinetou, fazendo a garota olhá-la, insatisfeita. – Eu sei exatamente o que se passa na sua cabeça quando você o vê. Seus olhos te entregam, .
- Nada a ver, mãe! – ela revirou os olhos, não por realmente aquilo não ter a ver, mas pela fantasia que sua mãe fazia. Ela apostava (e ganharia, se tirasse a prova) que, na cabeça da mãe, era seu primeiro namorado e o jantar seria uma forma de anunciar o, com certeza ela diria dessa maneira, romance.
A garota usou a tática de todo filho e tentou apagar da mente o discurso de sua mãe. Ainda assim, mesmo se esforçando, algumas palavras geraram a dúvida: seus olhos realmente se portavam de maneira diferente? A probabilidade de ser exagero da sra. era muito alta, logo, a garota deixou de lado – momentaneamente – o assunto.
- Tô com fome. – desconversou, tornando a sacar seu celular, por onde trocava mensagens com .
A sra. disse a ela que iriam somente comprar camisas para seu pai e seu irmão, então comprariam algo para comer. E o tempo simplesmente não passava. Tinham saído de casa às seis e meia, andado pelo shopping quase todo e ainda nem eram nove horas. A garota estava entediada – a parte de comprar roupas novas era até legal, quando para ela – e novamente com aquela mistura de medo e ansiedade. Mistura essa que a fazia criar e recriar a forma que se portaria em frente aos convidados – sem timidez, tomando cuidado para não parecer exibida –, como andaria – delicada e sempre sorrindo –, até mesmo o jeito que falaria – “Não se exalte, , senão você gagueja!”
Logicamente, ela se lembrava de que estaria de frente a Otto, que a conhecia como a babá, e , que nem desconfiava disso até o momento. A situação poderia ser desconfortável, porém, não tinha nenhuma desculpa para fugir do compromisso. Não queria, na verdade, pois era uma razão para saciar a vontade de ver , coisa que ela havia notado ser frequente – e às vezes se repreendia por esse motivo.
Mas naquele momento de tédio, ela não censurou sua necessidade de vê-lo quando se despediu, pois iria tomar banho. Sem o que ocupar seu tempo, ela aumentou o número de reclamações à sua mãe, que se irritou e a mandou sair de perto. Em partes agradecida, enquanto caminhava em direção à praça de alimentação, pensou em mandar uma mensagem para , ao menos para dizer “Oi”. Eles já haviam passado do estágio do dia seguinte, tinham até mesmo se falado pela manhã, no colégio. Não seria sinal de carência, ela achava. Bastava ser algo que chamasse a atenção dele e fosse engraçado.
“Pena de urubu, pena de galinha, se você pensou em mim, dá uma risadinha!”
“Hahaha Quem é você e o que fez com a ?”
“Tô entediada (apesar de estar tomando um milkshake gigante), dá um desconto!”
“Geralmente é o que acontece quando estamos em casa e largamos certas pessoas sozinhas no ensaio... Bem feito!”
“1) você NÃO estava sozinho; 2) o ensaio já acabou; 3) não tô em casa. P.s: esqueci de dizer, mas você riu, pensou em mim!”
“E onde a senhorita tá, posso saber? P.s: ok, você me pegou!”
Ela se sentiu mais contente. O problema não era o que estava fazendo, mas com quem. A garota imaginou como seria se o encontrasse naquele lugar, enquanto passava pelos corredores do shopping. Não estava muito longe da casa dele, se tivesse tempo suficiente, poderia até mesmo fugir dali para encontrá-lo. Sua mãe ficaria furiosa quando descobrisse, mas não por muito tempo. Ou simplesmente entenderia aquilo como uma resposta positiva para a pergunta que a fizera mais cedo.
“Shopping. Aliás, obrigada por oferecer o jantar de amanhã, graças a ele eu renovei parte do meu guarda-roupa!”
“Sem ofensas, mas isso não combina contigo”
“Eu sei... Por isso já me cansei. Queria que estivesse comigo, seria mais legal. Amanhã também”
“Por que ela não tá? E por que não vai?”
“Dentista. Amanhã ela ainda vai estar com o rosto inchado por causa do siso, nem pra escola vai”
“Terei você só pra mim o dia todo? Sério mesmo?”
“Quase. Hahaha De tarde estarei em casa, com Noel, lembra?”
“Isso não é justo!”
“É sim, senão você iria se cansar de me ver, e aí, sim, não seria justo”
“Verdade! Você é tão melosa, cheia de frescuras, irritante, blá blá blá...”
“Exatamente. Sou seu reflexo, !”
“Você é linda, então”
não pôde deixar de rir.
“Um pouco besta também”
“A língua tá afiada hoje, hein? Ou os dedos, tanto faz...”
“Você não sabe o quanto. hahaha”
“Algo me diz que posso descobrir isso pessoalmente agora mesmo. Olha pra trás”
Ao ler, uma sirene disparou na mente da garota, emitindo o som de “Eu não acredito”. Imediatamente ela se virou e procurou com os olhos, antes de ver saindo de dentro de uma loja. O alívio se mesclou à alegria de tê-lo ali, à sua frente. notou que ele falou com alguém dentro da loja, e só então foi em direção a ela.
- O que você tá fazendo aqui? – perguntou durante o abraço apertado que recebia. Os braços cruzados sobre o dorso dele já tinham até uma posição em que ficavam mais confortáveis e dificilmente desfaziam o abraço. Como se ela já tivesse um molde para que seu corpo se encaixasse ao dele do melhor modo.
- Recebi o batchamado e vim socorrer uma bela dama. – ele respondeu com bom humor, afastando-se o suficiente para encará-la.
- E quem é a pessoa com quem você falou ali dentro? – a garota indicou a loja com a cabeça.
- Meu novo investimento. – ele disse sem dar importância, ainda fazendo graça. – Eu dou meu corpo e recebo dinheiro por isso. Uma ótima troca, não acha?
- ! – ela o repreendeu, batendo de leve em seu ombro, fazendo o garoto rir.
- É Victoria, uma amiga da família. – tentou avistá-la. – Ela é como uma avó, incluindo a parte de mimar e fazer a melhor comida do mundo.
- Hmmm, e quando eu vou conhecer os dotes culinários dela? – seguiu seu olhar.
- Conhecer a própria Vica é bom, antes de mais nada. – observou ele, em tom de ironia, aproveitando a distração dela para lhe roubar o milkshake.
- Acredito que vou conhecê-la em alguns minutos, meio caminho já vai ser andado. – concluiu a garota, não ligando para o furto. – E mesmo que não fosse, acho que amanhã ela vai estar no jantar, acertei?
- Aham. – disse ele após um gole.
- Viu? Eu não estava pensando só na comida. – ela deu um sorriso esperto. – Mas que mal lhe pergunte de novo, o que vocês estão fazendo aqui?
- A filha de uma conhecida nossa nasceu há algumas semanas, Vica quis comprar um presente antes de irmos pra casa. – explicou ele. – Acabei de passar na rodoviária pra buscá-la, já aproveitei o caminho. Ainda temos que ir ao mercado, provavelmente não vamos demorar aqui.
- Ah, entendi, Batman tá bancando o chofer. – a garota segurou o riso, vendo-o concordar. – Que amor, .
- Fala de novo. – ele pediu enquanto ela tomava seu milkshake, segurado pelo garoto.
- Hm? – ela murmurou, olhando-o pelos sobrolhos.
- Fala isso de novo.
- O quê? – tornou a segurar o copo, o cenho franzido.
- Meu nome – respondeu ele –, fica mais bonito na sua voz.
- Ai, Deus! – a garota revirou os olhos e riu, encabulada. – Para de besteira, você me ouve te chamando várias vezes por dia. Por que isso agora?
- Eu não posso te pedir um simples favor? – transformou as feições, fazendo-se magoado.
- Chantagem emocional não vale. – silvou . O garoto abaixou um pouco o rosto, como se dissesse a ela que continuava esperando. – Eu te odeio, !
Ele sorriu, apertando novamente o abraço e beijando a bochecha da garota.
- Não, você não me odeia. Você me adora. – corrigiu, distribuindo beijos por toda a face dela. – E agora você deve estar pensando em como eu sou convencido, mas, no fundo, eu sei que você gosta.
- Ah, obrigada por me esclarecer tudo isso, voz da minha consciência. – disse a garota, de olhos fechados, rindo e o fazendo rir. – Nós devíamos – pausa para um beijo – ir falar – outra pausa para outro beijo – com a – mais uma – Vica. Me deixa falar, !
- Mas eu tô deixando. – ele ergueu as mãos em sinal de inocência. novamente revirou os olhos, rindo brevemente.
- Vam... – mais uma vez o garoto a interrompeu. – Você tá de sacanagem com a minha cara, disso eu já sei, mas qual é o seu problema em me deixar falar?
- Não quer que eu te beije? – ignorou a pergunta dela, finalmente a soltando.
- Eu quero que você me deixe falar! – estrilou a garota, com o humor entre o irritado e consternado.
- Tudo bem, se é assim... – ele consentiu, divertindo-se por dentro.
- Será que eu posso conhecer Victoria agora? – indagou ela, lembrando-se do milkshake em suas mãos. – Olha, ainda tem bastante disso aqui, toma, já que você quer tanto ficar com o gosto de alguma coisa na boca.
- Não era exatamente isso que eu queria, mas obrigado. – o garoto deu de ombros, aceitando o copo em seguida. – Só não reclame depois. – então deu o primeiro passo à loja.
- Como assim? – ela franziu o cenho, acompanhando-o e o vendo se ocupar com o milkshake. – Eu quem te deu esse troço e eu vou reclamar? Qual a lógica?
- Você me deu a primeira coisa que viu pra me evitar. – ele dramatizou, tentando irritá-la. – Depois não reclame, se eu resolver te evitar também.
- A gente trocou os papéis e você tá na TPM, é isso? – perguntou em tom de afirmação. – Porque, meu Deus, desde que eu falei contigo por mensagem você tá distorcendo ou implicando com o que digo.
- Não trocamos os papéis, só somos reflexo um do outro. – respondeu , usando as palavras dela contra ela. – Somos tão parecidos que é difícil aguentar, né?
A garota arqueou uma sobrancelha, percebendo onde ele queria chegar.
- Ok, já deu, não é? – questionou em retórica. – Você não vai conseguir me deixar nervosa, se é o que tá tentando.
- Eu nunca disse isso. – retrucou o garoto, entrando na loja de roupas infantis.
- Eu te odeio, !
- Já é a segunda vez que você diz isso em menos de meia hora, tá querendo provar algo pra alguém? – observou, satisfeito ao ouvi-la grunhir de raiva contida.
- Depois a gente se resolve. – disse ela ao se aproximarem de Victoria. – A partir de agora, irei ignorar metade das coisas que você fala.
gargalhou, abraçando-a sob protestos e beijando-lhe o topo da cabeça. Victoria os olhava com curiosidade e admiração, um sorriso quase imperceptível desenhado no rosto. Aquela era outra garota, ela se recordava aos poucos, e talvez por esse motivo seu menino parecesse mais alegre. Por consequência, ela também se via mais alegre. E logo de cara, não havia como não gostar da garota que ficava praticamente escondida entre os braços dele.
- Voltei! – anunciou, mesmo que não precisasse. – Vica, essa é . .
- Prazer, . – a senhora usou seu melhor tom cordial. – Você é a nova namorada dele?
- Não, não. – apressou-se a garota em dizer. Quantas vezes passaria por aquilo durante o mesmo dia? Seria pior na noite seguinte? – Somos colegas de palco, vamos fazer o casal principal da peça do colégio.
entendeu o sinal verbal que ela acabar de dar para que a soltasse e fingissem serem somente amigos, porém, foi indiferente a ele. Continuou abraçado a ela por trás, como uma criança que segura seu brinquedo favorito. Ele sabia que ela ficaria nervosa ao ser apresentada a qualquer membro da família dele – um em especial –, tinham conversado sobre isso, então quis mostrar que estava perto o suficiente para que ela pudesse desencanar. A princípio, se incomodou com a atitude do garoto, mas notou que não estava gaguejando ou sem saber o que dizer, como diria que faria. A proteção dele não era apenas física, e a garota se sentiu agradecida por isso. E no instante seguinte, não havia o que a fizesse perder o controle de si mesma.
- Ah sim, imagino. – disse Victoria a um assunto qualquer que haviam chegado. – , será que pode me ajudar a escolher? – viu o garoto assentindo. – Esse aqui – ela estendeu um vestido sobre os braços, retirando-o dali em seguida para fazer o mesmo com outro – ou esse?
- O segundo. – respondeu o garoto, encaixando a cabeça no ombro de . – O que você acha?
- Também prefiro o segundo. – a garota concordou, percebendo o olhar examinador de Victoria.
- Tem certeza que vocês não estão namorando? – indagou a senhora, arqueando uma das sobrancelhas. desviou os olhos, preferindo morder o lábio a falar alguma coisa. – ...?
- Absoluta. – ele afirmou, deixando um riso fraco escapar. – Deixe que eu explique: nós somos atores, e atores fazem estudos sobre os personagens, não é? Laboratório é a palavra certa pra isso, se não me engano. Nós vamos interpretar um casal na peça, logo, temos que fazer um laboratório a respeito disso. É só experimental.
Vica balançou a cabeça e riu da resposta dele, como quem diz “Só você, mesmo”. Até riu da resposta criativa do parceiro.
- Tudo bem, então. – disse a senhora. – Vou procurar a vendedora que me atendeu pra fechar a compra, senhores experimentos.
- Vou esperar lá fora. – mal aguardou o consentimento de Victoria para sair e levar consigo. – Pronto, agora já conhece minha quase avó.
- Ela parece mais sua avó de verdade, pelo jeito que falou contigo. – constatou a garota, fazendo-o concordar. – Ah, brigada.
- Por...? – novamente ele pôs a cabeça sobre o ombro dela, dessa vez fechando os olhos por um tempo.
- Por não me soltar quando me apresentou a Vica. – a ouviu responder, enquanto a mão de segurava seu rosto e o acariciava suavemente. – Acho que eu sofreria uma síncope, se não fosse você.
- Claro que não foi nada demais. – ele se virou para beijar a palma da mão dela. – E isso porque minutos atrás você queria me acertar um soco. – lembrou em tom de brincadeira.
- Também pudera, né? – a garota o censurou. – Você tinha tirado aquela hora só pra me encher o saco, sua peste!
- Te irrito porque você cai na pilha fácil, sua bestinha. – mordeu sua bochecha. – Até parece que não me conhece.
- Conheço, mas isso não te faz menos chato. – ela resmungou, dando um tapa fraco na mão dele, que ainda envolvia sua cintura.
- Juvenil.
- Eu não vou cair nessa, .
- Estraga prazeres.
- Você é um amor de pessoa.
- Bipolar.
- Não adianta insistir. – cantarolou a garota, rindo. – Já entendi qual é a sua. Perdeu, playboy.
- Assim não tem graça! – ele reclamou. – Quero te fazer ficar vermelha, mas você não deixa!
- Tente outro dia. – ela o beijou brevemente, um sorriso de satisfação estampado nos seus lábios.
- Com certeza eu tentarei. – sentenciou , tornando a fechar os olhos. Aproveitou o silêncio dos dois para entrelaçar uma de suas mãos à dela. – Ei...
- O que foi? – pelo tom de voz dela, ele sabia que ainda sorria.
- E se eu te chamar de minha?
- ...Sua? Sua o quê?
- Não sei, só minha. – o garoto deu de ombros. – Você e eu sabemos que isso já é verdade há algum tempo, mas assim os outros iam saber também que você é minha.
- E você seria meu?
- Na teoria... – a garota o acertou outro tapa, dessa vez mais forte, fazendo-o rir. – Tá, seria, seria.
- É bom mesmo! – advertiu, girando para vê-lo de frente. – Se é pra ter posse de algo, quero que seja integral.
- Então você é inteiramente minha.
- Não me lembro de ter dito o contrário. – sorriu novamente, antes de beijá-la com carinho e calma. Ela concordava que a história deles era experimental, ainda estava em fase de testes. Por essa razão, não se importou em ser apenas “minha”. Ao menos eles eram algo, mesmo que apenas eles entendessem o que eram. Ela nunca quis que terceiros se metessem, a princípio.
- Tudo isso é felicidade ou é só o seu celular vibrando? – o garoto disse em tom de brincadeira após interromper o beijo, levando-a a rir. – E só pra constar, tô te chamando de gata, não de travesti. Até porque o acessório dos travestis não vibra.
- Para de falar, , por favor! – pediu a garota, gargalhando e alcançando o celular no bolso da jaqueta que usava. – É minha mãe. Deve estar me procurando na praça de alimentação, e eu aqui!
- Diz que você tá no banheiro. – ele sugeriu, o celular ainda vibrando, fazendo som de insetos zumbindo.
- Ela vai me procurar, de qualquer jeito vou ter de ir embora. – concluiu ela, apesar de querer o mesmo que ele.
Contrariado, o garoto se manteve quieto, prestando atenção à conversa de . Teve enorme vontade, quase incontrolável, de tomar o celular da garota e dizer que, no momento, ela estava ocupada com ele. Não era como se precisasse passar horas para matar as saudades dela, porém, alguns minutos a mais para dar uns beijinhos seria de bom grado.
Era mais fácil quando ficava com garotas da sua idade ou mais velhas – a maioria não tinha tanta interferência dos pais, ou, quando tinha, simplesmente ignorava. Essa história de pais presentes o tempo todo e ficar se encontrando escondido só era legal na teoria, já que a liberdade era quase nenhuma. Fora tudo que ele tivera que passar por causa dos pais de – o constrangimento de encontrá-los à porta de sua casa, enquanto esperava a garota, era um exemplo clássico de sufoco, para .
Mas o que ele podia fazer, além de reclamar para si mesmo? Se quisesse estar com sua , devia aturar a interferência dos pais dela.
Assim que desligou, as expressões menos animadas que antes, ele entendeu que ela iria embora sem que se anunciasse a partida. a abraçou forte, encaixando todo seu corpo ao dela. “Você vai ficar com o porque o é legal.” “O é legal, mas a mãe da odeia esperar”, e o som de risos – o dele, sem graça; o dela, bem humorado. Ele demorou até deixá-la ir e admitir para si mesmo que aquilo era o máximo que teria, mesmo que quisesse mais uma vez se deitar com ela. Após aquela noite, nada mais seria igual.

’s P.O.V.

Eu nem precisava dizer que estava ansiosa para minha mãe adivinhar quando me viu pela manhã, antes de me dar carona para escola. Eu nunca sabia muito bem como me acalmar antes de qualquer compromisso ou evento, na verdade, era um pequeno problema desde a infância que eu tinha preguiça de trabalhar – uma das poucas coisas que eu empurrava com a barriga, que fique claro. Acho eu que era de família, da parte materna, pois via minha mãe fazer o mesmo diversas vezes. E logo ela vivia dizendo que eu devia parar com a palhaçada, porque isso era irritante. É como dizem, as pessoas só veem nos outros os defeitos delas mesmas.
Durante a manhã, pelo menos, tive para me distrair durante os intervalos de uma aula e outra e para trocar mensagens nas aulas das disciplinas mais fáceis. À tarde, entretanto, foi mais difícil. Livie não havia dito se iria ou não ao jantar, embora minhas suspeitas fossem praticamente uma afirmação. Ela era amiga da família, Angie era afilhada dos anfitriões – além de também filha de um deles –, não fazia sentido que não fosse convidada.
Eu estava tão, tão ferrada.
Pedi ajuda a , ainda por sms, já que ela continuava de repouso absoluto (o que incluía a proibição de falar) em razão da operação do siso – e mesmo se pudesse, não iria abrir a boca para falar como o Nhonho –, e ela me disse o óbvio que eu ignorava: eu devia contar a verdade a . Como outras opções, eu tinha a de fingir ter dupla personalidade, inventar que estava tendo minha identidade roubada por agentes da Scotland Yard ou tentar convencer Otto e Livie de não comentar nada sobre eu ser a babá de Angie. Entre esta e a primeira, era lógica a minha escolha. Eu só teria de acumular cara de pau para isso, fora a parte de pedir também aos meus pais e Noel para evitarem esse assunto.
Se alguém me dissesse, antes de tudo, que eu teria tantas dores de cabeça agregadas a , talvez eu repensasse a ideia de me envolver. Isso se é que posso dizer que em algum momento pensei sobre. Simplesmente me deixei levar, e olha onde havia chegado. Mas, no fundo, eu preferia essa situação a nada. Estar com tinha lá seu preço, mas não era de todo mal.
Imersa em pensamentos, deitada no sofá da sala com Angie dormindo sobre a minha barriga – coisa que fazíamos diariamente, e não só ela adorava –, ouvi o barulho da porta se abrindo enquanto ouvia Girl nos fones de ouvido. Não precisei me levantar para que a pequena acordasse, uma vez que sua mãe a pegou no colo, porém, um minuto depois ela já tinha voltado a dormir. Ajeitei-me no sofá, observando as duas e tomando coragem para pedir algo tão inusitado.
- Ah, , hoje tem como você esperar um pouco antes de ir? – Livie foi mais rápida que eu. – Tenho um jantar às oito, Otto só vai chegar perto dessa hora, e enquanto isso tenho que me arrumar.
- Oh... – silvei, sem jeito. Ela nem mesmo sabia que iríamos para o mesmo lugar. – Acontece que eu também tenho um compromisso, acho até que vamos pro mesmo lugar, então não vai dar.
- Sério? – a surpresa dela era o sinal claro de que tinham lhe omitido essa parte. Assenti à sua pergunta. – Então... Não quer se arrumar aqui? Você toma o seu banho primeiro, depois fica de olho na Angie enquanto eu tomo o meu.
Na verdade, eu não estava muito a fim, mas ela precisava da minha ajuda e ainda não tinha me pagado – não que isso fosse o mais importante naquele momento. Além do mais, eu poderia usar esse favor para ter uma compensação. Mais uma vez, a situação não era de todo mal.
- Pode ser. – respondi, não demonstrando muito ânimo, mas também sem mostrar má vontade. Livie não precisava saber que era por interesse que eu a ajudaria. – Só vou até a minha casa buscar as minhas coisas e apressar o pessoal de lá. Juro que não demoro.
- Fique tranquila. – ela sorriu por educação, me vendo caminhar até a porta. – Vou aproveitar pra dar um banho no meu anjo.
- Já dei! – avisei antes de sair.
- Sempre esqueço o pequeno detalhe de você ser super eficiente! – Livie me elogiou, e em vez de me sentir bem, fiquei envergonhada e incomodada. Isso de trabalhar para ela estava acabando comigo. Ainda bem que acabaria em breve.
Em casa, quase botei meu quarto abaixo para encontrar o que eu precisava – roupas, maquiagem, acessórios e coisas úteis para levar na bolsa. Minha mãe até interrompeu seu asseio para saber por que eu fazia tanto barulho e bagunça, e apenas disse a ela para não esquentar a cabeça. Meu celular não parava de tocar, pois tinha a mania terrível de mandar trezentas mensagens para responder somente uma minha, fora os “Vai me ignorar mesmo?” quando eu demorava sem avisar o que iria fazer – era o preço a se pagar por passar dois dias sem vê-la; minha melhor amiga era pior que um namorado psicótico.
Meu pai, ao me ver sair com uma mochila nas costas, achou que eu estivesse fugindo de casa e me proibiu de sair sem que desse uma explicação consistente. Durante minha justificativa, pude ouvir os tic-tac na minha mente. Será que eu podia me atrasar mais, por favor? A minha não-sorte era de eu ser a primogênita, porque poderia somente ignorar o interrogatório do meu irmão e dizer que ele era quem me devia satisfações.
De volta à casa de Livie, após montar meu arsenal de corretivo, pó compacto, blush, iluminador e o resto, tomei um banho rápido, já que o penteado era o que demoraria mais. Ao tempo que a dona da casa tomava banho, fiz uma trança e acertei minha maquiagem. Assim que Livie voltou ao quarto, eu só precisava me trocar (estava com roupas mais simples, para evitar desastres). Ela não se incomodou por eu estar no mesmo cômodo e continuou de toalha por ali, finalmente pondo sua muda de roupa sobre a cama e começando a se vestir, puxando assunto comigo, e eu tentava não a encarar fixamente. Seria mais que estranho, se eu o fizesse.
Mesmo assim, não pude não reparar que Livie e eu éramos completamente diferentes no aspecto físico. Suas curvas eram mais acentuadas, seus traços eram de mulher, e mesmo após o parto, ela estava em boa forma – a barriga, é claro, ainda estava grandinha e um pouco flácida, mas era compreensível. Já eu, ainda tinha todo o ar de puberdade. Tudo era proporcional demais à minha idade, exceto minhas atitudes. Porém, elas nunca causavam a primeira impressão, e sim a cara de menina.
- Não vai se vestir? – Livie indagou, pondo sua meia-calça cor de pele.
- Vou, sim. – respondi, pegando minha mochila para ir ao banheiro. – Hm, Livie?
- Diga!
- Que mal lhe pergunte, quantos anos você tem? – precisei saber. Tinha de haver uma razão plausível para tanta desenvoltura, e obviamente era a idade.
- Dezenove. – ela pareceu feliz em responder. Minha reação não foi outra, senão espanto. – Não parece, não é? – balancei a cabeça. – Sempre pareci mais velha, adoro isso!
- Deve ser legal. – comentei roboticamente. Ela tinha dezenove, Otto não parecia ter menos que quarenta. Os dois tinham, no mínimo, vinte e um anos de diferença. Ele podia ser pai dela!
- E é. – ela riu, dando as costas para pôr seu vestido.
Quando eu pensava que não podia me chocar mais...
Decidi tentar esquecer aquilo. Na teoria, eu não sabia de nada. Coloquei meu vestido, blazer e, por fim, sapato. Olhando meu reflexo no espelho, fiquei satisfeita comigo mesma. Eu não era uma Livie, mas tinha dado destaque aos pontos certos para parecer mais mulher.
Logicamente, recebi um banho de água fria quando vi Livie pronta. Ela sempre estaria um passo à minha frente no quesito beleza. Instintivamente, senti inveja dela – impossível não o fazer. Peguei-me imaginando quantos caras por dia paravam o que estavam fazendo para vê-la passar. Ela podia ter quem quisesse com um estalar de dedos, eu nem em sonho faria o mesmo. E se ela conseguia qualquer um, poderia ter aos seus pés. O meu . O pior era que, além de tudo, era ela quem fazia o tipo certo dele.
Em um tempo curto demais para eu contar, a inveja se tornou insegurança e ciúme. Eu não queria estar no mesmo ambiente que a beauty queen, nem que estivesse lá também. Sabe-se lá há quanto tempo eles se conhecem e o tamanho da intimidade dos dois. Aliás, a hipótese de os dois algum dia terem se relacionado de qualquer forma me deixava apavorada. Se algo acontece uma única vez, há chances de nunca mais se repetir; no entanto, se acontece duas vezes, é possível que se repita três ou mais. E eu duvidava muito de que, se houve realmente algo, tenha sido um fato isolado. nunca se satisfazia com só um beijo, digo por experiência própria, e Livie... Bem, confiável não era um adjetivo adequado a ela.
Foi naquele exato momento que um alerta soou em minha mente. Eu tinha tentado, mas depois de saber quem Livie era, não podia mais continuar convivendo com ela e fingir que tudo estava bem e eu não sabia de nada. Definitivamente, iria me demitir e apagar da cabeça minhas últimas descobertas, como numa queima de arquivo: as informações eram destruídas e ninguém as coletaria. Seria até um alívio, pois minha vida voltaria aos eixos.
Depois da rápida ligação que fiz entre uma coisa e outra, tinha reunido coragem suficiente para pôr em prática minha decisão.
- Então, já tá pronta? – Livie novamente foi a primeira a falar, assim que me encontrou na sala. – Estamos! – guinchou, animada, segurando uma das mãozinhas de Angie no ar. – Ah, e você não me disse que iria pra casa do Otto. Ele te convidou também?
Podia ser imaginação minha, mas percebi um interesse diferenciado no tom de voz dela. Se por acaso estivesse imaginando que Otto e eu tínhamos o que quer que fosse, estava redondamente enganada. Eu me dava ao respeito.
Ao contrário de umas e outras por aí...
- Não... – respondi, tentando manter o foco. Eu tinha de levar a conversa à minha demissão. – Na verdade, Susan, a esposa dele – dei ênfase ao título –, me convidou. me disse que sou uma das principais convidadas.
- Jura? – seus enormes olhos cor de piscina se abriram mais que o normal. – Então você é a nova namorada dele?
- Não estamos namorando. – corrigi, apesar de querer muito dizer que sim, para impor minha posição. – Estamos na mesma peça de teatro do colégio, seremos os protagonistas.
- Que coincidência! – ela, então, se mostrou mais flexível.
- Você não sabe o quanto... – disse baixo, mais para mim que para ela. – A propósito, queria pedir a você e Otto para não contarem que sou a babá de Angie, por favor. não sabe, eu não ia gostar que ele descobrisse por terceiros.
- Sem problemas. – Livie concordou prontamente. Era a oportunidade perfeita para me dispensar. – Otto já deve estar por chegar, eu aviso a ele também.
- Brigada. – sorri sem dentes, apenas por cortesia.
“Go! If you’re wondering if I want you to, I want you to...”
Peguei o celular de má vontade por ele ter me interrompido. Era quase certeza de que tinha recebido uma mensagem de , contudo, o visor mostrava o número de casa.
- Venha nesse exato momento, estamos saindo. – ordenou minha mãe de imediato, sem nem esperar meu “Alô”.
- Mas já? Que horas são?
- Vinte minutos pras oito. – respondeu ela, com o mesmo timbre de voz. – Anda logo, não quero chegar atrasada.
Droga.
- Tudo bem, tô aí em dois minutos.
- É bom que esteja, ou saio sem você.
Ela não cumpriria com a palavra, mas eu não arriscaria ser deixada em casa. Expliquei a Livie o porquê de já estar indo e não poder pegar carona com Otto, como ela queria. Logo após, juntei meus pertences e corri (de salto alto!) para casa, de onde parti depois de somente ter tomado um copo d’água. “Você descansa no caminho pra lá”, disse minha mãe. Não sabia por que ela andava tão estressada, mas esperava que fosse passageiro. Caso contrário, seria só mais um fator que faria a noite ser longa.


Capítulo 27

’s P.O.V.

Havia passado o dia com Vica e Jonsey. O tal Stephen não tinha dado nem sinais de que viria, pra minha felicidade. Não queria mais testosterona na minha casa, o nível por metro quadrado já estava no limite, contando com todos os convidados de Susan. Sem contar o serviço de Buffet, cujo chef era um italiano com sotaque irlandês e os garçons todos pareciam ter vindo da Guatemala ou Suíça. Deviam ser de mais uma dessas agências de terceirização que contrata imigrantes para pagarem menos, vai saber. Desde que não cuspam na comida, não é problema meu.
Susan estava tão tensa quanto na véspera, recebendo ligações do escritório a cada minuto, ainda tento que se preocupar com a instalação da cortina de luzes na sala externa de jantar e o forro vinho que ficaria sobre o chão da garagem, que tinha se tornado um salão de reuniões – os carros ficaram todos estacionados à calçada mesmo –, com mesas unidas, formando um grande “U” e cadeiras forradas com tecido branco. O jardim estava sendo irrigado, após algumas horas sob manutenção. Todos os empregados estavam de plantão, exceto Victoria e Jonsey, que trabalhavam somente na casa de praia e estavam proibidos de sair da sala de TV sem minha autorização, já que eram convidados e eu não os deixaria arrumar nada além de si mesmos.
Pedi a Elizabeth para que me liberasse um pouco mis cedo do ensaio, o que ela concordou na hora e dispensou todo o resto do elenco – alguém ia aproveitar bem o tempo livre. Passei as horas livres jogando Poker com os agregados da família – “empregados” era formal demais, eles eram praticamente meus parentes, de tanto tempo de convivência – ao som de Rolling Stones, pois Vica queria algo que combinasse com a situação, fora que ela nunca foi fã de Beatles e quase me xingou quando ameacei pôr o disco dois do White Album pra tocar. Acabei perdendo todas as partidas de lavada, no Black Jack também. E eu que jurava que era um bom jogador, pelo menos entre os meus amigos.
No intervalo entre uma partida e outra, ofereci – por livre e espontânea pressão de Victoria – ajuda a minha mãe, que me respondeu com acenos de mão e cabeça e palavras desconexas. Melhor pra mim, continuaria descansando até a hora de receber os convidados. Não que eu não me importasse, só estava com preguiça demais para ficar andando para lá e para cá. Fora que estar com Jonsey e Victoria já era uma tarefa de grande responsabilidade – os dois já tinham seus sessenta anos, mas eram birrentos como crianças e demoraram muito a se acostumar com a ideia de que não fariam nada.
Mais à noite, enquanto todos se arrumavam, Vica mais uma vez me fez ir até minha mãe, mas agora eu concordava que Susan devia deixar o telefone desligado, parar de montar guarda na cozinha e ir tomar um banho. Afinal, era por causa dela que todos estariam ali, não seria educado que fosse a última a aparecer. Então, aproveitando a brecha, Victoria usou a desculpa de que eu era muito novo e não entendia das coisas, por isso ela deveria tomar a frente dos últimos detalhes – eu sabia que ela não aguentaria ficar sem fazer nada por tanto tempo.
Mal havia percebido as horas passando, e só soube que eram oito quando os primeiros convidados chegaram pontualmente. Era aquela parte que eu mais odiava: recepcionar, fazer sala, sorrir até para quem eu não conhecia até os músculos do rosto doerem. Torcia com impaciência para que Susan aparecesse logo e me tirasse de lá, ou que Otto voltasse logo da casa de Livie, que precisava de carona, e tomasse meu lugar, já que os conhecidos da minha mãe eram os mesmos conhecidos dele. E essa pequena espera era o que fazia os minutos serem mais longos.
Depois de indicar várias vezes onde ficariam os casacos e as bolsas, onde estavam as mesas e puxar assunto de forma mecânica (“Boa noite, bem-vindos! Como vão?”), e Emma finalmente chegaram para me distrair, ao menos. Ele já sabia da chatice que era ficar recebendo as pessoas, mas Emma não, por esse motivo, quando ele dava evasivas para sair, ela o censurava e dizia que ficariam até que eu pudesse ir com eles para a mesa. Nessas horas eu realmente amava Emma!
Quando me perguntavam sobre Susan, eu dizia “Ela já deve estar descendo” e olhava para o relógio instantaneamente. Ainda não tinha passado mais que quinze minutos ali, porém pareciam dez décadas.
Já mencionei quanto odiava recepcionar?
- Uma pergunta de conhecimento geral... – disse Emma, sentada num dos bancos do bar, enquanto eu podia lhe dar atenção, já que a campainha não estava tocando ou ninguém batia à porta. – Por que todo mundo pergunta só pela sua mãe?
- Todo mundo só pergunta por ela? Mesmo? – franzi a testa, em seguida vendo-a assentir. – Não tinha reparado isso.
- Vai ver é porque ela é mais gostosa. – provocou. – Aliás, você sabe se ela ainda tá no banho? – se levantou rapidamente, dando a entender que iria a algum lugar. – Onde é o banheiro?
- Mais um passo e você só vai tomar um. – cortei sua brincadeira, mostrando não ter achado graça. Ele entendia muito bem o que era esse um. Não era porque, segundo ele mesmo, Susan era o tipo MILF* que ele iria ficar falando dela como uma qualquer. Ainda mais na minha frente.
- Dois. – Emma semicerrou os olhos para ele, que riu. – E isso não é uma piada.
- Eu sei, gatinha. – a abraçou e lhe deu um selinho. – Só tava enchendo o saco do , você sabe.
- Já pode parar agora mesmo, se quiser. – ela sorriu com cinismo, parecendo brava.
- Você sabe que no meu mundo só tem você. – ele tentou se desculpar, fazendo palhaçadinhas pra ela.
- Pena que seu mundo é compartilhado, né?
- É... Eu não tô morto, sabe como é... – ele riu pra mim, recebendo um tapa. Balancei a cabeça, levantando do sofá ao ouvir a campainha tocar mais uma vez. Era .
- Boa noite, bem-vindos! Como vão? – disse automaticamente, sorrindo por vontade própria, dessa vez.
- Boa noite, . – ela respondeu, rindo pelo meu tom de voz. – Você já conhece meus pais, não é? – apontou para os dois ao seu lado. O sr. estava amigável quando o encarei.
- Conheço, sim. – assenti enquanto estendia a mão para cumprimentá-lo. – Fico feliz que os senhores estejam aqui. Boa noite, Noel.
- Oi. – já este, não parecia muito animado por estar ali. Se não fosse irmão da e importasse tanto pra ela, eu o ignoraria sem hesitar.
- Entrem, por favor. – dei passagem a todos; foi a última a entrar.
- Quase não o reconheci. – murmurou ela enquanto passava por mim. – Você tá muito bonito, de verdade.
- Brigado. – sorri, lisonjeado. – E eu não vi ninguém que chegasse à sua altura, hoje. – segurei seus dedos por um breve momento, vendo-a sorrir e agradecer. Me virei para seus pais, soltando sua mão delicadamente. – Desculpem por eu não poder acompanhar vocês até a mesa, mas e Emma podem, não podem?
Dei um olhar significativo para os meus amigos, que concordaram, levantando-se. Os pais e irmão de os seguiram, deixando os casacos com , que entrou na biblioteca para guarda-los. – que disse que iria em alguns minutos – e eu os observamos até que eles sumissem no fim do corredor. Passei o braço ao redor de seus ombros, trazendo-a para mim e lhe dando um beijo rápido.
- Você fica muito bonito de batom nude. – ela riu, limpando meus lábios com o polegar.
- Brigado, mais uma vez. – ri também, fazendo seus esforços serem inúteis ao beijá-la de novo.
- Lembre-se que tenho que chegar ainda maquiada à mesa. – comentou, afastando-se um pouco (não o suficiente para que se soltasse dos meus braços).
- O banheiro é no corredor, primeira porta à esquerda. – informei, fazendo menção de puxá-la mais uma vez. – Seu pai não parecia querer me matar quando abri a porta, o que houve?
- Ah, isso... – ela soprou um riso. – Não adiantava sondar meu pai, então fui direto ao ponto e disse que aquele dia não houve absolutamente nada. Você tinha me levado pra casa e me fez companhia, só.
- Até porque a casa cheia não é nenhum problema pra nós dois... – disse baixo, mais para mim que para ela.
- Se um dia ele sonhar que fizemos uma coisa dessas debaixo do nariz dele, aí, sim, você é um homem morto. – concluiu , pressionando meu peito com o indicador ao dizer “homem morto”. – E também, voltando ao assunto, você sabe que minha mãe simpatizou contigo. Ela acha que você é o genro querido dela.
Ri, um pouco sem jeito. Não podia negar que era para não criar um clima estranho, mas também não iria assumir, porque, bem, eu não era. Deixaria subentendido, ela que me interpretasse.
Ouvimos o som de passos na escada, então nos afastamos. Susan apareceu segurando a barra do vestido com a mão esquerda, os cabelos soltos e ondulados sobre os ombros; não estava de óculos, seus olhos estavam bastante destacados. Ela parecia mais nova, mais feliz, mais viva. Havia uma áurea ao seu redor que deixava sua presença mais suave.
- Desculpa ter que te informar isso – comentei pra –, mas você acabou de perder seu posto.
- Eu te dou toda razão, relaxa. – ela me respondeu, olhando na mesma direção que eu.
- Ah, , você já chegou! – Susan veio em nossa direção, sorrindo. – Perdão pelo atraso, fiquei até o último minuto coordenando tudo e acabei tendo que me arrumar às pressas.
- Se isso é o seu se arrumar às pressas, não preciso saber como é quando a senhora se arruma em tempo, vou me sentir humilhada! – brincou, mas eu sabia que tinha um fundo de verdade. Minha mãe estava radiante. Dava até orgulho de dizer que ela era minha mãe.
- Que isso, menina! – Susan riu abertamente, tocando o ombro de . – Você também está muito bonita! Aliás, os dois estão combinando.
Olhei rapidamente para a minha roupa em ato-reflexo, em seguida para , que fez o mesmo. Quando nos encaramos, cada um fez sua cara de “Do que ela tá falando?”, balançando a cabeça para os lados. Mães...
- Hein, alguns dos seus amigos já chegaram. – anunciei, mudando de assunto. – Eles já estão na garagem, nos fundos... Ah, naquele lugar que você transformou.
- E os garçons já distribuíram o menu?
- Não sei, não saí daqui até agora. – deixei que ela notasse a indireta. – e Emma foram pra lá, mas não sei se voltam pra dizer.
- Provavelmente não, conhecendo . – Susan disse, soando exatamente como eu. – Vocês se importam de ficar mais um tempinho aqui, só enquanto eu cumprimento quem já chegou e vejo se tudo tá nos conformes?
- Vica não vai te deixar chegar perto da cozinha, melhor nem tentar. – me dei por vencido. Já estava ali mesmo, mais uns minutos não me matariam.
- Eu dou meu jeito. – minha mãe piscou para mim. – É um prazer te ver de novo, . Seus pais vieram? – apenas assentiu. – Ah, que ótimo! Quero muito conhecê-los.
- Digo o mesmo por eles.
- Enfim, é melhor eu ir. – batidas à porta. – , atenda a porta. Eu juro que não demoro!
Concordei em silêncio, dando as costas para as duas. fez menção de sentar-se, e eu abri a porta. Passamos cerca de vinte minutos nessa de senta, levanta para cumprimentar, senta pra conversar, levanta... Até que eu não precisei abrir a porta, pois Otto foi quem chegou, com Livie e Angie.
- Cheguei! – Livie fez voz de criança, como se falasse por Angie, vindo até e eu. – Hey, ! Quanto tempo não te vejo.
- Desde que você se mudou, não faz tanto tempo assim. – recordei, dando-lhe um beijo no rosto e fazendo o mesmo com a baixinha. se levantou também, pondo-se ao meu lado. – Livie, essa é , que vai apresentar a peça comigo. , essa é Livie, uma grande amiga minha.
- A gente já se conhece! – Livie sorriu, me olhando como se eu fosse retardado. Franzi a testa, esperando uma explicação.
- Nós moramos na mesma rua. – rapidamente explicou. – Sabe como minha mãe é uma simpatia de pessoa, pra não dizer fofoqueira, ela foi logo querer conhecer a nova moradora.
- Sim, sim. – assentiu Livie, daquele jeito engraçado que ela fazia. Fiquei surpreso pela notícia, afinal, já tinha ido à casa de e não havia me ligado de que o nome da rua dela era o mesmo que estava no endereço que Livie tinha deixado com a diarista. Era uma coincidência grande, e se eu não soubesse que as duas nem sonhavam com a existência da outra antes da chegada de Livie em Londres, diria até que havia sido combinada.
A duas, aliás, pareciam bastante chegadas. até mesmo tinha um apelido para a baixinha, Angelique. Enquanto Livie ajudava Otto com a bolsa de fraldas de Angie, segurava a bebê e falava aquelas coisas típicas que dizemos às crianças de colo. Elas deviam ter se tornado amigas nesses dias em que se conheceram, talvez. Até Otto cumprimentou como se já a conhecesse. Aquilo tudo era, no mínimo, inusitado.

’s P.O.V.

Eu nunca tive preconceito com loiras, mas Livie tinha feito jus à loirice. Se eu não tivesse pensado rápido – na verdade, já tinha imaginado uma cena dessas e ensaiado na minha mente o que diria –, teria de dar explicações que eu andava evitando até então. Ao menos pareceu entender e aceitar a minha explicação, que não era nada além da verdade (com partes omitidas), e não fez mais perguntas sobre aquilo.
Otto, então, subiu para guardar a bolsa relativamente grande que Livie trouxera para Angie. Talvez elas passassem a noite por ali mesmo, não sei, mas não eram só fraldas que tinha ali. Tal observação me fez pensar mil coisas sobre os dois – Otto e Livie – que me forcei a esquecer. Eu não tinha mais nada a ver com aquilo. Desde o princípio, nunca tive. A vida extraconjugal de Otto era assunto dele, a única pessoa que me importava era Angie. A pequena e linda Angie, consequência de um ato digno de desprezo. O contraste da doçura dela com as circunstâncias a que ela veio a nascer era triste, mas ela não tinha culpa por nada daquilo.
- Que foi, ? – perguntou, parado à minha frente, me encarando de forma engraçada. – Você parecia triste de uma hora pra outra.
- Eu? – respirei fundo, mudando minhas expressões. Tinha deixado transparecer o que toda a atual conjuntura me causava, droga. – Impressão sua. Só fiquei... não sei, emocionada, eu acho. Bebês me deixam de coração mole, e Angie é tão fofinha, tá dormindo tão tranquila...
- Ela é igual ao pai. – disse ele, me fazendo arregalar os olhos. Mas então...? – Não, eu não sou o pai, é brincadeira!
- Ah, sim! – tornei a soltar o ar. Precisava logo mudar de assunto, antes que surtasse. – Livie, quando for, pode avisar aos meus pais que vou ficar aqui com mais um tempinho, por favor?
- Claro, querida! – ela sorriu, como sempre quando falava comigo. Eu já estava incomodada até com a simpatia dela. Tinha criado aversão a Livie. – Seu pai me disse que Vica tá aqui. – disse ela a .
- Aham, na cozinha. – ele confirmou. – Ela tá impedindo que Susan termine de surtar com esse jantar. Eu nem sei o que a gente vai comer, na verdade.
- Falaram de mim? – a sra. apareceu no corredor. Não pude deixar de comparar Livie e ela, e era mais que óbvio qual era a minha favorita. – E essa coisa lindinha da madrinha, hein? Deixe-me segurá-la, porque eu estou morrendo de saudades!
- Cuidado, ela tá dormindo. – Livie nem mesmo se abalava com Susan tratando tão bem a filha bastarda do próprio marido.
- Eu carreguei vocês dois no colo – Susan se referiu a Livie e , tomando Angie dos meus braços –, pegar um bebê enquanto ele dorme já é minha especialidade.
As duas riram, como se nada acontecesse por baixo do tapete. Livie tinha a cara de pau de encarar Susan, depois de tudo. Eu ficava enjoada só de ver – Quanto sangue frio, quanta hipocrisia! Minha cabeça estava um nó – Como ela conseguia? Como podia...?
- , preciso de ar. – sibilei, me controlando para não fazer nada insensato. Se ficasse ali por mais tempo, era capaz de dizer o que não devia. – Vamos sair daqui, por favor.
- Você tá bem? – neguei com a cabeça, em vez de dizer “Não, seu idiota”. Ele não tinha culpa pela raiva reprimida que fazia até minha bile borbulhar. – O que você tem?
- É só um mal-estar, vai passar. – tentei não o deixar preocupado, afinal, aquilo era só uma desculpa para sair de perto de Livie.
- Hm, ok. – concordou ele, depois de me examinar por uns instantes. – Vem comigo, vamos pro jardim. – pegou minha bolsa, que eu tinha deixado sobre o sofá no meio daquele senta e levanta, e estendeu a mão para mim. – Já voltamos.
- Não demorem, daqui a pouco o jantar vai ser servido. – Susan alertou, sem nos olhar. Meu coração se apertou por vê-la tão interessada, embalando a personificação da traição do seu marido.
Toda a história dos me fazia refletir sobre diversos pontos, inclusive o certo e o errado. A falta de caráter cercava Susan de tal forma que a aprisionava, e ela nem mesmo notava o quanto estava sendo enganada. Ela tinha dinheiro, uma carreira de sucesso, mas sua vida pessoal parecia inundada. Se soubesse o que se passava, esqueceria as desavenças para apoiá-la. Mesmo que ele não me dissesse ou demonstrasse, eu sabia que ele odiava ver alguém próximo sofrendo qualquer tipo de injustiça ou problema. Eu vi, eu tive seu zelo à mostra quando acabei me expondo e desprotegendo a ferida que escondia dos outros desde nova. Tinha absoluta confiança de que ele faria o mesmo por sua mãe.
E eu queria ser quem o alertaria de que Susan precisava dele mais que nunca. Quem infelizmente traria a má notícia, mas que, ao mesmo tempo, estaria lhe fazendo um enorme favor. Mas, naquele momento, eu não tinha reunido coragem o suficiente para aquilo. Não podia fazer aquilo, na verdade. Não na frente de dezenas de pessoas, arruinando e fazendo e sua mãe passarem pelo ridículo. Era um inferno ter uma notícia que mudaria a vida de alguém da água para o vinho e não poder fazer nada. A sensação de impotência me fazia me sentir uma inútil. Eu mal estava na vida de e já tinha o poder de estragar seu futuro, mesmo sem querer.
Meu Deus, como eu odiava o destino!
Transtornada, não disse uma palavra desde que saíra da sala. pareceu respeitar meu espaço e não perguntou se eu já tinha melhorado ou o que havia comigo de verdade. Permaneceu ao meu lado, mudo como eu, segurando minha mão sem dar sinais de que a soltaria enquanto não fosse necessário. Era exatamente esse tipo de atitude que eu sabia que ele teria com Susan. Era o que eu mais gostava, vindo dele. Do jeito de ser, ele vinha se mostrando uma ótima pessoa.
- Brigada. – interrompi o silêncio, me sentando no banco debaixo da árvore. O jardim novamente estava todo iluminado, então tive de manter meu rosto baixo para que ele não visse nada através dos meus olhos.
- Não foi um favor. – me censurou. – É obrigação minha te fazer se sentir bem dentro da minha casa, . Não seja boba.
Ri sem humor, mexendo na ponta da minha trança. Não fazia a mínima ideia de que assunto puxar, já que na minha cabeça só rondava um, e ele não era o melhor a se falar.
- Posso te fazer uma pergunta? – ele falou, me fazendo o encarar meio de lado. – Como foi o acidente? – arqueei a sobrancelha, não entendendo do que ele falava. – Com Noel.
- Ah... – engoli em seco. Ele já sabia, eu entendia que sentisse curiosidade para saber detalhes. E mesmo que eu odiasse comentar sobre isso, devia a ao menos uma verdade. Ainda que ela doesse e me fizesse respirar bem fundo antes de dizer. – Ele ainda ia fazer sete anos, e eu tinha feito nove havia pouco tempo. Estávamos sozinhos dentro de casa, minha mãe estava na casa de uma amiga e meu pai, na garagem, fazendo alguma coisa no carro. Já te disse que meu pai é fotógrafo e me ensina o básico. Comecei a aprender com sete, porque ele achava que era importante a gente desenvolver algum talento desde pequeno. – expliquei essa parte sem muito entusiasmo, não interessava muito. – Enfim... tinha ganhado uma câmera profissional novinha, mal tinha usado. Noel queria aprender a mexer, mas como eu tinha medo de estragar, não deixei. Naquele dia, enquanto eu tomava banho, ele entrou no meu quarto e pegou a câmera, e enquanto tentava armar, deixou cair e a lente acabou quebrando. Eu não ouvi nada porque sempre tive mania de ouvir música alta durante o banho, mas assim que saí e vi o meu presente recém-ganhado no chão, em pedaços, fiquei de cabeça quente e fui atrás de Noel. Ele começou a correr, eu fui atrás e, perto da escada, o empurrei.
Cheguei a pensar que teria mais uma reação extrema ao lembrar e verbalizar aquele dia, contudo, notei que o fato de já saber me reconfortava, de certa forma. Ele sabia que eu não tinha a intenção, por mais que as consequências tivessem sido gravíssimas e eu carregasse o fardo de ser a culpada por aquilo. Sabia que, se eu pudesse, voltaria no tempo e faria diferente.
- Eu não tinha ideia de que aquilo fosse o deixar cego. – continuei; parecia bastante atento. – Estava nervosa, era uma criança, queria descontar a raiva que estava sentindo. Se eu soubesse o quanto aquilo iria me assombrar pelo resto da vida, com certeza teria pensado duas vezes.
- Te entendo. – ele pegou minha mão, entrelaçando nossos dedos.
- Não, não entende. – ao contrário de me fechar, como todas as vezes, eu sorri. De modo triste e sem significado, mas o fiz para mostrar a que agradecia sua compreensão. – Você não causou a cegueira do seu próprio irmão. Não o viu no hospital, inconsciente por dias seguidos, torcendo pra que ele ganhasse a luta contra a morte.
- Eu nem tive a chance de ver meu irmão no hospital. – o ouvi rebater, me surpreendendo. – Você ainda tem Noel, pelo menos.
- Quer dizer que Leonard... – não consegui completar a frase, tomada de assalto pela confissão dele.
- É. – ele assentiu. – Foi exatamente no mesmo ano do acidente de Noel.
- Por que você nunca me disse? – fui obrigada a perguntar, uma vez que ele tinha me contado de Leonard, mas não que ele estava morto. Deus, o tanto de coisas que passava não era justo. Eu mal podia conter a empatia que me assolava naquele exato momento, com tudo que processava na minha cabeça sobre a vida de . – Não que você devesse, mas podia ter me dito na vez que eu te perguntei sobre seu irmão. – ele deu de ombros. – Meu Deus, me sinto uma idiota, agora!
- Não se sinta, você não sabia. – riu fraco, acariciando minha testa com o polegar, dando um beijo no local em seguida. – Eu não queria que você ficasse exatamente desse jeito, se soubesse.
- Ah, desculpe, esqueci que sou a senhora previsível, pra você. – ironizei, revirando os olhos. – É uma reação normal, qualquer um se espantaria ao descobrir que o irmão mais velho que mora longe, na verdade, não existe mais.
- Eu prefiro não causar esse impacto. – ele se encostou no apoio para braço do banco, virando-se para mim. – Ultimamente tenho evitado levar meus problemas pessoais pra fora de casa. É o tipo de coisa que você deixa escondida debaixo da cama, sabe?
- É legal saber que você não quer que eles interfiram na sua vida, mas se alguém se torna ou quer se tornar parte dela, é importante que você compartilhe.
- Me disseram uma vez que estavam namorando os meus problemas, não a mim. – seus olhos desviaram dos meus, demonstrando a vergonha dele. Segurei seu rosto em minhas mãos, beijando-o delicadamente.
- A pessoa que te disse isso não soube ver que você estava ali, bem na frente dela, fazendo todo o possível pra ser notado por trás de tantas coisas ruins que vinham se acumulando na sua vida. – disse contra os seus lábios, ainda de olhos fechados. – A minha sorte é que a Allison cedeu gentilmente a vez dela pra mim – ouvi seu riso baixo –, e eu tô aproveitando você muito bem.
- Como você sabe que era a Allison?
- Chute certeiro. – respondi, me afastando ao ouvir o celular tocar dentro da bolsa, que logo abri para ver o que era. – Mensagem de .
- O que diz? – tentou ver por cima, mas não conseguiu ler de cabeça para baixo.
- “Como vai o jantar de noivado?” – imitei a voz da minha amiga, rolando os olhos e digitando uma resposta. – Ela tá com ciúmes de você, porque você tem passado mais tempo comigo que ela.
- A culpa não é minha se ela resolveu tirar o siso. – ele ergueu as mãos em sinal de inocência, me levando a concordar. – O que você respondeu?
- Venha, se quiser saber. Não iremos anunciar enquanto você não estiver aqui.
- Ela vai te xingar. – advertiu, ainda que eu soubesse disso melhor que ele.
- Não mandei ninguém implicar comigo. – desliguei o celular, devolvendo-o para a bolsa. – Acho melhor a gente ir pra mesa, sua mãe disse que em breve o jantar seria servido.
- Ainda não são nove horas, o buffet se programou pra servir o jantar depois de uma hora, só. – me esclareceu, não movendo um dedo do lugar em que estava.
- Não seria muito educado chegarmos em cima da hora, . – estendi a mão à minha frente, indicando que devíamos ir. – Além do mais, viemos aqui porque eu precisava de ar, mas olha! – me levantei e pisquei algumas vezes para ele, fazendo-o rir. – Já tô muito melhor!
Ele se manteve na exata mesma posição, com cara de cansado – o que eu sabia que ele não estava, pois tinha me contado enquanto esperávamos Susan que passou a tarde inteira jogando.
- Por favor... – resmunguei, revirando os olhos. , então, levantou-se de má vontade. – Doeu? Você sofreu algum trauma? Sequela?
- Não vou nem te responder. – fingiu mau humor, me esperando dar o primeiro passo.
- Você fica uma gracinha, nervosinho desse jeito! – brinquei, apertando suas bochechas e fazendo seu rosto balançar para os lados. Ele fez cara de tédio, e eu lhe lancei um beijinho no ar, começando a caminhar assim que o soltei. – Vem logo, meu .
Olhando para trás, vi seus lábios se erguerem de leve em um dos lados, amenizando as expressões de seu rosto. tinha gostado. Eu só torcia para que não pedisse para eu começar a chamá-lo dessa forma sempre. Seria melação demais pra mim.

’s P.O.V.

Os pais de estavam, intercalados por duas cadeiras, ao lado de Susan. Do outro lado da minha mãe estavam Otto, Livie – Angie logo atrás, deitada em seu bebê conforto –, Victoria e Jonsey. Os outros convidados estavam espalhados aleatoriamente pela mesa, já que depois todos iriam confraternizar, na teoria. tinha a cara de tédio de sempre, o que me fazia me perguntar por que ele vinha todas as vezes, se odiava. Pela nossa amizade que não era, desconfio que a razão fosse simplesmente a comida. Ao seu lado também havia duas cadeiras vagas, que eu julguei ser de Emma e mais alguém que tivesse ido ao banheiro.
Só não contava que esse alguém fosse Allison.
Foi então que me lembrei de tê-la convidado. Porém, quando o fiz, achava que ela não viria pelo fato de todas as vezes que acabássemos sozinhos, brigávamos. E tendo dois amigos em comum que se namoram, não seria muito difícil algo do tipo acontecer. Fora que ela deveria imaginar que estaria ali, não deveria?
Pensando bem, não, não deveria. Ally sabia que eu tinha certo bloqueio na hora de apresentar as garotas com quem saía para alguém da minha família. Tinha sido a mesma coisa com ela. Não que eu ficasse nervoso, gaguejasse ou suasse frio, mas não costumava deixar as pessoas serem tão íntimas. Eu preferia ter o tipo de amizade superficial com as pessoas, aquela que você só mostra seu lado legal, divertido e que gosta de sair; chegar ao ponto de levar alguém até os meus pais precisava de toda uma passagem pela minha vida, explicar o que acontecia, o que já acontecera... E a princípio, eu não comentava sobre esses assuntos. Só com quem já convivia comigo há mais tempo. era uma exceção, porque em um mês ela já sabia praticamente tudo sobre mim. Allison não sabia disso, não podia adivinhar.
- Oh não, diz que é brincadeira. – murmurou assim que viu Allison aparecer com Emma em seu encalço.
- Sinto te dizer que não é. – respondi, olhando para . – E sinto ainda mais te dizer que vou ter que ir até lá. Seria bom se você viesse.
- Você sabe que eu não suporto essa garota, . – ela disse, séria. – Não vou até lá pra ela ficar me olhando com cara de nojo.
- Isso realmente te importa? Ela não é nada na sua vida. – argumentei. Não era como se eu estivesse forçando a barra para que elas começassem a conversar, mas eu não podia ignorar Allison, porque, afinal, eu a convidei. E seria óbvio demais que a teria ignorado, se fosse sentar-se. Susan ficaria dando chilique no meu ouvido, no fim da noite, como sempre, quando um dos meus amigos não cumprimentava alguém. Ela era extremamente exigente quanto a esse detalhe, marcava em cima de verdade; talvez por esse motivo não gostasse de vir.
- Não na minha, mas na sua. – retorquiu baixo. – E, aparentemente, eu faço parte dela agora, não?
- Vai fazer chantagem emocional, agora?
- Não é chantagem, eu só não quero ter de falar com Allison. – respondeu, desviando o olhar. – Da mesma forma que você não gosta de falar com . Acho que não preciso de uma justificativa pra isso, já que você entende bem a minha situação.
Fiquei calado, esperando que ela cedesse pela minha insistência muda, mas continuou inflexível. Eu teria que ouvir Susan falando no meu ouvido porque a nova queridinha dela não é tão educada assim.
- Tá, que seja. Faça o que você quiser. – bufei, antes de caminhar em direção a Emma, e Allison.
- Agora você sabe como eu fico. – ouvi dizer num tom mais alto, revirando os olhos. Era completamente diferente.
- Hey, . – Ally me disse com um sorriso de orelha a orelha. – Por que não veio até aqui?
- Você sabe tão bem quanto eu. – falei, olhando para o centro do “U” de rabo de olho. respondia algo a sua mãe, provavelmente onde estávamos, evitando olhar na minha direção. – Enfim... Parece que você conseguiu um vestido a tempo. Não precisava todo aquele estresse, viu?

’s P.O.V.

Era para ser uma noite agradável, para eu não pensar em preocupações e me sentir confortável. Mas de um lado havia uma pessoa-problema, e do outro, um problema inteiro. Claro que existiam outras pessoas, que muitas delas eram incríveis, como vim a saber quando as conheci, porém, a velha história da maçã ruim que apodrece todas as outras estava sendo muito semelhante ao jantar. Eu me esforçava bastante para não reparar em Otto e Livie, contudo, só o fato de eu saber deles dois já mudava a minha perspectiva, logo, qualquer coisa que eles fizessem seria vista com outros olhos, por mim. Também tentava não dar importância ao fato de ter de dar atenção a Allison e ela perceber que eu me incomodava com sua presença, por isso o tempo todo o chamava para conversarem a sós, mostrando bastante intimidade. Ela era a ex dele, era passado. Eu estava com , eu era o presente dele. Mas ele parecia estar dando mais atenção ao que já passou e me deixando em segundo plano.
Talvez fosse paranoia minha, porque quando estávamos no colégio eu mal o via conversando com a Lewis, e agora estava tendo uma mostra do fato de que ex-namorados podem, sim, ser amigos. E ela era como Livie, uma concorrente acima das minhas qualidades, quase uma mulher formada, conhecia mais que eu... Era difícil controlar as emoções que ela causava propositalmente em mim. Allison sabia que qualquer coisa vinda dela me tiraria dos eixos, então jogava pesado. E eu ficava lá, me sentindo excluída do mundo de , já que era a única que não interagia com ninguém – meus pais conversavam com Susan, bastante animados; até Noel tinha arrumado com quem falar, o tal Jonsey, pai de Livie.
Minha preocupação não era Allison estar com , mas fazer com que eu não fosse mais tão interessante para ele. Estava novamente com aquele medo irritante, insistente e que não sabia de onde vinha de não ser mais a “minha . O fato de ter de guardar esse misto de mágoa, insegurança e receio o fazia crescer exponencialmente. Eu não podia causar uma briga ali, tampouco discutir com porque Allison não desgrudava dele; nós não éramos nada oficialmente, e o tempo e o lugar não eram lá os melhores para resolvermos pontas soltas. Entretanto, eu precisava botar para fora aquela angústia que crescia em mim por estar ali.
Um dos garçons esbarrou na minha cadeira enquanto passava, e após pedir desculpas, perguntou se eu não queria guardar minha bolsa dentro da casa. Neguei, então lembrando que ainda a tinha ali, e meu celular estava lá dentro. Do momento em que ainda estava sentada para o que fui até o banheiro mais próximo só foi necessário um “Com licença”. Escondendo o celular entre meus braços cruzados, pensei na primeira pessoa que pudesse me ouvir e dizer qualquer frase para me fazer esquecer a besteira que eu mesma tinha enfiado na minha cabeça.
Contudo, é claro, Murphy sempre influenciava a minha vida, e a primeira pessoa era justo a que não podia falar, por causa dos pontos da operação. Por que infernos tinha que inventar de ter sisos, mesmo?!
Revirei incessantemente minha agenda de contatos. O nome de parecia piscar na tela do blackberry, e eu não hesitei em discar seu número, sentada na tampa do sanitário e com o mindinho na boca, prestes a roer a cutícula. Ela não sabia exatamente tudo que acontecia entre e eu – não como –, mas o suficiente para que me ouvisse. Já era bom demais para mim.
- Diga, Satine! – ela parecia animada, mesmo sendo dez da noite. Provavelmente estava a ponto de sair com .
- , preciso conversar. – disse, baixo como um miado. – Você tá ocupada ou pode falar?
- Posso falar, claro. diminuiu o tom, soando preocupada. – Tá tudo bem, ? Por que essa voz?
- Tá... tudo indo. – a quem eu queria enganar? Tudo estava uma merda naquela noite. Eu só não conseguia dizer logo de cara. Porém, pelo que conhecia da minha amiga, ela perguntaria.
- O que houve, mademoiselle? – ouvi a voz de no fundo, seguida de um “Só um pouco” de .
- Tô na casa do , no jantar que eu comentei uns dias atrás. – respondi, grata por ela não mudar em nada. – E eu preferia mil vezes estar em casa. Isso aqui tá um inferno, não aguento mais ficar sozinha, só vendo os outros se divertirem. O que eu mais quero agora é ficar no meu quarto, quietinha, longe dessa gente chata e inconveniente. Me diz: por que eu quis vir, mesmo?
- Ei, espera aí! Como assim, você tá sozinha? Eu pensei que essa fosse a casa do e ele estivesse aí, já que mora nesse lugar.
- E ele tá, mas tirando a hora que eu cheguei, ele mal me deu atenção e não sai de perto da praga da ex dele! – cruzei os braços novamente, esquecendo por um momento que falava ao telefone, tamanha frustração que sentia. No segundo seguinte, recoloquei o celular ao pé do ouvido.
- É só por isso que você quer ir embora? Só porque eles estão conversando?
- Não é porque ela tá aqui e porque eles estão conversando. – respondi, mal humorada. – É o fato de ela aparecer e ele ir correndo dar atenção a ela; por ele esquecer que eu era a principal convidada e me deixar de lado; por ele viver dizendo que não suporta me ver com e brigar comigo por causa disso, mas na primeira oportunidade, faz exatamente o que me fala pra não fazer. É uma soma de tudo isso e o agravante de Allison saber que eu não gosto dela e se aproveitar da situação. Ela fez tudo de propósito, eu percebi o jeito que ela me olhava enquanto os dois conversavam. Se não era pra me provocar, não sei pra que era, então.
Apesar de ter dito com incrível rapidez, o que não me ajudava a saber se tinha falado o que me incomodava – da parte de Allison –, me senti mais tranquila. Expor minha insatisfação tinha ajudado em oitenta por cento. (Os outros vinte só seriam eliminados na hora que eu desse um fora na Lewis, mas isso eu teria de deixar para outra ocasião.)
- Você tá com ciúmes. – foi tudo que disse do outro lado, em tom de riso.
- Eu não tô com ciúmes, , eu tô com raiva. – corrigi, revirando os olhos.
- Não, você tá com ciúmes. – ela insistiu, recebendo um estalo de desaprovação meu. – Você não suporta Allison, essa parte eu já sei, mas você ficar incomodada desse jeito foi só pelo motivo de estar com ela. Você achava que seria a única a quem ele estaria à disposição, só que ela apareceu, e pelo que parece, ele quer continuar a ser amigo dela. Isso é o que te incomoda, porque você sabe que foi o jeito que eles começaram a namorar. Você tá morrendo de medo de que eles voltem a se aproximar e reatem o namoro, porque sabe que não poderia fazer nada pra impedir. Você quer que ele fique do seu lado o tempo todo pra não ter riscos disso acontecer!
Não quis admitir, mas o que tinha dito fazia sentido, ainda que fosse uma verdade incômoda. Era como um tapa na cara de realidade. E sendo uma agressão, feria o meu orgulho.
- não faria isso comigo. – sussurrei, amuada. – Ele gosta de mim, não me magoaria desse jeito.
- Não mesmo?
Engoli em seco. Não mesmo? Fidelidade não era uma virtude de , era o que eu vivia ouvindo pelos corredores do colégio. Bastaria uma oportunidade e ele faria o que quisesse com quem quisesse.
Mas ele gostava de mim, estava comigo. Não havia dito com todas as letras, porém eu sentia que ele gostava de estar comigo. Eu era dele, ele era meu, não era?
- Que droga, por que você tá me dizendo essas coisas?! – guinchei com . – Era pra me deixar mais confusa e com raiva? Brigada, funcionou perfeitamente!
- Não foi por isso, , lógico que não!
- Então se explique.
- Eu quis te mostrar que você estava agindo pelas emoções. Se você continuar assim, vai acabar fazendo uma besteira. – ela se explicou. – Cadê a garota que sempre pensa duas vezes antes de qualquer coisa?
- Ela tá ocupada tendo um colapso nervoso nesse momento. – falei com ironia, rindo sem vontade. – Quando é pra ser racional, eu sou passional e vice-versa. Por que não vem um manual dizendo que hora se deve fazer isso ou aquilo, hein?
- Porque você tá lidando com pessoas, não com tamagoshis. – foi sarcástica. – Não dá pra saber o que se passa na cabeça de todo mundo, então você tem que fazer o que acha que os outros levariam na boa. Dar um piti por causa da ex não é exatamente legal.
- O que você faria no meu lugar? – me levantei, parando em frente ao espelho.
- Primeiro, converse com . Tente fazer com que ele perceba que a atitude dele tá errada, que ele não pode te cobrar algo que nem ele mesmo cumpre. – emiti um som positivo para que ela desse continuidade. – Depois, não surte toda vez que encontrar Allison. Se ela tá aí, é porque ainda tem alguma ligação com a família dele, então essa não vai ser a primeira nem a última vez que você vai vê-la. Só respire fundo e não perca a calma. As pessoas têm medo das que se sentem confiantes, porque sabem que não vão conseguir nada com elas.
- Ou seja, no fim das contas, vou ter que aturar essa noite sem fazer nada e só esperar por uma melhora nos próximos dias. – concluí, suspirando. – Eu era mais feliz quando não tinha que passar por isso.
- Mas se você nunca passasse por isso, nunca ia saber o que é se apaixonar.
- Eu não tô apaixonada. – grunhi. Minhas amigas (e minha mãe) não sabiam que nem todo mundo se apaixona fácil assim?
- Continue se enganando desse jeito, . – riu baixo, como se estivesse certa. – Enfim, tudo bem agora? Já tá mais calma?
- Menos estressada, sim. – respondi, aproximando o rosto do espelho para ver se meus olhos estavam borrados ou algo do tipo. – Calma eu só vou ficar quando chegar em casa.
- Já é o bastante pra eu me despedir, então. tá com uma cara nada agradável no sofá, preciso desligar. Fique bem, Satine!
- Vou tentar, prometo. – sorri fraco, mesmo que minha amiga não visse. – Boa noite pra vocês, . Mande um “Oi” pro .
- Mandarei assim que ele deixar de ser um Neandertal e perceber que já estou desligando o telefone. – pelo tom de voz, não era para mim que ela estava esclarecendo alguma coisa. Ri, imaginando o ameaçando não sair de casa, se não desligasse naquele exato momento. Era típico dele. – Beijinhos!
Após desligar, repeti para mim mesma o que havia dito, numa espécie anotação mental do conselho dela. Não resolveria meu problema de imediato, mas iria prevenir mais dores de cabeça depois, pelo menos. Eu sabia que só precisava descarregar, achava que seria até capaz de ir até e Allison e arrumar um jeito de fazê-lo tornar a me notar ali. Porque era dessa forma que eu deveria agir, como uma mulher madura e equilibrada. Seria até mesmo uma forma de mostrar a ele que eu poderia ceder e fazer diferente, em vez de sair correndo ou brigar por causa de terceiros. Ainda que tivesse feito o mesmo pouco tempo atrás, mas eu estaria voltando atrás e me redimindo, certo?
E eu ainda me questionava se devia sempre analisar as situações antes de tomar uma atitude... Desde sempre soube o quanto era inexperiente com garotos e consegui administrar tudo com perfeição. Sabia o jeito certo de tratar cada um, porque, no fundo, todos eram parecidos, mas era insuportavelmente imprevisível. Era como se eu andasse em um terreno instável, e com isso tinha que usar o instinto para dar o próximo passo. Mas os meus instintos não eram lá tão eficientes assim, nesse caso.
E na verdade, eu não sabia por que me esforçava tanto. Sim, eu gostava de estar ao lado dele, contudo, às vezes me sentia dando muito mais que recebendo. Sentia estar mais envolvida com ele que ele comigo. A questão que levantou servira apenas para dar intensidade a essa sensação. Por consequência, me vi com o sangue mais frio; se era assim que as coisas andavam, eu devia pôr um pé atrás. Não iria me deixar abalar (tanto), caso um imprevisto aparecesse.


Capítulo 28

’s P.O.V.

Acordei naquele sábado com um pressentimento ruim e já respirando fundo – reflexos da noite anterior. Em vez do meu asseio, a primeira coisa que fiz foi repetir o mantra de que eu ficaria bem, era um novo dia e ele seria melhor que o anterior. Eu tomaria meu café, estudaria o que precisava e, depois do almoço, encerraria meus assuntos pendentes com Livie (e separadamente). Não tinha condições de estender por mais uma semana; se em algum momento eu quis voltar atrás por causa de Angie, no jantar dos eu me decidi por completo. Saber tudo que eu sabia e não poder contar era um enorme tormento. O peso na consciência tirava minha tranquilidade e me deixava em alerta, como se, inconscientemente, eu soubesse que acabaria contando tudo a , caso não me controlasse.
O que eu sabia com certeza era que, entretanto, não esqueceria essa história de uma hora para outra, levaria tempo e empenho até eu me acostumar com tantos segredos guardados, e se eu não aguentasse mais guardá-los, somaria a vontade de falar ao senso de justiça e confessaria, doa a quem doer. Só iria esperar até um bom momento para contar, pois com a pressão sobre para que ele fosse bem no colégio – em Física e na peça –, saber algo tão grande e delicado poderia desequilibrá-lo. E ser a responsável por qualquer tipo de falha que ele viesse a cometer seria imperdoável.
O pior era ter noção de que o risco de descobrir por conta própria era enorme. E nesse caso, não havia nada que eu pudesse fazer.
Com muito custo para me concentrar – saber que eu estava prestes a dar um importante e arriscado passo me fazia ensaiar bem o discurso –, fiz minhas tarefas. Minha mãe não me perguntou por que eu estava tão calada, provavelmente pensando que eu estava preocupada com as provas na quarta-feira. Agradeci mentalmente, embora quisesse um motivo para expor os motivos da minha quietude, mesmo que fosse somente a obrigação de obedecer. Pensei até em ligar para e desabafar, já que ela não poderia me responder, mas depois que ela retirasse os pontos, falaria três vezes mais no meu ouvido, e eu não queria a interferência de ninguém na minha decisão – razão pela qual a tomei sem pedir ajuda. Aquilo tudo só devia respeito aos e Livie, eu que tivera o desprazer de descobrir, porém, já estava seguindo uma das alternativas ao meu alcance para não me envolver.
O que me fazia parecer uma covarde. Contudo, levando em conta que era o bem de que estava em jogo, eu não podia fazer o que bem entendesse. A felicidade dos outros não é brinquedo. Eu não podia brincar de Deus.
Então, decidida – embora transtornada pelo conflito de ideias e princípios –, fui à tarde até a casa de Livie. Ela demorou a atender, ajeitando-se ainda depois de abrir a porta. A recepção foi a de sempre: muitos sorrisos, risadinhas e elogios da parte dela, o que me fazia rolar os olhos sempre que possível. O bom humor dela diminuiu quando lhe disse o porquê de estar ali, é claro, em seguida ela tentou me persuadir de várias formas, incluindo aumento salarial. “Dinheiro é o menor dos meus problemas”, disse, sorrindo amarelo. Tive de controlar o ímpeto de dizer “O problema maior é você”. Ao invés de descarregar o desprezo, expliquei que entraria na reta final do ano letivo e precisava me concentrar, fora o teatro.
Demorou alguns minutos até Livie se convencer de que eu não estaria mais com Angie nas próximas semanas. Ela acertou meu pagamento do dia anterior e ainda insistiu mais um pouco, sendo interrompida pela campainha. Esperei sentada enquanto ela atendia a porta, e no instante que ela disse o nome da pessoa que recebia, eu gelei.
- Entra, tá aqui! – Livie anunciou, dando passagem para . – E qual o motivo da surpresa?
- Estava te procurando, . – ele respondeu, me puxando pela mão para que eu me levantasse do sofá e o abraçasse. – Recebi sua mensagem de que queria conversar e vim saber o que era. Sua mãe me disse que você estava aqui, aproveitei pra vir ver Angie. – virou-se para Livie. – Não tem problema, né?
- Não, claro que não. – ela respondeu, e não sei se foi pela velocidade com que fez, seu tom de voz agudo ou a forma que seus olhos não o encaravam diretamente, mas eu senti que Livie estava nervosa por tê-lo ali. Será que...? – Ela ainda tá dormindo, se não se importar em esperar.
- Por mim, tudo bem. – sorriu, esquecendo-se de me soltar dos seus braços. Pigarreei para que ele notasse que ainda me segurava. – Que foi?
- ... – murmurei, me movendo sutilmente para trás, ainda impedida pelo abraço dele. Ele franziu o cenho, parecendo confuso.
- Gente, tô atrapalhando algo? – Livie também parecia confusa. Eu não iria dizer a que me soltasse porque Livie estava ali, até porque era a casa dela, esperava que ele entendesse o recado implícito. – Vocês querem privacidade?
- Não, não precisa. – respondi, me esquivando de uma vez. A inatividade de tinha sido constrangedora o bastante. – Aliás, eu já devia estar voltando pra casa, disse que não ia demorar aqui.
- Vamos esperar até Angie acordar. – ele sugeriu, me pedindo não só com a fala, mas com os olhos também.
- Acho melhor não...
- Pode ficar, se quiser, . – Livie sorriu, e pela primeira vez ela não conseguiu esconder suas reais emoções. Eu pude ver que estava desconfortável e queria, sim, que fôssemos embora. Em contraposição, queria ter certeza de que estava tudo bem entre nós.
- Desculpa, realmente acho melhor eu ir. – disse a ela, sorrindo por educação. – Eu te vejo depois, se quiser ficar. – me direcionei a .
- Mas precisamos conversar. – ele me olhou de forma significativa. – Você mesma disse.
- Eu sei que eu disse. – concordei, pedindo licença para ir até a porta. – Mas preciso estudar mais, temos provas na quarta, lembra? – falei a primeira desculpa que me veio à cabeça. Eu já tinha entendido os sinais furtivos de Livie e queria ajudar a todos, mas , que não sabia de nada, me atrapalhava. Tinha que provocar nele a vontade de me seguir, mas teimoso do jeito que era, ele só o faria se eu fosse evasiva e ele notasse que eu estava fugindo. – Espere Angie acordar e depois passe lá em casa. Agora, nesse exato momento, não dá pra gente falar sobre nada. De verdade.
- Mas...
- Por favor. – proferi cansaço, vendo-o se convencer. Mesmo que Livie fosse amiga de , nas atuais circunstâncias, não queria que discutíssemos qualquer coisa na frente dela. Principalmente se o assunto principal da nossa conversa fosse o dia anterior. “Nem todo amigo do meu amigo é meu amigo”, dizia . – Ou venha comigo agora, você escolhe. Sabe-se lá quando Angie acorda...
- tem razão. – Livie me apoiou quando consultada pelo olhar de . Tive a impressão de ouvir passos no corredor, mas achei ser paranoia minha. Já estava começando a imaginar coisas, levada pela expressão corporal da dona da casa. Seria descuido demais da parte dela deixar Otto ir até ali em um momento que, acho eu, ele devia estar em casa, acompanhando as pessoas que o estavam visitando, como soube durante o jantar.
Contudo, fitando Livie rapidamente, vi seu maxilar ficar tenso. Ela tentava olhar para o fim do corredor, mas não queria despertar a atenção de .
Não! Por favor, céus, não!
- Vamos, , não tenho o dia todo! – falei alto, dando um sinal a Otto, caso fosse ele.
- Tudo bem, vamos. – ele cedeu, encaminhando-se para a porta também. Minha respiração desacelerou, porém não completamente. Enquanto não estivéssemos longe dali, não estaria calma.
Livie abriu a porta para nós, e vi que não saiu de lá até que tomássemos certa distância do sobrado. Usei logo meu celular para digitar “Eu sei quem está aí e o porquê. Mande-o embora o quanto antes, sei que vocês não querem ser descobertos”.
- ? – perguntou, sem tanta curiosidade.
- É. – respondi, assentindo. – Tinha me esquecido de responder antes.
- Ah! – ele pareceu lembrar-se de algo e deu meia-volta imediatamente, andando rápido o caminho contrário. Arregalei os olhos e fui atrás, não sem antes xingar um “Merda!”.
- O que foi, ? – perguntei, tentando alcançá-lo. Cada passo dele era dois meus.
- Esqueci de dar um recado importante a Livie. – ele me explicou, sem dar sinais de que diminuiria o ritmo. – Não precisa vir comigo, é coisa de um minuto.
Um minuto do momento errado pode estragar a sua vida.
- Nós vamos voltar daqui a pouco, por que a pressa? – argumentei, segurando sua mão, fazendo-o se virar para mim. – Eu quero ouvir o que você tem a me dizer, já que veio até aqui só porque te mandei uma mensagem.
- Você sabe exatamente o que vamos conversar. – ficou repentinamente sério. Era por causa da bendita ex dele, eu sabia. – Um minuto não vai mudar o fato de que você foi infantil, ontem. Agora, pode me soltar? O tempo que a gente tá perdendo aqui é o que eu levaria falando com Livie. Ou não quer que eu fale com ela também?
- Claro que não é isso. – respondi, amuada. O tom de voz de conseguira ser mais incisivo que sua postura. Se ele soubesse, não descontaria em mim a raiva de algo tão irrelevante que eu fiz.
Eu não tive mais argumentos para fazê-lo voltar. Partes pelo choque causado pelas suas palavras, partes por não poder lhe dizer o motivo real. Era inútil falar qualquer coisa, eu não tinha mais voz ativa. Passei, naquele segundo, a ser apenas espectadora, um peso morto no meio daquilo tudo. Estava prestes a ver a bomba explodir sem poder desarmá-la.
, vendo que eu não faria mais nada, me deu as costas após retirar sua mão. Meu peito se apertou de forma descomunal, até tontura e fraqueza eu senti. Ainda assim, segui seus passos, porque existia a chance de não haver nada e eu ter agido como uma louca – preferia essa opção mais que tudo, na verdade. Precisava ver com os meus próprios olhos que Otto não estava lá.
Mas ele estava.
Minhas pernas bambearam ao vê-lo atravessar a porta, virar-se rapidamente e beijar Livie, os dois sem saber que eram observados. , assim como eu, ficou estático. Eu não podia nem imaginar o que se passava em sua cabeça, talvez nem ele mesmo soubesse. Mas sua atitude seguinte não era nada além do produto de sua raiva: voltou a andar, rápido o bastante para alcançar Otto, e assim que pôs sua mão esquerda sobre o ombro do pai, fazendo-o se virar, acertou-lhe um soco de direita no nariz. Otto cambaleou para trás, então não o esperou se recuperar para lhe dar outro soco, agora no abdômen, tirando-o o ar. Livie gritou por ajuda, enquanto eu não conseguia me mover, em estado de choque. estava descontrolado, parecia um animal. De certo modo, eu também não fazia nada por sentir medo da sua reação explosiva. Por mais que soubesse que ele não era exatamente pacífico, não esperava que agredisse seu próprio pai.
E que, mesmo que pedissem que parasse, ele continuaria a bater em Otto com toda força, levando-o ao chão. Aplicava socos alternados, não se importando mais onde acertaria, desde que conseguisse descarregar sua raiva. Mas, no meio daquilo tudo, eu o vi soluçar e perder a força, diminuindo a intensidade com que batia. Foi a oportunidade para que as pessoas que se aproximavam pudessem tirá-lo de cima de Otto, depois de finalmente entenderem os apelos de Livie – que, a essa hora, socorria o pai de .
Eu poderia apanhar tudo que Otto havia apanhado, porém, não sentiria dor maior que a de ver , o meu , destruído. Todo o esforço que tinha feito para privá-lo daquilo tinha sido em vão.
- O que tá acontecendo aqui? – a sra. Boechat, vizinha e amiga da minha mãe, apareceu de repente na minha frente, acordando-me do transe que entrei.
- ! – escapei dela, indo de encontro a ele. – , olha pra mim, por favor!
Sua cabeça estava baixa, a respiração tão forte que podia ser ouvida.
- , olha pra mim. – silvei, segurando seu rosto e o sentindo molhando de lágrimas. – Eu tô aqui, tô com você. Fica calmo.
- Não me peça isso. – ele disse sem me olhar. – Você não tem o direito.
- , solta esse maníaco! – ouvi a sra. Boechat ladrar enquanto eu tentava entender o que tinha dito. Minha vizinha me segurou pelo pulso, que puxei de volta rapidamente.
- Ele não é nenhum maníaco, porra! Sai daqui! – esbravejei de volta, assustando-a. Me virei para o homem que segurava pelos braços, imobilizando-os. – Já pode soltar, ele não vai bater em ninguém.
- É claro que não vou soltar até a polícia chegar. – ele estranhou meu pedido, fazendo menção de se afastar.
- Não, nada de polícia! – Livie estrilou. – Voltem pra casa de vocês, acabou o show! Isso é um problema de família e nenhum de vocês tem a ver com as nossas vidas!
- Sua mãe vai ficar nada feliz quando souber com quem você anda se metendo. – disse a sra. Boechat para mim, preparando-se para ir embora.
- Ela já sabe com quem eu convivo, e mesmo que não soubesse, é por mim que ela tem que ter consciência, não pela vizinha. – grasnei, os olhos injetados. Por que não nos deixavam em paz? Eu precisava de silêncio para cuidar de . – Então, se quiser tomar conta da minha vida, pague as minhas contas; caso contrário, eu dispenso a sua presença.
Ainda a contragosto, o homem desconhecido soltou , a quem eu me agarrei fortemente e não quis mais soltar. Ele correspondeu com tal qual intensidade, libertando tudo que estava repreendendo até o momento. Soluçava alto, seu choro lavava seu rosto e molhava meu ombro. Eu nem tive firmeza para lhe dizer uma palavra de consolo, pois sabia que a culpa era, por um lado, minha. E mesmo que a minha parcela fosse a menor, por eu ser a pessoa em que ele confiava, senti que não valia um terço do que costumava, naquele instante. Tinha sido contaminada por toda a sujeira que Livie e Otto tinham criado.
- Eu tô aqui, . – repeti pateticamente, beijando sua testa, erguendo seu rosto para secar as lágrimas que estavam escorridas. – Se acalma, por favor. – tornei a beijar sua face avermelhada e úmida, tentando dessa forma mostrá-lo minha presença física. – Tudo isso vai passar, mas antes você precisa esfriar a cabeça.
- Ele não podia ter feito isso. – ouvi seu murmúrio rouco. – Ela não podia ter feito isso comigo.
- Não, não podiam. – olhei ao redor rapidamente, descobrindo que estávamos sozinhos.
- Tenho que falar com eles. – escapou dos meus braços como areia entre os dedos, sob meus protestos. A sensação incômoda de ser espectadora novamente me assolou, e eu o segui sem pensar. Irrompendo na sala de Livie, encontrou seu pai no sofá, o rosto inchado e as roupas ensanguentadas. – Por que você fez isso com Susan?! Por que logo com Livie?! Você não consegue viver sem foder a vida dos outros?! Precisa ser um filho da puta sempre?!
- Você não entenderia... – Otto falou baixo, envergonhado. Sequer olhava o filho.
- O que você ainda quer aqui?! – Livie veio do corredor com uma caixa de primeiros-socorros e uma garrafa d’água.
- Queria ter a certeza de que era mentira e você não tinha me apunhalado pelas costas. – apesar de ríspido, eu podia ver que ainda estava emotivo. Dava para notar a decepção no seu semblante. – Mas é difícil acreditar nisso, depois de te ver se importando com esse merda. Você vale tanto quanto ele! Eu fui um idiota por demorar todos esses anos pra perceber. Aliás, sempre soube que você era uma vagabunda, mas pensei que eu significasse alguma coisa pra você, já que crescemos juntos.
- É claro que você significa, ! – ela guinchou em resposta, parecendo surpresa por ouvi-lo dizer tal frase.
- Porra nenhuma! – rebateu ele, fechando suas expressões novamente. – Para de fingir, eu já entendi que você não presta e não tem o mínimo de consideração por mim e por Susan, que cuidou de você como a filha dela. Você não passa de mais uma piranha. Pelo menos tivesse a decência de ficar bem longe de mim. – riu sem vontade, desviando o olhar. – E eu acreditando em todas as mentiras que vocês contavam... Esse Stephen nem mesmo existe, não é?
- Não... – Livie confessou, também envergonhada.
- Cacete, eu... – balbuciou, mal conseguindo se manter parado. – Não sei nem o que dizer, eu... Há quanto tempo vocês...?
- Dois anos. – respondeu ela, e até eu engoli em seco. – E... Angie é sua irmã.
Mordi o lábio ao vê-lo pôr as mãos nos cabelos, as orbes saltadas e a boca aberta.
- E você ainda... Meu Deus, eu passei a noite com você, e você nem se importou de ser a mãe da minha irmã bastarda!
Senti um soco no estômago. A pergunta que trouxe à tona tinha sido respondida. era capaz, sim, de me magoar; já até mesmo o tinha feito.
- Não fale assim de Angie!
- Ah, me desculpe, não quis ser rude. – pôs as mãos sobre o peito, fingindo se comover. Eu ainda estava paralisada, repetindo a mesma frase em minha mente. – Quer que eu chame como? Filha da puta?
- Você tá sendo cruel, . – Livie abaixou a voz, não o reconhecendo. Ele tinha passado dos limites.
- O nome disso é ato e consequência. – disse, os olhos irradiando rancor. – Vocês dois não pensaram antes de fazer todo mundo de babaca, agora vão pagar por esses dois anos.
- , chega. – o interrompi, falando alto, atordoada. – Você tá com raiva, mas já foi o bastante. Você já mostrou a sua indignação. Otto estava aqui desde cedo e você descobriu que não era só de hoje que eles estavam juntos, e tudo que fez até agora foi agredir as pessoas ao seu redor. Não é assim que a justiça vai ser feita.
- Não me diga o que fazer.
- Tô dizendo o que você não deve fazer. – corrigi, respirando fundo. Tinha que ser fria. – Não cabe a você julgar ninguém dessa forma.
- O que você tem a ver com isso?! – indagou ele, semicerrando os olhos. – Aliás, você não pode me dizer nada, porque acobertou esses dois. Pensa que eu não entendi que você inventou uma porrada de desculpas pra me tirar daqui? Em vez de ter feito isso, devia ter movido um dedo pra me contar! – gritou, irado. Eu não podia culpá-lo.
- Eu estava tentando te proteger, ! – mas também não podia ser acusada injustamente. – Porque é isso que as pessoas fazem quando gostam das outras! – fui perdendo a forçada voz quando tive de me expor a ele. Era difícil lhe dizer que eu escondi parte de sua vida. – Eu não queria te dar mais uma dor de cabeça. Pelo amor de Deus, você só tem dezoito anos e tudo na sua vida é um inferno! Eu quis te poupar... – ofeguei. O ar demorava a encher meus pulmões, que tinham o peso de duas bigornas. – Te fazer esquecer um pouco os seus problemas pra que a gente tivesse paz. Eu tive que mover o mundo e ir contra os meus princípios pra isso. – senti minha garganta seca e os olhos ardendo, contudo, não iria chorar. Não ali, na frente de todos. – O pior de tudo é te ouvir me apontar um erro quando você mesmo errou. “Eu passei a noite com você, e você nem se importou de ser a mãe da minha irmã bastarda!”
- Esse não é o ponto. – ele retorquiu, menos petulante.
- Claro que é! – estrilei, tirando minha voz do fundo da garganta. – Você é quem não tem o direito de me dizer qualquer coisa, porque você preferia estar com outras pessoas e em outros lugares, em vez de encarar os seus problemas. Você quem não deu a mínima, enquanto eu sempre estive ao seu lado, te dando apoio. E por causa de um vacilo, você descontou tudo em cima de mim. Eu não sou a culpada, . Sou mais uma vítima. Só tive a infelicidade de descobrir algo tão ruim que te envolvia. – suspirei, cansada daquele assunto. – Eu não te contei pra te privar, não porque estava acobertando alguém.
- Eu nem mesmo sabia que tinha descoberto. – Livie me defendeu, agora sentada ao lado de Otto, cuidando dos ferimentos dele.
- Você não é dona da minha vida pra decidir o que é melhor pra mim. – não dava o braço a torcer. Sendo assim, eu já não tinha mais o que fazer ali.
- Ao menos eu tentei. – disse baixo, com os lábios trêmulos. – Já você, preferiu nem pensar em mim antes de transar com a primeira que surgisse. Quanta consideração, não é? – sorri amarelo, pois nem irônica conseguia ser. – Lembre-se que quando apontamos um dedo pra alguém, existem três apontando de volta pra nós mesmos.
Com a sensação de ter o mundo sobre os meus ombros, deixei a casa de Livie para não voltar tão cedo. Eu achava que não poderia sentir dor maior que a de ver arrasado, mas a dor que ele me infligira ultrapassara esses limites. Nós não éramos namorados, porém essa não era uma justificativa para que ele quebrasse a minha confiança. Eu havia me entregado a ele porque sentia que valia a pena, e era aquela a minha recompensa.
Não só naquela hora os meus esforços tinham sido inúteis, como desde o momento que me importei com . Minha empatia só destruía as barreiras que eu construía contra a decepção. Burra! Como pude ser tão ingênua de achar que ele mudaria tão rápido? Por mim? Há meses já tinha ouvido as histórias sobre ele que o descreviam tão bem, mas me iludi com algumas palavras fofinhas dele. Garotos sempre mentem. Garotas sempre acreditam. É um maldito ciclo vicioso.
Dentre todos os pontos, lembrar que era para ele que eu me expusera foi um dos mais significativos. Eu o deixei me conhecer, mostrei como eu realmente sou, agi em verdadeira transparência quanto aos assuntos que diziam respeito somente a mim, e em troca fui tratada como nada. Não sabia se devia me decepcionar, frustrar, indignar... Talvez os três ao mesmo tempo, agravados com a vergonha de ser humilhada e descartada e a raiva por ser trocada. Depois de tudo que tinha feito.
Mas de uma coisa estava certa: não choraria. Não por ele.
Já havia passado por emoções demais a partir do momento que entrei em contato com , mais uma exigiria de mim tempo que eu não tinha para desperdiçar pensando sobre nós dois. Dessa vez, não daria chances para o positivismo que me cegava; seria realista, levaria em consideração os fatos e as estatísticas. Ser passional só tinha me ferrado, eu tinha cansado disso.
E dentro da minha cabeça ecoava “Eu te avisei”. Era a minha consciência. Eu a havia ignorado, induzida pela sensação momentânea – e, confesso, boa – de leveza. Mas, como num voo, a leveza acaba e o chão é o próximo estágio. Agora, meus pés estavam no chão.
De forma estranha, me sentia eu mesma de novo. Um pouco magoada, é claro, mas pensando mais em mim que no “nós” que, aparentemente, havia acabado. Poderia até reagir à falta de , mas me controlaria para que não ultrapassasse o limite do normal. Se eu tinha aguentado, me adaptado e convivido com a culpa pela cegueira de Noel até hoje, suportar a falta de seria extremamente fácil. O exemplo claro era que, ao chegar em casa, consegui fingir bem que não havia acontecido nada. Nada comigo, que fique claro. Àquela altura, não existia uma pessoa sequer que não soubesse do escândalo na rua em que morava.
Obviamente, um questionário foi feito pelos meus pais, parecia até que eu tinha cometido um delito, a julgar a quantidade de perguntas. Depois de já ter presenciado toda a zona que aconteceu na casa de Livie, era mais natural contar os acontecimentos com detalhes. E com meus pais eu podia, inclusive, expor minhas opiniões, o que era um enorme alívio. Pelo menos algo bom vinha do rompimento com os : eu teria minha liberdade integral de volta.

’s P.O.V.

Foi como um pesadelo.
Eu ainda esperava que meus olhos abrissem e eu me deparasse com o teto do meu quarto, mas nada aconteceu.
A partir do segundo que reparei ser real, não contive meus impulsos. Otto não devia ter feito aquilo. Não podia. Por culpa única e exclusiva dele, minha família tinha finalmente afundado.
Leonard morreu vítima de atropelamento, sete anos antes. Estávamos no meio das férias de verão, passando um fim de semana em Southsea. Eu já estava no quarto quando ocorreu o acidente, prestes a dormir. Leo estava por retornar da casa de um amigo, por volta das onze da noite, e em frente à fachada da casa eu ouvi a freada forçando os pneus contra o asfalto, depois, um som seco.
As luzes se acenderam, inclusive a do meu quarto. Tentei, entre o sono, cansaço e susto, ver através da janela o que tinha causado aquele barulho, ouvindo também o portão se abrir. Meu quarto, como eu pedira, era virado para a praia, então não enxerguei nada. Eu não tinha noção da hora exata, mas pelo tom escuro do céu e o som do mar agitado, sabia ser tarde.
Chamei pela minha mãe no corredor, descobrindo que ela não estava na cama, cujos lençóis continuavam intocados desde aquela manhã. Desci, então, para o segundo andar, observando do atelier, que ia de ponta a ponta da casa, vendo um carro atravessado na rua. Logo, pude ouvir gritos e choro, me despertando finalmente. Corri para o primeiro andar, onde encontrei Vica entrando, o rosto pálido e as expressões de preocupação. Quando lhe perguntei o que estava acontecendo, ela me mandou subir e me acompanhou, garantindo que eu não sairia do meu quarto.
Todas as perguntas que eu fazia eram ignoradas, me preocupando nitidamente. A curiosidade de criança somada à falta de respostas só piorava meu estado, cada vez mais elétrico. Prometi a mim mesmo não dormir até que Susan ou Otto viessem ao meu quarto explicar o que estava acontecendo. Quando minha mãe apareceu, entretanto, foi para dizer a Vica que tomasse conta de mim, fingindo não ouvir minhas perguntas e se despedindo com um sorriso triste e a sentença de que tudo ficaria bem.
Aguentei firme até o sol nascer – Vica tão convicta quanto eu a ficar acordada –, mas, vencido pela exaustão, adormeci. Acordei horas depois, e em vez de Victoria, Susan estava no quarto, sentada ao meu lado, à cabeceira, cochilando. Despertando-a, perguntei sobre a noite passada. A resposta não foi imediata, mas eu a entendi antes de ser verbalizada. Instantaneamente me vi chorando em seus braços. Percebi, também, que ela acompanhava meu pranto de forma silenciosa, falhando na tarefa de ser forte para que eu também fosse. Mas eu lhe dava razão; a dor de perder Leonard não podia ser medida ou julgada. Era uma parte de nós que partia.
A partir daquele momento, começamos a ruir. Susan entrou em depressão, abandonou o emprego e passou meses trancada, chorando pelos cômodos. Seu desânimo infectava a casa. Mal comia, sua aparência refletia a baixa imunidade, e não tardou muito até que ela parasse no hospital por inanição. Vica teve de vir de Southsea para cuidar dela, uma vez que meus avôs já haviam falecido anos antes. Foram semanas de mártir, até que Otto a forçou a ter acompanhamento médico.
Intercalando, eu vinha notavelmente mudando, me fechando e tornando melancólico. Ter firmeza já era um desafio, com a atmosfera mórbida que pairava sobre a minha casa, a dificuldade crescia exponencialmente. Me abstive da tristeza profunda de ver Susan praticamente inválida, vê-la chorando por qualquer simples lembrança me adoecia também. Preferia passar horas em outros lugares a passar em casa. Nesse momento, inclusive, deixei de ir ao litoral, pois sabia que reviveria tudo novamente. Eu não queria chegar ao ponto de precisar de ajuda também, então montei a barreira que não deixava qualquer pessoa chegar nos meus sentimentos. Eles pertenciam somente a mim; se eu estivesse em pedaços por dentro, apenas eu saberia.
O desemprego de Susan fez Otto tomar a frente das finanças, o que não era realmente um desafio para ele. Sua carreira já andava bem antes das turbulências pessoais, tanto que ele insistia para que Leonard e eu seguíssemos seus passos. Meu irmão adorava a ideia, já eu hesitava e precisava sempre ser convencido de que era bom para mim. Durante certo tempo, aceitei a hipótese por ver que advocacia trazia estabilidade, algo que andava em falta em minha vida, e comecei a frequentar o escritório de meu pai para me acostumar com o ambiente. Não era um bicho de sete cabeças, mas sempre me senti deslocado. Embora já tivesse usado uma ou outra vez em casamentos e certas cerimônias, não me via todos os dias de terno e gravata. Era surreal me ver dessa maneira no futuro.
Passaram-se três anos desde o acidente e, graças aos contatos de Otto, Susan retornou ao mercado com uma pequena empresa móvel de administração. Voltamos ao equilíbrio de antes, cada um em seu devido lugar, mas em algum momento do processo Otto regrediu da sua pose de bom samaritano. Ele se mostrou mais explosivo e agressivo, as discussões se tornaram mais frequentes, às vezes por causas banais e na frente de outras pessoas. Susan se tornou, então, uma esposa omissa, perdendo sua voz ativa porque se achava no dever de respeitar qualquer decisão do marido. Segundo a psicologia dela, Otto a salvara, ela não poderia agir com ingratidão.
Eu, que já não era mais tão ingênuo, tentei encontrar respostas para mudanças tão explícitas e adversas. Achei, a princípio, que fosse apenas estresse gerado pelo tempo em que ele precisou tomar todas as decisões e o apoiei. Aguardei que viesse a calmaria, contudo, ela não surgiu. A turbulência que era o tratamento de Otto para com Susan se voltou para mim, e foi quando houve a ruptura dos laços paternos. Eu me via constantemente posto contra a parede, pressionado a obedecer as ordens muitas vezes autoritárias de Otto. A possibilidade de contestar ou tentar convencer minha mãe a me apoiar era inútil, já que ela estava cega de devoção. Era como ser uma marionete nas mãos dele.
Então, cansado de brigar, passei a ser indiferente. Não fingia estar tudo bem quando ia ao escritório de Otto, ficava na copa ou na sala de espera, mexendo no celular ou usando a internet de lá. Até o dia em que entrou uma mulher aparentando nervosismo e descontrole, perguntando por meu pai, para em seguida invadir a sala dele e gritar a plenos pulmões que Otto era um monstro, sem coração e desgraçado. Levada à força para fora pela segurança do edifício, a mulher continuava declarando que não se importava com o que meu pai era, porque no fim das contas ele não prestava. Fui atrás de investigar do que ela estava falando, e descobri – após alegar que minha suposta mãe, que estava no toalete, iria contratar Otto como advogado e eu queria saber se ele era confiável – numa conversa que ele tinha defendido um réu de homicídio culposo num acidente de carro e reverteu o caso, jogando a culpa na vítima, que não tinha feito nada além de preservar sua vida parando no sinal.
A princípio não acreditei, como qualquer pessoa que descobre algo ruim. Era impossível que ele tinha exposto ao ridículo um homem que perdeu a vida em circunstâncias parecidas às da morte do próprio filho. Estava lucrando e deixando a vida profissional ofuscar a pessoal em prol de tal atrocidade. Naquele momento, Otto se tornou abominável. Um pai bom, ainda que severo e reservado, havia se perdido no tempo e dado lugar a um homem relapso, rude, sem escrúpulos. Sem necessidade.
Não existiam mais dúvidas, pra mim, que a família não passava de um nome. Estávamos desestruturados, vivendo nem mesmo de aparências, pois eu me negava. A subtração de um não tinha três como resultado, mas zero. Não tinha mais por que lutar.
E assim se arrastaram mais quatro anos de exaustão psicológica, indiferença e frieza. Com uma mãe que não tomava a frente de nada e um pai que só tomava quando interessava, eu só contava comigo mesmo. Tornei-me solitário em meio à minha própria família, dividia a casa com mais dois desconhecidos.
Mas, de repente, Susan pareceu despertar de um sono pesado. Em uma mudança drástica e ligeira, passou a ser mais ativa, quis ser mais presente, reagiu com mais pulso ao que acontecia ao seu redor, mesmo que sem o conhecimento do marido. Eu havia notado que, desde a última conversa com Darrel, sua postura tinha se refeito. Ela quis retomar as rédeas da minha vida, apesar de ser tarde. Tentou agir como Otto, pois achava ser fácil, porém viu que não funcionaria se impor sobre alguém como eu, que vivia na defensiva. Eu teria mil argumentos para cada palavra de ordem que ela desse.
Após fracassar, lembrou-se de como éramos anos atrás. Ela, protetora e firme, ainda que sempre tivesse o coração mole; eu, caloroso e menos reativo, temia muito mais a decepcionar que a irritar. Nunca quis os presentes que substituíam sua presença, as suas horas trancadas no quarto que não davam lugar aos nossos risos, tampouco sua imagem se apagando por trás de Otto. Era doloroso vê-la usando alguém tão sujo como protetor. E sua retomada de posição de mãe me fez acreditar novamente que podíamos restaurar nossos laços.
Eu nunca havia dito com todas as letras, mas tinha percebido sua mudança. Estava grato por ela. Queria uma forma de corresponder à altura, embora não soubesse nem por onde começar. Nós dois já sabíamos que não seria de um dia para o outro que nos tornaríamos melhores amigos, contudo, um passo de cada vez, chegaríamos lá. Com os últimos acontecimentos, eu devia dar o meu primeiro passo e mostrar lealdade à minha mãe. Iria contar a ela o que tinha descoberto e o que ocorreu em seguida, exatamente. Mas, antes, precisava reorganizar minha cabeça e pensar nas palavras certas para usar – mesmo contando tudo, não iria simplesmente jogar a verdade sobre a mesa como um prato cru. Perto daquele ambiente, onde qualquer pedaço da rua me lembrava de Livie e Otto, eu não conseguiria, entretanto. Precisava ir para um lugar isolado, por algumas horas de paz, pelo menos. Precisava e iria para longe dali.


Capítulo 29

’s P.O.V.

“Eu teria minha liberdade integral de volta”, eu disse. Que ingenuidade a minha. Mal haviam se passado algumas horas desde a última vez que nos vimos, e eu já estava encolhida em minha cama, pensando em . Eu estava livre apenas em corpo, pois minha mente estava entregue em suas mãos, ainda que ele não soubesse. Não por insistência ou falta de sensatez; tínhamos, sim, brigado, eu continuava bastante magoada, mas ele não podia ficar sozinho. Quem em sã consciência iria dar as costas a alguém que adora tanto, mesmo que a contragosto? Eu não conseguia ignorar o que sabia sobre , justo agora que o passado e o presente dele se fundiam de forma assombrosa. Não seria eu mesma, se o fizesse.
Entretanto, somente a minha bondade não consertaria tudo. Nem o faria querer me ver com a mesma intensidade que eu o queria. Por mais que minhas intenções fossem as melhores, eu devia respeitar sua decisão de ficar sozinho, pelo menos enquanto eu soubesse ser saudável para ele. E durante esse pequeno espaço de tempo – que mais parecia infinito –, íamos nos afastando sem que eu pudesse sequer correr atrás. Essa era a única liberdade que eu tinha, e nem de longe era a que eu desejava. Uma liberdade falsa, visto que eu continuava presa à sua imagem. Uma ilusão de liberdade, que funcionou apenas durante as primeiras horas para diminuir o impacto da briga. Assim que a farsa acabou, restou apenas a solidão.
No fundo dos meus pensamentos, eu implorava para que Deus, o Universo, as forças místicas ou qualquer tipo de proteção caísse sobre os ombros de e o tirasse desse mar de tristeza em que ele estava preso. E o trouxesse de volta para mim, para que eu visse de perto suas feridas sararem. Eu pedia pela sua felicidade. Não era algo impossível. Caso ela valesse as minhas noites de sono, pagaria a partir deste sábado. Sonhar não seria um luxo ao qual me daria, devido às circunstâncias.
Poderia parecer exagero meu, não me importava. Desde que somente ocorresse no meu íntimo, não seria nenhum problema. Eu sempre soube que não era tão forte assim, para aguentar as porradas que a vida dá sem pensar ao menos uma vez que era minha culpa. Dentro de mim, precisava desabar. Precisava ser sincera comigo mesma, para ter firmeza suficiente para mentir para os outros. Eu poderia estar um trapo, no interior, contudo, no exterior, estava intacta. Dessa forma, não havia necessidade de buscar ajuda com qualquer pessoa que fosse. Um monólogo me traz tantas respostas quanto um diálogo, era hora de pô-lo à prova.
Assim, no domingo, tudo que fiz foi ficar em meu quarto, longe de contato humano, testando meus limites. Eu estava a um passo de perder o controle de mim mesma e chorar por horas a fio, por mim, por , por nós dois... Havia algo em mim que não conseguia se manter apático a tudo que acontecia, e eu precisava doutriná-lo. Tinha que me obrigar a não reagir antes do tempo à vontade de me ater a qualquer esperança de que nos acertaríamos. Devia ser fria, esquecer o lado pessoal e me focar no profissional. Mesmo que o Apocalipse estivesse acontecendo, ainda havia a peça e as últimas provas. Não podia vacilar, deixar outras pessoas e meu futuro na mão. Por mais que estivesse recebendo destaque nos últimos dias, ele não era o único no meu mundo.
Então, na madrugada de domingo para segunda, me rendi à exaustão e adormeci. Um sono pesado, atormentado, sem sonho. Suficiente para que eu suportasse algumas horas de tortura dentro da sala de aula, na presença distante de . Todavia, ele não estava lá quando cheguei. Nem apareceu no segundo horário, terceiro e todos os outros, me deixando presa entre o misto de conforto e frustração. A falta de me aliviava e magoava simultaneamente. Eu queria vê-lo, mas não o encarar por vergonha. Queria tê-lo perto, mas não me deixaria aproximar por medo. Queria exatamente que não estivesse ali, mas morria de saudade do seu sorriso. Eu queria tudo e não queria nada.
Mas além do tudo e do nada, eu queria uma notícia sua. A única que tive, porém, foi a de que ele não estava sumido apenas para mim. A ausência que me enlouquecia terminou de me desesperar quando Susan, apreensiva, me procurou em casa, à noite. Meu coração quase rasgou meu peito com a possibilidade de algo ter acontecido a ele. Eu não me perdoaria nunca se não estivesse são e salvo. Parte daquela bola de neve era culpa minha, qualquer consequência também seria. Mesmo que ele já tivesse essa preocupante mania de desaparecer em momentos de crise, como Susan tinha dito, o tempo que estava sumido era efeito do que o causei.
Em particular, perguntei a Susan se ela soubera de algo antes de sumir. Ele tinha ligado, pelo menos. Ela já havia conversado com Otto e descoberto a traição, contudo, não tinha acertado nada além do divórcio. Disse que precisava que todos da família estivessem presentes, antes de uma decisão definitiva. Eu já imaginava como seria, mas não responderia por ninguém, afinal, não era a mim que cabia interferir nos assuntos deles. Mais que já tinha interferido. Então, somente assenti e, quando perguntada, respondi que sabia, sim, de tudo, mas sem a mínima intenção de proteger outra pessoa, senão .
- Posso te fazer mais uma pergunta, ? – Susan me olhou de forma diferente enquanto se direcionava a mim. Concordei com a cabeça, temendo que em seguida viesse uma chuva de ofensas e desaforos por eu ter escondido algo tão pessoal dela e do filho. – Por que você se preocupa tanto com ?
- Eu... – engasguei logo no início da frase, parando para refletir milhares de vezes antes de continuar. – Não sei. – desviei o olhar, entendendo, enfim, o que ela queria saber. Aquele olhar não era para me pressionar ou julgar, era de expectativa, aprovação. – Imagino que a senhora esteja pensando numa resposta melhor que a minha pra essa pergunta.
- Pode até ser verdade, mas quem pode interpretar melhor é você. – Susan tocou minha mão, demonstrando que eu podia confiar nela. – Eu notei o que acontece entre vocês dois uns dias atrás, na minha casa, enquanto você segurava Angie. te olhava com uma admiração que eu não havia visto antes. Ele sorria sem motivo aparente, e você não sabe o quão difícil foi vê-lo sorrir sem razão, depois do acidente com Leonard. estava fechado pro mundo, mas você conseguiu fazê-lo se abrir. Isso me tocou como um insight, e assim eu percebi, .
- Acho que a senhora está se precipitando. – respondi, embora quisesse muito acreditar nas palavras dela. – Da última vez que nos vimos, ele não me pareceu nem um pouco diferente do que eu conheci um tempo atrás. As pessoas não mudam tão facilmente.
- Mas elas se adaptam às outras. – insistiu Susan. – Tenho certeza que com ele não houve uma exceção. Por mais que vocês tenham brigado... – olhei imediatamente para seu rosto. Como ela sabia? – Você não estaria triste dessa forma ao tocar no nome dele sem motivo, não é? – fui obrigada a concordar, um pouco envergonhada. Era tudo tão nítido para os outros, por que eu não via da mesma maneira? – Então, por mais que vocês tenham brigado, vai continuar sendo a pessoa que você moldou nesse pouco tempo que se conhecem. Só entenda que é difícil, pra ele, passar por esse problema que estamos tendo. Por isso, não desista dele. precisa de alguém como você.
- Antes de tudo, quero que saiba que dei meu máximo por ele no último mês, Susan. – confessei, em seguida sentindo um nó querendo se desfazer na minha garganta. O nó que eu tinha atado com o máximo de força que juntei durante o fim de semana. – Eu ofereci e fiz pra ele o que estava ao meu alcance.
- Eu não duvido disso. – ela sorriu, me apoiando.
- Mas ainda estou machucada com o que ele disse pra encará-lo de frente e fingir que nada aconteceu. – vi seu rosto se apagar minimamente. – Acho que ele ainda não concorda que eu faça parte da sua vida, mas não sabe como dizer. E quando um não quer, dois não brigam, não é esse o ditado? Eu não vou lutar por uma causa perdida, tenho meu amor-próprio.
- Tem razão. – Susan, apesar de contrariada, continuou sorrindo. De certa forma, compartilhávamos a mesma sensação de termos sido excluídas do mundo de quem gostávamos. – Mas tenha em mente que não devemos tirar, sozinhas, conclusões como essa.
Consternada, não a respondi. Fiquei de cabeça baixa, olhando para as minhas mãos, enquanto Susan se despedia e pedia para que eu a ligasse assim que recebesse qualquer notícia. Foi o momento em que cheguei mais perto de sucumbir à tristeza na frente de alguém, mas um fraco elo com o meu bom senso me fez resistir. Eu mal tinha noção de quantos sentimentos já tinham passado à minha cabeça nos dias que tinham se seguido, e cada vez mais surgiam novos. Ainda assim, eu fingia não sentir nada.
E no meio de tudo, eu havia me esquecido de mim mesma. Pensei tanto sobre como ele devia estar magoado que esqueci a minha mágoa. O período em que Livie chegou a Londres e saiu da casa dos não foi curto demais para que fosse nula a possibilidade de ela e terem se envolvido enquanto nós dois estávamos juntos. Eu não podia cobrá-lo fidelidade, mas lealdade, sim. Eu estava lhe oferecendo tudo que tinha sem o devido retorno, e isso era o que machucava. Tinha chegado ao ponto de cansar de sempre ceder, voltar atrás, expor meus sentimentos e pensamentos, sendo que dificilmente fazia o mesmo. Ele não iria confiar plenamente em mim logo de cara, eu sabia, entretanto, dar novas chances todas as vezes era desgastante, ainda mais nas circunstâncias em que me via. Existiam problemas demais para eu administrar, o que acabou me fazendo abrir mão de quando mais um – a falta de confiança da minha parte – apareceu.
Talvez eu precisasse apenas de um tempo afastada para pensar melhor. Para me refazer e acostumar com a ideia de que teria de encará-lo algum dia, antes do desejado. Sem a mesma sintonia que tínhamos. Não repentinamente, me senti sem chão ao pensar que poderíamos ter terminado o que tinha futuro. Porque eu me via com ele, no futuro. Com o meu .
Não era um caso clichê de “Perder para dar valor”, pois eu nunca fui do tipo que desdenha o que tem. Era o caso de finalmente notar o quanto eu me importava, o quanto fazia falta e o quanto eu me machucaria, se ele não aparecesse mais. A vinda de Susan até a minha casa tinha servido como estopim para a saudade tomar conta de mim e me pôr em estado de pânico. Eu não queria nem sonhando que o pior acontecesse a , queria apenas ele de volta, para que eu pudesse ter certeza de que estava bem. Mesmo de longe.

’s P.O.V.

Eu parecia estar dormente física e psicologicamente. Após o choque e o acesso de fúria, cheguei ao estado de não saber mais como me sentir. As emoções não me alcançavam, não me faziam saber se eu estava vivo, bem acordado e em minha plena consciência ou dormindo e sonhando com tudo aquilo. Além de dormente, estava perdido no tempo. Dia e noite, calor e frio, todo e qualquer sinal de que as horas tinham se passado eram inúteis, pois nem mesmo eles chegavam até mim. Eu podia estar há minutos, horas, dias ou semanas trancado no escuro, sem contato com o meio externo, que não fazia diferença. Minha noção de tempo se dava pela quantidade de filtros de cigarro no cinzeiro e só.
Esperaria ali até o instante em que um ponto de luz surgisse em minha mente e me fizesse querer voltar e encarar meus problemas. Encarar as pessoas que tinham se separado de mim, mas não o suficiente para que eu pudesse as esquecer dentro de alguns meses.
Até isso, continuaria inconsciente do mundo. Escondido e, intimamente, desejando que tudo se acertasse sem que eu precisasse mover um dedo. Não por fraqueza e comodidade, e sim por temer perder a razão novamente. A principal razão para eu ter fugido era para manter a calma. Conhecendo-me o suficiente, sabia que qualquer faísca acenderia a raiva mais uma vez. Tinha de ir devagar. Em passos curtos, mas firmes.
O primeiro havia sido dar satisfações a Susan, ainda que pelo telefone, antes de desligá-lo e jogar em algum canto. Com o tanto de preocupações que a tomavam de assalto, eu lhe daria mais uma. Contei-lhe, mesmo sabendo não ser da melhor forma, as mentiras de Otto e Livie, como reagi e como tudo estava antes de eu partir. Disse-lhe ainda que estava bem, seguro e precisando ficar sozinho; se eu não voltasse para casa, ela não devia se preocupar. Por último, pedi que não viesse atrás de mim e alertei que estaria incomunicável por tempo indeterminado. Essa não era a primeira vez que eu me isolava para pensar, ela entenderia, por mais que não aceitasse. Aliás, não havia nada que pudesse fazer, além de me esperar voltar.
De verdade, imaginava que seria rápido – algumas horas seriam o suficiente para eu refletir sobre a minha vida inteira. Entretanto, tinha tanto para ser revisto que às vezes eu chegava à exaustão. Antes e depois da morte de Leonard, os anos de desunião e, então, a ruptura. Eu já a esperava, porém vê-la surgir de maneira brusca à minha frente me tinha descarrilhado. Esperava qualquer coisa de Otto. Não de Livie. Tínhamos crescido como irmãos, aprendido a ser confidentes. Confiava minha vida a ela de olhos fechados. E agora tinha descoberto em que tipo de pessoa andava depositando minha confiança.

’s P.O.V.

- Eu sei que você sabe. – ouvi dizer ao fundo, no intervalo, após finalmente me encontrar no jardim, sozinha. Virei em sua direção, arqueando a sobrancelha. – Anda, fala onde anda o seu namorado e por que infernos ele resolveu não vir pros ensaios.
- Do jeito que você diz, parece que essa é a coisa mais importante que ele tem a fazer. – fui incisiva, voltando a olhar para outro lado.
- Você não reclamou do “seu namorado”! – observou. – Realmente foi algo sério. Vai, fala, . O que houve?
- Não quero falar disso. – Não ainda. Abracei os joelhos, ouvindo a grama farfalhar assim que se sentou ao meu lado.
- Vocês brigaram? – seu tom de voz mudou de prepotente para preocupado. Não, , volte a ser uma mandona idiota!
- Não é por isso que ele anda faltando. – respondi a contragosto, evasiva. – É um motivo pessoal, e não acho que eu deva entrar em detalhes.
- Desculpe te desiludir, mas você deve, sim. – ela me corrigiu, me fazendo a encarar, questionando o porquê com os olhos. – Não sei se você se lembra, mas tá praticamente em condicional, aqui no colégio. Tudo que ele faz ou deixa de fazer tem sido observado e avaliado, principalmente pela Moore. Pra ser sincera, é através dela que ele reprova ou não, pelo que pude perceber. Deixá-la na mão não me parece sensato, nesse caso. A menos que haja uma boa explicação. Se você tem essa boa explicação e quer o bem dele, é melhor ir falando.
- Mas e aquela história toda de substituição de notas? – franzi o cenho, intrigada. – Quer dizer que é tudo fachada?
- É... – pareceu ponderar. – Basicamente. Você sabe, Elizabeth é a mulher do diretor, vai protagonizar a peça... Se ele andar na linha, ela adianta o lado dele. Troca de favores.
- E só agora, faltando um dia pras provas finais, é que você me diz?!
- Você é esperta, , pensei que já tivesse pensado nisso. – ela foi sincera, me levando a, contrariada, concordar. Eu devia ter pensado nisso, apesar de ser uma saída incerta. – Então, o que houve?
Suspirei, pesarosa. E lá vamos nós mexermos na ferida novamente.
- Eu estava trabalhando de babá pra minha vizinha por causa dos vestidos, e acabei descobrindo que ela é uma conhecida da família dele. Mais que conhecida, é uma amiga de família e amante do pai de . A criança que eu cuidava era, inclusive, irmã de . Como ninguém sabia que eu sabia, preferi não contar pra evitar levar mais problemas pra cabeça dele, mas não adiantou muito, porque ele descobriu sozinho. brigou sério com o pai e, no meio disso tudo, descobri que ele continua sendo o mesmo idiota de sempre. Nós nem chegamos a brigar, porque ele não queria me ouvir e eu não queria insistir. E agora ele tá desaparecido, embora a mãe dele tivesse ido lá em casa pra procurá-lo, ontem, e me dito que ele tem o costume de sumir, quando fica nervoso.
- Oh... – disse . – Agora entendo por que você não queria entrar em detalhes. – forcei um sorriso, como se dissesse “Pois é”. – A parte da família dele eu entendi, mas a dele de ser um idiota, não.
- Ele só é um idiota, fim. – bufei.
- Dramática.
- Não sou. – retruquei, vendo duvidar de mim. – De verdade, não é drama meu.
- Me faça acreditar nisso.
- Argh! Como você é irritantemente teimosa!
- Eu diria persistente.
- É só um eufemismo. – observei, me dando por vencida. – Enfim... fodeu a amante do pai. Enquanto estávamos juntos. Ele nem mesmo queria que eu falasse com , e andava por aí transando com “amigas de família”.
- Tá aí algo que eu não esperava. – minha amiga falou, surpresa. – Ele é um idiota mesmo! E que fique claro, só te dou apoio porque no exato momento que ele te cobra exclusividade dessa forma, você tem o mesmo direito. Até porque vocês...
- Não namoram oficialmente, blá blá blá. Eu já sei disso, tá bom? – revirei os olhos, emburrada. – Acho que aconteceu antes de nós realmente começarmos a nos levar a sério, mas desde o começo ele nunca quis que eu chegasse perto de outro. Era como se, na cabeça dele, eu pertencesse a ele e só. Mas o contrário não existia. Eu não ia ficar aturando isso sem fazer nada.
- Talvez, com esse tempo fora, ele perceba que errou.
- Eu duvido. – confessei. – é orgulhoso demais pra isso. Isso tudo não é uma coisinha simples que a gente pode pedir desculpas sem realmente querer se desculpar.
- Se ele pedir, é porque gosta de você de verdade. – sorriu amigavelmente. – As palavras dele vão ter algum significado, ele vai ter passado por cima do orgulho pra te ter de volta.
Fazia sentido o que ela dizia. E meu lado esperançoso logo se agarrou àquela possibilidade.
- Ultimamente, mesmo sem acreditar que a gente vá se acertar, eu quero que tudo volte ao normal. – admiti, mordendo o lábio e trazendo as pernas mais para perto de mim, rodeando-as com os braços. – São só alguns dias, mas eu sinto muito a falta dele. Eu já tinha me acostumado a vê-lo todos os dias, a falar com ele todos os dias, e agora eu só posso esperar ele voltar sem ter certeza de nada.
- Você tá apaixonadinha! – ouvi minha amiga estrilar. – tá apaixonada!
- Não, não tô. – balancei a cabeça avidamente, envergonhada.
- Claro que sim!
- Não mesmo!
- Totalmente!
- Cala a boca, ! – ralhei, olhando para os lados, para ver se alguém prestava atenção.
- Assuma!
- Tá legal, talvez eu esteja. – resmunguei, me encolhendo ainda mais. – Ou talvez seja só preocupação. Antes, pelo menos, eu podia saber o que tava se passando com ele. Agora não tenho a mínima ideia. Eu sinto falta de respostas, entende?
- Você só precisa ouvir um “Eu também”. – riu, implicando comigo. – Essa insegurança toda é porque ele nunca disse com todas as letras que gosta de você tanto quanto você gosta dele. Vai dizer que é mentira?
- Talvez... – considerei, olhando para o visor do celular. Durante todos os três dias em que ele esteve longe, eu esperava uma ligação ou uma mensagem sua me chamando para conversar. Eu estava pessimista (com razão) quanto a isso acontecer, mas caso acontecesse, minha visão seria mais otimista. Bastava um sinal seu de que tudo ficaria bem, e eu acreditaria. – Eu nem sei se gosto dele tanto quanto você acha.
- Ah, gosta. Como gosta! – suas expressões se tornaram divertidas, ou fui eu que comecei a achar graça em qualquer coisa por estar nervosa com o caminho que a conversa andava. – Quando vocês estão juntos, você passa o tempo todo olhando pra ele, como se esperasse ver alguma novidade ali. Você ri mais, apesar de falar menos. Aliás, vocês dois já conseguem se entender sem dizer muita coisa. Fora as histórias que você me conta sobre os dois, nem parece a mesma pessoa que eu conheço. Você, muito menos. As pessoas só ficam assim quando se apaixonam.
- Você não sabe do que tá falando, mulher. – fingi ignorar seu discurso somente para que ela parasse de me atormentar. Eu já sabia de tudo aquilo, tinha notado desde o momento em que Susan me pressionou contra a parede, só não queria gritar pros quatro ventos. Se tivesse um pouco de calma, eu acabaria lhe dizendo tudo que tinha refletido na noite anterior. Era algo que passava longe das borboletas no estômago.

’s P.O.V.

Em uma hora que eu não sabia qual da manhã, o sol finalmente apareceu por trás da cortina, a qual esqueci aberta durante a noite, enquanto fumava. Parecia ter passado uma eternidade desde que saí de casa, no sábado, e eu tinha a impressão de que não mudaria muita coisa, se continuasse dessa forma.
Procurei meu celular pelo quarto, encontrando-o no vão entre a cama e o criado-mudo. Voltando a me deitar de barriga pra cima, ergui o aparelho à altura do meu rosto, avaliando se devia ou não ligá-lo. Já sabia que assim que o fizesse, teria mensagens e ligações perdidas, além das que caíram na caixa postal e alguém se deu ao trabalho de esperar o recado da operadora pra tentar falar comigo. Porém, até eu estava cansado dessa história de me isolar. Tinha me acalmado, mas só isso não resolveria a minha vida. Eu era obrigado a voltar para Londres.
“Você tem sete mensagens no correio de voz.”
, sei que você quer ficar sozinho, mas me diga onde você está. Pelo menos para eu saber que você está bem. Ligue pra casa quando ouvir essa mensagem.”
“Caralho, , você é doente?! Que história é essa de espancar seu pai?! Sua mãe veio aqui em casa, atrás de você. Ela deve tá puta demais contigo por isso. Aparece logo, seu viado! Me liga!”
, quando você volta? Precisamos conversar. Não demore muito.”
, tá tudo bem? e Emma me contaram que você sumiu, e depois sua mãe apareceu aqui. Pra ela ter feito isso, algo não tá certo. Você quer conversar? Sabe onde me procurar. Me ligue, se quiser.”
“Filho, volte logo, por favor. Você me pediu para eu não me preocupar, mas sem saber onde e como você está, não dá. Venha logo pra casa.”
, aqui é Vica. Volte logo para casa, sua mãe está louca de preocupação. Ela tem ido a todos os lugares que você poderia estar, para te encontrar. Pare de pensar só em você e dê um pouco de tranquilidade para ela. Não ligue, apareça.”
“Hm... Sei que não estamos exatamente de bem com o outro, mas não é por isso que liguei. Sua mãe me procurou agora há pouco, perguntando de você. A sua cabeça deve estar uma bagunça ainda, mas a dela deve estar pior. Susan precisa de você, ... Volte para casa, todos estão preocupados com você.”
“Você não tem mais nenhuma mensagem no correio de voz.”

Respirei fundo, passando as mãos pelo rosto numa tentativa de despertar de verdade. Eu tinha que voltar, mesmo sem querer. Na busca de respostas, me esqueci de pensar Susan. Esqueci-me da dimensão das coisas que caíam sobre seus ombros, só aumentei seu fardo. Com o casamento em crise, ela preferiu dar preferência a mim, que só tinha fugido como um rato. Eu era um babaca.
Sentei, bagunçando o cabelo enquanto pensava no que dizer. Minha mãe estava rodando a cidade atrás de mim, enquanto eu refletia sobre a minha vida, as minhas decisões... E ainda me achava digno de dizer que estava dando algum passo para melhorar meu relacionamento com Susan. Idiota.
Talvez eu devesse falar exatamente isso, eu tinha sido um idiota. Poderia ser tarde para tudo, mas não para voltar atrás. Se Susan se importava mesmo comigo, estaria aberta para me ouvir.
Disquei o número de casa, torcendo para que ela ainda estivesse lá. Levaria duas horas até que eu chegasse em casa, se o trânsito estivesse bom, eu queria falar com ela o quanto antes.
- Alô, ? – ouvi sua voz esperançosa do outro lado, o que me congelou por dentro. Ela não estava tão segura assim, como nos recados que havia deixado. Antes que eu notasse, minha boca expulsou:
- Mãe... – e eu me calei em seguida. Há quantos anos eu não a chamava assim? Parecia até ser com outra pessoa que eu falava. – Eu fiz você se preocupar comigo, me desculpa.
- Não tem problema, meu filho. – pelo seu tom, eu não sabia se ela sorria de felicidade ou chorava de raiva de mim. Um pouco dos dois, provavelmente. – Onde você está?
- Southsea. – respondi, ouvindo ao fundo a voz de Jonsey perguntar “É ele?”. – A casa tava vazia, já que Jonsey e Vica estão aí. Não quis ir pra nenhum lugar em que não estivesse confortável.
- Se essa também não fosse sua casa, você estaria proibido de por os pés aí de novo. – ri, um pouco sem graça. – É sério, .
- Desculpa. – murmurei novamente, notando que pela primeira vez eu parecia ser o filho, e ela, a mãe. – Liguei pra avisar que já tô voltando pra casa. A gente vai poder conversar direito mais tarde.
- Você sabe que seu... Otto também vai participar dessa conversa, não sabe?
- Já imaginava. – falei com desânimo. A parte de não querer vê-lo nunca mais era uma das maiores verdades que já disse.
- Acho também que você precisa conversar com .
Fiquei em silêncio, surpreso. Como ela soube? O que soube?
- Como assim?
- Não sei o motivo, mas sei que vocês brigaram. – ela respondeu, me deixando respirar mais aliviado. – Ela gosta de você, corra atrás. Não faça a burrice que eu fiz contigo quando você era mais novo.
- Do que você tá falando, mãe? – soei desafinado, um pouco nervoso. Que diabos Susan estava pensando para falar aquilo?!
- Estou te dizendo para ser homem, . Ter coragem e humildade para pedir desculpas, se tiver errado, e se acertar com . Ela é uma menina ótima, além de gostar de você. Não a deixe escapar fácil assim.
- Como você tem tanta certeza disso? – estava incrédulo, e não sabia se era pela intromissão na minha vida amorosa ou pela convicção que minha mãe dizia que eu devia falar com . Existia uma família se desfazendo nesse exato momento, e por acaso essa família era a nossa, será que ela não lembrava? – O que você disse pra ela? Eu sei que você foi até a casa dela.
- Nada além do óbvio. – foi o que ouvi como resposta. Arregalei os olhos, imaginando que tipo de conversa as duas podiam ter tido. – E quando respondeu, disse que era parte da sua vida, embora você parecesse não aceitar.
- Mas eu...
Minha voz se perdeu no meio do caminho. Em uma rápida retrospectiva, notei que eu realmente tinha a repelido. Era difícil compreender por que tinha escondido o que sabia de mim, mas esteve todas as vezes ao meu lado. Quando eu tinha sido alvo de boatos, ela não se importou. Quando achei que não tinha mais chances, ela me fez ver que existiam, sim, oportunidades. Quando errei, tive seu perdão. Várias vezes.
Como eu era um babaca! Idiota filho da puta!
- Volte para casa logo, não é só comigo que você tem assuntos pendentes. – Susan tornou a falar quando emudeci.
- Certo. Em duas horas eu tô de volta. – respondi, sentindo que finalmente tinha posto os pés no chão, e agora eles estavam sendo fortemente puxados para baixo. Depois de tantas vezes, não tinha certeza de que aceitaria minhas desculpas.
E pela primeira vez, eu estava com medo de perder alguém. Não era um alguém qualquer, era a minha . A que eu tinha batalhado para conseguir conquistar e estava a um passo de não ter mais.
Recordei, então, do primeiro dia que passei em Southsea. A sensação de faltar algo chegava a ser angustiante, mas eu não fazia ideia do que me causava aquela abstinência. Eram tantas coisas passando pela minha cabeça ao mesmo tempo em que não conseguia me concentrar em um só pensamento. Com o passar dos dias, achei não sentir mais nada, porém, eu apenas tinha me acostumado, já que nada na casa de praia tinha ligação com . Assim, quando Susan disse seu nome, tudo voltou à tona com assustadora intensidade.
Eu precisava falar com . Ouvir sua voz, ver seu sorriso, abraçar seu corpo. Mas... E se ela não me aceitasse mais?

Quando atravessei a porta dos fundos, sabia que não seria a última vez que veria Otto, embora fosse minha maior vontade. No futuro, talvez eu conseguisse me afastar completamente dele, mas, em todo caso, ainda tinha que o aturar algumas vezes durante o decorrer do processo de divórcio. Obviamente, Susan não deixaria passar em branco o último episódio e pediria a separação finalmente, por isso eu tinha tanta certeza sobre não ter mais a obrigação de aguentar meu querido pai.
Encontrei Vica e Jonsey, que interromperam sua conversa, na cozinha. Os dois me olharam; ela, com uma mistura de alívio, raiva maternal e compaixão, já ele, com pesar e vergonha. Apenas os cumprimentei com um aceno de cabeça desajeitado e retraído, notando que, a partir daquela semana, nada mais seria o mesmo.
Meus pais estavam na sala, envolvidos em uma atmosfera pesada, cada um em seu canto. Otto tinha ainda hematomas no rosto e pescoço, além de pontos no supercílio, como exemplos do que acontecia por ser um filho da puta. Olhar para ele e ainda enxergar arrogância em seu semblante fervia meu sangue, mas eu não podia me desequilibrar de novo. Estava ali por Susan, devia o mínimo de consideração a ela.
- Sente-se. – disse Susan, sem me encarar. – Quanto antes começarmos, antes terminamos.
Fiz o que me foi pedido, desconfortável como me era permitido, a julgar as circunstâncias.
- Você tem noção do que fez para o seu pai, ? – minha mãe indagou, demorando até me olhar nos olhos. Franzi o cenho, confuso.
- Ele não é meu pai. – respondi rapidamente, de forma natural. Havia anos que não me sentia filho legítimo de Otto, assumir em voz alta não seria difícil.
- Ele é, sim. – ela me contradisse, séria. – É o que consta nos documentos até hoje.
- E daí?
- E daí que, como punição, isso pode ser caracterizado como lesão corporal grave e danos morais, basta um bom argumento. – explicou. Entendi parcialmente onde ela queria chegar, desviando meu foco para Otto.
- Você vai me processar, é isso?! – me exaltei, ainda que me mantivesse sentado. – Depois de tudo, ainda vai dar uma de vítima?!
- Calma, . – Susan pediu, me deixando boquiaberto. Otto não dizia nada nem reagia a mim, provavelmente já tinha dito tudo o que queria enquanto eu estava fora.
- CALMA?! Que calma o quê, caralho! – esbravejei, a pulsação a mil por hora. – É absurdo que esse cara faça todas as putarias que ele te fez e ainda venha com mais uma de brinde! E você vai aceitar tudo assim, na boa?! Entre na justiça e tire todos os bens dele por danos morais pela porra da traição!
- Não posso. – disse minha mãe, resignada.
- Se ela fizer isso, dou queixa na polícia e abro um processo em paralelo contra você. – Otto se pronunciou, me dando um baque com sua ameaça. – Você vai preso antes mesmo que sua mãe consiga uma libra minha. E caso você fique preso sob fiança, o que eu duvido muito, devido ao seu comportamento constantemente agressivo e o número de testemunhas que podem confirmar minha versão, o preço seria tão alto que o que Susan ganharia no tribunal seria para te soltar.
Olhei novamente para minha mãe, em busca de algum sinal de que tudo aquilo era mentira. Ela respondeu ao meu olhar com um suspiro de pesar.
- O trato é que eu ceda todos os bens que ficariam comigo pela comunhão, em troca da sua liberdade. – falou com um fino, quase inexistente, traço de otimismo. Eu continuava mudo, não acreditando no que ouvia. – Não vou abrir processo por dano nenhum, muito menos exigir pensão.
- Então, o que você decide? – Otto me pressionou, aposto que querendo sorrir de deboche. Estava tão atônito, conectando pensamentos, que por um momento ele deixou de existir ali, para mim. – Acho que é melhor dar um tempo para vocês, não é? – ele se levantou, pelo que vi perifericamente. – Quando decidir, mande seu advogado me procurar.
Demorou alguns minutos após a saída de Otto para que eu saísse do estado de choque. Minha mãe me observava, apreensiva.
- Por que... por que ele fez tudo isso? – questionei, falhando a voz. – Não tinha necessidade de chegar onde chegou, tinha?
- Não, não tinha. – ela me respondeu, levantando-se da poltrona em que estava para se sentar ao meu lado. – Mas agora que chegou, não adianta lamentar.
- A gente pode achar uma saída, né?
- Mesmo que achemos, Otto vai ter alternativas também. – ressaltou, mostrando-se, então, claramente abalada. – Você é o único que eu tenho, agora. Não posso arriscar te perder por causa de uma imprudência, .
- Mas...
- Não tente consertar as coisas do seu jeito. – me interrompeu, me abraçando de lado e beijando o topo da minha cabeça. – Deixa que eu tomo conta desse problema, ok?
- Eu quero te ajudar. – falei, embora não fizesse ideia de como ajudaria.
- Só fica do meu lado, tá? – vi um sorriso fraco em seu rosto. – Já é o bastante.
- Vou ficar. – respondi. – Prometo.
- E fique sabendo que se você desaparecer de novo, eu te deserdo. – Susan riu, e eu fiz o mesmo. – Não que você vá ficar com muita coisa, mas ainda assim.
- Já disse várias vezes que não me importo com o que tenho hoje. – lembrei. – Uso porque tenho. Se não tivesse, não sentiria falta.
- Mesmo se você não pudesse mais morar nessa casa ou em Southsea?
- Eu só venho pra dormir e comer, ultimamente. – observei, rindo sem humor. – E passei anos sem ir pro litoral, não seria agora que voltaria.
- Mas e se o único lugar que pudéssemos morar agora fosse em um apartamento na cidade que nasci?
- Cardiff? – franzi o cenho, estranhando sua pergunta. Susan me respondeu balançando a cabeça na vertical, parecendo estar na expectativa. – Isso fica em País de Gales.
- Eu sei, . – ela disse, calma. Novamente fiquei somente à procura de palavras. – Recebi uma proposta melhor por lá há umas semanas, vou levar a empresa pra Cardiff. Antes, eu passaria quatro dias lá e o fim de semana aqui, mas as circunstâncias mudaram. Não tem por que eu continuar em Londres.
- Por que você não me disse antes? – foi a única coisa que consegui proferir, surpreso. – Que merda, será que eu vou ser sempre avisado por último?!
- A ideia ainda estava sendo considerada, por isso não te falei. – justificou-se Susan, não me tranquilizando muito. Eu até aceitava a mudança de casa com naturalidade, mas de país já era uma história diferente. – Com o divórcio, vou ter que dar minha parte das casas e o Land Rover pro seu pai. Como o Mustang tá no seu nome e o apartamento eu já tinha desde que era solteira, ele não vai poder tocar.
- Eu nem sabia que esse apartamento existia. – confessei, notando o quanto eu era alienado da minha própria família. – Achava que era blefe, quando vocês me ameaçaram a me mudar.
- Era pra ser do Leo, quando ele saísse da universidade. – ela explicou. – Acabei esquecendo por um tempo, depois botei para alugar. Pedi de volta dois meses atrás, quando surgiu a proposta pra empresa. Um amigo meu cuidava da papelada e da reforma, pra mim.
- Amigo?
- Amigo, sim. – ela censurou meu tom de dúvida. – Já não nos vemos há um tempo, mas estudamos juntos em Cambridge.
- Hm.
- Não venha bancando o ciumento, . Não é exatamente o momento certo. – minha mãe foi incisiva, levantando-se. – Por falar em momento certo, não acha que é a hora de procurar ?
- Depois de hoje, sinceramente, não sei.

’s P.O.V.

Contando desde sábado, já era a quarta noite mal dormida. Eu tinha recuperado minha concentração durante o dia forçadamente por culpa do teatro, e à noite aproveitei a falta de sono para revisar algumas matérias. Não era uma grande ajuda, mas ao menos era alguma. O resultado, pela manhã, era a melhor-pior cara de velório possível. até mesmo tinha passado a me chamar de Mortícia Adams, e eu concordava com ela.
Como era dia de prova, as duas turmas ficavam misturadas de acordo com o número de chamada – os ímpares na turma A, os pares na B –, e eu sempre acabava isolada entre pessoas que conhecia, mas não conversava. O que era muito bom, pois eu prestava atenção somente à minha prova.
Terminando uma hora antes do fim previsto, ainda tinha de esperar Noel para voltarmos para casa, por mais que me faltasse paciência para tal. Aproveitei o tempo livre para conversar com a sra. Moore sobre os últimos ensaios. Apesar de ser obrigado a protagonizar, caso faltasse mais um dia, teria de ser substituído. Nada mais justo para com o resto do elenco, mas injusto para com , a julgar seus motivos. Obviamente me vi com a sensação de vazio pela possibilidade de não contracenarmos mais juntos. Havia passado todos os ensaios ao seu lado, vendo-o como Christian. Ter outra pessoa em seu lugar tiraria a mágica que tínhamos criado. Seria um mês e meio de trabalho intensivo jogado fora. E seu ano letivo inteiro também.
Parei para notar a proporção a que as coisas tinham chegado. estava sendo retirado da minha vida bruscamente, deixando uma enorme lacuna que eu não sabia como preencher. Em uma metáfora, eu estava em um terreno que, a cada passo, o chão cedia. Tinha apenas as alternativas de ir em frente ou esperar a queda, e ambas eu teria de lidar sozinha.
Não sabia, inclusive, o que era estar sozinha até os últimos dias. Tinha partilhado tanto do meu tempo que pareceu irreal tê-lo todo para mim. Sem eu nem querer, tudo que o ofereci era, agora, obrigatoriamente meu. Meu tempo. Meu eu. Eu só.
Final e infelizmente tinha entendido o que era estar sozinha na multidão. Literalmente. Havia diversas pessoas pelos corredores, mas sequer uma me alcançava, seja com o olhar ou um cumprimento. Estava tão envolta em meus próprios pensamentos que me ceguei e ensurdeci para o exterior.
Porém, dentre os borrões ao meu redor, eu o vi. Estáticos, encaramo-nos por intermináveis segundos, presos entre a dúvida de correr de encontro ou para longe do outro. Senti as pontas dos meus dedos formigarem, loucos para se entrelaçarem aos dele, mas me contive, com medo da rejeição. Entretanto, não pude controlar meus lábios, que se abriram o suficiente para que seu nome escapasse como um sussurro.
“Diga alguma coisa”, pedi a ele em mente. “Diga que sentiu minha falta.” Cada centésimo representando uma batida do meu coração, embora o tempo parecesse ter parado. No meio de tanto a ser dito, contudo, nenhuma palavra se fez audível. Mas nas íris de eu pude ver as únicas que eu não queria receber: me desculpe.
Aquele era o nosso adeus.


Capítulo 30 – Parte 1

’s P.O.V.

Nunca havia pensado que me machucaria ver quem eu queria. E num infeliz déjà vu, me vi novamente na posição de quem tem de terminar para o bem de ambos. Com a diferença de que, agora, eu não estava mais em um relacionamento desgastado e fadado ao fim, estava começando um que finalmente era promissor. Estavam retirando de mim algo que mal era meu, me deixando sem nada mais uma vez. Tirando meu pouco de alegria naqueles últimos meses. Eu não tinha o direito à felicidade?
O que mais me deixava inconformado era ter de fazer as pazes sem poder voltar com . Não devia prendê-la a mim, caso eu tivesse que ir para Cardiff. Seria egoísmo demais até mesmo para alguém como eu. Apesar de eu querer, sim, ter a certeza de que ela esperaria até o dia que eu pudesse voltar a Londres. Mas com o pouco tempo que tínhamos juntos e as muitas discussões, eu duvidava que ela aceitaria. Era mais sensato abrir mão da garota incrível que tinha me achado. E eu tinha que fazer isso o quanto antes, para evitar maiores choques.
Então, na manhã seguinte à notícia da provável mudança, mesmo sem saber nenhum assunto da prova de humanas, fui ao colégio a encontrar. Estávamos em salas separadas, por causa da palhaçada anti-cola que nem mesmo funcionava, logo, tive que esperar até o fim do horário de prova para procurá-la pelos corredores. Quando finalmente a encontrei, mal pude me mover, congelado de arrependimento prévio por ter aquela conversa. Eu lhe devia desculpas pelos problemas que a causei, pelo tempo que a fiz perder comigo e por fazê-la ter esperanças de que avançaríamos de alguma forma. Talvez, no fundo, ela já soubesse que não seríamos nada, e por isso quis tanto estar comigo nas últimas semanas. Vai ver ela só fingia que estava gostando de mim, para no fim eu ser o trouxa. Não era o que costumava fazer? Bancar a sedutora, de vez em quando?
Que porra eu tava pensando?! Eu não devia sentir raiva dela. A culpa era minha, só minha.
Como eu queria ter uma conversa séria, se nem um raciocínio completo eu tinha? Começava com uma ideia, terminava com outra completamente diferente. Nem mesmo sabia se a chamava de , ou “minha”, algo que era trivial e, ainda assim, seria decisivo para o rumo que eu tivesse de tomar, naquele instante.
Ela, entretanto, disse meu nome entre seus lábios mais avermelhados que o comum, devido à forma como eram mordidos. me chamou à realidade, enquanto continuei preso na ebriedade dos meus pensamentos. Eu não a respondi, embora tentasse. Queria que ela me perdoasse, além de tudo, por não atender às suas expectativas naquele momento delicado.
Sua atitude seguinte, inesperada por mim, foi dar meia-volta e sair andando rapidamente entre os outros alunos. Vê-la novamente me dando as costas me fez despertar, correr atrás. Se eu não ia mais tê-la, ao menos não queria que ela me odiasse.
- ... – disse baixo, soando incorreto para os meus ouvidos. – !
Vi sua silhueta se retesar, para depois se afastar com mais velocidade.
- , espera! – gritei mais uma vez, vendo que chegávamos ao auditório.
- Me deixa em paz! – ela ralhou de volta, empurrando com força a porta vai-e-vem, que quase me acertou em cheio.
- Me ouve, primeiro! – rebati, bem em seu encalço. Ela subiu a escada lateral do palco, seguindo para a sala de concentração. – Depois, se você quiser, eu te deixo em paz.
- Eu não quero. – respondeu mais baixo, tentando bater a porta. – Vai embora logo! Se no fim das contas é isso que você quer, me poupe da enrolação.
- Não vou, não enquanto você não me ouvir. – forcei a passagem, em seguida fechando a porta que já estava com a trava acionada. Se não abríssemos por dentro, somente alguém com a chave poderia destrancá-la.
- É assim que você pretende me pedir desculpas, na marra? – foi incisiva, mantendo a distância entre nós.
- Você nem mesmo quer me ouvir, sem ser dessa forma. – retruquei, tentando não ser rude.
- Característica que adquiri de você. – ela sorriu falsamente, cruzando os braços. – Dizem que absorvemos os defeitos dos outros com muito mais facilidade que as qualidades. Não é que é verdade?
- Não começa...
- Sabe o que eu aprendi com você também? Perder a cabeça fácil. – seu rosto estava sombrio, os olhos injetados e as palavras cortantes. Eu merecia aquilo, mas não agora que queria fazer as coisas ficarem bem. Merecia, mas não queria ouvir, porque já sabia. – Não enxergar o óbvio, e quando estiver tudo na minha cara, explodir com qualquer um que não tenha nada a ver.
- , eu não quero brigar contigo.
- E quer saber também a maior lição que você me deu? – ela mal me ouvia, jogando na minha cara os meus erros. – Que eu devo fingir sobre o que sinto. Mentir pra conseguir uma transa, sem o menor remorso.
- , PARA! – gritei ao ponto de ouvir minha voz reverberar pela sala. Sua feição mudou de cruel para assustada. Caminhei em sua direção, aproveitando sua imobilidade. – Eu não tiro a sua razão de estar com raiva de mim, mas, por favor, me ouve... Por favor.
- Por que eu deveria? – disse ela, ainda na defensiva, apesar de me deixar chegar perto.
- Porque eu não menti. – respondi. – Eu não fingi tudo aquilo pra fazer sexo com você. Na verdade, eu nem imaginava que isso fosse acontecer, porque sempre achei que você não fosse querer algo do tipo comigo. Eu realmente senti tudo que disse que senti, achei que as várias demonstrações que te dei fossem suficientes.
virou o rosto, consternada. Voltou a morder os lábios, controlando o que falaria em seguida.
- Não, não foram. – disse, evitando a todo custo me olhar. – Sendo sincera, eu nunca pude confiar plenamente em você, . As pessoas sempre comentavam de como você era com Allison, qual era a minha garantia de que você não me faria o mesmo?
- Mas eu não sou o mesmo, não dá pra ver?! – procurei seu olhar, mas quanto mais eu tentava alcançá-lo, mais ela se virava.
- Eu preciso de algo concreto. De palavras que tenham significado que eu consiga ver. De ações que condizem com as palavras que você me deu.
Suas declarações me faziam sentir minha coragem se rachando em vários pedaços. Eu jurava que tinha sua plena confiança, uma vez que nunca demonstrou o contrário.
- Além da sua mania de achar que eu era propriedade sua, que sempre me fez questionar se não era, na verdade, projeção da insegurança você causava nos outros. – mas apesar de estar me agredindo com tamanha frieza, ela estava sendo sincera e coerente. – Você sempre foi o elo fraco, que cede fácil a qualquer pressão, e acreditava que todos iriam fazer o mesmo. Preferia acreditar na culpa dos outros que na própria. Você acaba nem vendo como vai afastando aos poucos as pessoas que te querem bem, desse jeito.
- Eu não consigo evitar. – assumi, cabisbaixo.
- O quê, ? – indagou, encostando-se lateralmente na parede. – O que você não consegue evitar?
- Ficar na defensiva. – respondi, imaginando em que momento me deixei ser tão visível, ou quando conseguiu ler o código que eu era. – Por anos eu tive que lidar sozinho com um inferno psicológico. Eu sou podre por dentro. Não gosto que vejam a bagunça que é a minha vida, então sempre monto barreiras pra que desistam de mim.
- E por que você me descartou na primeira oportunidade? – ouvi sua voz doce oscilar. Erguendo meu olhar, encontrei seus olhos marejados. – Mostrar, e até dizer com todas as letras que eu não desisti de você não foi o bastante?
- Foi. Foi, sim. – me apressei para falar. – Me dei conta disso muito antes, mas não estava acostumado a ter tanta compreensão e apoio, não soube como reagir. De cabeça quente eu não sou nem um pouco racional, você mesma já disse.
- Isso não justifica.
- Mas não tenho nada que justifique. Se eu tivesse, seria mentira. – confessei, novamente tentando me aproximar. – Só que eu não quero mentir pra você, .
- Já que é assim, me diz por que você dormiu com a Livie. – ainda que seus olhos lacrimejassem, estavam firmes e fixos nos meus. Nebulosos e intransponíveis.
- Eu... – balbuciei, tentando pensar em uma boa razão. Não havia nenhuma. – Não sei. São várias coisas que se juntaram, mas qualquer uma não vale a pena dizer. Se isso te magoou, só posso te pedir desculpas.
- É claro que magoou. – silvou. – Esperava alguma reciprocidade, já que você não queria nem me ver com quem eu já tive algo, e eu aceitei. Não era como se eu te proibisse de ver todas as garotas com quem você ficou, mas ao menos evitasse dar em cima. Não era um pedido muito difícil, era?
- Você acreditaria se eu dissesse que tentei?
- Não.
- Mas é verdade. – argumentei, notando sua descrença. – Passei semanas sem falar com a Ally direito, porque ela parecia ainda não perceber que tínhamos terminado de vez. Eu mal saía de casa à noite, porque além de beber e não controlar o que ia fazer, sabia que ia acabar de ressaca no dia seguinte e você brigaria comigo pela falta de atenção.
- E com a Livie, como você tentou evitar?
- Tá legal, eu não tentei. – passei as mãos pelo rosto e depois cabelo, atordoado. Que merda eu tinha feito?! – Fazia anos que eu não a via, nem imaginava que um dia ela fosse aparecer hospedada na minha casa. Nós já tivemos um rolo antes, coisa de verão, acabou rápido. Era só atração, nenhum sentimento envolvido. Quando ela chegou, foi como se quiséssemos relembrar. Mas foi só daquela vez, eu juro.
- Não devia ter sido em nenhuma. – ela continuou reticente. Tínhamos chegado a um ponto que não sabia mais se conseguiria nem a sua amizade. Eu tinha noção de que não seria fácil, mas não que ela teria toda uma linha de frente contra mim. Só agora eu via o quanto a tinha machucado durante todo esse tempo.
- Mas eu fui um idiota e errei. – admiti, como último recurso. Se não aceitasse minhas desculpas após eu mesmo me condenar, não tinha mais o que eu fazer, além de respeitar. – Pior que um idiota, eu fui um filho da puta sem escrúpulos. Quis te controlar, sem te dar poder suficiente para fazer o mesmo comigo. Nunca agradeci pelos seus esforços pra não me deixar ficar mal em vários aspectos. Te julguei quando você teve a melhor das intenções. Só notei o quão maravilhosa você é quando te perdi.
- Você só é mais um cara igual a tantos outros que existem. – ela sorriu amarelo. – Eu que fui uma burra de acreditar que podia mudar você.
- Não, ! Não... – balancei a cabeça para os lados, me agarrando ao último fio de esperança que eu tinha. – Eu não sou igual aos outros porque tive você. Não foi por toda uma vida, mas o suficiente pra eu ver que posso, sim, confiar em alguém. Pra ver que as pessoas podem me surpreender de uma boa forma. Você me fez ser mais otimista, numa época em que eu não via mais sentido em nada. Você pôde e me mudou, .
Silenciosa, deixou as lágrimas, até então fortemente presas, escorrerem pelo seu rosto. Vencendo o mínimo espaço que ainda restava entre nós, abracei seu corpo quente. Seus braços ainda cruzados foram desfazendo a armadura que ela tinha montado contra mim, enquanto sua cabeça se aninhou em meu peito.
- Durante esses dias que fiquei fora, tentei incessantemente pensar na minha vida, entender tudo que vinha acontecendo. – continuei, mais tranquilo por tê-la persuadido. – Eu fui egoísta de achar que era o único que estava sofrendo, esqueci as pessoas que também estavam sendo afetadas com os problemas que apareceram. Me esqueci de Susan, de Victoria, de você... por causa disso, não consegui encontrar bons motivos pra pôr a cabeça no lugar de novo. Vocês não desistiram de mim nem quando eu mesmo fiz isso. Sou eternamente grato às três.
Comecei a ouvir seus soluços entre minhas palavras. Apertei meu abraço, beijando o topo da cabeça de . A sensação de tê-la de volta esvaziava meu peito de um jeito bom. Eu não conseguiria ter somente sua amizade, depois de experimentar ter tudo. Precisava de mais.
- Quer saber? – perguntei, ouvindo um “Hm”. – Eu não posso nem vou deixar você sair de perto de mim. Você não é exatamente o que eu procurava, mas é exatamente o que eu preciso. E isso basta.
- ... – senti seu peito inflar com sua respiração profunda e tive medo. Ela não ergueu a cabeça para me encarar. – Tenho que ser sincera e te dizer que eu quis te esquecer. Tive que tirar forças do além pra aguentar tantos dias sem uma notícia sua, achando que parte disso tudo era culpa minha. Você não me fez bem. – e um silêncio mortal se fez. Afrouxei meus braços, surpreso, porém, não me deixou sair. – Ainda assim, eu quis de volta os dias ruins, porque os bons também voltariam. Mesmo sabendo que existia a chance de nunca mais voltarmos, eu queria estar contigo no fim do dia. Eu queria você do meu lado no palco, como Christian. E queria você do meu lado fora do palco também. Continuo querendo.
- Me perdoa por tudo que te fiz? – pedi, segurando seu rosto avermelhado. – Principalmente por ter te chateado tanto? – assentiu com a cabeça, parecendo envergonhada demais para falar. – E você aceita tentar de novo?
Eu sabia as consequências, caso ela aceitasse. Mas não iria desperdiçar mais uma vez a chance de estar com a minha .
- Você sabe que não vai ser como antes, não é? – ela indagou, subitamente séria. – Apesar de eu querer muito ficar contigo de novo, não vou conseguir confiar completamente em você. Simplesmente não dá.
- Se você ainda tiver um restinho de confiança em mim, já tá bom. – respondi, contente por haver uma condição. Significava que ela aceitaria. – Eu conquisto o que falta com o tempo.
- Então eu aceito.
Sorrimos, para em seguida nos beijarmos como se nunca tivéssemos o feito. E nossa, como eu sentia falta de beijá-la! De abraçá-la, sentir seu perfume, bagunçar seus cabelos...
Só não sentia falta de algo ou alguém nos atrapalhando. Isso eu dispensava.
Enquanto terminávamos de fazer as pazes, ouvimos baterem à porta. A sala era relativamente pequena e sem janelas, de modo que ficamos escondidos no quase breu. Se não tivéssemos trancado a fechadura, acredito que estaríamos bem, bem ferrados. Ninguém iria sequer acreditar, se mentíssemos sobre o motivo de estarmos ali. (Confesso, nem eu acreditaria também.)
Bateram novamente, em seguida girando a maçaneta. me olhou, assustada, e eu pus o dedo indicador sobre seus lábios, pedindo silêncio.
- Tá trancada. – ouvimos falarem do outro lado.
- Mas eu jurava que tinha visto gente entrando aí.
- Deve ter sido uma assombração.
e eu nos entreolhamos, segurando o riso.
- Não fala isso, credo!
- Vou lá buscar a chave, espera aí.
Fodeu, fodeu, fodeu!
- Eu vou contigo, tá doido?! Vai que era uma assombração mesmo? Não vou ficar aqui sozinha.
Não fodeu, não fodeu, não fodeu!
Esperamos o tempo suficiente para que a porta vai-e-vem do auditório parasse de bater para sairmos pelo outro lado, que dava no pátio. parou de repente, soltando uma exclamação como se tivesse se lembrado de algo. Voltei meu olhar para ela, que, notei, tinha o rosto avermelhado, denunciando o choro.
Senti um aperto no peito, seguido imediatamente de um alívio. Ainda bem que tinha remediado nosso desentendimento.
- O que foi, ? – perguntei, não muito preocupado. O pior já tinha passado, eu tinha certeza disso.
- Você precisa falar com a sra. Moore. Rápido. – ela respondeu, em tom de advertência. – Você faltou demais, ela quer te substituir.
- Mas foram só dois dias! – exclamei, surpreso e um pouco irritado. Mais essa agora?!
- E faltam menos de duas semanas pra apresentação. – lembrou. Eu mal tinha reparado como havia passado rápido. Sexta já saíam os resultados, nas semanas seguintes teria as recuperações finais, apresentação da peça e baile do último ano.
Então tudo acabava: o ano letivo, meu relacionamento indefinido e minha vida em Londres.
- Tudo bem, vou lá agora. – decidi, vendo as horas no relógio de pulso que usava. Dei um beijo rápido e estalado em , antes de soltá-la. – Me espera aqui? Quero te levar pra casa, hoje.
- Não precisa! – ela rolou os olhos, me achando exagerado.
- Mas eu quero.
- Também tem o meu irmão.
- Se faz parte do pacote, tenho que aceitar, né? – pisquei, vendo-a rir baixo.
- Ok, vai logo lá.
Assenti, me encaminhando para a sala dos professores, atrás do lanchinho do menudo. Elizabeth apareceu alguns (muitos) minutos depois, aparentando espanto com ar de sarcasmo.
- Resolveu interromper suas férias antecipadas? – indagou com rispidez.
- Tive uns problemas de família. – respondi, mostrando submissão. Na verdade, estava fingindo comoção para minha justificativa ser crível. Talvez eu até parecesse ofendido pelo tom rude dela, já que Moore era desconfiada de tudo e difícil de convencer. – Meu pai acabou indo parar no hospital – por justa causa – e minha mãe teve de ir ao tribunal nos últimos dias. Tive de me ausentar pra ajudá-los no andamento de tudo.
- Hm, sim. – ela se mostrou indiferente, apesar de, no fundo, eu saber que sua curiosidade estava gritando por detalhes da história. – Certo... Mas não perca mais nenhum dia, o ritmo agora é mais intenso, precisamos de comprometimento total dos envolvidos.
- Eu sei. – impedi o discurso que estava por vir. – Não faltarei mais.
- E quanto ao seu desempenho, faça o seu melhor. Ou mais que isso. – seu olhar significativo me deixou intrigado. – Ele pode se refletir em outros espaços físicos.
Franzi o cenho, para depois captar sua mensagem. Tinha esquecido a história do cheque gordo que Otto tinha “doado” ao colégio, em troca da minha aprovação. Irônico como sua noção de generosidade era relativa. No fim, tudo girava em torno de sua imagem, seu benefício.
- Entendo. – resmunguei para Elizabeth, sem ânimo. – Mais alguma coisa?
- Não, pode ir. – ela sorriu amigavelmente, o que fora bastante repentino e estranho. – E não se esqueça do ensaio de hoje.
Concordei com a cabeça, sem realmente ter ouvido. Àquela altura, tanto fazia se eu aprovasse, iria me mudar de qualquer forma. E ainda me ferraria no último ano por conta da empurrada com a barriga que estavam dando nos meus estudos.
Se somente arrependimento mudasse o passado, pelo menos essa dor de cabeça teria sido riscada da minha lista.
Deixando de lado a falsidade e falta de ética em que eu passivamente estava envolvido, voltei para onde estava. Ela se distraía com algum livro que não se podia ler o título, à distância em que eu estava. Bastante concentrada, não notou a minha presença, os olhos cravados nas páginas. Perguntava-me como conseguia conciliar de forma brilhante todos os seus compromissos, enquanto eu me via enlouquecido só de ter o teatro como tarefa extra. Talvez porque – tinha de admitir – ela fosse brilhante só por ser ela. Não era puxa-saquismo meu, era um fato. As pessoas ao meu redor comentavam isso, estava, finalmente, dando razão a elas.
Parando mais uma vez para analisar e tudo que a envolvia, era obrigado a dizer também que ela era incrível. O cara que a levasse para o altar teria a sorte grande. Um cara que não seria eu, pois meu próprio futuro já era indefinido, que diria o nosso. Estava somente me preparando para, em breve, entregar de bandeja para o primeiro que a dissesse algumas palavras bonitinhas.
Pensar dessa forma me fez novamente querer ser egoísta e não terminar. Queria que ela pensasse em mim ainda mais, quando eu me mudasse para Cardiff; que esperasse os feriados e as férias para que passássemos algum tempo juntos. Mas estava além da minha vontade tudo isso acontecer. Dependia principalmente dela, mesmo que não tivesse nem noção disso.
Que ninguém me ouça dizendo isso.
Forcei-me a esquecer todas as minhas vontades quando fui pego a observando. Fui até sua mesa, me sentando ao seu lado, pondo os braços sobre seus ombros e a puxando para mim.
- O que houve? – perguntou, ainda olhando para o livro. Fiz um som de interrogação. – Você ficou me encarando por um tempão...
- Ah, isso... – ela estava jogando verde quanto ao tempo, até porque estava concentrada demais para me notar antes. – Não foi nada, tava só pensando.
- Precisa me espiar pra isso? – ela riu, implicante, finalmente me olhando.
- É como abrir a geladeira pra pensar, só precisava botar os olhos em alguma coisa. – ri, abraçando-a mais forte antes dos protestos que viriam. – E Noel, ainda não saiu?
- Não. As provas dele costumam demorar mais porque são orais. – respondeu , olhando as horas no celular. – Falta mais ou menos meia-hora pro fim.
- Interessante... – disse, de modo sugestivo. – Temos todo esse tempo pra ficarmos sozinhos?
Com o indicador e o dedo médio, fiz minha mão livre caminhar até a outra, tentando girar dessa forma.
- Teoricamente. – ela se esquivou, lançando um olhar de advertência. – Não adianta me olhar assim. Estamos no meio do pátio, e meu irmão pode aparecer a qualquer momento.
- Por que você tem que ser estraga-prazeres? – indaguei, contrariado.
- Alguém tem que ser. – disse ela, debochada.
Conformei-me com o tédio, afinal, o que mais poderia fazer? voltou a ler, enquanto eu encostei minha cabeça sobre seu ombro e simplesmente esperei o tempo passar. Tinha passado tantos dias sem contato com que desenvolvera carência dela, mas estava mais que na hora de me controlar quanto a isso.

Voltei para casa às oito. Almocei com e Noel, durante a tarde participei do ensaio e logo após passei pelo parque Roundwood, para deixar a par dos últimos acontecimentos. E, claro, para aproveitar a privacidade. Fiquei tão entretido que, inclusive, me esqueci de lhe contar sobre Cardiff.
Seria essa a desculpa que daria a Susan quando a encontrasse, porque, na verdade, eu não quis dizer. Não achava ser o momento certo para confessar que e eu mal tínhamos voltado e já iríamos terminar. Ela me odiaria pelo resto da vida, e com razão.
- ?
Algo me dizia que já era a hora de dar a desculpa.
Segui o som da voz de Susan até o segundo andar, pois ela provavelmente estaria em seu quarto àquela hora.
- Oi. – falei da porta do cômodo, vendo roupas jogadas sobre a cama. – Que bagunça é essa?
- Ah, estou separando roupas pra caridade. – disse minha mãe, distraída. – Comprei novas com o cartão de crédito do seu pai, antes que a ordem judicial fosse cumprida.
Arqueei a sobrancelha, confuso. Susan, então, puxou as – muitas, vale ressaltar – sacolas de lojas que eu não vira antes, com um sorriso infantil e levado em seu rosto. Ela havia estourado o limite, ou chegado bem perto disso, a julgar sua alegria. Otto teria um infarto.
- A propósito, quando isso acontece? – perguntei, me referindo à ordem.
- Daqui a um mês, mais ou menos. Mas nos mudaremos antes disso.
- Quando?
- Duas semanas, no máximo. – Susan tornou a dar atenção para as bolsas. – Vou esperar até a sua apresentação. Você passou esse mês todo se dedicando, é até injusto não te deixar participar.
- Pelo menos isso... – murmurei, descontente pelo curto prazo que tinha para contar a .
- E a ? – minha mãe pareceu ler a minha mente. – Vocês se acertaram? Qual a reação dela ao saber que vamos nos mudar?
- A gente conversou, mas esqueci de falar dessa parte. – menti com a naturalidade que adquiri com o passar dos anos. – Depois conto tudo direitinho. – A vontade de contar, sendo honesto, era nenhuma. Para ninguém. Temia a reação dos meus amigos e como tentariam em vão me convencer de que nossa amizade não mudaria, quando obviamente iria. Já conhecia esse tipo de promessa, no fim era eu quem quebrava a cara. Ou ganhava uma irmã bastarda, no caso.
Susan passou a dar o resto de atenção destinado a mim para as roupas novas, que, a propósito, eu não sabia por que as pendurava no cabide, visto que passariam pouco tempo por ali. Resolvi deixá-la em paz para ir tomar meu banho, depois começaria a fazer minhas malas. Em duas semanas minha vida mudaria. Por completa.
Chegava a hora de recomeçar.


Capítulo 30 – Parte 2

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não parava de encher o saco.
Reclamava porque Ben não tinha pedido formalmente para voltar, apesar de dar a entender que a queria de volta. Estava inconformada por ter passado tanto tempo – às escondidas, o que eu não entendia até hoje – com e ele ainda dizer que gostava de Emma. Até quando falava coisas do meu interesse, seu tom era de indignação.
Eu não aguentava mais ouvir tantos assuntos aleatórios, já que não me acrescentariam em nada. Não era meu normal agir com tanto egoísmo, mas nas raras ocasiões que isso acontecia, eu ficava extremamente irritável. Porém, não conseguia ser rude ou direta e dizer que não queria saber porque não estava de bom humor, então guardava todo o estresse. Todo ano era a mesma coisa durante as provas finais e apresentações. Quando calhava de vir junto da TPM, o resultado era ainda pior que uma gastrite nervosa.
Se soubesse a vontade que eu tinha de jogá-la pela janela, iria se calar em uma fração de segundo.
Quando finalmente apareceu, depois da prova de exatas, mal me despedi da minha amiga. Ela levaria Noel para casa, enquanto o elenco do teatro experimentaria os figurinos que usaríamos a partir dos últimos ensaios.
Até estava me deixando levemente irritada. Eu estava agitada, não queria ficar quieta, ouvindo lamentações ou abraçadinha que nem uma namoradinha feliz. Queria descarregar a energia, me agitar; ele ficar todo cheio de amorzinho não me ajudava em nada. Se pensava que era assim que ia nos fazer voltar ao que éramos, estava enganado – somente me causava náuseas, naquele instante.
Eu sabia que o problema era comigo, mas preferia culpar os outros, nesse caso.
Após vestir o primeiro figurino, fomos todos ao palco. Estar vestida como Satine desfez parte da tensão que se acumulava em minha cabeça. Não precisava me preocupar com nada, apenas viver minha história favorita, o que não era nenhum esforço. Era tranquilizante, na verdade.
No fim da tarde, me senti pacificamente exausta, necessitando de um banho e um cochilo. Só de pensar que eu teria de andar até a minha casa antes disso, a vontade aumentava exponencialmente.
- ... – chamei, quase num miado. Ele me encarou, pedindo com a mão um minuto para falar ao celular. Aguardei, prestando atenção em sua conversa com quem quer que fosse.
- Até amanhã, ! – disse , despedindo-se à distância. Sorri de volta, acenando.
Aos poucos o auditório ia esvaziando, ficando apenas , Elizabeth, e eu. Tornei a olhá-lo, franzindo a testa pela sua demora. Puxei sua mão, levando-o para fora enquanto me despedia das diretoras da peça. Ele apertou seus dedos entre os meus, num pedido para que eu não andasse tão rápido.
- Tudo bem, até mais. – disse ele, enfim. – Por que a pressa, ?
- Não tô com pressa, você que tá demorando demais. – observei, soltando um riso breve. – Me leva pra casa hoje? Por favor?
hesitou um pouco. Parecia surpreso com o meu pedido – compreensível, visto que eu sempre negava, embora não adiantasse muita coisa.
- Que tal se você fosse pra minha? – ele mudou suas expressões antes de eu argumentar, me pegando de surpresa.
- Tô com fome, cansada e quero tomar um banho o quanto antes. – resmunguei, torcendo a boca. – Não pode ser amanhã?
- Não, hoje. – ele foi firme, porém dócil. – Susan viajou e volta amanhã, vou ficar sozinho a noite toda, sem nada pra fazer.
- Você devia estar se preocupando com a sua possível recuperação final de Física. – lembrei-o, entendendo exatamente o que ele queria. Sendo honesta, eu também queria, com menos intensidade que ele por conta do cansaço.
- E daí? – ele fez pouco caso, erguendo os ombros. – Se eu me dedicar só ao teatro, cumpro minha parte do trato que Otto fez com o menudo e pronto, me livro desse peso.
- Não sei, ... – relutei, esperando que me acostumasse com a ideia. Não era a favor daquilo, contudo, era um assunto fora do meu alcance. Eu me sentiria mal por me aproveitar da falta de ética de terceiros, entretanto, consciência limpa não mudaria nem a equação, nem o produto final. O que acarretaríamos como erro era um centésimo do que os reais envolvidos poderiam sofrer, se descobertos.
- Vamos, vai ser legal, prometo. – disse de um jeito divertido, me tirando um sorriso. Concordei, por fim. – Sabia que você não ia me deixar na mão, minha .
Um abraço rápido e apertado, seguido de beijos da mesma forma, veio em seguida, para então irmos para o Mustang de .
Liguei para minha mãe no caminho, avisando que estaria com antes de voltar para casa – preferia não dizer a parte da casa dele estar vazia, pois nem quando é com meu pai fica satisfeito. Ao chegarmos na casa de , ligamos para a pizzaria e baixamos alguns filmes. Ele escolheu A Última Fortaleza, enquanto eu, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Ganhei no par ou ímpar, então veríamos o meu primeiro. Perdi a segunda rodada, então veríamos no quarto dele.
Depois de termos ajeitado o criado-mudo como uma mesa de jantar improvisada, aninhamo-nos na cama e pomos o filme para rodar. estava encostado na cabeceira, eu me encostara em seu peito.
- Esse filme deve ser mais uma comédia romântica, quer apostar? – reclamou ele, ainda não aceitando que não víssemos seu filme de ação.
- Você não sabe ler sinopses? – indaguei, olhando-o como se ele fosse um retardado. – Tava escrito “drama” e “vencedor do Oscar de melhor roteiro original”. Comédias românticas não são originais, todas têm a mesma fórmula.
- Mesmo assim, tem o Jim Carrey como principal!
- , meu bem – cantarolei, segurando seu rosto em minhas mãos –, fica quietinho, fica? – dei-lhe um beijo rápido, logo voltando minha atenção para a TV. Sua mão direita, de cujo braço rodeava o meu, começou a passear pelo meu antebraço, subindo devagar. Soprei um riso. Ele não desistiria fácil. Uma vez que não estava interessado no longa-metragem, não sossegaria sem receber uma compensação. – , não começa, por favor.
Eu sabia que era inútil, era apenas uma tática para eu não dizer que cedi facilmente.
- Presta atenção ali, ok? – ele disse, sério. Fingia estar realmente concentrado.
Cretino!
Seu segundo passo foi afastar meu cabelo do pescoço e distribuir beijos por ali. Eu estava usando minha força de vontade descomunal vinda do além para resistir, porque, poxa, eu queria ver a droga do filme!
- , para. – pedi, mais baixo. Resistência verbal já não estava sendo uma habilidade minha.
- Não fiz nada... – disse ele contra minha pele, rindo. – Ainda.
- E nem vai. – consegui responder, me arrepiando toda.
- Quem disse? – sua mão deslizou para meu quadril, rodeando por ali.
- ... – sibilei, estendendo as vogais.
- ... – ele me imitou, deliciando-se com tudo aquilo. Sua mão subiu, alcançando rapidamente meu sutiã. Seu toque era eletrizante, deixava meu cérebro em curto e minha respiração oscilante. Mas eu não podia perder o controle, pois sabia onde tudo ia dar. Ou, de forma infame, quem ia dar. As circunstâncias eram diferentes, agora. Eu estava exausta, sem a mesma vontade que ele e com medo que exigisse mais de mim. Não tinha me tornado a rainha da experiência sexual, continuava tão desajeitada quanto antes.
Contudo, não queria pedir para parar. era bom demais no que fazia para que eu negasse. Ele me acendia sem muito esforço, parte por já ter prática, parte porque eu me reprimia tanto, sempre, que virava uma constante bomba-relógio. Ele conseguia fazer minhas tensões se dissiparem através de seus toques e beijos. Como podia não aceitar aquilo?
A mão esquerda de segurou meu rosto, virando-o em sua direção. Eu o olhava, mas não o via. Seu semblante era apenas um ponto qualquer pelo qual meus olhos passeavam sem manter o foco. Seus lábios, então, tocaram uma de minhas maçãs do rosto, me fazendo fechar os olhos. As sensações dobraram a intensidade, e tive de morder meu lábio inferior para não perder a calma totalmente. Minhas pálpebras também foram beijadas, uma de cada vez, me deixando ansiosa pelo que viria a seguir.
Na posição em que estava, não poderia fugir – não que eu quisesse. Completamente envolvida e sem ao que recorrer, desisti de relutar e resolvi participar de forma mais ativa. Virei-me de frente para , ficando de joelhos sobre o colchão. Ele me segurou pela cintura e me pôs sobre suas pernas, cercando seu próprio quadril com as minhas coxas. Fui atrás de seu pescoço, beijando-o com avidez, sem me importar se deixaria marcas. apertou minha cintura com força, reagindo a mim. Pôs suas mãos novamente sob minha blusa, acariciando minhas costas enquanto buscava o fecho do sutiã. Com certa dificuldade ele o abriu, porém, quando começou a retirar minha blusa, a campainha tocou.
- Tá de sacanagem com a minha cara. – grunhiu, bufando contra o meu busto. Ri, embora também estivesse frustrada. – Só porque tô ocupado, a pizza chegou logo.
- Relaxa, . – disse, acariciando sua bochecha. Beijei-lhe brevemente e saí de seu colo, me ajeitando.
- Vai lá pra mim? – ele pediu, me olhando de modo infantil. Fitei o zíper de sua calça, que não estava lá tão volumoso, uma vez que mal tínhamos começado, mas sua protuberância era suficiente para causar desconforto (no entregador, diga-se de passagem). Assenti, sem antes soltar uma risadinha. – O dinheiro tá na minha carteira, ali em cima. – apontou para o móvel da TV.
Prendi meu cabelo com uma caneta que encontrei ao lado da carteira. Busquei a pizza e a ajeitei sobre a “mesa de jantar”, cortando as fatias e distribuindo-as para mim e em dois pratos. Sentei na cama com as pernas cruzadas e o meu prato sobre elas; fez o mesmo, relutante em voltar o filme para o início, mas como boa chantagista que sou, consegui convencê-lo.
- Ficar com você não dá certo. – falei, distraída, cortando minha fatia em vários pedaços. – Você me engorda, nem sei como meu culote não ficou marcado nos figurinos.
- Podia ser pior – respondeu ele, rindo de mim. – Eu podia ser um usurpador, ficar sempre às suas custas. – roubou meus talheres, esticando o braço para cima. – Come que nem gente, com a mão!
- Me deixa em paz, eu gosto desse jeito! – tentei recuperá-los e equilibrar o prato sobre o colo ao mesmo tempo. ria, me chamando de fresca por um tempo, até se cansar e me devolver. – Já que é pra engordar o gado pro abate, deixe ao menos ele comer feliz.
- Pensando bem, não é que você tá cheinha mesmo? – riu e eu apenas concordei. – Aqui – cutucou minha barriga – principalmente.
- Ah não, aqui é o nosso filho. – falei, sem dar importância, olhando-o após alguns segundos de silêncio. – É brincadeira, não precisa ficar assim. – ri de seu espanto, dando-o um selinho. – Não quero um filho tão cedo, e aposto que você também não.
- Não brinca com uma coisa dessas. – ele estava consternado. – Da última vez que tive um bebê na minha vida, era minha mais nova irmã.
- Desculpa. – acariciei sua mão em solidariedade. – E sobre Angie... Você vai querer participar da vida dela?
tirou uns instantes para pensar. Aquela não era a situação mais cômoda para construir laços familiares, entretanto, eu achava que ele não perderia a chance de buscar o que havia perdido há tanto tempo.
- Por enquanto, não me vejo fazendo as pazes com Livie. – ele respondeu, olhando somente para a tv. – Apesar dos pesares, eu quero fazer o papel de irmão mais velho da baixinha.
Seus lábios fizeram uma curva suave, quase imperceptível. adorava Angie, era óbvio que não a abandonaria, pois, afinal, ela não tinha culpa.
- Você vai se sair bem. – sorri, ainda encarando seu perfil. – Vai ser tão bom pra ela quanto Leonard foi pra você.
Ele se virou para mim, vindo me dar um beijo que, após fechar os olhos, senti ser em minha testa.
- Ele iria gostar de você.
Senti-me lisonjeada. guardava tamanha admiração pela memória de Leonard que parecia ainda buscar sua aprovação no que quer que fizesse. Para ele dizer com tanta certeza que seu irmão gostaria de mim, eu devia ser motivo do seu orgulho. A felicidade vinda dessa constatação me deu uma pontada no estômago.
- Agora, vamos ver o filme que você tanto perturbou pra ver.

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acabou cochilando durante o segundo filme, e para mantê-la acordada eu investi na mesma tática de antes da pizza empata-foda. A missão foi cumprida com sucesso, ambos terminamos exaustos e, ao mesmo tempo, relaxados. Logo depois, ofereci a ela um banho – comigo –, que foi muito bem aceito, desde que ela estivesse sozinha e eu resolvesse seu problema de falta de roupa íntima limpa.
Ainda bem, lembrei, Susan tinha ido às compras no dia anterior. Agora que era uma mulher separada, com certeza voltaria a comprar lingerie nova, quer eu queira ou não. (Por mim, ela ficaria solteira para sempre. Não queria correr o risco de aparecer outro babaca dentro de casa.) Infelizmente, para ela, eu teria que furtar uma.
Procurei por todo o closet, mas somente as roupas normais estavam nas gavetas e prateleiras. Vasculhei as partes superiores do armário e nada. Frustrado, chutei uma bola de papel – provavelmente uma nota fiscal –, fazendo-a rolar para baixo da cama.
Mas é claro, como não pensei naquilo?
Abaixei-me e encontrei uma sacola de listras rosas de tamanho médio. Segundos depois descobri que era uma sacola da Victoria Secrets, e a nota fiscal contida nela mostrava um valor que devia ter superado o de todas as outras roupas juntas. Eu poderia comprar pneus novos e pagar com aquelas calcinhas!
Resolvi checar se as peças valiam mesmo a pena, e descobri que ou minha mãe era colecionadora de vários tipos de lingerie, ou já tinha arrumado um namorado para quem pudesse as mostrar. Isso me renderia olhares estranhos por um bom tempo, de qualquer forma.
Por fim, escolhi para a mais discreta, que, ironicamente, era uma fio-dental preta, pondo-a de volta na embalagem que abri para lhe garantir que era nova. E para adiar a surpresa, também. Não era todo dia que eu dava de presente uma fio-dental que custa mais que um par de sapatos, queria aproveitar o momento. De volta ao meu quarto, bati à porta do banheiro e entreguei a peça para pela fresta que ela abriu. Em seguida, ouvi seu “Hm... ok” abafado pela porta e ri baixo.
- Coube? – perguntei, encostando a orelha na porta.
- Pelo tamanho, acho que ficou pequena demais. – disse, não muito satisfeita.
- Me deixa ver?
- Claro que não! – respondeu de imediato, em alto e bom som.
- Já te vi sem nada, por que o doce? – provoquei, girando a maçaneta. Ela se jogou contra a porta, me impedindo.
- Vai à merda, ! – a ouvi dizer, ultrajada. – Não inventa.
- Não fala assim, minha... – me fingir de ofendido, desistindo de vê-la à força. – Deixa, vai. Só uma olhadinha.
- Sai fora. – se lembrou de trancar a porta. – Além do mais, agora já botei a calça, não vou tirar.
- Então eu ainda tinha uma chance? – me afastei, sentando no beirada da cama.
- Muitíssimo remota. – ela respondeu, saindo completamente vestida. – Quase inexistente.
- Ainda assim, era uma chance. – concluí, fitando-a por inteiro enquanto secava os cabelos com a toalha.
- Eu não me animaria tanto com tão pouco. – se aproximou, me dando um beijo rápido.
- Quem disse que eu tenho pouco? – indaguei, aproveitando a deixa para lhe dar um tapa no traseiro.
- ! – ela protestou, rindo. Puxei-a e a joguei sobre meu colo e a cama, beijando-a várias vezes sob o som dos seus gritinhos de frescura. E daí que ia molhar a cama? Eu que dormia ali.
Cansada de resistir, se entregou e fechou os olhos. Parei ao notar que ela não correspondia, encontrando seus olhos ainda se abrindo, preguiçosos, possuindo uma tranquilidade que me atravessava e vasculhava, atrás de qualquer resquício de adrenalina para destruir. Ela sorriu, ausente de sentimentos ruins ou preocupações. Eu sorri de volta, feliz por tê-la feito esquecer tudo que passamos. Estar ali, com ela, naquela atmosfera de paz, me fez ter esperanças de que aos poucos tudo se ajeitaria para nós. Porque eu estava me encaixando ao jeito de , e ela ao meu, sem que notássemos.
Assim, me senti a ponto de lhe contar sobre Cardiff. Faltava apenas um empurrão. Não havia por que não ser a primeira a saber. Porém, não tinha ainda certeza de como ela reagiria. Eu tinha medo do que ela faria ao descobrir. De repente notei que estava em uma situação semelhante à dela dias atrás. Finalmente compreendi sua intenção ao não me contar o segredo da minha família.
Queria agradecê-la por ter feito tamanho esforço por mim, mas era um tanto quanto tarde – se o fizesse, seria constrangedor para ambos. O único modo que eu via era retribuindo com ações, o que eu vinha pondo em prática desde a manhã anterior – e sabia que às vezes chegava bem perto de ultrapassar o limite entre o carinhoso e pegajoso. Entretanto, eu devia a ela uma gratidão que não sabia se iria demonstrar completamente em tão pouco tempo.
Mas eu queria. Muito, pois isso significava ficar mais tempo ao seu lado. Mais tempo vendo seus olhos firmes nos meus, confusos com a demora de uma ação minha e incomodados com a falta de resposta ao seu “O que foi, ?”.
- Não vai embora. – pedi, abraçando-a forte e escondendo meu rosto entre seus cabelos molhados, fazendo com que nós dois tornássemos a nos deitar. riu, mexendo-se sob mim.
- Não dá, , desculpa. – disse, enfim correspondendo ao meu abraço. – Eu queria muito...
- Então fica. – a interrompi, apertando meus braços em sua silhueta.
- Mas não dá. Meus pais ficariam loucos. – ela se justificou, ainda que fosse inútil para me convencer.
- Diga que você vai dormir na casa de . – insisti. Estava sendo novamente carente de atenção, mas por uma boa causa. – Eu te levo pra casa amanhã bem cedo.
- Eu não tenho nada pra dormir, nem escova de dentes. – a ouvi argumentar, me erguendo para encará-la.
- Se eu arrumar tudo isso, você pede? – falei, animado, notando o receio em seu rosto. – Ah vai, o que pode acontecer de tão mau?
- Não vou ficar usando as roupas da sua mãe, novas ou velhas. São dela.
- Claro que não, você pode usar as minhas. – sugeri, fazendo-a rir. – É sério.
- E a escova de dentes?
- A gente compra. – concluí, dando-lhe um selinho. – Tudo resolvido, liga pra sua mãe e pede.
- Você é tão chato, . – ela rolou os olhos, me empurrando para longe de si. – E vai tomar um banho, você tá fedendo a suor.
- A culpa é sua. – impliquei, descendo da cama.
- É sua, você quem veio de graça pra cima de moi. – rebateu ela, sem me olhar, espalhando-se pela king size. – Quer saber? Acho que vou gostar desse negócio de dormir por aqui.
- Posso te contar um segredo? – me olhou. – De conchinha é mais gostoso.
- A gente testa mais tarde. – piscou para mim, sorrindo de lado. Mordi meu lábio, doido para voltar ali e fazer tudo de novo. Aquele jeitinho dela de seduzir e afastar funcionava perfeitamente comigo, quer fosse natural dela ou premeditado. Já tinha me envolvido de tal forma que, por enquanto, adorava qualquer coisa que ela fizesse. Eu era mesmo um babaca, bastava uma demonstração de afeto que eu já ficava com o rabinho balançando, esperando mais. Até o momento em que as coisas esfriassem, claro.
Deixando de lado minha autoanálise, fui para a chuveirada. Não demorei mais que cinco minutos, e quando saí, estava ao telefone, conversando com . Enrolado na toalha, procurei uma muda de roupa, de costas para , que ria alto. Por costume, joguei a toalha em cima da cama e vesti minha cueca.
- Ei, vai se vestir no banheiro! – mandou ela, tampando o microfone do celular. Arqueei a sobrancelha, me virando em sua direção.
- Esse é o meu quarto. – rebati, fazendo pouco caso.
- Mas não preciso te ver pondo a roupa.
- Tirando pode, né? – sorri com malícia, vendo-a ficar vermelha. – Se não quer ver, vira pro lado.
Ouvi um ruído vindo do celular de , provavelmente berrando por atenção. Rapidamente me vesti, pulando de volta para a cama e roubando o Blackberry da mão de , que reclamou e tentou pegar de volta.
- Olha só – falei para , derrubando a amiga dela no colchão com facilidade –, chega de ficar roubando a atenção que devia ser minha, ok?
- Desde quando você tem exclusividade? – a outra rebateu. Subi em , prendendo-a entre meus joelhos.
- Desde quando eu disse. – respondi, segurando os pulsos dela com uma mão só. – E é bom você não ligar mais, senão vou ser obrigado a tomar providências.
- Cala a boca, ! – se debatia, tentando se soltar. – Me devolve isso!
- Fica quietinha, fica. Mais tarde eu cuido de você. – disse a ela, rindo. – Estamos combinados, ?
- Vá se foder, .
- Vou considerar isso um sim. Até mais.
Desliguei o celular, jogando-o no criado-mudo. me xingou e tentou me bater, mas abri seus braços sobre a cama. Sorri, vitorioso, até o momento em que ela se inclinou para frente e mordeu meu ombro com força, soltando-se quando reagi.
- Não faça mais isso, seu maluco!
- Você tentou me matar! – grasnei, assustado com sua defesa inesperada.
- Porque você me machucou. – ela mostrou os pulsos avermelhados onde eu tinha segurado. Suas expressões fechadas pareciam as de uma criança emburrada, porém mais engraçadas, de modo que, mesmo sentindo dor, ri. – Que foi agora?
- Nada. – respondi, segurando o riso. Não consegui aguentar muito tempo, contagiando aos poucos. Ela tornou a se sentar, mais relaxada. – Nós dois somos ridículos, sabia?
- Leu meus pensamentos. – disse, me encarando. – Ainda tá doendo?
- Preciso de um beijinho. – pedi, me fazendo de coitado. Ela rolou os olhos, balançando a cabeça para os lados.
- Tome vergonha na cara, .
- Você e andam ensaiando esse tipo de frase?
- É a convivência. – deu de ombros, procurando sua mochila com os olhos. Após achá-la, pegou uma bolsinha de maquiagem e foi terminar de se arrumar “rapidinho”. Saímos de casa depois de meia-hora. No mercado, compramos comida e produtos de higiene para ela. Quem visse nosso carrinho, acharia que estávamos prestes a fugir de casa. E morrer de anemia, claro, porque nada que tínhamos separado era realmente saudável.
Ao voltarmos para casa, jogamos videogame, vimos alguns vídeos e ouvimos música enquanto comíamos, conversávamos e repassávamos o roteiro da peça. Houve, também, um segundo round, mais tranquilo e gostoso, com tudo que tínhamos direito. finalmente se sentiu totalmente à vontade, deixando-se ser observada enquanto se vestia para dormir. Eu entendia que aquilo tudo era novo para ela, mas não havia por que se esconder de mim. Não àquela altura.
Enfim, nos ajeitamos para dormir de conchinha. Mas nós dois somos espaçosos demais e ficamos incomodados com o excesso de contato em tão pouco espaço. Preferimos dormir um de frente para o outro, com aquele sorriso cúmplice que pertencia somente a nós dois.
Como eu podia estragar aquilo com a notícia de que a deixaria?


Capítulo 30 – Parte 3

’s P.O.V.

- ... – murmurei, ouvindo um celular tocar, e com certeza não era o meu, que eu sempre desligava antes de dormir. nem mesmo se mexeu, dormindo profundamente, de costas para mim. – ...
Ela resmungou qualquer coisa em resposta, ainda estática. Eu já estava ficando irritado com aquele celular, não era a primeira vez que tocava.
- , acorda, seu celular tá tocando de novo. – eu a empurrei de leve para que ela reagisse, mas até sua cabeça começar a funcionar, a ligação já havia sido perdida.
se espreguiçou, enrolando para se levantar. Não era de se espantar o sono que estava, eu também estava, já que demorei a pegar no sono na noite passada, pois ela não estava acostumada a dormir ao lado de alguém – e eu já tinha desacostumado também. Cada vez que um de nós se mexia e esbarrava no outro, eu abria os olhos. Talvez precisássemos de mais noites como aquela para nos habituarmos.
Quando ela se levantou e foi atrás do celular, tentei voltar a dormir. Alguém estava desesperado para falar com ela, não comigo, então eu podia descansar em paz. Não demoraria até eu pegar no sono novamente, eu esperava.
- , levanta. – bateu no meu pé, andando pelo quarto como uma barata tonta. – Anda, , tenho que ir embora. Você disse que me levaria.
Merda.
- Mas já? – bocejei, esfregando as mãos no rosto em seguida.
- Aham. Minha mãe não engoliu a história de que eu estava na e ligou pra lá. – ela explicou, vestindo a calça jeans, mas eu não prestava muita atenção no que ela dizia. – A propósito, ela me ligou também. Vou checar isso.
Virei-me de barriga para cima, olhando-a parada à minha frente, com a jeans aberta e a camisa que eu havia a emprestado erguida até o busto. Enquanto ela esperava alguém atender do outro lado da linha, examinei seu corpo com bastante atenção, lembrando perfeitamente bem da noite passada. nem de longe era a mesma garota que eu achava conhecer; ela era uma mulher, de corpo e personalidade. Sabia muito mais sobre a vida que Allison ou outra garota do colégio, estava em um nível que conseguia me compreender e completar. E mesmo com o que não sabia, quando eu a ensinava, ela logo se tornava mestre no assunto. Era surpreendente.
Era minha.
- E aí? – perguntei ao vê-la desligar, sentando na beirada da cama e a olhando de lado. Ela me encarava fixamente, me deixando um pouco confuso.
- Ela já tá no trabalho, não atende o celular. – respondeu após certa demora. Retirou minha camisa que usara como camisola, atirando em mim quando me levantei. – Não tá doendo?
- O quê? – me virei para , confuso.
- As suas costas. – ela desviou o olhar, envergonhada.
- Ah, isso? – tentei ver, inutilmente. – Ardeu um pouco na hora de dormir, mas agora já passou.
- Desculpa. – a ouvi pedir, totalmente sem jeito. Ri abertamente, vendo-a mudar as expressões. – O que foi?
- Não precisa se desculpar. – disse, indo até meu armário e pegando uma bermuda para vestir, já que havia dormido apenas de boxers. – Isso é a coisa mais comum do mundo, mais que você imagina.
- Mesmo assim... – ela evitava me olhar diretamente, segurando sua blusa, pronta para pôr. Aproximei-me por trás, tocando seu rosto, virando-o para mim.
- E, particularmente, eu gosto. – beijei sua boca rapidamente, me vestindo em seguida. balançou a cabeça para os lados, segurando o riso. Ela reclamava, mas adorava. Tinha certeza.
Assim que terminamos de nos vestir, tomamos café e a deixei em casa. Após vê-la entrando pela porta, peguei meu celular. “Tá em casa? Tenho uma parada pra resolver e preciso da sua ajuda”, digitei rápido e enviei para , seguindo o caminho para a casa dele. Se ele tivesse arrumado o que fazer justo agora, cabeças iriam rolar. Ele nunca fazia nada, não podia estar ocupado quando eu precisava dele.
“Que foi, cara? Aconteceu alguma coisa?”
- , seu idiota, o principal você não responde. – grasnei, digitando tão rápido e com tanta força que metade da sms foi errada (ainda bem que existe autocorreção).
“Tá em casa ou não? Tô indo praí.”
“Tô, mas tô almoçando, minha mãe tá aqui.”
Não respondi mais, já que não tinha problema da sra. estar lá. Talvez ela até me ajudasse.
Pouco tempo depois, cheguei ao sobrado de . Buzinei diversas vezes antes de desembarcar, para que ele soubesse logo que eu tinha chegado e abrisse a porta para mim. A mãe dele foi quem me recepcionou, calorosa como sempre, me acompanhando até a cozinha.
- Quer almoçar, ? – perguntou, sentando-se à frente de uma taça de sorvete. – A comida tá quente ainda, e tem sorvete de chocolate pra sobremesa.
- Não, obrigado. – sorri em agradecimento, sentando também. – Acordei meio sem fome.
- Fala, cara, o que você queria? – não a deixou insistir, continuando a comer enquanto me ouvia.
- Eu vou embora. – respondi sem cerimônias, vendo-o franzir o cenho. – Depois da briga com o Otto, ele resolveu chantagear a mim e Susan. Se abríssemos mão dos bens a que temos direito, ele não prestaria queixa contra mim na polícia.
- Que mal te pergunte, o que foi que você aprontou dessa vez, menino? – disse a sra. , surpresa.
- Espanquei meu pai porque ele traiu a minha mãe com a filha do caseiro, que só é um ano mais velha que eu. – ela arregalou os olhos, sem acreditar. – Ele merecia parar no hospital, na verdade, mas por alguma razão desconhecida eu me contive.
- Então você vai se mudar? – quis confirmar, e eu assenti. – Pra onde?
- Cardiff.
- Quê?! – ele quase cuspiu a comida de volta pro prato. – Tá de sacanagem comigo?
- Eu bem queria que fosse sacanagem... – desviei o olhar, me lembrando de tudo que eu perderia ao sair de Londres. – Mas ou eu me mudo pra Cardiff com Susan, ou fico aqui com Otto. A segunda opção tá fora de cogitação, pra ser honesto.
- E o que você quer que eu faça? – perguntou ele, parecendo atordoado.
- Ainda bem que sua mãe tá aqui. – concluí, olhando-a rapidamente. Ela estava bastante concentrada na conversa, embora processar todas as informações ao mesmo tempo não fosse tão crível. – Preciso de abrigo. Pelo menos durante as férias.
olhou para a mãe, esperando a resposta.
- Não posso te dar essa resposta agora. – disse ela, sendo imparcial. soltou um chiado. – Tenho conversar com seu pai sobre isso, ele também é parte da casa e paga contas por aqui. Não vou fazer nada contra a vontade dele.
Se as notícias chegassem aos ouvidos do sr. , eu não teria nem chances de ficar ali. Os pais de me tratavam bem porque me conheciam há anos, mas ultimamente eu não andava sendo uma pessoa confiável para se pôr dentro de casa – sabia muito bem disso. Os dois tinham ciência da história do gabarito, fora outras confusões menores em que e eu nos metíamos. O assunto era sério agora, eu precisava me hospedar na casa deles porque tinha brigado com quem devia me dar abrigo. Só de se darem conta desse fato, os não teriam credibilidade em mim.
- Olha, eu sei que eu fiz muita besteira, mas agora tô sofrendo as consequências de cada uma. – argumentei, tentando passar firmeza no meu discurso. – Eu tô tentando consertar algumas coisas que vão acabar ficando pendentes, se eu for embora agora. Preciso de tempo, mas só tenho uma semana e meia.
- E você só me conta agora?! – jogou o garfo contra o prato. – Que caralho, !
- ! – sua mãe chamou sua atenção.
- Desculpa! – ele falou alto, não conseguindo controlar bem suas reações. – Você só veio falar isso agora porque precisa de ajuda! Se não precisasse, quando ia me contar? No dia que fosse embora?
- Eu fiquei sabendo recentemente, também! – me justifiquei, no mesmo volume de voz. – Já tinha te dito que tinha conversado sério com Otto e Susan quando voltei de Southsea, foi nesse dia que eu soube.
- Existe uma diferença entre “Não falamos nada de mais” e “Vou me mudar em quinze dias pro outro lado do Reino Unido”.
- Eu sei, eu devia ter falado antes. Errei, tá legal? – admiti. – Mas você sabe que eu sou um mongol e não consigo pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Eu ainda nem contei pra . Você é o primeiro pra quem eu tô contando.
- Mas, cara... – ele parou pra pensar. – Você não pode se mudar. Vou pra Camden Town com quem, agora?
Era o jeito dele de dizer que sentiria a minha falta.
- É bom você não arrumar ninguém pra ir contigo.
Era o meu jeito de dizer que não queria que ele se esquecesse de mim.
- E quando você pretende contar pra ? – indagou, voltando a si.
- Não sei. Hora nenhuma parece boa. – confessei, esfregando as mãos no rosto por nervosismo. – A gente acabou de se acertar, ela mal confia em mim.
- Querem ficar a sós agora? – a sra. se levantou, segurando a taça e a colher que usava.
- Não, tá tudo bem. – sorri para ela novamente, vendo-a pôr a louça na pia. – Aliás, eu quero uma opinião feminina. – ela sinalizou para que eu continuasse. – Suponha que você tá saindo com um cara, só com ele, então ele dá a entender que não quer que você veja mais ninguém e você concorda. Mas esse cara fica com outra enquanto tá com você. Você perdoaria?
- Dificilmente. – ela riu sem humor, como se dissesse que eu tinha feito merda. – A princípio, eu desistiria, porque ele não quer nada sério, só quer me enrolar.
Eu não queria!
- E se perdoasse?
- Demoraria muito até reestabelecer a confiança. – as mesmas palavras de , porém de um jeito diferente. – E só teria perdoado porque gosto muito da pessoa.
- Hm... – criei algumas esperanças a mais. Ela gostava de mim. Muito, pelo visto. – E o que te faria acreditar que esse cara tá disposto a ter sua confiança de volta?
- Alguma prova de lealdade, talvez... – a sra. não tinha muita certeza. – Não adianta dar presentes, eles me fariam lembrar que a pessoa errou e vou achar que ela quer me comprar.
Como eu sabia daquilo...
- Mas eu não tenho tempo pra ficar provando nada. – forcei o riso, preocupado.
- Então termine. – foi quem opinou.
- Se eu quisesse terminar, não tinha feito todas essas perguntas.
- Você sabe tão bem quanto eu que isso não vai ter futuro. – rebateu, em tom acusatório. Meu histórico dizia por mim mesmo, ele estava apenas recordando. – Ela não vai ficar cheia de expectativa sabendo que você vai embora. E também não vai te perdoar nunca mais, se você for sem avisar ou se despedir.
- Isso tá fora de cogitação. – esclareci, uma vez que era a única certeza que eu tinha. – Eu só não sei quando vou falar.
E como iria falar. Não era o assunto mais complexo, mas também não era o mais fácil de se tocar, ainda mais na nossa situação atual. O pior era saber que tudo aquilo era culpa minha, meu futuro era uma cama-de-gato da qual eu não conseguia enxergar a solução. Ótimo, , parabéns para você por ir minando seu próprio terreno.
Babaca.

’s P.O.V.

Ao contrário de mim, Noel continuaria tendo provas até o dia seguinte, então eu teria de buscá-lo pouco tempo depois de chegar. Não comentei esse detalhe com , pois ele insistiria para ir comigo, e eu já estava passando da conta com os favores que ele me fazia. Fora que após um dia inteiro ao seu lado, eu queria um descanso, um tempo para mim mesma antes do ensaio geral. E também, claro, queria fofocar com . E . E Saskia.
O que eu podia fazer? Era a força do hábito.
Liguei para e após tomar banho, elas apareceriam em pouco tempo. Saskia teria de ficar de fora por enquanto, visto que ainda estava tendo aulas, mas já tinha mandado uma sms pedindo para que ela fosse até minha casa depois do almoço. chegou em quinze minutos, e , vinte.
- E aí, quer anunciar quando sai o casório? – nem mesmo disse “Oi” quando abri a porta.
- Você sabe que eu poderia bater essa porta – apontei – na sua cara, né?
- Você não faria isso por tão pouco. – ela riu, adentrando a sala. mexia no celular, procurando alguma playlist antes de conectar o aparelho ao rádio. – E aí, brucutu, como você tá?
- Mal amada e precisando de comida que engorde. – respondeu a outra, finalmente achando alguma música. Alguma que combinava com o humor de , diga-se de passagem, pois Black, do Pearl Jam, foi a escolhida.
- Não podia ser uma mais depressiva? – disse ironicamente, olhando-a em repreensão.
- Posso procurar uma, se quiser. – ela sorriu com cinismo, deitando-se no sofá menor. se acomodou no sofá maior, sentada meio de lado em uma ponta, enquanto eu me encolhi, abraçando as pernas, na outra.
- Ah não, esquece. – abanei o ar. – Enfim, indo logo ao assunto principal... Vocês acham que fiz mal em voltar a ficar com o ?
- Você tem alguma objeção a isso? – indagou, arqueando uma das sobrancelhas.
- Não exatamente. – respondi, procurando uma boa razão para a minha pergunta. Ela continuava esperando algo que eu dissesse, com cara de quem duvida do que ouviu. O que era de se esperar, pois eu tinha dado incerteza e não havia explicado o porquê. – Acho que eu tinha me magoado bastante pra não querer tê-lo por perto por um tempo, mas eu queria que ele estivesse comigo assim mesmo. Talvez eu tivesse o perdoado até pra me sentir quite por ter escondido o caso do pai dele.
- Mas você se arrepende?
- Não. – Não? – Eu só sinto que não vai dar em nada. Acho que quero me afastar.
- Por quê? – estranhei o fato de estar quieta. Ela era a que mais falava, geralmente. – Achei que vocês estivessem bem.
- A gente acabou de superar uma briga, “bem” não é exatamente o nosso estágio atual. – ri nervosamente. – Enquanto a gente tá junto, tá tudo legal. Mas basta ele ir embora pra eu me sentir insegura. E não é de agora, mas desde sempre, só que nos últimos dias ficou pior por motivos óbvios. Não sei se eu suportaria isso por mais tempo.
- E você ainda diz que não se arrependeu? – riu, irônica.
- É verdade, eu não me arrependi. – respondi, tentando ao máximo passar credibilidade. – Foi o melhor que eu podia fazer, porque sentia a falta dele. Se agora eu acho que quero me afastar, não tem nada a ver com o que passou. Agora eu tenho a ideia de que será bom fazer isso, antes de reatarmos eu não pensava assim e acabaria me magoando por tirá-lo de perto bruscamente.
- Isso não faz o menor sentido. – ela se levantou, indo até a cozinha pra beber água. Apenas a observei, sem conseguir montar argumentos melhores para que ela me entendesse. Aquele emaranhado de ideias era a minha consciência sendo exposta nitidamente.
- Talvez eu... – pensei bastante antes de falar. – Não tivesse cogitado terminar de verdade, antes. Eu queria ficar com e, não sei, namorar por tempo indeterminado. Ainda acreditava que algumas coisas podiam mudar.
- E agora você cansou de dar novas chances. – finalmente se pronunciou, sem me olhar. Concordei com um murmúrio. – Você tem razão de não querer mais se meter nessa história, mas por que só pensou nisso agora? Por que não falou logo quando teve oportunidade? Por que continua enrolando e deixando pra última hora?
- Porque ele aparece e eu esqueço. – admiti, mordendo o lábio. Flashes da manhã em que ele finalmente deu sinal de vida apareceram rapidamente, sua voz ecoando na minha cabeça. – E ele não merece mais uma desilusão.
- Ele merece uma ilusão, então? – minha melhor amiga continuava sem expressões. Batia a mão direita sobre a esquerda, no ritmo da música, somente. – E o que te faz achar que é tão importante pra ele se decepcionar, caso terminem?
- Não, claro que não. – ela, enfim, me olhou, aguardando a outra resposta, a qual eu não tinha.
- Você acha que é inteligente, mas nem mesmo consegue perceber como se entrega fácil. – disse, desdenhando de mim. Franzi o cenho, confusa. – O único motivo de tanta relutância em terminar é simplesmente sua vontade de continuar tentando, camuflada pela mágoa. É claro que você vai se sentir mal por enquanto, nenhum erro é esquecido do dia pra noite. Vai levar tempo e empenho até que isso realmente seja superado. Mas tempo, pra você, não significa muita coisa, já que em um mês e meio, quase, você ficou apaixonada por um garoto que é o seu oposto. A sua sorte é que ele te complementa; os dois se jogaram de verdade nessa história de ficar junto. Você por se sentir no dever de proteger as pessoas e se colocar integralmente nas vidas delas, já ele eu não sei o motivo, talvez carência de alguém pra cuidar dele. Os dois são extremamente irritantes, porque, apesar de estarem suprindo a necessidade do outro, não conseguem ser maduros o suficiente pra serem sinceros. Aposto que nem ao menos assumiram que têm um compromisso, e quando isso acontecer, vão ficar tão apavorados que logo em seguida vão terminar.
- Isso não é verdade. – rebati, incerta. Apertei-me no abraço.
- Ah, não? – vi sua sobrancelha se erguer, enquanto se sentava com postura ereta, muito atenta. – E o que você tá fazendo agora mesmo? Pra mim, parece que você tá vendo que as coisas estão ficando sérias e se preparando pra fugir. Essa não é a primeira vez que você faz isso, .
- Faz muito sentido. – me disse quando a olhei, questionando-a sem nem proferir uma palavra.
- Eu te conheço bem. – continuou. – Já cansei de te ver e ouvir agindo da mesma forma, em situações diferentes. Pare de ter medo de se machucar, ninguém vive só de felicidade. Sofrer às vezes mostra que você tá viva. E se envolver de verdade vai te dar o risco de sofrer, sim, mas também de ser feliz. Não seja tão cautelosa quando tem alguém disposto a cumprir as promessas que te fez.
Consternada, não consegui discutir. Eu odiava ter que admitir que ela estava certa, principalmente pelo fato de que eu tinha me jogado de cabeça sem nem notar. Criei um espaço tão grande para abrigar em mim em tão pouco tempo que rapidamente, também, eu quis o tirar de lá. Porque estava com medo. Tinha me dado conta da proporção que nosso pequeno “desvio de percurso” havia tomado e praticava a autossabotagem em mim.
Mas talvez eu não devesse me deixar na defensiva. Talvez eu pudesse ir em frente. Quiçá me envolver mais, se fosse possível. Eu sabia que, de um jeito ou de outro, já estava com os pés na água, então me deixaria enfrentar as ondas que viessem. Não iria mais sucumbir à insegurança, eu estaria com enquanto ele me permitisse.

Voltei a pé sozinha para casa, depois do ensaio. Embora tivesse explodido de confiança durante a manhã, conversando com as meninas, precisava de um tempo para me acostumar com a ideia de que daria passe livre para decidir nossa relação a partir dali. Somente sozinha eu conseguia alinhar meus pensamentos, e não trocaria esse tempo livre por nada.
Uma pena meu período de reflexão durar só o caminho para casa, pois quando eu cheguei, lembrei que ainda tinha de ouvir um belo esporro. Olhei ao redor, tentando encontrar meus pais pela sala ou cozinha, mas nenhum dos dois estava ali, apenas Noel. Subi direto para o meu quarto e fechei a porta, torcendo para que saísse ilesa. Não havia sequer passado pela minha cabeça que minha mãe tinha descoberto que eu não estava na casa de . Era hoje o dia do meu óbito.
Duas horas depois e nada. Minha mãe estava me cozinhando em banho-maria, provavelmente. Estava ficando nervosa só de pensar em que instante ela bateria à porta e me chamaria para conversar.
No exato momento em que me perguntei sobre isso, ouvi me chamarem. Abri a porta após respirar fundo, uma vez que era a voz da minha mãe.
- Sim? – controlei meu nervosismo, tendo sorte por ser uma palavra curta a ser falada.
- Vai jantar agora? – observei seu rosto, que estava sereno. Estranho.
- Tô meio sem fome... – o nervosismo embrulhou tudo que eu tinha no estômago.
- Ah, tudo bem. – então ela olhou para dentro do meu quarto, como quem quer saber o que o outro está fazendo. – Posso entrar? Preciso falar com você.
Gelei, engoli em seco, suei frio e todas as reações possíveis para a ocasião.
- Aham. – foi tudo o que eu disse, dando passagem a ela. Encostei a porta para o caso de meu pai passar e ouvir alguma coisa. O que eu menos precisava era de mais motivos para ele não gostar de .
- Onde você estava na noite passada? Encontrei os pais da no mercado quando saí do trabalho, ela ficou em casa o dia todo e nenhum dos dois sabia que você dormiria lá.
Pensei rápido: mentir ou dizer a verdade? Eu não costumava mentir para meus pais, e já sabendo que eu a enganei uma vez, minha mãe desconfiaria de qualquer história inventada de última hora.
- Eu não estava lá. – confessei em um fio de voz, de cabeça baixa. Eu sabia que devia ter voltado.
- Eu sei. E sei que você estava com – arregalei os olhos, encarando-a imediatamente –, você mesma me disse, antes de falar que dormiria na casa da sua amiga.
Mas que idiota!
- Desculpa, mãe. – pedi humildemente. – Te juro que não fizemos nada de mais, a mãe dele estava com a gente. Só vimos filme e dormimos.
De maneira não tão consciente, comecei a acrescentar mentiras inocentes. Eu ainda precisava manter a boa imagem, apesar dos pesares.
- Se era assim, por que não me disse a verdade?
- Porque você me mandaria voltar pra casa. – me senti uma completa idiota ao responder. Ficaria tão irritada quanto minha mãe, se estivesse em seu lugar. Uma coisa era agir por impulso, outra era perder a noção dos limites, o que eu tinha feito sem nem perceber.
- É claro que mandaria, você estava na casa de um garoto. Dormiu por lá. E ainda mentiu pra fazer isso. – ela salientou, parecendo bastante chateada comigo. – O que mais você anda escondendo?
- Nada, mãe, eu juro. – tive de engolir o soluço enquanto falava. Com certeza ela não acreditaria em mim, mas ao menos se eu insistisse que não tinha culpa por mais nada ela me deixaria em paz. – Foi só dessa vez.
- Espero que seja mesmo. – seu olhar carregava muito mais tensão que sua voz. Minha mãe estava se contendo para não explodir comigo, para minha sorte. Eu devia continuar a ser submissa, visto seu humor instável. – Já não é a primeira vez que você se mete em problemas por causa de , mas quero que seja a última.
- Como assim? – no meu rosto surgiu uma grande interrogação. Ela não podia estar sugerindo o que eu achava que estava.
- Use a cabeça, daqui pra frente. – minha mãe respondeu, virando-se para sair do quarto. – Você sabe muito bem decidir o que é certo e o que é errado, não comece a se esquecer disso. – respirei mais aliviada em seguida. Ela não era radical a ponto de me proibir de vê-lo. – Estamos entendidas?
- Sim, claro. – assenti com a cabeça. Assim que a porta fechou e novamente eu estava sozinha, me joguei de costas sobre a cama e fechei os olhos. Onde eu andava com a cabeça?
Era tudo culpa dele. Claro. Eu nunca mentiria a ponto de preocupar meus pais, não trazia pessoas para dentro de casa a cada oportunidade que tinha, tampouco me envolvia em problemas do tamanho que os arrumaram. Eu era uma garota pacífica, com a vida tranquila e costumes que minha família guardava há gerações. Então chegou e transformou tudo em pó, me levou às mais loucas ideias. Ele fez a adrenalina correr nas minhas veias, fez meu coração literalmente bater forte com a sensação de perigo. Cada vez mais eu me sentia correndo riscos, e estava certa, havia felicidade em meio àquilo. me fazia feliz.
Não pude conter o sorriso que tomou meus lábios; reviver em pensamentos os momentos com me trouxe um frio à espinha tão delicioso que me vi obrigada a repetir diversas vezes a dose. Eu queria mais daquelas emoções boas. Eu o queria mais.
Como eu pude tentar abrir mão dele?
Uma semana para a apresentação. Eu estava começando a pirar, de verdade. Os ensaios ficavam cada vez mais puxados e longos, exigia – com o total consentimento de Elizabeth – perfeição em cada detalhe, e a exaustão estava nítida em cada integrante da peça. A pressão de ser a última peça da presidente do grupo a deixava louca, mesmo que não fosse atuar. Ela estava totalmente engajada sobretudo pelo fato de avaliadores da Juilliard, uma importante universidade americana de artes, terem aceitado assistir a peça em conferência. Era a chance dela de seguir de verdade o rumo da dramaturgia, sua preocupação se justificava.
A princípio, achei ingratidão da sua parte por não contar para ninguém, mas logo compreendi que não queria pôr o carro na frente dos bois – nada era concreto até então, e admitir para todos que havia interesse pessoal por trás da apresentação podia influenciar o desempenho de alguns. Eu nem mesmo devia saber tal informação, porém ela não aguentou esconder agora que estava chegando à reta final.
Acabei me vendo ainda mais ansiosa. Havia recebido a responsabilidade de fazer a peça ser melhor, impossível. Eu já não tinha mais unhas para roer, e não poderia apelar para junk foods porque a prova final dos vestidos já tinha sido feita, engordar de última hora estava fora de cogitação. Andava me policiando rigidamente, inclusive. Toda vez que parava em frente a um espelho ou qualquer superfície refletora, fazia um exame rápido das minhas curvas.
- Espero que você não tenha parado de comer pra emagrecer. – disse , me pegando em flagrante. Eu o aguardava no estacionamento, ao lado do seu Mustang, enquanto ele tinha voltado para conversar com a sra. Moore sobre a questão das suas notas finais. Senti-me avermelhar de vergonha imediatamente.
- Apesar dos pesares, não fiz isso. – respondi, pondo as mãos unidas à frente do corpo por não saber bem o que mais fazer com elas.
- Boa garota. – ele se aproximou e beijou minha testa, como se eu fosse um animal adestrado recebendo sua recompensa. Apesar da analogia, não reclamei, tímida demais para reagir. – Vamos?
Concordei com a cabeça, vendo-o abrir a porta para mim em seguida. Cansada, sentei e me ajeitei de forma que pudesse cochilar, e riu brevemente quando viu. Sorri em resposta, de olhos já fechados, ouvindo When You Were Young começar a tocar no seu iPod plugado ao rádio do carro.
- You don’t look a thing like Jesus, but sometimes talk like a gentleman like I had imagined when I was young. – cantarolei, abrindo os olhos para encará-lo.
- Só às vezes? – perguntou, intrigado.
- Você só é cavalheiro quando lhe convém. – observei, mas ele ainda não pareceu satisfeito. – E não foi nem um pouco gentil quando tivemos os primeiros ensaios.
- Digamos que eu estava fora de mim. – ele falou em tom jocoso. – Eram outros tempos, agora estou devidamente aprumado.
- Perceptível. – concordei por fim, tornando a fechar os olhos.
- Não durma, por favor. – o ouvi pedir, e mesmo querendo atirá-lo do carro em movimento, eu acatei, suspirando. – Não me odeie, também.
- Eu não te odeio. Não por isso. – ri fraco, vendo-o fazer uma careta divertida.
- O que você tem pra fazer hoje e no sábado depois da apresentação?
- Morte por ansiedade e tédio, respectivamente. – respondi, ironicamente comemorando com os braços.
- Que tal sairmos hoje? – ele sugeriu, muito mais animado que eu. – Podemos ir ao Soho House, vai ter uma festa lá. – não demonstrei muito ânimo, afinal, não tinha. – Ah, qual é, ? Estamos de férias!
- Eu costumo descansar, nas férias.
- E eu saio pra me distrair. – me sacudiu com uma mão, levando-a de volta ao volante no instante seguinte. – Deixe de ser quadrada, você vai gostar.
- Ah, tá, vou ver se meus pais deixam, quando chegar em casa. – falei para que ele se calasse, me recostando de forma convencional. – E o que você quer fazer no outro sábado?
- Pensei que fosse óbvio, você ainda pergunta? – ele me olhou rapidamente, confuso. – É o baile de formatura da .
- Hm... – eu sabia daquilo. – Com o desfalque dos vestidos, tive que descartar. – expliquei, desapontada. – Não teria como bancar o convite nem outro vestido.
- Usa um dos que você comprou. É seu, você faz o que quiser. – ele lembrou, e eu fui obrigada a concordar. – E quanto aos convites, pediu a Elizabeth que negociasse com a comissão e distribuísse para os envolvidos da peça. Os nossos estão comigo.
- Sério? – surpresa, despertei do sono que sentia antes. – Pra isso que ela te chamou?
- Não só. – ele sorriu para mim, me fazendo ter de controlar o ímpeto de abraçá-lo forte em agradecimento, visto que ele estava concentrado no trânsito. Em contrapartida, bati palmas de animação. – Pra isso você se empolga, né?
- É diferente, . – ponderei. – É uma das minhas melhores amigas, vamos acabar perdendo o contato depois que ela sair, então quero estar presente.
- Se fosse comigo...
- Sem draminha. – o cortei, vendo-o emburrar. – Além do mais, nós vamos juntos, não é?
- É. – disse ele, meio a contragosto. Segurei o sorriso que queria aparecer no meu rosto ao notar que ele só queria um tempo para ficarmos a sós, sem nenhuma interrupção dos nossos pais e amigos, mas não conseguia dizer como. Seria mais fácil ser direto, mas, bem, era o meu . Ele era estranho assim.
- Então pronto, não tem por que reclamar. – beijei a ponta do indicador, encostando-o na bochecha de em seguida.
- Você não entende. – disse ele, balançando a cabeça para os lados.
- Não entendo o quê? – tentei, mas não consegui esconder a cara de quem sabia do que o outro dizia.
- Nada, esquece. – ele ficou sério demais pro meu gosto. Dava para ver as linhas de expressão dele mais marcadas que o normal.
- O que foi, ? – meu sorriso se desfez aos poucos, dando lugar à preocupação.
- Nada, já disse. – o vi fazer uma careta de reprovação à minha pergunta.
- Não minta pra mim. – o repreendi. – Se não fosse nada, você não ficaria com essa cara.
- É a minha cara, ué. – ele não me olhou para responder. Aliás, não o fez em momento algum.
- . – disse em tom matriarcal. – Pare de gracinha e fale logo.
- Não tem o que falar, não precisa ficar insistindo e parecendo a minha mãe. – ele me respondeu após respirar fundo. – É sério, . Agora, vamos mudar de assunto, por favor.
- Ok... – falei, ainda desconfiada. – E a culpa é sua se eu pareço a sua mãe às vezes.
- Porque eu pareço uma criança. – ele completou meu pensamento, rindo fraco. Concordei com um “Aham”. – Eu preferia que você fosse uma espécie de babá, porque não curto incesto.
- Seu ridículo! – gargalhei, dando-lhe um tapa fraco no ombro. Seu riso fez dueto com o meu, afastando o assunto anterior. – E essa festa no Soho House, como vai ser?
- É uma que tem a cada trimestre, sempre com a estação do ano como tema. – franzi a testa, com receio. – Sim, é festa de gente velha, mas tem muita comida e as músicas até que são legais.
- Tirando a parte da música, você tá insinuando que eu sou velha e gorda, por isso vou gostar. – brinquei, vendo-o se enrolar para me desmentir. – Tomara que meus pais não vejam problema, afinal, é sábado. Aquela história de eu ter dormido contigo fez minha mãe pôr os dois pés atrás com relação a você.
- Desculpe. – finalmente me olhou, parecendo arrependido. Neguei com a cabeça, tirando a necessidade daquilo.
- Já, já passa. – sorri para passar segurança. – E nem foi tão ruim assim, pelo menos ela não me proibiu de te ver.
- Seria burrice, já que a gente tem o teatro pra isso. – ele observou, me fazendo concordar. – Não tem como você escapar de mim, mocinha.
- Eu nem quero. – sorri, abraçando-o de lado e encostando minha cabeça em seu ombro. A lembrança de tudo que tinha me dito dias atrás se fez presente em minha mente. – Tô bem demais assim.
Eu não podia enganar a mim mesma. Ele me fazia feliz. Eu me sentia bem.
Era assim que funcionava me sentir... viva?


Capítulo 31

’s P.O.V.

A vida inteira eu pensei ser uma pessoa diurna. Gostava da luz, do clima, da forma que as cores ficam mais vívidas em dias de sol ou como se apagavam quando estava nublado. De fato, era pela manhã que eu conseguia entrar em contato comigo mesma com mais clareza, sobretudo pelo fato de ter de me concentrar para prestar atenção nas aulas, de qualquer maneira. Porém a noite vinha me trazendo muito mais benefícios, e rapidamente eu me acostumei à ideia de que a ausência de claridade era melhor. No escuro, somos todos vultos sem identificação, necessitamos do tato do outro para que nos encontrem. E, ultimamente, sentir o toque de era quase um vício meu, logo, eu torcia cada vez mais para que tivesse oportunidade para que ele me encontrasse quantas chances pudesse.
E antes que alguém me julgasse estúpida, eu precisava dizer: não foi pela conversa com e que acabei cedendo completamente. Fora o principal motivo, mas obviamente eu precisei sentir certeza de que aquilo me faria bem. Eu tive de recorrer ao meu lado racional – bastante esquecido durante os últimos tempos – para avaliar se era mesmo uma boa saída. A balança pesou mais para o lado dos prós.
Assim, eu estava totalmente na dele. Chegava a ser patético, às vezes eu sentia que deixava de lado a minha personalidade só para agradá-lo, e quando percebia, corria para falar com minhas amigas, que confirmavam que era normal – eu só devia ficar me policiando para não parecer submissa. Eu não tinha o menor jeito para lidar com isso. Mas ele não parecia perceber meu desalinho, já que reagia da mesma forma abobada que eu. Éramos dois idiotas, no fim das contas.
- Acabei de lembrar... – disse a , deitada sobre suas pernas cruzadas, no gramado do parque Roundwood. As luzes do parque de diversões montado ali perto nos coloriam de um jeito engraçado. – Nunca te vi tocando . Summer, não é?
- Isso. – ele pareceu constrangido, coçando a cabeça. – Eu não sou tão bom assim pra me apresentar pra alguém.
- Você dizia o mesmo da sua voz, mas eu discordo totalmente. – argumentei, jurando que ele enrubesceu. – Você devia parar de se censurar tanto assim. Uma pessoa talentosa devia seguir em frente com suas habilidades.
- Digamos que eu simplesmente não tenha tempo pra hobbies, na atual conjuntura. – dando de ombros, ficou quieto por um tempo, olhando para o nada. Olhei para a mesma direção, procurando saber o que havia ali, mas era apenas distração dele. Há dias que ele estava avoado, provavelmente por causa da situação dos seus pais. Eu não sabia como era estar em seu lugar, mas compreendia que ele precisaria de tempo para se estabilizar.
- Ei, eu tô aqui ainda. – chamei sua atenção, fazendo uma careta infantil. Ele riu, abaixando para me beijar rapidamente. – No que você tava pensando?
- Na vida. – aguardei que prosseguisse, não satisfeita com sua resposta. – O que Leonard faria no meu lugar, se descobrisse a história do Otto e da Livie. Se ele soubesse que, de repente, tem uma irmã mais nova, e que uma hora ela vai precisar saber a verdade. Como aqueles dois vão fazer pra esconder dela a podridão que causaram. Quando eu vou me sentir confortável o bastante pra entrar na vida dela de novo. E mais outras coisas.
- Uma coisa de cada vez, . – sorri em compreensão. – Mas como você acha que Leonard reagiria?
- Ele não era tão explosivo quanto eu, pra começo de conversa. – riu consigo. – Era difícil eu o ver estourado, na verdade. Só lembro de uma vez que ele estava muito puto com uma namorada e quase arrebentou o saco de areia que tinha lá em casa. – arqueei a sobrancelha, me perguntando por que havia um objeto daqueles na casa de . – Ele treinava Muay Thai, por isso a gente tinha. – explicou-se ele. – Aliás, Leo era muito centrado principalmente por causa da luta. O professor dele tinha um lado meio excêntrico, ensinava budismo no meio das aulas de arte marcial. – rimos, visto que não era normal algo igual. – Ele acabou absorvendo esse negócio de praticar o bem, não se deixar influenciar por energias negativas, blá blá blá. Quando ficava nervoso, era por um motivo muito grave, mas ainda assim mantinha a calma na frente dos outros.
- Acredito que ele não espancaria o próprio pai, então.
- Com certeza, não. – rolou os olhos. – Mas também não deixaria Otto sair impune.
- Você fez o que estava ao seu alcance. – observei. – Apesar de não ser exatamente o que chamamos de justiça.
- Eu não queria justiça, queria quebrar a cara dele. – ele se mostrou contrário ao que eu tinha dito, me fazendo rir. – E consegui.
- Doido. – me levantei do seu colo, ficando frente a frente com ele. – Ei, o que é isso?
- O quê? – indagou , procurando em si mesmo algo fora do comum. Apoiei-me em uma das mãos para me aproximar, e com a outra alcancei seus cabelos. – Opa, a visão daqui tá privilegiada.
- Cala a boca e para de olhar pros meus peitos, seu babaca. – gargalhei, puxando um fio grosso e branco da sua cabeça. – Olha só isso, seu velho!
- Isso não é meu! – ele ficou horrorizado, negando fervorosamente. – Deve ter caído de alguém.
- E parado na sua cabeça, preso no meio dos outros fios? – continuei a rir, balançando o fio na frente do seu rosto. concordou. – Ah, para de frescura. É normal.
- Eu mal tenho dezoito, não é normal.
- Claro que é, menino! – ele roubou o fio de mim e o soltou sobre o gramado, me fazendo perdê-lo de vista. – Minha mãe tinha fios brancos aos dezesseis, pode ser por causa da genética ou do estresse. No seu caso, definitivamente, estresse.
Resignado, ele fez uma careta ao ouvir minha explicação.
- Só me fodo nessa vida. – reclamou, rindo sem vontade.
- Podia ser pior. – lembrei, e ele me encarou por alguns segundos antes de me puxar para um abraço apertado.
- Ainda bem que eu tenho você. – senti meu peito se apertar ao ouvi-lo. Ter uma mostra verbal de que eu fazia a diferença na vida dele causava uma montanha russa de sensações em mim. Fiquei quieta novamente, repetindo para mim aquela frase seguidas vezes. – Ei, é depois de amanhã a apresentação. Como você se sente sobre isso?
- Ai... – respirei fundo. – Só de tocar no assunto, eu fico nervosa. Tô tendo que botar em prática a minha terapia de esquecimento e boicote de notícias. Eu finjo que não sei que sábado terei que atuar, e não deixo ninguém me contar nada que venha me abalar emocionalmente.
- Que complexo! – riu de mim.
- Mas funciona, pelo menos. – argumentei. – Minhas boas notas se devem a isso.
- Estranho demais pra eu pôr em prática. – ele respondeu com um estalo de desdém. – Tinha que ser coisa vinda de você. – me apertou, nos balançando para os lados enquanto eu chiava e pedia para ele parar.
- Me solta, seu prego! – ri, empurrando-o de leve. – O sujo falando do mal lavado.
- Mas vocês dois são um nojo, mesmo. – disse , aproximando-se. Emma estava com ele, emburrada como sempre por me ver.
- Olha quem tá falando. – retrucou, rindo e se levantando para cumprimentá-los. – Aposto que vocês estavam fazendo o mesmo, ou pior. Provavelmente pior.
- ! – Emma chiou, repreendendo-o. me estendeu a mão para que eu me levantasse, em seguida me abraçando.
Senti-me um pouco desconfortável durante aquele abraço, com a ideia de que e Emma estavam juntos, enquanto ele também procurava , ainda que com menos frequência que antes. Parecia que eu estava atravessando a linha entre o lado da minha melhor amiga e o lado do garoto que eu conhecia há pouco tempo – embora nutrisse um sentimento fraternal enorme. O que era bastante ilógico.
- Tô de olho em você, tá roubando o de mim. – comentou baixo, mas nem tanto, e eu ri.
- Desculpa, não dá pra evitar. – respondi ao soltá-lo, travando ao notar que teria de cumprimentar Emma em seguida. Ela não parecia mais à vontade que eu.
- Oi. – a ouvi dizer, e minha reação foi quase um eco da sua ação. Tentamos também contato físico, porém estávamos fechadas demais para isso, ainda. Nosso abraço foi apenas um toque desajeitado de mãos, seguido de um acordo silencioso de que não servíamos para aquilo.
- Então, vamos? – apontou para o parque, quebrando o clima estranho. Assenti, me pondo ao seu lado e o abraçando pela cintura.
Cinco minutos de caminhada e quinze libras depois, com nossas pulseiras-passe, decidimos qual brinquedo ir: montanha russa. gritava mais que Emma e eu juntas. Eu não conseguia parar de rir devido a isso, também não. Logo de cara ficou rouco, sua voz oscilava tanto que parecia mentira sua. Emma se tornou sua tradutora a partir dali.
Partimos depois para a autopista. Meu carrinho mal saía do lugar, pois um grupo de três irmãos e dois amigos de no máximo quinze anos resolveu trancar o mais novo deles, que estava ao meu lado. Morrendo de raiva, comecei a xingá-los, assustando-os. Quando finalmente consegui me locomover, o tempo acabou.
Para me consolar, fomos à roda gigante, os quatro juntos. , como sempre o mais animado, não parava de girar a nossa cabine, fazendo Emma e eu gritarmos de medo. apenas ria de nós. Como contra-argumento do meu protesto de que não ficávamos fora de risco em brinquedo algum quando os dois estavam por perto, eles disseram que não estavam ali para pegar leve e me desafiaram. Tentada, seguimos para o kamikaze, e Emma teve um mal-estar.
- Quer ir pra casa, Em? – , preocupado e um pouco arrependido, estava de cócoras à frente da namorada, que estava sentada na escada de acesso ao kamikaze.
Ela negou, esforçando-se para não transparecer seu enjoo. Dava para ver seu tórax inflando rapidamente diversas vezes, deixando óbvio que precisava de repouso.
- Acho melhor a gente ir embora. – falei, e concordou comigo.
- Não. – murmurou Emma, balançando a mão em negativa. – Eu tô melhorando, só preciso descansar um pouco.
- Vamos pra algum banco, então. – sugeriu, segurando sua mão.
- Vão lá. – ela apontou em uma direção qualquer. – Vão pro próximo brinquedo. Eu já vou melhorar, não precisam ficar preocupados.
- Tem certeza? – disse ele, desconfiado.
- Eu fico com ela, por via das dúvidas. – me prontifiquei, causando alívio em .
- Tudo bem por você? – ele se dirigiu à namorada, que assentiu.
- Me ligue se acontecer qualquer coisa. – me pediu, beijando minha testa antes de sair com .
- Se eu fosse com eles, era capaz de passar mal também. – comentei, rindo baixo. Abaixei-me à altura de Emma. – Vem, vamos pra um lugar mais calmo.
Com cara de sofrimento, ela se levantou sem protestar. Passei o braço ao redor do seu ombro para ampará-la e caminhamos para a praça de alimentação. Sentamos perto dos banheiros, permanecendo em silêncio por mais tempo que o aceitável. Eu tinha noção de que não seríamos amigas, mas ao menos queria que interagíssemos o suficiente para não dependermos da presença de e .
- O que você tá sentindo? – perguntei, acanhada.
- Enjoo. – ela respondeu, forçando um sorriso para fingir estar ok. – Eu já não estava muito bem antes de vir, só piorou um pouco. Desde que eu não comece a suar frio, não tem risco de eu vomitar.
- Seria bom saber quando isso acontecer. – a olhei com uma careta, tirando um riso dela.
- Não queria estragar o dia dos dois. – Emma disse sem me olhar, um pouco triste. – Ainda mais que daqui pra frente vai ser mais difícil de ver o .
- Se for por minha causa, saiba que não quero que ele se afaste de ninguém. – observei, ofendida com a insinuação dela. Seu olhar, agora confuso e direcionado a mim, durou vários segundos. Eu sustentei minha posição, sem desviar.
- Não, não é por isso. – disse ela, piscando mais vezes que o normal, em sinal de nervosismo. Antes que eu perguntasse, continuou: – Vamos mudar um pouco o assunto, por favor.
- Tudo bem. – concordei, desconfiada.
- Você e parecem estar bem firmes. – sabe-se lá por que Emma foi falar justo disso, e eu me sentia pior ainda por estarmos sozinhas. Talvez ela estivesse somente me sondando para contar tudo a Allison. Eu deveria ter mais cautela nas minhas respostas.
- Estamos bem. – sorri fraco e rápido, mexendo no celular. – E você e ?
- É estranho falar sobre isso com você, devido às circunstâncias. – ela falou, e eu não pude concordar menos. – Mas só pra constar, já tinha feito isso antes, com ajuda de também. Não comigo, mas fez. Geralmente é a atitude deles quando um dos dois está solteiro. Eu os conheço há anos, antes mesmo de eu namorar . Já vi trair Allison algumas vezes, e ela não é tão tolerante porque não o conhecia, achava que poderia mudá-lo. Nos últimos meses, acabou ficando convencida de que qualquer garota que se aproximasse dele significava um chifre novo. – Emma riu baixo, sem humor. – Até hoje ela não suporta a ideia de você dois juntos porque tem certeza de que vocês ficaram antes deles terminarem.
De certa forma...
- O rancor dela é perceptível. – deixei escapar, fazendo uma careta. – Desculpa.
- Por quê, se é verdade? – ela sorriu, amigável. – Não dou razão a ela por fazer isso sem pensar.
Retribuí seu sorriso. Emma parecia sincera, eu não conseguia continuar defensiva. Ela tinha quebrado a barreira que impus entre nós duas.
- Eu não queria que tudo tivesse acontecido dessa forma, mas aconteceu. – mexi no cabelo, um pouco tímida. Era a primeira vez que me abria com alguém que não era uma das minhas amigas. – Não quero que ela me culpe pelo fim do namoro dos dois. Eu não sei os motivos pra ele ter terminado, nem quero saber. Por mim, esse assunto fica enterrado. Não vou ficar revirando o que não deu certo na vida dele, porque precisa de motivação pro futuro, agora. Ele quer ficar em Londres, você sabe, e não é por minha causa. Mas, ainda assim, eu quero ajudá-lo. Eu me comprometi a isso.
- Entendo. – disse Emma, por fim, assentindo.
- Mas então... – desfiz o silêncio que começava a se instalar. Não ia aguentar mais uma amostra grátis de cinema mudo. – Como vocês todos se conheceram?
- Estudei com a primeira namorada do uns cinco anos atrás. A gente era “amigo de festa”. – ela riu sozinha, enquanto eu apenas a olhei, confusa. – Eu não falava muito com o pessoal da minha sala porque fui transferida de um colégio que tinha rixa com aquele, e ele não conhecia ninguém além da namorada. A gente se conheceu no aniversário dela, conversou e continuamos a amizade além daquele dia. Aí acharam que a gente tinha ficado, foi uma merda só. Ele me defendeu, nos aproximamos mais, ele deu em cima de mim logo depois de ter terminado, mas eu não quis porque era apaixonada por um cara aí. Nisso apareceu o entre a gente, dois anos depois, apesar de ele e já serem amigos de infância. Passamos três anos estudando juntos, contando com esse. Allison chegou no primeiro ano, começou a namorar logo de cara, e como eu era a única menina no meio deles, viramos amigas. Foi, em partes, por culpa dela que eu e estamos juntos.
- Por que em partes? – me ajeitei na cadeira, mais interessada. De certa forma, me consolava saber que Emma era mais amiga dos garotos que de Allison. Eu sentia mais liberdade, já que, provavelmente, ela devia saber mais de mim que eu pensava antes.
- Eu já o conhecia o suficiente pra saber que seria corna. – ela disse em tom de sarcasmo. – Mas ele sempre foi tão bom pra mim que valia a pena estar com ele. Continua valendo.
- Há quanto tempo vocês estão juntos?
- Seis meses. – e um sorriso furtivo apareceu em seu rosto.
O modo que Emma falava de , eu queria aquilo para mim. Queria aquela felicidade transparecendo. Aquele desinteresse pelas coisas ruins, porque o que contava era estar com quem se gosta. Eu tinha expectativas altíssimas sobre relacionamentos, agora. Desejava ter um que desse certo como o de e Emma, não obstante os problemas que viessem a acontecer. Desejava aquilo por causa de e com .
- Hey, Em, melhorou? – os dois se aproximaram de repente, me tirando dos devaneios. abraçou a namorada por trás, beijando o topo de sua cabeça.
sentou ao meu lado e pôs a mão sobre a minha, em cima da mesa. Deixei minha cabeça cair sobre seu ombro, olhando seu perfil e sorrindo levemente quando ele correspondeu. Enquanto os dois à nossa frente discutiam o estado de Emma, nós ficamos em silêncio, curtindo a presença um do outro. , então, pegou o celular dele e, sem eu perceber de imediato, nos fotografou. Acabamos nos desprendendo do resto, entretidos demais em capturar a imagem do que éramos. No fim, quando nos lembrou que ainda estava lá, incluímos Emma e ele à sessão de fotos, gerando boas risadas.
Uma das melhores coisas de ter conhecido , me lembrei, foi conhecer por tabela. Envolver-se com alguém como eu estava com nunca era uma via única; eu estava incluída na vida dele tanto quanto ele na minha. Eu tinha tirado a sorte grande por ter pessoas incríveis como o no meio da história.

Eu fingia estar bem, mas estava implodindo. Jantei para não desmaiar no palco, e meu prato ficou vazio o bastante para que eu não enjoasse. Nos bastidores, já vestida com o primeiro figurino, aquecia minhas cordas vocais e fazia exercícios de respiração. Havia tantas pessoas na mesma sala que eu que, de certa forma, me sentia sufocada. repassava as primeiras falas com ; se trocava, pois chegou atrasado; os figurantes recebiam as últimas recomendações da sra. Moore, e ninguém sequer podia parar para conversar.
“Estamos na primeira fila, no meio do palco. A mãe de tá com a gente. Boa sorte, , você é a melhor! Nós te amamos. xx”
Sorri ao ler mais uma vez a mensagem de . Eu não estava sozinha de modo algum, não podia me esquecer disso. Meus pais, Noel, , Saskia e Susan me esperavam do outro lado da cortina. Eu faria o meu melhor por eles.
- ! – ouvi a voz de , me virando para ela imediatamente. – Preparada? – assenti com a cabeça. – Precisa repassar alguma parte? – neguei. – Boa peça, amiga. Você tá linda!
Em seguida, ela me abraçou forte, e eu soube que estava depositando toda sua confiança em mim. Eu também devia o meu melhor a ela.
- Também quero abraço! – reconheci a voz de e ri, soltando , que fez menção de coordenar os outros atores. – Uau!
- Gostou? – pisquei para ele, dando uma voltinha. Ele balançou a cabeça, aprovando. – Valeu o tanto que foi cobrado, pelo menos.
- Você tá incrível, . – suas mãos tocaram minha cintura, me puxando para perto. Era a primeira vez que nos falávamos naquele dia, já que eu tinha passado as horas anteriores em um centro de estética.
- Você também não tá nada mal, monsieur Christian. – sorri, subindo meus dedos do seu colarinho para o pescoço. – Só não gostei dessa barba.
- Daqui a pouco eu me livro dela. – ele puxou um pedaço próximo às costeletas, mostrando que era falsa. – Enfim, o grande dia.
- Sim. – abri mais meu sorriso, num misto de empolgação e nervosismo. – Menos de dois meses e olhe onde estamos.
retribuiu meu sorriso, percorrendo seu olhar por todo o meu rosto. O frio no meu estômago se intensificou sob sua análise; esperava qualquer palavra positiva sua para soltar o fôlego preso.
- Assim que acabar a peça – ele começou, triplicando a expectativa guardada em mim –, me encontre no ginásio.
Murchei, sem entender. Mas que...?!
- Meus pais vão querer sair pra jantar. – respondi a única coisa que podia, a verdade.
- Diga a eles que eu te levo.
- Mas e Susan? – perguntei por educação. Naquele exato momento, queria que todo mundo se explodisse. Ele podia ter dito qualquer coisa, até o convencional “Quebre a perna”, mas não. só queria saber de dar uns amassos, escondido por aí.
- Ela vai voltar direto pra casa. A gente pega um táxi, sei lá. – ele fez uma careta, não querendo aprofundar o assunto. – Mas me encontre lá. Por favor.
- ... – sibilei, de má vontade.
- É importante, . – fitei os de seus olhos, vendo que havia seriedade neles. A pronúncia do meu nome, em vez do apelido, confirmava isso. – Me prometa que você vai.
- Tudo bem, prometo. – falei. – Esteja com o seu celular em mãos, vou te ligar assim que chegar lá. Se você não aparecer em quinze minutos, eu vou embora nem que seja a pé.
- Claro que eu vou estar lá. – ele me beijou rapidamente. – Quinze minutos antes de você chegar, até.
- É bom mesmo. – dessa vez, eu o beijei.
- Boa sorte pra gente. – ele tornou a sorrir. Aquele sorriso quase de criança que eu achava lindo.
- Boa sorte pra gente. – repeti, abraçando-o tão forte que sentia meu peito pressioná-lo ao se encher de ar. Além de me apertar de volta, depositou beijos na base do meu pescoço, me arrepiando toda. – Odeio dizer isso, mas agora não é a hora nem o lugar.
Ele riu, derrotado. Afastou-se de mim e soletrou “Linda” sem soltar um som sequer. Balancei a cabeça para os lados, sorrindo e vendo as luzes de fora da sala se apagarem.
- Atenção todos, entraremos em um minuto! – disse , em alto e bom som. – , e figurantes da cena um, a seus postos!

***

segurou a mão de firmemente, e a troca de olhares que tiveram fora um agradecimento das duas partes. A dele, pelo empenho de sua parceira de palco; a dela, pelo apoio recebido. No instante seguinte, ele tomou a frente dos atores e ficou a um passo das pesadas cortinas vermelhas. Não tinha mais como fugir. Era ali, naquela hora, que provaria ser mais que esperavam dele. Era a prova de fogo que seu caráter tanto pedia.
A música tocava ao fundo. Seguidos trinta segundos, em um ponto marcado como o inicial, uma abertura se fez e as pupilas de se comprimiram com a luz do holofote invadindo seu espaço – um convite à força para ele entrar em cena. O tempo que teve para pensar e agir foi somente o de uma inspiração profunda, e logo após veio o primeiro passo em frente ao público.
Ele não se lembrava de ter visto tantos pares de olhos o encarando. O máximo que vira fora os pais dos seus colegas de classe na escola secundária, durante a formatura que seus pais não foram. Aquilo era diferente, no entanto. Completamente diferente. Por mais que sua posição fosse de prestígio, não tinha finalizado sua tarefa, e qualquer mínimo erro seria apontado. tinha de executar seus movimentos com perfeição, e pensar nisso o deixava cada vez mais inseguro. O que ele poderia fazer? Era um virgem das artes cênicas.
Finalmente chegou ao seu lugar no palco, ao centro e à frente. Resolveu desviar o nervosismo encarando os semblantes famintos por uma entonação sua. A divulgação e desenvolvimento da peça tinham sido um investimento pesado do colégio – provavelmente provindos do suborno feito por Otto –, de modo que lotasse o auditório como nunca se viu antes. Havia pessoas para todos os lados, a lotação fora completa. Quase faltara lugar para os convidados. E ele sequer tinha a quem convidar, além de sua mãe.
Desde o começo, sabia que estava ali por simples obrigação. Não queria fazer parte daquilo, embora precisasse. Criou apreço pelo grupo de teatro única e exclusivamente por causa de . Ela o fez se empenhar, levar a sério algo que, apesar dos pesares, era uma punição. Aquele fora o corretivo mais ameno e proveitoso que ele teria na vida, sabia disso. Não podia tripudiar em cima do que lhe era oferecido de mão beijada. Assim, quando notou que demorava mais que o previsto – “É a minha primeira vez, eles vão entender” –, retirou sua cartola, parte de seu figurino, e abaixou o rosto, sinal combinado para a produção diminuir o som.

Bisbilhotando por uma fresta da cortina, não conseguia tirar os olhos do seu par. “Ele dá conta.”
Mal podia se conter de apreensão, a peça tinha tudo para dar errado a qualquer segundo. Ela já tinha visto acontecer outras vezes, e teria habilidade para contornar um imprevisto?
- Relaxa, . – sussurrou para ela, rindo do cenho franzido da amiga. – Você vai entrar em cena com a maquiagem toda cagada, desse jeito.
encarou a menina por alguns segundos, avaliando o que havia ouvido. Se a própria produtora da peça a pedia para se acalmar, então seu estresse estava palpável.
- Ele precisa muito fazer bem feito. – murmurou, aliviando as feições. – É muito importante pro .
- Só pra ele?
Negou, sorrindo com resignação. Em seu íntimo, torcia pelo sucesso da peça para alívio próprio, contudo, não queria parecer egoísta. Mas não mentira quando dissera que era importante para seu parceiro, uma vez que Susan estava na plateia somente por ele. Ela sabia o quão importante era qualquer interação entre os dois, seus laços precisavam ser estreitados novamente. Os dois estavam sós, um pelo outro, agora. Um devia apoiar o outro, e o apoio tinha de ter uma causa. precisava dar aquele orgulho à mãe.
- Você já vai entrar, presta atenção. – tornou a lhe chamar a atenção. – 3, 2, 1, vai!
Pisando com a confiança que já conhecia, dominou o palco. Sua presença se tornou única tão somente pelo fato de não querer impressionar; seus movimentos eram naturais, seu olhar era firme. A sensualidade era deixada em rastros por onde sua silhueta passava. Em poucos segundos, sua imponência desapareceu em meio aos figurantes que a carregavam para fora de cena. O gosto dos olhares sobre ela transformou aos poucos o medo em gula, ela queria mais daquilo. Queria, principalmente, mostrar ao seu parceiro como era fácil conquistar o palco. Se até ela conseguia, ele também tinha potencial.
Seu coração continuava palpitando de felicidade. Sua mente, abstraída das emoções que a angustiavam momentos antes, agora só continha a ideia fixa de que ela precisava estar com ele. Por sorte, ela estaria.
Passaram-se as cenas introdutórias. fora brilhante em sua aparição, tendo que fazer parte da coreografia de Spectacular, Spectacular. Quando teve oportunidade, inclusive, mandou uma piscadela para Saskia. não deixou passar despercebido, cutucando a amiga e fazendo piadas sobre.
Na pausa entre o primeiro e segundo ato, enquanto trocava o figurino, ela se lembrou do dia no jardim de , quando os dois recitaram Elephant Love Medley, música do segundo ato, por diversão. As memórias de Moulin Rouge sempre estariam entrelaçadas às de em sua mente. A garota mal reparara em como havia feito tantas lembranças boas antes mesmo de se deitar com ele pela primeira vez. Ele já a tinha marcado de forma mais profunda: estava apaixonada por .

- o chamou nos bastidores –, aproveita esse tempinho e toma uma água. Você forçou muito a sua voz em Your Song, vai acabar ficando rouco.
Assentindo, mas não saindo do lugar, ele olhava a produtora de forma engraçada.
- Que foi?
- Não, nada. – ele balançou a cabeça para os lados, rindo consigo mesmo. – É que você nunca me chamou pelo apelido.
- Sério? – ela tentou se lembrar, sem sucesso. – Ah, tanto faz. Vai logo, não perde tempo.
- Certo. – disse o garoto, caminhando até a mesa posta com vários copos descartáveis e garrafas d’água. Viu por perto, evitando olhá-lo. Era fato que os dois não se dariam bem devido ao alto nível de testosterona em uma só sala, apenas um poderia ocupar o espaço. Mas também era fato que ambos estavam se empenhando em fazer a peça dar certo. Ambos queriam ouvir os aplausos no fim. Portanto, ambos deviam os cumprimentos ao outro.
decidiu que a trégua deveria partir dele, afinal, a guerra começou com ele. Dirigiu-se a com cautela, levando um copo para o colega de palco, estendendo-o antes mesmo de dizer “Oi”.
- Não precisava. – , de primeira, não pegou o copo. insistiu, então ele aceitou. – Obrigado.
- Você tá indo bem... na peça. – o mais velho parecia travado ainda. Seus gestos diziam por si muito mais que suas palavras tentavam.
- Obrigado. – repetiu , bebendo a água. Nem mesmo o olhava. – Você foi melhor que o esperado pelo grupo.
- Me esforcei bastante. – disse , sem esconder a vaidade.
- teve bastante trabalho com você, provavelmente. – ouviu o mais novo usar um tom de ironia, mas em vez de se irritar, concordou. Não era nada além da verdade.
- Ela é incrível. – concluiu, sorrindo de soslaio.
Ouviu-se as primeiras notas de One Day I’ll Fly Away. O palco ainda estava escuro, exceto por um facho de luz destacando . Sua voz doce ecoava com graça, poderia ouvir aquela canção vezes seguidas, sem se cansar. Como se atraído pela oitava da garota, aproximou-se das cortinas novamente.
Espiando pelo mesmo lugar que seu par momentos antes, notou no perfil iluminado dela que não via a mesma furtiva. Ela tinha presença, tinha personalidade. Não era fácil de entender nem de conhecer, mas quando se abria, puxava para dentro de si a pessoa que se aproximava. E lá, dentro dela, dava conforto, carinho. Ela tinha o que ele mais buscara durante os anos de isolamento. Tudo. Ela era completa. Ela é incrível.

Em El Tango de Roxanne não houve sequer uma pessoa que ousou negar que a carga emocional da cena era genuína. O palco foi dividido ao meio, onde em uma das metades se passava o tango no salão principal, e na outra, o jantar na torre. Ver forjando beijos com , tocando sua pele onde o vestido não cobria, mesclava os sentimentos de de tal forma que ele não pôde conter os ciúmes, deixando-os estampados em seu rosto cândido.
Durante o quarto ato, em The Show Must Go On, a troca de cenário no decorrer da cena de despedida entre Satine e Christian surpreendera aos espectadores. E Christian surpreendeu Satine com um beijo fora do script, carregado de intensidade. precisava reafirmar que, ali, ela ainda era sua. Havia decidido que contaria a ela sobre Cardiff logo após a apresentação, no encontro que marcara no ginásio. Ele sabia do risco que corria de perder , ela tinha o direito de se afastar para não sentir a separação. A possibilidade o assustara tanto que se viu obrigado a aproveitar qualquer oportunidade. Queria que cada par de olhos visse bem a quem ela pertencia.
Desconsertada, precisou de um tempo para se recuperar. Ela entendeu que aquilo precisava ser feito, embora não soubesse o porquê. Entretanto, aquele gesto não podia tirá-la da personagem. A garota não podia deixar de ser a cortesã francesa para dar ouvidos aos seus tormentos de adolescente britânica. Agora, mais que o prometido, precisava encontrar após o espetáculo.
Após aquele beijo, o verdadeiro, de para , a atenção da protagonista nas cenas teve de ser redobrada. No quinto e último ato, com o figurino devidamente trocado, ela tremia de ansiedade pelas cenas finais. A segunda versão de Come What May era a cappella, e sua afinação fora máxima. Ao menos tivera a falta de ar encenada para se recompor após o esforço fora do comum. E , do meio da plateia, com metade do figurino roubado de outro ator, usou seu tom grave para acompanhá-la. No fim da canção, em vez de se virarem para o público, permaneceram frente a frente, abraçados, sorrindo um para o outro e modificando de última hora o que fora ensaiado.
não se permitiu recuperar todo o fôlego. Respirava fraco entre as cenas para dar credibilidade à falta de ar. Então, envolta pelos braços do seu par, deixou a perna bambear e sorveu o ar com um suspiro alto. Aos poucos, os dois caíram de joelhos sobre o palco, sob olhares também do elenco. se forçou a pensar em suas cicatrizes emocionais mais profundas para expulsar as lágrimas que não conseguia trazer à tona durante os ensaios. Seu choro alto e entrecortado por soluços vieram das lembranças de Leonard. Da sua família se dissolvendo. Do abandono não declarado de seu pai. Ele não era merecedor de tudo aquilo, mas ainda assim o tivera. E dentro de alguns dias, perderia sua última ligação com o distante passado feliz que outrora existiu. Estava fora de seu alcance lutar para ficar. No fundo, ele não tinha mais forças. Talvez fosse melhor ir embora.
Essa possibilidade mudaria todo seu discurso, no entanto. Se era melhor ir, para que insistir em ficar?
- Você conseguiu, . – murmurou para ele, quando todas as luzes se apagaram e a música cobriu os burburinhos da plateia.
Ele abriu os olhos, embora não visse um palmo à sua frente. Além de escuro, sua visão estava turva por conta das lágrimas. passou as costas da mão no rosto para secá-lo, sentindo as mãos delicadas de o tocando e aquecendo suas bochechas frias.
- A gente conseguiu, meu . – ela tornou a dizer, rindo baixo. Ele sorriu abertamente, segurando as mãos dela e beijando cada palma em seguida. Sem conseguir falar por conta do choro que embargara sua voz, puxou-a para um abraço apertado, levantando-os.
- Bora, bora, todo mundo se prepara pro agradecimento. – passou pelo palco, apressando o elenco. – Vocês dois, se desgrudem agora e se ajeitem!
Exatos sessenta segundos, os atores e figurantes alinhados em duas fileiras, a cortina se abriu e revelou cada rosto maquiado para o público. Os sons de palmas se espalhavam continuamente pelo auditório, e, finalmente iluminados, viu a família de à sua frente, aplaudindo com todas as forças que tinham. Logo ao lado, , Saskia e Susan, que acenou assim que os olhos do filho caíram sobre ela.
Como efeito de onda, cada um fez a reverência à plateia, batendo palmas ao teatro posteriormente. Todos, sorridentes e transbordando alívio pela peça bem executada, cumprimentaram-se após o último fechar das cortinas.

’s P.O.V.

Eu, literalmente, saí correndo do camarim depois de trocar de roupa. Se me rendesse à educação e parasse pra falar com cada pessoa que quisesse me cumprimentar, nem tão cedo sairia de lá e não conseguiria ter a conversa com . Aquilo não podia mais ser adiado. Principalmente pelo fato de eu não ter conseguido a casa de para ficar durante as férias. Em menos de uma semana, eu já estaria dormindo sob outro teto, a quilômetros de distância.
Encostei-me à parede do ginásio, onde a iluminação da rua não deixava tudo um breu. Havia grandes chances de não termos permissão para estar ali depois do horário de funcionamento, mesmo tendo a apresentação à noite. Caso fôssemos pegos, seria mais um pequeno problema para explicar aos nossos pais, e aposto que a sra. não ficaria nada feliz.
Olhei as horas no celular novamente. Dez minutos desde o fim da peça. Ela estava demorando. Tudo bem, o figurino era mais difícil de ser retirado e ainda tinha a questão da maquiagem, mas aposto que em três minutos ela estaria sem aquilo tudo, se estivéssemos sozinhos em um quarto.
“Espero que você não tenha esquecido a sua promessa.”
Comecei a tamborilar os dedos na perna, impaciente. A família toda dela estava lá, fora os amigos e o grupo de teatro. tinha muito mais pessoas para se esquivar que eu. Poderia demorar horas até conseguir escapar de todos.
“Não esqueci, mas tá impossível ir até aí. Vou demorar mais que o prometido.”
- Puta merda. – xinguei alto, guardando o celular no bolso e voltando até o auditório. Vestido de forma comum, não me reconheciam e não falavam comigo. Entrei no camarim e vi Cecile e conversando com , que me viu e apontou para os dois à sua frente com o olhar.
- Eu não faria melhor, com certeza. – dizia Cecile quando me enfiei no meio dos três. – , oi! Não te vi depois da peça.
- Olha, desculpa, mas não tô com tempo pra conversa agora. – falei rapidamente, forçando um sorriso. – Vou roubar a de vocês e não vou devolver. Tchau.
- ! – me repreendeu, acompanhando de forma desajeitada os meus passos longos. Eu a encarei, dando a entender que ela devia me agradecer por aquilo.
- A gente tem um assunto bem sério pra tratar, e seus pais estão te esperando. – justifiquei. Ela desistiu de argumentar.
- Minha mãe quase não me deixou ficar. – confessou, segurando mais firme a minha mão. – Ei, espera, eu já tô aqui.
- Desculpe. – diminuí a passada, ficando lado a lado com ela. – Mas todo mundo já foi, né? Você disse que eu te levaria em casa?
- Disse, disse. – assentiu diversas vezes. – O que você tanto quer falar, afinal?
Tentei pensar rápido. Precisava prender sua atenção antes de chegar ao assunto principal.
- Por favor, não viaje nessas férias. – disse, atropelando as palavras. Vi seu rosto se tornar uma interrogação. – Preciso que você fique em Londres nessas férias.
- Por que isso agora, ?
- Eu vou pra Cardiff. – respondi. Não conseguia sequer montar uma linha de raciocínio completa. – Mas quero ficar aqui, e pra isso, preciso que você fique.
- Quando você vai? E por que não quer ir? – seu rosto não mudava a expressão nem por um decreto.
Parabéns pela eloquência, .
- Semana que vem. Quarta-feira. – respirei fundo, fechando os olhos para não ver sua reação seguinte. – Eu não quero ir porque terei que morar lá.
Silêncio. Muitos minutos de silêncio.
Eu esperava qualquer coisa de , menos silêncio. Abri os olhos devagar ao reparar no tempo que estávamos perdendo ali, vendo-a com as mesmas feições de antes.
- Mas você... A Elizabeth, ela ia te aprovar. – aos poucos, ela tentou ligar os pontos. – Você fez tudo direitinho, fez tudo que ela pediu.
- Não é pelo colégio. – desviei o olhar. – É pela separação dos meus pais. Eu te contei o que aconteceu naquela semana, quando briguei com Otto, mas não tudo. Ele quer todos os bens adquiridos depois do casamento, e só o que sobrou foi o apartamento que minha mãe tem em Cardiff, onde ela morava antes de vir pra cá. Ou a gente aceita e se muda, ou ele abre processo criminal contra mim por agressão.
Senti uma pancada no meu peito, me fazendo cambalear para trás. Confuso, tornei a fitar , que vinha para cima de mim mais uma vez, com os punhos fechados.
- E você não me contou isso, seu idiota?! – ela continuava batendo em mim, com as linhas do rosto fundas. – Eu não tinha falado pra você confiar em mim?! – de repente ela parou, aumentando cada vez mais o tom de voz. – Puta que pariu, ! Você só me conta isso em cima da hora!
- Eu sei, desculpa. – tentei me redimir. – Eu tava tentando arrumar um jeito de ficar, aí não teria problema te contar agora. Também demorei dias até contar pro , e era pra ele que eu tava pedindo ajuda!
- Você é inacreditável, sabia? – ela riu sem humor, sarcástica. – Antes tivesse me deixado em paz, em vez de tentar fazer as pazes. Que espécie de idiota é você? Idiota não, sadomasoquista, né?
- Eu juro que não fiz por mal. – juntei minhas mãos à frente do peito, pedindo clemência. – Eu quero ficar com você, , senão não teria feito isso. – suas íris transmitiam puro ódio por mim naquele momento. Eu merecia; faria o mesmo, em seu lugar. – Senão nem pediria pessoalmente à mãe do para me abrigar. Eu não contei antes porque tinha um plano feito, mas deu tudo errado.
- Isso não muda o fato de que você é um idiota. – disse , ríspida.
- É, não muda. Eu sei. – passei as mãos pelos cabelos, sem saber o que mais dizer. – Mas tenta me entender.
- Só se você me prometer não me esconder mais nada. – apesar de seca, ela parecia mais calma.
- Prometo. Pelo meu Mustang.
- Vou tentar, então. – concordou, piedosa. – E me diz, Emma sabia disso, não sabia?
- Sabia. – respondi, envergonhado com a minha própria covardia. conteve um grunhido, segurando-se para não me dar mais um murro.
- Ela tentou me dizer e eu não percebi! – resmungou para si. Emiti um som de interrogação, sem entender. – No parque, quando estávamos na mesa, ela quase me contou. Mas eu achei que fosse outra coisa e desconversamos. Eu que sou a idiota, no fim das contas. Olha com quem eu fui me meter. – apontou para mim, como se mostrasse a uma terceira pessoa presente.
- Você só não é pior que eu. – falei, em tom de desafio.
- Não sou mesmo! – concordou ela, sem mudar a entonação. – Você é um merda, .
- Eu sou um merda! – continuei, segurando suas mãos e as pondo atrás da minha nuca. Apesar dos xingamentos, ela já tinha entendido meus motivos. Tinha o direito de me punir à vontade, ainda assim. – Um babaca.
- Um grande babaca. – sua voz abaixou, enquanto ela me encarava diretamente nos olhos.
- Mas bonitinho. – sugeri, fazendo-a rir. Ela concordou, e em comemoração, eu a beijei rapidamente. – E você me adora.
- Você me adora mais. – disse, sorrindo entre os beijos.
- Eu te adoro muito mais. – completei, apertando sua cintura em um abraço e a levantando no ar, ouvindo seus gritos em protesto. – E aposto que seus pais também adorariam, se você estivesse indo pra casa pra comemorar com eles.
- Mas e você? E Susan? – pela primeira vez me olhando de cima, seu rosto parecia mais delicado com a luz tangenciando seu contorno.
- Eu vou ficar bem. – respondi, sorrindo amarelo. – A princípio, tenho que negociar com a minha mãe sobre ficar aqui durante as férias.
- Você não precisa fazer isso por mim. – ao ouvi-la, a pus no chão novamente.
- Não leve isso a mal, mas não é só sobre você. – esclareci, vendo seu rosto surpreso pela minha resposta. – Eu tenho uma vida inteira pra me despedir. Tem certas coisas que levam tempo pra gente desapegar.
- Entendo. Desculpe.
- Não precisa se desculpar. – acariciei a maçã do rosto de , sentindo seu calor. – Mas vamos, preciso ligar pro táxi e te levar pra casa.
- Sim, senhor. – ela tornou a sorrir, prestando continência a mim.
Apesar do tempo que passamos escondidos, quando saímos, ainda tinha pessoas saindo do auditório. estava entre uma delas, com seu namorado ao lado. fez questão de correr até eles, abraçando a amiga imediatamente, sem dizer nada.
- Eu tô tão orgulhosa de você, ! – disse a produtora da peça, a voz abafada pelo abraço.
- E eu de você! – guinchou, finalmente a soltando. – Você, como sempre, fechou tudo com chave de ouro. Moulin Rouge foi uma escolha de gênio. Tomara que te aprovem!
- Foi, né? – sorriu, orgulhosa de si. – Falei com os avaliadores da Juilliard, eles foram imparciais ainda. Semana que vem eu tenho que fazer uma entrevista pessoal, parte da banca vai ser com professores das universidades de Londres, mesmo.
- Você vai conseguir, tenho certeza.
- Dependendo do meu estado, vocês vão saber se passei ou não, no baile. – observou, fazendo todos rirem. – Vocês vão, não vão? Foi um sacrifício conseguir os convites com a comissão de formatura.
- Eu vou. – falou , firme. Os olhos do casal se voltaram para mim.
- Não sei ainda. – cocei a nuca, incomodado. – Vou me mudar semana que vem, a princípio.
- Sério, pra onde?
- Cardiff. – novamente que respondeu primeiro, parecendo querer chocar . – No País de Gales.
- Eita. – a reação dela foi exatamente a que provocou. apenas franziu o cenho, já que não sabia o contexto.
- Eu tô tentando achar um lugar pra ficar até o fim das férias. – aproveitei a oportunidade. Ajuda nunca era demais. – Se vocês souberem...
- Então... – se pronunciou, o que era difícil acontecer nas poucas vezes que ele estava por perto. – Nos fundos da minha casa tem um quartinho que usamos de depósito.
- Aquele troço amontoado de caixas? – fez uma careta, o que devia ser levado em conta como um alerta para não aceitar. Porém, a julgar a minha conjuntura, até aquele sinal eu estava ignorando.
- Quando posso ver e por quanto você aluga?
- Amanhã, depois do almoço, pode ser? – assenti à sua pergunta. – Como é só um quarto e um banheiro e você vai ter um trabalho pra arrumar aquilo, cem libras tá ótimo.
- Tudo isso?! – riu sem humor, provavelmente achando a taxa abusiva.
- Por uma temporada, tá ótimo. – argumentei. – Eu só preciso de um lugar pra dormir e tomar banho, até vale a pena fazer faxina.
- Tô descontando o dinheiro que cobraria se eu fizesse. – disse com ar de piada, mas eu sabia que era verdade. Do contrário, nem citaria o fato de que preciso limpar o tal quarto.
- Então beleza, amanhã, se tudo der certo, já te levo o dinheiro e as minhas coisas.
Estendi a mão para ele, que aceitou, selando nosso contrato. Nem tudo estava perdido.


Capítulo 32

’s P.O.V.

Tudo estava uma zona. Parecia o inferno.
Eu tentava com afinco terminar de arrumar a mala com roupas e outras coisas necessárias para passar todo o mês de agosto em Londres, no quarto alugado na casa de . Era um pouco mais que um quarto, na verdade, era edícula com pilhas de entulho, variando de brinquedos a sacos e mais sacos de garrafas PET. Havia acordado por volta de 7h e só terminei de ajeitar o lugar depois das 15h. Agradeci mentalmente por já ter negociado preço com antes de faxinar, porque o aluguel do espaço valeria bem mais que cem libras. Eu só precisava arrumar o básico, agora. Susan tinha se candidatado para me ajudar nisso, embora estivesse relutante em me deixar ficar.
- Eu não consigo entender essa sua fixação com essa cidade. – disse da porta, tentando me convencer mais uma vez. Eu estava parado em frente à mala, tentando me lembrar do que faltava ainda.
- Não é fixação, eu só quero me despedir direito. – voltei-me para ela. – Qual o nome daquele negócio que põe no armário pra não ficar com mofo?
- Desumidificador.
- Isso, anota aí pra comprar. – apontei para o bloco de folhas que ela segurava. – Parece até que você nunca passou por isso, aposto que se sentiu do mesmo jeito, antes de se mudar pra cá.
- Na verdade, eu queria sair logo de Cardiff. – ela riu consigo mesma. – Eu iria pra melhor faculdade de Administração do Reino Unido, estava mais ansiosa pra sair de casa que você está pra ficar. Cardiff era bem chato.
- E é pra lá que você quer me arrastar, né? – franzi o cenho, fazendo-a rir.
- Ossos do ofício. – ela deu de ombros. – E isso foi há mais de vinte anos, a cidade evoluiu muito. Você pode não se lembrar, mas ainda tem alguns parentes por lá e eles gostam.
- Três primos que só me zoavam e uns tios-avôs que já estão passando da validade. – desdenhei, tornando a mexer na mala, abrindo espaço para colocar mais roupas. – Grande coisa.
- Eles podem ter mudado com o tempo...
- Vamos mudar pra um assunto melhor, por favor? – fiz uma careta, contando as camisetas que tinha separado. – Ainda tenho que resolver onde vou deixar o Mustang. E não, não vou vender. – completei antes que ela falasse algo.
- E quanto a Summer? – cansada de ficar de pé, Susan se sentou à beirada da minha cama.
- Não sei se terei tempo pra tocar. – Não sei se terei tempo algum, na verdade. Pretendia ficar à toa menos tempo possível, assim não teria nenhuma lembrança dos atuais acontecimentos. Por aquele curto período, seria apático novamente.
- E você vai ter dinheiro pra fazer tudo que quer pra não ter tempo pra tocar? – ela tocou num ponto crucial. Olhei-a com um sorriso pedinte, piscando mais que o normal. – Eu não estou rica, , acabei de sair com uma mão na frente e outra atrás de um casamento.
- Mas pobre você também não é, espertinha, não tente me enrolar. – pus as mãos na cintura, imitando-a quando queria brigar comigo. – Eu tenho o suficiente pra manter o tanque cheio, mas vou precisar de mais pra alimentação, telefone e... – pensei em outro item, sem lembrar de nenhum realmente essencial. – Lazer.
- Defina lazer. – Susan me encarava com os olhos semicerrados, inflexível.
- Tem o baile de formatura no sábado, vou precisar de dinheiro pra ir. – enumerei nos dedos. – sempre vai ao clube durante as férias, todos vão, eu não vou ficar sozinho. E tem mais coisas que a gente quer fazer, mas não lembro agora.
- E quanto você acha que tá bom pra essas suas aventuras? – ela cruzou os braços, mostrando no seu rosto a desconfiança em mim. Provavelmente achava que eu pediria uma quantia absurda.
- Uns... – fechei um dos olhos, fazendo uma careta enquanto calculava rapidamente – quinhentos.
- Quê?! – minha mãe soltou uma gargalhada explosiva, enquanto eu esperei pacientemente. – Você tá se ouvindo, ?
- Sejamos justos. – sentei-me ao seu lado, alcançando o bloco de anotações. – Eu vou passar um mês e alguns dias aqui. Fora o dinheiro de combustível, dividindo o valor total por quatro semanas, terei £125 por semana. Isso dá mais ou menos – rabisquei os cálculos – £17.90 por dia. Eu tenho que comer, não vou passar o dia inteiro trancado em casa, às vezes acontecem emergências. Quinhentas libras é o básico.
- Você quer me dizer que vai sobreviver as férias inteiras com o básico, então? – Susan pôs a mão no queixo, me analisando. Assenti à sua pergunta, afinal, era verdade. – De verdade?
- Quer apostar? – estendi a mão a ela, que a olhou e depois voltou para o meu rosto.
- Se você me ligar pedindo dinheiro, terá que viajar no dia seguinte. – ela disse seu termo, sorrindo com confiança. Eu não tinha nada a perder, que mal faria?
- Se eu não ligar, ganho o mesmo valor assim que chegar em Cardiff. – investi pesado, mas Susan parecia certa demais que ganharia para se importar.
- Mais alguma exigência? – ela ameaçou apertar minha mão, recuando segundos antes. Neguei com a cabeça, então selamos o trato. – Te vejo em casa em breve.
- Em setembro? Sim, em breve. – ri com ironia, em seguida voltando a me ocupar com as malas.
No fim da noite de domingo, eu estava com tudo pronto para a “mudança”. Na segunda de manhã, Susan ainda tentou me convencer a ir com ela, mas eu estava decidido a ficar. Levei minhas malas e caixas para a edícula de e combinamos as regras de convivência. Ele era um cara reservado, como já tinha percebido antes, mas tinha boas histórias e um ótimo gosto musical – descobri enquanto levava meus pertences, pois ele me ajudava e, para descontrair, colocara The Clash para tocar.
No pequeno quarto da edícula havia um bloco de concreto feito para ser uma cama, faltava só o colchão e os lençóis, além de um pequeno armário embutido. Pus um banquinho como mesa para meu notebook e pronto, tinha todos os móveis necessários. Na sala/cozinha/sei lá que cômodo era, a pia dividia um dos cantos com uma mesa de dois lugares que achei entre os entulhos do dia anterior, e a outra ponta tinha um colchão inflável, uma mesa simples com o micro-ondas que – serei educado – me apropriei da antiga casa e uma caixa térmica que seria minha geladeira durante aquele mês. O banheiro era um banheiro de verdade, embora apertado sem cortina no chuveiro, eu só precisava espalhar umas toalhas e itens de higiene pessoal e pronto, eu era um dono de casa.
O resto da semana se revezou em saídas para a casa de e algumas conversas com . Ao contrário da namorada, era bastante pacífico e não ligava muito para as coisas que aconteciam ao redor, tanto que nem mesmo se lembrava do roubo do gabarito de Física. Ele também tinha música como hobby, tocava um pouco de , assim como eu. “Um pouco”, para ele, era saber Smooth, do Santana, de cor, sem nem mesmo olhar para as cifras que fazia. Eu mal sabia tocar e cantar ao mesmo tempo, um dos dois saía do tempo certo em algum momento. Depois de descobrir essa novidade que resolvi passar mais tempo na edícula, em vez de ir acordar todo santo dia.
Eu não ia e ficava na casa dele o tempo todo, só passava para acordá-lo, a fim de tomarmos café da manhã, o máximo que os pais dele haviam permitido. Naquele fim de semana, entretanto, os dois viajariam para interior, pois os padrinhos de casamento deles estavam comemorando as bodas de porcelana – o que eu não tinha a mínima ideia do que representava – e não tinha nada a ver com aquilo. Era o mesmo fim de semana do baile, e, embora estivéssemos sem carona, o evento não podia estar mais de pé que nunca.
Compramos bebidas das mais variadas – se tocássemos na adega do pai de , ele nos mataria sem pensar de novo –, pedimos pizzas e deixamos os vizinhos putos da vida com a música alta. Havia cerca de quinze pessoas na casa, dentre elas, Emma, e Allison. Ally e Em não saíram da sala em momento algum, enquanto socializava com os outros em qualquer cômodo, exceto os quartos, que estavam trancados. tinha dado uma de “João sem braço” e não respondeu se eu poderia dormir na casa dele, então eu tentava deixá-lo alto para que concordasse de primeira. Quando fazia nossos drinks, eram dois dedos de vodka e oito de energético para mim e o contrário para ele.
Em menos de uma hora, ele já estava de pé sobre a mesa de centro da sala, dançando k-pop.
- -boy, meu querido, vem cá! – gritou ao me ver com um copo cheio de Cuba Libre. Aproximei-me, rindo. – Você sabe que dessa casa toda, você é meu favorito, né?
- Emma vai ficar com ciúmes. – comentei, olhando-a. Ela ria, sentada no sofá.
- Ele tá totalmente bêbado. – observou, balançando a cabeça.
- Não, ela não vai! – ele continuava a falar alto. – Sabe por quê? – emiti um “Hm” para que ele continuasse. – Porque eu amo a Emma. Eu a-m-o. Ouviu, Emma? EU TE AMO!
- Cala a boca, . – ela escondeu o rosto atrás de uma das mãos, meneando a cabeça levemente. Allison, ao seu lado, gargalhava desde que resolvera dançar.
- -boy, me dá um gole disso. – ele esticou o braço em direção ao meu copo. – O que é?
- Não, senhor. – afastei minha mão, deixando-a próxima às meninas. – Esse é meu.
- Era! – Allison falou, antes de me roubar, fingindo ser inocente quando eu a encarei. – Muito obrigada, . – e lançou um beijo em minha direção.
Balancei a cabeça para os lados, levando em conta que seria uma ótima pedida ter uma recaída com Ally, se não existisse e tudo mais. Depois que terminamos e ela se deu conta de que não tinha mais volta, Allison vinha usando artilharia pesada, mas não investia diretamente. Parecia querer mostrar que estava bem sem mim, mas que não faria mal se eu corresse atrás. Mas eu não correria, entretanto.
Sem bebida e ainda bastante sóbrio, voltei à mesa de jantar e preparei mais meio copo de Cuba Libre. Como a Coca-cola estava quente, fui à cozinha em busca de gelo, encontrando Amelia conversando com , que estava sentada na bancada da pia. Após pôr o gelo no meu drink, caminhei até elas, abraçando a cintura de com minha mão livre e beijando a base de seu pescoço. Ela soltou um riso fraco, afastando-se levemente. Repeti minha ação, então subindo e mordendo seu lóbulo.
- ... – seu tom era de advertência, e sua mão logo apareceu à frente do meu rosto, me impedindo de chegar perto de novo. Olhei de relance para Amelia, que parecia já ter entendido a minha mensagem e dava sinais de que queria sair de perto.
- Vou dar uma olhada na sala – disse ela, fazendo-me sorrir –, já volto.
- Fique à vontade. – respondi, esperando somente Amelia dar as costas para me virar de frente para .
- Por que você faz isso, ? – segurava o riso, virando-se para trás rapidamente.
- Desde quando você bebe? – arregalei os olhos, vendo-a segurar, então, uma garrafa de Smirnoff Ice.
- Desde hoje. – ela deu de ombros, dando um gole. – É uma ocasião especial, e isso – mostrou a garrafa para mim – nem é tão forte assim.
- Não venha pedir arrego depois que se sentir mal. – impliquei, empurrando de leve uma de suas pernas com meu quadril, pondo-me entre elas. estava com um dos vestidos da peça, o que tinha a enorme fenda do lado direito. Sua coxa à mostra era uma enorme tentação, isso sim.
- Ok, pai. – ela rolou os olhos, deixando a garrafa atrás de si novamente.
- Não quero ser seu pai, só não quero você dando PT. – expliquei – Até porque assim não dá pra aproveitar nada. – completei, voltando para o seu pescoço, ouvindo seu riso se perdendo no ar. – Fica aqui essa noite?
- Não sei... – respondeu ela, fazendo-me encará-la. – Meus pais não vão gostar, ainda mais depois daquele dia que eu dormi na sua casa. Minha mãe anda marcando cerrado comigo.
- Eu te deixo em casa cedinho, prometo. – beijei seus lábios rapidamente. – Seus pais nem vão saber.
- Será?
- Eu tô prometendo, não tô? – indaguei, vendo-a ponderar. – Fica. A gente volta do baile, descansa e depois te deixo em casa antes mesmo dos seus pais darem falta.
- Eles não têm nem como saber que horas terminou o baile, né? – assenti ao seu pensamento, com um meio-sorriso. – Ok, eu fico.
- Linda! – falei após abraçá-la fortemente, arrancando risos do fundo da sua garganta. Ouvimos Amelia nos chamar para irmos ao baile, então puxei pelas pernas, apoiando suas costas e a levando no colo até a sala, sob protestos. tentou fazer o mesmo com Emma, derrubando-a no sofá antes mesmo de conseguir erguê-la. A noite acabaria cedo, pelo visto.

A noite acabou cedo.
Duas horas depois de termos chegado à festa, começou a passar mal e precisamos voltar correndo para casa. Apesar de ser a noite que mais queria passar com suas amigas, ela abriu mão de continuar lá para ajudar os meus amigos. “Depois eu converso com elas”, disse antes de entrarmos no carro, dividindo o apoio de com Emma.
Quando chegamos à casa dos , paguei a corrida e saí de qualquer jeito, puxando meu amigo para fora e ouvindo-o falar coisas sem sentido, com a pior dicção possível. Emma correu logo para destrancar a porta, enquanto segurava o terno e a gravata vomitados – eu precisava ressaltar: ela era corajosa de fazer aquilo, porque eu não faria.
- ... – murmurou , daquele jeito bêbado. – Desculpa, cara, desculpa.
- Fica quieto, . – respondi, segurando firmemente o fôlego para aguentar a murrinha de vodka.
- Diz que me desculpa primeiro, , por favor. – cada vez que falava, parecia esticar ao dobro a extensão do som dos “s”. – Eu fodi a sua noite com e você vai embora.
- Eu não vou embora agora. – falei, olhando para , que abaixou o rosto significativamente.
- Em, me desculpa...
Ignorei o resto dos apelos de , tentando achar uma explicação para a reação de . Eu não tinha bebido tanto assim para imaginar que ela estava triste de repente, estava sóbrio o bastante para conseguir distinguir suas emoções e perceber que sua quietude era, sim, pelo assunto tocado.
Depois que entramos, fez um café extraforte, enquanto Emma ajudava a tomar banho e eu procurava roupas limpas e um balde para colocar ao lado da cama dos pais dele. E a casa ainda estava um lixo, os pais de voltariam naquele domingo à noite.
Com muito custo, Emma conseguiu fazer com que o namorado se vestisse e fosse para o quarto dos pais, onde o levou café. Tentei juntar o máximo de copos e garrafas que pude, conseguindo terminar somente meia-hora depois. Quando olhei no relógio, já passava das quatro. veio do corredor à sala, encontrando-me sentado no sofá, quase dormindo. Também exausta, ela já tinha lavado o rosto, provavelmente para se manter acordada por mais um tempo. Ela caminhou em passos lentos, pisando leve, e se sentou ao meu lado, pondo os pés para cima do estofado e se encolhendo sob meu braço em cima do encosto. Eu apenas a abracei, suspirando.
- Como ele tá? – perguntei, encarando a tv desligada.
- Dormiu, finalmente. – disse ela, baixo, sem me olhar também. – Emma foi tomar banho e já vai se deitar também.
Meu bom senso exigia de mim alguma atitude quanto à questão da minha ida, mas o cansaço era maior e me impedia de começar uma DR, ainda que necessária. Eu não conseguia imaginar o que se passava na cabeça de naquele momento, tampouco ela saberia o que eu andava pensando, se não falássemos. Precisava, inclusive, confessar que uma semana fora suficiente para eu desistir da ideia de me despedir da minha vida em Londres. Ela já vinha se encerrando muito antes, eu só a prolongava e transformava a partida em algo enfadonho. Mas como dizer isso e não a magoar por tê-la feito aguentar os dias a mais de adiamento sem necessidade?
- Acho que a gente precisa fazer o mesmo. – beijei o topo da sua cabeça, levantando-me em seguida e caminhando para o quarto de . A pior parte de estar sóbrio novamente era começar a pensar nas mil coisas que tinha jogado para escanteio durante algumas horas. Eu só queria estar com sem ter de lembrar seguidas vezes que em breve teria que montar um discurso e ir embora. Aquilo tudo estava sendo um tormento, e não só para mim.
Respirando fundo, para então me forçar a esquecer o assunto, empurrei a cama de para a parede, retirando meu terno e me deitando de boxers. adentrou o cômodo pouco tempo depois, pegando uma camisa do para usar de pijama, embora eu reclamasse e pedisse para ela que dormisse só com a lingerie.
- Vem deitar logo. – pedi mais uma vez, vendo-a analisar o quarto do minuciosamente. – Pare de me torturar.
- Desculpe, mas não é tudo só sobre você.
Franzi o cenho, apoiando-me no cotovelo ao reconhecer a minha frase em suas palavras.
- Você tá brava comigo? – perguntei, apesar de a resposta ser óbvia.
- Deveria? – finalmente ela se virou para mim e olhou bem nos meus olhos, seu semblante inexpressivo.
- Você é quem sabe.
- Mas não tô. – estalou o pescoço, vindo em direção à cama. – E não insista, senão ficarei.
- Não tá mais aqui quem falou. – me ajeitei, dando espaço a ela. se deitou e ficou de frente para mim, fitando meus olhos sem parecer querer desviar um segundo sequer. Eu vi a força das suas íris indo embora pouco a pouco, seus brilhando cada vez mais, e sabia o que estava por vir. Ela sabia o que eu queria dizer.
Mas eu ainda não queria dizer. Não iria. E evitando a cena que se seguiria, segurei seu rosto e a beijei com calma, como se dissesse que eu estava ali, e isso que importava. Ela retribuiu com mais intensidade, ávida. Pôs-se sobre mim pouco depois, e eu ergui minhas costas, apoiando-me na cabeceira da cama e segurando o quadril de firmemente, positivamente surpreso com sua atitude. De repente, ela parou. Com a testa encostada na minha, envolveu meu pescoço com as duas mãos, e eu a vi morder o lábio.
- Eu não quero que você vá. – ela sussurrou, a voz rouca anunciando o choro eminente, quase um soco na boca do meu estômago. – Mas eu não posso competir com Susan.
- Vocês não estão competindo. – corrigi, tentando me afastar para ver seu rosto, mas me abraçou mais forte, escondendo-se sobre meu ombro.
- Exatamente, eu não tenho nem como competir. – continuou, a respiração mais pausada. – Ela é sua mãe, é a única pessoa que você tem agora. Ela tá te esperando a quilômetros de distância e sabe que você vai aparecer lá no dia marcado.
- Mas eu tô aqui agora, não tô? – argumentei. Desde que anunciara que me mudaria, não tínhamos mais tocado no assunto. Eu não queria falar, ela não queria ouvir. Tínhamos entrado em um acordo silencioso quanto àquilo, como um segredo perigoso que é velado. E naquele momento estávamos ali, nos expondo por força da ocasião.
- Daqui a pouco não vai estar. – respondeu. – E eu não posso te impedir, não posso ser egoísta e te pedir pra ficar. Você precisa ir, vai ser melhor... – suspirou – pra você.
- Esquece isso – afaguei seus cabelos, confortando-a –, não te faz bem. Eu quero te ver bem.
- É difícil. – eu ouvi seu fio de voz, por mais baixo que fosse, porém assentia com a cabeça. Meu peito parecia pequeno ao perceber o esforço que ela fazia para não desmoronar. De todos, era ela quem sentiria mais com a minha ida. Eu tinha provocado aquilo. Não obstante o meu arrependimento, também me sentia grato. sentiria minha falta porque gostava de mim a ponto disso, ao tempo que eu, mesmo não admitindo em voz alta, estava ainda em Londres por ela.

’s P.O.V.

Eu mal vi o quão rápido passou o tempo até olhar o calendário do celular e ver que faltavam apenas dois dias para ir embora. Depois da noite do baile, ao perceber que tocar no assunto me doía, fechei-me em uma redoma onde não entravam assuntos como aquele. Eu não sabia lidar com perdas, sobretudo de pessoas na minha vida.
Fazendo as contas, eram dez semanas ao lado de . Dez semanas que mal passávamos um dia sem se ver – salvo o fim de semana em que ele desapareceu –, em que ouvir sua voz me confortava. Dez semanas em que eu me punha em sua vida tal qual ele na minha; era pouco tempo para os outros, mas soava como uma vida, muito embora eu quisesse além daquilo. Para nós, nas nossas circunstâncias, era o suficiente para que sua partida me mudasse. Uma ferida a ferro quente se criava em minha derme conforme a data fatídica se aproximava.
Parecia inconcebível a ideia de que em aproximadamente quarenta e oito horas eu me despediria de quem havia sido o primeiro em tudo. O primeiro a se aproximar de mim com ousadia e permanecer ao meu lado, a dividir o palco comigo como protagonista. O primeiro a ser presente na minha rotina com tamanha frequência, minha primeira vez. O primeiro por quem me apaixonei e primeiro que iria me magoar. A existência dele, para mim, estava muito além do ser; desde o começo daquelas dez semanas, ele estava marcado nas minhas memórias e faria parte de mim. se tornara uma característica intrínseca minha. Só então eu compreendi o que minha mãe dissera sobre as paixões do ensino médio serem para sempre. Eu não tinha várias, somente uma, e era justamente aquela que mais me faria falta.
A força dessa ideia chegava perto da sensação de vazio que eu sentia durante aquele mês de agosto.
Eu, no entanto, sabia o quanto a ida de mudaria sua vida também. Ele precisava daquela reviravolta mais que eu achava precisar dele. Susan era a última chance de uma vida feliz para , o que eu o oferecia era pouco, embora ele vivesse dizendo teria saudades. Teria, sim, não iria menosprezar meus sentimentos em função do ocorrido, mas tinha mais necessidade de um futuro que de um relacionamento. Por mais que me doesse, eu teria de abrir mão dele para sua felicidade. Teria de viver com a solidão.
Dezesseis anos não era uma idade avançada, uma vida longa, eu sabia. Havia tanto para aprender que não parecia justo eu aprender a suportar tal situação. Antes de , não existia ninguém, eu estava apenas sozinha. Tinha um modus operandi perfeito, e sua chegada me desestruturou de forma que, sem ele, era mais difícil eu me encontrar. Daqui para frente, eu teria que me virar com a sensação de não ter uma peça fundamental. Isso era a solidão, para mim.
O pior de tudo era reprimir tantos sentimentos ruins para não afetar . Não era apenas eu que estava perdendo-o, minha opinião sobre sua partida ficava implícita ou era exposta pelas palavras de outra pessoa, por mais que dela, em alguns casos específicos, fosse da boca para fora. De forma tola, eu preferia pensar que cada dia ao seu lado era mais um para a soma, em vez de menos um para a despedida. E agora me restavam somente mais dois dias para somar.
Quando o encontrei naquele 29 de agosto, seu olhar estava diferente. Ainda havia as pequenas pintas mais escuras nas íris e a intensidade das pupilas levemente dilatadas, puxando-me sempre para o seu interior. Não era tristeza, pois ele sabia camuflá-la, ainda que eu a reconhecesse na sua voz. Era algo diferente.
- Já ia te ligar. – ele se levantou da cadeira da praça de alimentação do shopping quando me aproximei.
- Eu atrasei três minutos, exagerado. – revirei os olhos, abraçando-o. Nossos abraços vinham durando cada vez mais tempo, com o passar das semanas. – Onde você quer comer?
- Que tal comida japonesa? – assenti à sua pergunta, me encaminhando até a temakeria, ao seu lado. Fizemos nossos pedidos sem conversarmos, meio robóticos. – Encontrei Livie hoje de manhã. – virei-me para ele, o cenho franzido. – Fui resolver os assuntos do carro e a vi.
- E aí? – encostei-me de lado no balcão, analisando suas expressões. Era difícil ler o que ele deixava passar.
- Ela tá na minha... Quero dizer, casa do Otto. – fez uma careta. – Eu só a vi entrando com o carrinho de Angie. Quase bati por causa disso.
- Hm.
Nossos pedidos ficaram prontos, então levamos à mesa, sentando-nos lado a lado. ainda parecia querer falar mais, mas não sabia como começar. Esperei pacientemente até que ele se pronunciasse, para que não esquecesse o assunto no meio de uma conversa.
- Eu me pergunto o que leva alguém a esconder um segredo tão sério como esse. – depois de alguns minutos, finalmente falou. – É uma criança, uma hora a paternidade dela seria questionada, por causa da mentira do pai que não existia.
- Livie era menor de idade, seu pai podia ser acusado pela justiça de pedofilia. – lembrei, sentindo-me incomodada com o assunto. – Os dois provavelmente já tinham planejado tudo, agora que era o momento mais favorável. Não da forma que aconteceu, mas ainda assim...
- Mas por que usar a Susan e eu de fachada? – ele continuou transtornado, sem me olhar diretamente. – Fazia anos que não éramos mais uma família, cada um vivia por si. Minha mãe ainda tentava segurar as pontas, mas em algum momento também desistiu, então a merda foi parar no ventilador.
- Ela foi quem mais saiu machucada dessa história, não é? – perguntei em retórica, já sabendo a resposta. – Depois de ter perdido um filho, acabou o casamento dessa forma, com o orgulho ferido.
- Eu não sei o que vai ser de agora em diante. – me encarou, causando o frio na minha espinha dorsal. – No fim das contas, ela já tá acertando a vida em Cardiff, tem uma parte da família e antigos contatos lá. Tudo que eu tenho, que é pouco, tá aqui.
- Achei que você não quisesse falar sobre isso. – desviei do seu olhar, que então eu compreendi. Não era tristeza, era despedida.
- Não adianta fugir, não foi você quem disse isso uma vez? – sorri fraco, assentindo. – E se eu não falar disso agora, não vou poder falar nunca.
- Entendo. – mordi o lábio, ouvindo o som da cadeira arrastando. tinha se aproximado de mim e já punha seu braço ao redor dos meus ombros, depositando no topo da minha cabeça um beijo demorado, carinhoso. – Eu vou sentir sua falta.
- Eu não vou deixar isso acontecer. – disse em tom de riso, me deixando um pouco confusa. – Mesmo longe, não vou me afastar. Até agora não fiz isso.
- São situações diferentes, . – observei. – Você não vai estar aqui.
- Mas eu tô disposto a tentar. – sua voz tomou seriedade, despertando minha atenção. Virei-me em sua direção, respirando fundo antes de falar o que rondava minha cabeça nos últimos dias.
- Está, mas, na primeira oportunidade, vai voltar atrás. Eu não tô preparada pra lidar com um relacionamento em que eu tenho que esperar meses pra te ver, presa a você e esperando tanto comprometimento seu quanto eu poderia ter. – surpreendentemente, não desafinei ou gaguejei. Vinha preparando aquele discurso há mais tempo que o necessário, mas arquivara pela falta de necessidade até então. E a voz de Emma soava ao fundo, repetindo a conversa do dia do parque. – Eu gosto de você, . Gosto muito. Muito mais que eu devia, na verdade. E por gostar tanto de você, não posso dar a chance de me decepcionar contigo, porque sei que, enquanto eu fico à sua disposição aqui, você vai aproveitar a liberdade e a distância pra ficar com outras.
Em cada palavra minha, via seus olhos perderem a esperança. E ele parecia realmente ofendido.
- Pensei que eu ainda tinha uma chance de reconquistar sua confiança.
- Aqui, do meu lado, me vendo todos os dias, tem. – expliquei, sorrindo amarelo. – Já disse, são situações diferentes. Nada me garante que vamos aguentar.
- Basta a gente querer. – continuava firme, olhando no fundo dos meus olhos. – Minha vontade depende da sua.
- Minha vontade tem o pé atrás com você.
Ele respirou fundo, notavelmente impaciente. Aproveitei seu silêncio para terminar de comer, visto que parava constantemente para lhe responder até então. Eu não conseguia fazê-lo entender que, para mim, nossa história acabaria nos próximos dois dias e eu lidaria com aquilo. Eu não queria sofrer além da conta, passar meses de martírio dentro de um relacionamento cujos esforços eu nem sabia se conseguiria ter. Era óbvio que eu não queria me afastar por completo, porém fingir estar perto seria pior. O histórico de , somado à minha provável extrema carência, me faria surtar antes mesmo do esperado. Eu me conhecia bem o bastante para saber que não daria certo antes mesmo de tentar. Durante todos os anos da minha vida eu não soube me prender a alguém, descobri a sensação somente com a presença dele, era somente seu estado físico que me guiava. Sua falta não seria boa para mim, então eu precisava não ter mais a sensação de que ainda estava ligada a ele. Seria pressão demais.
Da mesma forma que eu estava dando a liberdade a ele para ser feliz, queria o mesmo para mim. Era uma felicidade diferente, mas, ainda assim, felicidade.
- , procura me entender. – tornou a falar, mexendo os hachis sem usá-los de verdade.
- Eu já entendi – eu o interrompi –, você que não tá me entendendo.
- Não, me ouve. – sua voz soou mais alta, forçando-me a encará-lo. – Eu sei que você tem todos os motivos pra não confiar em mim, você já me disse e eu sabia que não seria fácil, apesar de achar já ter conseguido.
Cada palavra sua merecia mais atenção minha, provavelmente tinha uma última cartada para tentar me convencer. E sinceramente, bem no fundo, eu esperava que tivesse. Intimamente, eu queria que ele me desarmasse mais uma vez, mesmo sabendo que mais para frente eu poderia me arrepender amargamente por ceder.
- Mas você sabe tão bem quanto eu que não quero ser como Otto. – ele continuou, levando-me a franzir o cenho. – Eu não quero ser como ele em nada, independente do que já fiz no passado. Assim que eu for embora, tudo vai ficar pra trás, mas quero salvar as coisas boas. Você é uma delas. – uma de suas mãos se emaranhou nos cabelos, em sinal de nervosismo. – Porra, , eu gosto de você pra caralho! É complicado lidar com isso, sabia? Eu mal saí de um namoro, devia ficar sozinho por um tempo, mas fui me meter com você logo depois.
Ri com o desconserto dele. ia acabar me fazendo mudar de ideia, eu já sabia.
- Não ache que vai ser difícil só pra você, porque pra mim também vai. Mas de todas as vezes que eu te pedi pra acreditar em mim, nenhuma delas eu te decepcionei.
- Você precisa de cláusulas, aparentemente.
- Basicamente. – ele riu da minha ironia, balançando a cabeça para os lados. – Eu não proponho a ninguém aquilo que não posso cumprir. Eu vou aguentar toda a barra de ficar longe e vou ser honesto com você. Se você se cansar de mim, eu vou entender. É o seu direito. Mas vamos tentar, pelo menos. – sem eu perceber, tinha me virado de frente para ele, como se esperasse o momento certo do beijo. – Namora comigo.
Sem me expressar, analisei suas feições e finalmente entendi o que tinha visto em seus olhos quando o vi de primeiro momento: insegurança. estava com medo de me enfrentar, com medo da minha resposta. Sabendo disso, demorei mais que o previsto para reagir.
- Isso não é uma pergunta, né? – vendo seu rosto ainda apreensivo, sorri abertamente, dando-lhe um beijo como resposta em seguida. – E você sabe que a honestidade não devia ser um acordo, certo?
- Só estava reforçando a ideia. – ele deu de ombros, beijando a ponta do meu nariz. – Agora você não é mais só “minha , é “minha namorada, .
- Um título, que interessante! – brinquei, e ele assentiu. – Meu primeiro namorado, . É, não soa tão mau.
- Ai de você, se achasse ruim. – fechou a cara, fingindo estar bravo. – Entraria na nossa primeira greve agora mesmo.
- Você? – ri abertamente, chamando a atenção de algumas pessoas ao redor. – É só eu mexer contigo do jeitinho certo, e você volta atrás num instante.
Sem responder, ele mudou o semblante, divertido. Terminamos nosso jantar e compramos algumas besteiras para comermos de sobremesa, na edícula. Tínhamos chamado Emma e para passarem por lá mais tarde, para uma pequena despedida, então não podíamos demorar mais no shopping. O resto da noite seria nostálgico.

Eu não queria pensar em tristeza, dor e saudade. Usei todos os clichês de pensamento positivo e autoajuda para encarar bem a imagem de atravessando o portão de embarque, e acredito que consegui. Então era aquilo, sem mais drama. Em algumas horas ele estaria a milhares de quilômetros de distância, e nós sustentaríamos o egoísmo do outro pela internet e telefone. Porque sim, era egoísmo. Eu, por mais que quisesse me proteger, a todo momento quis que ele não desistisse de mim e insistisse em ficarmos juntos; ele nem sequer pensou em algo além dos seus sentimentos, já tinha na cabeça a ideia fixa de que namoraríamos. Eu não podia me sentir melhor por isso.
Não obstante o seu olhar de criança levada que quer continuar a brincar, em vez de ir para casa, estava feliz. No fim, independente de qual caminho fora andado, ele tinha conseguido tudo que mais queria. Sua vida estava guinando, e eu tinha parte da responsabilidade por isso. Se em algum momento pensei estar errando em estender a mão a ele, estava totalmente enganada. Eu quis ser sua válvula de escape, consegui e não me arrependi. Pelo contrário, me sentia grata. Ele não era nenhum herói que de repente precisou de redenção espiritual para ter seu final feliz; eu não era a donzela em perigo que o fazia mover o mundo para descobrir que só o amor salva. Ele era um garoto como qualquer um, com tantos defeitos como eu tinha, problemas reais além de sua compreensão e alcance, que precisava ver que a vida não é como uma peça de teatro. Não existiam cenas ensaiadas nem pausas Shakespearianas.
Com gosto meio amargo, meio doce, provou a realidade que insistia em manter longe. Nós provamos. E percebemos que ainda há felicidade que supere os obstáculos que se põem na nossa frente. A distância era só mais uma que barraríamos também, começando pelo exato segundo em que ele acenou para mim, do outro lado da parede de vidro que nos separava. Sorri fraco, correspondendo. Eu nunca o tinha visto tão lindo quanto ele estava ali.
- Deixar uma poça de baba no chão não vai mudar nada, . – disse , rindo da minha provável cara de idiota.
- Me deixa. – resmunguei, empurrando-o de leve e rindo. – Eu tô no meu direito.
- Logo vocês vão se ver de novo. – ele me ofereceu o braço para sairmos dali. Assenti, com aquela sensação de quem quer, mas não acredita no que lhe falaram.
- Obrigada por trazê-lo, . – desconversei, caminhando em direção à saída do aeroporto de Heatrow.
- Não foi nada. – ele sorriu por simpatia. – é um cara legal, além de ter ganhado meu respeito por tocar tão bem.
- Ele é incrível, né? – voltei ao estado baba-ovo, porém mais alegre. – Eu só o ouvi tocar lá na sua casa, ele tem vergonha, acredita? Um talento daqueles...
- Quando ele voltar, a gente marca um luau ou coisa do tipo.
“Quando ele voltar”. Respirei fundo ao repetir a frase em minha mente. A partir dali, eu tinha a missão de pensar sempre no futuro.
No nosso futuro.

Dez meses depois

- Por fim, agradeço em nome de cada um de nós por esse ano, o último ano, em que não só testamos nossos limites, como vencemos cada um deles. – sorri de alívio, lendo as últimas frases do discurso. Tremia de nervosismo até mais que antes das vezes que entrei naquele mesmo palco como atriz. Ser oradora era completamente diferente, eu representava sessenta alunos. – Parabéns àqueles que alcançaram suas metas à base do suor, àqueles que não desviaram seu foco um dia sequer, àqueles que começam em breve a traçar o rumo da sua vida adulta. Também àqueles mais relaxados ou indecisos, que precisam de um tempinho a mais para ver no que a vida dará. Parabéns a todos nós pela conquista; o mundo agora é nosso.
Ergui meus olhos do papel sobre o púlpito, encarando as dezenas de pais, familiares e amigos dos alunos aplaudindo. Retornei ao meu lugar, enquanto o sr. Prophet, paraninfo da série, fechava a solenidade e indicava que fôssemos todos ao ginásio, onde o baile sempre acontecia. Uma lágrima teimosa escapou no canto do meu olho, e eu não fiz questão de secá-la. Exatamente 365 dias antes, eu dividia o palco com . Agora ele não estava mais lá, não existia nada além da lembrança.
De certa forma, eu já sabia como acabaria. Já tinha previsto tudo tintim por tintim. Nós cansamos, desistimos, nos afastamos. Sem brigas e traições, entramos em um consenso de que não daria mais. Toda aquela história de que conseguiríamos lidar com a falta de contato físico foi só um pretexto para adiarmos o término – que, surpreendentemente, veio somente sete meses depois, em março. Sete longos e infernais meses se arrastaram como um animal moribundo, e os outros três e meio só tiveram a leve diferença de que eu me forçava a não pensar em nada que não fosse estudar cada dia mais para a admissão na King’s College. O que não foi de todo mal, levando em conta que eu tentava ser aprovada em Neurociência. O resultado positivo veio como um carinho no ego de tal forma que resolvi não me apegar a um assunto que me enfraquecia tanto. Eu estava cem por cento pronta para mudar minha vida na universidade e esquecer o ensino médio.
Até aquela noite. Até eu encontrar seus olhos no meio da plateia que se dispersava em direção à saída. andava contra a corrente, trajando terno e com um corte de cabelo que eu não reconheceria, se o visse de costas. Uma avalanche de sentimentos me soterrou, eu me vi louca para abraçá-lo da mesma forma que o abracei no aeroporto, agosto passado. Sorri abertamente, provocando a queda de mais lágrimas pelo meu rosto. Corri escadas abaixo, xingando o vestido longo e o salto alto por me atrapalharem. Quando finalmente o alcancei, senti tanto medo de ser somente uma miragem minha que fui obrigada a agarrá-lo pelo pescoço e beijá-lo sem perguntar nada. Eu precisava daquilo.
- Céus, ! – sibilei ao partir o beijo, apertando-o tão forte ao meu corpo que quase o imobilizei. – Você tá aqui!
- Eu tô. – ele respondeu apenas, rindo.
- O que você tá fazendo aqui? – afastei-me somente para ver seu rosto, mais maduro que antes. – Você cortou o cabelo! Você fica tão lindo de terno, eu já te disse isso?
Eu não conseguia parar de falar. Se antes eu já estava tremendo de nervosismo, naquele instante eu parecia água fervendo.
- Uma coisa de cada vez, por favor! – divertido, ele passou o polegar pelas minhas bochechas, secando-as. Minha maquiagem já devia ter ido para a oitava dimensão. – e Emma são meus melhores amigos, eu não podia deixar de vir. E tinha você também, claro.
- Oh, ... – tornei a beijá-lo, pouco ligando se estava fazendo cena. Ele estava ali, bastava para eu chutar o bom senso para longe.
Longos minutos se passaram até meus pais, meus amigos e os amigos de nos interromper. Radiante, eu mal acreditava nas minhas ações. A data e a surpresa me puseram em estado de êxtase, eu emanava felicidade, se é que era possível. Tantos meses reprimindo o desejo de que ele estivesse ao meu lado não conseguiriam ser contidos. Eu precisava matar as saudades de tal forma que não me cabia falar, somente mostrar. O desgaste da distância não se comparava à intensidade dos meus sentimentos que adormeceram com o tempo, mas despertaram com ardor.
- Gostou da surpresa, ? – me perguntou, e por muito pouco eu não voltei a chorar. Assenti, segurando a respiração num esforço sem tamanho para não borrar toda a maquiagem com as lágrimas. me abraçou mais uma vez, de lado, beijando o topo da minha cabeça.
- Tadinha da bichinha – disse , rindo de mim –, assim vocês matam a coitada do coração. Ela passou tempo demais longe da civilização, tem que ir devagar.
O abraço dele era tão acolhedor quanto antes. Quiçá até mais. Seu cheiro de almíscar não mudara, continuava sendo o ar que meus pulmões mais faziam questão de sorver. Eu amava cada pedaço de tão positivamente que não queria ter de dividir meu tempo com mais ninguém.
- Mãe – chamei, vendo-a nos observar mais adiante –, podem ir na nossa frente. Eu já encontro vocês.
- Boa noite, sr. e sra. . – cumprimentou meus pais, que sorriram em resposta. – Hey, Noel.
- Você ainda tá vivo, cara? – Noel riu. – Cuidado, a Felícia aí pode mudar isso rapidinho.
Revirei os olhos, esperando minha família se afastar. os acompanhou, uma vez que, além de e eu, só restara e Emma, e as duas continuavam sem aturar a outra.
- Por que vocês não me contaram? – questionei os três, mais consternada que rancorosa.
- A ideia foi do . – Emma ergueu as mãos, ausentando-se da culpa. – Eu só ajudei.
- Eu pedi pra ele não contar. – respondeu pelo amigo. – Tinha que vir pra resolver um assuntos e assinar uns papéis, aproveitei pra matar as saudades de vocês.
- Vai ficar quanto tempo? – mordi meu lábio, ansiosa pela resposta. Tínhamos nos afastado por tanto tempo que era insana a ideia de passar só duas semanas ou menos, que era o normal das minhas viagens, pelo menos.
- Bem mais que da última vez.
Enquanto respondeu, trocou um olhar cúmplice com que não consegui não reparar. Estava tão vidrada nele que notaria até mesmo quando sua respiração mudasse o ritmo.
- Pare de me esconder o que você tá escondendo. – adverti, olhando para seu amigo. – Fala logo.
- Eu passei pra Políticas Internacionais, . – ele me respondeu, calmo demais. – Na KCL.
- O quê?! – meu coração quase saltou para fora do peito, depois desceu aos meus pés e voltou a subir, parando na boca.
- Eu não vou mais embora. Eu vim pra ficar.



FIM


Spin-off de Natal: Theater: Three Little Words


Nota da autora: Meu Deus, a última nota. Faz anos que eu venho imaginando esse momento, nunca achei que ele realmente fosse chegar. Sério. Comecei essa fic aos 15 anos, em 22/02/2009, e finalizei aos 19, em 17/04/2013. Tanta coisa mudou nesse tempo, desde minha escrita ao meu jeito de ver o mundo. Nesses quatro anos, tive épocas muito boas e muito ruins, e de uma forma ou de outra, sempre recorria a essa história para desabafar. Apesar do mal jeito por ter sido minha primeira longfic (não entrarei em detalhes estéticos e estruturais do texto em si), tentei colocar o máximo de mim aqui. Tudo, absolutamente tudo, tem um significado além do que é proposto; eu vivenciei cada sentimento que escrevi e expus para vocês. Fico muito feliz de saber que, ainda hoje, tenho leitoras fiéis de lá dos quatro anos atrás, também fico encantada com o carinho das novas leitoras. Vocês fizeram meu patinho feio virar o cisne bonitão (rs) graças aos recados que deixaram pra mim ao longo desse tempo. Eu leio e guardo cada um deles de recordação. ♥
E a pergunta que não quer calar: vai ter parte dois? Não, não vai. Como já disse algumas vezes, Theater é uma história alongada, e não uma história longa. Criar uma sequência tiraria a essência dos personagens, do lugar de onde eles vieram. Eu não me perdoaria se tentasse uma continuação e ficasse uma merda, então vou poupar vocês. Hehe Mas isso não significa que vou parar de escrever, até porque tenho duas fics que entraram em hiato pra que eu finalizasse Theater. A partir de hoje, oficialmente, eu voltarei a escrever Eros & Psiché, talvez com alguns ajustes. É uma fic com vibe bem diferente de Theater, uma restrita mais “adulta”, fiquem à vontade pra ler e criticar. :)
Por último, porque já falei demais, obrigada a cada uma de vocês que passou por aqui pela paciência por terem lido 32 capítulos e meio, contando com essa nota gigante. Hauhauha Tô sempre à disposição de quem quiser conversar no twitter, email ou no grupo do facebook. Não precisam ter medo de mim, de verdade, eu sou a pessoa mais idiota que vocês vão conhecer na internet (minhas autoras estão de prova :B). Eu pareço séria pelo jeito que falo, mas é só fachada. Hihi
E assim eu me despeço de você, do meu Danny e da minha Aimée. Caso você queira ouvir as músicas que me inspiraram em grande parte da fic, basta clicar aqui pra baixar.
Vão pela sombra e não falem com estranhos!
xxo Abby





Outras Fanfics:
Shortfics/oneshots e Ficstapes:
I L.G.B.T.? - LGBTQ / Em andamento
[/independentes/i/ilgbt.html]
Theater: Three Little Words - Especial All Stars 2014 / Finalizada (Spin-Off de Theater)
[/independentes/t/theaterthreelittlewords.html]
05. I Want it All - Ficstape #001: Arctic Monkeys – AM / Finalizada
[/ficstape/05iwantitall.html]
02. Lola - Ficstape #011: McFly – Memory Lane / Finalizada
[/ficstape/02lola.html]
07. Jealous - Ficstape #020: Beyoncé – Self-Titled / Finalizada
[/ficstape/07jealous.html]
Estado Latente - McFly / Finalizada
[/independentes/e/estadolatente.html]
Mesmerized - Especial Dia do Sexo (The Wanted) / Finalizada
[/independentes/m/mesmerized.html]
Falling Away with You - Restritas - Originais / Finalizada (ATENÇÃO: Conteúdo sensível, suicídio.)
[/independentes/f/fallingawaywitu.htm]
Famous Last Words - LGBTQ / Finalizada (ATENÇÃO: Conteúdo sensível, suicídio. Releitura da fic acima.)
[/independentes/f/famouslastwords.htm]
Fear of Sleep - McFly / Finalizada
[/independentes/f/fearofsleep.htm]
Second Heartbeat - Restritas - Bandas (McFly) / Finalizada
[/independentes/s/secondheartbeat.htm]
Reminiscences - Originais / Finalizada
[/independentes/r/reminiscences.htm]
He's Got You High - Originais / Finalizada
[/independentes/h/hesgotyouhigh.htm]
She's Got You High - Originais / Finalizada
[/independentes/s/shesgotyouhigh.htm]
Farewell - Especial de Agosto 2013 / Finalizada
[/independentes/f/farewell.html]
Give Me a Reason - Especial FFAwards 2013 / Finalizada (Spin-Off de Give Me Novacaine)
[/independentes/g/givemeareason.html]

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