Última atualização: 03/07/2021

Capítulo 24

Uma semana e um dia para o baile

Nova mensagem recebida.
Perseguidor #2 diz:
Sem contar nossos segredinhos, . Aposto que não gostaria que seu namoradinho pagasse por causa da sua língua solta.
E não banque a espertinha.


A primeira ameaça que não era tão velada assim. Eu encarei a tela do celular, fechando-a e suspirando fundo. Não. Machucar não estava nos meus planos.

Eu estava na delegacia de novo. Meu pai, ao meu lado, olhava o professor de matemática com desconfiança. , sentado à minha frente, me encarava em silêncio. Quando eu o vi ali, na sala de espera da delegacia, sabia que algo de ruim ia acontecer. Sabia que eles tinham algo contra mim. Ou contra , talvez contra ambos. Eu estava nervosa e, pela expressão de , ele também. Meu pai abaixou o rosto, pondo a boca próxima à minha orelha:

— O que você acha que eles querem com ele? — Eu dei de ombros, respondendo não-verbalmente.

Meu pai se calou por um momento, voltando à sua posição inicial. Passados alguns minutos, ele voltou a se inclinar para sussurrar:

, você está dormindo com esse cara? Eu não vou te julgar, filha. — Me afastei, olhando-o nos olhos.

Os olhos de meu pai eram do mesmo tom que os meus, idênticos. Todas as minhas outras feições eram da minha mãe, a altura, o porte, a boca. Mas os meus olhos eram tal e qual os do meu pai, meio amendoados e no mesmo tom.

— Sim. — Disse meio cabisbaixa, sem ver sentido em negar o que ele descobriria em breve. O assunto já tinha sido atacado diversas vezes pelos policiais, eles sugeriram com alguma frequência que eu tinha dormido com .

Havia outro motivo que me deixava preocupada: a reação dos meus pais. Os dois preferiam fazer de conta que eu era perfeita, casta e um exemplo para adolescentes no mundo inteiro. O choque que eles levaram com toda essa história era suficientemente brusco para que eu os chocasse ainda mais com um relacionamento secreto.

Como se sentisse que falávamos dele, os olhos claros de me procuraram através das lentes dos seus óculos. A sombra da barba por fazer em seu queixo e o cabelo ligeiramente despenteado eram sinais de que ele andava preocupado. Talvez comigo, minha vaidade me faz pensar. Mas, também, tenho que admitir que ele não tem muitos outros problemas para se preocupar. Ou tem? Eu nunca sei. Sempre que conversamos, está mergulhado demais nos meus problemas para falar dos dele.

Aposto que ele está se perguntando se quer realmente ficar comigo. Se todo esse martírio vale a pena por alguém como eu. E então eu desviei o olhar, sem aguentar pensar que, talvez, eu não esteja exagerando. Que ele realmente pode correr de mim e de todos os problemas que eu represento a qualquer momento. Eu não ficaria com raiva se fosse esse o caso. Ele foi ameaçado hoje, ele só não sabe.

Uma garota adolescente, uma aluna… Isso, por si só, já complica o nosso relacionamento. É errado. Eu sei que é. Não por causa da idade, não é muito mais velho que eu e eu sou adulta, tenho dezoito anos. É errado porque precisamos nos esconder, ao menos até as aulas acabarem. É errado porque começou errado. E, ainda assim, é o meu relacionamento mais saudável. é o único homem que eu penso em amar depois das agressões de . é o homem que me deixa segura.

E é por isso que eu não teria raiva dele se ele resolvesse ir embora. Eu ficaria magoada. Eu provavelmente me culparia, mas eu não o odiaria por isso. No lugar dele, eu teria me abandonado. Eu sou o tipo de pessoa que abandona outras quando as coisas ficam difíceis. E é por isso que eu não o mereço. Pensar nisso é insuportável. Eu não consigo suportar aquele aperto no peito, a ansiedade consumindo minha sanidade aos poucos, o ribombar do meu coração martelando nos meus ouvidos. Eu olho o relógio, tentando me distrair. Eu só preciso aguentar um pouco mais. Só mais um pouco até a faculdade.

Ouvi meu nome ser chamado em alto e bom tom. Me levantei, ainda um pouco cabisbaixa, mas logo me aprumei. Minha mãe tem razão: as aparências contam mais do que gostamos de pensar. Quando entrei na sala de interrogação de cabeça erguida, pude ver Armário perder um pouco do prazer sádico que, eu sei, ele sente me torturando. Eu sorri, fui educada, me sentei. Meu pai fez o mesmo.

Se eles acham que eu sou uma psicopata, então teriam razão para isso. Eu tentaria não quebrar dessa vez. Eu seria cada centímetro da vadia fria que eles esperavam.

— Viu seu namorado lá fora? — Ele me pergunta em tom baixo, provocando.
— O sr. ? Bem que eu queria! — Soltei uma risadinha, provocando de volta.

Ele riu, se sentando de maneira confortável em sua cadeira, enquanto eu e meu pai mantínhamos a postura. Ele me olhou atentamente.

— Antes de começarmos, tem algo que queira me dizer, ?

Eu pensei um pouco, franzindo as sobrancelhas em uma falsa careta reflexiva.

— Na verdade, sim. Esse tom de azul da sua camisa não combina com a sua pele.

Armário riu com gosto, retificando a postura logo depois. Ele ainda sorria quando me encarou.

— Sabe, , eu gosto de você. De verdade.
— Essa “conversa” tem algo a acrescentar, detetive? — Meu pai elevou a voz, finalmente cansado das nossas provocações.
— Na verdade, sim. — Ele riu. — Recebemos uma dica anônima essa manhã, algo interessante.

Meu coração bateu mais rápido e eu torci as mãos por baixo da mesa, esperando que ele não visse esses sinais de estresse.

— Esse passarinho me disse que você sabia um pouco mais sobre a morte de do que queria revelar.
— Isso é absurdo. — Meu pai resmungou, mas eu continuei calada. Bom, eu sabia mesmo. Sabia da foto. Sabia do perseguidor. Talvez fosse a hora de dizer alguma coisa.

Eu tinha que resistir à vontade de perguntar o porquê de estar lá fora. Se eu tentasse ajudá-lo de novo, os policiais sacariam que éramos mais próximos do que eu dizia. E se eles descobrissem isso, teriam ainda mais fundamentos para nos acusar de conspiração para assassinar alguém ou seja lá o que for.

— Você sabe de qualquer coisa que possa nos ajudar, ?

Tentador. Eu posso entregar meu celular. Eles podem rastrear as mensagens. não terá que sofrer. E meu perseguidor? Saberia mesmo se eu entregasse meu celular?

Eu não queria testar. Não com a segurança de em jogo. Ele não merece. Ele realmente não merece. Eu pensei melhor, desviando os olhos do detetive. Abanei a cabeça negativamente. Para todos os efeitos, eu não sabia de nada até que divisasse um plano.

, ser presa agora seria bem ruim para a sua vida acadêmica, não é? — Ele cantarolou chamando a minha atenção.
— Presa por que, exatamente? — Meu pai tomou a dianteira.
“bate” em . — Ele fez aspas com as mãos. — se mete, resgata do vilão malvado. aparece morto na manhã seguinte. É um caso sólido, .
— É circunstancial na melhor das hipóteses e você sabe disso.

Uau. Meu pai está com aquela veia pulsando em sua testa. Aquela que só aparece quando ele está realmente irritado. Eu observo os dois sem dizer nada.

— Isso fica para o júri, .
— Martin, eu espero que você saiba o que está fazendo. — A voz de trovão do meu pai soou clara. — Porque se prender a minha filha agora, nem que seja por duas horas, eu vou fazer um inferno tão grande na sua vida que você vai se arrepender de um dia ter entrado para a polícia. Porque eu vou conseguir um habeas corpus e eu vou denunciar essa história toda para o jornal. — Armário estava cada vez mais vermelho. Uau. — E eles vão adorar passar sua vida pela peneira. Quantas vezes você tentou resolver um caso sem provas? Quantas vezes fabricou provas? Quantas vezes tentou intimidar uma adolescente? E aí nós vamos ver se você é o paladino da justiça que tenta ser.
— Está me ameaçando, ? — Armário praticamente rugiu, se levantando da cadeira ruidosamente.
— Não. Eu estou te dando uma visão bem clara do futuro. Você e eu sabemos que o seu passado não é tão limpo assim. Os jornais vão ter um dia cheio escrevendo matérias sobre um policial neurótico que tentou incriminar diversas pessoas inocentes por algo que claramente foi um suicídio, apenas pra cair nas graças de um das famílias mais ricas da cidade.
— Foi mesmo, ? — Ele tirou duas fotos de dentro de uma pasta parda. — E resolveu limpar as próprias digitais da arma depois de se matar?

Era isso. Meu pai pareceu pego de surpresa por um momento. Apenas pareceu. Eu sabia que ele faria isso. Eu sabia que ele tentaria tirar dos policiais a maior quantidade de informações possíveis para preparar a minha defesa. Ele era meu pai. Talvez eu tenha puxado dele essa tendência mentirosa e meio cínica. E aquele era o detalhe crucial que havia levado a investigação a concluir que tinha sido assassinado.

Eu tenho que ser sincera, estou surpresa que eles tenham escondido esse tipo de informação até agora. Eu sabia que alguma coisa estava errada para que eles considerassem homicídio. Agora, meu pai e eu sabemos o porquê. Nas duas fotos, a arma em ângulos diferentes. Na mão de , na primeira, e, na outra foto, em uma superfície clara, sem digitais.

— Se levantou dos mortos para limpar suas digitais eu não sei, mas acho que seu pai não gostaria que o legado da família fosse manchado por um suicídio.
— Vou te dar outra informação, , porque sei que é isso que está fazendo. Lá vai: os pais de não o acharam morto, nós recebemos uma ligação anônima nos informando do que aconteceu, naquela manhã. Um celular pré-pago, achado no lixo do lado de fora da casa dos , também sem digital.

Armário me olhou profundamente. Agora eu tenho uma ideia mais clara do que ele imagina quando pensa em mim: uma assassina fria e sem escrúpulos, talvez me divertindo demais vendo a polícia andando em círculos.

— Qualquer um poderia ter feito isso. — Meu pai retrucou, nem um pouco abalado pelas acusações. Já eu…
— Qualquer um mesmo. Até mesmo alguém que estava ameaçando por mensagens de texto.

Eu ergui o olhar, meu coração batendo tão forte que doía. Essa manhã, recebi a primeira ameaça mais “direta” do meu segundo perseguidor. E ouvindo tudo o que Armário disse, eu só me sinto ainda mais assustada, mais convicta de que quem me persegue, também matou . Eu fui a primeira a saber, naquela manhã, apesar de não ter raciocinado direito. Ele me disse que não precisava agradecer. Aquilo tinha sido por mim? Ou era por algum outro motivo e o perseguidor simplesmente tentou se esquivar da culpa? Eu não sei. E isso me assusta.

? O que tem a dizer? — Armário me provocou.
— Eu respondo por ela hoje.

Meu pai disse que eu estou apenas me afundando cada vez que abro a minha boca e não o deixo falar. Disse que eu estou cavando a minha cova e eles só estão esperando mais um deslize para que me enterrem de vez. E eu sei disso. Eu sei disso, mas não consigo ficar quieta.

— Eu não matei ninguém. — Respondi, olhando de meu pai para o detetive. Era seguro dizer isso.
— Seu namorado matou ele para você? — Ele insistiu. Sei que quer me tirar do sério.
e eu terminamos, ele não é mais o meu namorado.

Sonsa, mentirosa, mas meu pai segurou um risinho. Talvez eu esteja perdendo tempo em não fazer a faculdade de Direito. O detetive também sorriu, se sentando novamente. Ele acha que me pegou. E pode achar isso o quanto quiser. Eu só não quero que ele arraste para esse lamaçal. não merece isso.

— Quis dizer , o cara com quem você anda dormindo.
— Ando? — Meu tom de falsa surpresa era altamente irônico. — Deve ser um relacionamento secreto, nem eu mesma sei dele.
— Você sabia que seu professor tem ficha criminal, ?

Ele tirou uma foto de de outra pasta. Bem mais novo, a boca sangrando, sem óculos, camisa amassada. Eu encarei a foto por um longo tempo. Minha boca secou. Ele estava adorável mesmo em uma foto como aquelas.

— O que ele fez? Atirou um teorema de Pitágoras em alguém? — Debochei, me forçando a parar de olhar a foto.
— Agressão. — Ele sorriu. — Talvez seu namorado deva te falar…
— Martin, minha filha já disse que não tem nenhuma relação com , além de ser sua aluna. Talvez queira seguir em frente com outra linha de interrogatório.
— Ela disse, mas sua filha já mentiu antes, . — Ele continuou, sem se admoestar. — Mas vamos resolver isso hoje. Seu professor está em outra sala, sendo interrogado ao mesmo tempo que você. Vamos ver o quanto os seus depoimentos batem.

Meu pai me olhou de lado, procurando uma reação, mas eu continuei parada. Acho que era choque. Eu apenas não sabia como reagir. e eu nunca combinamos nada. Podemos negar o quanto quisermos, mas, ainda assim, eles podem descobrir. E o que faremos?

— Interrogado por que motivo? — Meu pai tomou a dianteira.
— Ele pode ser colocado na cena do crime por uma digital. E não tem álibi. O próprio admitiu que foi até a casa de para ter uma “conversa” com ele.

Disso eu já sabia. tinha me contado que tinha falado com , mas uma digital? Onde? Olhei para o meu pai, esperando que ele lesse minha mente de alguma forma. não podia ser preso.

— Qual é o seu álibi mesmo, ?

Ele estava ganhando tempo. Eu já vi isso em filmes policiais. Em alguma outra sala, talvez eles estejam pressionando a falar. Mas falar o que? Eu apostaria minha perna direita que não matou .

— Ela estava dormindo, na cama dela.
— Claro. — O detetive riu. — Na cama dela.
— Ou na da sua mãe. — Respondi de mau humor, soando absolutamente infantil.
— Sabe, meu parceiro apostou que você abriria o bico primeiro. — Martin disse, me analisando. — Colegial, um futuro brilhante pela frente, talvez doida para salvar o namorado. Eu não achei isso. Afinal, se você consegue fazer um homem matar por você, certamente consegue fazê-lo confessar.

Eu cuspi nele. Parou bem no meio de sua cara. Meu pai me olhou, horrorizado, enquanto a pele do detetive se tornava cada vez mais avermelhada. Ele limpou com a mão, se levantando de maneira barulhenta e saindo da sala batendo a porta. Aposto que precisaria de uns bons cinco minutos para se acalmar e decidir que não valia a pena me agredir.

não tem um álibi porque ele mora sozinho. — Eu expliquei para o meu pai, sussurrando diretamente em seu ouvido. — Ele foi até para pedir que se afastasse de mim porque foi quem me salvou de ser surrada por ele. Mas, papai, ele não o matou.
— Você acha que ele pode entregá-la?
— Não! — Fui rápida em negar. — Não mesmo. Eu juro, nós não fizemos nada. Mas tem uma coisa que eu não contei à polícia. É sobre o assassinato de .

Cara de Flamingo entrou na sala com leveza. Ele se encostou na porta, atrapalhando a nossa conversa e nos olhando com atenção.

— Martin pediu para trocar de lugar. Sou eu quem vai interrogar vocês agora.
— E para onde ele foi?
— Adivinhe. — Ele me respondeu com um sorrisinho.

. Ele ia descontar em o que eu fiz a ele. Eu tenho um advogado. Ele não pode me tocar, mas não tem. Não ainda. Eu me virei para o meu pai e ele suspirou.

— Papai, precisa achar um advogado para ele.
— Eu não vou te deixar sozinha.
— Papai… — Eu afastei um pouco o rosto para olhá-lo nos olhos, os mesmos que os meus. — Ele precisa de um advogado. Eu vou ficar bem sozinha por algum tempo.

Meu pai acabou sendo convencido, depois de tanto sussurrarmos. Ele não queria me deixar sozinha com o detetive e eu sabia porque. Eu estava encrencada. Muito encrencada. Assim que meu pai saiu, Cara de Flamingo se sentou à minha frente.

— Como pretende sair dessa? — Ele me perguntou, o rosto sério.
— Eu tenho um trunfo. Eu realmente sei de algo que vocês não sabem. Traga o seu parceiro aqui.

Ele ergueu as sobrancelhas, desacreditado. Mas Cara de Flamingo não confia que eu sou essa assassina fria e cruel. Ele acha que eu vou ser a primeira a desistir. Ele tem certeza disso.

— Aposto que você sabe de muita coisa que não sabemos. — Ele retrucou.
— Pode apostar o seu traseiro nisso.
— Martin já deve chegar, você vai falar com ele em breve.

Os minutos estavam passando e o silêncio era cada vez mais constrangedor. Cara de Flamingo não parava de me olhar e eu não queria ver sua cara feia. Eu só conseguia me perguntar onde meu pai tinha ido, o que estava acontecendo lá fora e por que ele não tinha voltado ainda. Nós tínhamos um trunfo, uma vantagem. Eu só precisava assegurar que tivesse um advogado. Ele só precisava ficar protegido e eu poderia contar, eu poderia finalmente me livrar desse fardo, das ameaças… Eu só queria me formar. Só queria me formar e ir para a faculdade, ser livre para namorar quem eu quisesse sem a ameaça de um assassino pairando sobre a minha cabeça.

Quando meu pai adentrou a sala de interrogatório de novo, ele estava acompanhado de Armário. Eu o olhei, confusa, e ele balançou a cabeça. Foi o detetive maciço que me disse:

— Seu professor acabou de confessar, .

Meu pai perguntou o que eu sabia, qual era o meu trunfo, mas eu neguei. Disse que não sabia de nada. Até saber que meu perseguidor não estava por trás disso, eu não podia arriscar. Eu tinha que falar com ele de alguma maneira.


Capítulo 25

Uma semana para o baile.

Não fazia o menor sentido. E não é como se eu pudesse falar com ele agora. Eu entrei na escola de cabeça baixa, pela primeira vez desde que me tornei popular, ouvindo murmúrios e fofocas ressoarem pelos corredores. Era sexta feira e nosso professor de matemática foi preso pelo assassinato de . O dia seria bastante cheio. As fofocas tinham um final de semana inteiro para crescerem e se tornarem verdadeiras lendas urbanas.

Na frente do meu armário, as gêmeas me esperavam ansiosas. Eu não queria vê-las. Elas, no entanto, mal podiam esperar para falar comigo. Eu sei como funciona. Elas vão fingir se preocupar e depois tentarão extrair as últimas fofocas de mim. É como as coisas são.

, meu Deus, você ficou sabendo do sr. ? — Jade começou, seu tom afetado me dando dor de cabeça.

Ela sabe que eu sei. Não tem como eu não saber.

— Oh, meu Deus! — A voz de Jen K. era ainda mais irritante. — Um assassino! Aqui, dando aulas de matemática!
— É, quem ia adivinhar. — Respondi sem animação, mas elas continuaram tagarelando.
— E pensar que você ficou sozinha com ele tantas vezes…
— É tão bom vê-la segura, .

Eu as encarei, a expressão tão séria quanto eu conseguia. Eu não aguentava isso. O homem que eu amo foi preso e eu nem posso falar com ele. Não, tudo o que eu tenho são duas gêmeas fofoqueiras tentando tirar de mim cada pedacinho de informação que elas conseguirem. Eu nem posso perguntar a ele o porquê. Ele realmente matou ? Ele só confessou para ganhar tempo? Ele confessou para me ajudar? Eu não posso tentar me comunicar com ele porque, para a polícia, eu neguei qualquer laço emocional com ele. era apenas o meu professor. Ele nem está aqui para me ajudar. Ele não está aqui para me impedir de fazer uma besteira. Ele, simplesmente, não está aqui.

Os olhares eram, uma vez mais, perturbadores. Eles me olhavam a todo momento. Todo mundo sabia que eu estava na mira da polícia. Todo mundo sabia que me acusavam de ter um caso com o professor. Todo mundo sabia. E eu quase posso ouvir as vozes me acusando, eu vi a censura no olhar deles, eu senti na minha pele, como um animal acuado, que algo está errado. Os pelos dos meus braços apontaram para cima, como se eu fosse um gato assustado.

. — se aproximou, seu olhar preocupado analisando a minha aparência.

Posso apostar que eu não pareço nem um pouco com a que ele conheceu. Eu mal tive a coragem de sair da cama, fui obrigada pelo meu pai, que me puxou do colchão e me jogou direto no chuveiro, sem cerimônia. Eu me vesti de forma automática, penteei os cabelos de forma automática. Minha aparência estava um lixo. Ele tocou meu ombro, sua mão grande e suada pousando na minha pele.

— Você está bem?
— Não.

Assustei e as gêmeas de uma só vez, mas não é como se eu me importasse agora. está preso. Eu não podia mais vê-lo. E a pessoa que realmente matou está solta… E eu não sabia quem tinha feito aquilo. Até onde sabia, qualquer um deles poderia tê-lo matado. Talvez até mesmo . Eu podia estar errada sobre ele. Podia, claro.

— A gente pode ajudar? — Jen K. se ofereceu, dando um passo para frente. E eu dei um passo para trás.
— Não.
— Vem comigo. — A mão de tentou me tocar novamente, mas eu me afastei dele.
— Não quero.

Eu dei meia volta, desistindo de pegar meus livros no armário. Precisei me esconder no banheiro até que minha respiração normalizasse e minhas mãos parassem de tremer. O ataque súbito de pânico era algo novo. Tive crises de ansiedade antes, quando ainda me perseguia, que eu tentava controlar da melhor forma possível, sozinha. Agora, é como se meus pulmões fossem incapazes de funcionar, como se as paredes se fechassem sobre mim, como se meu coração fosse explodir de tão forte que batia. As crises estão piores, quase incontroláveis.

Eu tive sorte de alcançar um reservado vazio. Me joguei de joelhos no chão, abrindo a tampa da privada com dedos trêmulos, vomitando assim que encarei a porcelana branca do sanitário. Meu café da manhã tinha ido embora de uma só vez. Voltei a respirar fundo, limpando a boca e me sentando no chão do banheiro, encostando a cabeça na porta de compensado. Fechei os olhos, tentando me acalmar. Tentei me imaginar com , sozinha, longe dessa cidade, longe dessa escola, mas fui interrompida.

A porta se abriu com força, passos pesados e apressados, um reservado foi aberto e fechado com a mesma urgência. E, então, o choro. Era baixo e abafado, como alguém tentando não chorar ou não atrair atenção.

Vai soar estranho, sei que vai, mas a dor de outra pessoa me acalmou. Eu a ouvi chorar, soluçar, ofegar. Prestei atenção na dor dela, não na minha. Eu não sabia porque, mas ela sofria. Saber que outra pessoa se sente perdida, tão desesperada a ponto de chorar dentro da escola, me trouxe um pouco de consolo. Eu não sou a única fodida da John Locke.

O choro dela cessou gradualmente. A porta do reservado se abriu e eu a ouvi andando dentro do banheiro. A água jorrou da torneira aberta. Eu me levantei. Abri a porta do reservado com cuidado. E Maggie me encarou do espelho, seus olhos pequenos se arregalando com o susto, o rosto inchado e avermelhado pelo choro, o corpo paralisado pelo pavor que ela sentia de nós. De todas nós.

Eu não era nem um pouco diferente do meu perseguidor. Eu percebi quando a vi se encolher, sua respiração se agitar, os olhos procurando uma rota de fuga do banheiro, para que não ficasse sozinha comigo. , Jade, Jen e eu… Nós fizemos um inferno na vida de Maggie.

— Eu sinto muito, Maggie.

Aquilo a fez olhar ao redor, como se tivesse entrado em uma armadilha. Mas eu fui sincera com ela, eu sentia muito. Eu não entendia antes. Agora, entendo um pouco mais. A dor. O medo. A paranoia. Tudo isso entrou para o meu cotidiano quando cismou comigo e continua até hoje, com meu segundo perseguidor no meu encalço. A caça virou o caçador. Aposto que, se soubesse de tudo, Maggie riria maldosamente da ironia.

— Eu sinto muito, de verdade.

Não pisquei. Não queria derramar as lágrimas que se acumularam nos meus olhos. Porque, ouvindo o choro dela, eu finalmente pude ver todo o dano que fizemos a ela. A uma garota da nossa idade. E tudo isso porque não gostávamos da sua aparência. Tudo isso porque ela é gorda.

No espelho, eu me vi refletida como sempre. Bonita, mesmo sem maquiagem. Alta, magra, bronzeada. O corpo de uma nadadora, o corpo que a sociedade nos obriga a ter, o corpo que é considerado o ideal. E Maggie: baixinha, gorda, sempre com roupas largas e sem graça demais. E eu achava que isso me dava o direito de me sentir melhor que ela.

Maggie não disse nada, acho que chocada demais para processar o que eu disse. Quando ela viu que eu não faria nada, se encaminhou para a porta do banheiro, mas parou com a mão na maçaneta.

— Você… — Pouquíssimas vezes ouvi a voz dela. Ela nunca nos encarou, nunca se defendeu. — Por quê?

Eu a encarei em silêncio. Queria confessar tudo, toda a minha dor, alguém tinha que me entender. Mas não podia fazer isso. Não podia deixar de lado todo o meu orgulho e me confessar. Principalmente para alguém que eu torturei por tanto tempo.

— Eu sou uma cadela ridícula. Por isso.

Ela estava hesitando. Dividida entre a curiosidade e o instinto de sobrevivência? Todo mundo sabe o que dizem sobre a curiosidade: ela matou o gato. Eu desviei os olhos dela.

— Você já conseguiu o que queria e agora diz que sente muito?

A dor na voz dela era palpável. Era ainda mais real uma vez que eu a ouvi chorar. Eu ouvi uma garota chorar e fiquei em paz. Que porra de psicopata eu sou?

— Maggie…
— Todo mundo sabe sobre a , sabe? — Ela continuou, me ignorando. Eu a encarei pelo espelho, como se ela fosse Medusa. Como se toda a dor que eu infligi nela fosse se virar contra mim se a olhasse diretamente, como se fosse me transformar em pedra. — Loira, peituda, projeto de Regina George. Ela tem “babaca” escrito na testa. Você não tem. Todo mundo te acha legal. — Ela fungou. Ao contrário de mim, ela não se importa que uma estranha a veja chorar.

Eu assisti, em silêncio, uma lágrima grossa rolar por sua bochecha. O que eu poderia responder? Eu não disse nada. Eu não tinha nada a dizer. Ela estava certa, Maggie estava certa sobre mim. Eu sempre cultivei a fama de boa moça, mesmo que, por baixo dos suéteres e dos vestidos na altura dos joelhos, eu fosse uma vagabunda tão depravada quanto . Mesmo que eu fosse sua cúmplice, mesmo que eu fosse tão ruim quanto ela. Passei anos dizendo a mim mesma que não era assim, que eu não era tão ruim, que eu não era uma pessoa má. Mas me omitir, quando eu poderia tê-la parado, é concordar com tudo o que ela fez. Eu sou, sim, tão ruim quanto , fui sempre tão preconceituosa quanto ela, sempre tão ruim e cruel quanto ela.

— Todo mundo dizia que você não era tão ruim. — Ela fungou mais alto. — Mas você é ainda pior. Ela é uma psicopata, mas você sabe o que é errado, você não falava comigo quando estava sozinha, eu notei. E, mesmo assim, você a ajuda quando está com ela! Todas elas! Todas as suas amiguinhas magras e cruéis! Vocês são horríveis. Eu sou gorda, eu sei, e pra vocês isso é um problema. Vocês me acham asquerosa. Mas, pra mim, vocês são piores que qualquer coisa.

As lágrimas corriam pelo rosto dela cada vez mais, a voz estava cada vez mais embargada. Ela tinha atingido o ápice. Nunca antes Maggie tinha tentado se defender, ela ouvia em silêncio e corria para longe quando tinha chance. Dessa vez, talvez porque eu estava sozinha, ela falou e falou. Despejou em mim toda a sua dor e eu aceitei, porque eu a causei e eu devia colher o que plantei.

— E eu espero que você se lembre disso. — Ela limpou o rosto com as costas das mãos e olhou o chão. — Eu não tenho mais que aguentar vocês. Eu não vou mais aguentar vocês.

Maggie me deixou sozinha no banheiro. As palavras dela pareciam cortar a minha pele. O meu reflexo no espelho parecia me julgar. E eu vomitei de novo, antes de ouvir o sinal tocar e sair dali arrastando os pés. Qualquer ínfimo fragmento de vontade de viver me deixava a cada respiração.

Nova mensagem recebida.
Perseguidor #2 diz:
Fazendo novos amigos? Aposto que seu namorado está, na cadeia.

Meu celular vibrou enquanto eu saía da aula de química, no quarto período. No corredor abarrotado de estudantes, todos seguravam seus celulares. Qualquer um deles poderia me mandar aquelas mensagens, qualquer um deles poderia ser meu perseguidor. Quantos deles eu sabotei? Quantos deles sofreram bullying nas nossas mãos? Uma nova ideia se formou em minha mente. Eu não sabia porque estava sendo perseguida, mas sabia de uma coisa: eu era uma bully, era um bully. Era por isso que estavam nos cercando? e as gêmeas também poderiam aparecer mortas a qualquer momento? Eu me encostei contra uma parede. Meus dedos digitaram furiosamente, ânimo renovado pela súbita epifania.

Perseguidor #2 diz:
O que eu quero? Ser seu amigo, é claro. Você não esqueceu o que fiz por você, eu espero?

diz:
E o professor teve que pagar o pato? Você é um covarde.

Perseguidor #2 diz:
Tão formal falando sobre o seu namorado! É algum tipo de fantasia?

diz:
Eu não vou perguntar de novo. O QUE VOCÊ QUER?

Eu esperei. Ao meu redor, a enxurrada de adolescentes passava por mim, alheios ao meu pavor, ao meu medo. Eu estava tão cansada de tudo isso, de todo o joguinho de gato e rato. E se Maggie serviu para alguma coisa além de me inundar de merecida culpa, foi para me ensinar que eu não devia abaixar a cabeça e deixar aquela pessoa me controlar. O que ele poderia fazer? Ameaçou , mas agora estava preso. Ameaçaria quem? Meus pais? Key? Minhas “amigas”?

Perseguidor #2 diz:
Eu quero você. Quer ser a minha namorada?

Anexado à mensagem, um coração ensanguentado. Uma foto, provavelmente tirada da internet, mas, ainda assim, meu corpo inteiro gelou. Surreal. Era surreal demais para mim. A minha vida sempre foi normal! Por que isso estava acontecendo?

Perseguidor #2 diz:
Tic tac, . Tic tac. Meia noite no baile de formatura, Cinderela. Estarei te esperando.

Com as mãos tremendo, eu guardei o celular. Errei no cálculo, logo eu que era tão boa em matemática. Ele não queria me ajudar. Ele queria a minha vida.


Capítulo 26

Cinco dias para o baile.

Atenção, o capítulo a seguir descreve cenas que podem perturbar algumas leitoras. Se suicídio, gordofobia e/ou bullying for um de seus gatilhos, pule as partes demarcadas.


No final de semana, meu pai me disse que um ex-colega de faculdade tinha aceitado o caso de de graça. Pro bono, ele disse. Segundo meu pai, ele só fazia aquilo pela publicidade, para ganhar notoriedade, mas que era inteligente. E um bom advogado era tudo que precisava.

Nós conversamos, eu e ele. O advogado me perguntou se haviam provas sólidas do nosso relacionamento e eu neguei. Ele me perguntou sobre tudo, sobre , se eu testemunharia a favor de , se ele podia confiar em mim para tentar tirá-lo da cadeia. E eu disse sim. Ele me explicou que, eventualmente, poderiam tentar me colocar contra , pela minha liberdade, que eles podiam tentar me acusar como cúmplice ou partícipe do crime. Ele perguntou se eu aguentaria passar por isso e eu disse sim, mesmo sabendo que não. Eu estava a um passo de surtar, algo grande, como Britney em 2007. E, ainda assim, eu fingia que não. Que tudo estava bem.

Na escola, as pessoas continuavam encarando e me tratando diferente. Todos, exceto por Keyshia. Ela continuava pegando carona comigo, uma pequena ilha de sanidade em um mar de loucura, meu porto seguro.

E mesmo durante esse drama suculento, professor matando aluno, máscaras caindo, Constance voltando para o México, o baile ainda era o evento mais falado da escola. As pessoas ainda queriam ir ao baile. Uma homenagem a seria preparada, os rumores da culpa de permeavam as conversas, mas ainda se perguntavam o que as candidatas a rainha vestiriam para o baile e quem levaria como seu par, porque esse cara seria o sujeito mais sortudo do colégio e, possivelmente, o rei ao lado dela.

As gêmeas tinham parado de tentar pescar novas informações comigo. Elas já tinham notado que eu não gostava de falar sobre aquele assunto e qualquer rumor sobre o meu caso com um professor, que matou por ciúmes um rival, jamais chegavam aos meus ouvidos porque elas saíram em minha defesa. Key também, mas as gêmeas eram consideravelmente mais populares, elas tinham ainda mais autoridade para proibir isso ou aquilo. E, ainda assim, os olhares me perfuravam a cada passo dentro do colégio. Minhas chances de ser rainha do baile de formatura estavam arruinadas, mas eu não me preocupava com isso há muito tempo. Haviam coisas mais urgentes que tomavam minha atenção.

Enquanto estávamos selecionando nossos livros para as aulas, Jen e Jade tagarelando animadamente sobre seus pares para o baile, saçaricou até onde estávamos, seus olhos claros brilhando com algo além da usual malícia.

— Jen, Jade! O que acharam?

(TW: Gordofobia) Ela nos mostrou um cartaz em papel cor-de-rosa, onde havia impresso a cara de Maggie colada em cima do corpo de uma atriz pornô especialmente gorda, vestida de porquinha, um consolo enorme enfiado entre suas pernas. A imagem era crua e, embaixo da foto, dizia: Vote em mim para Rainha do Baile e eu deixo você me comer, oinc oinc. sorria, animada. As gêmeas arregalaram os olhos e logo se puseram a gargalhar. Eu simplesmente tomei o cartaz da mão dela, meu coração acelerado e, na minha mente, as memórias ainda frescas do choro de Maggie.

Mas era engraçado, não era? Não. Não era engraçado. Não era legal. Não era direito. Garotas magras rindo de uma garota gorda. Ridicularizando-a? É natural para garotas como . É sempre assim. Na TV, no cinema, na internet. Ela quer ser uma garota má, que ser cool e não está nem aí. E por quê? Por que tanta crueldade? Por causa de quilos a mais? Porque alguém pesava mais que ela ou eu? Burrice. Estupidez. Preconceito.

Eu não sou burra. Sei o que é gordofobia. Sei o conceito. Não entendo, mas sei. Sempre fui magra, nunca passei nada parecido, mas eu sempre achei que era culpa de mulheres como Maggie, elas não se cuidavam como eu. Não contavam calorias como eu. Mas ninguém deveria viver sendo assim, não é? Ninguém deveria viver pelas expectativas de outra pessoa, pelos padrões de outra pessoa. Mulheres gordas não são desleixadas e não são inferiores a nós. Elas merecem respeito, como qualquer outra pessoa. Era tão difícil de entender? Para mim, eu confesso, foi. Sempre magra, sempre no padrão de beleza, sempre tão controlada, sempre tão preconceituosa. Parabéns para mim. Eu me sinto tão horrível agora. Maggie estava certa. Nós éramos magras, tudo o que sempre foi pregado como belo e desejável, mas horríveis por dentro. (TW)

— Qual é a porra do seu problema?
— O que é? Estou ajudando com a campanha dela porque ela não se dispôs a pedir um voto sequer!

Ela tentou me tomar o cartaz, mas eu simplesmente o rasguei no meio e de novo e de novo, até que joguei os restos em cima dela, um gesto exagerado que me impediu de fazê-la engolir as tiras de papel. me lançou um olhar hostil.

— Desculpa, , mas não somos mais amigas, você não pode mais ser o meu grilo falante.
— Se você pendurar uma dessas merdas em algum lugar, eu vou te dedurar, você entendeu?
— Ops! — caiu na gargalhada. — Tarde demais!

Uma líder de torcida, uma caloura, veio correndo com um dos cartazes. Um nerd do clube de música veio com um na mão também. E, em breve, os corredores de nossa escola eram inundados com cartazes iguais ao que eu tinha rasgado.

As risadas eram coletivas. Quando eu disse que Maggie era a piada da escola, eu não estava brincando. Adolescentes são cruéis. A lei do “antes ele do que eu” imperava aqui. Perdedores rindo dela para se enturmar com os populares, que tiravam sarro dela. Não havia empatia. Não havia humanidade. Não havia misericórdia para garotas como Maggie.

Empurrei , com força, fazendo-a se desequilibrar e quase cair de seus saltos plataforma. Ela me olhou com raiva, pronta para me enfrentar, quando o corredor silenciou. O pandemônio que imperava antes virou, subitamente, uma zona livre de qualquer barulho. Maggie tinha chegado.

Confusa. Desconfiada. Ela olhava ao redor, tentando localizar o motivo daquele silêncio anormal. Uma corça tentando beber água no lago. O caçador, esperando. Ela foi até o seu armário, o abriu delicadamente, sentindo todos os olhos nela. A corça, na mira. Folhetos como o cartaz caíram, aos montes, do seu armário. E, então, o tiro. não conseguiu suprimir uma risada quando Maggie se abaixou e viu do que se tratava todos aqueles papéis cor-de-rosa. Suas bochechas ficaram rubras. Os olhos cheios de lágrimas. Humilhada.

— Vem aqui. — Eu consegui chegar até ela quando o ruído ensurdecedor das risadas de todos aqueles alunos ecoou a maldade de . A puxei pelo braço rechonchudo, arrastando-a para longe dali.
— Você…
— Cale a boca e me siga. — Eu estava com raiva. Como podia ser tão sórdida? Como ela podia ser tão sádica? — Vamos contar ao diretor Jeffries.
— Não. — Ela se soltou de mim, o corredor se esvaziando aos poucos quando o sinal tocou a primeira vez. — Você fez isso com elas? Isso é algum truque?
— Não ajudei em nada e não é truque nenhum…

Ela me interrompeu.

— O que vocês vão fazer agora? Jogar sangue de porco em cima de mim? — A voz dela era alta e estridente, ondulante por causa da vontade de chorar.
— Não, Maggie, eu não fiz isso. — Eu a olhei nos olhos. — Você tem que acreditar em mim.
— Não? — Ela cuspiu as palavras. — Puta mentirosa! Vaca! Sua… s-sua…

O choro venceu. Ela engasgou com as lágrimas, me empurrando para longe quando tentei ajudá-la. O papel foi jogado longe e eu permaneci ao lado dela. Duas párias. A presa e o antigo predador. Odiadas por todos em níveis diferentes. O terror dela tão similar ao meu, ao mesmo tempo tão diferente. Tentei segurar sua mão, mas ela me rejeitou novamente.

— Você tem que ir ao diretor.
— Por quê? — Ela me perguntou, fungando. — Ele não faz nada com vocês. Vocês são riquinhas, seus pais são importantes. Eu não sou ninguém.
tem que parar com isso. Eu vou com você.
— Você nunca tentou pará-la antes.
— Eu estou tentando. Agora. — Olhei-a nos olhos. Eu precisava de alguém para odiar.

Era isso, não era? Eu só precisava de alguém para odiar, para descontar a minha raiva, para fingir que não estou apenas furiosa com a injustiça que cometeram contra , comigo mesma por ficar quieta, com todo mundo por comprar essa história absurda. Tenho que fingir que não sou uma egoísta, furiosa apenas com o que acontece comigo. Eu percebi, no mesmo minuto, que estava fazendo uma coisa boa pelas razões erradas. E Maggie podia não saber do meu conflito interno, mas ela pareceu ter a mesma sensação.

— Vai se foder. — Ela disse, limpando o muco do nariz. — Se ela ficar com raiva de mim… Se ela me odiar ainda mais, vai ser pior.
— Pior do que isso? Olha o que ela fez com você! — Os alunos, ao nosso redor, passeavam com seus folhetos, publicando-os na internet, mandando imagens para alunos de outras escolas.
— Eu não preciso da sua ajuda.
— Maggie, por favor. — Eu estava quase chorando, quase implorando. Eu não queria ver outra pessoa sofrendo. Eu não queria ver mais uma pessoa sentindo dor. Eu ouvi os choros dela. Eu ouvi a agonia dela. Eu não podia deixar Maggie ir embora sem ajudá-la.

Maggie ainda chorava quando concordou, sem forças. Acho que ela não tinha forças para resistir a uma mão estendida. O sinal soou novamente, uma reprimenda aos alunos atrasados que ainda fofocavam no corredor. Muita gente me olhou feio, como se eu tivesse feito algo horrível tentando proteger uma garota da minha idade. Como se eu fosse a culpada.

Eu a levei até a sala do diretor. Eu entrei com ela. Se eu precisasse receber a punição necessária por ter ajudado com as coisas horríveis que elas fizeram com a Maggie, eu faria isso. Eu não me importava mais com nada. Eu não conseguia mais me omitir. Sempre achei aquilo horrível e a dor dela me atingiu de uma forma avassaladora. A memória ainda era tão vívida.

— Meninas, o diretor vai recebê-las agora.

Não conseguimos sorrir para a secretária. Maggie segurava o choro e eu sentia que algo ruim estava para acontecer. De novo.

— Diretor Jeffries. — Ele me encarou, me estudando calmamente, e só então se chocou ao perceber que Maggie estava ao meu lado.

Eu não disse nada, apenas entreguei um dos folhetos para ele. Os olhos dele se arregalaram, olhando do folheto para mim e então para Maggie. Passando a mão pelo cabelo bem penteado (e bem grudado de gel), ele pousou o folheto na mesa.

— Quem fez isso?

Maggie hesitou. Ela me olhou de esguelha. Um bote, é o que ela esperava. Que eu, de alguma forma, ainda fosse a garota horrível que eu era no começo do ano. Que eu ainda fosse aquela vaca preconceituosa de antes.

. — O diretor me olhou.
— É verdade. — Confirmei. — Eu vi trazer isso nas mãos. Foi ela quem espalhou cópias disso pela escola inteira.
— Entendo.

Nem mesmo ele podia ignorar isso. Bullying é uma coisa, mas o que Maggie está sofrendo, desde sempre, é um ataque intenso, tóxico, cansativo, emocionalmente desgastante. O que quer? Que Maggie cometa uma loucura? Que ela pegue uma arma e atire em todas nós? Isso já beira um comportamento criminoso. Beira a psicopatia. precisa ser parada.

— Srta. Crandall, o que quer que eu faça? Deseja conversar com sobre isso? Garanto que irei recolher os cartazes e vou conversar com a orientadora e com a psicóloga, acho que uma palestra pode…
— Uma palestra? — Eu fiquei frustrada. — tem que ser, no mínimo, suspensa!
— Srta. , eu não consigo ver o motivo de estar aqui. — Ele me interpelou, menos calmo que antes.
— Obviamente porque ela está chocada demais para falar.
— Se eu bem me lembro, você era amiga de .

Eu olhei para Maggie, eu sabia que também era minha culpa. Eu sabia muito bem que também fui abusiva com ela, mas eu estou tentando mudar. Será que isso não conta?

— Não mais. — Consegui dizer, mesmo com aquele bolo na minha garganta. Culpa.
— Eu não sei o que eu quero. — Maggie disse, me olhando de lado. — está certa, mas o senhor também, diretor. Eu quero a palestra e eu quero que ela…

As lágrimas a impediram de continuar e eu estiquei a mão para ela. Maggie não me repudiou dessa vez. Ela aceitou a minha mão. Não era justo. Não era justo que ela sofresse tanto.

— Maggie quer que seja suspensa. Expulsa, talvez.
— Srta. , você não fala por ela.
— Não? Diretor, um dos seus professores foi acusado do homicídio de um aluno. — Toda a cor se esvaiu do rosto dele. Ele se virou para mim, lívido de raiva. É, eu também não estou muito feliz com isso, mas usar isso chamaria a atenção dele. — E agora uma de suas alunas está sofrendo assédio moral. Isso aqui é material pra um processo, se a família da Maggie quiser perseguir isso. E eu aposto que devem conseguir processar a escola também, se eles quiserem. Maggie está pedindo ajuda e você está de braços cruzados. Se quiser me punir também, ok. Mas não tente varrer isso para baixo do tapete como faz desde sempre!

Ela me olhou com um misto de gratidão e amargura. Palestras uma ova! sabe o que é certo e o que é errado. sabe que o que ela faz é errado, que é deplorável, horrível e tóxico. Uma palestra não vai ajudar.

— Srta. Crandall… — Ele voltou a me ignorar. — Eu vou chamar a sra. Wood e nós três vamos conversar, tudo bem? — Ela anuiu. — E você, srta. , volte para a sua aula.
— Mas eu…
— Para a aula, srta. .

Maggie me agradeceu e o diretor me enxotou da sala assim que conseguiu. Eu estava mais calma. Ela teria ajuda. E eu esperava que tivesse que pagar por suas ações. Essa escola já aturou o suficiente dela.

Eu não vi Maggie nas aulas seguintes. Talvez tenha voltado para casa depois da conversa com a psicóloga e o diretor. Eu não a culparia, quem poderia? Na hora do intervalo, avistei no refeitório, a mesa central apinhada de líderes de torcida e sua corte.

Eu poderia acabar com ela ali mesmo. Dar cabo àquela raiva que me consumia, mas o que aconteceria? Como isso ajudaria Maggie? Como isso ajudaria ? Parei de marchar na direção da mesa dela. Eu faria melhor se insistisse no problema com o ausente Diretor Jeffries. Nem ele poderia ignorar uma atitude tão perversa de uma de suas alunas. E, que se foda, se ele tentasse abafar aquilo, eu exporia toda a história. Milhares de likes e compartilhamentos no Twitter. Ele teria um gostinho do que eu poderia fazer. Olhei ao redor, esperando ver Maggie em algum lugar. Queria saber o que eles disseram, queria saber se eles tomariam providências.

As janelas altas do refeitório eram pra mostrar o campus bem cuidado, a grama recém-cortada e as frondosas macieiras perto do campo de futebol. As janelas eram um lembrete da beleza do campus. E as janelas mostraram o momento mais feio e deplorável de um ser humano.

(TW: suicídio e gordofobia) No começo, um baque. A corça, abatida, caindo e caindo. Ninguém reagiu, poucas pessoas acompanharam a cena. Quando eu me dei conta, corri para as janelas. Aqueles que almoçavam de frente para a vista, também. Alguém gritou:

— Caralho, alguém se jogou do telhado!

O clima se alterou rapidamente. Curiosidade mórbida e pavor. Uma caloura começou a chorar, uma parte da multidão correu lá para fora. Um professor apareceu na entrada do refeitório, gritando para descobrir o que tinha acontecido ali.

— Sr. Baker, alguém se jogou do telhado!

O pandemônio se instalou novamente. Pessoas esbarraram nos meus ombros, me empurraram, mas eu me mantive de pé, olhos fixos na presa abatida. acotovelou a multidão. Ela se esforçou para chegar até as janelas enquanto o pobre sr. Baker gritava para que nos afastemos do mórbido circo de horrores que se espalhava, rubro, pelo pavimento da calçada.

— Aquela porca desgraçada…

murmurou, olhos apertados. Maggie pulou com tudo. Sua presa tinha finalmente sido abatida. O pescoço quebrado. Olhos abertos e sem vida. Nem o comentário horrível de conseguiu me despertar do torpor. Um professor veio, acompanhando o sr. Baker, e começou a nos afastar das janelas. Eles nos reuniram na quadra, todos os alunos sentados nas arquibancadas, todos fofocando sobre Maggie, os folhetos e . Chamaram a ambulância, mas o que eles poderiam fazer? O corpo dela foi retirado da calçada em um saco preto.

Eu não conseguia sintonizar nada. Os olhos abertos dela, o rosto virado na direção do refeitório, o corpo todo torto e todo aquele sangue… Tudo isso tirou a minha paz. Eu não consegui fechar os olhos. , e Maggie. , e Maggie. Morto, preso, morta. Minha culpa. Culpa da .

Nós a empurramos até o limite. Nós fizemos Maggie se odiar. Nós fizemos a escola inteira odiá-la. Fomos nós. Foi o bullying que cometemos. Nossa culpa. Era tudo nossa culpa. Meu peito estava apertado de forma dolorosa. Eu não conseguia respirar direito, tremendo, a garganta seca. Maggie, morta, ensanguentada, suicida. E é tudo nossa culpa. Ela estaria viva se eu tivesse enfrentado antes? Ela estaria viva se eu tivesse dado um basta no bullying no começo? Porque o que eu tentei fazer hoje claramente não ajudou. Não foi o bastante.

Ao longe, ainda se ouvia os comentários. Como uma melancia. O som foi como o de uma melancia quebrando. (TW)

Ela não suportou. Se fôssemos contar apenas o que ela passou nas mãos de , então entendo a dor dela e entendo porque fez isso. Eu queria jogar do telhado também. Fazê-la voar, mas o que isso me tornaria? A assassina que sempre acharam que eu fosse?

O diretor Jeffries limpou ansiosamente a testa com a manga do paletó. Tecido fino, esporte, azul royal. Aposto que, tomando seu café da manhã naquele mesmo dia, ele não imaginou que teria um suicídio em mãos. Inferno, ele nem ao menos conseguiu lidar comigo quando levei Maggie no escritório dele, mais cedo. Já parecia agitada. Do outro lado das arquibancadas, ela estava em frangalhos para todo mundo ver, mas eu já não acreditava nela.

Culpa dela. Culpa minha. Nossa culpa. De todas nós. Eu vi Jen e Jade abraçadas, horrorizadas. Como elas nunca perceberam o que faziam com Maggie? Como elas nunca ligaram para toda a babaquice que jogaram em cima dela? Como elas nunca previram o que poderia acontecer? Porque era previsível. Todos os sinais estavam lá. E isso só fez com que eu sentisse que elas sabiam dos riscos, mas não se importavam.

Meu celular vibrou com uma ligação do meu pai, mas eu não atendi. Imaginei que a escola já tivesse comunicado os responsáveis. Eu digitei uma mensagem, disse que estava bem, o que era mentira. Duas mortes. Eu causei duas mortes.

Era tão fácil me culpar quanto apontar o dedo para . Duas faces de uma mesma moeda que girava e girava, atropelando a vida das pessoas ao nosso redor. Iguais. Uma moeda para enganar os tolos.

O diretor soltou um pigarro. Disse que sentia muito, que ia nos liberar das aulas de hoje até que limpassem a calçada. Fez um grande discurso sobre saúde mental. Relembrou que temos a sra. Wood, a psicóloga da escola, e que podemos falar com ela a qualquer parte do dia. Ele mentiu e mentiu, de cara lavada. Qualquer aluno daqui sabe que a escola não é um ambiente saudável para todos nós. Há uma cadeia alimentar aqui, uma hierarquia clara e clássica, alguns poucos impondo a sua vontade sobre outros muitos. E ele sabia disso. O diretor apenas não se importa.

— Diretor Jeffries? — Eu ergui a minha mão, projetei a minha voz. Ele tentou me ignorar, mas eu não deixaria isso acontecer. — Diretor Jeffries? — Eu quase gritei. Os alunos me olharam, cochicharam. Ele já não podia me ignorar mais.

Ele suspirou. Estava cansado e acabado. Talvez nunca tivesse imaginado que era um velho tão incompetente assim. Ele se dirigiu a mim.

— Se tiver qualquer coisa a dizer, srta. , diga à psicóloga.

me encarou do outro lado da quadra. Minha culpa. Nossa culpa. Fomos nós que a matamos. Fomos todos nós. Por que nada aconteceria conosco? Por que ninguém dizia nada?

— Ela pediu ajuda ao senhor e à sra. Woods. — Eu pressionei, falando alto mesmo quando ele tentou me ignorar novamente. — Ela foi ao seu escritório e pediu ajuda!

O silêncio na quadra era opressivo. Só se podia ouvir a minha gritaria. Eu não ficaria mais quieta. Eu estava farta. Maggie não merecia isso. Ninguém merecia isso.

— Ela procurou a sra. Woods e ela procurou o senhor, e o que o senhor fez? O que o senhor fez para impedir que ela se jogasse do telhado? O que o senhor fez para punir a , que espalhou aqueles cartazes horrorosos? O que o senhor fez para impedir que pessoas como e eu a usássemos de presa? Você quer fingir que isso aqui é um ambiente seguro para nós agora?
— Cale-se, srta. .
— Não. Cale-se você! Maggie pediu ajuda e o senhor a negou. Faça uma palestra sobre isso, agora! Negue que não foi esse ambiente que a levou a se suicidar. Eu fiz isso também! A culpa também é minha! E de , de Jen e Jade Kwon, de todo o time de torcida. Nós somos as culpadas, diretor, então por que não faz alguma coisa pela primeira vez na sua vida?

Quando cheguei em casa, ainda não conseguia processar o que aconteceu. Coisas demais aconteceram nos últimos dias e eu ainda não conseguia assimilar tudo. na cadeia, Maggie em um necrotério, eu estava suspensa depois de dizer ao diretor tudo o que ele queria ouvir. O diretor Jeffries tinha me garantido que só não me vetaria de participar do baile de formatura porque eu sou uma das melhores alunas da turma. Não era só a minha vida que estava de cabeça para baixo, era a escola inteira. E a culpa de tudo isso era só minha.

Nova mensagem recebida.
Perseguidor #2 diz:
Menos uma candidata a rainha do baile. Acha que vão nos coroar lá?


Capítulo 27

Quatro dias para o baile.

Meus pais não estavam felizes com a minha suspensão, mas era o final das aulas, não tínhamos mais provas ou conteúdos importantes para o fim do ano. Era o fim do ensino médio e eu estava livre da escola. Meu pai ouviu o meu relato com o cenho franzido. Ele me perguntou há quanto tempo Maggie era assediada dessa forma e eu disse que não me lembrava de uma época onde ela não era o assunto do dia. Provavelmente desde que entramos no ensino médio. Provavelmente a vida inteira. Quantas outras como ela encontrou no caminho? Quantas outras como eu? Eu sei que não matei , mas tenho certeza de que tenho o sangue de Maggie nas mãos. E isso me apavorava.

A sociedade é doente e viciada em perfeição. E nós perpetuamos isso sem saber, ou até sabendo, mas ignorando o quanto esses padrões adoecem as pessoas. Eu estou mais atenta sobre isso agora, mas é tarde demais. Se eu tivesse ajudado Maggie a se impor antes, talvez ela não sentisse a necessidade de se matar. Mas também havia outra coisa na minha mente, outro fator que eu não podia ignorar: meu segundo perseguidor.

Ele me mandou uma mensagem logo após a morte de Maggie. E eu tinha essa teoria sobre ele matar apenas bullies, não faria sentido que ele matasse Maggie, mas… Ele matou por mim. Teria ele também matado Maggie por mim? Mas, se fosse isso, então por que? Tantas dúvidas, tantos questionamentos, tantas variáveis… Eu me sentia cada dia mais fraca. Cada dia era mais difícil me levantar da cama, cada dia era mais fácil fechar os olhos e esperar o tempo passar. E se eu passasse tempo o suficiente dentro de casa, talvez eles me esqueçam de vez.

E . Meu querido , heroico em seu desejo de me proteger. Talvez ele acreditasse que realmente matei ? Talvez ele realmente pensasse que estava me ajudando, mas não estava. Eu estava mais nervosa. Mais arisca. E eu queria apertar sua mão de novo, sentir o cheiro dele de novo, sentar com ele e pedir comida chinesa. Falar com ele me acalmava. E, agora, eu não tinha mais isso. Eu não tinha mais perto de mim. E ninguém mais sabia de tudo, ninguém mais sabia como eu estava sofrendo. Eu não confiava em ninguém mais para me ajudar.

Exceto, talvez, uma pessoa. Meu dedo arrastou a interface do aplicativo de mensagens até achar o nome dela.

diz:
Ei, Key. Pode falar agora?

No final de tudo, Keyshia era a única amiga que não me venderia por uma fofoca. No final de tudo, Key era a única delas com quem eu poderia contar. A resposta chegou com alguns minutos de atraso, mas nós acabamos marcando um local para nos encontrar e conversar.

E, pela primeira vez no que parecia muito tempo, eu fui sincera. Ou, ao menos, na maior parte. Eu escondi tudo sobre o meu segundo stalker porque não a queria em perigo também, mas disse todo o resto para ela. Quando terminei de falar, vi Key me encarando com os olhos ligeiramente arregalados. Ela me fitou em silêncio por vários segundos e essa espera, ainda que pequena, me encheu de ansiedade. Isso me irrita. Eu nunca fui assim, não costumava ser assim.

— Uau, . — Ela balançou a cabeça, buscando meu olhar em seguida. Parecia se segurar para não falar alguma coisa.
— Eu sei.
— Então você… E o professor?
— É.
— Imagino que seja um segredo. — Eu anuí, observando minhas unhas apenas para ter outro lugar para onde olhar. Não queria encará-la a todo momento, ainda mais agora. Se Key também fosse me julgar, talvez eu finalmente desabasse.
— Foi por isso que terminou com ? — Eu anuí de novo. — Uau.

Bebi meu milkshake, já meio derretido, imaginando que meu peso não importava agora. Depois de tudo o que aconteceu com Maggie, eu simplesmente me sentia culpada demais para me importar com o meu corpo. É loucura, talvez, mas pensar em como eu me matava de me exercitar e comer absurdamente pouco ou contar as minhas calorias me causava mal. Porque, de alguma forma, eu também acabei com Maggie de alguma forma. Eu minei a autoestima dela todos esses anos. Não só eu, é certo, mas tudo ao redor dela a apontava como alguém “errada”. E isso pesava na minha consciência.

A verdade é que eu me sentia mais culpada pela morte de Maggie, que jamais desejei, do que pela de , que desejei ardentemente nos poucos dias que ele me assediou constantemente.

— Então, não tem jeito de perguntar isso, mas… Vocês dois não mataram o , certo? — Eu neguei com a cabeça antes mesmo de abrir a boca.
— Não. Eu não sei de onde aqueles policiais idiotas tiraram isso.
— Mas é compreensível, né? A família do era a mais rica da cidade. Se eles não “solucionarem” o mistério de alguém rico, quer dizer, então qual é o objetivo? — Ela deu de ombros.

No ano passado, Keyshia foi bastante criticada por falar contra o racismo enraizado nas forças policiais. Eu me lembro de ter ouvido e achado fascinante como eu nunca tinha pensado em tudo isso. Todo mundo fala de privilégios e sobre reconhecê-los, mas eu nunca fiz isso. Em vez disso, a vida me ensinou de forma dura, mas não tão dura quanto foi para as meninas que sentiram tudo isso na pele.

, eles não podem manter o professor preso se não tiverem provas suficientes. Tenho certeza que o advogado dele vai livrá-lo disso. — Ela tentou me confortar segurando a minha mão gelada, mas me mantive calada. — A não ser que você tenha medo que ele tenha feito isso por você?
— E se ele fez isso porque acha que eu matei ? — Cochichei, com medo de verbalizar o que vinha me consumindo há tempos. — Eu juro, Key, eu nunca matei ninguém.

Eu estava chorando de novo. Dessa vez, com uma amiga me consolando, sem qualquer precaução, simplesmente deixando meus sentimentos fluírem. Os mesmos sentimentos que sempre me sufocaram, que sempre estiveram ali, fazendo com que a minha própria mente fosse um lugar infernal de se viver. Os mesmos pensamentos que eu neguei que tinha.

— Bem, alguém matou. — A voz dela desceu um tom.
— Obviamente.

Ela suspirou, terminando o seu milkshake de morango. Eu sei o motivo do seu silêncio porque é o mesmo que o meu: não sabemos o que fazer. Eu não posso assumir algo que não cometi e eu não posso entregar meu perseguidor. Agora, pelo menos, não posso. Tem um lugar onde ele disse que estaria e onde eu também estarei. Um lugar onde, eu tenho certeza, ele não vai se aguentar e vai querer me perseguir pessoalmente. E esse lugar é o baile de formatura.

Eu não contei a Key sobre isso. Eu não vou contar, tampouco, porque essa ideia é louca e completamente insana. É o tipo de ideia que você veria em um programa de TV e diria: o que essa idiota tem na cabeça? É o tipo de coisa que eu diria. Ainda assim, eu precisava agir de alguma forma. precisava da minha ajuda e ainda tinha Maggie. Se meu perseguidor atirou Maggie do telhado, então eu devia isso a ela.

Quando cheguei em casa, tranquei a porta e me sentei na cama. No curto caminho até em casa, mesmo dirigindo, me peguei pensando se essa era mesmo a coisa certa a se fazer. Se eu tinha mesmo que fazer isso, porque certamente seria perigoso. E não importa mais se era perigoso ou não. Era uma equação sem resposta. Eu queria chegar ao resultado.

Quem matou ? Por que mataram ? Por que dizer que eu não precisava agradecer? E por que eu, especificamente? Por que Maggie? Por que as mensagens? São perguntas demais e nenhuma resposta. Por isso, quando me sentei na cama, eu abri a conversa com o meu perseguidor. E mesmo me achando a garota mais estúpida do mundo, eu enviei a mensagem.

diz:
Que horas você vai me encontrar no baile?


Capítulo 28

Três dias para o baile.

Por que eu fiz isso? Acordei me fazendo essa pergunta repetidamente. Para quem prezava tanto por sua inteligência, eu tomo atitudes mais estúpidas a cada dia. O pior é que sei disso, sei que estou sendo burra e impulsiva, mas não vejo como posso perder qualquer outra coisa. Não tenho mais a vida que eu tinha, meus pais já não me veem da mesma forma, meus colegas de escola tampouco, a polícia crê que eu conspirei para matar alguém, meu namorado está preso, tentei ajudar Maggie e não consegui e eu vou encontrar o meu perseguidor no dia do baile de formatura. Esqueci alguma coisa?

Tudo que eu conhecia estava, lenta e gradativamente, desmoronando ao meu redor. Não sou mais a filha perfeita que meus pais sempre quiseram, não sou mais a garota popular que admiravam, eu não sei se chegarei a fazer faculdade porque a polícia pode me prender a qualquer momento, mesmo sem ter matado . Por que eu não jogaria toda cautela para o alto? O que mais eu poderia perder? A minha vida? Eu já tinha perdido a minha vida, tudo o que construí e tudo o que eu sempre quis, a única coisa que me restava era a pulsação errática no meu peito. E, talvez, nem isso me restasse no final daquilo.

Mórbido, eu sei, mas será que quero continuar vivendo? De uma forma doentia, talvez Maggie tivesse razão. Viver com medo a todo tempo não é para mim e eu tive tanto medo nas últimas semanas, de todos os tipos: tive medo de não estar à altura das expectativas dos meus pais, tive medo que todos descobrissem a pessoa mesquinha, preconceituosa e horrível que habitava dentro de mim, tive medo de que Terry descobrisse que eu tinha transado com o seu melhor amigo, tive medo que me machucasse, tive medo de não ser boa o bastante para , tive medo do meu novo perseguidor, da polícia, de mim mesma… Eu sentia apenas medo e culpa, um alimentava o outro em um ciclo que parecia não acabar. Eu estava cansada. Talvez fosse melhor acabar com tudo. Talvez fosse melhor… Deixar de existir.

Chega a ser engraçado o quanto eu mudei e não foi, de todo, para melhor. Nunca antes tinha contemplado uma opção tão sombria quanto essa. Eu nunca tinha sido suicida ou autodestrutiva, nunca. Agora, no entanto… Agora eu entendo. Depois de Maggie e tudo o que sofri desde que morreu, eu entendo. Talvez Maggie pensasse assim. Talvez fosse assim que tivesse se sentido quando decidiu…

As lágrimas caíram no meu joelho e só então notei que estava chorando. Eu tinha me resumido a uma garotinha chorona e sem coragem. Foi por isso que mandei a mensagem. Foi por isso que eu me arrisquei. Porque ficar sentada aqui, chorando e sentindo medo, não vai resolver nada. É assustador, mas eu tenho que tentar. Tenho que tentar por mim. Tenho que pegar a minha vida de volta.

Eu sei que pode dar terrivelmente errado, que eu posso acabar como ou como , na cadeia, mas desistir… Bem, desistir não me parece uma opção agora. Eu deixei de controlar a minha vida, mas agora eu a quero de volta. Não vou deixar que me aterrorizem ou me intimidem. E se eu morrer enquanto faço isso…

Não quero pensar nisso. Não é saudável pensar na morte como um alívio, como tenho feito. Isso não é bom. Meus pais ficariam devastados, talvez também. Key, talvez. Não acho que qualquer um dos outros se importe tanto com a minha morte.

Nova mensagem recebida.
Perseguidor #2 diz:
Meia noite. Espero que se arrume para mim.


A mensagem revirou o meu estômago, mas não havia nada nele para vomitar. Lembro que antes eu estava fazendo uma dieta para ficar melhor no vestido, mas há algum tempo meu apetite não é mais o mesmo e sinto que estou, sim, mais magra. A única coisa que eu planejei e aconteceu, mas, ainda assim, eu não estava satisfeita. Isso não era mais importante. Eu não podia me importar menos com o baile agora.

É ainda pior me olhar no espelho e ver que a minha clavícula está tão proeminente. É horrível quando lembro que todo o motivo do bullying que fizemos com Maggie era justamente peso… O caimento do vestido vermelho parecia perfeito, mas eu já tinha aprendido a questionar se eu achava isso por causa do pensamento arraigado de que magro era o mesmo que bonito ou se eu realmente achava que era o vestido. Senti meus olhos queimarem com as lágrimas não derramadas. Não eram de tristeza ou medo, dessa vez, mas de algo um pouco mais primordial. Eram lágrimas, reluzentes e brilhantes, de ódio. Ódio de mim, principalmente. Queria arrancar aquele vestido do meu corpo, arrancar minha própria pele com as unhas, queria ser revestida com uma couraça que não me deixasse tão vulnerável. Era como eu me sentia. Vulnerável. Uma tartaruga de barriga para cima, sem sua carapaça, sem conseguir se virar.

Eu tinha a mesma sensação, talvez, de um esforço inútil, como se não importasse mais o que eu pudesse fazer, meu destino já estava selado. E eu estava sozinha. Não havia ninguém para me guiar no escuro, não havia ninguém para me apoiar, para me dizer palavras de encorajamento. E eu nunca percebi o quanto eu era dependente de outras pessoas para me sentir segura. Para me sentir inteira.

Mas eu também me achava uma boa pessoa, achava que não estava errada ou que me acovardar não fazia de mim uma cúmplice. Eu achava que enganava apenas meus pais e os professores, mas a maior vítima das minhas mentiras era eu mesma. Eu acreditava nas minhas mentiras, acreditava no fato de que eu era tão boa e perfeita e tão diferente de , mas não era. Nunca fui.

Me encarei, determinada, no espelho. Meu vestido vermelho sangue, o tecido acetinado brilhante que reluzia na minha pele bronzeada, bem preso na minha cintura, mas com um caimento leve na área do quadril, agora parecia um mau agouro. Um sinal de má sorte. Mas, se fosse mesmo má sorte, então eu não merecia isso? Por tudo o que eu fiz de mau às pessoas, por todas as vezes que eu me omiti e por tudo que eu permiti acontecer: eu merecia. E se eu tive meu queixo erguido quando causei o mal, então que eu também tivesse o queixo erguido quando recebesse o mal. Posso não acreditar em deus, mas talvez haja um conceito de justiça cósmica que esteja me sentenciando agora e me dando exatamente o que eu mereço.

No final, não era o vestido, não era meu sentimento crescente de inadequação e nem a minha vontade de me encaixar a qualquer custo. No final, a culpa era minha e de quem me queria morta. A única coisa que eu queria saber… Era o porquê. Por qual pequeno ato infame eu estou sendo punida, qual malfeito foi a gota d’água? Tive tantos. Passei a noite me lembrando de todos eles, anotando todos em uma página do meu caderno. Durante horas, anotei cada fato vergonhoso que me levou a ser quem eu era hoje, cada um dos meus pecados, assim dizendo. E ao final, quando o sol já despontava lá fora, eu percebi que merecia cada momento de terror, cada susto, cada humilhação.


Capítulo 29

O dia do baile.

Nova mensagem recebida:
Tic-toc, minha Cinderela. Meia noite no teatro.


Passei o dia anterior me redimindo com meus pais. Disse a eles que pretendia cursar Direito em Columbia, assim como meu pai, porque finalmente tinha notado a quantidade de injustiça que havia no sistema (é claro que precisei que meu namorado/professor fosse preso para notar isso, já disse que sou hipócrita). Sem que eles pedissem, eu contei sobre meu relacionamento sem amor com , sobre Maggie, como conheci e como me apaixonei por ele. Dos dois, minha mãe foi quem teve a coragem de me perguntar se eu realmente amava . Eu assenti.

— Do fundo do meu coração. — Completei, esperando passar honestidade, esperando que eles vissem que aquele relacionamento não era um dos meus muitos caprichos.

Falar dele doía. Então, como se a dor não fosse o suficiente, eu contei sobre . Sem poupar detalhes, contei de como nos envolvemos brevemente – e que aquilo sim tinha sido um capricho – e de como ele lidou com isso, a forma como seus “sentimentos” tinham se desenrolado, se descontrolado e como isso culminou em tudo o que estava acontecendo agora. Eu estava atolada em merda por causa daquele maldito.
Eu nunca tinha sido tão aberta com eles, tão crua e honesta, tão pura. Ou quase. As perguntas que me fizeram, respondi sem me preocupar em como isso soaria. Eles mereciam a verdade sobre a filha. Eles não sabiam a filha que tinham e estava na hora de saber. Estava na hora de conhecerem , não a versão editada e pronta para consumo, mas o que eu escondia até de mim. Eles precisavam saber porque eu poderia não voltar para casa hoje, porque talvez eu fosse morta, tal como . Porque, como ele, embora diferentemente, eu era podre. A diferença, é que sei disso. A diferença é que não culpo ninguém. A diferença é que eu, agora, ao menos, aceito a minha morte como algo certo. E embora eu mereça, meus pais não precisavam passar por isso.
Eu os abracei e disse que os amava. Quando desci, vestida e arrumada para o que poderia ser a minha última noite viva, deixei que eles tirassem fotos e se preocupassem comigo. Minha mãe pediu que eu tomasse cuidado e que eles estariam a postos para me buscar no baile, se eu me sentisse mal ou se alguém me fizesse mal. Eu não tive coragem de dizer nada sobre o meu perseguidor, então eles não sabem sobre isso. Não sabem que eu não tenho esperança de voltar viva após o encontro.
Para eles, eu ainda tenho um futuro, ainda tenho perspectiva, mas eu sei, no fundo das minhas entranhas, que não vai ser assim. Eu sei que eu não vou voltar. Sei que, como , eu não tenho chance. Me conformei com o meu destino. Assim, talvez, não doa tanto pensar em quem eu vou deixar para trás.
Quando entrei no salão, não havia ao meu lado, como eu achava no começo do ano, não havia comigo, não haviam rostos familiares me encarando com simpatia e nem havia o rosto que eu mais queria ver, porque ele estava preso. E a culpa era minha. Eu consegui afastar todo mundo. Bem, quase todo mundo. Key sorriu para mim quando eu finalmente a achei. Ela sorriu.

— Eu adorei o seu vestido!
— E eu adorei o seu! — Fingir animação não era difícil quando eu estava perto dela. De todas as minhas “amigas”, Key era a única que me passava sinceridade.

Eu tinha quatro horas até o fadado encontro. Eu faria aquelas quatro horas serem recheadas de boas memórias. Eu faria as coisas do modo certo, ao menos dessa vez.
e as meninas não chegaram perto de mim para me cumprimentar, embora eu estivesse agradecida por isso. Não sei se eu poderia fingir logo hoje, quando tenho um machado balançando acima da minha cabeça. Eu fiquei com Key e outras amigas dela, mas, quando o assunto passou a ser o inevitável tema do suicídio de Maggie, eu me retirei.
A mãe de estava junto do pastor, o pai de . Eles me viram antes que eu os visse, na verdade, e não pude escapar nem do olhar de nojo dela e nem da convocação silenciosa e austera do meu ex-sogro.

. — Ele me olhou de cima a baixo. Apesar desse cara ser o pastor e de ter sido a namorada do filho dele. — Você está bem? Como está a sua mãe?

Eu olhei a mãe de indo embora, tinha me dado as costas de forma bem explícita e, agora, metade do baile estava me encarando e cochichando. Meu coração acelerou de forma perigosa.

?

Eu podia sentir o pânico se construindo bem na boca do meu estômago, subindo de forma fria e inexpugnável pelo meu peito, minha respiração ficando cada vez mais acelerada. Não sei porque achei que eu poderia enfrentar aquele tipo de coisa. Não sei porque achei que teria coragem. Eu nunca fui corajosa.

? — O pastor me pegou pelo braço e eu precisei abafar um grito.

Sei que ele tentou me puxar para a realidade, mas, naquele momento… Eu só sentia medo. Eles não sabiam das ameaças de morte, eles não sabiam do que eu tinha passado, eles até acreditavam que eu tinha matado o filho da puta do . A bile subiu pela minha garganta e eu não consegui segurar. Meu jantar voou nos sapatos de couro italiano do pastor e, ao menos assim, ele me soltou.
Acho que ouvi alguém rir alto e o pastor xingar, mas eu cambaleei para trás e esbarrei no próprio . Corri para o banheiro o máximo que meus sapatos de salto conseguiram me levar, empurrando duas garotas que saíam rindo e segurando a porta atrás de mim. Minha mente estava uma bagunça. Por que o pastor estava me rondando? Que inferno fiz para ele? E por que ele me tocou?
Só percebi que estava chorando quando me olhei no espelho. Limpei a boca na pia, pouco me importando que meu rímel estivesse escorrendo um pouco. Esse era o último momento em que eu me importaria com a minha maquiagem. Chequei as horas no celular. Onze e meia. O tempo realmente voava rápido quando você não queria que ele passasse. Agarrei meu celular, o coração batendo forte, tão alto que me deixava surda. Então era isso. Eu tinha mais meia hora de vida.

Nova mensagem recebida:
Perseguidor #2 diz:
Tic-toc, minha querida. Mal posso esperar para vê-la. Bonito o seu vestido, não é? Vermelho como o sangue que vai jorrar de dentro de você.


Vomitei de novo depois de ler essa mensagem. E de novo. Até que só restou bile e meus dedos que tremiam tanto quanto os meus joelhos quando peguei meu celular. Eu deixei uma mensagem de voz para os meus pais. E, então, eu disquei o número de .

— Ei, . — A minha voz soava horrível e eu apertei o celular contra o meu peito para abafar um soluço. Respirei fundo. Eu tinha que ser forte. — Eu não sei quando você vai ouvir isso, mas eu queria te agradecer. Por tudo. Menos por se entregar, seu canalha. — Outra pausa. Respirei fundo. — Eu não matei . Eu juro por tudo que é mais sagrado. Não matei. — Solucei novamente, o choro engrolando a minha voz. — E eu sei que você me ama e eu queria dizer que também te amo, mas às vezes só amor não é suficiente, certo? Às vezes, a gente precisa deixar as pessoas ir. E eu te deixo ir, tudo bem? Quero que você saiba que você não me deve nada. E eu te amo, eu sei que já disse isso, mas eu te amo e… Droga. Eu tenho que ir. Só não esqueça disso: eu te deixo ir e espero que você me deixe ir também.

Desliguei a ligação, porque já não conseguia conter o choro. Eu devia ter bebido, sabe? Enchido a cara e falado tudo o que eu tinha entalado na garganta. Talvez a antiga eu fizesse isso. Eu só queria pedir perdão a cada um deles. Quando saí do banheiro, depois de lavar meu rosto e retirar minha maquiagem, dei de cara com .

, querida, eu vi quando você… Meu deus, o que aconteceu com a sua maquiagem?

Eu não pensei antes de falar.

— Vai se foder, .

A empurrei pelo ombro e as garotas abriram espaço para que eu passasse. Eu só tinha dez minutos, precisaria de cinco para andar até lá. Até o teatro… De noite, eu nunca tinha ido até lá sozinha. Era um esconderijo que todos os alunos conheciam, basicamente ninguém ficava ali depois das aulas e o teatro era exclusivo da turma de artes. Nem mesmo os clubes podiam se reunir ali sem a permissão da professora, mas todos nós ignorávamos isso. Eu tremi só de imaginar. Mas tirei os saltos e saí pelos fundos do ginásio.
Era difícil imaginar que aquela seria a última vez que eu andaria por aqueles corredores. Eu morreria sem nem saber quem seria a rainha do baile, porque eles tinham extinguido a premiação por conta das mortes de Maggie e . Em vez disso, ele seria rei do baile e ela seria a rainha. Pelo menos eu poderia morrer com a certeza de que estaria extremamente puta com tudo aquilo.
Tomei meu tempo caminho. Caminhar para a minha morte soava mais romântico nos livros que eu lia. Quando você estava, realmente, andando para a morte, não era como um alívio e nem nada como aquilo. Eu ainda queria viver. Alguma parte de mim, ainda queria. Mas outra parte, a maior parte, só queria… Que isso acabasse. E ainda podia ser uma brincadeira de mau gosto, certo? Sei lá, poderiam derramar sangue de porco em mim. Eu preferiria o sangue de porco.
Meus pés pesavam, mas minhas mãos também. Eu sentia como se precisasse me arrastar, mas minha respiração também era superficial e entrecortada. Quando enfim cheguei ao teatro, minha mão pairou na maçaneta por alguns segundos. Talvez estivesse trancado.
Não estava. Entrei no teatro com tanto medo que sentia minhas pernas fraquejarem. Todas aquelas ameaças pareciam pesar ainda mais quando entrei lá. Quantas semanas de tortura psicológica eu tinha passado? Quantas pessoas eu tinha perdido? estava na porra da cadeia por minha causa. Tudo tinha acontecido por causa de . E até mesmo antes, eu não tinha paz.

— Ei, seu filho da puta, estou aqui.

Gritei e minha voz ecoou pelo teatro solitário, ainda meio na penumbra. Pétalas de rosas, vermelhas, faziam um caminho até a escada lateral que dava para o palco. Eu chutei uma com meu pé descalço, seguindo o caminho como um cordeiro indo para o abate. O palco era alto. Porque a minha escola tinha um bom programa de artes, esse lugar tinha sido construído à perfeição. A acústica era tão boa, que algumas bandas já tinham se apresentado ali, naquele mesmo teatro, em vez de ir ao teatro municipal.
Várias fileiras de cadeiras se espalhavam à minha frente e uma corrente de ar fez com que um arrepio descesse pelas minhas costas de maneira incômoda.

— Onde está você, seu filho da puta covarde? — Gritei novamente, me sentindo mais confiante.

Ninguém respondeu. Talvez fosse mesmo um trote, uma piada doentia. Meu celular vibrou na minha bolsa e eu peguei o aparelho, tentando acalmar as batidas irregulares do meu coração. . estava me ligando. Na tela, algumas mensagens dele se amontoavam em pequenas notificações. Ele dizia que estava preocupado. Se por um lado eu estava feliz porque isso significava que ele tinha saído da cadeia, por outro fiquei apreensiva. A maldita mensagem de voz. Peguei o telefone justo quando a chamada se encerrou. Franzi a testa, pronta para ligar para ele, quando o holofote se acendeu. Diretamente nos meus olhos. O som também ecoou de uma maneira estranha.

— Estou aqui, Cinderela.

A voz era distorcida, como em um desses apps que as pessoas usam para passar trotes. Eu apertei os olhos, tentando enxergar através da claridade cegante do holofote. Nem mesmo colocando uma das mãos acima da testa eu conseguia enxergar alguma coisa.

— Ou estou por aqui? — A voz ecoou de novo e mais um holofote se acendeu. Dei um passo para frente quando todas as luzes espocaram diante dos meus olhos ao mesmo tempo.

Eu estava inundada pelo meu próprio pânico. Então era aquilo? Em um filme, esse seria o momento do confronto entre o mocinho e o vilão… Mas não existiam mocinhos na minha história. Eu fui repugnante, na maior parte da minha vida. Causei tanto sofrimento por causa do meu egoísmo e nem podia dizer que nunca tinha matado ninguém, porque eu ainda sentia a morte de Maggie pesar intensamente em meus ombros. Não havia mocinhos e vilões, aqui.

— Venha até aqui! — Berrei, nervosa por não conseguir enxergar nada. Andei a esmo, tateando o ar. — Venha acabar comigo logo!

Apenas dois sentimentos me moviam: o medo e a raiva. Se fosse me matar, então que fizesse logo. Não gostava de pensar que estava sendo apenas um joguete, entretendo um assassino antes que ele me desse o golpe final. Eu não queria ser a diversão de um filho da puta sádico.

— Ou está com medo?

Minha provocação fez com que novamente a voz distorcida se fizesse presente, Eu ouvi o chiado do microfone.

— Quem deveria ter medo aqui, ? Eu só te ajudei e é assim que você retribui?
— É mesmo? Pobre assassino! — Eu ri feito uma louca. O que eu poderia fazer?

Ri tanto que não vi onde meus pés pisavam. A queda pareceu mais longa, como se eu mergulhasse para o chão em câmera lenta. O mergulho do cisne. Bati de cabeça contra o chão, rolando logo depois do impacto e sentindo a umidade morna do sangue jorrar da minha testa.
O cheiro de sangue foi o que mais me incomodou. Eu estava tonta, deitada, observando o teto do teatro girar enquanto os holofotes se apagaram de vez e eu caí na penumbra. Ou talvez minha visão tenha apagado. Eu não sabia qual das alternativas era a verdade. Ouvi passos correndo na minha direção… Se o mundo fosse justo, eu teria direito de morrer nos braços do homem que eu amo, vendo seu rosto como a última coisa antes de deixar essa vida para trás.
Já não sentia meu corpo e me mexer era um sacrifício. Minha respiração se tornou mais superficial e eu tive vontade de rir quando percebi que, assim como Maggie, eu tinha mergulhado para a minha morte. Que justiça poética, não? Eu morreria em uma piada de mau gosto, sem que o tal stalker tivesse, ao menos, encostado em mim. Patética. Ouvi passos novamente, dessa vez se afastando de mim, correndo para fora do teatro. E eu só tinha sono. Minha cabeça doía tanto, assim como a minha nuca, que bati no degrau quando rolei pelo chão. Sentia sangue empapar meus cabelos. Sentia tudo… E eu também sabia que só precisava desistir para ir embora. Sabe, o mundo seria mais justo se um filme passasse diante dos meus olhos nesse momento, com minhas boas memórias em display. Mas não havia nada… Bem, se o mundo fosse justo de verdade, eu teria morrido e ficado em paz. Mas ouvi meu nome ser chamado… E eu atendi.


Capítulo 30

Três semanas e dois dias para o baile... De novo?

Algo estava errado. Eu sabia que alguma coisa soava terrivelmente anormal, mas não sabia exatamente o que era. A sensação de que algo parecia fora do lugar fez com que eu ficasse bastante agitada. O que era? O que estava diferente? Mesmo que aquele fosse o cotidiano ao qual eu tinha me acostumado, algo parecia distorcido, de alguma forma. Uma sensação incômoda parecia apertar o meu cérebro. Eu precisava me lembrar, mas do que?

A sensação de déjà vu era inevitável. Durante todas as horas que passei em casa, porque a escola ainda estava de luto por causa de , eu parecia saber o que aconteceria. Não exatamente, mas… Como eu poderia descrever? Mesmo quando Jen e Jade, agindo de maneira estranha, começaram a fofocar no nosso grupo de mensagens, não consegui me focar. A conversa, no entanto, não me desanimou por isso. Eu me sentia… Talvez desanimada não fosse a palavra certa. Eu me sentia entediada. Porque, de alguma forma, eu já tinha ouvido – bem, talvez lido – tudo aquilo antes. Mas, novamente, é basicamente a mesma conversa de sempre com as meninas. Nunca há nada de novo para conversar com elas, a não ser que seja uma nova fofoca, o que parece andar em falta.

Quando cheguei em casa depois da minha corrida e de uma manhã inteira com aquela sensação esquisita, eu percebi que realmente havia algo errado. Minha mãe, na cozinha, sorriu cuidadosamente para mim quando eu passei pelo corredor.

— Você parece melhor hoje. — E por mais que ela sorrisse, o tom dela não parecia alegre. O que estava acontecendo?
já voltou? — Meu pai surgiu no corredor, vestido para o trabalho. — Ótimo, se vista. Aqueles idiotas querem você na delegacia depois do almoço.

Idiotas? Abri a boca para perguntar algo, mas meu pai seguiu resmungando. Por que eles estavam em casa tão cedo? Aquilo era tão incomum que me pegou desprevenida.

— Eu até agora não sei porque você fez a burrice de falar daquele jeito ontem, então, dessa vez, diga apenas o que eu te mandar dizer.
— Ontem? — Eu olhei para a minha mãe, pedindo silenciosamente por sua ajuda.
— Os detetives, ! — Ele bradou, irritado. Virou-se pra mim, consternado. — Você caiu da cama e bateu a cabeça?

Os detetives. Eu franzi a testa. Por um momento, tento relembrar. Eu já sentia que algo estava estranho, então tento lembrar do que aconteceu. Há algo me impedindo por um momento, algo que eu ainda não consigo entender. E, então, enquanto meu pai esbraveja sobre e a polícia, eu me lembro. Não é confortável. É como se todo o ar tivesse sido esvaziado dos meus pulmões, como quando você cai, de costas, de um lugar alto. O assassinato de que apenas me ferrou, preso, o modo como ele se sacrificou por mim, Maggie pulando do telhado… E, é claro, a minha morte. Eu pensei em Alice no País das Maravilhas, pensei na Metamorfose de Kafka e em vários outros livros onde nada fazia sentido. Tudo isso voltou à minha mente como um turbilhão.

— Eu vou me arrumar.

Dei meia-volta, subindo as escadas do hall, passando pelo corredor e entrando no meu quarto. Abri a porta com um gesto estabanado, correndo para a pia do banheiro e deixando ali meu iPod. Encarei meu reflexo no espelho e tudo parecia o mesmo. O mesmo rosto, o mesmo cabelo, a mesma maquiagem de sempre. Então fechei os olhos e respirei fundo. Eu tinha que me acalmar. Eu, simplesmente, tinha que me acalmar.

Voltando para o quarto, peguei um bloco em cima da mesa e um lápis que estava jogado em cima da mesinha. Me sentando na minha mesa de estudos, eu anotei o dia de hoje: faltava vinte e três dias para o baile. Isso era importante. Eu precisava me lembrar de tudo o que tinha acontecido.

Segundo o meu pai, os detetives me chamaram para conversar na delegacia hoje, ontem o detetive Martin veio até aqui e eu fiz meu teatrinho. Tudo bem. O que eu sei até agora? Anotei no papel os dois grandes eventos que eu precisava mudar: a morte de Maggie e a prisão de . Eu preciso relembrar o que o detetive me contou naquele dia. Tinha sido algo sobre , certo? Sobre ele ter ido até a cena do crime. Eu precisava me lembrar de todos esses detalhes para mudar as coisas agora. tinha ficha criminal, ele foi até a casa de para conversar, ele também me afirmou que não tinha matado , no que eu acreditava. Então, quem poderia ter matado ?

Propositalmente, eu estava ignorando a maior dúvida que poderia me manter acordada: como eu estou de volta? Essa, sim, é a pergunta de um milhão de dólares. Por que eu estou de volta? Eu abanei a cabeça. Isso não era importante agora. Eu tinha dias para impedir que Maggie morresse, que fosse para a cadeia e… Bem, que eu não caísse para a minha morte como a grande idiota que eu sou.

Tudo isso já era mais do que suficiente para me manter ocupada durante esse tempo. Vejamos… Se eu tenho que ir à delegacia hoje, então eu estou ferrada. Porque se o que meu pai disse é verdade, e se bem me lembro, então ontem foi o dia que eu surtei e tagarelei como uma maluca com o detetive. Eu não podia ter voltado um dia antes?

Tudo bem, posso tentar trabalhar com o que eu tenho agora. Quem poderia querer morto? Bati com a ponta do lápis no papel por um segundo, antes de escrever o óbvio: . Quer dizer… tinha transado com sua namorada. E, se foi assassinado e a casa não tinha nenhum sinal de arrombamento, além da clara falta de impressões digitais na arma, então isso só pode indicar que era alguém próximo a ele. Alguém próximo a ele o matou. Algum de nós está mentindo.

Quem mais era próximo de ? . Anotei o nome dela, também. Ela era apaixonada por ele, certo? E ele era obcecado por mim. Faz sentido que ela o matasse? Quem sabe? Não dá para adivinhar o que se passa na cabeça de .

E Constance. Adicionei o nome dela hesitantemente, porque hoje eles me diriam que ela mentiu e disse que nada aconteceu entre e ela. Além disso, ela saiu do país depois. Isso tinha sido bastante suspeito.

Quem mais poderia querer matar ? Eu não sabia quem mais ele tinha prejudicado. O problema de ser um bom atleta na minha escola, e também o maior privilégio, é que nós geralmente escapamos de punições mais severas quando nos envolvemos em algo errado. Se tinha feito alguma coisa a mais alguém, então eu jamais saberia, tanto porque ele era rico quanto porque o diretor possivelmente o acobertaria. No entanto, se for para usar a lógica, não faz sentido ser alguém de fora do nosso círculo. Se assim fosse, por que me mandar as mensagens? Não faria sentido. A não ser… A não ser que o assassinato fosse exatamente por minha causa. Se alguém realmente acha que me ajudou, se alguém realmente matou por mim, então por que me torturar depois? Porque eu fui ingrata?

Escrevi “motivo” na folha de papel e, em seguida, diversas interrogações. Por minha causa? Por uma vingança pessoal? Eu ainda não tinha como saber.

, venha almoçar! — Ouvi minha mãe chamar e suspirei. Eu precisava resolver logo o que eu poderia fazer.

Não vou me questionar por que eu tenho uma segunda chance. Não vou tentar descobrir como ou porque. Durante toda a nossa vida, somos ensinados que a vida é uma só. Quando morremos, acabou. Se você é religioso, pode ir para o céu ou o inferno. Se acredita em reencarnação, sabe que reviverá. Para mim, a morte era o final. Obviamente, no meu caso não foi. Eu simplesmente estou grata por ter ganhado uma segunda chance e isso, por agora, é mais do que o suficiente para mim. Há mais uma coisa que me incomoda, mas não vou pensar nisso agora. Não há tempo. Agora, preciso ocupar minha mente com o que eu vou dizer no interrogatório. Sabendo o que eu sei agora, e que ainda assim não é muito, sei que há algumas coisas que eu poderia evitar. Por exemplo, agora, olhando para o passado, sei que jamais enganei nenhum dos detetives. Então, era hora de estabelecer alguns objetivos importantes:

1. Não morrer.

Esse era particularmente importante, por razões tão óbvias que me privo de explicar.

2. Não estragar tudo com o .

Dã.

3. Não ser uma babaca completa com todo mundo.
4. Não magoar meus pais.
5. Não magoar o .
6. Evitar mentir para os policiais. Mas isso depende.


Sublinhei as últimas três palavras algumas vezes, colocando alguma ênfase. Esse era sério.

7. Impedir Maggie de se matar.
8. Descobrir quem me quer morta.
9. Descobrir quem matou , se possível.


Terminei de escrever e reli a lista, repensando minha trajetória e se havia mais alguma coisa a ser feita. Quando me dei por satisfeita, me vesti e desci para o almoço. Era hora de encarar a polícia.

Enquanto meu pai dirigia, me lembrei de algo interessante. Algo que já deveria ter acontecido. Chequei minhas mensagens e lá estava, a foto do corpo de . Era de se esperar que, depois de tudo, eu conseguisse ver aquela foto de maneira mais calma, mas eu ainda me sentia tão enojada quanto antes. Desliguei a tela e guardei o aparelho na bolsa. Eu não tinha que ver isso agora.

Enquanto aguardava os detetives me chamarem, observei os outros alunos da escola indo e vindo. Em especial, eu aguardava por uma delas: Constance. Se eu soubesse que hoje era o dia, eu teria ligado para ela, mas demorou a cair a ficha de que eu estava vivendo tudo de novo. Dessa vez, pude ler a expressão dela: ela estava perdida. Ouso dizer que está tão perdida quanto eu. Se não fosse a coisa óbvia entre e eu, então Constance, a ex, seria a escolha óbvia para tomar o lugar de culpada. Eu posso não ter percebido antes, mas percebo agora. Não acho que ela faça por mal, mas Constance está agindo para se autopreservar. Eu deveria fazer o mesmo.

Quando me chamaram, meu pai entrou comigo na sala e eu encarei os detetives de novo. Por causa do meu teatro da noite anterior, sei que eles esperam que eu faça algo drástico. Dessa vez, não vou fazer nada disso. Não posso perder a calma.

— É bom vê-la de novo, . — O Detetive Arendt foi o primeiro a me cumprimentar, eu meramente anuí e me sentei.
— Queria dizer o mesmo. — Respondeu meu pai, mal-humorado. — Chame-a de senhorita . Nenhum de vocês tem qualquer intimidade com a minha filha.

Eu o olhei, subitamente grata. Como algum dia fui capaz de destratar meu pai? Ele era bom para mim. Ele sempre foi.

— Muito bem. Senhorita , se lembra de nossa conversa ontem à noite? — Fiz que sim com a cabeça. — Chamei Constance aqui.
— Eu a vi lá fora.
— Ela nos contou algo curioso. — Arendt continuou.

Deus, como era enervante passar por tudo aquilo de novo. Eu me preparei.

— Ela disse que nunca encostou nela? — Tomei a dianteira, chamando a atenção dos detetives.
— Exatamente.

Fiquei calada por alguns instantes. Ao meu lado, meu pai parecia me pedir explicações. Eu o ignorei. Eu tinha que jogar cuidadosamente, agora. Na minha… Outra vida? Não sei, mas, antes, tudo o que eu fiz levou para a cadeia. Eu queria evitar isso. Suspirei.

— Achei que ela diria isso. Eu não sei porque ela fez isso, mas quando contei a ela sobre , ela me disse que aconteceu a mesma coisa. Ela é ex-namorada do . — Sinceridade deve ser o melhor caminho. Eu acho. — E também deu em cima dela. Eles ficaram algumas vezes, pelo que ela me disse, e ele também a agrediu. Eu não sei se ela mentiu para mim ou para vocês.
— E por que ela mentiria para você? — Martin parecia não comprar minha mudança de comportamento, mas eu não o culpo.
— Eu não sei também, detetive.

Ser uma vadia falsa durante anos tinha me preparado para a versão 2.0 da minha vida. O modo como eu falava, mais calma, sem dúvidas alertou os detetives. Talvez ele se lembrasse de como eu também parecia calma ontem, antes de surtar de vez e atacá-lo como um cachorro louco.

— Se ele não agrediu Constance, por que ele agrediria você?

Eu estava preparada para essa pergunta de novo. Eu sabia que ela viria, mas, ainda assim, me irritou tanto quanto da primeira vez. Eu olhei para o meu pai, pedindo silenciosamente por sua ajuda.

— Por que vocês estão perguntando à minha filha, que foi vítima desse sujeito, o motivo de ter sido agredida? Por que estão culpabilizando a vítima? — Seu tom de advogado era assustador.
— Eu quero acreditar na sua filha, sr. . — Mentira. — As marcas que ela me mostrou eram reais o suficiente…
— E por que você não tirou foto delas, detetive? Por que não abriu uma investigação? Uma adolescente assustada mostrou marcas no próprio corpo, que coincidiam com agressões causadas por outro adolescente, e o que a polícia fez?

Uau. Eu deveria ter deixado meu pai cuidar de tudo antes. Talvez não tivesse morrido com a cabeça rachada.

— Ela não deu indícios de querer prestar queixa.
— Sim, e o senhor, sendo o detetive que é, também não a orientou sobre isso. Ela é uma adolescente, legalmente adulta, mas ainda é uma garota. Você deveria protegê-la. Por que não fez isso, detetive Martin?

Parece que a cabeça do detetive vai explodir. Eu estou chocada. Meu pai, quando está nervoso, é absolutamente assustador. Sei que ele não parece muito intimidador, tirando a altura, mas, quando ele está assim, ele se parece com qualquer outra pessoa que não o pai meio apático que sempre conheci.

— Não estamos falando sobre isso. Estamos falando sobre a sua filha e Constance Pérez.
— E quem não garante que ela não mentiu porque vê como vocês estão tratando a outra vítima do garoto? Vamos embora, . Enquanto esses paspalhos não tiverem provas concretas de que você mentiu, nós não vamos mais voltar aqui.

Meu pai me urgiu a levantar, dizendo que eu estava livre para ir e vir como bem entendesse. Eu me levantei, seguindo-o.

— Alguém mais sabia sobre o que fez com você?
— Ele tinha feito aquilo na tarde anterior. Eu tive vergonha. — Disse por cima do ombro. — O professor viu, foi ele quem me ajudou.

Eles já sabiam. Esconder isso da polícia soaria suspeito. Eu não queria que eles suspeitassem de . Não queria que ele fosse preso dessa vez. E estava disposta a proteger o homem que eu amo com todas as minhas forças.

Os detetives se entreolharam, talvez surpresos que eu estivesse sendo sincera. Dessa vez, pretendo colaborar com a investigação o tanto quanto puder. Ainda assim, não conseguia dizer a eles que tinha uma foto do corpo. Eu não podia.

— O professor me pediu para ir à polícia, mas eu tive medo de que não acreditassem em mim. Acho que eu não estava tão errada, não é?
— Vamos, .

Segui meu pai, como a filha obediente que fingi ser por dezoito anos. Em silêncio, Martin e Arendt me viram sair sem tentar nos impedir. No carro, meu pai me olhava de lado.

— Você foi bem hoje. Continue assim.
— Sim, papai.

Eu estava estranhamente calma. Passar por aquilo da segunda vez foi menos enervante. Pelo menos dessa vez, eu não fiz um barraco enquanto gritava com o detetive. Eu não me descontrolei. Dessa vez, deixei que meu pai tomasse a frente das coisas e que resolvesse do seu modo. E parecia ter dado certo. Ninguém me acusou de assassinato, ninguém me perguntou por que eu tinha matado … As coisas correram de maneira mais civilizada.

— Papai, não sei se já te agradeci por me apoiar dessa forma. — Ele grunhiu. — Nem todo pai consegue apoiar uma filha suspeita de assassinato.
— Eu sei que você não matou ninguém. — Ele disse, sério, seu tom não deixava nenhum espaço para dúvidas. Eu fiquei tocada. Antes, não sabia se ele tinha fé em mim… Ele nunca disse nada. Nunca me perguntou nada. — Mas preciso saber de uma coisa, .
— Sim, é claro.
realmente a agrediu?
— Sim. Ele ficou nervoso porque eu não queria ficar com ele.

Meu pai soltou um grunhido baixo, que mais pareceu um rosnado. Eu quase ri, talvez riria se a situação não fosse séria. Que idiota eu tinha sido em descartar o apoio dos meus pais daquele jeito. Eu achava que apenas me mantinha segura, mas eles estavam ali o tempo inteiro. Eles eram minha rede de proteção. Bem, isso me deixa mais aliviada.

Quando entramos em casa, minha mãe tinha a mesa posta, ansiosamente nos esperando. Eu sorri quando a vi, a abraçando forte quando ela chegou perto. Eu nunca mais os desapontaria daquela maneira.

Eu ainda não sei porque estou de volta. Ainda não sei quem me matou. Ainda não sei quem armou tudo isso. Mas estou certa de que, dessa vez, vejo as coisas com mais clareza. Mundo, receba de volta , e saiba que, dessa vez, ela não está para brincadeiras.


Capítulo 31

Três semanas para o baile.

Essa semana de luto está acabando comigo. Quero voltar logo à escola e começar a investigar, por conta própria, o que as pessoas sabiam sobre e eu, se mais alguém tinha sido vítima de , se havia qualquer coisa que eu pudesse usar pra me livrar. E eu queria ver . Eu sei que é irresponsável e que eu deveria me manter longe dele, mas a todo momento eu me lembro de que hoje (na minha primeira vida?), ele me consolou e fez amor comigo na minha cama. Eu quase posso sentir o cheio de balas de menta no hálito dele.

Dessa vez, não há nada para consolar. Eu sei exatamente o que vai acontecer e isso, às vezes, me deixa nervosa, mas em outros momentos, como agora, me sinto estranhamente confortada. Sei que hoje não é um dia ruim. Mas na segunda-feira… Eu terei que encará-los na segunda-feira. Nada pode mudar isso. É irritante, mas também me dá esperança de tentar resolver as coisas. Como Maggie. Quero resolver as coisas com Maggie. Eu não aguentaria vê-la caindo novamente. Na verdade, eu não aguentaria saber que ela também estava caindo por minha causa. E, sim, eu sei que é egoísta. Eu sei que quero apenas me eximir da culpa. Mas também sei que isso pode ser a diferença entre tê-la viva ou morta. Posso fazer isso por nós duas, posso ajudar nós duas.

Eu estava quase saindo de casa, com meu conjunto esportivo rosa da Nike, quando ouvi meu pai me chamar. Ao vê-lo, eu quase caí dura.

— O que você está vestindo?

Meu pai se olhou por um momento. Ele usava calça cinza de moletom, uma regata branca que marcava o contorno de sua barriga meio saliente e munhequeiras atoalhadas da Adidas.

— Pensei em correr com você. Por que? Está ruim?

Meu pai jogou basquete na faculdade por um tempo, até lesionar o ombro e decidir se focar no Direito. Mesmo assim, em todos esses anos, jamais o vi demonstrar interesse em esportes sem que fosse assisti-los na televisão.

— Não, eu só estranhei.

Era óbvio o que ele estava fazendo. Meu pai queria ser mais presente na minha vida, ainda mais depois de , depois das agressões. Lembro que, da outra vez, meu pai disse que não deveria morrer de um modo tão violento, mas agora parece que ele mesmo acabaria com o desgraçado com as próprias mãos. Eu não podia negar meu pai. Porque, talvez, ao final de três semanas, eu caísse para a minha morte de novo. Eu ainda não sei se posso mudar alguma coisa, estou apenas tentando, mas voltar à vida não vem com um manual de instruções. Não sei de muita coisa além do que eu já sabia antes. Então, por que não me aproximar do meu pai? E só então eu percebi o quanto me faltava o carinho dos dois. Eles tinham sido tão doces comigo, mesmo depois de tudo. Mesmo quando eu não era agradável com eles.

Eu não corri no meu ritmo normal. Acompanhei o dele, deixando que meu pai tomasse a dianteira vez ou outra, apenas porque parecia fazer bem ao ego masculino dele. Nós conversamos, nunca sobre a investigação, mas eu sentia que meu pai estava tentando. E isso era o suficiente, por enquanto. Ele não estava exigindo nada, dessa vez. Acho que o baque com a investigação realmente ajudou a colocar as coisas em perspectiva. Isso e me ouvir gritando que eu transei com o time de futebol americano quase inteiro. Ah, o constrangimento...

Antes, eu achava que eles queriam aquela fachada perfeita, sem falhas, e eu a sustentava para eles, sem questionar. Agora, eu começo a achar que meus pais, depois de tudo isso, apenas queriam me conhecer de verdade. Talvez tivessem sido duros e um pouco rígidos comigo, mas certamente tentavam me criar como acreditavam ser melhor. E eu sempre exigi deles, também. Eles me davam o que eu queria. Eles faziam tudo o que eu pedia. E isso era recíproco.

Mas isso não era uma família. Eles não sabiam como eu me sentia e eu só sabia sentir na pele as exigências, as demandas, as notas que deviam ser sempre altas. Eles não sabiam que me faziam mal, sabiam? Não acho que tenha sido proposital, mas, ainda assim, machucou. Se eu estava de volta, então talvez devesse tentar mudar isso também. Mudar a nossa relação parental defeituosa.

Nós almoçamos em família, pela primeira vez em muito, muito tempo. Em momento algum comentamos sobre a investigação. Em vez disso, falamos sobre a natação, sobre Columbia (se eles ainda me aceitassem, depois de ser acusada de assassinato), sobre o baile (que eu sabia que seria meu palco final), sobre quem seria meu acompanhante (e eu disse que talvez fosse sozinha). E, mesmo que todas aquelas coisas me causassem dor, era bom ver que eles estavam tentando saber mais. Era bom ver que meus pais ainda me amavam. Eu teria notado antes, se não fosse uma pirralha mimada o tempo inteiro.

Quando voltei para o meu quarto, usando roupas confortáveis e com o cabelo molhado por causa do banho, olhei meu celular novamente. Eu sabia que deveria manter minha distância, mas eu estava sem vê-lo há tanto tempo… Lá estava. Uma mensagem de , seguida de várias outras. Eu engoli em seco. Sabia o que aconteceria se eu olhasse pela janela, se eu o deixasse entrar no quarto. Meu corpo pedia por isso. Eu queria muito sentir o conforto de sua pele quente, de seu hálito refrescante, sentir os cachos de cabelo dele entre os meus dedos.

Nova mensagem recebida.
diz:
Olhe pela sua janela.


Mas eu não era um animal movido apenas por necessidade de carinho. Eu tinha que protegê-lo, assim como ele tentou me proteger. Eu fraquejei antes, fui burra, irresponsável e pouco lógica com tudo e ele acabou pagando por um crime que não cometeu. Preso, demitido, carregando o estigma de namorar uma aluna (maior de idade, sim, mas ainda uma aluna) e o estigma ainda mais marcante de ter matado alguém. Como eu poderia deixar isso acontecer de novo?

diz:
Você não deveria ter vindo. Os policiais querem me incriminar de qualquer forma e nós concordamos em nos afastar por um tempo.

diz:
Bem, você não matou ninguém. E me afastar não significa cortar contato.

diz:
Eles não acham isso. Você não sabe se eu poderia matar alguém ou não.

diz:
Poderia, claro. Talvez não da forma como eles imaginam.

Eu ri da sugestão na frase dele, de como aquilo soou dúbio e sexual. Eu queria muito deixá-lo entrar. E era exatamente por isso que eu não podia.

diz:
, eles acham que eu coagi você a matar por mim.
Eles não disseram, mas sei que acham isso. Então... Vá para casa. Podemos nos falar depois.
E procure um advogado.
PS: Você parece um pervertido.

diz:
Estou ofendido com a acusação.
Mas você está certa, eu fui idiota. Nos falamos outro dia.


Eu queria dizer que ele não é um idiota. Não é idiota se preocupar ou checar como eu estou porque passei o dia fora do celular, mas não posso deixar que ele se afunde por minha causa. Se ele se tornar o mesmo bobo apaixonado, sei que novamente se sacrificaria por mim e eu não quero que ele se anule por minha causa. Eu não quero que ele sofra por mim.

Vi o carro dele se acender e descer a rua, meu coração se apertando no perito vendo-o partir, mas isso era o melhor para ele e para mim. Eu já tinha tanto para me preocupar sem ter que mantê-lo fora da cadeia. Ele não sabe. Não sabe que eu vou morrer no final, não sabe que há alguém mais por trás de tudo isso. E ele não sabe que eu sei disso tudo. Eu sei o que vai acontecer a ele, a mim, a todos nós. E isso me tortura mais do que se eu não soubesse. Porque, se eu falhar, tudo vai acontecer da mesma forma e então eu joguei minha segunda chance no lixo. Então, não posso falhar. Nem por ele, mas muito mais por mim. Não é justo pagar por um crime que não cometi. Então, decidi que não vou pagar. Eu vou fazer meu perseguidor pagar. Se ele quer agir como se isso fosse um jogo, então eu devia aprender as regras e jogar também. Eu consigo fazer isso.

Eu acho que consigo, pelo menos.

Da outra vez, tinha ido até a casa de , tinha conversado com ele e me garantido que ele estava vivo quando saiu de lá. Eu abri a foto do corpo, procurando qualquer coisa que pudesse me dar uma pista de quando aquela foto foi tirada. Um relógio digital estava na mesa de cabeceira, mas só dois números zero podiam ser vistos. Então, alguém tirou aquela foto em uma hora exata. Desviei os olhos logo depois da descoberta. Eu precisava saber quando foi embora. E, mais do que isso, aquela foto podia estabelecer uma linha do tempo, mas disso eu não tinha tanta certeza, já que me lembro dos policiais dizendo que morreu por volta de meia noite. Sem as horas, eu não conseguia provar meu raciocínio e salvar o príncipe encantado que tentaria me resgatar a todo custo. É estranho como, apesar de tudo que eu sei, eu ainda me sinto completamente insegura sobre o que está por vir.

Era de se esperar que eu tivesse me tornado mais forte, mais calejada por tudo, mas todas as coisas horríveis que poderiam acontecer de novo apenas me deixavam com ainda mais medo porque eu as vivi antes. Porque eu sabia como tinha me sentido. Talvez seja porque eu não saiba de tudo. Há muita coisa que não revelei sobre esse mistério. E não sei se, mesmo descobrindo esses segredos, vou me sentir melhor. Talvez eu fique pior. Talvez eu ainda morra no final. Sou uma garota morta, afinal de contas. Então, até segunda ordem, até o dia do baile, não vou deixar nada como garantido. A minha certeza, a única que eu tenho, é de que vou morrer no final de tudo isso. Se for figurativamente ou não, ainda não sei, mas em menos de um mês irei descobrir.


Capítulo 32

Duas semanas e quatro dias para o baile.

O final de semana foi uma tortura. Passei dois dias revirando as memórias que eu tinha daquela semana, o que eu deveria saber, como deveria agir. Eu sabia que, assim que eu saísse do carro, passaria pelo mesmo escrutínio de antes. Que eu lidaria com os rumores, que eles me magoariam da mesma forma porque ninguém parecia acreditar em mim. A diferença era que, dessa vez, eu sabia o que esperar. Se eu estava pronta para passar por tudo aquilo de novo, no entanto, era a questão mais importante. E, pela tremedeira das minhas mãos, já dá para saber a resposta. Eu entraria de cabeça erguida, como da última vez, e não deixaria ninguém me menosprezar. Respirei fundo, engolindo o medo que começava a fazer meu estômago se revirar, e saí do carro.

O sol me cegou por segundos breves, uma pequena misericórdia do divino, se é que ele existe. E, quando comecei a andar até a escola, os cochichos começaram. Eram exatamente como eu me lembrava.

“Dizem que ela dormiu com o professor .”
“Eu ouvi dizer que contratou um cara da máfia para matar .”
“Eu aposto que era ela quem perseguia .”

Aqueles rumores pareciam tão ridículos. É claro, um deles era verdade, mas máfia? Perseguir ? Era tudo tão surreal, tão incrivelmente fictício. Mas, também, é incrivelmente fictício que alguém volte dos mortos.

“Ela nem é tão bonita assim, não é?”
“Ela é uma puta por ter feito isso com , isso sim.”
“Ainda acho que ela puxou o gatilho.”


Fingi que não os ouvia. Escutar esses murmúrios pela segunda vez era tão ruim quanto da primeira vez, mesmo sabendo do absurdo que eles representavam. Ainda assim, eu era a vítima. Eu estava sofrendo. E saber que ignoravam isso, que ninguém jamais me perguntou como eu estava, apesar de todos eles jurarem que eram meus amigos ou que ao menos gostavam de mim, apenas me mostrava que eu construí todo o meu futuro em cima de... Nada. Eles não eram meus amigos. Eles não gostavam de mim. No primeiro segundo em que identificaram alguma fraqueza na minha fachada, todos eles viraram as costas e passaram a me atacar. Era um comportamento tão arcaico, tão mesquinho e cruel que nem sei por que estou surpresa. Até algum tempo atrás, eu faria a mesma coisa. Então, por que me dói tanto saber disso agora? Só porque estou sentindo na pele o que já fiz incontáveis vezes?

Meus dedos ainda tremiam quando eu tentava acertar minha combinação no cadeado. Mesmo respirar fundo não adiantava para me acalmar. Ainda assim, eu precisava me manter forte. Se eles soubessem que me afetavam, então eu dava poder a eles. Era assim que funcionava. A minha única vantagem era saber exatamente como funcionava o tipo de sociedade canibal que era aquela escola. E eu não daria a eles o gostinho de me ver atordoada.

Mãos grandes tomaram meu cadeado, girando a conhecida combinação e fazendo o objeto emitir um clique e, em um passe de mágica, se abrir. Bufei, olhando para cima e encontrando . Era só o que me faltava.

— Eu não precisava da sua ajuda.
— Desculpe.

Nem mesmo fazer cara de labrador o ajudaria. Eu não estava me mantendo forte e impassiva para que algum cavaleiro viesse me salvar. Puxei a porta do armário com força, fazendo de tal modo que eu o escondesse de mim. Os cochichos tinham cessado. Eu sabia que eles estavam assistindo.

— Perderam alguma coisa aqui? — Elevei a voz, mantendo a pose calma e me virando para trás para verificar que, sim, diversos alunos fingiam fazer alguma coisa para ver o que aconteceria a seguir. Afinal, deveria me odiar, certo?

Pelo menos, alguns alunos tiveram a decência de sair de perto quando eu disse aquilo. Balançando a cabeça, voltei a pegar os livros que eu precisava para as aulas. , que agora tinha se movido para o outro lado, encostava-se no armário vizinho e me olhava em silêncio.

— O que é? — Perguntei, finalmente, depois de enfiar os livros na mochila e fechar o armário com um baque seco.
— Quero saber se é verdade.

Para ser bem sincera, não acho que mereça o tratamento que estou dando a ele. Ele sempre foi gentil, preocupado, sempre quis me agradar. Sei que estou sendo injusta, mas preciso que ele se afaste de mim. Não quero ter por perto o lembrete de que fui uma péssima namorada para ele. Que nunca o respeitei, que nunca gostei dele de verdade, que só estava ao lado dele por meus próprios interesses. É horrível pensar nisso. É horrível entender a pessoa ruim e gananciosa que eu fui, ainda mais quando olho para ele e só consigo enxergar dor. Eu o magoei. Sei que o magoei profundamente. Não gosto nem um pouco de mim nesse momento. Não gosto de ouvir minha voz confirmar que, sim, eu o traí. Que seu melhor amigo me perseguia e era obcecado por mim. Que eu amava outro homem enquanto namorava um garoto absolutamente cuidadoso e que me amava.

baixou os olhos. Vi seu maxilar se apertar quando ele respirou fundo. A plateia que nos observava tinha mudado o foco agora. Todos eles pareciam sentir muito por . Pobre , que terrível a sua ex-namorada, que vagabunda! Eu sentia o desprezo de todos eles crescendo. Sentia seus olhares recheados de julgamento, como se nunca tivessem pecado. Bem, queimem a bruxa, se quiserem.

— Se ajuda saber, eu sinto muito.

E sentia, mesmo que não fosse pelos motivos certos. Acho que, se não tivesse transado com durante aquela festa, nada disso teria acontecido. Se eu pudesse ter voltado para o dia da festa, então eu teria ido embora com , trancado todas as portas e dormido a sono solto. Mas, esse passado, ao menos, não pode mudar.

Ele ficou em silêncio. Não me disse nada nem mesmo quando o sinal tocou e me deu as costas. E apesar de me sentir mal por ele, porque foi apenas um dano colateral em meio a tudo isso, eu tinha algo a mais para me preocupar. Precisava começar a investigar tudo o que, no passado, eu tinha resolvido deixar de lado. Afinal de contas, se fosse tomar a minha primeira vida como exemplo, então a polícia não me ajudaria em muita coisa. Para eles, eu era culpada. Então, cabia a mim provar a minha inocência.

Vi pelos corredores. Ela parecia linda, ainda que estivesse sem maquiagem e com os cabelos muito lisos, sem qualquer pingo do mouse que ela usava para avolumar os fios loiros. andava como se fosse a própria viúva de . Era ridículo. Então, o que eu fiz foi simples: eu a parei no corredor, segurei seus ombros, olhei em seus olhos... E eu a abracei.

Você sabe o que dizem: mantenha seus amigos perto e seus inimigos ainda mais perto. tinha tentado me jogar debaixo do ônibus. E, no passado, confrontá-la diretamente foi tão eficaz quanto dar murro em ponta de faca. Por isso, agora, eu tentaria ir por outra rota.

— Eu sinto muito, querida, sei que o amava. — Sussurrei para ela, mas alto o bastante para que seu pequeno séquito me ouvisse.

Eu não podia ser vista como vilã. Isso danificaria meus planos. Se as pessoas continuassem a me desprezar, então seria ainda mais fácil para os policiais justificarem que eu era uma assassina terrível. Na primeira vez, me rebelei, ameacei pessoas, bati em uma das Jessica, fiz tudo o que esperavam de uma vilã e isso me levou para a cova. Quando eu era boazinha, todos me adoravam. E eu construí essa imagem com bastante cuidado, portanto, estender a validade dela não seria nenhum problema.

me abraçou de volta. Com força. Para alguém de fora, talvez esse parecesse um belíssimo momento de reconciliação.

— O que você quer?

sussurrou, tão baixo que eu não ouviria se não estivesse esperando por aquela reação. Quase sorri, mas precisava manter o teatro. A olhei, testa franzida e olhos apertados: a imagem perfeita da confusão.

— O que quer dizer?

Eu a abracei novamente, aproveitando a diferença de altura para me abaixar e beijar seu cabelo. Sussurrei de volta:

— Da próxima vez que tentar me ferrar com a polícia, não vai ser um abraço que você vai ganhar. — Me afastei dela e acariciei seu rosto. — Eu estou com você, .

Seu sorriso amarelo era meu maior triunfo. Vê-la sem saber como reagir me encheu de orgulho de mim mesma. Me despedi do grupo, indo para minha primeira aula do dia. Já estava atrasada.

A escola se parece muito mais com uma selva do que com uma sociedade civilizada. Como animais, os mais fracos eram considerados presas. Os populares eram os predadores. E havia, ainda, aqueles que se aproveitavam das sobras: perdedores demais para andarem com os populares, populares demais para serem meros perdedores. A classe média da John Locke era um grupo amplo. Ao fundo do refeitório, no entanto, apenas uma pessoa se sentava sozinha. O local apenas era vazio porque era perto da lata de lixo. E só uma pessoa era pária o suficiente para se sentar ali. Pousei minha bandeja de almoço na frente de Maggie com um estalo seco do plástico contra a madeira. Ela, assustada, me olhou com espanto.

— Não se levante.

Maggie permaneceu imóvel. Assustada demais para me contrariar. Parou de comer imediatamente, observando cada movimento meu. Suspirei, percebendo que ela não relaxaria se eu estivesse ali.

— Não precisa me olhar assim. Eu só vim almoçar com você.
— Por quê? — Perguntou, finalmente. Ao nosso redor, os cochichos se intensificavam. Enfiei uma garfada de carne com batatas na boca.
— Porque eu errei em fazer bullying com você. Eu não quero mais fazer isso. E espero que você me perdoe com o tempo. Acho que podemos ser amigas, um dia. Se você quiser.

Maggie ficou pálida. Não dava para saber se tinha me ouvido, porque não demonstrou nada, a não ser a lividez de seu rosto. Voltei a comer, despreocupada. Eu não vou falhar com você dessa vez, Maggie. Saber dos danos que causamos a ela é ainda pior. Sei que, a qualquer momento, Maggie poderia pular do telhado. Sei que, na verdade, todas nós a empurramos, só porque queríamos sentir que éramos superiores a alguém. Então, dessa vez, não farei isso. Sei que é pouco tempo. Sei que estou estendendo a mão agora porque a torturei por tempo demais, mas acredito que ela ainda tenha salvação. Maggie não precisa morrer.

Ouvi passos próximos, seguidos de outra bandeja pousando-se na mesa que Maggie e eu dividíamos. Keyshia se sentou e abriu um sorriso largo.

— Se importam se eu me sentar aqui também?

Sorri para minha amiga, aliviada. Agora, ninguém ao menos se importava em fingir que não estavam prestando atenção. Os outros alunos cochichavam abertamente, apontando para a nossa mesa. Maggie parecia incomodada, mas ainda tentava digerir o que estava acontecendo. E ... Parecia lívida. Do outro lado do refeitório, ela me encarava sem expressão, mas eu a conheço melhor do que isso. Sei que ela sente que isso é um ato de guerra. Conhecia sua mente diabólica. Sei como ela funciona. Para , tirar um tempo para almoçar com seu saco de pancadas preferido era a mesma coisa que tirar doce da boca de uma criança. Sorri e acenei para ela.

Sim. Era um ato de guerra. Não a , especificamente, mas a seu pequeno reinado de terror e intimidação. Estava na hora de abalar algumas estruturas enquanto sei que, no final, talvez eu não sobreviva. Mas talvez elas possam.

(...) Eu temia que isso acontecesse. Era difícil pra mim ouvi-lo me chamar e ter que ignorá-lo daquela forma.

!

correu até mim, a pele brilhante de suor. Suspirando, me virei da porta do carro. Eu sabia o que ia acontecer. Sabia a conversa que teríamos. Eu não quero torturá-lo dessa maneira. Não sei por que ele quer se torturar assim.

— Volta para o seu treino.

Óbvio que, até que eu não seja mais considerada suspeita de homicídio, os meus treinos de natação ficariam suspensos. Ninguém quer uma delinquente no time.

— Você transou com ele?

Direto. Decidido. quase parecia com alguém que me amava de verdade. Com alguém que me queria de volta.

— Sim. Eu já disse antes.

Ele estava magoado. Eu podia quase ver isso nos olhos dele. O quanto ele queria que tudo fosse mentira, que eu fosse uma vítima perfeita, alguém que não contribuiu em nada para a tragédia que aconteceu. Porque, para ele, se eu fosse uma vítima perfeita, então poderia ficar comigo. E, talvez, ficar com ele fosse o que eu precisava fazer no momento, mas nem eu seria tão fria. Nem eu conseguiria usá-lo mais do que já fiz. Ele não merece isso.

— Por quê? Eu não fui um bom namorado pra você? Você teve que ficar com o ?

As coisas estavam tomando um caminho dramático rápido demais. Ele se aproximou de mim, o maxilar tenso como antes. E ele era gigante. Alto, musculoso, forte o suficiente para me bater, se quisesse. Forte o suficiente para matar alguém?

Eu não sabia o que responder. Como dizer a ele que nosso namoro era apenas mais uma peça no meu teatrinho? Que eu queria uma vida perfeita e que ele se encaixava nisso? Ou que eu achava que seríamos incrivelmente infelizes se continuássemos insistindo nesse relacionamento? Porque tudo isso era verdade, mas eu não queria quebrar seu coração.

, deixa isso pra lá.
— Eu quero saber. — Ele se aproximou, rosto vermelho e brilhante de suor. — Eu mereço saber.
— Você não era um namorado ruim. — Afirmei, tom cansado, tentando não quebrar seu frágil ego de garoto bonito.
— Então por que fez isso?

Não há um bom motivo. Eu queria dizer a ele que me sentia sozinha. Que o sexo era insuficiente. Queria deixar bem claro que não estava feliz. Mas o que fiz a foi apenas egoísta. Eu podia dar motivos, mas não seriam verdadeiros. Eu só pensei em mim. Eu só queria me divertir. E eu não me importava com ele o suficiente para pensar que eu poderia magoá-lo assim. Abanei a cabeça, gesticulando negativamente e me virando para o carro.

— Me fala a porra do motivo!

Ele nunca gritou comigo antes. Isso foi o que mais me causou estranheza. Não me assustei com o grito. Não senti medo de , quer dizer, eu conhecia e ele não machucaria uma mosca sequer. Eu acho. Por um momento, fiquei muda, encarando meu reflexo no vidro fumê da janela do motorista. Estava dividida entre o que conhecia dele e o que eu poderia ter ignorado durante todo esse tempo. Mas, racionalizei, ele está magoado. Ele não sabe por que terminei com ele. Ele tem o direito de ficar chateado, ainda mais quando eu admiti que o traí. Me virei para trás novamente, ele ainda aguardava uma resposta.

— Não existe motivo, . Eu não queria magoar você, também. — Eu só não me importava com você o suficiente para ligar para os seus sentimentos. — Não sei te dizer o que eu estava procurando, mas eu acabei percebendo que não amava você. E isso é injusto. Você merece alguém que te ame.
— Você não consegue nem me dizer por que decidiu me meter um chifre?

Bem, eu poderia dizer. Poderia dizer que ele simplesmente não transa bem. Ou que eu simplesmente não me adaptei a ele na cama. Certamente, alguém deve achar que ele é bom nisso. Mas seria justo?

, volte para o treino. Não importa agora. Nós já terminamos.
— Eu amava você, ! — Não importava o que eu dissesse, ele apenas ficava mais chateado. — Primeiro, você termina do nada, depois eu tenho que saber pela escola inteira que você transava com escondido!

Eu não o corrigi. Talvez devesse. Acho que deveria ter corrigido. Eu não transava com , apenas transei uma vez. Qualquer coisa que tenha vindo depois disso, certamente não foi porque eu queria.

sempre me disse que você não prestava, ele só esqueceu de se incluir nisso. Vai se foder, .

Eu o olhei ir embora, desculpando-o por todos os erros que cometeu comigo, ainda mais agora. Esse lado magoado, com raiva, que saiu pisando forte, era desconhecido pra mim. E quando me virei para abrir a porta do meu carro, me perguntei se eu sempre tinha desculpado seus erros dessa forma. Se eu sempre o enxerguei como um garoto que não sabia bem o que estava fazendo porque eu o magoei. Naquele momento, parecia que eu nunca tinha conhecido de verdade. Sempre achei que todas as suas falhas eram apenas porque ele era um jock imaturo, que não sabia muito bem como a vida funcionava. Agora, no entanto, eu me pergunto se ele realmente era assim ou se foi essa a imagem que criei para ele na minha cabeça.


Continua...



Nota da autora: (03/07/2021) Quero pedir desculpas pela demora, a fanfic não tá abandonada! A autora aqui que é apenas muito enrolada com prazos e, como todo mundo, ficou bastante desanimada na quarentena.
Comentários, cobranças ou reclamações pela demora das atualizações, meu twitter é @seastarzinha. Beijinhos e até a próxima!




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