Capítulo 15
’s POV
— Parabéns, ! Você acabou de destruir o pequeno passo que demos.
Ele deu alguns passos para trás. O arrependimento por ter tido a ideia estúpida de descer até ali era claro em sua expressão, mas eu não vacilei. Por mais perdido e desolado que seu olhar se mostrasse, eu me recusava a aceitar que aquilo estava acontecendo de novo, e dessa vez ainda mais sem motivo, coisa que eu nem achava ser possível.
Eu não era sua namorada, não devia explicações sobre o que eu fazia ou deixava de fazer, especialmente quando ele estava por aí fazendo a mesma coisa. Eu não era sua propriedade para guardar e manter todo o resto do mundo – ou, no mínimo, aquela parte do sexo masculino – afastado. Nunca fui.
Eu sempre soube que aquele papo de “eu mudei” era conversa furada, mas, pela primeira vez, eu fiquei decepcionada por ver aquilo se confirmar em frente aos meus olhos. Nesse rápido segundo, eu percebi que uma pequena parte de mim gostaria que pelo menos esse pedacinho fosse verdade. Descobrir que não era doeu mais do que eu gostaria. Ser parte de uma cena daquelas mais uma vez doeu mais do que eu gostaria. Todas as lembranças ruins voltarem mais fortes do que nunca doeu mais do que eu gostaria. Porém nada superava o desapontamento comigo mesma de ainda ser afetada por coisas que ele fazia.
Não pude deixar de pensar que o efeito talvez não viesse com tanta força se eu não tivesse abaixado tanto a minha guarda nas últimas semanas. Eu me permiti deixar de provoca-lo a cada segundo, deixar de tentar machucá-lo com as minhas palavras, ter rapidamente interrompidas, mas ainda assim pequenas conversas com ele. Deus, eu me permiti flertar! Não porque eu tinha a intenção de fazer algo a mais do que isso, eu só adorava ver a cara abobalhada dele quando o fazia. Era um jogo perigoso, pois não tem nada de repulsivo em sua aparência e, se eu não fosse tão orgulhosa, correria o risco de deixar o meu corpo falar mais alto. Ainda assim, era divertido. Até ele estragar tudo. Porque é isso que e fazem: fodem com tudo e todos no mais leve vacilo.
Deviam nos dar um prêmio ou algo do tipo.
Porque o meu dia não estava ruim o suficiente (alô, lavadora de carros, coisa criticada por mim mesma no meu primeiro dia nesse campus), avistei Ryan se aproximando alguns metros à frente. Espera que fica pior... Ele vinha com o Nick a tiracolo, cara que eu rejeitei há pouco tempo e parcialmente culpado pelo ataque do . Eu o daria 10% porque a culpa ainda era quase que totalmente do sem noção que agora me encarava com cara de cachorro com fome.
— , eu preciso de você lá em cima. Agora! – o nervosinho de sempre disse quando chegou perto o suficiente.
Se você está pensando que ele iria resistir, jogar motivos para ficar ali estendendo o meu sofrimento ou apenas ignorar Ryan e qualquer coisa que saia da boca dele, você se enganou. Muito ciente da merda que havia acabado de fazer, ele apenas olhou rapidamente para cada um de nós e forçou um sorriso que mais parecia lhe causar dor.
— Ok. – falou simplesmente e saiu andando, tão rápido quando havia chegado até ali.
— Viu como foi fácil, Nick?
O meu ex-peguete assentiu e sorriu educadamente para mim antes de seguir o amigo. Que na verdade não era tão seu amigo assim. Ryan ficou para trás por mais alguns segundos.
— Você! – começou enfiando aquele dedo intrometido na minha cara. – Para de mexer com a cabeça dos meus competidores!
— Cai fora, Ryan! – disse, saindo de algum lugar atrás de mim. Sem muito mais o que dizer, ele obedeceu. – O que foi isso? – perguntou, tomando o lugar dele a minha frente.
— E eu sei? O tem algum tipo de problema naquela cabecinha dele. – respondi, engolindo em seco.
— Tá tudo bem?
Dei de ombros.
— Vai ficar. Isso só me trouxe... Lembranças, sei lá. Culpa minha por começar a acreditar que ele realmente havia deixado esse lado para trás. – disse e ela assentiu, concordando, apesar de eu ter certeza que lá no fundo ela queria defender o amigo.
— Você quer ir trabalhar em outra coisa? Posso te colocar na lanchonete.
Ri, negando prontamente.
— Eu quero manter a maior distância possível da Mina e seus brownies especiais. Já tenho confusão demais para o meu lado! Além do mais, eu prometi que ficaria pelo menos algumas horas aqui, certo? Então vou ficar.
E lá fui eu tentar, pela terceira vez, fazer a simples a ação que era encher um balde de água. não teimou comigo. Ela estava sendo consideravelmente mais fácil de lidar ultimamente. Comigo, pelo menos. Culpa por causa do que me escondeu? Talvez. Eu que não iria reclamar.
— Tudo bem, qualquer coisa me chama.
Eu odiava estar ali na lavagem de carros. Não importava o quanto me dissessem que não era algo sexy nem nada do tipo, eu ainda tinha plena consciência de que esse não era o pensamento de todas aquelas pessoas, especialmente caras, que passavam na esperança de ver alguma camiseta branca molhada. Mas Nikki havia me colocado ali, então eu lavaria o meu máximo de carros e conseguiria muito dinheiro pelo bem da minha irmandade. E pela queda da Lambda.
Falando nela, os rapazes decidiram nos copiar e fazer uma também. Não que aquilo fosse uma exclusividade da Kappa Kappa Gamma, só que eles não faziam algo assim há anos. Talvez nunca. Provavelmente na correria da preparação às pressas, eles ficaram sem opções e optaram por roubar o nosso ato clássico. Foi injusto, mas esperto, mesmo que todo o dinheiro viesse em uma quantidade absurda de moedas. Aquela era uma rua movimentada, não só por causa das pessoas que passavam ali diariamente, mas também pelas que decidiam cortar caminho por dentro do campus. Isso sem falar nos espertinhos que já sabiam as datas de tudo que acontecia naquela universidade. No final, era um dos dias mais lucrativos da semana, perdendo apenas para o último.
Os três últimos dias da semana da inclusão eram abertos para todo e qualquer público. E quando eu digo todos, eu digo todos: muitos pais apareciam por aqui nesses dias. Eu mesma estava esperando os meus a qualquer momento. O público principal ainda eram os universitários porque, sejamos sinceros, não tem nada melhor que um cardápio inteiro de coisas divertidas, gostosas e interessantes para fazer depois de um dia de aula. Contudo, toda a divulgação feita semanas antes nas redes sociais traziam também pessoas de fora, ex-estudantes, membros daquelas instituições gregas que já haviam se formado, próprios funcionários dali etc. Esse era um dos motivos pelo qual devíamos ter deixado de vender certas coisas a partir dali, mas o número final dos nossos ganhos no dia anterior fora tão grande que Nikki deu a permissão que a Mina precisava para continuar os seus negócios, desde que triplicasse o cuidado. Nós já sabíamos que os rapazes venderiam drinks que realmente vinham com álcool e aquilo era bem mais arriscado. Tínhamos uma receita para o desastre, ao ponto de não desejarmos que eles fossem pegos pois isso poderia significar algum tipo de inspeção no nosso lado também e aí, sim, a coisa ficaria feia.
Depois de quase uma tarde inteira lavando o carro dos outros, ouvindo cantadas que ficaram cada vez mais vergonhosas, mostrando o dedo do meio para algumas pessoas, xingando alguns clientes, Nikki fez um convite para que eu me retirasse daquele lugar. A lanchonete era o único lugar precisando de gente, então fui obrigada a ir para lá. Cheguei a tempo da visita da coordenadora, que não perdeu a oportunidade de experimentar praticamente tudo do que tínhamos disponível. Mina, como a perfeita mentirosa que era, passou pelo teste sem maiores problemas.
No final da tarde, nós fomos direto para casa para ter uma reunião e, de quebra, evitar os rapazes e qualquer problema que eles pudessem nos trazer. Como de costume, todas nos sentamos ao redor da sala de estar, atentas para o que quer que fosse que a Nikki tinha a dizer. Aqueles pequenos encontros geralmente funcionavam apenas para que discutíssemos pequenas coisas, aperfeiçoamentos e coisas do tipo. Por exemplo: se no dia seguinte houvesse mais uma lavagem de carros, ficaria definido ali que eu não participaria mais. Nada de decisões grande pois essas já estavam tomadas. Ou pelo menos era o que pensávamos. Por isso, todas ficaram surpresas com o que a nossa líder tinha a dizer.
— Nós precisamos bolar algo novo para amanhã. Algo espetacular!
O choque foi unânime. Era certo que amanhã nós teríamos vários foodtrucks, o que já chamava pessoas, além da volta de algumas Kappas formadas que vieram dar palestras sobre seus trabalhos e experiências no primeiro e segundo dia. Uma delas estava trabalhando no desenvolvimento do protótipo de um robô com sua equipe e o traria para exibição! Era incrível! Nós estávamos dispostas a conquistar aquela vitória pelos estômagos e pelo cérebro. No entanto, aquilo não parecia mais ser o suficiente.
— O que você quer dizer? – alguém que eu não via perguntou.
Exatamente o que eu disse! Eu sei que nós temos tudo pronto e tudo mais, só que eu tenho essa sensação muito grande de que os rapazes têm algo a mais preparado para amanhã. Nós precisamos nos garantir porque eu posso não ter entrado nisso por boa vontade, mas se viemos até aqui, é para vencer!
Um pouco afetadas pela intensidade do seu tom de voz ao dizer aquelas palavras, todas nos calamos por algum tempo. Eu tentei pensar em algo que já não tivéssemos trazido ou que os rapazes não tivessem trazido e nada me vinha a mente. Não parecia haver atração – possível na última hora – no mundo que ainda não tivesse sido usada.
— Mas... Você quer o que? Sei lá, um artista? Como eles trouxeram a contorcionista no primeiro dia? Ela fez sucesso. – Mina disse.
— Qualquer coisa boa o suficiente que consigam pensar. Qualquer coisa!
Eu conseguia entender a vontade gigantesca da Nikki de melhorar ainda mais a nossa semana da inclusão. Ryan ficava no pé dela o tempo todo, para se vangloriar ou apenas para encher o saco, como se ele não tivesse nada o que fazer a tarde inteira. Eu havia decidido entrar em uma irmandade por muito menos do que aquilo.
— Que tal um malabarista?! – Mina sugeriu. – Malabarismo com pinos, espadas, bolinhas, arcos e...
— Já sei! – Ashley a interrompeu. – Que tal um cinema ao ar livre?
Todas ficamos maravilhadas com a ideia imediatamente, esquecendo do que a Mina falava. Ela bufou, nada feliz com aquilo, especialmente com quem havia tirado a atenção da sua ideia. Eu concordava que a Ashley podia ter esperado para falar, poderia ter usado um pouco daquela tão famosa educação, mas também concordava que sua sugestão era boa demais para ser ignorada.
— Como nós faríamos isso? – Nikki perguntou a questão que estava na cabeça de todas nós.
— Bom, eu tenho um amigo que trabalha com isso e ele meio que me deve um favor por ter divulgado um desses no meu canal há um tempo. Eu posso pedir a ajuda dele e, com sorte, talvez seja possível organizar tudo em tão pouco tempo.
— Mas não vai ser de dia, vai? – April perguntou.
— Não, amanhã nós vamos até de noite! E sabe o que é melhor? Nós podemos aceitar o pagamento para participação em dinheiro ou alimentos para doação. Eu converso com a Alice, vejo se dá para converter o valor deles depois.
— Genial! Eu vou ir agora mesmo fazer o design dos panfletos para a gente divulgar amanhã durante a tarde! Se eu terminar a tempo, consigo mandar imprimir ainda hoje para pegar no horário do almoço. – dizia, já de pé e a um passo de correr escadas acima, esperando apenas pela resposta da Nikki.
— Perfeito, ! Obrigada! Enquanto isso a Ashley vai ligando para o amigo dela e eu vou atrás de uma boa localização, assim temos certeza que é possível e não gastamos dinheiro com impressão à toa.
Em não mais que dez segundos, as três haviam desaparecido, nos deixando sozinhas na sala. Como não podíamos nem queríamos ficar ali paradas, de braços cruzados, sem fazer nada, começamos a discutir outras coisas, como: o que vender de comida. Ficamos com nachos, pipoca, cachorro quente e as usuais bebidas, tudo fácil e rápido. Usaríamos a lanchonete 360°, pois não compensava montar outra estrutura para aquilo. Além do mais, aquele seria o último dia de uso dela, então o trabalho para desmontar e montar novamente no lugar do cinema (que provavelmente seria afastado de onde estávamos) não se tornaria um problema tão grande.
Também definimos alguns horários e pontos de divulgação dos panfletos para que pegássemos não só o público que já estaria lá como também aquele passando por perto. A cereja do bolo foi decidir convidar todos os rapazes gratuitamente, só para observá-los assistir a nossa vitória. Não podíamos cobrar porque eles não eram tão estúpidos a ponto de contribuírem para o nosso caixa diretamente. E depois da pequena visita que fizemos a eles no dia da feira de adoção, Ryan com certeza não resistiria e nos daria o desprazer da sua presença.
Não muito tempo depois, Nikki e Ashley voltaram com os oks que precisávamos. Já ficou enfiada com a cara no seu notebook pelas próximas duas horas e ai de quem a interrompesse em seu processo de criação.
Mais tarde, com a encomenda dos panfletos feiras, não nos restava muito o que fazer naquele dia, então acabamos indo para a cama cedo a fim de descansar muito para amanhã. Cansada como eu estava, o sono chegou facilmente, mas como nada na minha vida é fácil assim, uma DR me impedia de mergulhar nele.
— Não foi de propósito. – se defendeu falando baixinho.
ALÔ! Estávamos no mesmo quarto. A única maneira de eu não ouvir seria com mímica. Eu cheguei a sugerir a ideia, no entanto, elas não ficaram muito felizes.
Por mais que gostasse de todo o negócio do cinema ao ar livre, Mina ainda estava sentida pela ter se apressado tanto para abraçar a atração. Ela podia lidar com o resto da casa deixando sua ideia de lado tão facilmente. Com a sua namorada, não.
— Você podia pelo menos não ter corrido para fazer o design tão rápido.
— Eu não pensei! Você sabe como eu me animo com essas coisas. Não quis te deixar mal.
— Mas deixou.
Se eu não tivesse com tanto sono, acharia engraçado a Mina ser tão relaxada com tudo, menos com coisas que envolviam sua ex-namorada. Não que eu tivesse muita moral nesse departamento.
— Ah, Mina! – resmungou, revirando em sua cama.
Agora que eu e a April sabíamos de tudo, elas dormiam uma na cama da outra de vez em quando. Porém hoje o casal estava separadíssimo.
— Agora a Ashley deve estar lá, zombando sobre o que aconteceu mais cedo com as amiguinhas dela.
— Agora a Ashley deve estar dormindo, como o resto da casa também está e como eu queria estar. – me intrometi, falando abafado por estar com o rosto jogado contra o travesseiro. – Aliás, desde quando você se importa?
— Eu não me importo. – Mina respondeu. – Só é um bom argumento para ser usado.
— Vocês têm o dia inteiro para discutir isso amanhã. Vamos dormir! – implorei.
— Para de drama, . A April tá dormindo, você também consegue. – disse e eu senti o impulso de mostrar a língua para ela, se não fosse o escuro e a voz que soou acima de mim.
— Na verdade, eu não estou. É que eu sou quieta, diferente da . – April falou baixinho, como de costume.
— Eu senti uma amargura nesse tom, April Spring?
— Sim. Fica quieta porque até você se intrometer elas eram duas, agora somos quatro.
Abri a boca, em choque com a audácia do pequeno ser humano. E então sorri.
— Nós estaríamos começando outra DR agora mesmo se eu não estivesse tão orgulhosa do tamanho dessa atitude.
Isso não fez com que a Mina e a desistissem de teimar uma com a outra. Eu sabia que havia durado ainda mais que trinta minutos, mas nesse ponto meu cérebro já estava muito cansado com a repetição infernal e decidiu finalmente dormir um pouquinho.
Aquela quinta-feira foi tão, tão, tão cansativa que em alguns momentos eu considerei simplesmente jogar a toalha e parar por ali mesmo. Se meu orgulho não fosse tão gigantesco e a diversão não valesse tanto a pena no final do dia, há grandes chances de que eu o teria feito.
Nikki acabou estando certa: a Lambda realmente preparou algo incrível para aquele dia. Eles não só expandiram o Lambda Chinder como também investiram em um playground! Montaram uma área ainda mais cheia de jogos, desde pac man até ping pong. Isso sem falar na cabine de fotos que era um assalto de cara e mesmo assim havia uma fila gigantesca de pessoas esperando pela sua vez. Eles não estavam exagerando quando disseram que iriam investir na diversão... Eu duvidava que existisse um jogo no mundo não contemplado por aqueles rapazes.
Eu e mais algumas garotas fomos fracas e passamos uns bons minutos encarando toda a estrutura, tentando conter o impulso de ir lá jogar só em uma ou duas máquinas. Mas sabíamos que se Nikki nos pegasse, voltaríamos para o nosso lado puxadas pelas orelhas, então não arriscamos e cada uma foi para a sua função do dia.
Me colocaram como responsável por controlar o fluxo na demonstração da mulher que trabalha com robótica. Seu nome era Catherine Sullivan e ela fez bastante sucesso, o responsável sendo o estranho pedaço de lata que ela trouxe. Feio, porém bem incrível. Apesar dela falar um pouco sobre si mesma e sua carreira, era óbvio no que as pessoas realmente se interessavam. Tudo acontecia em uma tenda fechada para que o barulho do lado de fora não atrapalhasse e cada sessão durava cerca de 20 minutos. Eu cuidava disso e controlava a entrada e saída de todos, o que significava passar a tarde ouvindo praticamente as mesmas coisas algumas dezenas de vezes. No final do dia, eu sabia até o horário em que ela havia nascido.
O dia até foi interessante, mas todas ansiávamos mesmo pela noite. Começaria às 21hrs e o filme escolhido para exibição foi Ghost. Particularmente, eu escolheria outro, mas foi esse que a votação elegeu, então fiquei quieta. Eu cheguei uma hora antes para ajudar nos últimos detalhes e acabei perdendo meu tempo, pois tudo já estava praticamente pronto. Nós não tínhamos uma tela gigantesca e moderna porque tudo foi feito em cima da hora, mas tínhamos uma grande parede branca e uma espécie de tecido trazido pelo amigo da Ashley, que teoricamente melhoraria a imagem. Também não tínhamos cadeiras, mas essa parte foi de propósito. Convidamos as pessoas a trazerem panos, cobertores ou edredons onde pudessem deitar e ficar mais confortáveis do que numa cadeira de plástico que pode ceder facilmente na grama do terreno.
Logo as pessoas começaram a chegar e ficou claro que usar um lugar com espaço de sobra foi uma ótima ideia, pois elas se acomodavam aos montes. Pouco antes do filme começar, os rapazes também deram as caras. Alguns pareciam realmente animados com a ideia do cinema ao ar livre enquanto outros tinham o bico lá no chão. Não preciso dizer que o Ryan fez um escândalo mais cedo quando ficou sabendo, preciso?
— Isso é contra as regras, Nichole! As atrações acabam às 19, no máximo 20hrs, e tem sido assim por anos! Você não pode chegar com as suas ideias novas e mudar todo um sistema! – ele tagarelou.
Acabou que conseguiu o que queria, se o que ele queria era arrastar a Nikki para o escritório da Alice, que já não aguentava mais a nossa presença, e confirmar que nós tínhamos toda a autorização necessária para fazer aquilo.
Eu não vi imediatamente e agradeci por isso. Ainda estava surpresa e um pouco chateada pela cena do dia anterior. Só um pouco porque eu me recusava a deixar atitudes como aquelas voltarem a infernizar a minha vida. No entanto, eu sabia que aquilo não duraria para sempre. Ele só precisava de um tempo para se preparar e vir me encher o saco. Nem um pouco a fim de ouvir, eu o daria o tempo que ele quisesse.
Como previsto, o lugar lotou ao ponto de algumas de nós termos que trabalhar como guias, encontrando lugares vazios para os que não saíram de casa cedo o suficiente. Não estava reclamando, é claro. Mais dinheiro para o nosso bolso, mais próximas da vitória ficávamos.
No meio do filme, chegou a minha hora de trabalhar na lanchonete junto com a April. Eu fui animadamente, pois já havia assistido aquele filme vezes demais com a minha mãe, a fã número um da Demi Moore. Crianças normais assistiam a filmes da Disney, eu assistia Ghost pelo menos uma vez na semana.
— Será que nós podemos comer? Eu tô com fome. – April perguntou, olhando com grande interesse para as salsichas cozidas.
— Não tem ninguém aqui agora, acho que sim. – respondi enquanto colocava uma boa quantidade de milho na panela para fazer mais pipoca.
— Eba!
Animada, ela se pôs a montar um hot dog especial, com direito a duas salsichas e molho extra. Observei admirada a fome da garota que havia jantado há não mais que duas horas e acabei por concluir que era tempo o suficiente, eu mesma estava ficando tentada a preparar um para mim. Enquanto não fazia isso, eu dei atenção a minha pipoca, sem nunca deixar de ouvir o quanto a refeição dela estava boa com vários “hmmm”, “yammm”, entre outros.
— Ei! – eu ouvi dizer não muito tempo depois, mas os meus olhos foram pra reação da April. Ele pegou ela bem no meio de uma grande mordida, o que a constrangeu tanto que sua pele mudou drasticamente do pálido ao vermelho.
— Oi. – ela respondeu, tampando a boca cheia.
Eu ri e balancei a cabeça antes de fazer o mesmo.
— E aí.
Notei que estava ao seu lado, mas se ele queria me ignorar, ele também seria ignorado. O único envergonhado ali era ele.
— Nossa, isso parece bom. – o também esfomeado disse, encarando o lanche dela.
— Quer?
Sendo o que era, ele estendeu as mãos para aceitar. A minha foi mais rápida e estapeou a dele antes que chegasse ao hot dog.
— Se quer, compra! São três dólares e nós precisamos do seu dinheiro.
Ele me encarou de boca aberta, extremamente ofendido. April riu e colocou o seu de lado para preparar outro.
— Tá tudo bem, eu monto um tão especial quanto o meu para você.
— Se ir com salsicha extra, são quatro dólares. – informei.
— O que!? , quando o sistema capitalista tomou conta de você? – questionou e eu dei de ombros. — Quando a fraternidade do seu amigo nos desafiou.
— , você me deve quatro dólares.
— Então, ... – eu comecei, com um sorriso maldoso nos lábios enquanto a April trabalhava. – Comprando comida agora, no meio do filme? É quase como se você tivesse esperando alguém... Não é engraçado, April?
Ela deu um sorriso nervoso, ciente de onde eu estava indo, e não me respondeu. , entretanto, não se deixou abalar.
— Com toda essa correria, eu não via a April há alguns dias. Senti a falta dela. Tem algum problema com isso?
Eu definitivamente não tinha problema nenhum. Muito ao contrário, aquilo me mostrava que ele havia decidido investir no que quer que fosse aquilo e só me deixava mais animada ainda. Não podia dizer o mesmo da minha amiga, que parecia querer se esconder debaixo do balcão.
— A-a-aqui o seu la-anche. – ela gaguejou, entregando a ele e eu juro que sua mão tremia.
— Problema nenhum. – respondi, sem deixar de sorrir.
Ele percebeu o tamanho do nervosismo dela, então se apressou para se retirar, entendendo que as coisas com a April nunca eram simples.
— Ai meu Deus, meu corpo inteiro tá suando! – ela disse assim que ele saiu, se apoiando no balcão e procurando qualquer objeto para se abanar.
Eu ri, me divertindo mais do que nunca com aquela visão.
— Vocês dois ainda vão me garantir situações hilárias!
Aquela noite foi longa. Quando todos foram embora, nós ainda tivemos que ficar para arrumar tudo, inclusive limpar já que as pessoas de Los Angeles não eram lá muito educadas. Além disso, se você pensou que o Ryan iria embora sem mais uma de suas provocações, você errou rude.
April, Nikki, e eu estávamos na lanchonete fazendo a última contagem do dinheiro e alimentos arrecadadod com os ingressos para o cinema + as comidas vendidas quando ele chegou, acompanhado do garoto com cara de criança que eu nem sabia o nome, mas me irritava por existir. Eles pigarrearam para chamar a nossa atenção.
— Nós também decidimos inovar, sabem? – Ryan falou diante das nossas expressões de tédio, nos recusando a dar algum tipo de atenção para o comportamento desagradável dele. – Conversamos com a Alice e ela aprovou a ideia.
— Legal, Ryan. – Nikki murmurou, mais irônica do que nunca.
— O nosso playground vai abrir amanhã de tarde para quem quiser jogar um pouco. – ele informou.
Para ser honesta, eu quis xingar. Amanhã nós tínhamos uma festa de noite e nada além disso, todas as casas do campus faziam igual nesse quesito. Mas ao ver a calma das outras garotas, eu segurei a minha língua.
— Nós realmente não nos importamos com o que você faz ou deixa de fazer. – a Nikki continuou.
Ambos sorriram.
— Vão se importar amanhã quando for anunciado quem venceu. – ele disse antes de sair andando cheio de gracinhas.
— Merda! Quem eles pensam que são, em?
Olhei surpresa para a nossa líder que se irritou no minuto em que eles se retiraram.
— Tá tudo bem. – disse para acalmá-la.
— Nós estamos ferradas... Deus! Eu não aguento mais!
— Nikki, sério! Tá tudo bem. – ela repetiu, largando o dinheiro numa caixinha no balcão. – Nós temos dinheiro pra caramba! Eles teriam que deixar aqueles jogos lá o dia inteiro para conseguir tudo o que temos. O valor que eles podem cobrar pelas fichas é muito pequeno, a vitória é nossa.
Nikki suspirou. Ela parecia querer confiar e poder se apoiar nas palavras da , porém podíamos ver o medo no fundo dos seus olhos.
— Ok, mas nós vamos ter que vender muito mais do que o normal na festa de amanhã só para garantir.
Esse “só para garantir” quase matou eu e algumas garotas na noite do dia seguinte. Ninguém sabia onde, como, nem quando, mas a Nikki arrumou mais bebida do que eu achava ser possível e criou todos os tipos de promoções para que vendessem como água. No fundo, nós só desejamos que ela não tivesse sacrificado muito do nosso dinheiro.
Como tudo naquela semana da inclusão, o bar era dividido. Tínhamos o lado Kappa, com algumas decorações azuis, e o lado Lambda, verde. Dessa maneira, os convidados de cada casa sabiam bem onde deviam comprar. Enquanto estivessem sóbrios, pelo menos. Já os que vinham apenas pela festa adquiriam suas bebidas onde quer que achassem melhor e, felizmente, nós tínhamos muitos atrativos.
Já a balada em si era misturada, os lados da guerra acabavam se perdendo no meio da multidão e, de certa maneira, isso era bom. Apesar de nós termos mudado drasticamente o objetivo da semana da inclusão naquele ano, costumava ser, acima de tudo, fazer a diversão das pessoas que nos ajudavam comparecendo, e uma fita dividindo a balada ao meio não era exatamente sinônimo de diversão.
Apesar dos apesares, eu estava tendo um dos dias mais estranhamente incríveis da minha vida. Era ruim que isso viesse de uma grande briga? Sim, mas você tem que admitir que ver um bando de “adultos” agindo como crianças de doze anos era divertido. Um pouco vergonhoso também. A vida tem dessas coisas.
Ainda assim, até eu precisava de um descanso. Nós tínhamos uma balada lotada com pessoas dançando sob um som alto demais para quem estava ali para trabalhar, como eu, e um número muito grande de bêbados para o meu gosto. Eu não podia reclamar, pois quanto mais os nossos convidados consumiam, mais dinheiro nós levaríamos para casa no final do dia, porém isso não me impedia de me sentir sufocada.
Puxei a Katy para o meu posto no balcão, perguntando se ela podia cobrir para mim por dez ou quinze minutos. Sempre disposta a ajudar, ela pegou o meu lugar e eu pude me retirar para descansar os meus ouvidos, os meus pés e as minhas mãos também. Fui até a área dos fumantes e subi em uma pequena plataforma onde ficaria um DJ em dias que havia música também do lado de fora. Sentei confortavelmente no chão mesmo, encostei minhas costas e nuca na parede, fechei os olhos e fiquei quietinha, respirando o ar fresco da madrugada. Eu sabia que não teria paz por muito tempo.
Dito e feito. Não demorou muito para que eu ouvisse a portinha próxima a mim se abrindo. A minha mente já gritava a presença do antes mesmo dele se aproximar e o cheiro do seu perfume quando ele se sentou ao meu lado apenas confirmou o óbvio. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que ele nunca deixaria passar a oportunidade de encher o saco ao me ver afastar dos outros, especialmente depois de ter o seu tempo para pensar por causa da discussão ridícula que me obrigou a ter dois dias antes. Classic .
Eu não me mexi, ele ficou quieto e eu agradeci por isso. Ainda podíamos ouvir a música do lado de dentro, dezenas de pessoas conversaram ao nosso redor, mas naquele pequeno espaço, tudo ficou em silêncio por alguns minutos. Eu podia ouvir a sua respiração irregular e sentir seu braço roçar levemente no meu. Dessa vez, não quis me afastar. O toque dele – mesmo o mais sutil – me trazia lembranças, em sua maioria boas, e no auge da minha raiva era como levar um choque. Dos ruins. Agora, naquele exato momento, eu só conseguia sentir uma decepção muito grande. É claro que a raiva eventualmente daria as caras novamente, se tratando de mim, no entanto, isso não apagava o fato de que eu estava em uma situação ridícula, pois, para que role uma decepção, a expectativa tem que vir antes.
Eu não era exatamente boa entendendo coisas desse tipo e essa sensação sempre me matou. Quando éramos apenas melhores amigos, até quando namoramos, eu achava ter certeza dos meus sentimentos em relação a ele, até que algo acontecia e me fazia rever tudo. De qualquer maneira, tudo sempre voltava ao seu encaixe normal.
Com todas as brigas recentes, eu mais uma vez pensei ter tudo definido. Raiva e ódio, apesar de todas as variantes que eu sempre optei por ignorar. Aquelas duas coisinhas continuavam reinando. E então, de repente, eu me vejo desapontada por algo que eu sempre afirmei para Deus e o mundo ainda estar ali. Tá vendo o tamanho da minha confusão? Da tortura que é ser ?
Talvez eu apreciasse tanto o caos do lado de fora porque assim podia me desligar daquele que também se encontrava no lado de dentro. É até poético, se pararmos para pensar.
— Eu fiz algo ruim. – ele murmurou alguns longos minutos depois.
— Nada com que já não estejamos todos acostumados. – retruquei, dando um sorriso de lado, mas mantendo meus olhos fechados.
Ele soltou uma risadinha nervosa.
— Engraçadinha... Tá vendo? Normalmente, eu te chamaria de hipócrita. Eu só não tô com essa bola toda no momento.
Eu assenti e fiquei quieta, pois já sabia aonde aquela conversa iria. Era uma rota já conhecida por mim e extremamente desanimadora. Achava frustrante que, não importa o quanto eu tente fazer diferente, e eu parecemos funcionar em ciclos. Repetitivos e irritantes.
— E-eu não sei bem o que aconteceu, ... A parte racional do meu cérebro simplesmente desaparece nessas horas. – ele voltou a falar algum tempo depois, incomodado com o silêncio.
— Agora você tá mentindo e essa não é a melhor maneira de se redimir. – falei, me virando para olhá-lo finalmente. Ele parecia confuso. – Como você gosta de lembrar: eu também faço coisas ruins. E não importa o tamanho da minha dedicação ou da raiva que me levou a fazer aquilo, eu sempre me lembro que há outras maneiras de agir. Só opto por ignorá-las.
Sua expressão de culpa denunciou que eu tinha razão. Eu podia agir com estupidez mais vezes do que o resto do mundo achava necessário, mas gostava de apreciar a minha capacidade de ser sincera quanto às motivações que me levaram até ali.
suspirou, correndo uma das mãos ansiosamente pelos cabelos curtos.
— É que... Nós temos tanta história! É difícil para mim te ver com outro cara, especialmente um com quem eu vivo.
— Isso não te dá o direito de ser um idiota machista. – cortei-o na mesma hora. Se quisesse gastar o meu tempo com explicações, que fossem ao menos boas.
— Eu não sou machista! – ele exclamou, de repente muito ofendido com as minhas palavras.
— Não seja besta, é claro que é!
Ele queria retrucar, porém o olhar que lancei o impediu. Eu esperava que dissesse: “você não quer entrar nessa discussão agora, quer?”. Aparentemente, ele não queria. Nada muito surpreendente, pois fazer aquilo também significaria rever toda e cada atitude que ele tinha em seu dia-a-dia. A ignorância é muito mais confortável.
— O que eu tô tentando dizer é que eu sei que estava errado e por isso tô aqui. Vou ser maduro o suficiente para admitir que eu te devo um pedido de desculpas. Além de não ser da minha conta, eu deixei você e todos ao redor desconfortáveis, eu me expressei mal, só... Me desculpe pela cena.
Balancei a cabeça, a fim de mostrar que eu prestava atenção no que ele tinha que dizer, mesmo que depois que eu me pronunciasse isso não fosse fazer tanta diferença assim.
— Eu não sinto que eu deva te desculpar, sabe? – disse, mexendo os ombros.
— Como? Por... quê?
— Ah, eu tenho vários motivos. Você quer ouvir todos? – ele assentiu lentamente, incerto. Era o suficiente para mim, então me virei para que ficasse frente a frente com ele, sentada com as pernas cruzadas. – Razão número um: você foi muito imbecil naquele dia, talvez até mais do que você tenha sido esse tempo inteiro; dois: você foi muito imbecil depois de afirmar por aí que havia mudado. Eu estava começando a acreditar, então você me enganou. Isso faz de você imbecil duas vezes; número três: uma porcentagem bem pequena do que houve talvez seja minha culpa. Eu fui ingênua e deixei você acreditar que estávamos próximos o suficiente para fazer algo do tipo quando não estávamos de verdade. Não vou me perdoar tão cedo por isso, logo, não acho justo comigo perdoar você; número quatro: eu não tenho um número quatro.
Na minha cabeça, entrava no número quatro o fato dele ter me decepcionado, mas eu não acreditava que ele merecia essa informação.
— Isso talvez soe como novidade para você, , mas perdoar alguém não significa que essas coisas não entrem no caminho e sim que você está disposta a passar por cima delas por um bem maior.
— Você seria o bem maior, ? – perguntei com um sorriso brincalhão.
— O bem maior seria a nossa amiza... A nossa boa convivên... Talvez a nossa relação como dois seres humanos que frequentam o planeta Terra e possuem o mesmo grupo de amigos.
Assenti, ponderando o quanto daquela resposta eu poderia levar em conta. ‘Nada’ foi a resposta.
— Escuta... Eu tô ocupada demais com esse negócio de semana da inclusão para me preocupar com isso. Nós vamos vencer e depois tudo vai voltar a ser como era antes. O seu erro é acreditar que as coisas estão melhorando só porque eu agora tenho uma casa inteira para odiar! E por eu ter ficado levemente grata por episódios do passado, grande coisa! Vire a página, .
— Claro! Você está dizendo, então, que vamos voltar para as brincadeiras e vinganças infantis? Não foram elas que nos colocaram aqui em primeiro lugar?
Eu parei por um momento, pois não tinha realmente pensado naquilo. Estava tagarelando sobre ciclos e repetições, mas precisei da fala do para perceber que eu mesma poderia estar me levando a isso. Chegar a esse ponto era sempre um problema.
— Quem sabe, talvez, seja o que o carinha lá de cima quiser... – respondi logo, rápido o suficiente para não mostrar a ele a minha leve confusão. – Eu não sei se isso te surpreende, mas eu não planejo cada passo que nós damos. O que eu posso fazer se o destino te colocou frágil e influenciável naquela fatídica noite da iniciação? Ele pode vir a jogar ao meu favor novamente. Até ao seu, apesar de eu acreditar ser improvável.
Ele suspirou, frustrado, balançando a cabeça como se não acreditasse realmente nas minhas palavras. Ou em toda a situação. Era difícil dizer.
— Por que você tem que ser tão complicada?
— Sei lá, . Eu só te peço uma coisa: não me faça ter que te perdoar pelo que você fez mais uma vez. Eu já o fiz vezes o suficiente por uma vida inteira. – respondi, querendo encerrar aquele assunto.
Na minha cabeça, eu tinha muito claro que um de nós dois era complicado demais e com certeza não era eu.
Eu sabia que ele tinha mais a acrescentar porque e eu não éramos muito bons em uma coisa e isso era saber quando calar a boca. Mas, porém, entretanto, a nossa atenção foi desviada para uma grande movimentação abaixo de nós. Um grupo muito grande de pessoas que eu rapidamente reconheci como irmãs e irmãos da Kappa Kappa Gamma e da Lambda Chi Alpha foram saindo da portinha que os levava até ali e se amontoando ao redor de um dos bancos do lugar.
— Que horas são?! – perguntei afobada, já puxando os pulsos dele para mim a procura da minha resposta. Não encontrei. – Você não tem relógio? Caralho, ! O que aconteceu com o que eu te dei?
— Fazem mais de dois anos, ! – ele respondeu aborrecido. – Olha no seu próprio celular!
Eu jurava pela morte de todas as pessoas que eu conhecia que vi um bico se formar nos lábios dele. Quem era o complicado ali mesmo?
— Eu não trouxe o meu celular! Vai logo, !
Ele bufou (uma característica clássica do seu drama), mas pegou o celular no bolso da calça e o virou para mim com a tela acesa. 03:03. Era hora! A hora da contagem final!
O meu primeiro impulso foi sair correndo dali e me aproximar do Ryan e da Nikki, no centro da movimentação, até eu perceber que eu tinha uma visão privilegiada ali, especialmente considerando que eu nunca conseguiria chegar perto o suficiente com tantas pessoas tão ansiosas para esse resultado quanto eu. Então eu simplesmente me levantei e apoiei os braços no corrimão, observando cada movimento com atenção. Não tão interessado quanto eu, fez o mesmo.
Se você está imaginando algum tipo de cerimônia com urnas... Não aqui, meu amor. Todo o dinheiro se encontrava em quatro grandes caixas de sapato, duas de cada casa, o que já nos mostrava que a diferença podia não ser tão grande assim. É claro que ainda tínhamos o dinheiro que foi direto para as contas bancárias, pago com o cartão, e o que foi “transferido” dos alimentos, mas quem tinha o controle dessa parte naquele momento era a Alice. Alice essa que ainda não havia chegado e sem ela, sem resultado.
Mas podíamos adiantar as coisas, então, cada um em seu canto, Nikki e Ryan foram responsáveis por contar o dinheiro um do outro. Sim, ao contrário. E depois eles trocariam e contariam novamente, dessa vez cada um o seu. Era uma maneira de garantir que os dois lados aceitassem com um pouco mais de tranquilidade a derrota, mesmo que a coordenadora e a sua equipe fossem contar ainda mais uma vez para confirmar.
O clima estava tenso e ainda podíamos ouvir a música tocando no lado de dentro, mantendo os nossos convidados distraídos. Ali fora, algumas frases eram ouvidas aqui e ali, mas nos mantínhamos em silêncio para que os líderes pudessem fazer suas contas sem distrações exteriores.
Dez minutos depois, eles ainda estavam no meio da contagem e fazia sons extremamente irritantes ao meu lado na tentativa de chamar minha atenção. Eu consegui ignorar por um tempo, mas a vontade de socar ele estava vindo com tudo. Quando eu disse que a minha raiva logo voltaria, era desse tipo de situação que eu estava falando.
— Que é?!
Eu mal terminei de falar e a resposta já veio.
— Eu não entendo porque você não pode me perdoar! Ou porque não pode realmente tentar deixar todo rancor de lado e ao menos conviver amigavelmente comigo.
— Meu Deus, , troca o disco! Essa sua obsessão com as coisas não faz bem, sabia? – avisei, o olhando de lado. Seu rosto adquiriu uma expressão desacreditada.
— A minha obsessão?! – exclamou com a voz estridente. – Você não tem vergonha não?
Dei de ombros. Já havia passado daquele estágio há um longo, longo tempo.
— Fica quieto, por favor. Eu não quero perder o que está por vir.
Ele resmungou algo antes de focar seu olhar lá embaixo. realmente sabia agir como um bom garoto de 12 anos quando queria. Para completar a imagem, só faltava ele cerrar os punhos e ficar batendo os pés no chão em manha. Felizmente, ele ainda tinha um pouco de noção de sobra.
— Pronto? – ouvi Nikki perguntar cerca de quinze minutos mais tarde. Ryan assentiu e se juntou a ela no meio da multidão. Enquanto isso, Alice ainda não havia nos presenteado com a sua presença.
Já sabendo o resultado do dinheiro que tinham em mãos, eles trocavam olhares desafiadores, nos deixando ainda mais curiosos para saber o valor de cada monte agora já guardados de volta em suas caixas.
— Não acha que a gente devia esperar a Alice? – Ryan falou de repente, chocando todos ansiosos para ouvir as palavras.
A risada da Mina se destacou e ela deu um passo à frente.
— Por que? Sabe que perderam e querem se agarrar às últimas esperanças?
Ele estava pronto para responder a provocação, mas a Nikki foi mais rápida.
— É, talvez nós devêssemos esperar. – ela concordou, criando todo um burburinho de vozes dando suas opiniões. No final, nenhuma era ouvido.
Grunhi, sem acreditar que teria que esperar sabe-se-lá mais quanto tempo para saber quem levaria para casa toda aquela grana. Além do título de vencedoras da “Primeira Edição da Guerra entre Fraternidades e Irmandades da UCLA”.
Acredite ou não, a minha reação foi uma das mais tranquilas daquele ambiente. Eu diria que a raiva de todo mundo com aquela decisão era justificável. Nós estávamos trabalhando sem parar há semanas, sem folga, tínhamos aula, trabalhos, e não muito tempo até provas começarem a chegar também. Antes, estava tudo bem, pois todos tinham a energia da busca pela vitória, mas agora, quando tudo estava feito, e tudo que precisávamos era um pré-resultado, era difícil manter a sanidade. Era quase como desejar que aquilo tivesse um fim.
Essa última parte não me agradava muito porque a ideia de voltar para a minha rotina normal depois de toda a excitação das últimas semanas era desanimadora. E não podia mentir: eu não tinha palavras para expressar o quão maravilhada eu estava com a cena diante dos meus olhos. Uma mistura de surpresa, admiração e divertimento. Achava realmente incrível a maneira como aquelas duas casas haviam se mobilizado para acabar uma com a outra. Por um milésimo de segundo, me passou pela cabeça o questionamento de o que seríamos capazes de fazer se usássemos toda aquela força para algo bom. Foi muito rápido.
Logo eu estava admirando novamente a troca de farpas, xingamentos, algumas conversas mais calmas, pedidos para que, por favor, liberassem os valores. Ryan e Nikki foram muito fortes. Se juntaram em um canto e ignoraram lindamente a pequena batalha diante dos seus olhos, ambos decididos sobre o que queriam fazer.
Dei alguns passos para trás e encostei a minha cintura no outro lado da pequena plataforma, observando cada metro quadrado abaixo com todo o prazer que aquele momento pedia. Eu sabia que não devia estar orgulhosa daquilo. Sabia que podia ter evitado essa situação se não tivesse insistido nas trapalhadas com o , mas vamos ser honestos: não era melhor assim? Nos custou uma casa prima, mas a Kappa Kappa Gamma estava mais harmônica e unida que nunca. No meio daquela confusão toda, eu até havia encontrado espaço para admirar algumas atitudes da Ashley, ainda que me sentisse como se estivesse traindo a Mina em momentos do tipo.
Eu estava ansiosa, quase pulando de antecipação pelo resultado. Porém, eu conseguia facilmente esperar enquanto apreciava aquilo que poderia ser considerado uma obra de arte.
Olhei rapidamente para o meu parceiro no crime, arrastado contra sua escolha para o meio do furacão, e percebi que era observada com curiosidade. Eu não soube adivinhar o que se passava pela sua cabeça, mas na minha eu concluí que ele estava mais atraente que nunca. Parecia improvável quando minutos atrás eu queria arrancar a sua cabeça fora, no entanto, ali estava ele, de braços cruzados, destacando os músculos na camisa social preta, cenho franzido em preocupação, lábios entreabertos, distraído com o que quer que se passava naquela mente.
Não pude deixar de me lembrar da noite em que eu dei o primeiro passo para que chegássemos até a noite de hoje. De todos os que demos depois daquele, eu achava ele o mais divertido de todos. Era um pouco estranho pensar no quanto as coisas haviam mudado de lá até esse ponto. Ter ele por perto ainda era uma novidade, a minha raiva era maior, a vontade de fazê-lo sofrer mais ainda, e mesmo assim, eu soube apreciar muito bem o toque dele. Naquele momento, havia sido especialmente difícil abominar suas mãos sobre mim. Como seria agora? Melhor? Igual? Chato? Não, chato era improvável. tinha uma pegada boa demais para decepcionar alguém, eu era obrigada a admitir, assim como todas as garotas que vieram antes e depois de .
Entretanto, eu também me lembrei do porque não havia permitido que nada mais acontecesse entre nós até aquele momento. Casais normais tem o popular remember, nós então seríamos mais que ideias para ter essa experiência. O problema é que, para ele, as coisas nunca eram simples, por mais que ele gostasse de acreditar que sim. sentia com intensidade cada toque, cada beijo, mesmo que dado em alguém que acabara de conhecer em uma balada por aí. Eu não quero soar muito metida nem nada, mas eu causaria um estrago especial no rapaz. Como ele disse mais cedo, nós temos história demais. Talvez fosse uma ideia terrível complicar a nossa situação mais ainda.
E aí eu pensava no quão divertido havia sido provoca-lo poucos dias antes. Eu nunca tive a intenção de beijá-lo naquela data, estava apenas extravasando um pouco toda a tensão que me perseguia. Apesar disso, eu não podia negar que durante longos segundos, eu cheguei a considerar a ideia. E se não tivéssemos sendo observados por um pequeno grupo de cachorros, quem sabe o que teria acontecido? Poucas coisas são mais quentes do que ver nos olhos de alguém todo o desejo que ele tem por você, a vontade de toma-la para si.
— ?
— Uhn? – murmurei, aproveitando para observar a maneira com que os seus lábios se moviam, provavelmente com a mesma cara de hipnotizada que ele no outro dia.
— Por que tá me encarando assim? – ele perguntou e eu quase sorri, achando divertido que ele as vezes demorasse tanto para decifrar certas coisas.
— Eu não tenho certeza...
Eu definitivamente sabia que devia estar observando algo, mas se esse algo não eram as veias salientes em seu braço, eu estava perdida. Minha mente continuava a me jogar imagens de tudo o que fizemos até chegar ali, naquele momento, naquela plataforma, tudo o que causamos e só isso bastava para que eu sentisse a necessidade de pular nos braços dele.
Por um rápido segundo, eu voltei para alguns minutos atrás, quando expliquei a ele sobre os dois caminhos que eu sempre tinha a opção de seguir. Dessa vez, ambos pareciam me levar em uma única direção: os lábios dele. Com mais velocidade do que qualquer um de nós dois era capaz de acompanhar, eu avancei, chocando nossas bocas desajeitadamente. Não deixava de ser bom, macio e nostálgico.
Não tive muito tempo para apreciar aquelas sensações, pois logo senti duas mãos me segurarem pelas bochechas e ao invés de serem usadas para aprofundar o que poderia ser um ótimo beijo, elas empurraram a minha cabeça para trás.
— Eu sei que isso é incrivelmente estúpido, mas... O que nós estamos fazendo? – questionou.
— Você tem razão. – sorri sarcástica. – Isso foi incrivelmente estúpido.
Tudo me dizia que agora ele iria querer entrar em alguma conversa desnecessária sobre o que aquilo significava e o meu próximo passo seria correr, mas fui eu quem fui surpreendida dessa vez. Ao invés de tagarelar, seu corpo se juntou ao meu, me empurrando até que eu estivesse encostada no corrimão dessa vez. Ele abaixou a cabeça, eu levantei e os nossos olhares se encontraram pelo que me pareceu dois segundos. Não sabia dizer se haviam sido longos ou curtos, mas podia afirmar que foi o suficiente para o meu corpo inteiro se arrepiar com a intensidade daquela troca de energias. Naquele momento, toda e qualquer barreira parecia ter sido derrubada, dando todo o espaço que o nosso desejo precisava para tomar conta.
Talvez vocês queiram ouvir que eu senti um explodir de emoções quando nossas bocas voltaram a se encontrar... Choques elétricos por todo o meu corpo. Me desculpe desapontar, mas não teve nada disso. Ao sentir o toque da sua língua na minha, o moldar dos nossos lábios juntos no verdadeiro beijo que nós merecíamos depois de tudo aquilo, eu senti calor. Senti algo queimando dos pés à cabeça, e era bom, me fazia querer buscar cada vez mais, e eu sabia exatamente onde conseguir.
Deixando o espanto de lado, eu passei os braços ao redor de seus ombros, puxando ele o mais perto quanto era possível estar, sentindo todo seu corpo se encaixar como um perfeito quebra-cabeça ao meu. Aproveitei para puxar seu lábio inferior para mim em uma mordida leve, mas firme, sentindo a suavidade daquela pequena parte combinada com o áspero da barba por fazer. deixou escapar um suspiro de prazer e em qualquer outra situação, eu poderia sorrir pela vitória. Ali, no entanto, não havia tempo para provocações, sequer espaço, pois tudo que se passava na minha cabeça era o quanto aquilo era bom. O deslizar das nossas línguas uma na outra, urgente, intenso, familiar. Cada pedacinho nosso conhecia um ao outro, nossos gostos, prazeres, e ele deixava isso claro na maneira como me segurava pela cintura ou no modo como posicionava uma de suas mãos na minha nuca, leve, quase como um cafuné, indo contra todas as características daquele beijo.
Em momentos como aquele, era difícil pensar. E ao contrário da última vez em que havíamos nos beijado, eu deixei que fosse. Não lutei pela razão, não procurei motivos para aquilo estar errado, eu só aproveitei o calor, a vontade de estar ali e permanecer assim pelo tempo que fosse. Eu merecia, afinal de contas! Depois de semanas como as últimas, era apenas justo que eu encontrasse uma maneira de relaxar, mesmo que ela fosse o meu ex-namorado. Se eu voltaria a odiá-lo assim que meus olhos se abrissem e a realidade batesse? Bem...
— Ora, ora... Se não é o casal que nos trouxe até aqui se pegando! – eu ouvi a voz do Ryan dizer muito mais perto do que da última vez que o havia visto e imediatamente empurrei pelo estômago para longe de mim. – Eu vi isso mesmo, Nikki?
— Viu, Ryan. Viu sim.
Eles estavam parados no último degrau que levava até a plataforma, nos encarando. Logo atrás, Alice tentava enxergar com curiosidade. Suas expressões eram incógnitas para mim. Eu não vi decepção, fúria, nem arrependimento. Talvez estivéssemos cara a cara com a inusitada junção de todas elas. De qualquer maneira, foi o suficiente para me causar arrepios frios como gelo, o completo oposto dos anteriores.
O silêncio era tão profundo que eu me virei rapidamente para trás, na esperança de encontrar aquela área vazia. O que eu vi foram vários rostos nos encarando com expressões assustadoramente parecidas às dos dois líderes a nossa frente. Tudo foi por água abaixo daí para frente.
Eu ouvi gritos e ofensas, senti meu corpo ser levado sem que eu tivesse a real intenção de me mover, ouvi gritos e sermões, me deixei ser levada na expectativa de que aquilo facilitasse o que quer que estava por vir, ouvi gritos, ofensas e sermões. Nem mesmo soube o que havia acontecido com o até que fosse jogada sem delicadeza nenhuma dentro do meu próprio quarto. Quando me virei para ver o que diabos estava acontecendo, tive uma boa visão dele também sendo jogado pelos rapazes com muito mais violência que eu e então, a porta de madeira foi fechada e trancada do lado de fora, nos deixando presos ali dentro.
— Parabéns, ! Você acabou de destruir o pequeno passo que demos.
Ele deu alguns passos para trás. O arrependimento por ter tido a ideia estúpida de descer até ali era claro em sua expressão, mas eu não vacilei. Por mais perdido e desolado que seu olhar se mostrasse, eu me recusava a aceitar que aquilo estava acontecendo de novo, e dessa vez ainda mais sem motivo, coisa que eu nem achava ser possível.
Eu não era sua namorada, não devia explicações sobre o que eu fazia ou deixava de fazer, especialmente quando ele estava por aí fazendo a mesma coisa. Eu não era sua propriedade para guardar e manter todo o resto do mundo – ou, no mínimo, aquela parte do sexo masculino – afastado. Nunca fui.
Eu sempre soube que aquele papo de “eu mudei” era conversa furada, mas, pela primeira vez, eu fiquei decepcionada por ver aquilo se confirmar em frente aos meus olhos. Nesse rápido segundo, eu percebi que uma pequena parte de mim gostaria que pelo menos esse pedacinho fosse verdade. Descobrir que não era doeu mais do que eu gostaria. Ser parte de uma cena daquelas mais uma vez doeu mais do que eu gostaria. Todas as lembranças ruins voltarem mais fortes do que nunca doeu mais do que eu gostaria. Porém nada superava o desapontamento comigo mesma de ainda ser afetada por coisas que ele fazia.
Não pude deixar de pensar que o efeito talvez não viesse com tanta força se eu não tivesse abaixado tanto a minha guarda nas últimas semanas. Eu me permiti deixar de provoca-lo a cada segundo, deixar de tentar machucá-lo com as minhas palavras, ter rapidamente interrompidas, mas ainda assim pequenas conversas com ele. Deus, eu me permiti flertar! Não porque eu tinha a intenção de fazer algo a mais do que isso, eu só adorava ver a cara abobalhada dele quando o fazia. Era um jogo perigoso, pois não tem nada de repulsivo em sua aparência e, se eu não fosse tão orgulhosa, correria o risco de deixar o meu corpo falar mais alto. Ainda assim, era divertido. Até ele estragar tudo. Porque é isso que e fazem: fodem com tudo e todos no mais leve vacilo.
Deviam nos dar um prêmio ou algo do tipo.
Porque o meu dia não estava ruim o suficiente (alô, lavadora de carros, coisa criticada por mim mesma no meu primeiro dia nesse campus), avistei Ryan se aproximando alguns metros à frente. Espera que fica pior... Ele vinha com o Nick a tiracolo, cara que eu rejeitei há pouco tempo e parcialmente culpado pelo ataque do . Eu o daria 10% porque a culpa ainda era quase que totalmente do sem noção que agora me encarava com cara de cachorro com fome.
— , eu preciso de você lá em cima. Agora! – o nervosinho de sempre disse quando chegou perto o suficiente.
Se você está pensando que ele iria resistir, jogar motivos para ficar ali estendendo o meu sofrimento ou apenas ignorar Ryan e qualquer coisa que saia da boca dele, você se enganou. Muito ciente da merda que havia acabado de fazer, ele apenas olhou rapidamente para cada um de nós e forçou um sorriso que mais parecia lhe causar dor.
— Ok. – falou simplesmente e saiu andando, tão rápido quando havia chegado até ali.
— Viu como foi fácil, Nick?
O meu ex-peguete assentiu e sorriu educadamente para mim antes de seguir o amigo. Que na verdade não era tão seu amigo assim. Ryan ficou para trás por mais alguns segundos.
— Você! – começou enfiando aquele dedo intrometido na minha cara. – Para de mexer com a cabeça dos meus competidores!
— Cai fora, Ryan! – disse, saindo de algum lugar atrás de mim. Sem muito mais o que dizer, ele obedeceu. – O que foi isso? – perguntou, tomando o lugar dele a minha frente.
— E eu sei? O tem algum tipo de problema naquela cabecinha dele. – respondi, engolindo em seco.
— Tá tudo bem?
Dei de ombros.
— Vai ficar. Isso só me trouxe... Lembranças, sei lá. Culpa minha por começar a acreditar que ele realmente havia deixado esse lado para trás. – disse e ela assentiu, concordando, apesar de eu ter certeza que lá no fundo ela queria defender o amigo.
— Você quer ir trabalhar em outra coisa? Posso te colocar na lanchonete.
Ri, negando prontamente.
— Eu quero manter a maior distância possível da Mina e seus brownies especiais. Já tenho confusão demais para o meu lado! Além do mais, eu prometi que ficaria pelo menos algumas horas aqui, certo? Então vou ficar.
E lá fui eu tentar, pela terceira vez, fazer a simples a ação que era encher um balde de água. não teimou comigo. Ela estava sendo consideravelmente mais fácil de lidar ultimamente. Comigo, pelo menos. Culpa por causa do que me escondeu? Talvez. Eu que não iria reclamar.
— Tudo bem, qualquer coisa me chama.
Eu odiava estar ali na lavagem de carros. Não importava o quanto me dissessem que não era algo sexy nem nada do tipo, eu ainda tinha plena consciência de que esse não era o pensamento de todas aquelas pessoas, especialmente caras, que passavam na esperança de ver alguma camiseta branca molhada. Mas Nikki havia me colocado ali, então eu lavaria o meu máximo de carros e conseguiria muito dinheiro pelo bem da minha irmandade. E pela queda da Lambda.
Falando nela, os rapazes decidiram nos copiar e fazer uma também. Não que aquilo fosse uma exclusividade da Kappa Kappa Gamma, só que eles não faziam algo assim há anos. Talvez nunca. Provavelmente na correria da preparação às pressas, eles ficaram sem opções e optaram por roubar o nosso ato clássico. Foi injusto, mas esperto, mesmo que todo o dinheiro viesse em uma quantidade absurda de moedas. Aquela era uma rua movimentada, não só por causa das pessoas que passavam ali diariamente, mas também pelas que decidiam cortar caminho por dentro do campus. Isso sem falar nos espertinhos que já sabiam as datas de tudo que acontecia naquela universidade. No final, era um dos dias mais lucrativos da semana, perdendo apenas para o último.
Os três últimos dias da semana da inclusão eram abertos para todo e qualquer público. E quando eu digo todos, eu digo todos: muitos pais apareciam por aqui nesses dias. Eu mesma estava esperando os meus a qualquer momento. O público principal ainda eram os universitários porque, sejamos sinceros, não tem nada melhor que um cardápio inteiro de coisas divertidas, gostosas e interessantes para fazer depois de um dia de aula. Contudo, toda a divulgação feita semanas antes nas redes sociais traziam também pessoas de fora, ex-estudantes, membros daquelas instituições gregas que já haviam se formado, próprios funcionários dali etc. Esse era um dos motivos pelo qual devíamos ter deixado de vender certas coisas a partir dali, mas o número final dos nossos ganhos no dia anterior fora tão grande que Nikki deu a permissão que a Mina precisava para continuar os seus negócios, desde que triplicasse o cuidado. Nós já sabíamos que os rapazes venderiam drinks que realmente vinham com álcool e aquilo era bem mais arriscado. Tínhamos uma receita para o desastre, ao ponto de não desejarmos que eles fossem pegos pois isso poderia significar algum tipo de inspeção no nosso lado também e aí, sim, a coisa ficaria feia.
Depois de quase uma tarde inteira lavando o carro dos outros, ouvindo cantadas que ficaram cada vez mais vergonhosas, mostrando o dedo do meio para algumas pessoas, xingando alguns clientes, Nikki fez um convite para que eu me retirasse daquele lugar. A lanchonete era o único lugar precisando de gente, então fui obrigada a ir para lá. Cheguei a tempo da visita da coordenadora, que não perdeu a oportunidade de experimentar praticamente tudo do que tínhamos disponível. Mina, como a perfeita mentirosa que era, passou pelo teste sem maiores problemas.
No final da tarde, nós fomos direto para casa para ter uma reunião e, de quebra, evitar os rapazes e qualquer problema que eles pudessem nos trazer. Como de costume, todas nos sentamos ao redor da sala de estar, atentas para o que quer que fosse que a Nikki tinha a dizer. Aqueles pequenos encontros geralmente funcionavam apenas para que discutíssemos pequenas coisas, aperfeiçoamentos e coisas do tipo. Por exemplo: se no dia seguinte houvesse mais uma lavagem de carros, ficaria definido ali que eu não participaria mais. Nada de decisões grande pois essas já estavam tomadas. Ou pelo menos era o que pensávamos. Por isso, todas ficaram surpresas com o que a nossa líder tinha a dizer.
— Nós precisamos bolar algo novo para amanhã. Algo espetacular!
O choque foi unânime. Era certo que amanhã nós teríamos vários foodtrucks, o que já chamava pessoas, além da volta de algumas Kappas formadas que vieram dar palestras sobre seus trabalhos e experiências no primeiro e segundo dia. Uma delas estava trabalhando no desenvolvimento do protótipo de um robô com sua equipe e o traria para exibição! Era incrível! Nós estávamos dispostas a conquistar aquela vitória pelos estômagos e pelo cérebro. No entanto, aquilo não parecia mais ser o suficiente.
— O que você quer dizer? – alguém que eu não via perguntou.
Exatamente o que eu disse! Eu sei que nós temos tudo pronto e tudo mais, só que eu tenho essa sensação muito grande de que os rapazes têm algo a mais preparado para amanhã. Nós precisamos nos garantir porque eu posso não ter entrado nisso por boa vontade, mas se viemos até aqui, é para vencer!
Um pouco afetadas pela intensidade do seu tom de voz ao dizer aquelas palavras, todas nos calamos por algum tempo. Eu tentei pensar em algo que já não tivéssemos trazido ou que os rapazes não tivessem trazido e nada me vinha a mente. Não parecia haver atração – possível na última hora – no mundo que ainda não tivesse sido usada.
— Mas... Você quer o que? Sei lá, um artista? Como eles trouxeram a contorcionista no primeiro dia? Ela fez sucesso. – Mina disse.
— Qualquer coisa boa o suficiente que consigam pensar. Qualquer coisa!
Eu conseguia entender a vontade gigantesca da Nikki de melhorar ainda mais a nossa semana da inclusão. Ryan ficava no pé dela o tempo todo, para se vangloriar ou apenas para encher o saco, como se ele não tivesse nada o que fazer a tarde inteira. Eu havia decidido entrar em uma irmandade por muito menos do que aquilo.
— Que tal um malabarista?! – Mina sugeriu. – Malabarismo com pinos, espadas, bolinhas, arcos e...
— Já sei! – Ashley a interrompeu. – Que tal um cinema ao ar livre?
Todas ficamos maravilhadas com a ideia imediatamente, esquecendo do que a Mina falava. Ela bufou, nada feliz com aquilo, especialmente com quem havia tirado a atenção da sua ideia. Eu concordava que a Ashley podia ter esperado para falar, poderia ter usado um pouco daquela tão famosa educação, mas também concordava que sua sugestão era boa demais para ser ignorada.
— Como nós faríamos isso? – Nikki perguntou a questão que estava na cabeça de todas nós.
— Bom, eu tenho um amigo que trabalha com isso e ele meio que me deve um favor por ter divulgado um desses no meu canal há um tempo. Eu posso pedir a ajuda dele e, com sorte, talvez seja possível organizar tudo em tão pouco tempo.
— Mas não vai ser de dia, vai? – April perguntou.
— Não, amanhã nós vamos até de noite! E sabe o que é melhor? Nós podemos aceitar o pagamento para participação em dinheiro ou alimentos para doação. Eu converso com a Alice, vejo se dá para converter o valor deles depois.
— Genial! Eu vou ir agora mesmo fazer o design dos panfletos para a gente divulgar amanhã durante a tarde! Se eu terminar a tempo, consigo mandar imprimir ainda hoje para pegar no horário do almoço. – dizia, já de pé e a um passo de correr escadas acima, esperando apenas pela resposta da Nikki.
— Perfeito, ! Obrigada! Enquanto isso a Ashley vai ligando para o amigo dela e eu vou atrás de uma boa localização, assim temos certeza que é possível e não gastamos dinheiro com impressão à toa.
Em não mais que dez segundos, as três haviam desaparecido, nos deixando sozinhas na sala. Como não podíamos nem queríamos ficar ali paradas, de braços cruzados, sem fazer nada, começamos a discutir outras coisas, como: o que vender de comida. Ficamos com nachos, pipoca, cachorro quente e as usuais bebidas, tudo fácil e rápido. Usaríamos a lanchonete 360°, pois não compensava montar outra estrutura para aquilo. Além do mais, aquele seria o último dia de uso dela, então o trabalho para desmontar e montar novamente no lugar do cinema (que provavelmente seria afastado de onde estávamos) não se tornaria um problema tão grande.
Também definimos alguns horários e pontos de divulgação dos panfletos para que pegássemos não só o público que já estaria lá como também aquele passando por perto. A cereja do bolo foi decidir convidar todos os rapazes gratuitamente, só para observá-los assistir a nossa vitória. Não podíamos cobrar porque eles não eram tão estúpidos a ponto de contribuírem para o nosso caixa diretamente. E depois da pequena visita que fizemos a eles no dia da feira de adoção, Ryan com certeza não resistiria e nos daria o desprazer da sua presença.
Não muito tempo depois, Nikki e Ashley voltaram com os oks que precisávamos. Já ficou enfiada com a cara no seu notebook pelas próximas duas horas e ai de quem a interrompesse em seu processo de criação.
Mais tarde, com a encomenda dos panfletos feiras, não nos restava muito o que fazer naquele dia, então acabamos indo para a cama cedo a fim de descansar muito para amanhã. Cansada como eu estava, o sono chegou facilmente, mas como nada na minha vida é fácil assim, uma DR me impedia de mergulhar nele.
— Não foi de propósito. – se defendeu falando baixinho.
ALÔ! Estávamos no mesmo quarto. A única maneira de eu não ouvir seria com mímica. Eu cheguei a sugerir a ideia, no entanto, elas não ficaram muito felizes.
Por mais que gostasse de todo o negócio do cinema ao ar livre, Mina ainda estava sentida pela ter se apressado tanto para abraçar a atração. Ela podia lidar com o resto da casa deixando sua ideia de lado tão facilmente. Com a sua namorada, não.
— Você podia pelo menos não ter corrido para fazer o design tão rápido.
— Eu não pensei! Você sabe como eu me animo com essas coisas. Não quis te deixar mal.
— Mas deixou.
Se eu não tivesse com tanto sono, acharia engraçado a Mina ser tão relaxada com tudo, menos com coisas que envolviam sua ex-namorada. Não que eu tivesse muita moral nesse departamento.
— Ah, Mina! – resmungou, revirando em sua cama.
Agora que eu e a April sabíamos de tudo, elas dormiam uma na cama da outra de vez em quando. Porém hoje o casal estava separadíssimo.
— Agora a Ashley deve estar lá, zombando sobre o que aconteceu mais cedo com as amiguinhas dela.
— Agora a Ashley deve estar dormindo, como o resto da casa também está e como eu queria estar. – me intrometi, falando abafado por estar com o rosto jogado contra o travesseiro. – Aliás, desde quando você se importa?
— Eu não me importo. – Mina respondeu. – Só é um bom argumento para ser usado.
— Vocês têm o dia inteiro para discutir isso amanhã. Vamos dormir! – implorei.
— Para de drama, . A April tá dormindo, você também consegue. – disse e eu senti o impulso de mostrar a língua para ela, se não fosse o escuro e a voz que soou acima de mim.
— Na verdade, eu não estou. É que eu sou quieta, diferente da . – April falou baixinho, como de costume.
— Eu senti uma amargura nesse tom, April Spring?
— Sim. Fica quieta porque até você se intrometer elas eram duas, agora somos quatro.
Abri a boca, em choque com a audácia do pequeno ser humano. E então sorri.
— Nós estaríamos começando outra DR agora mesmo se eu não estivesse tão orgulhosa do tamanho dessa atitude.
Isso não fez com que a Mina e a desistissem de teimar uma com a outra. Eu sabia que havia durado ainda mais que trinta minutos, mas nesse ponto meu cérebro já estava muito cansado com a repetição infernal e decidiu finalmente dormir um pouquinho.
Aquela quinta-feira foi tão, tão, tão cansativa que em alguns momentos eu considerei simplesmente jogar a toalha e parar por ali mesmo. Se meu orgulho não fosse tão gigantesco e a diversão não valesse tanto a pena no final do dia, há grandes chances de que eu o teria feito.
Nikki acabou estando certa: a Lambda realmente preparou algo incrível para aquele dia. Eles não só expandiram o Lambda Chinder como também investiram em um playground! Montaram uma área ainda mais cheia de jogos, desde pac man até ping pong. Isso sem falar na cabine de fotos que era um assalto de cara e mesmo assim havia uma fila gigantesca de pessoas esperando pela sua vez. Eles não estavam exagerando quando disseram que iriam investir na diversão... Eu duvidava que existisse um jogo no mundo não contemplado por aqueles rapazes.
Eu e mais algumas garotas fomos fracas e passamos uns bons minutos encarando toda a estrutura, tentando conter o impulso de ir lá jogar só em uma ou duas máquinas. Mas sabíamos que se Nikki nos pegasse, voltaríamos para o nosso lado puxadas pelas orelhas, então não arriscamos e cada uma foi para a sua função do dia.
Me colocaram como responsável por controlar o fluxo na demonstração da mulher que trabalha com robótica. Seu nome era Catherine Sullivan e ela fez bastante sucesso, o responsável sendo o estranho pedaço de lata que ela trouxe. Feio, porém bem incrível. Apesar dela falar um pouco sobre si mesma e sua carreira, era óbvio no que as pessoas realmente se interessavam. Tudo acontecia em uma tenda fechada para que o barulho do lado de fora não atrapalhasse e cada sessão durava cerca de 20 minutos. Eu cuidava disso e controlava a entrada e saída de todos, o que significava passar a tarde ouvindo praticamente as mesmas coisas algumas dezenas de vezes. No final do dia, eu sabia até o horário em que ela havia nascido.
O dia até foi interessante, mas todas ansiávamos mesmo pela noite. Começaria às 21hrs e o filme escolhido para exibição foi Ghost. Particularmente, eu escolheria outro, mas foi esse que a votação elegeu, então fiquei quieta. Eu cheguei uma hora antes para ajudar nos últimos detalhes e acabei perdendo meu tempo, pois tudo já estava praticamente pronto. Nós não tínhamos uma tela gigantesca e moderna porque tudo foi feito em cima da hora, mas tínhamos uma grande parede branca e uma espécie de tecido trazido pelo amigo da Ashley, que teoricamente melhoraria a imagem. Também não tínhamos cadeiras, mas essa parte foi de propósito. Convidamos as pessoas a trazerem panos, cobertores ou edredons onde pudessem deitar e ficar mais confortáveis do que numa cadeira de plástico que pode ceder facilmente na grama do terreno.
Logo as pessoas começaram a chegar e ficou claro que usar um lugar com espaço de sobra foi uma ótima ideia, pois elas se acomodavam aos montes. Pouco antes do filme começar, os rapazes também deram as caras. Alguns pareciam realmente animados com a ideia do cinema ao ar livre enquanto outros tinham o bico lá no chão. Não preciso dizer que o Ryan fez um escândalo mais cedo quando ficou sabendo, preciso?
— Isso é contra as regras, Nichole! As atrações acabam às 19, no máximo 20hrs, e tem sido assim por anos! Você não pode chegar com as suas ideias novas e mudar todo um sistema! – ele tagarelou.
Acabou que conseguiu o que queria, se o que ele queria era arrastar a Nikki para o escritório da Alice, que já não aguentava mais a nossa presença, e confirmar que nós tínhamos toda a autorização necessária para fazer aquilo.
Eu não vi imediatamente e agradeci por isso. Ainda estava surpresa e um pouco chateada pela cena do dia anterior. Só um pouco porque eu me recusava a deixar atitudes como aquelas voltarem a infernizar a minha vida. No entanto, eu sabia que aquilo não duraria para sempre. Ele só precisava de um tempo para se preparar e vir me encher o saco. Nem um pouco a fim de ouvir, eu o daria o tempo que ele quisesse.
Como previsto, o lugar lotou ao ponto de algumas de nós termos que trabalhar como guias, encontrando lugares vazios para os que não saíram de casa cedo o suficiente. Não estava reclamando, é claro. Mais dinheiro para o nosso bolso, mais próximas da vitória ficávamos.
No meio do filme, chegou a minha hora de trabalhar na lanchonete junto com a April. Eu fui animadamente, pois já havia assistido aquele filme vezes demais com a minha mãe, a fã número um da Demi Moore. Crianças normais assistiam a filmes da Disney, eu assistia Ghost pelo menos uma vez na semana.
— Será que nós podemos comer? Eu tô com fome. – April perguntou, olhando com grande interesse para as salsichas cozidas.
— Não tem ninguém aqui agora, acho que sim. – respondi enquanto colocava uma boa quantidade de milho na panela para fazer mais pipoca.
— Eba!
Animada, ela se pôs a montar um hot dog especial, com direito a duas salsichas e molho extra. Observei admirada a fome da garota que havia jantado há não mais que duas horas e acabei por concluir que era tempo o suficiente, eu mesma estava ficando tentada a preparar um para mim. Enquanto não fazia isso, eu dei atenção a minha pipoca, sem nunca deixar de ouvir o quanto a refeição dela estava boa com vários “hmmm”, “yammm”, entre outros.
— Ei! – eu ouvi dizer não muito tempo depois, mas os meus olhos foram pra reação da April. Ele pegou ela bem no meio de uma grande mordida, o que a constrangeu tanto que sua pele mudou drasticamente do pálido ao vermelho.
— Oi. – ela respondeu, tampando a boca cheia.
Eu ri e balancei a cabeça antes de fazer o mesmo.
— E aí.
Notei que estava ao seu lado, mas se ele queria me ignorar, ele também seria ignorado. O único envergonhado ali era ele.
— Nossa, isso parece bom. – o também esfomeado disse, encarando o lanche dela.
— Quer?
Sendo o que era, ele estendeu as mãos para aceitar. A minha foi mais rápida e estapeou a dele antes que chegasse ao hot dog.
— Se quer, compra! São três dólares e nós precisamos do seu dinheiro.
Ele me encarou de boca aberta, extremamente ofendido. April riu e colocou o seu de lado para preparar outro.
— Tá tudo bem, eu monto um tão especial quanto o meu para você.
— Se ir com salsicha extra, são quatro dólares. – informei.
— O que!? , quando o sistema capitalista tomou conta de você? – questionou e eu dei de ombros. — Quando a fraternidade do seu amigo nos desafiou.
— , você me deve quatro dólares.
— Então, ... – eu comecei, com um sorriso maldoso nos lábios enquanto a April trabalhava. – Comprando comida agora, no meio do filme? É quase como se você tivesse esperando alguém... Não é engraçado, April?
Ela deu um sorriso nervoso, ciente de onde eu estava indo, e não me respondeu. , entretanto, não se deixou abalar.
— Com toda essa correria, eu não via a April há alguns dias. Senti a falta dela. Tem algum problema com isso?
Eu definitivamente não tinha problema nenhum. Muito ao contrário, aquilo me mostrava que ele havia decidido investir no que quer que fosse aquilo e só me deixava mais animada ainda. Não podia dizer o mesmo da minha amiga, que parecia querer se esconder debaixo do balcão.
— A-a-aqui o seu la-anche. – ela gaguejou, entregando a ele e eu juro que sua mão tremia.
— Problema nenhum. – respondi, sem deixar de sorrir.
Ele percebeu o tamanho do nervosismo dela, então se apressou para se retirar, entendendo que as coisas com a April nunca eram simples.
— Ai meu Deus, meu corpo inteiro tá suando! – ela disse assim que ele saiu, se apoiando no balcão e procurando qualquer objeto para se abanar.
Eu ri, me divertindo mais do que nunca com aquela visão.
— Vocês dois ainda vão me garantir situações hilárias!
Aquela noite foi longa. Quando todos foram embora, nós ainda tivemos que ficar para arrumar tudo, inclusive limpar já que as pessoas de Los Angeles não eram lá muito educadas. Além disso, se você pensou que o Ryan iria embora sem mais uma de suas provocações, você errou rude.
April, Nikki, e eu estávamos na lanchonete fazendo a última contagem do dinheiro e alimentos arrecadadod com os ingressos para o cinema + as comidas vendidas quando ele chegou, acompanhado do garoto com cara de criança que eu nem sabia o nome, mas me irritava por existir. Eles pigarrearam para chamar a nossa atenção.
— Nós também decidimos inovar, sabem? – Ryan falou diante das nossas expressões de tédio, nos recusando a dar algum tipo de atenção para o comportamento desagradável dele. – Conversamos com a Alice e ela aprovou a ideia.
— Legal, Ryan. – Nikki murmurou, mais irônica do que nunca.
— O nosso playground vai abrir amanhã de tarde para quem quiser jogar um pouco. – ele informou.
Para ser honesta, eu quis xingar. Amanhã nós tínhamos uma festa de noite e nada além disso, todas as casas do campus faziam igual nesse quesito. Mas ao ver a calma das outras garotas, eu segurei a minha língua.
— Nós realmente não nos importamos com o que você faz ou deixa de fazer. – a Nikki continuou.
Ambos sorriram.
— Vão se importar amanhã quando for anunciado quem venceu. – ele disse antes de sair andando cheio de gracinhas.
— Merda! Quem eles pensam que são, em?
Olhei surpresa para a nossa líder que se irritou no minuto em que eles se retiraram.
— Tá tudo bem. – disse para acalmá-la.
— Nós estamos ferradas... Deus! Eu não aguento mais!
— Nikki, sério! Tá tudo bem. – ela repetiu, largando o dinheiro numa caixinha no balcão. – Nós temos dinheiro pra caramba! Eles teriam que deixar aqueles jogos lá o dia inteiro para conseguir tudo o que temos. O valor que eles podem cobrar pelas fichas é muito pequeno, a vitória é nossa.
Nikki suspirou. Ela parecia querer confiar e poder se apoiar nas palavras da , porém podíamos ver o medo no fundo dos seus olhos.
— Ok, mas nós vamos ter que vender muito mais do que o normal na festa de amanhã só para garantir.
Esse “só para garantir” quase matou eu e algumas garotas na noite do dia seguinte. Ninguém sabia onde, como, nem quando, mas a Nikki arrumou mais bebida do que eu achava ser possível e criou todos os tipos de promoções para que vendessem como água. No fundo, nós só desejamos que ela não tivesse sacrificado muito do nosso dinheiro.
Como tudo naquela semana da inclusão, o bar era dividido. Tínhamos o lado Kappa, com algumas decorações azuis, e o lado Lambda, verde. Dessa maneira, os convidados de cada casa sabiam bem onde deviam comprar. Enquanto estivessem sóbrios, pelo menos. Já os que vinham apenas pela festa adquiriam suas bebidas onde quer que achassem melhor e, felizmente, nós tínhamos muitos atrativos.
Já a balada em si era misturada, os lados da guerra acabavam se perdendo no meio da multidão e, de certa maneira, isso era bom. Apesar de nós termos mudado drasticamente o objetivo da semana da inclusão naquele ano, costumava ser, acima de tudo, fazer a diversão das pessoas que nos ajudavam comparecendo, e uma fita dividindo a balada ao meio não era exatamente sinônimo de diversão.
Apesar dos apesares, eu estava tendo um dos dias mais estranhamente incríveis da minha vida. Era ruim que isso viesse de uma grande briga? Sim, mas você tem que admitir que ver um bando de “adultos” agindo como crianças de doze anos era divertido. Um pouco vergonhoso também. A vida tem dessas coisas.
Ainda assim, até eu precisava de um descanso. Nós tínhamos uma balada lotada com pessoas dançando sob um som alto demais para quem estava ali para trabalhar, como eu, e um número muito grande de bêbados para o meu gosto. Eu não podia reclamar, pois quanto mais os nossos convidados consumiam, mais dinheiro nós levaríamos para casa no final do dia, porém isso não me impedia de me sentir sufocada.
Puxei a Katy para o meu posto no balcão, perguntando se ela podia cobrir para mim por dez ou quinze minutos. Sempre disposta a ajudar, ela pegou o meu lugar e eu pude me retirar para descansar os meus ouvidos, os meus pés e as minhas mãos também. Fui até a área dos fumantes e subi em uma pequena plataforma onde ficaria um DJ em dias que havia música também do lado de fora. Sentei confortavelmente no chão mesmo, encostei minhas costas e nuca na parede, fechei os olhos e fiquei quietinha, respirando o ar fresco da madrugada. Eu sabia que não teria paz por muito tempo.
Dito e feito. Não demorou muito para que eu ouvisse a portinha próxima a mim se abrindo. A minha mente já gritava a presença do antes mesmo dele se aproximar e o cheiro do seu perfume quando ele se sentou ao meu lado apenas confirmou o óbvio. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que ele nunca deixaria passar a oportunidade de encher o saco ao me ver afastar dos outros, especialmente depois de ter o seu tempo para pensar por causa da discussão ridícula que me obrigou a ter dois dias antes. Classic .
Eu não me mexi, ele ficou quieto e eu agradeci por isso. Ainda podíamos ouvir a música do lado de dentro, dezenas de pessoas conversaram ao nosso redor, mas naquele pequeno espaço, tudo ficou em silêncio por alguns minutos. Eu podia ouvir a sua respiração irregular e sentir seu braço roçar levemente no meu. Dessa vez, não quis me afastar. O toque dele – mesmo o mais sutil – me trazia lembranças, em sua maioria boas, e no auge da minha raiva era como levar um choque. Dos ruins. Agora, naquele exato momento, eu só conseguia sentir uma decepção muito grande. É claro que a raiva eventualmente daria as caras novamente, se tratando de mim, no entanto, isso não apagava o fato de que eu estava em uma situação ridícula, pois, para que role uma decepção, a expectativa tem que vir antes.
Eu não era exatamente boa entendendo coisas desse tipo e essa sensação sempre me matou. Quando éramos apenas melhores amigos, até quando namoramos, eu achava ter certeza dos meus sentimentos em relação a ele, até que algo acontecia e me fazia rever tudo. De qualquer maneira, tudo sempre voltava ao seu encaixe normal.
Com todas as brigas recentes, eu mais uma vez pensei ter tudo definido. Raiva e ódio, apesar de todas as variantes que eu sempre optei por ignorar. Aquelas duas coisinhas continuavam reinando. E então, de repente, eu me vejo desapontada por algo que eu sempre afirmei para Deus e o mundo ainda estar ali. Tá vendo o tamanho da minha confusão? Da tortura que é ser ?
Talvez eu apreciasse tanto o caos do lado de fora porque assim podia me desligar daquele que também se encontrava no lado de dentro. É até poético, se pararmos para pensar.
— Eu fiz algo ruim. – ele murmurou alguns longos minutos depois.
— Nada com que já não estejamos todos acostumados. – retruquei, dando um sorriso de lado, mas mantendo meus olhos fechados.
Ele soltou uma risadinha nervosa.
— Engraçadinha... Tá vendo? Normalmente, eu te chamaria de hipócrita. Eu só não tô com essa bola toda no momento.
Eu assenti e fiquei quieta, pois já sabia aonde aquela conversa iria. Era uma rota já conhecida por mim e extremamente desanimadora. Achava frustrante que, não importa o quanto eu tente fazer diferente, e eu parecemos funcionar em ciclos. Repetitivos e irritantes.
— E-eu não sei bem o que aconteceu, ... A parte racional do meu cérebro simplesmente desaparece nessas horas. – ele voltou a falar algum tempo depois, incomodado com o silêncio.
— Agora você tá mentindo e essa não é a melhor maneira de se redimir. – falei, me virando para olhá-lo finalmente. Ele parecia confuso. – Como você gosta de lembrar: eu também faço coisas ruins. E não importa o tamanho da minha dedicação ou da raiva que me levou a fazer aquilo, eu sempre me lembro que há outras maneiras de agir. Só opto por ignorá-las.
Sua expressão de culpa denunciou que eu tinha razão. Eu podia agir com estupidez mais vezes do que o resto do mundo achava necessário, mas gostava de apreciar a minha capacidade de ser sincera quanto às motivações que me levaram até ali.
suspirou, correndo uma das mãos ansiosamente pelos cabelos curtos.
— É que... Nós temos tanta história! É difícil para mim te ver com outro cara, especialmente um com quem eu vivo.
— Isso não te dá o direito de ser um idiota machista. – cortei-o na mesma hora. Se quisesse gastar o meu tempo com explicações, que fossem ao menos boas.
— Eu não sou machista! – ele exclamou, de repente muito ofendido com as minhas palavras.
— Não seja besta, é claro que é!
Ele queria retrucar, porém o olhar que lancei o impediu. Eu esperava que dissesse: “você não quer entrar nessa discussão agora, quer?”. Aparentemente, ele não queria. Nada muito surpreendente, pois fazer aquilo também significaria rever toda e cada atitude que ele tinha em seu dia-a-dia. A ignorância é muito mais confortável.
— O que eu tô tentando dizer é que eu sei que estava errado e por isso tô aqui. Vou ser maduro o suficiente para admitir que eu te devo um pedido de desculpas. Além de não ser da minha conta, eu deixei você e todos ao redor desconfortáveis, eu me expressei mal, só... Me desculpe pela cena.
Balancei a cabeça, a fim de mostrar que eu prestava atenção no que ele tinha que dizer, mesmo que depois que eu me pronunciasse isso não fosse fazer tanta diferença assim.
— Eu não sinto que eu deva te desculpar, sabe? – disse, mexendo os ombros.
— Como? Por... quê?
— Ah, eu tenho vários motivos. Você quer ouvir todos? – ele assentiu lentamente, incerto. Era o suficiente para mim, então me virei para que ficasse frente a frente com ele, sentada com as pernas cruzadas. – Razão número um: você foi muito imbecil naquele dia, talvez até mais do que você tenha sido esse tempo inteiro; dois: você foi muito imbecil depois de afirmar por aí que havia mudado. Eu estava começando a acreditar, então você me enganou. Isso faz de você imbecil duas vezes; número três: uma porcentagem bem pequena do que houve talvez seja minha culpa. Eu fui ingênua e deixei você acreditar que estávamos próximos o suficiente para fazer algo do tipo quando não estávamos de verdade. Não vou me perdoar tão cedo por isso, logo, não acho justo comigo perdoar você; número quatro: eu não tenho um número quatro.
Na minha cabeça, entrava no número quatro o fato dele ter me decepcionado, mas eu não acreditava que ele merecia essa informação.
— Isso talvez soe como novidade para você, , mas perdoar alguém não significa que essas coisas não entrem no caminho e sim que você está disposta a passar por cima delas por um bem maior.
— Você seria o bem maior, ? – perguntei com um sorriso brincalhão.
— O bem maior seria a nossa amiza... A nossa boa convivên... Talvez a nossa relação como dois seres humanos que frequentam o planeta Terra e possuem o mesmo grupo de amigos.
Assenti, ponderando o quanto daquela resposta eu poderia levar em conta. ‘Nada’ foi a resposta.
— Escuta... Eu tô ocupada demais com esse negócio de semana da inclusão para me preocupar com isso. Nós vamos vencer e depois tudo vai voltar a ser como era antes. O seu erro é acreditar que as coisas estão melhorando só porque eu agora tenho uma casa inteira para odiar! E por eu ter ficado levemente grata por episódios do passado, grande coisa! Vire a página, .
— Claro! Você está dizendo, então, que vamos voltar para as brincadeiras e vinganças infantis? Não foram elas que nos colocaram aqui em primeiro lugar?
Eu parei por um momento, pois não tinha realmente pensado naquilo. Estava tagarelando sobre ciclos e repetições, mas precisei da fala do para perceber que eu mesma poderia estar me levando a isso. Chegar a esse ponto era sempre um problema.
— Quem sabe, talvez, seja o que o carinha lá de cima quiser... – respondi logo, rápido o suficiente para não mostrar a ele a minha leve confusão. – Eu não sei se isso te surpreende, mas eu não planejo cada passo que nós damos. O que eu posso fazer se o destino te colocou frágil e influenciável naquela fatídica noite da iniciação? Ele pode vir a jogar ao meu favor novamente. Até ao seu, apesar de eu acreditar ser improvável.
Ele suspirou, frustrado, balançando a cabeça como se não acreditasse realmente nas minhas palavras. Ou em toda a situação. Era difícil dizer.
— Por que você tem que ser tão complicada?
— Sei lá, . Eu só te peço uma coisa: não me faça ter que te perdoar pelo que você fez mais uma vez. Eu já o fiz vezes o suficiente por uma vida inteira. – respondi, querendo encerrar aquele assunto.
Na minha cabeça, eu tinha muito claro que um de nós dois era complicado demais e com certeza não era eu.
Eu sabia que ele tinha mais a acrescentar porque e eu não éramos muito bons em uma coisa e isso era saber quando calar a boca. Mas, porém, entretanto, a nossa atenção foi desviada para uma grande movimentação abaixo de nós. Um grupo muito grande de pessoas que eu rapidamente reconheci como irmãs e irmãos da Kappa Kappa Gamma e da Lambda Chi Alpha foram saindo da portinha que os levava até ali e se amontoando ao redor de um dos bancos do lugar.
— Que horas são?! – perguntei afobada, já puxando os pulsos dele para mim a procura da minha resposta. Não encontrei. – Você não tem relógio? Caralho, ! O que aconteceu com o que eu te dei?
— Fazem mais de dois anos, ! – ele respondeu aborrecido. – Olha no seu próprio celular!
Eu jurava pela morte de todas as pessoas que eu conhecia que vi um bico se formar nos lábios dele. Quem era o complicado ali mesmo?
— Eu não trouxe o meu celular! Vai logo, !
Ele bufou (uma característica clássica do seu drama), mas pegou o celular no bolso da calça e o virou para mim com a tela acesa. 03:03. Era hora! A hora da contagem final!
O meu primeiro impulso foi sair correndo dali e me aproximar do Ryan e da Nikki, no centro da movimentação, até eu perceber que eu tinha uma visão privilegiada ali, especialmente considerando que eu nunca conseguiria chegar perto o suficiente com tantas pessoas tão ansiosas para esse resultado quanto eu. Então eu simplesmente me levantei e apoiei os braços no corrimão, observando cada movimento com atenção. Não tão interessado quanto eu, fez o mesmo.
Se você está imaginando algum tipo de cerimônia com urnas... Não aqui, meu amor. Todo o dinheiro se encontrava em quatro grandes caixas de sapato, duas de cada casa, o que já nos mostrava que a diferença podia não ser tão grande assim. É claro que ainda tínhamos o dinheiro que foi direto para as contas bancárias, pago com o cartão, e o que foi “transferido” dos alimentos, mas quem tinha o controle dessa parte naquele momento era a Alice. Alice essa que ainda não havia chegado e sem ela, sem resultado.
Mas podíamos adiantar as coisas, então, cada um em seu canto, Nikki e Ryan foram responsáveis por contar o dinheiro um do outro. Sim, ao contrário. E depois eles trocariam e contariam novamente, dessa vez cada um o seu. Era uma maneira de garantir que os dois lados aceitassem com um pouco mais de tranquilidade a derrota, mesmo que a coordenadora e a sua equipe fossem contar ainda mais uma vez para confirmar.
O clima estava tenso e ainda podíamos ouvir a música tocando no lado de dentro, mantendo os nossos convidados distraídos. Ali fora, algumas frases eram ouvidas aqui e ali, mas nos mantínhamos em silêncio para que os líderes pudessem fazer suas contas sem distrações exteriores.
Dez minutos depois, eles ainda estavam no meio da contagem e fazia sons extremamente irritantes ao meu lado na tentativa de chamar minha atenção. Eu consegui ignorar por um tempo, mas a vontade de socar ele estava vindo com tudo. Quando eu disse que a minha raiva logo voltaria, era desse tipo de situação que eu estava falando.
— Que é?!
Eu mal terminei de falar e a resposta já veio.
— Eu não entendo porque você não pode me perdoar! Ou porque não pode realmente tentar deixar todo rancor de lado e ao menos conviver amigavelmente comigo.
— Meu Deus, , troca o disco! Essa sua obsessão com as coisas não faz bem, sabia? – avisei, o olhando de lado. Seu rosto adquiriu uma expressão desacreditada.
— A minha obsessão?! – exclamou com a voz estridente. – Você não tem vergonha não?
Dei de ombros. Já havia passado daquele estágio há um longo, longo tempo.
— Fica quieto, por favor. Eu não quero perder o que está por vir.
Ele resmungou algo antes de focar seu olhar lá embaixo. realmente sabia agir como um bom garoto de 12 anos quando queria. Para completar a imagem, só faltava ele cerrar os punhos e ficar batendo os pés no chão em manha. Felizmente, ele ainda tinha um pouco de noção de sobra.
— Pronto? – ouvi Nikki perguntar cerca de quinze minutos mais tarde. Ryan assentiu e se juntou a ela no meio da multidão. Enquanto isso, Alice ainda não havia nos presenteado com a sua presença.
Já sabendo o resultado do dinheiro que tinham em mãos, eles trocavam olhares desafiadores, nos deixando ainda mais curiosos para saber o valor de cada monte agora já guardados de volta em suas caixas.
— Não acha que a gente devia esperar a Alice? – Ryan falou de repente, chocando todos ansiosos para ouvir as palavras.
A risada da Mina se destacou e ela deu um passo à frente.
— Por que? Sabe que perderam e querem se agarrar às últimas esperanças?
Ele estava pronto para responder a provocação, mas a Nikki foi mais rápida.
— É, talvez nós devêssemos esperar. – ela concordou, criando todo um burburinho de vozes dando suas opiniões. No final, nenhuma era ouvido.
Grunhi, sem acreditar que teria que esperar sabe-se-lá mais quanto tempo para saber quem levaria para casa toda aquela grana. Além do título de vencedoras da “Primeira Edição da Guerra entre Fraternidades e Irmandades da UCLA”.
Acredite ou não, a minha reação foi uma das mais tranquilas daquele ambiente. Eu diria que a raiva de todo mundo com aquela decisão era justificável. Nós estávamos trabalhando sem parar há semanas, sem folga, tínhamos aula, trabalhos, e não muito tempo até provas começarem a chegar também. Antes, estava tudo bem, pois todos tinham a energia da busca pela vitória, mas agora, quando tudo estava feito, e tudo que precisávamos era um pré-resultado, era difícil manter a sanidade. Era quase como desejar que aquilo tivesse um fim.
Essa última parte não me agradava muito porque a ideia de voltar para a minha rotina normal depois de toda a excitação das últimas semanas era desanimadora. E não podia mentir: eu não tinha palavras para expressar o quão maravilhada eu estava com a cena diante dos meus olhos. Uma mistura de surpresa, admiração e divertimento. Achava realmente incrível a maneira como aquelas duas casas haviam se mobilizado para acabar uma com a outra. Por um milésimo de segundo, me passou pela cabeça o questionamento de o que seríamos capazes de fazer se usássemos toda aquela força para algo bom. Foi muito rápido.
Logo eu estava admirando novamente a troca de farpas, xingamentos, algumas conversas mais calmas, pedidos para que, por favor, liberassem os valores. Ryan e Nikki foram muito fortes. Se juntaram em um canto e ignoraram lindamente a pequena batalha diante dos seus olhos, ambos decididos sobre o que queriam fazer.
Dei alguns passos para trás e encostei a minha cintura no outro lado da pequena plataforma, observando cada metro quadrado abaixo com todo o prazer que aquele momento pedia. Eu sabia que não devia estar orgulhosa daquilo. Sabia que podia ter evitado essa situação se não tivesse insistido nas trapalhadas com o , mas vamos ser honestos: não era melhor assim? Nos custou uma casa prima, mas a Kappa Kappa Gamma estava mais harmônica e unida que nunca. No meio daquela confusão toda, eu até havia encontrado espaço para admirar algumas atitudes da Ashley, ainda que me sentisse como se estivesse traindo a Mina em momentos do tipo.
Eu estava ansiosa, quase pulando de antecipação pelo resultado. Porém, eu conseguia facilmente esperar enquanto apreciava aquilo que poderia ser considerado uma obra de arte.
Olhei rapidamente para o meu parceiro no crime, arrastado contra sua escolha para o meio do furacão, e percebi que era observada com curiosidade. Eu não soube adivinhar o que se passava pela sua cabeça, mas na minha eu concluí que ele estava mais atraente que nunca. Parecia improvável quando minutos atrás eu queria arrancar a sua cabeça fora, no entanto, ali estava ele, de braços cruzados, destacando os músculos na camisa social preta, cenho franzido em preocupação, lábios entreabertos, distraído com o que quer que se passava naquela mente.
Não pude deixar de me lembrar da noite em que eu dei o primeiro passo para que chegássemos até a noite de hoje. De todos os que demos depois daquele, eu achava ele o mais divertido de todos. Era um pouco estranho pensar no quanto as coisas haviam mudado de lá até esse ponto. Ter ele por perto ainda era uma novidade, a minha raiva era maior, a vontade de fazê-lo sofrer mais ainda, e mesmo assim, eu soube apreciar muito bem o toque dele. Naquele momento, havia sido especialmente difícil abominar suas mãos sobre mim. Como seria agora? Melhor? Igual? Chato? Não, chato era improvável. tinha uma pegada boa demais para decepcionar alguém, eu era obrigada a admitir, assim como todas as garotas que vieram antes e depois de .
Entretanto, eu também me lembrei do porque não havia permitido que nada mais acontecesse entre nós até aquele momento. Casais normais tem o popular remember, nós então seríamos mais que ideias para ter essa experiência. O problema é que, para ele, as coisas nunca eram simples, por mais que ele gostasse de acreditar que sim. sentia com intensidade cada toque, cada beijo, mesmo que dado em alguém que acabara de conhecer em uma balada por aí. Eu não quero soar muito metida nem nada, mas eu causaria um estrago especial no rapaz. Como ele disse mais cedo, nós temos história demais. Talvez fosse uma ideia terrível complicar a nossa situação mais ainda.
E aí eu pensava no quão divertido havia sido provoca-lo poucos dias antes. Eu nunca tive a intenção de beijá-lo naquela data, estava apenas extravasando um pouco toda a tensão que me perseguia. Apesar disso, eu não podia negar que durante longos segundos, eu cheguei a considerar a ideia. E se não tivéssemos sendo observados por um pequeno grupo de cachorros, quem sabe o que teria acontecido? Poucas coisas são mais quentes do que ver nos olhos de alguém todo o desejo que ele tem por você, a vontade de toma-la para si.
— ?
— Uhn? – murmurei, aproveitando para observar a maneira com que os seus lábios se moviam, provavelmente com a mesma cara de hipnotizada que ele no outro dia.
— Por que tá me encarando assim? – ele perguntou e eu quase sorri, achando divertido que ele as vezes demorasse tanto para decifrar certas coisas.
— Eu não tenho certeza...
Eu definitivamente sabia que devia estar observando algo, mas se esse algo não eram as veias salientes em seu braço, eu estava perdida. Minha mente continuava a me jogar imagens de tudo o que fizemos até chegar ali, naquele momento, naquela plataforma, tudo o que causamos e só isso bastava para que eu sentisse a necessidade de pular nos braços dele.
Por um rápido segundo, eu voltei para alguns minutos atrás, quando expliquei a ele sobre os dois caminhos que eu sempre tinha a opção de seguir. Dessa vez, ambos pareciam me levar em uma única direção: os lábios dele. Com mais velocidade do que qualquer um de nós dois era capaz de acompanhar, eu avancei, chocando nossas bocas desajeitadamente. Não deixava de ser bom, macio e nostálgico.
Não tive muito tempo para apreciar aquelas sensações, pois logo senti duas mãos me segurarem pelas bochechas e ao invés de serem usadas para aprofundar o que poderia ser um ótimo beijo, elas empurraram a minha cabeça para trás.
— Eu sei que isso é incrivelmente estúpido, mas... O que nós estamos fazendo? – questionou.
— Você tem razão. – sorri sarcástica. – Isso foi incrivelmente estúpido.
Tudo me dizia que agora ele iria querer entrar em alguma conversa desnecessária sobre o que aquilo significava e o meu próximo passo seria correr, mas fui eu quem fui surpreendida dessa vez. Ao invés de tagarelar, seu corpo se juntou ao meu, me empurrando até que eu estivesse encostada no corrimão dessa vez. Ele abaixou a cabeça, eu levantei e os nossos olhares se encontraram pelo que me pareceu dois segundos. Não sabia dizer se haviam sido longos ou curtos, mas podia afirmar que foi o suficiente para o meu corpo inteiro se arrepiar com a intensidade daquela troca de energias. Naquele momento, toda e qualquer barreira parecia ter sido derrubada, dando todo o espaço que o nosso desejo precisava para tomar conta.
Talvez vocês queiram ouvir que eu senti um explodir de emoções quando nossas bocas voltaram a se encontrar... Choques elétricos por todo o meu corpo. Me desculpe desapontar, mas não teve nada disso. Ao sentir o toque da sua língua na minha, o moldar dos nossos lábios juntos no verdadeiro beijo que nós merecíamos depois de tudo aquilo, eu senti calor. Senti algo queimando dos pés à cabeça, e era bom, me fazia querer buscar cada vez mais, e eu sabia exatamente onde conseguir.
Deixando o espanto de lado, eu passei os braços ao redor de seus ombros, puxando ele o mais perto quanto era possível estar, sentindo todo seu corpo se encaixar como um perfeito quebra-cabeça ao meu. Aproveitei para puxar seu lábio inferior para mim em uma mordida leve, mas firme, sentindo a suavidade daquela pequena parte combinada com o áspero da barba por fazer. deixou escapar um suspiro de prazer e em qualquer outra situação, eu poderia sorrir pela vitória. Ali, no entanto, não havia tempo para provocações, sequer espaço, pois tudo que se passava na minha cabeça era o quanto aquilo era bom. O deslizar das nossas línguas uma na outra, urgente, intenso, familiar. Cada pedacinho nosso conhecia um ao outro, nossos gostos, prazeres, e ele deixava isso claro na maneira como me segurava pela cintura ou no modo como posicionava uma de suas mãos na minha nuca, leve, quase como um cafuné, indo contra todas as características daquele beijo.
Em momentos como aquele, era difícil pensar. E ao contrário da última vez em que havíamos nos beijado, eu deixei que fosse. Não lutei pela razão, não procurei motivos para aquilo estar errado, eu só aproveitei o calor, a vontade de estar ali e permanecer assim pelo tempo que fosse. Eu merecia, afinal de contas! Depois de semanas como as últimas, era apenas justo que eu encontrasse uma maneira de relaxar, mesmo que ela fosse o meu ex-namorado. Se eu voltaria a odiá-lo assim que meus olhos se abrissem e a realidade batesse? Bem...
— Ora, ora... Se não é o casal que nos trouxe até aqui se pegando! – eu ouvi a voz do Ryan dizer muito mais perto do que da última vez que o havia visto e imediatamente empurrei pelo estômago para longe de mim. – Eu vi isso mesmo, Nikki?
— Viu, Ryan. Viu sim.
Eles estavam parados no último degrau que levava até a plataforma, nos encarando. Logo atrás, Alice tentava enxergar com curiosidade. Suas expressões eram incógnitas para mim. Eu não vi decepção, fúria, nem arrependimento. Talvez estivéssemos cara a cara com a inusitada junção de todas elas. De qualquer maneira, foi o suficiente para me causar arrepios frios como gelo, o completo oposto dos anteriores.
O silêncio era tão profundo que eu me virei rapidamente para trás, na esperança de encontrar aquela área vazia. O que eu vi foram vários rostos nos encarando com expressões assustadoramente parecidas às dos dois líderes a nossa frente. Tudo foi por água abaixo daí para frente.
Eu ouvi gritos e ofensas, senti meu corpo ser levado sem que eu tivesse a real intenção de me mover, ouvi gritos e sermões, me deixei ser levada na expectativa de que aquilo facilitasse o que quer que estava por vir, ouvi gritos, ofensas e sermões. Nem mesmo soube o que havia acontecido com o até que fosse jogada sem delicadeza nenhuma dentro do meu próprio quarto. Quando me virei para ver o que diabos estava acontecendo, tive uma boa visão dele também sendo jogado pelos rapazes com muito mais violência que eu e então, a porta de madeira foi fechada e trancada do lado de fora, nos deixando presos ali dentro.
Capítulo 16
[Teremos musiquinha nesse capítulo sim: let it go, do James Bay. Tá aqui o link para quem já quiser deixar carregando: https://www.youtube.com/watch?v=-SWJSL8uhr8. Eu vou avisar a hora certa para dar play.]
Eu sou a e se tem uma coisa que sabe fazer bem é entrar no próprio colégio com o peito erguido, nem aí para o que qualquer um ali poderia pensar sobre sua vida.
Ainda assim, eu continuava sentada no banco de carona do carro do meu pai, sem coragem para mexer um músculo sequer.
Eu já havia arrumado um bom número de confusões naquela instituição, sabia que estava longe de ser a garota que todos amavam, mas uma coisa era saber que tinham pessoas do lado de dentro que ficariam mais do que felizes em me dar um bom soco, outra completamente diferente era ter certeza que havia sido o assunto principal de cada aluno dali nos últimos sete dias. A pobrezinha para alguns, a que mereceu para outros ou simplesmente a chifruda para um pessoal. Eu não queria ser nenhum daqueles. Queria ser eu mesma, algo que estava se mostrando impossível depois de ver e sentir uma parte gigantesca do meu mundo despencar sobre a minha cabeça.
— Não quer ficar em casa mais um dia, meu amor? – meu pai perguntou, preocupado, e eu rapidamente neguei, balançando a cabeça.
Já havia perdido uma semana de aula por causa do imbecil do e não perderia mais um minuto sequer. Não só por causa do meu orgulho, mas também porque faltavam poucas semanas para o fim das aulas e a minha vida poderia estar um inferno que ainda assim eu nunca permitiria que o próprio capeta entrasse no meu caminho para a UCLA, mesmo que eu ainda tivesse um ano até lá.
— Eu já tô indo. Vai ficar tudo bem. – minhas mãos foram para a trava da porta rapidamente, assim eu tinha algo para agarrar e disfarçar o tremer delas. – Obrigada por me trazer.
— Não há de quê. Qualquer coisa, me liga, ok?
Assenti e abri a porta, dando meus primeiros passos no lado de fora. Uma parte muito grande de mim gritava para que eu corresse de volta para o lado do meu pai, onde eu sabia ser seguro, mas eu me obriguei a continuar seguindo em passos lentos. Eu já havia trazido preocupação demais para os meus pais na última semana, até eles precisavam de uma folga da garota que se descobriu chorona pela perda do namorado e melhor amigo.
Ainda era cedo, então haviam poucas pessoas no estacionamento. No entanto, eram o suficiente para me incomodar. Não que as pessoas de fora pudessem ver isso, é claro. Apesar do lado de dentro fodido, a minha aparência estava melhor do que nunca. Roupas novas, cabelo escovado, maquiagem e unhas feitas e uma postura de dar inveja. Considerando que o fato de eu decidir pentear o cabelo antes de ir para escola em um dia comum já era um milagre, eu estava um arraso, de armadura vestida, pronta para enganar qualquer um que entrasse no meu caminho. Coisa que eu esperava que não acontecesse.
Com passos certeiros, eu fiz meu caminho por aquele espaço fingindo não notar as cabeças que se viravam em minha direção. Não era para mim que eles olhavam, eu queria acreditar. Nunca na minha vida eu havia me importado em chamar atenção, de maneira boa ou ruim, e lá estava agora, querendo enterrar minha cabeça naquele asfalto.
Havia acabado de entrar no bloco da minha primeira aula – o que poderia significar algo ruim pois lugar menor = sufoco maior, mas também significava que eu estava mais perto da minha sala, onde poderia me esconder em um lugar e ficar quieta por um tempinho – quando fui parada por um grande jogador de futebol afobado.
— ! !
Infelizmente, não era e sim Chad, um cara que eu abominava desde que me entendia por gente. Ele também não era exatamente meu fã.
— O que?
— Tá tudo bem? – ele perguntou, me segurando pelos ombros e parecendo realmente preocupado com algo.
Aquilo me deixou aflita. Tinha alguma coisa na minha cara? Meus óculos estavam manchados? Minha roupa rasgada? Uma parte do meu cabelo para cima? Independente do quê, achei legal da parte dele vir até mim mostrar que se importa. Quem imaginou que até o rei dos imbecis seria tocado pela merda que meu ex-namorado fez?
— Eu acho que sim, o que houve?
— Todos nós estávamos preocupados em saber como conseguiu passar pela porta. – ele respondeu, me fazendo olhar para o lado, onde mais três rapazes se amontoavam segurando a risada. Voltei para Chad, ainda mais confusa. – Você sabe, por causa dos chifres. São gigantes, não são?!
Na mesma hora, sua expressão preocupada se desfez em uma gargalhada enquanto eu engolia em seco, me xingando por cair naquela brincadeira infantil. Forcei meus lábios, que antes formavam uma linha reta, a se erguerem em um sorriso forçado. Distraído se pagando de descolado para os seus soldadinhos, ele não viu meu punho fechado se aproximando do seu rosto.
Doeu como se eu tivesse acabado de quebrar todos os meus dedos de uma vez, mas ver o roxo se alastrar imediatamente pela área atingida compensou cada cubo de gelo que eu teria que manter sobre a minha mão mais tarde.
— Eu juro que estou bem! Já chorei tudo o que tinha para chorar, vocês viram. E seria ótimo se esquecessem também. – eu tentei concluir, sendo interrogada por , e . Já estávamos no intervalo e eles continuavam esperando que eu desabasse.
Obviamente, eu estava mentindo. Na verdade, nas três aulas que se passaram eu tive que conter o impulso de fingir estar passando mal para ir embora algumas dezenas de vezes. Era terrível ficar olhando para baixo simplesmente porque eu não aguentava a pressão de devolver todos aqueles olhares e era pior ainda ouvir coxixos o tempo todo e saber que a sua humilhação em praça pública era o assunto principal.
“Nossa, , as pessoas têm coisa melhor para fazer do que só falar sobre você, sua egocêntrica.”
Não, elas não têm. São um bando de adolescentes sustentados pelos pais, eles só acham que têm preocupações sérias. Além do mais, os alunos daquele colégio em especial não pareciam ser muito bons na arte de disfarçar.
— O não tentou chegar perto de você, tentou? – perguntou.
— Não, eu nem vi ele ainda.
No entanto, eu sabia que aquilo não duraria muito tempo, pois a última aula do dia era Educação Física e ele estava na minha turma. Mesmo que fossemos de anos diferentes, nós fazíamos algumas poucas aulas juntos, só por diversão. Anos atrás, parecera uma boa ideia quando sentávamos para organizar nossos calendários juntos, até chegar o dia em que ele simplesmente fodeu com tudo.
— Talvez fosse melhor você ir embora antes da última aula... – sugeriu, mas eu neguei rapidamente.
— Não, tá tudo bem. Eu não ligo. Já superei, sabe? Não tô nem aí para ele. – menti.
— Você não precisa ficar mentindo para a gente, . – disse suavemente, pegando na minha mão.
— Não tô! – me apressei para rebater. – Eu me recuso a amar alguém que faria o que o fez comigo, tá legal? Vai contra as minhas regras e eu sou muito severa quando se trata das minhas regras pessoais.
Todos eles suspiram, trocando olhares de derrota entre si. Encolhi os ombros, fingindo não notar. Não deviam estar felizes? Eu passei a última semana jogada na cama, chorando até com a menção do nome “”, me ouviram reclamar, sofrer e xingar durante todos aqueles dias, logo, mereciam uma folga. Assim como os meus pais. Tudo bem que eu sofresse, afinal, eu era a maior prejudicada da história, perdendo não só meu namorado, mas também meu melhor amigo, o meu porto seguro, o cara que tinha toda a minha confiança, ninguém mais precisava ser levado ladeira abaixo comigo.
— Escuta, eu acho que já vou indo para a minha próxima aula. – falei, a fim de me livrar daquela situação.
— Eu vou com você. – afirmou. – Minha sala é próxima a sua.
Assenti, mesmo que minha vontade fosse de ir sozinha. Não queria criar mais problemas e desconfianças.
No caminho, acho que ele pode sentir um pouquinho na pele do que estava sendo a minha vida naquele dia. Atenção, atenção e atenção que eu não queria. Me sentia estranha, como se não fosse mais eu mesma, ao perceber que eu não sabia o que fazer naquelas horas. Pelo menos, nada além de abaixar a cabeça e olhar para os meus pés, pois nesse ponto do dia eu já tinha perdido até a energia para manter algum tipo de pose.
Não adiantava. Nada adiantava. Não importava o que eu fizesse, eu ainda me sentia uma merda por dentro. Em todos os sentidos possíveis da palavra.
— Ei, tive uma ideia! Que tal a gente matar as próximas aulas? Eu não tô afim de ouvir ninguém falar pelas próximas horas, vamos? – sugeriu, se esforçando para fazer com que a ideia soasse como algo bom para ele. Não funcionou.
— Melhor não. Eu já perdi muitas aulas na última semana. Mas você pode ir sozinho, eu não me importo.
Ele abaixou os ombros, perdendo sua empolgação.
— Ah, sem companhia eu não quero.
Chegamos em frente a sala dele e eu peguei sua mão rapidamente, forçando mais um sorriso.
— Eu tô bem, . De verdade.
Não aguentava mais dizer aquelas palavras, porém tinha esperanças de que eventualmente alguém começaria a acreditar. Com sorte e tempo, talvez eu também acreditasse nelas.
— Eu não acredito nem um pouco, mas não sei mais o que fazer, então... – me deu um beijo na bochecha. – Te vejo no final da aula.
Saí em direção a minha sala logo ao lado com um nó na garganta. Eu sabia que tinha amigos incríveis que moveriam o mundo inteiro para tentar me ajudar e mesmo assim não conseguia dar abertura alguma à eles. Levaram anos até que chegasse ao nível em que se encontrava. Agora, ele não estava mais lá, eu voltaria a guardar tudo para mim e não havia ninguém a culpar além de mim mesma.
E ele. Mas, naquele momento, eu não tinha energia nem para odiá-lo.
Quando eu pensei que aquele dia não poderia ficar pior, a minha professora de biologia decidiu passar uma atividade em dupla. Até tentei ficar por minha conta e falhei, pois uma outra pessoa sobrou e a matemática era óbvia. Por pena do universo de mim, ela era do grupo “foda-se o mundo” e tinha zero interesse em mim ou meus dramas amorosos. Cada uma fez a sua parte rapidamente, mal trocando palavras, e fomos as primeiras a terminar, o que me deu um tempinho para fingir ler um livro quando na verdade eu estava me preparando mentalmente para o que viria a seguir.
Foi estúpido da minha parte achar que eu já teria condições de enfrentar uma aula com o ? Foi, sim. Não podia nem dizer que parecera uma boa ideia na hora porque me senti aterrorizada o tempo inteiro. De qualquer maneira, indo contra todas as obviedades, segui em frente numa tentativa idiota de provar algo para mim mesma. Mais uma vez, meu orgulho me ferrou.
No vestiário, várias garotas vieram falar comigo, nunca sobre O caso, se esforçando para agirem normalmente, como em uma aula de Educação Física comum. Eu também fiz o meu máximo para parecer normal e, acima de tudo, bem. Então, alguns minutos depois, ouvimos o apito do professor indicando que devíamos estar na quadra. Observei-as saírem, uma a uma, animadas porque, por mais que elas soubessem que aquele não era um dia comum por causa de tudo o que aconteceu, elas ainda sentiam a liberdade de agir como sempre agiram. Eu não as culpava nem um pouco, pois já estive do outro lado, mas aquilo me dava um sentimento estranho de solidão.
Esperei que todas saíssem para fazer o mesmo e diria que fui até consideravelmente longe. Eu dei três passos dentro da quadra antes de olhar para frente e meus olhos pousarem imediatamente nele, sem que eu tivesse que procurar. estava sentado na arquibancada, com os cotovelos apoiados nos joelhos, parecendo desanimado, mas surpreso ao me ver. Não era para menos, afinal, ele havia passado a semana inteira atrás de mim, tentando falar ou simplesmente me ver de qualquer maneira, e o meu estar trancada em meu quarto tornou aquilo impossível. Agora, quando ele finalmente parecia ter desistido, eu aparecia em sua frente de boa vontade.
Mesmo de longe, eu podia ver que seu olho ainda não estava totalmente curado pelo belo soco que levou do alguns dias antes. Pelo menos tinha aquele pequeno detalhe indo ao meu favor.
Pensei que conseguiria passar por aquela aula com muita dificuldade e incômodo, no entanto, apenas a visão dele pela primeira vez depois da briga que tiveram me desestabilizou por completo. Não que eu estivesse muito estabilizada antes. Eu senti o nó tomar conta de vez da minha garganta, uma onda de pânico me atingiu e todo o meu corpo ficou de repente trêmulo. Eu não podia, não tinha forças para fazer aquilo ainda. Aquele não era o rosto do meu melhor amigo, era o rosto do cara que havia pisado no meu coração tantas vezes e de tantas maneiras que naquele momento não parecia ter conserto.
Sem me importar com os olhares que poderiam estar em mim naquele momento, eu voltei os pequenos passos que havia dado antes de me virar com calma e dar o fora dali. Não podia deixar que ele visse o que fez comigo de novo, dessa vez sem precisar mover um dedinho sequer.
Corri apenas quando tinha certeza que não era observada por ninguém e em poucos minutos me encontrei no fundo do colégio, onde só iam para fazer coisas que a escola não permitia. Felizmente os rebeldes da Sensille High tiraram aquele dia para não matar aula, permitindo que eu me encolhesse em um canto da grama e chorasse o quanto eu quisesse, longe de qualquer um.
Apertei meus olhos com força numa tentativa falha de expulsar todas as lágrimas que meu organismo produziu e nunca mais chorar por causa dele, mas tudo o que consegui foram vários flashes da imagem que dividiu minha vida ao meio. Antes de e depois de . Até agora, eu não gostava nada do depois. Tinha muita fossa e chocolate para o meu gosto, e eu nem era muito fã de chocolate. Me matava dar tanta importância a um garoto, porém aquele garoto era a minha vida inteira, e não por algum tipo de dependência romântica, mas porque ele sempre esteve ali, desde antes de eu aprender que “muito” não leva um n.
Eu queria ser forte, estava dando o meu melhor, só que... Bem... Era difícil desabar. Ainda mais sozinha.
Peguei o meu celular, estrategicamente escondido no meu top, e disquei o primeiro número que veio a mente, me prometendo que aquela seria a última vez. Eu só precisava de um ombro por mais aquele dia porque no outro, tudo seria diferente. Tinha certeza que sim.
Por estar em aula, ela só atendeu vários toques depois.
— , tá tudo bem? – começou já preocupada, como se costume.
— Eu não consigo fazer isso hoje, . – disse com a voz embargada pelo choro, sentindo novas lágrimas escorregarem pela minha bochecha.
— Eu sei... Eu sei, amor, não tem problema. Onde você tá?
— Aqui nos fundos. Vem correndo, por favor.
Só mais aquele dia.
— O QUE VOCÊS PENSAM QUE ESTÃO FAZENDO? – eu gritei para aqueles que se encontravam livres, do lado de fora da porta.
Podia até ter me mantido passiva até chegar ali, mas ser trancada em um cômodo com o seu ex-namorado pode dar uma boa transformada nas atitudes de uma pessoa.
— Vocês não podem continuar fazendo isso, . – ouvi dizer calmamente, parecendo até triste.
— Fazendo o que, ? Aquilo não foi nada, só um momento. Eu ainda o odeio, me tira daqui e vamos atrás da nossa vitória, por favor! – implorei, de corpo e rosto colados na porta. continuava atrás de mim sem soltar um a sequer.
— Eu não posso fazer isso, me desculpe. Vocês precisam se resolver.
— Não, eu não quero, eu não vou!
— Por culpa de tudo o que vocês causaram, o que querem não importa mais! – ela me repreendeu. – Não são mais crianças, precisam começar a fazer o melhor para o grupo e não para vocês mesmo.
— Você sabe que eu não posso voltar a ser amiga dele, sabe mais do que ninguém. – eu disse baixinho, porém alto o suficiente para que ela conseguisse ouvir através do grande pedaço de madeira.
— Não precisamos que virem melhores amigos, só que cheguem a um acordo de viver em paz e manter todos nós fora do seu caminho.
— , me deixa sair! – exclamei, ignorando as suas palavras e forçando a fechadura.
— ! – me repreenderam novamente e dessa vez foi a Nikki, naquele tom de voz que me dava arrepios. – Você talvez tenha se esquecido, mas eu deixei bem claro algumas semanas atrás que nós não vamos mais tolerar os truques de vocês. Acabamos nos deixando levar por essa rixa sem sentido, passamos a semana inteira no inferno apenas para encontrar vocês dois se agarrando no final de tudo. Vocês não podem mexer com a nossa cabeça desse jeito! Então eu acabei de adaptar o que te passei: resolva os seus problemas com o ou já aproveita o lugar em que está para fazer as suas malas!
— O mesmo para você, . – Ryan se pronunciou. – Vamos voltar daqui algumas horas e a escolha é toda de vocês. Saiam dessa ou saiam das nossas casas... Juntos!
Eu não acreditei que eles nos deixariam ali por horas até que ouvi vários passos se afastando, me fazendo realmente entrar em pânico.
— Não, não, não, não, não! Nikki, por favor! ! ALGUÉM! – gritei, lançando meus punhos contra a porta, mas tudo que recebi de volta foi silêncio. – ME DEIXEM SAIR! EU NÃO POSSO FICAR AQUI! POR FAVOR!
No meio de tantas outras preocupações, eu realmente havia me esquecido do ultimato que recebi da Nikki semanas antes. Nunca considerei voltar com as vinganças de verdade (a não ser em oportunidades muito boas, como a épica do desfile nu), só gostava de fazer o pirar de vez em quando, especialmente por eu não ter que dizer muito para que ele tirasse suas próprias conclusões equivocadas. Ficaria mais do que feliz com as boas e velhas discussões, apesar de saber bem até onde elas me levavam: truques, que por si só já me levavam também para o ciclo que eu queria sempre evitar, mas continuava trombando.
Mesmo ouvindo todas as ameaças, eu continuei socando a porta por um longo tempo, no entanto, eu parecia ser fraca demais para causar sequer um arranhão ou o material era super resistente. Ainda assim, eu tinha que tentar. Na pior das hipóteses, alguém eventualmente se cansaria de ouvir meus gritos e socos e viria me salvar daquela situação.
Era como se meu julgamento final tivesse chegado adiantado e nada no mundo poderia ser pior que aquilo.
— Quer parar? Só vai machucar suas mãos e os meus ouvidos desse jeito. – finalmente se pronunciou, me fazendo desejar que ele voltasse a fechar a boca.
— Não enche. Você deveria estar me ajudando.
Ele riu.
— A fazer papel de idiota? Não, obrigado.
— Está certo. Você precisa de uma pausa nesse quesito, não? – retruquei, sem nunca parar para olhá-lo.
voltou a ficar em silêncio depois disso e eu a me concentrar em meus socos e gritos.
— ME TIRA DAQUI! ALGUÉM ME SOCORRE! EU PAGO! – menti, pois se tinha cinco dólares na minha carteira, era muito.
Algum tempo depois, minhas mãos vermelhas e quentes se cansaram. Porém minha energia continuava lá em cima, então eu preparei minha perna direita para o chute que explodiria aquela casa. A coloquei para trás, mas quando ia jogá-la para frente, uma mão se fechou ao redor do meu calcanhar. Encontrei me encarando lá debaixo.
— Você não devia fazer isso. – ele me alertou.
— Me solta agora! – ordenei, sacudindo minha perna até que largasse. Dando de ombros, ele ficou de joelhos e foi um pouco para trás, me dando espaço para seguir com o meu plano.
Eu não estava usando um tênis esportivo, mas tive esperanças de que aquele moderninho fosse conter um pouco do impacto. Não rolou. Quando meu pé encontrou a madeira dura, eu senti que havia acabado de perde-lo tamanha a dor que senti e o barulho nem foi tão grande assim. Entretanto, fiz o meu melhor para disfarçar o meu desespero do guarda observando cada movimento meu.
— Vai parar agora? – ele teve a audácia de perguntar.
— Por que eu deveria?
— Porque você parece estar sentindo muita dor nesse momento. – eu realmente estava, mas dei de ombros. – Vem, deixa eu dar uma olhada nisso.
Suas mãos voltaram a tocar o meu tornozelo, dessa vez com mais cuidado, e eu rapidamente me afastei, mancando até o outro lado do quarto.
— Me deixa!
suspirou, parecendo frustrado. Eu, sim, tinha motivos para ficar frustrada. Estava presa no meu próprio quarto, cansada, com fome e agora com a porra de um pé latejante de dor, tudo por culpa dele e toda sua existência.
— Sério? Está me dizendo que vai voltar para a sua política do “não me toque” minutos depois de me agarrar? – ele questionou, se levantando para ir sentar na beira da cama da .
— Por favor! Quem me agarrou foi você!
Ele riu, balançando a cabeça em descrença.
— Alguém te bateu na cabeça no caminho para cá e te fez perder a memória? Porque olha... Você tá indo cada vez mais para baixo.
— Tudo que eu fiz foi te dar um selinho, . Rápido e sem graça, só porque eu estava envolvida no momento. Quem não resistiu e procurou mais foi você! Logo, a culpa por estarmos aqui é sua. Logo, eu não quero olhar para a sua cara. – falei, me virando de costas e encarando a rua vazia através da janela.
O quão difícil seria sair por ali? Considerando que havia completamente nada além da pequena janela quadrada, mesmo do lado de fora, provavelmente muito, mas o que era uma perna quebrada quando já se tinha um tornozelo fodido? Não arriscaria naquele momento. Em duas ou três horas, no entanto...
— Tentar derrubar a porta ou ficar de costas para mim não vai resolver essa situação, ! Quanto tempo você vai precisar para entender isso? Porque eu tenho a noite inteira...
Eu não precisava de tempo algum. Sabia bem que a hora havia chegado para termos A conversa, só não queria. Eu não estava pronta para lidar com aquilo, e achava que poderia nunca estar. Por fora, me sentar e ter uma conversa aberta com ele parecia simples. Por dentro, significava visitar lugares, lembranças e histórias que eu vinha me esforçando ao máximo para manter enterradas. Assim não poderiam me machucar de novo.
— Se você acha que me prenderem em um cômodo com você durante horas vai me fazer ceder, você não me conhece de verdade. – disse.
— Acho que está enganada. – ele rebateu.
— Não ligo. Nós não estamos em algum tipo de filme adolescente, tá legal? Nem tudo pode ser resolvido com uma longa e tediosa conversa.
— Coisas podem começar a ser resolvidas assim.
Revirei os olhos, me virando para trás rapidamente só para dizer a próxima frase.
— O que é você, afinal? Algum príncipe da Disney? Acorda, !
— Não acho que seja eu quem está dormindo. – ele murmurou, calmo. Aquilo fez meu sangue ferver, mas não deixei que ele me atingisse.
— Quer saber? Fica na sua que eu vou ficar na minha. Uma hora eles vão voltar, algo vai causar uma briga e tudo vai voltar ao normal. Tudo vai ficar bem! – afirmei, tentando passar confiança. Para mim e para ele.
— E sou eu quem está vivendo no mundo da Disney...
Não respondi. Mordi minha língua, mas sucedi ao ignora-lo.
Por estar sem meu celular que devia se encontrar em algum canto da cozinha, eu não tinha certeza, só acreditava ter ficado encarando a rua pela janela durante quase uma hora, me perguntando o tempo todo onde é que estavam a irmandade e fraternidade que nos queriam no espeto. Já passava das quatro e nenhuma alma viva passou por ali. Eu poderia gritar mais, porém acreditava estar começando a perder a minha voz e eu precisaria dela para meter a boca em todas as garotas que achavam aquilo uma boa ideia.
Olhei para o , sentindo meus músculos protestarem por todo aquele tempo sem movimento algum, e vi o motivo de tanto silêncio. Ele dormia todo torto na cama que se tornou pequena demais com um cara daquele tamanho em cima. Observei-o por um tempo, sereno, como se não tivesse preocupação alguma no mundo. Era difícil odiá-lo daquela maneira. Tinha que manter em mente que era acordado que ele fazia suas besteiras e me deixava louca, mais ou menos como funcionam as coisas com crianças. Se dormem, são anjos. Quando acordam, descem direto para o inferno.
Eu não era uma pessoa ruim. Por isso, busquei no armário um edredom e joguei sobre o seu corpo. A noite estava gelada, combinando com tudo que acontecia, e tudo que ele vestia era uma regata que mal cobria seus ombros. Depois disso, aproveitei seus olhos fechados para me enfiar em um pijama confortável. Se ele iria dormir, eu seguiria seus passos. Dessa maneira, o tempo passaria mais rápido e quando acordássemos, seríamos liberados daquela prisão temporária. E aí tudo ficaria bem.
Algumas vozes me puxaram para fora do meu sono e, inicialmente, eu mantive meus olhos fechados, como se aquele fosse um dia normal. Eu estava na minha cama, com o meu travesseiro, dentro do meu quarto depois de uma noite que consagrou a Kappa Kappa Gamma como... Mais ou menos aí a minha memória voltou a funcionar.
Arregalei os olhos na mesma hora, vendo que conversava com alguém que eu não podia ver por se encontrar do lado de fora da porta. E ELA ESTAVA ABERTA!
— Tudo bem, obrigada. – ele murmurou e a bendita começou a fechar.
— EI!
Parecendo ter sido atingida por um raio (se minha vida fosse um desenho animado), eu me levantei em um único movimento e comecei a correr. A única falha do meu impulso foi me esquecer completamente da cama da no meu caminho. Eu não a vi, apenas senti o impacto e meu corpo ser arremessado para frente. No final das contas, acabei tendo um pouco de sorte, pois meu nariz parou há um centímetro do chão graças ao colchão que me impediu de deslizar mais ainda piso abaixo.
O tempo perdido ali foi o tempo que levou para a porta ser fechada e trancada novamente.
Me apressei para me levantar e ir para cima de a fim de soca-lo. Uma bandeja cheia de comida em seus braços impediu que meu plano se concretizasse, mas o olhar matador estava armado. Não afetou nem um pouco ele, que ainda segurava a risada.
— Qual é o seu problema?! – exclamei, chocada com a pequena cena que havia visto.
— De acordo com você, eu tenho muitos. Seja mais específica. – respondeu tranquilamente, levando toda a comida para uma das nossas escrivaninhas. Eu o segui, pisando fundo.
— Por que você não saiu!? – perguntei num tom estridente que doeu até os meus ouvidos.
deu de ombros.
— Não estava afim. – pegou um sanduíche. – Quer?
— Eu... Por... Caralho, ! Olha o que você fez!!!
Ele revirou os olhos dessa vez, entediado com o meu drama. Como se ele fosse a pessoa mais despojada do universo!
— Você sabe o que eu penso da nossa estadia aqui, . Vamos nos resolver, de uma vez por todas, nem que tenhamos que passar uma semana presos nesse quarto.
Respirei fundo, tampando meu rosto. Ele era inacreditável! Será que ninguém entendia que eu não queria fazer aquilo? Porque todos pareciam muito satisfeitos me forçando àquilo. Mas se eles pensavam que eu me renderia sem uma boa luta... Não acho que alguém realmente pensava isso, mas se pensassem, eu iria mostrar quem é .
— Me dá isso aqui! – disse, arrancando o sanduíche de suas mãos. Peguei também uma latinha de coca no nosso frigobar e voltei para o meu canto próximo a janela.
Se eu ia realmente ser obrigada a passar por aquilo, acabaria com o estoque das garotas por permitir que aquilo acontecesse.
Cerca de duas horas depois, eu estava encarando os últimos pedaços do meu sanduíche, refletindo comigo mesma. Para ser mais honesta, pensando em maneiras de sair dali que não me custassem minha vida na Kappa Kappa Gamma ou o meu pé que ainda estava saudável.
estava congelado na mesma posição há algum tempo, encarando o teto. Ele parecia tão infeliz por estar ali quanto eu, mas se recusava a ceder.
— E se eu comer toda a comida? – questionei. Minha voz o assustou depois de tanto silêncio e ele inclinou suavemente a cabeça em minha direção, perdido. – Se eu comer todos esses sanduíches agora, não vamos ter mais nada para comer. Alguém vai ter que trazer mais e, a não ser que arremessem pela janela, essa porta vai ter que se abrir. – terminei de compartilhar minha teoria.
Ele riu.
— Se você comer todos os sanduíches, nós vamos passar fome. – disse, me corrigindo.
— Besteira! Eles não podem nos deixar dias sem comer.
arregalou os olhos em surpresa, se virando inteiramente para mim agora.
— Dias?! Eles nem mesmo esperavam ter que nos fazer café da manhã. Ninguém vai passar dias aqui, ! – afirmou, mais tentando convencer ele mesmo do que a mim.
— Se vão me esperar ceder, meu amigo... Espera deitado. E acordado porque eu me recuso a dormir de novo, logo, você também não vai. – falei, com um sorrisinho provocante.
Ele jogou a cabeça para trás, soltando um longo gemido de desespero. Eu não iria ceder, mas com certeza faria com que ele o fizesse. Todos nós sabemos o estrago que eu posso fazer quando devidamente motivada.
— Por que você é assim? – grunhiu com as mãos no rosto.
— Uma arte de Deus, sei lá... – dei de ombros. – Não se irrite tão cedo. Você ainda tem muito tempo comigo aqui dentro. – e fiz questão de estender o ‘muito’ para que ele tivesse noção do quão empenhada eu estava.
— Não me importo. – disse, cruzando os braços.
— Não agora, mas daqui horas ouvindo a minha voz, os meus insultos, meu mau humor... Não acho que vá resistir, .
— Vamos fazer um acordo? Não fale comigo a não ser que você queira finalmente resolver isso.
— Ah... Não.
Eu enchi o saco dele pela próxima hora inteirinha, deixando-o jogado na cama da com o travesseiro sobre a cabeça no final. Gostaria de insistir mais, porém o tempo naquele quarto parecia andar com muito mais lentidão do que no resto do mundo. Resultado: cheguei a um ponto em que nem eu mesma aguentava ouvir a minha própria voz.
Odiava aquilo. Tinha um sorriso maldoso no rosto que me fazia parecer confiante quando na verdade eu me sentia desesperada para sair correndo dali. O ar naquele cômodo pesava. Era difícil respirar com medo do que viria a seguir.
No meio da tarde, minha mente estava tão cansada que eu cheguei a considerar a ideia de agarrá-lo de novo. Inicialmente, aquela parecia uma ótima e sempre certeira maneira de melhorar o clima entre nós, isto é, se não houvesse um depois. O nosso último beijo havia me colocado ali e por mais que eu não achasse que poderia ficar pior do que aquilo, o universo tinha um jeito interessante de provar que eu estava errada.
Meu corpo seguia um caminho completamente diferente, no entanto. De pé, atravessando o quarto de um lado ao outro, eu só queria arrumar algo para fazer que não fosse sentar em algum canto e esperar alguém me resgatar daquela torre moderna. Se me dessem uma bola, encheria o saco do até que ele brincasse comigo. Esse era o nível do meu desespero.
No meio do meu zig zag, ouvi alguns passos vindo no corredor que pararam assim que chegaram até a minha porta. Sob os olhos atentos do meu parceiro de confinamento, eu corri para lá, esperando que ela se abrisse. Na minha mente, já podia me imaginar pulando para fora mais rápido do que qualquer um seria capaz de acompanhar e ganhando minha tão sonhada liberdade.
Mas os segundos foram se passando até se tornarem um longo minuto e nada aconteceu.
— Olá!? Eu sei que tem alguém aí, abre a porta!
Forcei a fechadura, que permaneceu tão fechada quanto estava naquela madrugada.
— Não é ninguém. – murmurou e eu decidi ignorá-lo.
— , é você? – nada. – April? Mina? – nada. – Nikki, me deixa sair, eu prometo que vou me comportar.
Meu colega de confinamento riu nessa parte.
— Tá bom...
Mais uma vez, ignorei.
No meio do meu desespero para dar o fora, me abaixei para tentar ver algo por debaixo da porta, conseguindo ver a parte de baixo do que me parecia uma sandália com pedras demais para pertencer a alguém que não fosse a minha melhor amiga. Apesar de, depois daquilo, eu ter que reconsiderar seu cargo.
— , eu sei que é você, tô sendo cegada com tanta pedraria! – imediatamente, seus pés começaram a se comer sem que ela soltasse uma palavrinha sequer. – Não! Volta, por favor!
Ela não voltou naquele momento nem em todas as duas horas que eu passei deitada no chão, espionando aquela fresquinha de visão que eu possuía. Alguns outros pés passaram silenciosamente nesse período de tempo, porém saiam apressados no momento que eu começava a gritar por ajuda.
— Você pode parar de gritar? Não está sozinha aqui dentro e não está sendo atacada para fazer esse escândalo todo! – reclamou.
— Bom, elas não sabem disso, sabem? Tudo que elas sabem é que me prenderam em um quarto com um cara muito mais forte que eu, não acha que eu mereço ao menos um pouco de preocupação?
— Elas me conhecem, sabem que eu nunca levantaria um dedo para você.
Dei de ombros. Eu também sabia que ele nunca faria aquilo. Eu já havia presenciado uma quantidade considerável de momentos de raiva dele e em nenhum deles havia dado um mínimo sinal que fosse de violência em minha direção. Não que isso fosse mais do que a obrigação dele...
Além do mais, descontar seu temperamento nas coisas ao redor não fazia dele exatamente um cavaleiro.
Levantei do chão, já sentindo meus braços e peitos doerem pelo apoio.
— EI! ME TIRA DAQUI! – tentei uma última vez. Nessa, nem fiquei decepcionada pela falta de resposta. Meu coração estava se acostumando a ser ignorado, por mais dramático que aquilo fosse. Quando virei de volta para o meu ex-namorado, ele me encarava com cara de poucos amigos, cobrindo os ouvidos com as mãos. – Aguenta, bebê. Quem não saiu correndo na primeira oportunidade foi você.
Muitas horas e uma bandeja de sanduíche vazia depois, eu sentia que estava prestes a enlouquecer. Por tudo que eu sabia, o mundo poderia estar desmoronando por completo lá fora e cheguei ao ponto de torcer para que me atingisse, assim a porta seria quebrada e eu estaria livre para viver aquele que realmente era o inferno, mas ainda soava melhor para mim do que estar presa naquele quarto com .
Já era madrugada novamente e eu abraçava os meus joelhos, imaginando estar em um universo onde eu não me sentia miserável. De olhos fechados no completo silêncio, meus ouvidos captaram os movimentos de rapidamente, especialmente quando ele se sentou na beirada da cama frente a mim.
— Quer conversar? – balancei a cabeça para os lados, esperando que aquilo fosse suficiente. – ... Por favor! Se nos acertarmos, podemos estar fora daqui em dez minutos. – não respondi e ele suspirou. – Eu realmente tô perdendo a minha paciência.
— Interessante. Eu perdi a minha horas atrás.
— Então por que ainda estamos aqui?
Ergui a cabeça, sentindo ter algum tipo de marca na minha testa por estar há tanto tempo naquela posição. Ele não riu. Estava desanimado demais para achar graça na minha cara.
— Você sabe muito bem o por que. Não diz me conhecer tão bem? – questionei e ele deu de ombros.
— Você mudou muito no último ano. Te conheço bem, mas não acho que possa mais dizer que te conheço por completo.
— Está certo, não pode.
Nós ficamos em silêncio por algum tempo, mas eu sabia que ele não desistiria com tanta facilidade dessa vez. Simplesmente tinha um sentimento sobre. Ou apenas a visão para ver todo o desgaste que quase 24 horas preso comigo havia feito a ele.
— Escuta: nós dois fizemos algumas besteiras no caminho até aqui, umas piores do que outras e... Bom, não podemos voltar no tempo, porém, nós podemos tentar fazer diferente daqui para frente. Olha para essa universidade e o tanto de coisa que ela nos oferece! Você realmente gosta tanto dessas brigas a ponto de deixar elas entrarem entre você e a total experiência universitária?
Talvez eu devesse parar para refletir sobre aquilo. Ele tinha um bom argumento, afinal de contas. Mas isso significaria ceder ou pelo menos chegar muito perto disso. Não estava pronta e diria mais mil vezes se fosse necessário.
— Eu não quero fazer ou pensar nisso agora.
— Sinto muito porque você vai! Vai porque essa é a única coisa na minha cabeça e não me parece justo que eu seja o único a se sentir torturado nesse lugar. – disse, me fazendo querer revirar os olhos. Aquilo, sim, estava ficando repetitivo.
— Você não é o único a se sentir assim, não se preocupe. Agora mesmo, eu acho que preferiria uma tortura física do que isso.
Me levantei do cantinho que sua presença havia me roubado para ao menos me afastar.
— Precisa parar de fazer isso, ... Guardar rancor é pior para você do que para os outros. Não costumava ser assim.
A alguns metros de distância, eu parei para encará-lo novamente com as mãos na cintura, uma posição que já dizia muito do que eu pensava.
— Sério? – questionei e a confusão tomou sua face, sem saber para quê exatamente eu estava falando aquilo. – Você vai ficar citando defeitos meus como uma maneira de me incitar a conversar? Porque a esse ponto já devia saber que tudo que vai ganhar é uma briga. Você não é perfeito, sabia? Claramente não é tão compreensivo quanto a imagem que estava vendendo, todos viram!
— Nunca disse ser perfeito... Especialmente para você eu nunca diria ser. Conhece todos os meus defeitos.
— Então pare de bancar o menino injustiçado que só quer resolver as coisas! Você era o vilão, lembra? Como é que eu me sinto como a própria rainha má? – desabafei. Era a única coisa que ele arrancaria de mim naquela noite. Pelo menos, aquele era o plano.
Eu nunca quis ser a vítima, a garotinha que foi enganada pelo rapaz. Quando parecia ser inevitável que pensassem assim, eu dava o meu jeito de tentar reverter a situação, ainda que nunca tenha realmente funcionado. No final das contas, acabava sempre sendo a pobrezinha enquanto gostaria de ser só a . Nunca havia parado para pensar de verdade no papel que interpretava naquele conto de fadas destorcido.
— Mas eu só quero resolver as coisas! Não estou mentindo agora e não estava mentindo na festa de iniciação meses atrás, eu quero que as coisas fiquem bem.
— Bem, eu não. E a sua vida vai ficar muito mais tranquila a partir do momento que você aceitar isso.
Me virei de costas para ele, querendo fazer algum tipo de saída dramática até lembrar que eu não tinha para onde ir. O mais longe dele seria a cama de cima de um dos beliches. No entanto, não tive que pensar naquilo por muito tempo, pois logo senti sua mão segurar o meu braço, me movimentando até que eu estivesse virada de volta para ele e muito próxima do seu corpo.
— Não vou permitir que você fuja dessa vez, . Não vai me beijar para me distrair ou se encolher em um canto desse quarto porque eu quero ter essa conversa, agora! Você fala comigo quando quer, briga quando quer, faz tréguas quando quer, me ignora quando quer... Eu tô cansado de seguir o seu cronograma, de fazer tudo no seu tempo.
— Terminou? – perguntei sarcasticamente quando ele fechou a boca. – Então me solta! – não precisei falar outra vez, sua mão caiu ao lado do corpo na mesma hora. — Agora pare de agir como um idiota e me deixa em paz!
— Eu estou agindo como um idiota?! Você se olhou no espelho nessas últimas semanas? Parou para pensar em tudo que tem acontecido por um segundo sequer?! – exclamou, parecendo ter zerado sua paciência por ali.
Eu havia parado, sim. Não por muito tempo, com medo de que uma reflexão profunda fosse me fazer questionar e me arrepender de tudo. Mais ou menos a mesma razão para que eu estivesse tão negativa quanto aquela conversa.
Se ele queria começar a erguer a voz, eu definitivamente não ficaria para trás. Quem sabe, com muita sorte, alguém ficaria preocupado o suficiente para vir checar se estava tudo bem.
— Tá me forçando a fazer algo que eu não quero, não tá vendo!?
— Ah, é? Da mesma maneira que você e suas ações tem me colocado nas piores situações possíveis? Quando você força, é bonito, né? Não imaginei que fosse ter que adicionar hipócrita a sua lista de defeitos.
— É DIFERENTE! Você sabe que é! Ao menos, devia saber.
— Diferente como, ?! Quando é você, tá tudo bem, mas quando sou eu, é abominável? Porque essa é a única diferença que eu vejo.
Balancei a cabeça, inconformada, me afastando um pouco antes que eu sentisse a necessidade de partir para violência física. Ele poderia estar muito perto, mas, diferente das outras vezes, nessa não sobrava espaço para desejo algum. Só um grande desespero e muita raiva, ao ponto de eu já nem ter certeza do que estava falando, estava apenas botando para fora o quanto eu odiava estar ali. E o arrependimento por me deixar levar pelo meu corpo, 24 horas atrás. Só o pensamento de que uma pequena mudança de decisões faria com que eu não estivesse presa naquele quarto me deixava possessa.
— Se você não consegue desvendar essa sozinho, não sou eu que vou te explicar! O babaca completo que está sendo nesse momento não merece!
— Ah, claro! Me desculpe por tentar me resolver com você para facilitar as nossas vidas! – ele praticamente gritou, abrindo os braços para se mostrar inconformado com aquilo.
— Deus, , por que é que você quer tanto isso?!
— Por que? Você quer mesmo saber o porquê? É porque essa é a nossa última chance, ! Não entende?
A confusão me fez parar imediatamente. Do que ele estava falando?
— Como assim?
Ele respirou fundo. Parecia mais exausto do que nunca.
— Podemos sentar e ter uma conversa sem gritos? Por favor. Não aguento mais.
Eu imaginava que uma verdadeira expressão de terror tomava conta da minha face. Ele ia anunciar que estava morrendo ou algo do tipo? Porque eu não aguentaria ouvir aquilo.
— Do que você tá falando?
— , do que tem tanto medo? – questionou, ignorando a minha pergunta. – Não precisa falar nada que não queira. Eu posso fazer toda a falação e no final, tudo que terá que fazer é concordar e pronto, está livre de mim. Não é o que quer?
Não era! Minha mente dizia que sim, porém meu coração ia em um caminho completamente diferente.
Ainda sentindo certo choque por todas as mudanças bruscas de clima naquele quarto e me dando por vencida, eu decidi me sentar. Mas só para ouvi-lo melhor e com mais calma, é claro. Um colchão não parecia bom o suficiente, então escolhi o chão. De alguma maneira, combinava com o meu estado de espírito. Apoiei as costas na cama da e me acompanhou ao chão, ficando frente a frente comigo e, felizmente, não forçando a proximidade.
Eu não gostava nada do caminho em que estávamos indo. No entanto, precisava saber exatamente o que ele queria dizer com aquelas palavras de despedida. Ele não podia se despedir, não era óbvio? Podia apenas quando eu o liberasse, por mais egocêntrico e egoísta que aquilo fosse.
— Fala! – o apressei quando ele não abriu a boca imediatamente.
— Bom... – fez uma pausa, parecendo se preparar para o que tinha que falar. – Você sabe como eu me sinto em relação a você e...
— Como? – interrompi.
— Não sabe?
— Eu tenho uma ideia, mas quero ouvir.
Ele deu uma risada nervosa, surpreso com o que eu disse. Talvez não fosse uma boa ideia, mas se eu me sentei para ouvir, queria ouvir absolutamente tudo!
— Você quer ouvir os meus sentimentos? Da minha boca? Você, ?
— Apaga essa cara e começa a falar logo antes que eu mude de ideia, tá legal? Se eu voltar a gritar ali na porta, não quero ninguém reclamando!
— Tá bom! – disse, erguendo as mãos em rendição. Aos poucos, ele neutralizou sua expressão e encostou as costas na cama, respirando fundo. – Eu tenho questionado muito a maneira como eu me sinto porque as vezes não é algo que eu queira realmente sentir, sabe? No final das contas, eu chego sempre a mesma conclusão: não te superei. Nunca tentei de verdade também... Eu sei que você está em um lugar completamente diferente agora. O que eu fiz deixou só ódio e eu entendo... Não completamente, mas entendo. Não espero que você me ame de repente, só que me dê algum espaço por perto. Esse tempo todo eu peguei o que consegui, . Eu levei os socos e tapas, aguentei as ofensas, tentei entrar no espírito da coisa e te dar o que você queria só para estar perto, mas não suporto mais. Por isso, estar aqui é tão importante para mim... Porque se não der certo, eu vou sair dessa sem nada.
A última frase tirou o meu ar e eu não sabia dizer o porquê. Eu não devia me importar. No minuto em que eu pisei o pé naquela universidade, eu desejei que ele se mantivesse longe de mim. Não fazia sentido algum que agora me incomodasse. Eu não estava fazendo sentindo algum!
— Teria coragem de se afastar completamente? – perguntei depois de alguns segundos absorvendo as suas palavras.
— Eu não sei se coragem é a palavra certa. É mais uma necessidade. Não aguento mais as brigas, todos os ataques. Quer dizer, olha o que eu fiz! Armei um escândalo na frente de todo mundo por causa de um ciúme que eu nem deveria sentir... Não mais, pelo menos. Eu trabalhei duro para melhorar, para deixar de ser o cara que ferrou com o nosso relacionamento, não posso jogar tudo aquilo fora. Essas situações só nos fazem mal e se o meu afastamento for o que é preciso para que as coisas se acalmem, é o que eu vou fazer.
Algo estava causando um aperto no meu coração, que aumentava a cada palavra que ele dizia. É, saber como ele se sentia definitivamente não havia sido a melhor ideia, pois estava me permitindo ver. Eu havia fechado os olhos há um bom tempo, pela minha sanidade, agora as coisas estavam vindo à tona aos poucos e não era agradável. Ainda assim, não me arrependia de ouvi-lo.
— E os nossos amigos?
deu de ombros.
— Eu tenho outros amigos, sabia? De resto, teríamos que dividir. Eu sei que sairia como perdedor nessa história porque você é a princesa dos olhos deles, mas é melhor do que nada.
Dessa vez, ele não falou a palavra “princesa” com ódio, como em todas as outras em que havia dito, parecia apenas conformado e eu não gostei nada daquilo. Ninguém devia se contentar com tão pouco, especialmente sendo ele a pessoa que havia me apresentado aos outros.
Arregalei os olhos levemente quando me toquei do que havia acabado de pensar. Era assim se importar com o que ele sentia? Em dias normais, eu simplesmente viraria minhas costas para ele, assim não precisava ver, e seguiria minha vida como se nada tivesse acontecido, ignorando completamente aquele pequeno momento. No entanto, agora ele estava na minha frente, bem diante dos meus olhos que permaneceram cravados na sua figura, sem a intenção de fugir dessa vez. Ainda que eu soubesse que essa seria o caminho mais fácil a ser seguido. Para mim, pelo menos.
— Eu não quero as coisas assim. – disse baixinho, mais por impulso do que qualquer outra coisa.
— Não? – ele questionou, surpreso.
— Não. – abaixei a cabeça apenas por alguns segundos, pensando em qual seria o meu próximo passo e ele esperou, talvez com medo de falar algo que me fizesse mudar de ideia. Eu voltei a encará-lo tão confusa quanto estava quando deixei seus olhos, mas dessa vez com a consciência de que eu estava prestes a dizer algo que poderia levar todo o meu esforço para manter minha armadura água abaixo. – Uma vez... Ahn... Uma vez eu li em algum lugar que o oposto do amor não é o ódio, é a indiferença. Eu acho que concordo.
Eu vi seus olhos criarem algum tipo de expectativa imediatamente, como eu imaginei que aconteceria porque aquele era o . Eu não queria dar expectativa alguma, só ser sincera com nós mesmos. Naquele momento, era como se merecêssemos. Também queria que fosse rápido, pois tinha a impressão de que a qualquer hora eu acordaria e voltaria a atacar mais ainda, para compensar aqueles minutos de fraqueza.
— O que quer dizer exatamente? Porque eu não quero correr o risco de errar na interpretação.
Sorri rapidamente com o leve desespero em sua voz.
— É que as pessoas colocam o amor e o ódio como completo opostos um do outro. Quando o objetivo não é romantizar, eles são proibidos de coexistir, sem consideração alguma às variações. Já o amor e a indiferença realmente não podem existir juntos. Eu não posso ser indiferente a você e me importar ao mesmo tempo. E acho que nós dois vimos bem que eu não consegui ser indiferente a sua presença. – expliquei, tentando passar para palavras o que se passava na minha cabeça. Não cheguei nem perto, porém esperava ter sido clara o suficiente para que ele entendesse.
— Então quando você disse que devia me ignorar, mas achava mais divertido fazer da minha vida um inferno, era porque você não conseguia ser indiferente a mim?
Assenti.
— A sua presença realmente me irrita.
— Certo. E isso não quer dizer exatamente que você me ama? – neguei. – Como se sente sobre mim, então?
Eu acabei rindo, acreditando que ele estava fazendo alguma de suas brincadeiras, mas ele permaneceu sério.
— Não está realmente me perguntando isso, né?
— Eu acabei de te dizer como me sinto, por que não pode fazer o mesmo? – questionou e eu imediatamente abri a boca para dar uma resposta daquelas, até perceber que eu não tinha uma. Era justo que eu falasse também. Só não queria.
— Acabei de dizer que você me irrita.
— Mas não pode ser só isso e nós dois sabemos que não é! Se fosse, essa conversa teria terminado há um tempo.
— Tudo bem. Vou parar de falar, então. – ameacei, cruzando os braços.
Ele riu da minha expressão zangada.
— É isso mesmo que quer?
Não era. Não que eu estivesse me divertindo, fazer aquilo era realmente terrível. Mas um terrível certo, se é que aquilo existia. Nem chegava perto da tortura que imaginei. Quando namorávamos, nós costumávamos ter sempre essas longas conversas e talvez eu sentisse falta delas. Ou gostava apenas daquela clareza que algumas de suas respostas me davam. Ou do alívio de ter a coragem de liberar algo, mesmo que mínimo, pois ele também estava liberando. Todos juntos, quem sabe.
Se na minha mente era difícil admitir, em voz alta me parecia quase impossível. No entanto, aquela parecia uma boa hora – com certeza, melhor do que todas as outras – para deixar um pouco do orgulho de lado.
— Eu não te amo. – comecei, já arrancando uma careta dele. – E não vou me desculpar por isso. Nós vivemos muita coisa juntos. Pode ser o fundo de amizade, a intensidade da nossa relação, o primeiro amor, eu não sei... Algo me garante que você nunca vai ser apenas um cara do passado para mim. Mas... Tudo o que você fez me machucou pra caramba e eu não sei como esquecer isso.
Fraca como eu era, disse cada palavra encarando as minhas mãos. Quando voltei a olhar para ele, fiquei surpresa – quase ofendida – com o sorriso em seu rosto.
— Percebeu o que você acabou de fazer? – neguei com a cabeça. – É a primeira vez que você admite para mim que eu te machuquei.
— E você tá feliz com isso?!
— Sim! Porque de alguma maneira, você se abriu para mim, mesmo que por apenas um segundo.
Poucas vezes na vida, nós temos momentos em que o universo vem e nos dá um tapa na cara. Sentada ali, encarando um dos mais lindos sorrisos que o via dar em algum tempo, eu me peguei em um desses.
e eu costumávamos ser tão próximos que nada passava despercebido um pelo outro. Nós compartilhávamos tudo, segredos, planos, comida, as vezes até roupas. E agora, ele morria de felicidade apenas por ouvir da minha boca algo que ele já sabia. Não mais que uma frase, só uma confissão, uma confirmação de tudo que as minhas atitudes vinham mostrando.
Durante alguns milésimos de segundos, me senti realmente mal. Havia me tornado uma pessoa tão amarga com ele ao ponto dele achar que aquilo era grande coisa. Por mais que eu quisesse acreditar que ele merecia tudo aquilo e muito mais, uma vozinha irritante na minha cabeça dizia que talvez eu tivesse ido longe demais. Eu não gostava daquilo. Não bastava o resto do mundo questionando meu comportamento, era inaceitável que eu mesma também o fizesse.
Aparentemente já sem a capacidade de controlar meus próprios pensamentos, que eram jogados contra mim desordenados e com uma força surpreendente, eu pensei rapidamente que não me reconhecia mais. Lembrei da de tempos atrás, que criava alguns problemas, mas acima de tudo conseguia administrar a maioria das situações, deixava a razão sempre em primeiro lugar e que tinha maturidade para escolher se afastar de vez daquele que a causava dor, sem maiores intrigas. Ela não existia mais. Na verdade, ela poderia muito bem ser aquela voz da razão sendo constantemente ignorada em minha cabeça.
Agora, ao invés de organização, eu trazia mais bagunça ainda por onde passava e por mais divertido que eu achasse, aquele era o motivo da minha pena de quase vinte e quatro horas até aquele momento em meu próprio quarto.
Em algum ponto, eu virei a vilã da história. E em outro muito louco, se tornou tão vítima que até eu sentia pena do garoto. Senti meus olhos se arregalarem levemente enquanto eu encarava o espaço vazio entre nós dois. O que diabos havia acontecido com o mundo!?
— Ei, tá tudo bem? – o mocinho questionou, jogando as mãos para todos os lados na tentativa de chamar minha atenção. Eu quase ri porque ficou parecendo uma dança muito ruim.
— Sim, só estava pensando...
— No que?
Travei de novo.
O motivo para eu colocar a minha bunda naquele chão era para ouvi-lo falar. No meio disso, eu já havia soltado informações que não pretendia, mas não foi de todo terrível. Responder aquela pergunta significaria realmente me engajar naquele diálogo, dar um passo na direção das pazes que queriam forçar da gente, e eu precisava ponderar se aquilo era algo que eu gostaria de fazer.
O problema era que nem todo pensamento no universo me faria ter certeza. Eu sabia que era algo que tinha que fazer e o resultado só viria depois, com o tempo e o amadurecimento daquela relação. Se é que tínhamos uma.
Decidi arriscar. Ainda que pudesse ser um passo a frente para nós naquele momento, aquela não era uma decisão sensata, que a antiga faria. Na verdade, se eu estivesse naquele mode, teria concordado com a ideia dele se afastar. Ele era meu ex, o cara que me fez mal por muito tempo, apesar de nós simplesmente termos ignorado, e nada bom pode sair desse tipo de convivência.
— Só estava pensando que eu não tenho sido muito justa com você. – confessei.
Ele se surpreendeu mais uma vez.
— Ah, é? Por que?
— Acho que perdi o controle de tudo. Bom... Se eu estou sendo sincera, acho que nunca tive controle de nada. Desde o momento que te vi no meu primeiro dia aqui, tudo ficou bagunçado. Olhando para trás agora, é como se eu estivesse sendo jogada para todo lado, pelos outros, por mim mesma, por você... Convivência, iniciação, vingança, provocações, irmandade, aulas, tanta coisa nova.
— Então... Você se arrepende de tudo? – perguntou hesitante, parecendo ter medo de que eu fosse jogar algo nele ou coisa do tipo.
— Não! – respondi imediatamente. – Quer dizer, é complicado! Ao mesmo tempo que eu acho que poderia ter pegado um outro caminho, penso que tudo que eu fiz me ajudou a extravasar aquela raiva que eu não consegui sentir antes. Talvez eu poderia ter feito uma outra abordagem, sei lá, O CONTROLE, ! EU PERDI!
Eu via claramente o esforço que ele fazia para se manter sério diante do meu surto. Quis soca-lo por aquilo, porém sabia que faria o mesmo em seu lugar.
— Fica calma, desenvolve uma coisa por vez. Por que não conseguiu sentir raiva antes?
— O que é você? Meu psicólogo?! – exclamei, não podendo conter o aumento da minha raiva pelo tom sereno que ele insistia em usar.
— Não. Relaxa, não fica brava de novo. – disse e lá no fundo, eu pude ouvir o desespero de quem já não sabia mais o que fazer caso acontecesse.
— Então para de fazer esse tom zen, pelo amor de Deus!
Ele assentiu.
— Certo, ! – agora ele investiu na voz forçada de um apresentador de televisão, esticando o final das frases. – Vamos então para a próxima perguntaaa: por que você não conseguia sentir raivaaa?
— !
Estiquei uma das minhas pernas para chutar a dele, que riu.
— Desculpa, só queria tirar um pouco do seu estresse. – funcionou, mas tudo que fiz foi soltar um sorrisinho para mostrar que eu estava bem novamente. – E então? Por que?
— Eu não tenho certeza. Acho que só estava tão mal com o que havia acontecido que não sobrava espaço para a raiva. Além do mais, eu estava meio ocupada tentando fingir que não me importava, não sobraria tempo para armar contra você nem se eu quisesse.
— Você fingia?! – ele exclamou, chocado com a nova informação. Encolhi os ombros e assenti. – Você tem ideia do quão miserável me fazia ao andar por aí como se nada tivesse acontecido? Como se o fim do nosso relacionamento tivesse sido bom para você?
— Na verdade, eu tenho sim, mas eu não acho que você queira comparar dores.
não precisou de mais que um segundo para concluir que realmente seria uma péssima ideia. No entanto, algo em sua mente parecia deixa-lo nervoso pela careta que fazia. Apesar da curiosidade, eu não perguntei, pois imaginava que me arrependeria logo depois. Porém, sendo a pessoa que era, ele não demorou muito para verbalizar seu incômodo.
— Posso fazer uma pergunta? – assenti, afinal de contas, eu já estava respondendo milhares, por que não adicionar mais uma? – Promete que vai se controlar para não ficar brava? É uma curiosidade. Inocente!
— Eu prometo não ficar brava se a pergunta não me deixar brava. – respondi com um sorrisinho, mas sua careta foi intensificada.
— É, isso não vai ser suficiente para essa pergunta. Realmente preciso que prometa.
Suspirei. Agora eu estava ficando preocupada. Estúpida como era, a curiosidade crescia paralelamente.
— Tá! Vou tentar. Mas pergunta logo.
— Ok... O que eu quero saber é: por que agora você carrega todo esse ódio? – ergui as sobrancelhas, me perguntando se eu realmente havia acabado de ouvir aquilo. – Espera! Me deixa explicar! Tô querendo dizer que... Bem, muitas pessoas são traídas ao redor do mundo e não acho que uma parcela muito grande passa a carregar tanto ódio. , você mal permite que eu te toque! Você pega qualquer oportunidade que tem para me fazer sentir mal e... Isso não é normal, é? Até o Ross e a Rachel eventualmente deixaram as brigas de lado e se tornaram amigos, já que você gosta tanto de nos comparar a eles.
Fiquei quieta, uma atitude sempre estranha quando partia de mim. Sentia que deveria pular nele e partir para a briga por sequer ter a coragem de fazer uma pergunta daquelas, mas eu só fiquei triste por ele ter que fazê-la. Finalmente, dessa vez a tristeza não era comigo.
Depois do que havia acontecido alguns dias antes, era muito estúpido que eu ainda tivesse expectativas em relação a ele. No entanto, aquela vinha de muito tempo atrás. Eu nunca havia confirmado se ele sabia ou não antes, simplesmente porque não queria entrar naquele assunto de jeito nenhum, a fim de evitar visitas desnecessárias a certos lugares. Naquele momento, acabei descobrindo que ele não sabia e era mais decepcionante do que pensei que seria. Não que eu passasse muito tempo pensando naquilo.
— Eu não quero responder essa pergunta. – disse de uma vez só, esperando não ter que repetir.
Eu continuava aterrorizada apenas com a ideia de visitar aquele cantinho do meu cérebro porque doía e doía muito. Talvez eu não ficasse tão apavorada ao ponto de tremer só com a possibilidade se em todo aquele tempo tivesse pensado e trabalhado com aquilo ao invés de apenas ignorar a existência. O mal já estava feito, de qualquer maneira.
— Por que?
— Só não é um assunto que eu goste de entrar.
— Por quê?
Revirei os olhos.
— Porque não, ! Dói, tá bom? Nós já não fizemos um grande avanço hoje? Não tá ótimo para você?
— Sinceramente? Não. Porque eu tenho certeza que no momento em que sairmos desse quarto, você vai agir como se nada tivesse acontecido. Me atrevo até a dizer que vai voltar com todas aquelas implicâncias como uma forma de compensar pelo pouco que falou. – explicou. Eu queria não concordar, mas ele me conhecia bem demais em alguns aspectos.
— Deus, ! O que quer de mim?!
Ele se aproximou, ficando um pouco a frente de mim. Perto o suficiente para alcançar uma das minhas mãos, que segurava os meus joelhos. Mais do que nunca, eu fiquei com medo. Não do seu toque ou que ele fosse fazer algo ruim, muito ao contrário, pois nem o afastei. Eu tinha medo dele arrancar aquilo de mim. Tinha mais medo ainda de como meu emocional iria reagir com aquilo. Não queria chorar, não queria mostrar fraqueza ou vulnerabilidade alguma.
— Só quero que seja honesta comigo. – respondeu, calmo, me olhando nos olhos. – Quero poder sentar do seu lado no café da manhã sem ouvir nada, andar juntos até a próxima aula porque nossas salas são próximas, te convidar para ir beber alguma coisa só nós dois, quero ser seu amigo, . E eu sei que, para isso, você precisa colocar tudo o que tem guardado aí dentro para fora, então vamos! Eu não me importo.
— Você definitivamente não quer ouvir tudo que eu tenho guardado! – disse, deixando uma risada leve escapar junto. Qualquer um poderia ver que era puro nervosismo.
— Eu quero mais do que qualquer coisa.
Ele não fez nenhuma gracinha nem piscou enquanto dizia aquelas palavras. Seus olhos estavam fixos em mim de uma maneira que não aguentei a pressão e acabei desviando. Meu olhar caiu na mão que ele segurava com firmeza, tentando passar alguma força. Era fofo. Me fazia querer dizer tudo e acabar com aquilo de uma vez por todas, mas quando eu abria a boca para tentar, a minha garganta parecia se fechar completamente.
— Eu não quero chorar. – sussurrei.
— Eu sei. Você nunca quer. – ele disse, também baixinho. Estávamos próximos, não precisávamos de mais do que aquilo. – Mas, ... Pensa no peso que você vai tirar do seu coração. Eu sei que você tem a tendência de guardar as coisas até que elas começam a te intoxicar e não quero isso para você de novo.
De todas as palavras que ele disse, foi o ‘de novo’ que me pegou. Eu sabia a quê ele se referia, aquela que foi definitivamente a pior fase da minha vida: meus doze anos, a época em que eu decidi abandonar completamente as coisas que gostava de fazer apenas para me encaixar no padrão que todos pareciam ter de garotas da minha idade. Foi quem me tirou daquela também.
Eu tinha que admitir de que o sentimento de sair daquela posição em que eu mesma me enfiei havia sido libertador. Como se eu tivesse acabado de voltar a respirar depois de muito tempo. Não deixava de ser difícil.
Pelo meu bem pessoal, decidi começar aos poucos, de maneira que eu pudesse parar a qualquer momento se sentisse grande necessidade.
[Deem o play aqui, bebês. Se a música acabar no meio da leitura, é só dar play de novo.]
— Você lembra aquele dia em que estávamos na casinha da árvore e você me fez todas aquelas perguntas sobre as minhas mudanças. Depois, em uma conversa muito parecida com essa, você acabou me convencendo a soltar tudo aquilo que eu estava segurando há meses, não é?— Sim, eu me lembro. – respondeu e eu soube que ele sorria pelo tom, pois meus olhos continuavam firme em nossas mãos juntas. Apesar dele ser o único segurando enquanto eu só a mantinha ali, não quis largar.
— Eu acho que não te contei o que aquilo significou para mim.
— Quer contar? – eu assenti rapidamente. – Tudo bem.
Eu continuei em silêncio por alguns bons minutos, mas ele esperou pacientemente. Queria ter certeza da abordagem certa ao fazer aquilo. Sabia que estava trêmula e que ele sentia, porém aquela era a menor de suas preocupações.
To seeing shows in evening clothes with you | Até assistir shows usando roupas de gala com você
From nervous touch and getting drunk | De toque nervoso e ficar bêbado
To staying up and waking up with you | Para ficar acordado e acordar com você
— A maioria das pessoas tem certa facilidade para se abrir. Talvez não com todo mundo, mas pelo menos sua família ou melhores amigos. Todos parecem ter algum tipo de confidente com quem compartilham tudo aquilo que causa dor, aflição ou felicidade. Você sabe que comigo nunca foi tão simples assim. Eu sempre soube que podia confiar em você, te falar qualquer coisa, isso sempre foi claro para mim. Só que... Bom, na hora de desabafar sobre aquilo que me incomodava mais do que tudo, eu parecia ter algum tipo de bloqueio. Eu não queria te incomodar com os meus problemas, não queria que pensasse que eu era fraca para deixar besteiras de adolescente me incomodar, simplesmente não conseguia dizer as palavras. Quando você arrancou elas de mim, eu vi o quão incrível era ter alguém para me dizer que tudo ficaria bem, mesmo que as chances fossem mínimas. Eu senti liberdade, conforto, você acabou se tornando de uma vez por todas o meu porto seguro, aquele para quem eu corria a qualquer momento. Eu nunca me senti sozinha no mundo, sempre soube que tinha pessoas maravilhosas ao meu redor e sempre me senti muito sortuda por isso, mas, de alguma maneira, ter a liberdade de compartilhar levou uma certa solidão que as vezes pairava sobre mim... Sabe qual é o problema de ter um porto seguro?
— Qual?
— Quando ele afunda, você acaba indo junto. Apenas porque nunca largou, confiando que ele sempre te daria segurança.
Holding something we don’t need | Segurando algo que não precisamos
All this delusion in our heads | Toda esta desilusão em nossas cabeças
Is going to bring us to our knees | Irá nos colocar de joelhos
Ele ficou calado por um tempo, pensando no que eu havia acabado de dizer. E eu aproveitei para tentar acalmar o meu coração que parecia querer pular direto para fora do meu corpo.
Respirei fundo duas, três, quatro vezes. Aquela era a parte mais fácil de dizer em voz alta e mesmo assim eu já sentia meus olhos úmidos. Um outro motivo para não olhar para cima. No entanto, só nesse momento percebi que eu segurava a mão dele agora. Com força, pelos nós saltados dos meus dedos. A sua mão ali, sem mexer um centímetro sequer mesmo depois das minhas últimas frases, me deu algum tipo de conforto. O tipo de conforto que eu precisava para continuar falando.
— O que você quer dizer? – ele finalmente perguntou.
— Eu sei que você não é o único questionando a maneira com que eu ajo. – comecei, não respondendo sua pergunta diretamente, mas no final ele teria a resposta. – Sei que a maioria das pessoas acha anormal, até patético, tudo o que eu faço para ferrar um cara que clamo ter superado. Aposto que nenhum de vocês pararam para pensar que talvez você ter ficado com a Hailey não seja o problema maior.
Mais uma vez, silêncio.
— O quê? Como assim? – ele voltou a perguntar algum tempo depois.
Why don’t you be you and I’ll be me? | Por que não pode ser apenas você e serei apenas eu?
Everything that’s broke, leave it to the breeze | Tudo que está quebrado, deixe o vento levar
Why don’t you be you and I’ll be me? | Por que não pode ser apenas você e serei apenas eu?
— Antes de ser meu namorado, você era meu melhor amigo. E você não tem ideia de como dói a traição de um amigo. Não tem ideia do que foi, para mim, sentir todos aqueles olhares nas minhas costas logo depois de descobrir que você beijou outra garota e escolheu não me contar. Todos estavam esperando a minha reação, ... Todos eles atentos a qualquer lágrima que eu pudesse derramar para sair por aí contando da garota que ficou aos prantos ao descobrir que seu namorado a havia traído. – fiz uma pausa, sentindo algumas lágrimas escaparem. Eu ia encostar minha cabeça no meu joelho dobrado a fim de esconder, mas desisti no meio do caminho. Soltei sua mão e ergui o rosto e pude ver que ele não tinha reação, apenas me encarava tentando assimilar o que eu dizia. Havia começado, agora iria terminar. – Não foi o beijo, não foi nem mesmo a divulgação da foto porque eu sei que você não esperava que aquilo acontecesse. O que me machucou mais do que qualquer coisa foi que você escolheu esconder aquela informação, você me tirou o direito de estar preparada para o que viria. Eu ficaria chateada pela Hailey na hora, como fiquei, mas nós tínhamos terminado, seríamos capazes de superar. Já tivemos brigas piores do que aquela! Nós sempre fomos honestos um com o outro em relação a tudo e daquela vez, você decidiu ir em outro caminho e me fez vulnerável em frente a um colégio inteiro. Pegou toda aquela confiança e coragem que eu me esforcei tanto para construir, amassou e jogou de volta na minha cara. Deu a munição que algumas pessoas precisavam para fazer a minha vida um inferno pelos próximos dias. Me deixou completamente sem chão só para esconder um erro que poderíamos ter contornado. Então quando eu digo que você me traiu, foi porque traiu, sim, a sua melhor amiga, traiu todo o valor que te foi dado, toda a confiança, e ela e sua namorada precisaram sofrer as consequências. Elas precisaram colocar um sorriso falso no rosto e ao menos tentar passar por cima daquele escândalo quando estavam em pedaços por dentro. Você perdoaria isso?
To teeth and claws and slamming doors at you | A ranger os dentes e bater a porta na sua cara
If this is all we’re living for | Se isto é tudo para o que estamos vivendo
Why are we doing it, doing it, doing it anymore? | Por que continuamos fazendo isto?
Eu realmente senti a leveza, mas foi porque ela deixou um vazio. Quando eu terminei de falar, perdi completamente a força momentânea que adquiri e me senti forçada a deixar seus olhos de novo, dessa vez opacos, tremendo pelas lágrimas que o cercavam. Tampei o rosto, sentindo como se tivesse acabado de perder o meu chão de novo. Eu sabia que devia ver aquilo como algo bom, um verdadeiro avanço, porém o que eu sentia ia completamente em outra direção. Foi como se uma onda, grande e gelada, me atingisse, carregando consigo toda a dor por termos chegado a aquele ponto.
Me sentia estranha, como se estivesse passando mal. Pensei na noite anterior e em todo o prazer que havia sentido ao observar duas casas ao ponto de se enforcarem por causa de algo em que eu dei o pontapé inicial e nem aquilo me confortou. Na verdade, fez com que me sentisse mais mal ainda, pois tudo aquilo parecia tão pequeno e superficial perto de todas as coisas que eu havia acabado de dizer. E eu sabia que pensar aquilo era completamente estúpido e egoísta da minha parte, pois, para todas as pessoas que moveram os céus para fazer aquela semana da iniciação acontecer, aquilo não tinha nada de pequeno. Definitivamente não parecia superficial na hora. E a culpa da proporção que tudo havia tomado era unicamente minha.
Eu não sabia o porquê, mas de repente eu me senti idiota pra caralho. Até doente por sentir algum tipo de prazer ao observar duas casas querendo matar uma a outra. Duas casas que costumavam fazer uma parceria incrível! Agora eu havia infernizado tanto a vida de tantas pessoas que a única solução que encontraram foi me trancar dentro de um quarto. Pessoas não deviam precisar disso para aprender algo, para acordar para a vida! Pessoas deviam ouvir e ponderar, procurar a melhor solução para todos, coisa impossível de se fazer quando sua cabeça está tão fechada em um único objetivo!
Eu criei uma caixinha no fundo da minha mente e joguei lá tudo que me machucava. Em algum momento, acabei me trancando junto.
It’s funny how reflections change | É engraçado como os reflexos mudam
When we’re becoming something else | Quando estamos nos tornando outra coisa
I think it’s time to walk away | Eu acho que é hora de ir embora
Era maldoso comigo mesma retomar aquele assunto, mas não pude deixar de pensar que estava ali mais milhares de razão para a ter escolhido esconder coisas tão importantes de mim. Eu estava sendo insuportável! Quando até considera desistir completamente de você, tá na hora de ficar preocupada.
— , olha para mim. – o ouvi dizer com a voz embargada e balancei a cabeça, negando. – Por favor, ! Olha, eu tô chorando também.
Ergui o rosto dessa vez e ele realmente estava. Não tinha uma cachoeira sob os olhos como eu, mas eu podia ver as marcas que algumas lágrimas deixaram. Ao invés de esperar que ele dissesse algo mais, eu simplesmente desabafei, esquecendo completamente que ele poderia ter algo a dizer sobre o meu pequeno discurso.
— Eu não sei o que eu tô fazendo, todos esses sentimentos ruins... Eu não quero mais eles, . Eu só quero esquecer.
Why don’t you be you and I’ll be me? | Por que não pode ser apenas você e serei apenas eu?
Everything that’s broke, leave it to the breeze | Tudo que está quebrado, deixe o vento levar
Why don’t you be you and I’ll be me? | Por que não pode ser apenas você e serei apenas eu?
Obviamente, ele não reclamou por um segundo sequer. Apenas se aproximou mais para que pudesse me envolver em um abraço. Passei os braços ao redor de sua cintura e me grudei a ele, mesmo que sua forma, seu cheiro, tudo sobre ele fizesse meu coração doer naquela hora. Entretanto, se eu fechasse os olhos, poderia fingir que o último ano e meio havia sido apenas um sonho e pensar apenas na confiança, em todo o carinho que eu sentia por aquele garoto.
— Tá tudo bem. Deixa eles irem embora com as suas lágrimas, tá bom? – ele sussurrou no meu ouvido e eu segui seu conselho.
Não queria mais ter que fingir que não me importava com nada, que era inatingível, ninguém poderia me machucar porque eu tinha uma armadura que me protegia. A minha armadura vinha sendo eu mesma. As coisas batiam contra mim e eu simplesmente as jogava para dentro, agia como se não estivessem lá. Ele estava certo. Aos poucos, elas iam me intoxicando. E não só a mim, mas a todos ao meu redor.
When we know it just don’t belong | Quando nós sabemos que elas apenas não se pertencem
There’s no force on earth could make me feel alright, no | Não há força na terra que pudesse me fazer sentir tão bem
Eu cheguei naquela universidade como uma garota divertida. De personalidade forte, mas alguém que as pessoas queriam estar junto. Eu consegui entrar na Kappa Kappa Gamma não por causa do teatrinho que armei e sim porque aquelas garotas viam algo de verdadeiro em mim, algum potencial que somaria àquela casa. E então eu decidi usar o meu potencial para fazer um desfile nu... Contra a vontade do modelo. Surpreendentemente, agora não tinha mais tanta graça, e eu aposto que as garotas não teriam achado tão impressionante se soubessem aonde aquilo as levaria.
Mais confortável do que eu estive em algum tempo, eu chorei. Molhei completamente a camiseta dele sem ouvir um ‘a’. Eu sabia que aquilo aconteceria no exato momento em que percebi que estava trancada com o , por isso fiquei tão apavorada. Chorar me apavorada porque mostrava fraqueza. Era importante para mim que ele não soubesse o quão fraca eu era. Só me esqueci quem era a pessoa com quem eu estava presa. Ele nunca veria aquilo como fraqueza e certamente não a usaria contra mim porque, ao contrário de uma certa alguém, ele tinha escrúpulos, bom senso, talvez amor. Um amor que eu definitivamente não vinha merecendo.
When it’s just to heavy to hold | Quando é muito pesado para segurar
Think now’s the time to let it slide | Acho que chegou a hora de deixa-lo deslizar
Não tenho certeza de quanto tempo se passou, mas eventualmente eu tive que deixar o seu abraço e o cafuné que ele fazia na minha cabeça. Quando o encarei, de volta a minha posição, ele abriu um sorriso leve. Acabei retribuindo, mesmo não sentindo nada bom o suficiente que me custasse um sorriso por dentro.
— Melhorou?
— Mais ou menos.
Minha voz falhou. Depois de todo aquele choro, eu não queria nem imaginar o estado do meu rosto.
Colocar as coisas para fora parecia agora uma ideia boa. O problema é que aquilo me trouxe a noção do impacto de tudo o que eu estava fazendo naquele campus e aquilo definitivamente levaria um tempo para passar. Abrir os olhos... Não tão fácil quanto parece.
Why don’t you be you and I’ll be me? | Por que não pode ser apenas você e serei apenas eu?
Everything that’s broke, leave it to the breeze | Tudo que está quebrado, deixe o vento levar
Let the ashes fall, forget about me | Deixe as cinzas caírem, me esqueça
— Quer conversar com calma agora? – dessa vez, eu concordei imediatamente. Parecia apenas certo que eu concluísse o que havia começado de uma maneira muito estranha. – Posso começar dizendo que eu me sinto o cara mais imbecil do mundo por ter visto apenas a superfície do que realmente aconteceu no dia em que terminamos? Para alguém que se orgulhava de te conhecer tão bem, é patético que eu não tenha percebido isso. Você estava certa, afinal de contas, eu sou bem patético.
— Não, não é assim. – o interrompi, com a lembrança do dia em que joguei todo o meu veneno para cima dele. Se lá, com o meu ódio em seu ápice, eu me senti mal, hoje eu poderia facilmente me socar. – Você não é patético, só meio trouxa. Mas eu também sou de vez em quando.
— Ainda assim, é inaceitável que você tenha tido que me falar isso. Eu sinto muito, , muito! Não tinha ideia da profundidade daquele problema. Fui um idiota completo e nem sei mais se eu mereço o perdão que tanto peço. Apesar disso, eu vou continuar pedindo. Vou esperar o dia em que você vai estar pronta para me perdoar, mesmo sem garantia de que ele vá chegar.
— Tudo bem. Só não quero que fique exigindo. Preciso de tempo e de espaço para rever muita coisa, e a culpa é meio que tua. – afirmei e ele sorriu.
— Sei que meti os pés pelas mãos milhares de vezes nessas últimas semanas, mas eu mudei, . Aprendi muita coisa nova, não sou mais aquele cara sufocante.
— Aprendeu mesmo, ? – ele franziu o cenho, confuso. – Como estão você e a Nikki?
E então ele entendeu.
— Com a Nikki é... É diferente. O que nós tínhamos era diferente. – ele tentou se explicar, porém não colou.
— Ah, é? Se lembra quando nos beijamos na noite da iniciação? Eu ainda não sabia, mas vocês já tinham algo. Acha que ela gostou de ver a gente se agarrando ontem? Eu sei que eu não tô com a razão aqui, também errei, mas eu não tô afirmando ter mudado. Na verdade, a cada segundo que passa eu me lembro de outra merda que fiz e me martirizo por ela na minha cabeça.
Ele suspirou, cabisbaixo.
— Nós nunca tivemos algo sério. Eu até tentei transformar o nosso relacionamento em algo sério no final do ano passado, mas ela não quis! O que eu posso fazer?
— Se resolver com ela é o que você pode fazer! Não importa que vocês não tenham nada sério, aquela garota guarda um carinho gigantesco por você e não merece te ver se agarrando ou correndo atrás de outra pessoa quando vocês ainda estão mal resolvidos.
— Eu sei, eu sei. – admitiu, frustrado. – Vou consertar isso, eu prometo.
— Ótimo.
Achava irônico que eu ainda me atrevesse a dar conselhos quando a minha própria vida estava mais bagunçada do que nunca. Eu pensava que havia deixado todas as minhas incertezas no ensino médio, porém agora me encontrava mais confusa do que nunca. Tão confusa quanto me senti depois que e eu terminamos, sem saber para onde ir. Tinha a impressão de que no segundo em que eu pisasse para fora daquela porta, eu teria que recomeçar, desfazer os estragos que causei, refazer as amizades que perdi, trazer essas casas de volta uma para a outra.
Não tinha ideia de por onde iria começar, então foquei apenas na hora em que eu daria aquele passo para fora.
— Posso fazer uma pergunta?
O olhei desconfiada. Na última vez em que me perguntou aquilo, eu acabei chorando toda a água do meu corpo para a regata dele. Ainda molhada, aliás.
— Se ela não envolver o passado, pode.
— Você não se vê mais comigo? – ele jogou imediatamente, fazendo com que eu me arrependesse da permissão.
Nós estávamos sendo sinceros, não é? Na verdade, toda aquela conversa sempre acabava voltando para a sinceridade. Parecia ruim começar aquela que parecia ser uma nova fase já ferindo os seus sentimentos.
— Quer mesmo saber? – ele assentiu. – Não, eu não me vejo.
Ele tentou disfarçar a expressão de tristeza, mas não era muito bom naquilo.
— Por que? – sussurrou.
— Eu não posso voltar para o que a gente era, . Simplesmente não posso. Desculpa.
— Mas nós éramos incríveis, ! Todos naquele colégio sonhavam em ter um relacionamento como o nosso, sem rotina, cheio de cumplicidade... Você não pode voltar para o casal perfeito?
Talvez ele tivesse mudado mesmo. No entanto, essa mudança não afetou a visão que ele tinha de nós dois. Já eu agora nos via com olhos completamente diferentes.
— Nós não tínhamos rotina porque brigávamos o tempo todo! Brigas constantes assim só não bonitas na ficção. Na vida real, elas desgastam, causam feridas... Me surpreende que você abomine as que temos agora, mas de alguma forma admire as antigas.
— Eu não as admiro. Pelo menos naquela época nós estávamos juntos e os nossos momentos bons faziam todas elas valerem a pena, não se lembra? – ele insistiu.
— Me lembro bem. – sorri, tentando confortá-lo. – Ainda assim, não era certo. Eu sei que é difícil aceitar, eu mesma levei muito tempo para conseguir, mas o nosso relacionamento era terrível. E eu não falo só do seu ciúme, quer dizer... Eu odeio mais que tudo admitir, mas eu era, sim, controladora. Talvez ainda seja e preciso trabalhar nisso, assim como você trabalhou nos seus defeitos.
De ombros caídos e olhos no chão, parecia ter perdido toda a alegria pelo que havia conquistado. Não queria começar daquela maneira. Eu não podia negar para ninguém (apesar de o fazer) que sempre teria sentimentos por ele e seria fácil para mim simplesmente fechar os olhos e beijá-lo até que não aguentássemos mais. No entanto, aquela seria uma decisão da que eu estava apavorada por ter me tornado.
— Eu sei que isso é estúpido, mas eu posso ao menos tentar? – ele perguntou, erguendo seus olhos azuis pidões para o meu lado.
— O que quer dizer?
— Posso tentar te reconquistar? Vou me contentar com a sua amizade se me disser não, é claro.
Eu não sabia se gostaria daquilo. Especialmente porque eu poderia não resistir. Deus e o mundo sabem o quão atraente é aquele garoto a minha frente. Porém não me sentia no direito de negar aquilo a ele.
— Pode. Mas só depois que você se resolver com a Nikki!
Seu sorriso voltou, tão iluminado que nunca parecia ter desaparecido.
— Perfeito! – exclamou.
— O que nós fazemos agora? – questionei, olhando ao redor.
— Você tem mais alguma coisa que precise me dizer?
Neguei com a cabeça.
— Não agora, pelo menos. Talvez com o tempo.
— Então tudo que temos que fazer é chamar alguém, sair daqui e tentar manter uma boa convivência um com o outro.
Parecia bom para mim. Isto é, até ele tirar o celular do bolso de sua calça jeans. Abri a boca, chocada com o pequeno aparelho tão próximo de mim e ainda funcionando.
— Você disse horas atrás que sua bateria acabou! – ele apenas deu de ombros. – Eu sinto que deveria te odiar pra caralho agora.
— Você pode me odiar de vez em quando, sabia? É como o mundo gira. Mas só de vez em quando. – disse com o dispositivo no ouvido.
Podia, porém não queria começar as nossas meia-pazes desse jeito. Apenas meia porque ainda tínhamos um milhão de coisas para resolver, mas disso trataríamos com o tempo. e eu tínhamos tanta bagagem que nem semanas presos naquele quarto dariam conta.
— A Nikki não tá atendendo.
Muitas tentativas foram feitas depois daquela até que o telefone realmente perdeu toda a sua bateria. Depois de tudo o que aconteceu, nós acabamos voltando para o lugar onde as coisas se iniciaram: batendo na porta e gritando.
— EI, NÓS JÁ ESTAMOS BEM. PODEMOS SAIR! – ele gritava.
— EU TÔ COM FOMEEEEEE!
— Ai!
— Desculpa.
Enquanto continuou o trabalho, eu me virei e encostei as costas na porta, sentindo minhas mãos voltarem a doer. Por estar de costas para janela, só então eu notei luzes vermelhas e azuis do lado de fora. Dei alguns tapas no braço dele para chamar sua atenção e corri até lá. Lá embaixo, estacionada pobremente em cima do nosso gramado, estava uma viatura da polícia.
— Que porra é essa? – murmurou quando teve a mesma visão que eu.
Não tive tempo de responder, pois ouvimos o barulho da porta sendo destrancada e corremos de volta para lá. Era April no corredor e eu tratei de pular nos braços dela assim que a vi, feliz por ver olhos que não eram azuis.
— Viu? Eu consegui!
— Legal, . – disse, me afastando com delicadeza. – Mas nós temos outro problema bem mais grave agora.
e eu trocamos um olhar confuso e preocupado. Antes que percebêssemos, ela já virava no corredor em direção as escadas. Nós seguimos.
Capítulo 17
Neste capítulo há abordagem e relato de um estupro que podem ser fortes para algumas pessoas. Leiam com cuidado e, se acharem que não devem, não leiam, por favor.
Tragédias acontecem o tempo todo, todos os dias.
Enquanto você toma seu café da manhã, centenas de pais, mães e filhos são mortos no Oriente Médio. Enquanto posta no instagram uma foto do seu almoço, dezenas de mulheres são agredidas por seus companheiros. Ao mesmo tempo em que você reclama pela demora do ônibus, crianças vivendo isoladas lamentam a chuva que vai impedir que o transporte as leve para a escola, mais uma vez.
Nós vemos as fotos no facebook, acompanhamos as hashtags temporárias no twitter e, por um momento, questionamos o que há de errado com o mundo. Ou melhor, com as pessoas fazendo ou permitindo que essas barbaridades aconteçam. E então, pouco tempo depois, voltamos a nossa rotina, afinal de contas, o mundo não pode parar de girar... Certo? A comoção temporária que leva o mundo inteiro a compartilhar, tuitar, reagir, pedir orações e esquecer. Em não mais que um dia – uma semana se derem sorte – nossas vidas estão correndo como sempre estiveram e aqueles cuja vivência foi afetada por n acontecimentos são deixados sozinhos para recolher os cacos. É mais fácil dessa maneira.
Só quando nos vemos inseridos no meio da tragédia que acordamos para a real gravidade. Quando ela está bem em frente aos seus olhos, com o rosto vermelho e inchado por todas as lágrimas que derramava e que já derramou, de roupas rasgadas e marcas roxas distribuídas por todo o seu corpo, não existe botão para fechar a aba nem bloqueio de tela para levar a imagem embora.
Sentindo como se eu sido jogada em uma outra realidade de repente, eu fiquei observando a cena parada por alguns segundos, na tentativa de absorver tudo que acontecia ali. Uma policial estava sentada ao lado da Katy se esforçando para acalmá-la enquanto seu parceiro permanecia afastado. Ao redor, uma casa inteira de garotas, tão preocupadas que pareceram esquecer a regra n° 1 em qualquer situação estressante como aquela: deixar a vítima respirar.
— Acho melhor eu ir embora... – disse baixinho ao meu lado, para que apenas eu ouvisse.
— É, é melhor.
Antes de sair, ele se inclinou para deixar um beijo em minha bochecha. Mais tarde, eu acharia o ato doce, porém naquele momento eu estava atônita demais com a cena a minha frente para sequer notar. Eu sabia o que havia acontecido. Torcia com toda a força do meu ser para que estivesse errada, mas todos os sinais apontavam fortemente para um lugar.
Alguma coisa estava extremamente errada. Na minha mente, era improvável que uma pessoa tão boa, sorridente e carinhosa como a Katy passasse por algo tão ruim a ponto de deixa-la daquela maneira, derrubando uma lágrima atrás da outra.
Engoli em seco, nervosa. Queria tanto fazer algo, tentar ajudar de alguma maneira, mas não tinha ideia de como. Porque uma coisa era ler notícias sobre, um textão no facebook, documentários, pesquisas... Outra completamente diferente era ter parte dos dados ali, na minha frente, na carne e osso de uma das minhas pessoas preferidas naquela casa. Alguém que eu poderia passar dias dando apenas bom dia e boa noite, porém no momento em que nos sentávamos para conversar, sentia ter ali uma verdadeira amiga. Uma amiga que não merecia chorar por... Não conseguia nem queria pensar na palavra.
— April, o que tá acontecendo? Não é o que tô pensando, é? – sussurrei, desviando meus olhos por apenas alguns segundos. Ela encolheu os ombros, ainda encarando com dor a sua frente.
— Nós ainda não temos certeza. Ela não soltou muita coisa, mas estava numa festa da Sigma Nu, então... Eu não sei, não sei! – exclamou, tão nervosa quanto eu.
Eu não queria soar como se acreditasse que exista alguma pessoa no mundo inteiro, não importa o quão ruim seja, que mereça estar em uma posição sequer parecida com aquela, mas... a Katy?! Imediatamente me veio à cabeça a lembrança do curto café da tarde que tomamos na minha casa quando eu, ela, e a moça da ONG estávamos dando apenas os primeiros passos para a grande feira de adoção, sem ideia do inferno/paraíso que tudo se tornaria. Naquele dia, ela contou que foi adotada e criada por um casal de mulheres quando ainda era muito pequena, contou um pouco sobre os valores que lhe foram passados e no nosso dia-a-dia na casa, eu pude ver o quão fiel era a todos eles. Bondosa, educada e extremamente arisca no momento em que via ou ouvia coisas ruins. Não podia mentir e dizer que eu mesma não havia levado uns sermões aqui e ali. O ponto era que eu nunca imaginei que fosse chegar o dia em que alguém fosse causar um mal tão grande a ela... Especialmente aquele que rondava a mente de todas ali.
Os minutos foram passando com uma lentidão absurda. Isso vindo de uma garota que havia acabado de sair de um confinamento de pouco mais de 24 horas. Muito tempo depois, alguém finalmente percebeu que nada poderia sair daquela exposição toda. Com a ajuda de Suzy, melhor amiga da Katy, ela subiu rapidamente para trocar de roupa e partiram para o hospital, onde ela não teria tantas dezenas de olhares preocupados em cima dela. Depois iriam para a delegacia e ela poderia fazer um boletim de ocorrência contando o que é que havia realmente acontecido.
No exato momento em que a porta foi fechada, um grande choque de realidade pareceu atingir a todas nós. Não era nem um pouco bonita. Se estávamos certas sobre o que ocorreu com ela, as coisas haviam acabado de atingir um nível completamente novo de estresse. Bem... Para ser sincera, estava ali há muito tempo, nas informações que passavam de boca em boca pelo campus e eu não queria nem pensar no porquê da minha ficha só ter caído completamente naquele momento.
Cada uma permaneceu em seu canto, em silêncio. Ninguém sabia o que dizer nem como reagir a algo daquele tamanho. Não haviam muitas coisas mais angustiantes do que aquele sentimento de impotência diante de algo tão grande e terrível. Todo esforço que havíamos feito naquela semana para vencer os rapazes parecia nada, apenas zero, comparado àquilo.
Alguns minutos depois, todas se voltaram para a Nikki, como sempre, na esperança de que ela tivesse alguma ideia da direção em que devíamos seguir. No entanto, ela estava tão perdida e devastada quanto qualquer uma de nós. E dessa vez, não se esforçou para tomar o controle da situação. Ao invés disso, ela saiu andando e subiu as escadas rumo ao seu quarto. Havia atingido seu limite. Eu estava surpresa por ela ter aguentado tanto tempo.
Katy não voltou na manhã seguinte e ninguém pregou o olho naquela madrugada.
— Então... Tá tudo bem entre você e o ? – Mina perguntou quando o sol começava a aparecer.
Cada uma estava deitada em sua cama, encarando o vazio do teto, sem conseguir tirar nossas mentes do que havia acontecido. Depois de passar tanto tempo tentando dar o fora daquele cômodo, era irônico que agora eu desse qualquer coisa para ficar ali para sempre, sem precisar encarar tudo que acontecia do lado de fora.
— Mais ou menos. – respondi.
— Mais ou menos? Deviam ter se resolvido. – se pronunciou. Em qualquer outra hora, ela falaria aquilo inconformada, mas ali só dizia as palavras quase que roboticamente.
— Não podemos resolver todos os nossos problemas de uma vez só! Nós criamos o caminho, não se preocupem. Agora só temos que segui-lo.
Silêncio.
Não adiantava. Por mais que tentássemos mudar de assunto e nos preocupar com outras coisas, o amargor de imaginar tudo que Katy havia passado e ainda estava passando continuava ali.
Me sentei rapidamente, concluindo que a melhor opção para digerir os últimos acontecimentos era encará-los.
— Vocês acham que foi algum cara da Sigma Nu? – questionei.
Para ser sincera, eu ainda não conhecia muito sobre as outras fraternidades e irmandades daquele campus. Tinha zero interesse. Se me perguntassem quantas casas a UCLA possuía, nem isso eu saberia dizer.
— Talvez. Eles não têm uma fama muito boa, aqui ou em qualquer outra universidade. – April respondeu.
— Mas como pode acontecer algo assim lá quando eles têm uma casa-prima?
— Esse projeto é falho, . – começou a explicar. – É só uma maneira encontrada para diminuir acontecimentos do tipo, não quer dizer que todos os caras de todas as fraternidades com parceria deixaram de ser escrotos. Só quer dizer que agora eles sabem que têm alguém os vigiando de perto, mas sejamos honestas, nesse sistema que nós alimentamos todos os dias isso significa muito pouco.
Por um momento, eu me senti burra. No mínimo, ingênua. Quer dizer... Eu sabia que nada era justo no nosso sistema universitário, que tudo girava ao redor do dinheiro e que se foda o resto, no entanto, eu realmente acreditava no potencial daquele projeto. Tinha consciência de que ele estava longe de ser o ideal, mas acreditava.
Agora, a minha crença nele parecia ser apenas uma maneira de acalmar minha consciência que estava ocupada demais tendo outras preocupações.
— Jesus! O que vamos fazer agora?! – exclamei, puxando meu travesseiro para a frente do meu rosto e desejando que fosse um sonho.
Simplesmente porque era difícil de acreditar que um cara se forçando para dentro de uma garota fosse algo que acontecesse na realidade.
— O mesmo de sempre, eu acho... – Mina respondeu.
— O mesmo de sempre?! – continuei, tirando um pedaço do meu rosto para fora. – Claramente o mesmo de sempre não funciona, ou ainda não teríamos esse problema.
suspirou e virou de lado em sua cama, me encarando.
— As coisas não são tão simples quanto parecem, . Gerações de Kappas, Alphas, Sigmas etc. já tentaram acabar com essa situação e, de alguma maneira, nós sempre acabamos voltando para o mesmo lugar. É difícil acabar com isso quando a própria universidade fica do lado dos rapazes.
Franzi o cenho, sentindo o nó dentro da minha cabeça ser cada vez mais firmado. Desde quando uma universidade tinha lados? E desde quando escolhia os rapazes? Não é óbvio que eles são os únicos criminosos ali? O que temos feito de errado? Nunca vamos conseguir reverter as coisas?
— É claro que não abertamente. – Mina completou. – Mas, apesar das dezenas de denúncias que acontecem todo o ano, muito poucos são expulsos. Só o fato da Katy já ter envolvido a polícia no assunto vai dar muita dor de cabeça para ela, escutem o que eu tô falando. A universidade nunca quer envolver a polícia nesse tipo de assunto que consideram “privado”.
— Nossa! Eu não sabia que as coisas estavam ruins assim. – April murmurou, tristonha.
— Ninguém sabe de verdade até chegar aqui dentro e ver com os próprios olhos. E muitos saem sem ver.
Forcei meus olhos fechados, percebendo que eu podia ver. Podia ver com detalhes a imagem de integridade e grandeza que eu tinha daquela instituição se desvaindo aos poucos e definitivamente não gostava da sensação. Eu havia trabalhado tão duro para estar ali... Odiava descobrir que talvez não fosse o lugar ideal para mim. Mas, para ser honesta, que lugar no mundo era?
— Alguma coisa tem que dar certo! Quer dizer... Talvez ninguém ainda tenha pensado na solução ideal, só isso. – eu disse.
— Você tem alguma sugestão? – perguntou.
Eu não tinha. Pelo menos, nada que não envolvesse a castração geral da população masculina.
— Bom, eu posso tentar pensar em algo...
— Tudo bem. Eu só espero que realmente pense dessa vez porque na última não deu tão certo. – a encarei, levemente confusa. Mais um disfarce do que qualquer outra coisa. – , você foi a mais ultrajada quando descobriu que não podíamos fazer festas com bebidas alcoólicas e o resultado disso, até questionou a Nikki diversas vezes e então esqueceu.
Apertei minha boca em uma linha reta, querendo dizer que ela estava errada. Porém eu sabia que não. Eu já vinha questionando as minhas prioridades nas últimas semanas há algumas horas e consequentemente me sentindo terrível com elas. Decidi ficar em silêncio. sabia que tinha razão e o meu silêncio acabava por confirmar.
Em algum momento no meio de todos aqueles pensamentos novos e estranhos, eu finalmente apaguei. Estava exausta. Mais emocional do que fisicamente, para ser honesta. Precisava daquele descanso. Especialmente porque algo me dizia – e acabei estando certa – que os próximos dias seriam ainda mais difíceis e confusos.
Katy voltou alguns dias depois e era difícil dizer se ela estava mais desolada ou puta da vida com o que aconteceu. Havia dias em que ela simplesmente seguia sua rotina de ir e voltar da aula, não falava muito, não sorria muito, só estava por aí. As vezes descendo as escadas para ir na cozinha ou passando pelo corredor, mas na maior parte do tempo, seu abrigo era o seu quarto.
Ao mesmo tempo, haviam dias em que ela não parava em casa. Estava fazendo reuniões atrás de reuniões com a coordenação da universidade a fim de conseguir algum tipo de justiça pelo que aconteceu. Todas as vezes que voltava para casa com sangue nos olhos, nós sabíamos que não facilitaram as coisas para ela, exatamente o que Mina disse que aconteceria.
Pouco mais de uma semana depois, estávamos em um dia desses. Ela apareceu batendo a porta da frente e se jogou em um dos sofás, do lado de onde eu, a April e a Nikki estávamos sentadas, soltando algumas frases tão insignificantes que já eram esquecidas no segundo seguinte.
— E aí? – Nikki perguntou, hesitante.
— Aquelas pessoas são apenas... Nojentas. Vocês não têm ideia! Eu... eu...
Sua frase foi completada com as suas mãos cobrindo violentamente o seu rosto. April e eu trocamos um rápido olhar preocupado.
— O que aconteceu? – April questionou em seu tom suave, sendo exatamente a pessoa certa para fazer aquilo.
— Ela me fez todas essas perguntas ridículas sobre o meu comportamento naquela noite, tentou me convencer de todas as maneiras possíveis a retirar a minha queixa na polícia. Deus! Eu saí de lá mais na merda do que entrei!
As meninas suspiraram.
Eu sabia que tudo ali era ruim, mas não pude deixar de dar mais atenção a palavra que se destacou para os meus ouvidos.
— Ela?
— Triste, não é? Jogaram para o meu lado essa mulher que deveria resolver problemas do tipo quando tudo que ela faz é tentar camuflar. O reitor é esperto demais para sujar as próprias mãos nessa bagunça.
— Sinto muito, Katy. Nós podemos ir com você na próxima vez, para dar uma força. – Nikki sugeriu. Aquelas não eram águas novas, no entanto.
— Não, eu já disse, não quero envolver a casa inteira nisso.
— Nós meio que já estamos envolvidas, não percebeu? Somos suas amigas, é apenas justo que te ajudemos a passar por algo assim.
— Nós podemos até não ajudar muito, mas com certeza não vamos atrapalhar. – April completou.
Katy respirou fundo e ficou quieta por algum tempo, olhando para todos os lados, provavelmente tentando pensar em uma solução para aquele problema, o que não aconteceu porque: 1. Naquele momento, a solução não estava exatamente nas nossas mãos. 2. Nós tínhamos razão. Mas, justamente quando pensamos que ela ia nos dar aquele espaço...
— Não! Esse assunto é meu.
Nós trocamos alguns olhares preocupados, porém ninguém disse nada. Aquela era a sua escolha e não cabia a nenhuma de nós três tentar convencê-la do contrário, especialmente com tudo que estava acontecendo. Ninguém tinha um manual do que fazer em situações como essa, então deixa-la fazer suas próprias decisões, mesmo que não concordássemos, era sempre a melhor opção. Até porque ainda sabíamos pouco sobre o que realmente houve naquela noite.
Na verdade, não sabíamos praticamente nada, apenas que um estupro havia acontecido. Não sabíamos quem, quando, apenas onde e não nos importávamos com o porquê. Por mais que quiséssemos ao menos saber o nome do desgraçado que havia feito aquilo, pois assim teríamos um alvo em específico e não só o ranço pela fraternidade inteira, tínhamos consciência do quão doloroso devia ser para a Katy contar o que houve e reviver os piores momentos de sua vida. Então ficávamos caladas e abertas para o que quer que ela sentisse a necessidade de dizer.
Você já teve a sensação de estar simplesmente boiando vida afora? Quer dizer... Eu vivia em uma irmandade em crise, tinha mais trabalhos do que nunca para fazer, provas chegando e não conseguia lidar com nada daquilo. Pela primeira vez em algum tempo, eu não tinha uma pessoa para culpar por todos os meus problemas e era desconcertante.
Na verdade, agora a culpa por tudo o que eu causei era unicamente minha. Eu não sabia dizer se estava arrependida do que fiz, mas definitivamente sentia vergonha. Vergonha de deixar minhas obsessões pessoais se tornarem tão grandes a ponto de eu tomar atitudes que nenhum ser humano normal e em boas condições mentais tomaria. E carregar esse peso para todos os lados não era nada divertido.
havia dito que desabafar levaria esse peso embora, no entanto, ele estava errado. Muito errado por não considerar que algo desastroso poderia acontecer e tornar as coisas infinitamente piores.
— !
Falando no diabo...
Só então percebi que ele estava ao meu lado, se controlando para não entrar na minha frente, e também que eu passava agora na frente da casa das Kappa Delta. Eu nunca passava na frente daquela casa no meu caminho para a aula.
— Por que tá gritando?!
— Porque você tá indo pelo caminho errado e não ouviu nenhum dos meus gritos a distância! – explicou. Apesar disso, eu continuei indo na mesma direção que já estava.
— Bom, já passou pela sua cabeça que eu só tenha decidido andar um pouco mais nessa manhã? Estou caminhando, ! Não posso?
Ele não respondeu imediatamente, só me encarou por alguns bons segundos. Aos poucos, seus olhos foram se arregalando ao mesmo tempo que o pânico tomava conta deles.
— Você não voltou atrás, voltou?
— Como?
— Tá me tratando exatamente como me trataria antes do nosso... Confinamento. Voltou atrás, ?!
Revirei os olhos. Qual o motivo para tanto desespero?
— Não! Relaxa aí.
E ele realmente o fez, dando um grande suspiro.
— Qual o seu problema, então? – ele perguntou. Tá aí um questionamento em que eu não gostaria de entrar. – Você não parece bem.
— Ei, estou ótima! Não vai ficar tentando me decifrar agora, vai?
— Não... É que você continua indo pelo caminho errado.
Parei.
— Ah, é. – disse, me virando. Nem valia a pena fingir que sabia o que estava fazendo, pois nós dois sabíamos bem que era apenas uma desculpa.
— E então? – ele voltou a perguntar quando eu continuei em silêncio, sem responder com calma sua pergunta anterior.
— Tô bem, . Não se preocupe. – afirmei.
Eram sete horas da manhã, justamente o pior horário do dia para se ter uma conversa sobre sentimentos e... Bem, coisas. Não que eu fosse tê-la feliz em alguma outra hora.
— O que aconteceu com a Katy foi terrível, . A não está bem, a Nikki não está bem, nem a April está bem, por que você estaria?
Ergui os ombros, fazendo a desentendida.
— Eu sou uma pessoa forte.
— Eu sei.
Ele não precisou dizer mais nada, eu entendi. Como a boa que eu era, tentei desviar o assunto, pelo menos por um tempinho. Eu não conseguia simplesmente voltar a colocar toda a minha confiança nele poucos dias depois, especialmente quando a minha cabeça ainda pesava de tão cheia que se encontrava.
— Desde quando você fica de papo com a April para saber se ela está bem ou não? – questionei, o olhando de lado.
— Não fico. O me falou. Ela tem cancelado os encontros na biblioteca para aquele projeto secreto deles. Ele tá bem pirado, achando que ela está com medo dele depois do que houve.
— A April não tá com medo dele! – exclamei, rindo rapidamente.
Ou estava? Não é como se eu tivesse sendo a amiga mais lúcida para notar esse tipo de coisa ultimamente.
— Eu disse isso para ele, mas não adiantou. Talvez você devesse ter uma conversa com os dois. Por algum motivo, eles levam a sua palavra mais a sério do que a minha.
— É porque eles sabem que eu sou sincera. Você mente para não machucar. – afirmei. – Isso que dá ficar bancando o queridinho.
— Eu não banco o queridinho, ! Sou uma pessoa adorável, você aceite ou não. – disse e eu dei de ombros. Ele podia ser adorável de vez em quando, porém definitivamente não o daria o título integral.
— Tá, tá! Vou ver o que eu faço. Talvez demore porque não sei se tô com cabeça para isso.
Ou qualquer outra coisa que exigisse algum tipo de reação.
— Tá vendo? Não está bem! Me diz o que está havendo, ! – insistiu e eu suspirei, sem certeza do que fazer.
— Como posso te dizer se nem eu mesma tenho certeza?
Ele não soube o que responder para isso. Finalmente! Nós dois tínhamos a terrível mania de sermos insistentes e por mais que eu apreciasse aquela característica quando bem usada, odiava que fosse contra mim.
— Ahn... Já pensou que dizer em voz alta talvez te ajude a entender?
— Não, , eu não pensei nisso.
— Devia. As vezes a nossa mente só precisa de um empurrão para chegar aonde queremos que ela esteja. Parece mais difícil do que realmente é.
Revirei os olhos. Esse era o tipo de coisa que ele fazia que costumava me irritar mesmo quando estávamos na mais profunda paz um com o outro. Não me irritava tanto assim quando outras pessoas eram vítimas, era até engraçado, mas eu, particularmente, odiava essas incansáveis tentativas de me dar soluções para um problema em que eu preferiria só me afundar. De olhos bem fechados para fingir que tá tudo certo.
— Você devia tentar um emprego como guru espiritual. Tem gente que paga uma grana boa para ouvir essas baboseiras, sabe?
Ele suspirou.
— Tô falando sério, ! Você não parece nada bem, tem estado estranha há vários dias, me fala! Porque eu tô começando a me sentir culpado, sem nem saber de quê!
Ri, balançando a cabeça.
— Com isso você não tem que se preocupar, amigo. A única culpada nessa história toda sou eu. – afirmei. Não gostei da sensação, mas estava sendo sincera. E não queria que ele se sentisse mal por algo que não lhe dizia respeito. Não mais, pelo menos.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que se eu não tivesse sido tão estúpida e egocêntrica esse tempo todo, talvez isso não tivesse acontecido com a Katy! É isso que quero dizer! – disse por fim, me arrependendo na mesma hora.
Para ser honesta, me senti estúpida. Eu era muito boa disfarçando coisas sobre as quais não queria conversar com todo o resto do mundo, mas tinha um dom especial para arrancar elas de mim. Eu tinha a teoria de que isso acontecia porque poucas pessoas no mundo sabiam me irritar tanto quanto ele, sendo namorado, melhor amigo ou apenas inimigo. Eu simplesmente falava na esperança de que aquilo fosse tirá-lo do meu pé. Nunca funcionava.
— Não tá falando sério, né? Não tá realmente arrumando uma maneira de se culpar pelo que aconteceu? – questionou, incrédulo.
— Eu tenho razões, !
— Então me diz quais são porque eu não vejo ligação alguma! A Katy estava numa festa, você estava presa dentro de um quarto comigo, um imbecil nasceu há alguns anos... Não tem conexão alguma, !
É claro que não tinha olhando daquele ângulo. Com aquela vista, eu só parecia paranoica.
— Você não está lá quando as meninas nos informaram que nós não podíamos fazer festas com bebidas, tá legal? Não viu como eu me senti injustiçada, como me preocupei, o tempo que passei tentando pensar em uma solução que já não tivessem tentado para o problema até que a minha rixa com você cresceu de uma maneira que todas essas preocupações simplesmente desapareceram da minha mente. – expliquei, percebendo até que agora eu estava parada e virada para ele, como se aquilo fosse fazer o que eu tinha a dizer entrar naquela cabeça dura com mais facilidade. Eu sabia que me atrasaria para a primeira aula, mas ainda assim sentei em um tronco que encontrei por ali, apoiando as minhas bochechas nas mãos. Parecia uma criança emburrada, exatamente como eu me sentia. me acompanhou e se sentou na calçada mesmo, frente a mim. – Eu sei que as chances são muito baixas, só que... Bom, talvez eu tivesse chegado a algum lugar. Eu tinha tempo e disposição, sabe!? Na melhor das hipóteses, todas nós estaríamos naquela festa e não enfiadas dentro de casa por causa de uma bagunça que eu aprontei. Com você. Não vou tirar seu mérito.
Ele apertou os olhos em minha direção, me olhando como se eu fosse louca. Isso porque ele só estava sabendo de uma parte muito pequena de todas aquelas rodando pela minha cabeça, realmente querendo me colocar em um hospício.
— Seu cérebro funciona de um jeito muito especial, não é? – dei de ombros. – Escuta: eu não quero agir como se o que aconteceu devesse ser encarado como algo normal, mas sejamos honestos, acontece muito! E eu garanto para você que em todas as vezes, alguém acaba se martirizando por uma culpa que não é realmente dessa pessoa. A própria vítima, a amiga que não estava afim de sair naquele dia, os pais que deram permissão... De alguma maneira, isso alivia para o lado do que é realmente culpado, estando bêbado ou sóbrio. Muitas pessoas fizeram coisas que levaram a Katy até aquela casa naquele sábado, . Isso não significa que devemos culpar todas elas.
Sabia que ele tinha razão desta vez. No entanto, não podia impedir uma voz irritante na minha cabeça de dizer que eu achava aquilo apenas porque me fazia sentir melhor comigo mesma, e isso era ser egoísta. De novo.
— Mas de que adianta culpar o infeliz quando ele tem uma aura ao redor dele impedindo que qualquer denúncia o atinja? A universidade tá praticamente defendendo ele, ! Se não podemos culpar quem realmente merece, alguém tem que carregar o fardo.
Mais uma vez, seu olhar dizia: louca.
— Não acho que as coisas funcionem assim.
— Então me diz como elas funcionam, oras! Porque eu não sei o que fazer. A Katy não sabe o que fazer, nenhuma de nós sabemos e não conseguimos seguir a nossa rotina normalmente quando um filho da puta daqueles ainda deve estar andando por aí como um gostosão da faculdade!
— Ei, ei ei! Calma. – disse, erguendo as mãos em minha direção. Senti vontade de chutá-las para fora dali, porém me controlei porque ele estava apenas tentando ajudar. Não era sua culpa que o mundo inteiro me frustrasse naquele momento. – Eu gostaria de poder ajudar, mas, sinceramente, não faço ideia do que vocês podem fazer.
Balancei a cabeça, compreensiva. Ele não podia me dar todas as respostas do mundo, de qualquer maneira. Já me dava alguns empurrões dos quais eu não podia, mas sempre achava uma maneira de reclamar, e isso devia ser o suficiente.
— Tudo bem.
— Só não acho que vai chegar a alguma resposta se ficar se estressando por causa disso. Dá uma relaxada, faz algo que você gosta, esvazia a mente, me liga se precisar. Você sempre dá um jeito nas coisas. – afirmou e eu soltei um sorriso de lado. Realmente.
— É claro que dou.
O problema era que eu nunca precisei lidar com algo nesse nível de seriedade. O mundo real bateu na nossa porta e decidiu ficar. Definitivamente não sabia como lidar com aquilo e, mais ainda, não sabia se descobriria um jeito de lidar com aquilo, então decidi, a partir daquele momento, dar um passo de cada vez. Eu não precisava me atropelar, só andar calmamente ao lado de Katy e tentar trazer todas as garotas no mesmo ritmo.
Com um pé na confiança que só uma história da Disney poderia trazer, talvez chegássemos a algum lugar.
— Vem. – disse, se levantando.
Ele bateu as mãos ao redor da bermuda jeans, a fim de se livrar de qualquer sujeira que poderia ter adquirido, e então me estendeu uma delas, sorrindo. Sem pensar demais pela primeira vez em algum tempo, eu simplesmente a agarrei.
Um passo de cada vez... Certo.
Primeiro, eu preciso fazer todos aqueles trabalhos atrasados que eu deveria ter feito quando fiquei encarando o teto do meu quarto, pensando no quão burra eu era.
Número dois: dormir bem. Eu não posso ajudar ninguém se passo meus dias parecendo um zumbi.
Três: passar menos tempo pensando no quão estúpida eu tenho sido nas últimas semanas e mais no que eu posso fazer para melhorar daqui para frente.
Quatro e aparentemente impossível: garantir que a Katy saiba que eu estou ali, para o quê ela quiser, para quando ela quiser, sempre que precisar. Mas sem sufocar. Eu não posso encher o saco dela o tempo todo. Nesse momento, ela quer seu espaço e não garotas que, na tentativa de ajudar, acabavam por fazê-la sair correndo e se afastar ainda mais.
Isso acabava resultando em vários sorrisos aleatórios e o oferecimento de várias comidas em diferentes horas do dia, pois eu queria me certificar de que ela estava se alimentando bem. No final das contas, eu sempre ganhava um sorriso leve que me dizia que ela sabia o que eu estava tentando fazer e, de alguma maneira, apreciava a preocupação.
Alguns dias depois, eu descobri que ela apreciava muito mais do que eu pensava. , April e eu estávamos sentadas no nosso quarto, cada uma em seu canto trabalhando em coisas pessoais, quando a Katy abriu a porta e colocou sua cabeça para dentro.
— Posso interromper? – ela perguntou e no minuto em que percebemos que era ela ali, toda nossa atenção mudou de direção.
— Claro!
— Nem precisa perguntar!
— Entra!
Só para você ter ideia do tamanho da nossa necessidade de fazê-la se sentir acolhida onde quer que fosse.
— Não precisa. – disse, rindo rapidamente da nossa afobação. – Na verdade, queria conversar com vocês. Podem vir no meu quarto?
Nos poupando de repetições, eu e as meninas simplesmente a seguimos dessa vez. Ao chegar algumas portas a frente, descobrimos que não éramos as únicas. Nikki também estava ali, assim como a Suzy, a Anne, sua outra colega de quarto, e mais um par de garotas da qual eu não era tão próxima, mas conversava de vez em quando.
— Acho que estão todas aqui. – Katy disse para si mesma, olhando ao redor, e então foi se sentar em sua cama. – Vocês não precisam ficar tão tensas.
Só assim eu percebi que todo o meu corpo estava enrijecido, curiosa e com medo do que estava por vir. As notícias que eu vinha recebendo não eram lá das melhores.
— Então fala logo porque chamou a gente aqui! Tá me matando aos poucos. – a Anne disse, arrancando uma risada da anfitriã da reunião.
— Não seja tão dramática! Eu vou dizer... – ela respirou fundo e deu uma boa olhada em cada uma de nós antes de voltar a falar. – Eu pensei muito nesses últimos dias sobre tudo que aconteceu, sobre todas as vezes em que vocês colocaram na mesa todo o apoio que tinham para me dar e acabei decidindo que já passou da hora de eu esclarecer o que houve.
Meu coração deu um pulo no peito e eu fiquei de boca aberta. Me senti honrada por ser uma das escolhidas para aquele momento. Ao mesmo tempo, o medo pelo que eu teria que ouvir era mais forte que nunca.
— Tem certeza, Katy? Não quero que se sinta obrigada a nos contar nada a não ser que esteja realmente pronta.
A parte sensata de mim sabia que a Nikki tinha razão. No entanto, havia uma outra que queria tirá-la daquele quarto por sequer questionar a decisão. Eu sabia que estava sendo equivocada ao pensar aquilo, mas, por algum motivo, eu tinha comigo que a partir do momento que soubéssemos exatamente com o que estávamos lidando, tudo ficaria mais claro. As probabilidades não estavam a meu favor, eu tinha que admitir.
— É difícil ter certeza sobre qualquer coisa nesse momento. – disse, encolhendo os ombros. – Mas eu definitivamente acredito que me abrir para vocês vai me fazer sentir melhor, talvez até me dar um pouquinho da força que eu preciso para continuar indo atrás de algum tipo de justiça...
Nikki sorriu abertamente.
— Tudo bem então. Estamos aqui para o que precisar. – afirmou.
— Eu sei. Não quis falar tudo na frente de toda a casa porque não me sentiria nem um pouco confortável nessa posição, por isso escolhi vocês. Se sintam à vontade para contar a história para quem quiser também... Não quero mais ficar escondendo. Eu amo e acredito na integridade de cada garota dessa casa, sei que vão fazer bom uso dessas informações.
Katy ainda nem havia começado e eu já sentia meu coração tão apertado que poderia se desintegrar a qualquer momento. Eu sabia que ouvir aquela história me destruiria por completo, mais do que assistir a um filme ou ler um depoimento de alguém que eu nunca realmente convivi. Entretanto, eu tinha certeza que o sofrimento maior ali não era nem nunca seria meu. E se ela conseguia juntar forças para me contar, eu conseguia sentar e prestar atenção em cada palavra, por mais doloroso que fosse para cada uma naquele cômodo.
— Bem... Estamos aqui... Comece quando quiser. – April disse suavemente e ela assentiu, dando uma boa inspirada para se preparar.
Ela levou algum tempo para começar a falar, mas fomos pacientes. Poucas coisas no mundo devem ser mais difíceis do que tentar colocar em palavras um momento como aquele.
— Ok... Bom... Depois de tudo que havia acontecido nos últimos dias, eu só queria relaxar, então fui na festa da Sigma. Eu sempre evitei um pouco elas pela fama dos garotos, mas era basicamente a única festa além da nossa naquele final de semana, a Suzy estaria comigo o tempo todo, nada ruim poderia acontecer. Agora, eu me sinto meio estúpida por pensar isso porque... Eu não sei, é só aquele sentimento de que coisas ruins não podem me atingir, elas chegam apenas para as outras pessoas. Acho que eu me apoiei demais nessas sensações... Eu não quero me culpar. Tenho me esforçado para não fazer isso porque eu sei, agora por experiência, que essa é a tendência, mas é tão difícil não passar meus dias pensando nos ‘e se...?’. Um passo diferente e eu poderia não precisar ter que contar essa história para vocês. Só que nada me garante que uma outra garota não estaria no meu lugar e eu sei que isso é algo terrível para se dizer, mas prefiro que isso tenha acontecido comigo, que tenho todo o apoio de dezenas de pessoas para me ajudar a passar por cima, do que com alguém que poderia reagir de maneira... Definitiva quanto a isso.
É claro que a nossa reação à última frase não foi das melhores. Entre reclamações do quão errado era para ela se colocar nessa posição, como algum tipo de mártir, a Katy pareceu arrumar algum tipo de energia para continuar fazendo seu depoimento.
— Eu sei, eu sei de tudo isso! Eu vivo nesse mundo onde garotas são violentadas o tempo todo, eu converso, eu leio, mas vocês sabem tanto quanto eu que a mente de cada um recebe informações de uma maneira. Não é algo que eu goste de pensar, são pensamentos que simplesmente vem e na maioria do tempo, eu não consigo controla-los. Vocês sabem como é. – eu tinha uma ideia. – Não me levem a mal, mas vou pedir para que me deixem contar tudo sem expressar suas opiniões. Eu provavelmente vou dizer coisas que vocês não concordam, é que... Isso é difícil. E eu entendo que, assim como eu fazia, vocês estão tentando se colocar no meu lugar, sentir a minha dor, suas cabeças estão à mil na busca de algo que possam dizer que vá me ajudar de alguma maneira, mas, nesse momento, ouvir é o suficiente. Saber que eu posso correr para o braço de vocês é mais que o suficiente! Podem fazer isso?
Nós assentimos rapidamente. Talvez porque fazer o que ela nos pedia já era uma forma de dar toda a ajuda e apoio que tanto queríamos.
— Obrigada. Enfim... Nós fomos na festa e inicialmente tudo parecia bem, estávamos nos divertindo, não é? – ela perguntou para a Suzy, que assentiu, sentada em um canto, parecendo mais desconfortável que nunca. Até aquele momento, não tinha parado para pensar que era ela quem provavelmente estava se culpando mais do que qualquer outra de nós. – Considerando a casa onde estávamos, era surpreendente o fato de já ser quase uma da manhã e ainda não ter rolado nenhuma briga ou escândalo. No máximo, eu vi algumas pessoas vomitando pelos cantos, porém isso é quase normal. Suzy e eu ficamos juntas o tempo inteiro até que eu conheci esse cara... Ruivo, alto, forte, olhos claros, vocês sabem, o pacote que faz a maioria das garotas pirarem, inclusive eu. Então, depois de se certificar que estava tudo bem, ela nos deixou a sós.
Como se soubessem o quão importante era a conversa que acontecia naquele cômodo, o resto da casa parecia estar em completo silêncio, dando ainda mais destaque a voz da Katy. Nós mal respirávamos, compenetradas demais na história. Por isso, eu acabei notando quando a boca da Nikki começou a se abrir em surpresa ao descobrir algumas características físicas do rapaz. Ela não disse nada, e eu muito menos, mas o momento com certeza me deixou com uma pulga atrás da orelha.
— Vocês sabem o que vem depois. Nós conversamos um pouco, ele me disse que é atleta, mas, para ser honesta, quando ele começou a querer falar demais sobre isso, eu cortei. Vocês também sabem como. Falar com ele estava arruinando a imagem boa que eu tinha com aquele rosto, eu não podia deixar isso acontecer. Não tinha a intenção de fazer nada além de beijar um pouco, mas... Ele beijava bem, perguntou se eu queria ir para um lugar quieto e na hora me pareceu uma boa ideia. – ela parou para respirar fundo, encarando seus próprios dedos, que mexiam uns nos outros incansavelmente. – Eu fui tão... Inocente. – concluiu. E nós sabíamos que “Inocente” não era exatamente a palavra que ela pretendia usar. – Eu entrei no quarto dele por livre e espontânea vontade, me coloquei naquela situação!
— Isso não muda nada! – Suzy não se conteve e exclamou.
— Eu sei, mas vocês não têm ideia do quão terrível é ter que explicar isso, que fui para o quarto dele porque eu quis, e depois ver a expressão de “Eu sabia” na cara das pessoas. Eu não sabia, ainda que devesse imaginar. Não posso nem dizer que fiz aquilo porque estava bêbada, pois não! Eu estava completamente sã dos meus atos, havia bebido apenas um copo de cerveja na tentativa de não ficar mais vulnerável do que já estava simplesmente por estar naquele ambiente e ser do sexo feminino. Dessa maneira, se algo ruim acontecesse, eu poderia lutar, eu iria gritar e nada tão ruim aconteceria. Mas eu não pude. Diria até que tentei inicialmente, com esperanças de que eu ainda tinha chances de sair daquela situação, mas no momento em que... Não consegui me mexer, não consegui gritar, simplesmente não reagi. O único pensamento claro que eu tenho na minha cabeça é do quanto eu não queria estar ali porque doía... Fisicamente, emocionalmente, doía muito! O resto é apenas uma confusão de muito medo, angústia, nojo e pressa. Aquilo tinha que acabar eventualmente e, se eu tivesse condições, teria contado os segundos. Não sabia que o depois era tão ruim quanto.
Eu só via lágrimas nos rostos de todas sentadas ao meu redor e a visão era embaçada pelo efeito das minhas próprias. Chorar poderia não trazer solução alguma para a Katy ou qualquer outra garota que vivenciou aquilo, mas era a única coisa que tínhamos naquele momento.
— Esse pode ser um pensamento extremamente burro da minha parte, mas as vezes eu desejo ter virado todas as bebidas que me ofereceram naquela festa. Assim eu não me lembraria de nada, nem mesmo da expressão doente de prazer no rosto dele que insiste em voltar a me aterrorizar, não importa quantos dias tenham passado. Eu era mesquinha e pensava que, depois de ouvir tantas histórias como essa, saberia exatamente o que fazer para me safar de uma situação do tipo, estava pronta para qualquer coisa, porém eu acho que não existe nada nesse mundo capaz de preparar alguém para estar nessa posição. É inacreditável, é humilhante! Todos os dias eu vou dormir pensando em novas maneiras de lidar melhor com tudo e todas as manhãs eu descubro que errei, mais uma vez. Contar isso para vocês é só mais uma das minhas tentativas de fazer algo com tudo aquilo que eu sofri, porém nada me garante que daqui algumas horas eu não vou me arrepender e evitar vocês apenas porque me viram nas condições em que estou agora. Assim como passar alguns dias longe foi uma maneira de evitar todas pela cena depois que tudo aconteceu. Eu ainda me sinto horrível por aquilo porque não acho que alguém no mundo mereça estar exposto daquela maneira, mas, quando me encontraram e me perguntaram para onde eu queria ir, essa casa foi o primeiro lugar no qual pensei. Meus pais estavam longe demais, então eu recorri a minha segunda família e não me arrependo disso, apesar de tudo.
Quando ela parou de falar, nenhuma de nós teve ideia do que dizer. No final de tudo, ela não precisava de mais palavras genéricas dizendo que tudo ficaria bem ou que ela superaria logo aquilo. Dessa maneira, optamos por abraços. Abraços que passavam a mensagem melhor do que qualquer palavra em qualquer língua poderia. Abraços que diziam que estaríamos com ela nesse processo de melhora. Independente de qual ela escolhesse, poderia contar com a gente.
Aquele era o momento da Katy, um que todas nós esperávamos que ela não precisasse ter. Por isso, eu não acreditava ter direito algum de sequer pensar no que eu estava sentindo, mesmo que todos os sentimentos que um ser humano deve ser capaz de ter estivessem me bombardeando. E ainda assim, desde o começo do relato, eu vinha pensando novamente que a presença dela na casa da Sigma Nu, naquela noite, estava diretamente ligada ao fato de termos trabalhado à exaustão naqueles dias... Por minha causa. E então eu ouvia a voz de na minha cabeça, me lembrando de não desviar a culpa daquele que realmente a merecia e por alguns segundos eu até conseguia manter isso em mente. Nos outros, a dúvida voltava a dominar e o ciclo continuava se repetindo. Eu tinha que sair daquela, tinha que fazer algo realmente útil. Agora sentia isso mais do que nunca.
Eu gostava de pensar que, pouco a pouco, estava chegando perto de algum tipo de clareza. As peças estavam se encaixando na minha mente, pela primeira vez em tanto tempo, que não pude perder a oportunidade de adicionar mais uma ao quebra-cabeça.
— Por que ficou tão preocupada com a descrição física do cara? – eu perguntei baixinho para a Nikki assim que tive oportunidade, quando tudo se acalmou.
Ela suspirou.
— Eu conheço ele...
— É seu amigo?! – exclamei.
— Não! Nós já saímos no mesmo grupo porque ele é do time e eu faço a torcida, mas o país inteiro o conhece, . Pelo menos, a parcela que acompanha os esportes universitários. Ele é um dos principais jogadores da liga, traz milhões para a conta da universidade toda temporada. – explicou. Na sua face, uma preocupação que eu me atrevia dizer que nunca havia visto antes, mesmo depois de tudo que havia aprontado.
— E isso significa...
— Isso significa que se a gente pensou que seria difícil fazer o abusador da Katy pagar pelo que fez, agora é quase impossível. E o ‘quase’ é apenas eu tentando ser positiva.
Tragédias acontecem o tempo todo, todos os dias.
Enquanto você toma seu café da manhã, centenas de pais, mães e filhos são mortos no Oriente Médio. Enquanto posta no instagram uma foto do seu almoço, dezenas de mulheres são agredidas por seus companheiros. Ao mesmo tempo em que você reclama pela demora do ônibus, crianças vivendo isoladas lamentam a chuva que vai impedir que o transporte as leve para a escola, mais uma vez.
Nós vemos as fotos no facebook, acompanhamos as hashtags temporárias no twitter e, por um momento, questionamos o que há de errado com o mundo. Ou melhor, com as pessoas fazendo ou permitindo que essas barbaridades aconteçam. E então, pouco tempo depois, voltamos a nossa rotina, afinal de contas, o mundo não pode parar de girar... Certo? A comoção temporária que leva o mundo inteiro a compartilhar, tuitar, reagir, pedir orações e esquecer. Em não mais que um dia – uma semana se derem sorte – nossas vidas estão correndo como sempre estiveram e aqueles cuja vivência foi afetada por n acontecimentos são deixados sozinhos para recolher os cacos. É mais fácil dessa maneira.
Só quando nos vemos inseridos no meio da tragédia que acordamos para a real gravidade. Quando ela está bem em frente aos seus olhos, com o rosto vermelho e inchado por todas as lágrimas que derramava e que já derramou, de roupas rasgadas e marcas roxas distribuídas por todo o seu corpo, não existe botão para fechar a aba nem bloqueio de tela para levar a imagem embora.
Sentindo como se eu sido jogada em uma outra realidade de repente, eu fiquei observando a cena parada por alguns segundos, na tentativa de absorver tudo que acontecia ali. Uma policial estava sentada ao lado da Katy se esforçando para acalmá-la enquanto seu parceiro permanecia afastado. Ao redor, uma casa inteira de garotas, tão preocupadas que pareceram esquecer a regra n° 1 em qualquer situação estressante como aquela: deixar a vítima respirar.
— Acho melhor eu ir embora... – disse baixinho ao meu lado, para que apenas eu ouvisse.
— É, é melhor.
Antes de sair, ele se inclinou para deixar um beijo em minha bochecha. Mais tarde, eu acharia o ato doce, porém naquele momento eu estava atônita demais com a cena a minha frente para sequer notar. Eu sabia o que havia acontecido. Torcia com toda a força do meu ser para que estivesse errada, mas todos os sinais apontavam fortemente para um lugar.
Alguma coisa estava extremamente errada. Na minha mente, era improvável que uma pessoa tão boa, sorridente e carinhosa como a Katy passasse por algo tão ruim a ponto de deixa-la daquela maneira, derrubando uma lágrima atrás da outra.
Engoli em seco, nervosa. Queria tanto fazer algo, tentar ajudar de alguma maneira, mas não tinha ideia de como. Porque uma coisa era ler notícias sobre, um textão no facebook, documentários, pesquisas... Outra completamente diferente era ter parte dos dados ali, na minha frente, na carne e osso de uma das minhas pessoas preferidas naquela casa. Alguém que eu poderia passar dias dando apenas bom dia e boa noite, porém no momento em que nos sentávamos para conversar, sentia ter ali uma verdadeira amiga. Uma amiga que não merecia chorar por... Não conseguia nem queria pensar na palavra.
— April, o que tá acontecendo? Não é o que tô pensando, é? – sussurrei, desviando meus olhos por apenas alguns segundos. Ela encolheu os ombros, ainda encarando com dor a sua frente.
— Nós ainda não temos certeza. Ela não soltou muita coisa, mas estava numa festa da Sigma Nu, então... Eu não sei, não sei! – exclamou, tão nervosa quanto eu.
Eu não queria soar como se acreditasse que exista alguma pessoa no mundo inteiro, não importa o quão ruim seja, que mereça estar em uma posição sequer parecida com aquela, mas... a Katy?! Imediatamente me veio à cabeça a lembrança do curto café da tarde que tomamos na minha casa quando eu, ela, e a moça da ONG estávamos dando apenas os primeiros passos para a grande feira de adoção, sem ideia do inferno/paraíso que tudo se tornaria. Naquele dia, ela contou que foi adotada e criada por um casal de mulheres quando ainda era muito pequena, contou um pouco sobre os valores que lhe foram passados e no nosso dia-a-dia na casa, eu pude ver o quão fiel era a todos eles. Bondosa, educada e extremamente arisca no momento em que via ou ouvia coisas ruins. Não podia mentir e dizer que eu mesma não havia levado uns sermões aqui e ali. O ponto era que eu nunca imaginei que fosse chegar o dia em que alguém fosse causar um mal tão grande a ela... Especialmente aquele que rondava a mente de todas ali.
Os minutos foram passando com uma lentidão absurda. Isso vindo de uma garota que havia acabado de sair de um confinamento de pouco mais de 24 horas. Muito tempo depois, alguém finalmente percebeu que nada poderia sair daquela exposição toda. Com a ajuda de Suzy, melhor amiga da Katy, ela subiu rapidamente para trocar de roupa e partiram para o hospital, onde ela não teria tantas dezenas de olhares preocupados em cima dela. Depois iriam para a delegacia e ela poderia fazer um boletim de ocorrência contando o que é que havia realmente acontecido.
No exato momento em que a porta foi fechada, um grande choque de realidade pareceu atingir a todas nós. Não era nem um pouco bonita. Se estávamos certas sobre o que ocorreu com ela, as coisas haviam acabado de atingir um nível completamente novo de estresse. Bem... Para ser sincera, estava ali há muito tempo, nas informações que passavam de boca em boca pelo campus e eu não queria nem pensar no porquê da minha ficha só ter caído completamente naquele momento.
Cada uma permaneceu em seu canto, em silêncio. Ninguém sabia o que dizer nem como reagir a algo daquele tamanho. Não haviam muitas coisas mais angustiantes do que aquele sentimento de impotência diante de algo tão grande e terrível. Todo esforço que havíamos feito naquela semana para vencer os rapazes parecia nada, apenas zero, comparado àquilo.
Alguns minutos depois, todas se voltaram para a Nikki, como sempre, na esperança de que ela tivesse alguma ideia da direção em que devíamos seguir. No entanto, ela estava tão perdida e devastada quanto qualquer uma de nós. E dessa vez, não se esforçou para tomar o controle da situação. Ao invés disso, ela saiu andando e subiu as escadas rumo ao seu quarto. Havia atingido seu limite. Eu estava surpresa por ela ter aguentado tanto tempo.
Katy não voltou na manhã seguinte e ninguém pregou o olho naquela madrugada.
— Então... Tá tudo bem entre você e o ? – Mina perguntou quando o sol começava a aparecer.
Cada uma estava deitada em sua cama, encarando o vazio do teto, sem conseguir tirar nossas mentes do que havia acontecido. Depois de passar tanto tempo tentando dar o fora daquele cômodo, era irônico que agora eu desse qualquer coisa para ficar ali para sempre, sem precisar encarar tudo que acontecia do lado de fora.
— Mais ou menos. – respondi.
— Mais ou menos? Deviam ter se resolvido. – se pronunciou. Em qualquer outra hora, ela falaria aquilo inconformada, mas ali só dizia as palavras quase que roboticamente.
— Não podemos resolver todos os nossos problemas de uma vez só! Nós criamos o caminho, não se preocupem. Agora só temos que segui-lo.
Silêncio.
Não adiantava. Por mais que tentássemos mudar de assunto e nos preocupar com outras coisas, o amargor de imaginar tudo que Katy havia passado e ainda estava passando continuava ali.
Me sentei rapidamente, concluindo que a melhor opção para digerir os últimos acontecimentos era encará-los.
— Vocês acham que foi algum cara da Sigma Nu? – questionei.
Para ser sincera, eu ainda não conhecia muito sobre as outras fraternidades e irmandades daquele campus. Tinha zero interesse. Se me perguntassem quantas casas a UCLA possuía, nem isso eu saberia dizer.
— Talvez. Eles não têm uma fama muito boa, aqui ou em qualquer outra universidade. – April respondeu.
— Mas como pode acontecer algo assim lá quando eles têm uma casa-prima?
— Esse projeto é falho, . – começou a explicar. – É só uma maneira encontrada para diminuir acontecimentos do tipo, não quer dizer que todos os caras de todas as fraternidades com parceria deixaram de ser escrotos. Só quer dizer que agora eles sabem que têm alguém os vigiando de perto, mas sejamos honestas, nesse sistema que nós alimentamos todos os dias isso significa muito pouco.
Por um momento, eu me senti burra. No mínimo, ingênua. Quer dizer... Eu sabia que nada era justo no nosso sistema universitário, que tudo girava ao redor do dinheiro e que se foda o resto, no entanto, eu realmente acreditava no potencial daquele projeto. Tinha consciência de que ele estava longe de ser o ideal, mas acreditava.
Agora, a minha crença nele parecia ser apenas uma maneira de acalmar minha consciência que estava ocupada demais tendo outras preocupações.
— Jesus! O que vamos fazer agora?! – exclamei, puxando meu travesseiro para a frente do meu rosto e desejando que fosse um sonho.
Simplesmente porque era difícil de acreditar que um cara se forçando para dentro de uma garota fosse algo que acontecesse na realidade.
— O mesmo de sempre, eu acho... – Mina respondeu.
— O mesmo de sempre?! – continuei, tirando um pedaço do meu rosto para fora. – Claramente o mesmo de sempre não funciona, ou ainda não teríamos esse problema.
suspirou e virou de lado em sua cama, me encarando.
— As coisas não são tão simples quanto parecem, . Gerações de Kappas, Alphas, Sigmas etc. já tentaram acabar com essa situação e, de alguma maneira, nós sempre acabamos voltando para o mesmo lugar. É difícil acabar com isso quando a própria universidade fica do lado dos rapazes.
Franzi o cenho, sentindo o nó dentro da minha cabeça ser cada vez mais firmado. Desde quando uma universidade tinha lados? E desde quando escolhia os rapazes? Não é óbvio que eles são os únicos criminosos ali? O que temos feito de errado? Nunca vamos conseguir reverter as coisas?
— É claro que não abertamente. – Mina completou. – Mas, apesar das dezenas de denúncias que acontecem todo o ano, muito poucos são expulsos. Só o fato da Katy já ter envolvido a polícia no assunto vai dar muita dor de cabeça para ela, escutem o que eu tô falando. A universidade nunca quer envolver a polícia nesse tipo de assunto que consideram “privado”.
— Nossa! Eu não sabia que as coisas estavam ruins assim. – April murmurou, tristonha.
— Ninguém sabe de verdade até chegar aqui dentro e ver com os próprios olhos. E muitos saem sem ver.
Forcei meus olhos fechados, percebendo que eu podia ver. Podia ver com detalhes a imagem de integridade e grandeza que eu tinha daquela instituição se desvaindo aos poucos e definitivamente não gostava da sensação. Eu havia trabalhado tão duro para estar ali... Odiava descobrir que talvez não fosse o lugar ideal para mim. Mas, para ser honesta, que lugar no mundo era?
— Alguma coisa tem que dar certo! Quer dizer... Talvez ninguém ainda tenha pensado na solução ideal, só isso. – eu disse.
— Você tem alguma sugestão? – perguntou.
Eu não tinha. Pelo menos, nada que não envolvesse a castração geral da população masculina.
— Bom, eu posso tentar pensar em algo...
— Tudo bem. Eu só espero que realmente pense dessa vez porque na última não deu tão certo. – a encarei, levemente confusa. Mais um disfarce do que qualquer outra coisa. – , você foi a mais ultrajada quando descobriu que não podíamos fazer festas com bebidas alcoólicas e o resultado disso, até questionou a Nikki diversas vezes e então esqueceu.
Apertei minha boca em uma linha reta, querendo dizer que ela estava errada. Porém eu sabia que não. Eu já vinha questionando as minhas prioridades nas últimas semanas há algumas horas e consequentemente me sentindo terrível com elas. Decidi ficar em silêncio. sabia que tinha razão e o meu silêncio acabava por confirmar.
Em algum momento no meio de todos aqueles pensamentos novos e estranhos, eu finalmente apaguei. Estava exausta. Mais emocional do que fisicamente, para ser honesta. Precisava daquele descanso. Especialmente porque algo me dizia – e acabei estando certa – que os próximos dias seriam ainda mais difíceis e confusos.
Katy voltou alguns dias depois e era difícil dizer se ela estava mais desolada ou puta da vida com o que aconteceu. Havia dias em que ela simplesmente seguia sua rotina de ir e voltar da aula, não falava muito, não sorria muito, só estava por aí. As vezes descendo as escadas para ir na cozinha ou passando pelo corredor, mas na maior parte do tempo, seu abrigo era o seu quarto.
Ao mesmo tempo, haviam dias em que ela não parava em casa. Estava fazendo reuniões atrás de reuniões com a coordenação da universidade a fim de conseguir algum tipo de justiça pelo que aconteceu. Todas as vezes que voltava para casa com sangue nos olhos, nós sabíamos que não facilitaram as coisas para ela, exatamente o que Mina disse que aconteceria.
Pouco mais de uma semana depois, estávamos em um dia desses. Ela apareceu batendo a porta da frente e se jogou em um dos sofás, do lado de onde eu, a April e a Nikki estávamos sentadas, soltando algumas frases tão insignificantes que já eram esquecidas no segundo seguinte.
— E aí? – Nikki perguntou, hesitante.
— Aquelas pessoas são apenas... Nojentas. Vocês não têm ideia! Eu... eu...
Sua frase foi completada com as suas mãos cobrindo violentamente o seu rosto. April e eu trocamos um rápido olhar preocupado.
— O que aconteceu? – April questionou em seu tom suave, sendo exatamente a pessoa certa para fazer aquilo.
— Ela me fez todas essas perguntas ridículas sobre o meu comportamento naquela noite, tentou me convencer de todas as maneiras possíveis a retirar a minha queixa na polícia. Deus! Eu saí de lá mais na merda do que entrei!
As meninas suspiraram.
Eu sabia que tudo ali era ruim, mas não pude deixar de dar mais atenção a palavra que se destacou para os meus ouvidos.
— Ela?
— Triste, não é? Jogaram para o meu lado essa mulher que deveria resolver problemas do tipo quando tudo que ela faz é tentar camuflar. O reitor é esperto demais para sujar as próprias mãos nessa bagunça.
— Sinto muito, Katy. Nós podemos ir com você na próxima vez, para dar uma força. – Nikki sugeriu. Aquelas não eram águas novas, no entanto.
— Não, eu já disse, não quero envolver a casa inteira nisso.
— Nós meio que já estamos envolvidas, não percebeu? Somos suas amigas, é apenas justo que te ajudemos a passar por algo assim.
— Nós podemos até não ajudar muito, mas com certeza não vamos atrapalhar. – April completou.
Katy respirou fundo e ficou quieta por algum tempo, olhando para todos os lados, provavelmente tentando pensar em uma solução para aquele problema, o que não aconteceu porque: 1. Naquele momento, a solução não estava exatamente nas nossas mãos. 2. Nós tínhamos razão. Mas, justamente quando pensamos que ela ia nos dar aquele espaço...
— Não! Esse assunto é meu.
Nós trocamos alguns olhares preocupados, porém ninguém disse nada. Aquela era a sua escolha e não cabia a nenhuma de nós três tentar convencê-la do contrário, especialmente com tudo que estava acontecendo. Ninguém tinha um manual do que fazer em situações como essa, então deixa-la fazer suas próprias decisões, mesmo que não concordássemos, era sempre a melhor opção. Até porque ainda sabíamos pouco sobre o que realmente houve naquela noite.
Na verdade, não sabíamos praticamente nada, apenas que um estupro havia acontecido. Não sabíamos quem, quando, apenas onde e não nos importávamos com o porquê. Por mais que quiséssemos ao menos saber o nome do desgraçado que havia feito aquilo, pois assim teríamos um alvo em específico e não só o ranço pela fraternidade inteira, tínhamos consciência do quão doloroso devia ser para a Katy contar o que houve e reviver os piores momentos de sua vida. Então ficávamos caladas e abertas para o que quer que ela sentisse a necessidade de dizer.
Você já teve a sensação de estar simplesmente boiando vida afora? Quer dizer... Eu vivia em uma irmandade em crise, tinha mais trabalhos do que nunca para fazer, provas chegando e não conseguia lidar com nada daquilo. Pela primeira vez em algum tempo, eu não tinha uma pessoa para culpar por todos os meus problemas e era desconcertante.
Na verdade, agora a culpa por tudo o que eu causei era unicamente minha. Eu não sabia dizer se estava arrependida do que fiz, mas definitivamente sentia vergonha. Vergonha de deixar minhas obsessões pessoais se tornarem tão grandes a ponto de eu tomar atitudes que nenhum ser humano normal e em boas condições mentais tomaria. E carregar esse peso para todos os lados não era nada divertido.
havia dito que desabafar levaria esse peso embora, no entanto, ele estava errado. Muito errado por não considerar que algo desastroso poderia acontecer e tornar as coisas infinitamente piores.
— !
Falando no diabo...
Só então percebi que ele estava ao meu lado, se controlando para não entrar na minha frente, e também que eu passava agora na frente da casa das Kappa Delta. Eu nunca passava na frente daquela casa no meu caminho para a aula.
— Por que tá gritando?!
— Porque você tá indo pelo caminho errado e não ouviu nenhum dos meus gritos a distância! – explicou. Apesar disso, eu continuei indo na mesma direção que já estava.
— Bom, já passou pela sua cabeça que eu só tenha decidido andar um pouco mais nessa manhã? Estou caminhando, ! Não posso?
Ele não respondeu imediatamente, só me encarou por alguns bons segundos. Aos poucos, seus olhos foram se arregalando ao mesmo tempo que o pânico tomava conta deles.
— Você não voltou atrás, voltou?
— Como?
— Tá me tratando exatamente como me trataria antes do nosso... Confinamento. Voltou atrás, ?!
Revirei os olhos. Qual o motivo para tanto desespero?
— Não! Relaxa aí.
E ele realmente o fez, dando um grande suspiro.
— Qual o seu problema, então? – ele perguntou. Tá aí um questionamento em que eu não gostaria de entrar. – Você não parece bem.
— Ei, estou ótima! Não vai ficar tentando me decifrar agora, vai?
— Não... É que você continua indo pelo caminho errado.
Parei.
— Ah, é. – disse, me virando. Nem valia a pena fingir que sabia o que estava fazendo, pois nós dois sabíamos bem que era apenas uma desculpa.
— E então? – ele voltou a perguntar quando eu continuei em silêncio, sem responder com calma sua pergunta anterior.
— Tô bem, . Não se preocupe. – afirmei.
Eram sete horas da manhã, justamente o pior horário do dia para se ter uma conversa sobre sentimentos e... Bem, coisas. Não que eu fosse tê-la feliz em alguma outra hora.
— O que aconteceu com a Katy foi terrível, . A não está bem, a Nikki não está bem, nem a April está bem, por que você estaria?
Ergui os ombros, fazendo a desentendida.
— Eu sou uma pessoa forte.
— Eu sei.
Ele não precisou dizer mais nada, eu entendi. Como a boa que eu era, tentei desviar o assunto, pelo menos por um tempinho. Eu não conseguia simplesmente voltar a colocar toda a minha confiança nele poucos dias depois, especialmente quando a minha cabeça ainda pesava de tão cheia que se encontrava.
— Desde quando você fica de papo com a April para saber se ela está bem ou não? – questionei, o olhando de lado.
— Não fico. O me falou. Ela tem cancelado os encontros na biblioteca para aquele projeto secreto deles. Ele tá bem pirado, achando que ela está com medo dele depois do que houve.
— A April não tá com medo dele! – exclamei, rindo rapidamente.
Ou estava? Não é como se eu tivesse sendo a amiga mais lúcida para notar esse tipo de coisa ultimamente.
— Eu disse isso para ele, mas não adiantou. Talvez você devesse ter uma conversa com os dois. Por algum motivo, eles levam a sua palavra mais a sério do que a minha.
— É porque eles sabem que eu sou sincera. Você mente para não machucar. – afirmei. – Isso que dá ficar bancando o queridinho.
— Eu não banco o queridinho, ! Sou uma pessoa adorável, você aceite ou não. – disse e eu dei de ombros. Ele podia ser adorável de vez em quando, porém definitivamente não o daria o título integral.
— Tá, tá! Vou ver o que eu faço. Talvez demore porque não sei se tô com cabeça para isso.
Ou qualquer outra coisa que exigisse algum tipo de reação.
— Tá vendo? Não está bem! Me diz o que está havendo, ! – insistiu e eu suspirei, sem certeza do que fazer.
— Como posso te dizer se nem eu mesma tenho certeza?
Ele não soube o que responder para isso. Finalmente! Nós dois tínhamos a terrível mania de sermos insistentes e por mais que eu apreciasse aquela característica quando bem usada, odiava que fosse contra mim.
— Ahn... Já pensou que dizer em voz alta talvez te ajude a entender?
— Não, , eu não pensei nisso.
— Devia. As vezes a nossa mente só precisa de um empurrão para chegar aonde queremos que ela esteja. Parece mais difícil do que realmente é.
Revirei os olhos. Esse era o tipo de coisa que ele fazia que costumava me irritar mesmo quando estávamos na mais profunda paz um com o outro. Não me irritava tanto assim quando outras pessoas eram vítimas, era até engraçado, mas eu, particularmente, odiava essas incansáveis tentativas de me dar soluções para um problema em que eu preferiria só me afundar. De olhos bem fechados para fingir que tá tudo certo.
— Você devia tentar um emprego como guru espiritual. Tem gente que paga uma grana boa para ouvir essas baboseiras, sabe?
Ele suspirou.
— Tô falando sério, ! Você não parece nada bem, tem estado estranha há vários dias, me fala! Porque eu tô começando a me sentir culpado, sem nem saber de quê!
Ri, balançando a cabeça.
— Com isso você não tem que se preocupar, amigo. A única culpada nessa história toda sou eu. – afirmei. Não gostei da sensação, mas estava sendo sincera. E não queria que ele se sentisse mal por algo que não lhe dizia respeito. Não mais, pelo menos.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que se eu não tivesse sido tão estúpida e egocêntrica esse tempo todo, talvez isso não tivesse acontecido com a Katy! É isso que quero dizer! – disse por fim, me arrependendo na mesma hora.
Para ser honesta, me senti estúpida. Eu era muito boa disfarçando coisas sobre as quais não queria conversar com todo o resto do mundo, mas tinha um dom especial para arrancar elas de mim. Eu tinha a teoria de que isso acontecia porque poucas pessoas no mundo sabiam me irritar tanto quanto ele, sendo namorado, melhor amigo ou apenas inimigo. Eu simplesmente falava na esperança de que aquilo fosse tirá-lo do meu pé. Nunca funcionava.
— Não tá falando sério, né? Não tá realmente arrumando uma maneira de se culpar pelo que aconteceu? – questionou, incrédulo.
— Eu tenho razões, !
— Então me diz quais são porque eu não vejo ligação alguma! A Katy estava numa festa, você estava presa dentro de um quarto comigo, um imbecil nasceu há alguns anos... Não tem conexão alguma, !
É claro que não tinha olhando daquele ângulo. Com aquela vista, eu só parecia paranoica.
— Você não está lá quando as meninas nos informaram que nós não podíamos fazer festas com bebidas, tá legal? Não viu como eu me senti injustiçada, como me preocupei, o tempo que passei tentando pensar em uma solução que já não tivessem tentado para o problema até que a minha rixa com você cresceu de uma maneira que todas essas preocupações simplesmente desapareceram da minha mente. – expliquei, percebendo até que agora eu estava parada e virada para ele, como se aquilo fosse fazer o que eu tinha a dizer entrar naquela cabeça dura com mais facilidade. Eu sabia que me atrasaria para a primeira aula, mas ainda assim sentei em um tronco que encontrei por ali, apoiando as minhas bochechas nas mãos. Parecia uma criança emburrada, exatamente como eu me sentia. me acompanhou e se sentou na calçada mesmo, frente a mim. – Eu sei que as chances são muito baixas, só que... Bom, talvez eu tivesse chegado a algum lugar. Eu tinha tempo e disposição, sabe!? Na melhor das hipóteses, todas nós estaríamos naquela festa e não enfiadas dentro de casa por causa de uma bagunça que eu aprontei. Com você. Não vou tirar seu mérito.
Ele apertou os olhos em minha direção, me olhando como se eu fosse louca. Isso porque ele só estava sabendo de uma parte muito pequena de todas aquelas rodando pela minha cabeça, realmente querendo me colocar em um hospício.
— Seu cérebro funciona de um jeito muito especial, não é? – dei de ombros. – Escuta: eu não quero agir como se o que aconteceu devesse ser encarado como algo normal, mas sejamos honestos, acontece muito! E eu garanto para você que em todas as vezes, alguém acaba se martirizando por uma culpa que não é realmente dessa pessoa. A própria vítima, a amiga que não estava afim de sair naquele dia, os pais que deram permissão... De alguma maneira, isso alivia para o lado do que é realmente culpado, estando bêbado ou sóbrio. Muitas pessoas fizeram coisas que levaram a Katy até aquela casa naquele sábado, . Isso não significa que devemos culpar todas elas.
Sabia que ele tinha razão desta vez. No entanto, não podia impedir uma voz irritante na minha cabeça de dizer que eu achava aquilo apenas porque me fazia sentir melhor comigo mesma, e isso era ser egoísta. De novo.
— Mas de que adianta culpar o infeliz quando ele tem uma aura ao redor dele impedindo que qualquer denúncia o atinja? A universidade tá praticamente defendendo ele, ! Se não podemos culpar quem realmente merece, alguém tem que carregar o fardo.
Mais uma vez, seu olhar dizia: louca.
— Não acho que as coisas funcionem assim.
— Então me diz como elas funcionam, oras! Porque eu não sei o que fazer. A Katy não sabe o que fazer, nenhuma de nós sabemos e não conseguimos seguir a nossa rotina normalmente quando um filho da puta daqueles ainda deve estar andando por aí como um gostosão da faculdade!
— Ei, ei ei! Calma. – disse, erguendo as mãos em minha direção. Senti vontade de chutá-las para fora dali, porém me controlei porque ele estava apenas tentando ajudar. Não era sua culpa que o mundo inteiro me frustrasse naquele momento. – Eu gostaria de poder ajudar, mas, sinceramente, não faço ideia do que vocês podem fazer.
Balancei a cabeça, compreensiva. Ele não podia me dar todas as respostas do mundo, de qualquer maneira. Já me dava alguns empurrões dos quais eu não podia, mas sempre achava uma maneira de reclamar, e isso devia ser o suficiente.
— Tudo bem.
— Só não acho que vai chegar a alguma resposta se ficar se estressando por causa disso. Dá uma relaxada, faz algo que você gosta, esvazia a mente, me liga se precisar. Você sempre dá um jeito nas coisas. – afirmou e eu soltei um sorriso de lado. Realmente.
— É claro que dou.
O problema era que eu nunca precisei lidar com algo nesse nível de seriedade. O mundo real bateu na nossa porta e decidiu ficar. Definitivamente não sabia como lidar com aquilo e, mais ainda, não sabia se descobriria um jeito de lidar com aquilo, então decidi, a partir daquele momento, dar um passo de cada vez. Eu não precisava me atropelar, só andar calmamente ao lado de Katy e tentar trazer todas as garotas no mesmo ritmo.
Com um pé na confiança que só uma história da Disney poderia trazer, talvez chegássemos a algum lugar.
— Vem. – disse, se levantando.
Ele bateu as mãos ao redor da bermuda jeans, a fim de se livrar de qualquer sujeira que poderia ter adquirido, e então me estendeu uma delas, sorrindo. Sem pensar demais pela primeira vez em algum tempo, eu simplesmente a agarrei.
Um passo de cada vez... Certo.
Primeiro, eu preciso fazer todos aqueles trabalhos atrasados que eu deveria ter feito quando fiquei encarando o teto do meu quarto, pensando no quão burra eu era.
Número dois: dormir bem. Eu não posso ajudar ninguém se passo meus dias parecendo um zumbi.
Três: passar menos tempo pensando no quão estúpida eu tenho sido nas últimas semanas e mais no que eu posso fazer para melhorar daqui para frente.
Quatro e aparentemente impossível: garantir que a Katy saiba que eu estou ali, para o quê ela quiser, para quando ela quiser, sempre que precisar. Mas sem sufocar. Eu não posso encher o saco dela o tempo todo. Nesse momento, ela quer seu espaço e não garotas que, na tentativa de ajudar, acabavam por fazê-la sair correndo e se afastar ainda mais.
Isso acabava resultando em vários sorrisos aleatórios e o oferecimento de várias comidas em diferentes horas do dia, pois eu queria me certificar de que ela estava se alimentando bem. No final das contas, eu sempre ganhava um sorriso leve que me dizia que ela sabia o que eu estava tentando fazer e, de alguma maneira, apreciava a preocupação.
Alguns dias depois, eu descobri que ela apreciava muito mais do que eu pensava. , April e eu estávamos sentadas no nosso quarto, cada uma em seu canto trabalhando em coisas pessoais, quando a Katy abriu a porta e colocou sua cabeça para dentro.
— Posso interromper? – ela perguntou e no minuto em que percebemos que era ela ali, toda nossa atenção mudou de direção.
— Claro!
— Nem precisa perguntar!
— Entra!
Só para você ter ideia do tamanho da nossa necessidade de fazê-la se sentir acolhida onde quer que fosse.
— Não precisa. – disse, rindo rapidamente da nossa afobação. – Na verdade, queria conversar com vocês. Podem vir no meu quarto?
Nos poupando de repetições, eu e as meninas simplesmente a seguimos dessa vez. Ao chegar algumas portas a frente, descobrimos que não éramos as únicas. Nikki também estava ali, assim como a Suzy, a Anne, sua outra colega de quarto, e mais um par de garotas da qual eu não era tão próxima, mas conversava de vez em quando.
— Acho que estão todas aqui. – Katy disse para si mesma, olhando ao redor, e então foi se sentar em sua cama. – Vocês não precisam ficar tão tensas.
Só assim eu percebi que todo o meu corpo estava enrijecido, curiosa e com medo do que estava por vir. As notícias que eu vinha recebendo não eram lá das melhores.
— Então fala logo porque chamou a gente aqui! Tá me matando aos poucos. – a Anne disse, arrancando uma risada da anfitriã da reunião.
— Não seja tão dramática! Eu vou dizer... – ela respirou fundo e deu uma boa olhada em cada uma de nós antes de voltar a falar. – Eu pensei muito nesses últimos dias sobre tudo que aconteceu, sobre todas as vezes em que vocês colocaram na mesa todo o apoio que tinham para me dar e acabei decidindo que já passou da hora de eu esclarecer o que houve.
Meu coração deu um pulo no peito e eu fiquei de boca aberta. Me senti honrada por ser uma das escolhidas para aquele momento. Ao mesmo tempo, o medo pelo que eu teria que ouvir era mais forte que nunca.
— Tem certeza, Katy? Não quero que se sinta obrigada a nos contar nada a não ser que esteja realmente pronta.
A parte sensata de mim sabia que a Nikki tinha razão. No entanto, havia uma outra que queria tirá-la daquele quarto por sequer questionar a decisão. Eu sabia que estava sendo equivocada ao pensar aquilo, mas, por algum motivo, eu tinha comigo que a partir do momento que soubéssemos exatamente com o que estávamos lidando, tudo ficaria mais claro. As probabilidades não estavam a meu favor, eu tinha que admitir.
— É difícil ter certeza sobre qualquer coisa nesse momento. – disse, encolhendo os ombros. – Mas eu definitivamente acredito que me abrir para vocês vai me fazer sentir melhor, talvez até me dar um pouquinho da força que eu preciso para continuar indo atrás de algum tipo de justiça...
Nikki sorriu abertamente.
— Tudo bem então. Estamos aqui para o que precisar. – afirmou.
— Eu sei. Não quis falar tudo na frente de toda a casa porque não me sentiria nem um pouco confortável nessa posição, por isso escolhi vocês. Se sintam à vontade para contar a história para quem quiser também... Não quero mais ficar escondendo. Eu amo e acredito na integridade de cada garota dessa casa, sei que vão fazer bom uso dessas informações.
Katy ainda nem havia começado e eu já sentia meu coração tão apertado que poderia se desintegrar a qualquer momento. Eu sabia que ouvir aquela história me destruiria por completo, mais do que assistir a um filme ou ler um depoimento de alguém que eu nunca realmente convivi. Entretanto, eu tinha certeza que o sofrimento maior ali não era nem nunca seria meu. E se ela conseguia juntar forças para me contar, eu conseguia sentar e prestar atenção em cada palavra, por mais doloroso que fosse para cada uma naquele cômodo.
— Bem... Estamos aqui... Comece quando quiser. – April disse suavemente e ela assentiu, dando uma boa inspirada para se preparar.
Ela levou algum tempo para começar a falar, mas fomos pacientes. Poucas coisas no mundo devem ser mais difíceis do que tentar colocar em palavras um momento como aquele.
— Ok... Bom... Depois de tudo que havia acontecido nos últimos dias, eu só queria relaxar, então fui na festa da Sigma. Eu sempre evitei um pouco elas pela fama dos garotos, mas era basicamente a única festa além da nossa naquele final de semana, a Suzy estaria comigo o tempo todo, nada ruim poderia acontecer. Agora, eu me sinto meio estúpida por pensar isso porque... Eu não sei, é só aquele sentimento de que coisas ruins não podem me atingir, elas chegam apenas para as outras pessoas. Acho que eu me apoiei demais nessas sensações... Eu não quero me culpar. Tenho me esforçado para não fazer isso porque eu sei, agora por experiência, que essa é a tendência, mas é tão difícil não passar meus dias pensando nos ‘e se...?’. Um passo diferente e eu poderia não precisar ter que contar essa história para vocês. Só que nada me garante que uma outra garota não estaria no meu lugar e eu sei que isso é algo terrível para se dizer, mas prefiro que isso tenha acontecido comigo, que tenho todo o apoio de dezenas de pessoas para me ajudar a passar por cima, do que com alguém que poderia reagir de maneira... Definitiva quanto a isso.
É claro que a nossa reação à última frase não foi das melhores. Entre reclamações do quão errado era para ela se colocar nessa posição, como algum tipo de mártir, a Katy pareceu arrumar algum tipo de energia para continuar fazendo seu depoimento.
— Eu sei, eu sei de tudo isso! Eu vivo nesse mundo onde garotas são violentadas o tempo todo, eu converso, eu leio, mas vocês sabem tanto quanto eu que a mente de cada um recebe informações de uma maneira. Não é algo que eu goste de pensar, são pensamentos que simplesmente vem e na maioria do tempo, eu não consigo controla-los. Vocês sabem como é. – eu tinha uma ideia. – Não me levem a mal, mas vou pedir para que me deixem contar tudo sem expressar suas opiniões. Eu provavelmente vou dizer coisas que vocês não concordam, é que... Isso é difícil. E eu entendo que, assim como eu fazia, vocês estão tentando se colocar no meu lugar, sentir a minha dor, suas cabeças estão à mil na busca de algo que possam dizer que vá me ajudar de alguma maneira, mas, nesse momento, ouvir é o suficiente. Saber que eu posso correr para o braço de vocês é mais que o suficiente! Podem fazer isso?
Nós assentimos rapidamente. Talvez porque fazer o que ela nos pedia já era uma forma de dar toda a ajuda e apoio que tanto queríamos.
— Obrigada. Enfim... Nós fomos na festa e inicialmente tudo parecia bem, estávamos nos divertindo, não é? – ela perguntou para a Suzy, que assentiu, sentada em um canto, parecendo mais desconfortável que nunca. Até aquele momento, não tinha parado para pensar que era ela quem provavelmente estava se culpando mais do que qualquer outra de nós. – Considerando a casa onde estávamos, era surpreendente o fato de já ser quase uma da manhã e ainda não ter rolado nenhuma briga ou escândalo. No máximo, eu vi algumas pessoas vomitando pelos cantos, porém isso é quase normal. Suzy e eu ficamos juntas o tempo inteiro até que eu conheci esse cara... Ruivo, alto, forte, olhos claros, vocês sabem, o pacote que faz a maioria das garotas pirarem, inclusive eu. Então, depois de se certificar que estava tudo bem, ela nos deixou a sós.
Como se soubessem o quão importante era a conversa que acontecia naquele cômodo, o resto da casa parecia estar em completo silêncio, dando ainda mais destaque a voz da Katy. Nós mal respirávamos, compenetradas demais na história. Por isso, eu acabei notando quando a boca da Nikki começou a se abrir em surpresa ao descobrir algumas características físicas do rapaz. Ela não disse nada, e eu muito menos, mas o momento com certeza me deixou com uma pulga atrás da orelha.
— Vocês sabem o que vem depois. Nós conversamos um pouco, ele me disse que é atleta, mas, para ser honesta, quando ele começou a querer falar demais sobre isso, eu cortei. Vocês também sabem como. Falar com ele estava arruinando a imagem boa que eu tinha com aquele rosto, eu não podia deixar isso acontecer. Não tinha a intenção de fazer nada além de beijar um pouco, mas... Ele beijava bem, perguntou se eu queria ir para um lugar quieto e na hora me pareceu uma boa ideia. – ela parou para respirar fundo, encarando seus próprios dedos, que mexiam uns nos outros incansavelmente. – Eu fui tão... Inocente. – concluiu. E nós sabíamos que “Inocente” não era exatamente a palavra que ela pretendia usar. – Eu entrei no quarto dele por livre e espontânea vontade, me coloquei naquela situação!
— Isso não muda nada! – Suzy não se conteve e exclamou.
— Eu sei, mas vocês não têm ideia do quão terrível é ter que explicar isso, que fui para o quarto dele porque eu quis, e depois ver a expressão de “Eu sabia” na cara das pessoas. Eu não sabia, ainda que devesse imaginar. Não posso nem dizer que fiz aquilo porque estava bêbada, pois não! Eu estava completamente sã dos meus atos, havia bebido apenas um copo de cerveja na tentativa de não ficar mais vulnerável do que já estava simplesmente por estar naquele ambiente e ser do sexo feminino. Dessa maneira, se algo ruim acontecesse, eu poderia lutar, eu iria gritar e nada tão ruim aconteceria. Mas eu não pude. Diria até que tentei inicialmente, com esperanças de que eu ainda tinha chances de sair daquela situação, mas no momento em que... Não consegui me mexer, não consegui gritar, simplesmente não reagi. O único pensamento claro que eu tenho na minha cabeça é do quanto eu não queria estar ali porque doía... Fisicamente, emocionalmente, doía muito! O resto é apenas uma confusão de muito medo, angústia, nojo e pressa. Aquilo tinha que acabar eventualmente e, se eu tivesse condições, teria contado os segundos. Não sabia que o depois era tão ruim quanto.
Eu só via lágrimas nos rostos de todas sentadas ao meu redor e a visão era embaçada pelo efeito das minhas próprias. Chorar poderia não trazer solução alguma para a Katy ou qualquer outra garota que vivenciou aquilo, mas era a única coisa que tínhamos naquele momento.
— Esse pode ser um pensamento extremamente burro da minha parte, mas as vezes eu desejo ter virado todas as bebidas que me ofereceram naquela festa. Assim eu não me lembraria de nada, nem mesmo da expressão doente de prazer no rosto dele que insiste em voltar a me aterrorizar, não importa quantos dias tenham passado. Eu era mesquinha e pensava que, depois de ouvir tantas histórias como essa, saberia exatamente o que fazer para me safar de uma situação do tipo, estava pronta para qualquer coisa, porém eu acho que não existe nada nesse mundo capaz de preparar alguém para estar nessa posição. É inacreditável, é humilhante! Todos os dias eu vou dormir pensando em novas maneiras de lidar melhor com tudo e todas as manhãs eu descubro que errei, mais uma vez. Contar isso para vocês é só mais uma das minhas tentativas de fazer algo com tudo aquilo que eu sofri, porém nada me garante que daqui algumas horas eu não vou me arrepender e evitar vocês apenas porque me viram nas condições em que estou agora. Assim como passar alguns dias longe foi uma maneira de evitar todas pela cena depois que tudo aconteceu. Eu ainda me sinto horrível por aquilo porque não acho que alguém no mundo mereça estar exposto daquela maneira, mas, quando me encontraram e me perguntaram para onde eu queria ir, essa casa foi o primeiro lugar no qual pensei. Meus pais estavam longe demais, então eu recorri a minha segunda família e não me arrependo disso, apesar de tudo.
Quando ela parou de falar, nenhuma de nós teve ideia do que dizer. No final de tudo, ela não precisava de mais palavras genéricas dizendo que tudo ficaria bem ou que ela superaria logo aquilo. Dessa maneira, optamos por abraços. Abraços que passavam a mensagem melhor do que qualquer palavra em qualquer língua poderia. Abraços que diziam que estaríamos com ela nesse processo de melhora. Independente de qual ela escolhesse, poderia contar com a gente.
Aquele era o momento da Katy, um que todas nós esperávamos que ela não precisasse ter. Por isso, eu não acreditava ter direito algum de sequer pensar no que eu estava sentindo, mesmo que todos os sentimentos que um ser humano deve ser capaz de ter estivessem me bombardeando. E ainda assim, desde o começo do relato, eu vinha pensando novamente que a presença dela na casa da Sigma Nu, naquela noite, estava diretamente ligada ao fato de termos trabalhado à exaustão naqueles dias... Por minha causa. E então eu ouvia a voz de na minha cabeça, me lembrando de não desviar a culpa daquele que realmente a merecia e por alguns segundos eu até conseguia manter isso em mente. Nos outros, a dúvida voltava a dominar e o ciclo continuava se repetindo. Eu tinha que sair daquela, tinha que fazer algo realmente útil. Agora sentia isso mais do que nunca.
Eu gostava de pensar que, pouco a pouco, estava chegando perto de algum tipo de clareza. As peças estavam se encaixando na minha mente, pela primeira vez em tanto tempo, que não pude perder a oportunidade de adicionar mais uma ao quebra-cabeça.
— Por que ficou tão preocupada com a descrição física do cara? – eu perguntei baixinho para a Nikki assim que tive oportunidade, quando tudo se acalmou.
Ela suspirou.
— Eu conheço ele...
— É seu amigo?! – exclamei.
— Não! Nós já saímos no mesmo grupo porque ele é do time e eu faço a torcida, mas o país inteiro o conhece, . Pelo menos, a parcela que acompanha os esportes universitários. Ele é um dos principais jogadores da liga, traz milhões para a conta da universidade toda temporada. – explicou. Na sua face, uma preocupação que eu me atrevia dizer que nunca havia visto antes, mesmo depois de tudo que havia aprontado.
— E isso significa...
— Isso significa que se a gente pensou que seria difícil fazer o abusador da Katy pagar pelo que fez, agora é quase impossível. E o ‘quase’ é apenas eu tentando ser positiva.
Capítulo 18
“Como os estupros nas universidades dos EUA se tornaram um escândalo.”
“Em universidade nos EUA, alunas que denunciam estupros acabam punidas por código de honra.”
“Estupros disparam nos EUA por cultura do futebol americano.”
“Universidades dos EUA são investigadas por ignorar casos de estupro.”
“Documentário The Hunting Ground, um olhar profundo ao estupro no campus.”
“End Rape On Campus, uma organização de advocacia dedicada a acabar com a violência sexual através do apoio a sobreviventes...”
— O que tá fazendo?
Em um movimento rápido, eu fechei meu notebook com mais violência que o necessário e dei um pulo no meu próprio lugar, como se estivesse cometendo algum crime.
Se eu não me sentisse tão estranha em qualquer ambiente daquela universidade nos últimos dias, parecendo estar vivendo em território inimigo, eu provavelmente teria reconhecido sem esforço algum a voz da Mina atrás de mim ao invés de qualquer outro ser humano que poderia concluir que eu estava conspirando contra a UCLA... O que não deixava de ser uma verdade parcial.
— Sendo paranoica. – respondi para mim mesma.
— O quê?
— Nada. – voltei a abrir o notebook. – Só tô fazendo umas pesquisas, recolhendo material para a reunião de amanhã.
Porque sim, Katy finalmente aceitou nossa ajuda para conversar com a diretoria da universidade. Duas semanas depois, Scott Murray, o famoso jogador de futebol que a violentou sexualmente, foi finalmente preso, tendo comparecido na delegacia algumas vezes antes apenas para interrogatório. No entanto, ele não ficou lá por muito tempo. 15 horas depois recebemos a notícia de que ele havia pagado a fiança e sido liberado. Apesar de ainda ter todo um processo contra ele, o acontecimento foi um baita soco no estômago. E no final das contas, ele ainda era um aluno da UCLA, como o resto de nós.
Mina puxou uma cadeira do meu lado para se sentar, apoiou o queixo em uma das mãos e começou a passar os olhos pelas milhares de abas que eu tinha abertas, fazendo uma leitura artificial de algumas. Então suspirou, desistindo.
— Eu ainda não entendi porque te deixaram ir na reunião e eu não. Nós duas temos as mesmas chances de fazer uma cena, não?
Assenti. Era verdade. E eu diria que, dependendo do rumo em que ela iria seguir, essas chances eram bem grandes.
— Acho que eles têm medo do que nós podemos causar juntas. Não se preocupe, eu vou te representar bem. — ela balançou a cabeça, feliz com a minha resposta, mas era claro que seu desejo de estar lá permanecia. — O que tá fazendo aqui essa hora? Não sabia que você frequentava a biblioteca de tarde. Ou em qualquer outro período.
Ela deu de ombros, olhando rapidamente ao redor. Eu conseguia encontrar algum tipo de conforto em todos aqueles livros empoeirados, mesmo que não tivesse a intenção de ler a maioria deles, como a April. Já a Mina exalava tédio.
— Ah, vocês andam tão preocupadas com essa reunião ultimamente que eu decidi vir estudar um pouco. Acho até que a esqueceu que tem uma namorada. — disse, rindo rapidamente. — Não estou reclamando, é claro. Estamos fazendo algo bom. Só tenho medo de algumas de vocês estarem se enterrando demais nisso e esquecendo do resto. Temos provas se aproximando cada vez mais, afinal de contas.
— Você é sempre bem—vinda para me ajudar nas pesquisas que vão me fazer derrubar aquela diretoria. E depois eu posso estudar um pouco com você, que tal?
Estava estampado na sua cara que aquele estava longe de ser seu cenário ideal para uma tarde de segunda—feira, mas ela, assim como todas nós, Kappas, tinha consciência de que as próximas semanas, provavelmente meses, não seriam e estávamos nos acostumando com esse fato.
— Tudo bem. Agora, me dá um espaço. – ordenou, me empurrando para o lado para que pudesse ter uma boa visão e controle do meu computador. – Vamos dar a esse pessoal um motivo para ficarem realmente preocupados.
Eu tinha um novo melhor amigo. Ele era eletrônico, não carregava uma marca de muito renome em sua frente, estava sempre a ponto de dar seu último suspiro, mas seguia firme me auxiliando naquela bagunça que vinha sendo minha vida de universitária. Fiquei encarando ele pela milésima vez naquele dia, agora sem mil coisas abertas para sobrecarregar a minha cabeça. Pelo contrário, o único aplicativo ali deveria servir como algum tipo de alívio, mas no momento parecia me deixar tão nervosa quanto todo o resto.
“Dá uma relaxada, faz algo que você gosta, esvazia a mente, me liga se precisar”, ele disse.
Eu não sabia se precisava, mas definitivamente queria conversar agora, por mais inusitado que fosse. Para ser sincera, o que eu mais queria era ter um diálogo com alguém que estivesse consideravelmente afastado de tudo que vinha acontecendo na Kappa Kappa Gamma, assim eu poderia falar sobre qualquer outro assunto que não envolvesse aquela área. E quando eu digo qualquer assunto, digo o vai—e—volta de qualquer casal famoso pelo qual nunca me interessei ou a irritante existência de pombos. Para isso, eu tinha três nomes me gritando na tela: , e .
O primeiro era, de longe, a melhor opção. Ele me contaria as melhores e mais inusitadas histórias, iria até o inferno na missão de tentar tirar da minha cabeça aquilo que me deixava para baixo. O segundo era arriscado, pois as chances dele querer se atualizar sobre a April eram grandes, especialmente agora que ela parecia não estar dando tanta bola para ele. Todas garotas davam bola para o , ele acabou ficando mal acostumado. O último continuava como uma incógnita para mim, mesmo depois de tantos anos. Eu queria tanto odiá—lo cegamente como vinha fazendo até ali porque ainda tinha consciência do quão mal ele havia me feito, mas, depois de todas as merdas que causamos, eu não sentia mais ter direito àquilo. Além do mais, eu fiz uma promessa e tinha que ao menos tentar me manter fiel à ela... Certo?
Respirei fundo, querendo revirar os olhos para mim mesma. Quando minha vida se tornou tão dramática? No final das contas, não adiantava quanto tempo eu ficava ali repassando todos os pontos possíveis em cima de uma decisão simples, pois eu sabia desde o primeiro minuto que decisão acabaria por tomar. Então me apressei e apenas apertei o botão.
Um “conectando...” brotou logo na tela antes das chamadas começarem e essas ficaram, por tanto tempo que eu comecei a achar que tinha feito a decisão errada. Depois de todo aquele processo de seleção, custava abrir a bendita tela do notebook e me atender? Eu achava que não. Por sorte – não disse de quem –, seu rostinho bonito apareceu de repente no retângulo de vidro quando eu estava prestes a desistir.
— Ei! – ele me recebeu com um grande sorriso que quase tomou todo o meu campo de visão por estar tão perto da webcam.
— Oi, .
— Finalmente você se lembrou de mim! Não te vejo mais nem no café—da—manhã. – disse, se ajeitando em frente a câmera.
— Eu tô comendo aqui em casa ultimamente, mas não quero falar sobre o desaparecimento de toda Kappa Kappa Gamma desse campus, vamos falar sobre outra coisa! – pedi e ele assentiu em compreensão.
— Certo. O que exatamente?
— Eu lá sei? Me fala sobre você. O que tem feito? Quais as novidades? Descobriu alguma comida nova que eu posso amar? Tem pegado alguém? E os estudos? Você vai se dar tão mal nas provas quanto eu?
— Ok, pode parar por aí! Uma coisa de cada vez. Primeiro: é claro que eu não vou me dar mal, tá louca? E você também não devia. Não tem livros? Não tem seus cadernos? Não tem aquele lugar mágica chamada INTERNET, ? Então acorda e vai estudar!
Fiquei quieta, absorvendo a bronca que levei. Senti que deveria estar mal, decepcionada comigo mesmo e a minha falta de vergonha na cara ou até jogando minhas frustrações nele por dizer algo do tipo em um momento delicado como aquele, mas me peguei sorrindo no segundo seguinte.
— Eu te amo tanto, sabia?
Eu vi em sua expressão que o peguei de surpresa. Não falava frases como aquela em um tom que não fosse de brincadeira com muita frequência. No entanto, a maior característica em comum entre e eu era sermos descendentes de cobras, então ele fez questão de disfarçar rapidamente, afinal de contas, ele não deveria ficar mexido por eu fazer nada mais que a minha obrigação: dizer que o amo a todo momento.
— Sei. Como eu ia dizendo: acho que o que eu mais tenho feito ultimamente é descobrir que o é um verdadeiro pé no saco.
Eu ri e balancei a cabeça.
— Não fala assim do meu irmão.
— É sério! – exclamou. – Você não sabe porque nunca viveu 24 horas por dia com ele. , ele é desorganizado ao extremo, tem os amigos mais chatos do planeta terra e eles adoram vir aqui para serem inconvenientes. Eu pensei que as garotas indo e vindo seriam um problema, mas ele tá tão obcecado na sua amiga que tudo que ele fala é April aqui, April ali e meu. Deus! Eu não aguento mais repetir todo santo dia que ela não tem medo dele, só anda ocupada. Você tem que fazer algo! – concluiu, se aproximando tanto da pequena câmera que eu fiquei tentada a me afastar.
— Nossa! Eles ainda estão nessa?
Para ser sincera, eu até havia pensado sobre conversar com a April sobre o assunto, mas no meio de tantos problemas chegando um atrás do outro, acabei me esquecendo completamente.
— Sim! Você sabe que eu amo o , não é? Tenho medo de um dia acordar e a ideia de matar ele me parecer aceitável.
Ri novamente. Como todo mundo, podia ser bem exagerado quando estava afim.
— Menos, , bem menos! Vou falar com ele, prometo.
Ouvimos um barulho ao fundo que o fez virar a cabeça e encarar a sua direita. Depois ele sorriu, satisfeito com o que via.
— Ah, é? Então toma que o filho é teu. ! A .
Poucos segundos depois, o rosto de começou a disputar a tela com o de . Ele tinha um sorriso largo nos lábios, feliz por me ver depois de todos aqueles dias afastada. Eu não era muito fã dessa distância que eu havia criado com o mundo exterior às Kappas ultimamente, porém gostava de pensar que a reunião do dia seguinte seria um divisor de águas para a situação em que nos encontrávamos.
— ! Como você tá? – perguntou alegremente.
— Tô bem, amor. Só um pouco ocupada, mas volto logo. E você?
Na mesma hora, sua expressão mudou para o desânimo completo, num estágio de drama que só quem estava gostando pela primeira vez de alguém poderia chegar.
— Ela me odeia, ! – resmungou.
— Ela não te odeia. – retruquei calmamente.
— Ela não quer mais saber de atletas nem nada relacionado a eles, ou seja, eu!
— Isso não é verdade.
— Eu mal tive a chance de conquista—la e já perdi.
— Nós podemos fazer isso o dia inteiro, sabia?
Ele abriu um sorrisinho.
— Eu sei.
— Tá vendo? Eu tenho que aguentar isso o dia inteiro. Olha só como é gostoso! – ironizou, ganhando um revirar de olhos do .
Senhoras e senhores, é isso que a intimidade extrema faz com amizades!
— Você tem que me dar uma mão, . Me dá uma luz, me diz o que fazer.
— Quer que eu seja sincera? – perguntei. Ele hesitou.
— Talvez...
— Cria vergonha na tua cara, ! – exclamei. – Você não tem noção do impacto que o estupro da Katy teve nessa casa, em cada uma de nós, então, falando como uma pessoa que tende a ser extremamente egocêntrica de vez em quando, eu digo: para! A April tá cuidando da gente nesse momento, ela precisa desse espaço. Acredite em mim, ela vai sair correndo para você na hora em que estiver pronta.
Os dois ficaram congelados na minha tela, digerindo a culpa. Eu havia ligado para o justamente para fugir daquilo, então a mensagem não era realmente para ele, porém ele também parecia estar curtindo a vergonha.
suspirou.
— E se eu não estiver mais disponível quando ela vir?
— Vai estar porque você não é um imbecil, é doce e se importa com ela. Na pior das hipóteses, isso funciona como um teste para os seus sentimentos em relação a ela, até porque já conversamos sobre a possibilidade dela sair magoada e concordamos que ela não deve existir. Certo?
— Certo! – ele afirmou. – Obrigada, . Você sempre sabe o que dizer.
Eu daria atenção para esse elogio se não minha atenção não fosse completamente roubada por , o encarando incrédulo, com o ódio que poderia mata—lo nos olhos.
— Tá brincando, né? Eu tô te falando a mesma coisa há uma semana! – disse indignado.
Eles iniciaram uma séria discussão sobre a credibilidade das minhas palavras em relação as do resto do mundo. E se você pensa que eu desliguei a partir daí, está erradíssima. Eu acompanhei tudo com atenção, virando até algum tipo de terapeuta da relação dos dois, que vinha sofrendo grandes mudanças desde que viraram colegas de quarto. Aquele não era o casal que eu tinha em mente antes, mas definitivamente era muito melhor.
Eu só cortei o contato quase uma hora depois, quando a Nikki entrou no meu quarto e se sentou na cama da , logo ao lado da minha. Me despedi dos garotos rapidamente, imaginando que ela tinha alguma novidade sobre a reunião no dia seguinte, no entanto, quando ela abriu a boca para falar, o assunto era completamente diferente.
— O veio falar comigo. – disse tranquilamente.
— Jura?! – fingi surpresa. – E o que ele queria?
— Não banca a sonsa, . Eu sei que foi você que mandou.
Relaxei, me apoiando na parede e balançando a cabeça. Ele tinha que falar...
— Ah, então tá bom. Como foi?
— Nós conversamos bastante. Ele me esclareceu algumas coisas, eu pude esclarecer outras, ele pediu desculpa pelas merdas que vem fazendo há um tempo. Foi bom, de certa maneira. Acho que precisávamos disso porque... Bom, ele não é uma pessoa que eu gostaria de cortar da minha vida. Teria sido ótimo se ele tivesse tomado a decisão de vir até mim sem o seu empurrão? Seria. Porém garotos são seres estúpidos.
— É, e o veio com uns pontinhos a mais nessa categoria. – comentei e ela riu rapidamente.
— Tadinho, não fala assim.
— Então... Você perdoou ele por tudo?
— É claro que não. As coisas não funcionam com essa facilidade toda, não é? Mas eu vou perdoar eventualmente. Não quero ficar guardando sentimentos ruins, de qualquer maneira. Deus me livre de causar a segunda parte da bagunça que você já nos causou. – me cutucou e eu dei o sorriso de quem já esperava que ela fizesse aquilo.
— Você nunca vai me deixar em paz por isso, não é?
— Pode ter certeza que não.
Dei de ombros. Poderia viver com aquilo.
Entretanto, eu com certeza não poderia viver com a dúvida que tomava os meus pensamentos. Eu tinha 99,9% de certeza de que aquilo nunca seria um problema se tratando da Nikki, mas não podia deixar de me preocupar.
— Então... Ele te falou mais sobre a conversa que tivemos aqui?
— Sim, , ele me falou sobre tentar te reconquistar.
— Eu nem sei se essa é uma boa ideia! Para ser sincera, acho que eu estava envolvida demais no momento, falei que ele podia porque, depois de tudo que eu tinha causado a ele e às nossas casas, não sentia que era justo lhe tirar aquele direito, sabe? E, sejamos sinceras, provavelmente nada vai acontecer. Nosso momento passou. – me expliquei de repente, toda atrapalhada, sem certeza alguma de que minhas palavras faziam sentido.
Ela riu com o meu nervosismo, balançando a cabeça para os lados, como se eu estivesse sendo ridícula. E eu estava.
— Se quer minha opinião, eu acho isso uma boa ideia. Claramente nenhum de vocês superaram um ao outro. Talvez juntos vocês causem menos problemas do que separados.
Forcei uma risada e um sorriso logo depois, tentando soar simpática e não “olha o que você tá falando, cala a boca”... Basicamente.
— Claramente ele não me superou, você quis dizer.
— Eu quis dizer o que eu falei. – afirmou.
— Mas está errada. – retruquei.
Nikki me fitou rapidamente e se levantou, indo em direção a saída.
— Tá bom, . Não vou ficar aqui pela sua negação. – quando chegou na porta, ela se virou novamente. – Ah, é! Eu vim aqui para te dizer que o quer falar com você. Ele tá esperando lá na sala.
— Durante todo o tempo que está aqui?
Ela assentiu, com um sorriso maldoso nos lábios.
— Tô começando a entender o prazer que você sentia em todas aquelas sabotagens. – disse antes de sair.
e eu não sabíamos, mas, aparentemente, havíamos criado um monstro.
Com muito custo, saí da minha cama e desci até o andar de baixo, o tempo todo pensando no que é que ele poderia querer comigo. Eu tinha consciência de que ceder alguns dias antes faria com que nós tivéssemos mais contato e, mais importante, mais contato sem ofensas trocadas para todos os lados, mas não sabia como fazer aquilo. Felizmente, ele parecia ter uma ideia muito boa do assunto.
Quando cheguei na sala, me deparei com um montinho de garotas, então imaginei que o centro daquilo deveria ser a minha visita. Quando me viram, elas foram se dispersando, com comentários que deixavam claro que um Lambda ainda não era bem—vindo nessa casa.
— Obrigado. Você salvou a minha vida. – ele disse com expressão ainda assustada e bochechas rosadas.
— De nada. Tudo bem? – perguntei, me aproximando.
— Sim. Suas amigas só acham que eu tenho certas informações, mas estão erradas.
— Que informações?
— Quem conseguiu arrecadar mais dinheiro na semana de inclusão.
Assenti, compreensiva. No meio de tudo que acontecia, eu acabei esquecendo de um dos grandes questionamentos da casa: quem foi a verdadeira vencedora? Até agora, Nikki e Ryan concordavam apenas em manter o resultado abafado. Claramente eles eram os únicos que gostavam daquela ideia, porém defendiam que era justa, “uma tentativa de manter os nervos baixos em ambas as casas”.
— Ah... Bom, de qualquer maneira, eu acho melhor a gente conversar lá fora. Você não é muito querido aqui.
Ele fez uma careta, mas entendia bem do que eu estava falando. Além do mais, não é como se nós fossemos ser recebidas com flores e vinho na casa deles. O clima ainda era tenso. Ironicamente, os dois que haviam começado a pequena fogueira que levou àquela explosão eram um dos poucos que se falavam pacificamente. Não muito, mas definitivamente mais do que antes.
Nós saímos para fora e nos sentamos na pequena escadaria que havia ali, a mesma em que as veteranas nos receberam meses antes para a iniciação. Nikki nos alertou rapidamente sobre o perigo no campus naquele dia, mas ninguém imaginou que estaríamos nessa posição tão pouco tempo depois (apesar de parecer tempo demais).
— Eu não sei se eu concordo com isso de esconderem quem realmente venceu o desafio. – começou a dizer aleatoriamente, me fazendo franzir o cenho. Ele não viu, pois encarava o ir e vir de estudantes na rua à frente. – Todos nós trabalhamos pra caramba em apoio às nossas casas, é apenas justo saibamos o resultado que conseguimos. Mas entendo o lado da Nikki e do Ryan também, quer dizer... Eles querem acabar de vez com essa competição e isso é ótimo. Divulgar quem ganhou só vai trazer os gostos de vitória e derrota. De certa maneira, eu admiro a força de vontade deles.
Fiquei encarando—o o tempo todo, tentando entender o que diabos ele estava fazendo. Éramos duas pessoas estranhas, eu tinha consciência disso, por isso rapidamente decifrei que aquela era apenas a sua maneira de encher linguiça. Era uma boa enrolação, eu admitiria. Afinal de contas, trazia referências diretas há algo que havíamos acabado de viver, mas não deixava de ser quase que óbvia.
— Não é pra isso que você me chamou, né?
Ele me olhou.
— É claro que não. Preciso ir direto ao ponto o tempo todo? – questionou, levemente ofendido. Eu ergui as mãos em sinal de rendição.
— Não, não precisa. Foi mal.
— Tudo bem. – deu de ombros. – Na verdade, eu queria te contar que finalmente encontrei uma brecha para resolver as coisas com a Nikki. Nós conversamos... Ela brigou, eu escutei...
— É, ela acabou de me contar. – disse e ele me olhou decepcionado. Demorei um pouquinho para entender que aquela expressão era por perder um dos poucos assuntos que poderia discutir comigo. – Mas não deu muitos detalhes. – acrescentei o mais rápido que pude.
Ele revirou os olhos.
— É claro que deu. O que ela falou?
— Ela só disse que achou bom você ter tomado a atitude de ir conversar com ela e que ainda não te perdoou por completo, mas isso definitivamente a deixou mais próxima.
— Hmm… Qual é a de vocês, garotas, e essa mania de perdoar em partes? Minha vida seria tão mais fácil se as desculpas viessem a vista.
— Para de fazer merda que não vai precisar ficar pedindo desculpas.
— Claro, porque você nunca faz nada errado. – disse ironicamente.
— Exatamente! – confirmei, sorrindo. – Podemos ir direto ao ponto agora? O que você quer comigo para arriscar sua saúde física vindo até aqui?
Imediatamente, ele ficou mais tenso, o que me deu certa preocupação. Eu não precisava de mais notícias ruins.
— Tá bom… Eu não sei se você vai gostar da ideia, mas pensa com carinho, tá?
O encarei pelo canto do olho, desconfiada. Se ele mesmo já imaginava que eu não ia gostar da ideia, eu podia ter certeza que boa coisa não era. Enquanto uma parte de mim gostaria que ele nem se desse o trabalho de falar, a outra estava curiosa demais para sequer considerar a ideia.
— Eu prefiro não fazer promessas, se você não se importar…
Ele sorriu nervoso e se virou completamente para mim, esfregando as mãos na bermuda jeans. Se ainda o conhecia bem, eu diria que ele estava secando todo o suor. E calor não tinha nada a ver com aquilo.
— Ok. Você se lembra da nossa conversa, certo? Detalhe por detalhe? – assenti, hesitante. – Então se lembra que eu perguntei se poderia tentar te… Reconquistar. – ele falava pausadamente, tomando o cuidado de avaliar qualquer mudança na minha expressão. – Você me deu a permissão… Depois de consertar as coisas com a Nikki. – engoli em seco. – O meu ponto é: você quer sair para jantar comigo sexta—feira?
Silêncio. Mortal.
Aquela era uma pergunta difícil. Eu queria? Para ser honesta, não tinha aquela resposta, simplesmente porque não esperava ter que verbalizá—la tão cedo. Eram tempos difíceis e eu tinha tanto na cabeça… Um jantar com o não me parecia ser exatamente a melhor maneira de relaxar, justamente porque parecia impossível relaxar estando tão próxima a ele. Em algum momento da minha vida, ele seria a pessoa certa para àquilo, agora eu já não tinha tanta certeza assim.
— Eu… – comecei a falar, mas só para cortar um pouco do silêncio, pois não sabia o que fazer a partir dali. Por sorte – ou muita inteligência por parte dele –, ele voltou a falar antes que eu dissesse alguma abobrinha da qual iria me arrepender.
— Você não precisa responder agora! Bom… Para ser honesto, seria ótimo se você me respondesse agora, mas ninguém pode ter tudo.
Sorri. Ele estava sendo sincero, então achei que não faria tão mal se eu fizesse o mesmo.
— Olha, não é por mal, é só um passo bem grande a ser dado, ainda mais considerando a situação em que estávamos apenas alguns dias atrás. Nós dois fizemos merda pra caralho! Eu não sei você, mas, para mim, pular tão rapidamente em um encontro me parece… Bem, superficial. Como se estivéssemos forçando algo que devia simplesmente fluir.
— Na verdade…
Ele se interrompeu, mas havia uma vontade muito grande de dizer algo em sua expressão. Dessa vez, eu optei por não buscar a resposta, assim eu não me metia em uma pior do que essa.
— Desculpa…
Ele abriu um sorriso leve.
— Não tem problema. Desde que ao menos pense um pouco na possibilidade, tá tudo bem. Não quero que faça nada que não queira só para forçar essa convivência. – ele disse e eu sorri também.
— Obrigada. Vou pensar com cuidado. Só não quero que pense que a resposta é por causa de você... Você sabe que as coisas estão estranhas ultimamente e eu não sei se consigo lidar com isso tudo de uma vez.
No final, acabei ficando surpresa com a naturalidade com que falei aquilo. Exteriorizar minha confusão interna costuma requerer um trabalho e tanto e, mais uma vez, ele não precisava fazer muito para conseguir aquilo.
— Eu entendo, você sabe que entendo. As coisas vão melhorar logo, você vai ver. – balancei a cabeça, esperando que ele estivesse certo. – Vocês vão sair dessas mais unidas que nunca, acredite em mim.
— Não é estranho algo assim ter que acontecer para que fiquemos unidas? – questionei e ele deu de ombros. Não tinha a resposta para aquela pergunta.
Nem eu.
Menos de 24 horas depois, eu, Katy, Suzy, e Nikki esperávamos pela reunião com a diretoria da universidade. Na verdade, já esperávamos há quase uma hora por algo que havia sido previamente marcado para as três da tarde em ponto e, se eles estavam achando que ficaríamos desanimadas com aquilo, estavam enganados. Só estavam nos deixando mais putas da vida.
— Acho que a gente deveria repassar as nossas regras. – disse, levemente ansiosa.
— É, não vai fazer mal. – Katy concordou.
Olhamos para a Nikki, então, esperando que ela começasse, já que ela era a líder da coisa toda e uma das criadoras das ditas regras, junto com quem? É claro que a . Que Deus a livre de perder uma oportunidade de botar ordem em um lugar.
— Tá... Sejam educadas, afinal de contas, nós ainda estudamos e pretendemos nos formar aqui. Fiquem focadas no problema que nós temos agora porque, se as chances de conseguirmos uma solução para este já são poucas, imagina nos outros milhares que temos. E última, mas mais importante: mantenham a calma. Porque só assim vocês vão conseguir manter a cabeça no lugar para argumentar bem, para não se deixar enganar por qualquer coisa que estejam nos preparando com essa demora toda e, claro, mantemos também a nossa credibilidade.
— Por que você falou a última parte olhando para mim? – questionei, quase ofendida. Eu precisava de mais do que aquilo para me ofender de verdade.
— Você conhece o seu histórico tão bem quanto nós, . – Nikki respondeu. Eu revirei os olhos.
— Se eu sou tão indigna de confiança, por que me deixaram vir na reunião? – me arrependi da pergunta logo depois. – Não precisa responder.
Tarde demais.
— Você se ajoelhou no chão e quase chorou implorando. – disseram praticamente em coro. Encolhi os ombros.
— Vocês são malvadas e surdas.
Elas riram, mas eu não achei a graça.
— Só vocês para me fazerem rir em uma hora dessas. – Katy disse, balançando a cabeça e sorrindo. Isso era bom. Qualquer tipo de positividade nos caía muito bem em momentos como aquele.
A porta finalmente foi aberta e nós cinco nos viramos imediatamente em sua direção. Havia chegado a hora de virar aquele jogo (ou não, mas eu preferia nem pensar nessa possibilidade).
— Meninas? Vamos? — disse uma senhora de meia idade com falsa gentileza.
Momentos como aquele me faziam até gostar da Alice, nossa coordenadora. Ela não era exatamente um anjo, mas ao menos estava aberta para nos ouvir. A que nos encarava macabramente só abriu suas portas porque a Katy envolveu a polícia na treta e ao menos contra eles a universidade não poderia ir.
Hellen Richardson era um dos nossos obstáculos para chegar na justiça que desejávamos para a nossa amiga. Braço direito do reitor da UCLA, ela estava ali para “resolver a situação de forma que ambos os lados saiam bem e satisfeitos”. Palavras dela. O problema era que isso significava a retirada da queixa da Katy na polícia, aquela responsável por prendê—lo e pelos julgamentos que estavam por vir, alguns favores aqui e ali e, adivinha só, a permanência de Murray no time, como se nada tivesse acontecido. Talvez a senhora Richardson devesse ter tirado um tempo para perceber que não importava o que acontecesse, as coisas não ficariam mais bem para a Katy. Pelo menos, não tão cedo.
Nós entramos na sala grande demais para apenas uma pessoa pequena como ela e nos acomodamos em uma mesa de reunião ao fundo que ficou quase totalmente vazia, pois éramos poucas.
— Obrigada por nos receber. – disse, simpática. Até demais, eu diria.
— Não há de quê. Estamos fazendo o nosso máximo para resolver logo essa situação e, se a Katy precisa do apoio de vocês aqui, não me importo de conceder. – Katy forçou um sorriso, mas parecia claro que ela não queria estar ali. – Então, por onde devemos começar? Tenho certeza que vocês têm muito a dizer.
Nós trocamos alguns olhares hesitantes. Na verdade, passamos parte do tempo de atraso da reunião tentando decidir se íamos direto ao ponto ou se amansaríamos a fera primeiro, tentando ganhar sua confiança. Não chegamos à conclusão alguma.
Antes que qualquer uma de nós dissesse algo, Katy tomou a frente.
— Talvez a gente devesse começar com o fato do Murray ainda ser um aluno e jogador dessa faculdade quando existe um processo na justiça contra ele. – sugeriu, curta e grossa.
A encaramos por alguns segundos, surpresa. Ela deu de ombros com uma expressão que parecia dizer: “Eu falei que não precisava de vocês”.
Hellen deu um sorriso calmo, como se já esperasse aquilo. Já haviam tido algumas conversas, então ela provavelmente era familiar com a abordagem da garota.
— Pensei que já tivéssemos conversado o porquê de não ser tão simples assim.
— Então explique para elas! Tenho certeza de que vão amar essa história. – e lá estava o sorriso falso novamente.
— Vocês já devem saber que nós temos toda uma investigação em andamento para comprovar a agressão, assim como a polícia tem a sua e, infelizmente, não tem sido fácil fazer um bom trabalho com a interferência deles.
— Ele já foi preso! Realmente precisam de prova maior que essa? – eu me intrometi.
— Ele também foi liberado menos de 24 horas depois. O Scott vai ser julgado, sim, mas até lá não há muito que podemos fazer. Por isso eu tenho insistido na retirada da queixa, Katy. Seria muito mais fácil que resolvêssemos entre nós, sem nenhum juiz envolvido, com muito mais rapidez!
— E muito menos justiça! – concluí.
— , calma. – Nikki disse, colocando sua mão sobre o meu braço.
— Olha, eu não sei porque nós voltamos nesse assunto, mas já foi decidido: eu não vou retirar a queixa! O processo já está em andamento, se tudo der certo, logo ele volta para a cadeia, isso não diz respeito a ninguém daqui! Tudo que eu quero de vocês é que não permitam que um estuprador seja a cara do nosso time!
Todas ficamos em silêncio. Inclusive a Hellen e eu entendia. Ela só tinha uma resposta para aquele problema e já tinha sido dada. Repetir era correr o risco de que a Katy pulasse em cima dela e ninguém ali gostaria que isso acontecesse.
pigarreou, se preparando para falar. Eu esperava que fosse bom porque os nervos estavam a flor da pele naquele cômodo.
— Eu não quero mudar de assunto, mas a fraternidade desse cara já é conhecida pelos abusos, ele é... Até quando vocês vão permitir isso? – Suzy questionou.
— Não vamos nos precipitar. A universidade nunca encontrou as devidas provas para acusar formalmente o jogador, são apenas boatos! Estamos em um lugar cheio deles! Vocês, jovens, veem graça em cada coisa hoje em dia que histórias como essa acabam se espalhando e manchando a carreira desse rapaz.
Minha boca caiu.
— Vocês realmente acreditam que esses boatos não têm algum tipo de fundamento? Isso é, no mínimo, muita ingenuidade.
— Eu já disse e repito: nunca encontramos provas. Por favor, meninas, vamos trabalhar com fatos e não hipóteses, tudo bem?
— Você quer um fato? – começou. – A nossa amiga foi estuprada dentro da casa de uma fraternidade por uma personalidade desse lugar e vocês não estão movendo um dedo sequer para apoiá—la.
— Estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance, eu garanto. – Hellen respondeu, quase que como um robô. Ela devia dizer muito aquelas palavras para todas as garotas que chegavam até ela e que, como a gente, afundavam por ali mesmo.
e eu trocamos um olhar frustrado. Nenhuma de nós gostava de não conseguir o que queríamos e o gostinho da perda daquela batalha tinha um amargor em especial.
Nikki suspirou e se colocou à frente em sua cadeira.
— Escuta, sra. Richardson... Eu entendo que o Murray é importante para essa instituição, realmente entendo. Eu estou dentro desse mundo, eu tenho uma ideia de como as coisas andam. Mas olhe ao seu redor! Cada vez mais, as pessoas estão sabendo do que aconteceu. Elas sabem que a Katy não foi a primeira e elas sabem que não vai ser a última. Acredite em mim, esse não é um movimento que você quer criar.
— Nós temos regras para seguir, Nicole, assim como vocês como irmandade, assim como qualquer aluno e funcionário desta universidade. Eu sei que você presenciou uma dor que nenhuma de nós aqui pode compreender, Katy, e sinto muito por isso, mas existem pessoas muito acima de nós, existem problemas e sistemas muito acima de nós.
Eu balancei a cabeça, desacreditada. Era isso, então? Viemos aqui para ouvir isso?
— E onde é que a gente fica nesse sistema? – questionou. – Caladas? Amedrontadas? Se vocês, como universidade, não podem nos dar voz, quem vai?
Nem a própria Hellen conseguiu ir longe o suficiente para responder essa pergunta.
Nós tentamos outras abordagens, tentamos conseguir uma direção, o que fazer, com quem conversar, mas no final, saímos da reunião pior do que entramos. Sem esperança alguma. Para ser sincera, a única esperança que me restava naquele momento era a de que eu recuperaria todas as outras num futuro próximo. Não poderíamos parar assim. Outras pessoas pararam e olha só no que deu.
— O que nós vamos fazer agora? – questionei logo depois da gente se jogar no chão do gramado mais próximo.
— E se o seu advogado viesse até aqui, Katy? Ele com certeza deve argumentar melhor que a gente... – Nikki sugeriu, mas a Katy balançou a cabeça para os lados, negando.
— Não tenho dinheiro para isso, gente. Já tá difícil pagar o suficiente para ele cuidar de todo o processo jurídico, não dá. Eu esperava que a universidade tivesse um pouco de compaixão, sei lá... Que tivessem eles mesmos a atitude de expulsar o garoto sem a intervenção de outros poderes, mas acho que vou ter que esperar até o final dos julgamentos... E eles nem começaram ainda.
— Não, não, não, não, não! Vamos pensar em alguma coisa, a gente só precisa de um tempo. – disse.
— Não é tão simples assim, pessoal...
— Nós sabemos! – Suzy afirmou, pegando sua mão. – Mas estamos dispostas a continuar tentando, de uma maneira ou de outra. Você não?
Katy sorriu.
— Ei, eu sempre estou disposta! Só quero que tenham certeza de que vocês sabem onde estão se metendo.
Hoje em dia, eu não tinha mais ideia. Porém...
— Vamos arriscar.
Pela segunda vez naquela semana (o que já era mais vezes do que eu gostaria, visto que eu sempre me considerei uma garota decidida), me peguei encarando um aparelho eletrônico que poderia ser um inferno ou a solução para os meus problemas. Infelizmente, meu celular ainda não tinha vontade própria e o próximo passo dependia unicamente de mim.
Eu estava exausta, como nunca achei possível estar. Minha mente estava destruída com a nova possibilidade de vida em que haviam nos jogado três semanas antes. E mais ainda com as soluções para o problema que pareciam cada vez mais distantes. O que estávamos fazendo errado? Por que algo que deveria ser tão simplesmente claro agora parecia impossível?
Com isso, eu cheguei a uma conclusão: relaxar não estava funcionando. Era inútil esquecer qualquer um dos meus problemas por dez minutos se, assim que voltavam, estavam mais fortes e presentes do que nunca. Eu não precisava fugir, mesmo que por pouco tempo, e sim focar o suficiente para resolvê—los, podendo relaxar eternamente depois. Logo, não havia mais motivo para recusar comida de graça — eu era adepta da conta dividida pelos dois em um encontro, mas depois de tudo que ele me fez passar, o mínimo que pode é me alimentar —.
Além do mais, poucas pessoas na minha vida conseguiam tirar minha paz interior (não tão pacífica neste momento) e a número 1 era e sempre seria . Isso significa que eu não só ganho comida, como também uma ótima distração só para a minha mente dar uma desviada de universidade, abuso e qualquer coisa que remetesse a isso. Por fim: sim, eu tinha consciência de que só estava inventando um monte de desculpa para não ter que dizer que não tão fundo assim, eu simplesmente queria passar um tempo com ele.
Eram 17h00 da tarde da bendita sexta—feira, ou seja, as chances dele vir aqui só para atirar o celular na minha cara por tentar fazer aquele jantar acontecer tão em cima da hora eram muito grandes. No entanto, havia também uma pequena possibilidade de que ele movesse o mundo inteiro para encaixá—lo no meu horário, então eu não poderia deixar de tentar. Ainda que fizesse sérios estragos ao meu orgulho voltar atrás dessa maneira.
Antes que eu me arrependesse – e eu iria, definitivamente, me arrepender mais tarde –, apertei o botão que ligaria para o indivíduo. Ele não demorou nada para atender.
— no meu celular? Deve ser sério. – ele atendeu, já acelerando o processo de arrependimento.
Desconsiderei porque ele não estava exatamente errado. Fazia um tempo desde a última vez em que eu o liguei. Na verdade, até poucos dias atrás eu nem tinha mais seu telefone, tive que pegar com a no começo da semana.
— Nem tanto. – respondi, levemente desconfortável. Era de se esperar, eu estava indo contra alguns dos meus maiores princípios, sendo o mais forte deles: ressentir e odiar o acima de todas as coisas.
— Tudo bem? – ele perguntou, soando apenas rotineiro e não preocupado.
— Aham... Só queria ver uma coisa com você.
— Ah, é? Manda!
Nesse exato momento, eu senti na pele porque ele encheu tanta linguiça antes de dizer o que realmente queria anteriormente. Ir direto ao ponto não é tão fácil quanto parece... Em situações muito delicadas como essa, é claro.
— E—eu só queria saber... E entendo completamente se não for possível! Eu queria saber se é tarde demais para aceitar aquele jantar? – de todas as reações que eu poderia ter imaginado, o silêncio completo que ganhei não foi uma delas. Com um pouco de medo, eu acabei ficando quieta por um tempo, mas eventualmente ele ficou tão quieto que eu temi que ele tivesse desligado bem na minha cara. Eu estava em uma situação complicada, porém ainda assim seria inaceitável. – ?
Ele pareceu voltar a respirar.
— Sério? – ele questionou e eu quase entrei em pânico por não conseguir definir se estava bravo ou esperançoso.
— Sim? – não era para soar como uma pergunta, mas, nesse ponto, eu já tinha perdido qualquer certeza. – É um problema?
Mais uma vez, silêncio. Felizmente, ele não precisou da minha ajuda para acordar dessa vez.
— Não! Mas eu preciso ir. Te pego às 19h00?
— 19h00 tá bom, mas me...
Ele desligou.
Voltei a encarar meu celular, me sentindo surpresa, puta da vida... E um pouco idiota. Qual é! Custava respeitar a digestão do meu orgulho? Eu acho que não!
Por um rápido segundo, pensei em ligar para ele novamente só para cancelar a coisa toda mais uma vez. Por fim, acabei concluindo que isso seria um baita desperdício de todo o esforço que eu havia acabado de fazer e isso, sim, seria verdadeiramente estúpido.
Respirei fundo. Estava feito. Nada de voltar atrás agora.
Me sentia estúpida por transformar algo tão simples como um jantar em algum tipo de grande evento, mas muito pouco tempo atrás eu abominava a ideia de qualquer coisa parecida com aquilo. Eu o abominava e uma parte de mim ainda estava naquele estágio. Uma parte grande e extremamente alta de mim queria mata-lo pelo que me fez passar não só depois do nosso término, mas durante o nosso relacionamento. No entanto, havia uma outra que não aguentava mais esses sentimentos ruins e eu precisava ouvi-la. Pelo meu bem mental e pelo bem-estar de todas as outras pessoas ao meu redor. Não dava para continuar carregando todos para o inferno comigo.
Como tudo que eu vinha fazendo recentemente, decidi dar um passo de cada vez. Dessa forma eu pensava mais nos próximos segundos e menos nas próximas horas que eu temia. Tomei um banho gostosinho, tentando focar na minha mente a reunião de alguns dias antes com a diretoria. Nós continuávamos na estaca zero e dizem as línguas que boas ideias vem nos momentos mais estranhos, por que não um banho? Seria muito fácil simplesmente deixar tudo para lá e desistir, como tantas outras vezes já fizeram, mas eu e as garotas continuávamos dando o nosso máximo para nos manter esperançosas. Mesmo que já não estivesse tão presente quanto nos primeiros dias, estávamos trabalhando com aquilo que tínhamos, com fé de que fosse o suficiente. O fato de termos um baita exemplo de esperança com a gente tornava aquilo um pouquinho menos difícil.
Katy agora ia para todas as aulas, sem poder se dar ao luxo de faltar quando as provas estavam tão próximas. Nem garotas violentadas têm tantos privilégios quanto jogadores de futebol. Nesse ponto da bagunça, um bom número de pessoas fora do nosso círculo de conhecidos já sabia do que aconteceu, inclusive quem era o culpado. Por isso, ela ainda era obrigada a aturar olhares indiscretos o dia inteiro e... Bom, eu tenho certa experiência nesse departamento e posso afirmar que não é, de longe, tão glamoroso quanto parece.
Quando achei que já havia passado tempo demais debaixo da água, eu me retirei e dei logo de cara com a April do lado de fora.
— Oi! – ela abriu um sorriso quando me viu. – Vai sair?
— Aham. – respondi, me enfiando dentro do closet atrás de uma roupa.
— Para onde?
Fora de sua visão, eu parei por um segundo. Seria uma boa ideia contar onde eu estava indo? Não tinha certeza. Então, na dúvida, eu decidi ficar quieta por agora. Se tudo desse errado e e eu voltássemos brigados novamente – e temos que concordar que as chances não são nulas –, eu teria uma preocupação a menos.
— Vou jantar com os meus pais. Tô tão concentrada nessa faculdade que não os vejo há tempos.
Me senti um pouco culpada justamente por aquilo não ser completamente uma mentira. Para ser honesta, já havia perdido as contas de quantas vezes tive que recusar uma visita até a minha própria casa por decidir ficar com as meninas ou estudando.
— Ah, eu sei como é... O problema é que meus pais estão a horas de distância.
Nesse momento minha culpa conseguiu aumentar um pouco mais, então tratei de mudar de assunto.
— Seu irmão não vinha te visitar semana passada? – perguntei, buscando alguma roupa, a única parte fácil do processo. costumava gostar de qualquer uma das minhas roupas e eu sabia que se eu aparecesse de pijamas, ele não reclamaria. Só encheria o meu saco pelo resto do século.
— Foi o que ele me disse. – ela suspirou. – Meu irmão é louco, deve ter se metido em alguma confusão por aí. Logo ele aparece.
Eu não queria deixar óbvia minha mentira e também não estava muito afim de me arrumar toda, então escolhi meus usuais jeans, uma blusa bonitinha que eu finalizaria com um coturno só para dar um toque que deveria dizer “tô indo em um restaurante, não na padaria da esquina”.
Porque eu era uma pessoa multifuncional, não pude esquecer de sair do closet com tudo em mãos já respondendo a minha amiga como se ali fosse o único lugar em que minha mente estivera esse tempo todo.
— E você não se preocupa? – questionei com curiosidade. Eu não tinha nenhum irmão, mas cresci com amigos que eram tão próximos quanto e não me imaginava dando de ombros para uma incerteza como aquela.
— Ah, eu me preocupava quando era mais nova, mas já me acostumei. Você vai ver quando conhecer ele. Jude te dá apenas duas opções: morrer de constante preocupação ou jogar o jogo dele. Eventualmente todo mundo cai na segunda.
Assenti. Eu ainda não entendia como ela conseguia fazer aquilo, mas a April sempre sabia o que estava fazendo, muito diferente de mim, então confiei em suas palavras.
Me sentei na penteadeira para roubar as maquiagens da , já que eu não fazia ideia de onde estava a nécessaire com as minhas, sei lá, quatro coisas.
— Posso te perguntar uma coisa? – pelo reflexo do espelho, a vi concordar distraidamente enquanto folheava algum livro. – Por que tá evitando o ?
O que havia dito para alguns dias antes não era mentira, eu não acreditava que ela realmente estivesse evitando ele. Não de propósito, pelo menos. No entanto, imaginei que perguntar daquela maneira traria apenas duas respostas: negação completa e desesperada ou simples concordância. Me surpreendi quando ela não negou e me chamou de louca.
— É complicado... – disse, de ombros encolhidos.
— Complicado?
Ela suspirou.
— Com tudo que tem acontecido, é difícil... De certa forma, ele está envolvido com aquelas pessoas.
Eu parei, ofendida. Não por mim, mas por um dos meus melhores amigos. Ele não estava aqui para se defender.
— Aquelas pessoas?! – questionei, desacreditada, me virando para ela. – Olha, eu gosto muito de você, mas não pode dizer que meu amigo tá envolvido com um estuprador e achar que vai ficar tudo bem comigo.
— Não fica brava, só pensa! Eles treinam juntos, jogam juntos, vão para as mesmas festas, querendo ou não, eles convivem um com o outro, provavelmente tem alguma amizade envolvida ali e eu não quero fazer parte disso, não com tudo que aquele cara fez com a Katy e vai—saber—lá quantas outras garotas.
Respirei fundo porque eu não queria surtar em defesa do , ainda mais com a April. Para dizer a verdade, o máximo de conexão que eu tinha feito entre o infeliz e o era ambos serem atletas, não toda a convivência que vinha com o fato de jogarem no mesmo time, o da universidade.
— Você tá sendo muito injusta. A Nikki também o conhecia, já saiu nos mesmos grupos que ele e ninguém jogou pedra, não acha que o merece o mesmo tratamento?
— ...
— Só conversem! Diz para ele o que tá se passando na sua cabeça, permita que ele se explique, mas não deixa o meu amigo no escuro. Ele gosta muito de você, não é justo. – pedi.
Outra coisa injusta foi o sermão que dei para ele antes, achando que estava apenas sendo paranoico. O mundo dá voltas.
Ela deu um leve revirar de olhos, atitude no mínimo estranha vindo de quem vinha.
— Não exagera. No máximo, ele pensa que gosta de mim porque eu o ajudei.
Preguei meus olhos curiosos nela, que deixou algumas informações passarem.
— Ajudou com o que?
April engoliu em seco. A atitude de minutos antes parecia nunca ter existido.
— N—nada. Eu só... Bom, nós fize—emos... Na verdade, nada. Esquece! – disse, toda nervosa por ter deixado algo escapar.
— Ah, agora fala! Vocês não estão brigados? Então! Não deve nada para ele, me conta! – insisti e ela semicerrou os olhos para o meu lado.
— Primeiro: não estamos brigados. Segundo: mesmo se tivéssemos, não é motivo para eu contar o segredo dele. E terceiro: você é muito cara de pau mentindo na minha cara para conseguir essas informações!
Dei de ombros. Nada de novo sob o sol. Eu a conhecia o suficiente para acreditar que eu poderia insistir por horas e ela não abriria a boca, então decidi que a melhor ideia era voltar logo para o ponto principal.
— Mentir? Eu não faço isso. – murmurei, rindo comigo mesma. – Tá bom, eu vou deixar isso de lado contanto que você prometa que vai ao menos conversar com o . Coisa rápida, coisa simples, só dá uma chance para ele.
Ela considerou a ideia por um momento e eu não pude deixar de pensar que o nome daquilo era karma. Havia dispensado tantas garotas que a única que ele queria agora já não o quer tanto assim. Mas, no que dependesse de mim, eles iriam ao menos tentar chegar em algum lugar, ainda que esse lugar fosse apenas uma grande amizade – desde que nunca tão grande quanto a deles comigo. Por favor, sejamos racionais.
— Tá, tá! Só não fica me enchendo.
Eu sorri. Aquela garota tinha agora o triplo de atitude que tinha quando a conheci e eu não poderia negar: adorava cada pequeno novo crescimento dela.
Pouco mais de uma hora depois, eu estava sentada na sala encarando o relógio. 19h09, ele estava atrasado. Eu já havia mentido para um total de oito pessoas sobre para onde estava indo e aquilo não me deixava muito satisfeita. Teria que me lembrar de tentar ser mais honesta quando o próximo ano chegasse porque nesse eu já havia falhado. Mas dessa vez eu tinha um bom motivo (apesar de eu sempre achar isso nos momentos das mentiras passadas): muitas garotas naquela casa tinham um pé atrás comigo – e eu não as culpavamuito –, então, assim como com as minhas amigas, dizer que e eu estávamos tentando nos reaproximar para depois retirar isso não seria legal; além do mais, nem eu tinha certeza de que estava dando o passo certo depois de tanta tempestade envolvendo nós dois. Por enquanto, eu ficaria quieta.
Meu celular vibrou na minha mão com a mensagem de que ele estava me esperando do lado de fora. Agradeci a tudo que me era sagrado por ele ter feito o que pedi, pois tê-lo na minha porta não faria maravilhas para o meu teatro. Digamos que eu não tinha certeza de que ele faria porque o infeliz não respondeu a minha mensagem. Por isso, quando eu fui para fora, eu não tinha certeza do que iria encontrar: um feliz da vida ou um puto por eu ter recusado seu convite e mudado de ideia tão em cima da hora.
A primeira coisa que me veio a cabeça quando o vi foi alívio por não ter colocado um vestido, já que ele estava montado em sua moto. A segunda coisa foi um xingamento porque o capacete não me deixava ver muito de sua expressão para que eu pudesse tirar minhas conclusões.
— Onde é que nós vamos? – questionei, pois esperava que fossemos simplesmente andar para algum lugar próximo.
— Surpresa. – respondeu, me entregando um capacete. Seu tom também não liberava muito.
Simplesmente subi na moto, tensa. Não por ter medo. Já havia andado para todos os lados com ele naquela moto desde o dia em que ele tirou a carteira (para ser sincera, até antes disso) e ele era um excelente motorista. O negócio era que a última vez em que subi naquela moto as coisas não acabaram exatamente bens, principalmente porque eu estava bêbada e tive que ser arrastada até ela. Eu esperava não acabar a noite da mesma maneira.
Como uma boa pessoa orgulhosa que não queria demonstrar sua insegurança em relação a tudo que estava acontecendo, eu fiz o que faria em qualquer outro momento em que não estivéssemos brigados. Passei meus braços ao redor da cintura dele e me segurei ali. Eu pensava estar atuando bem até que senti uma de suas mãos sobre as minhas, apertando de leve por dois ou três segundos. Muito rápido, mas o suficiente para que eu entendesse que aquela era a sua maneira de dizer: “fica calma, tá tudo bem”. Aquele simples, mas significativo gesto me deu uma sensação gostosa e assustadora no peito que eu não tinha certeza se queria sentir. Era cedo demais, estranho demais depois de tudo que havia acontecido. No entanto, naquele pequeno momento, eu apenas o abracei com mais firmeza e deixei que ele nos guiasse por enquanto.
Passados cerca de dez minutos, ele não parecia estar nem um pouco perto de estacionar e eu comecei a ficar realmente curiosa. Los Angeles não era uma cidade pequena, mas haviam restaurantes dos mais variados para todos os lados, nós precisávamos ir no mais longe deles?
— Mas onde é que fica esse restaurante? – eu gritei sobre o ombro dele, esperando que ele me ouvisse apesar do barulho da moto e do vento.
— Vou ter que passar lá em casa. – se houvesse uma maneira do meu rosto formar um ponto de interrogação, agora seria o momento. – Esqueci minha carteira lá.
— Eu pago, ué.
Ele ficou quieto por alguns segundos até que balançou a cabeça, concluindo:
— Não, eu realmente preciso da minha carteira.
Fiquei quieta. Nós nunca havíamos tido problemas em questão de pagamento das coisas quando namorávamos ou quando éramos apenas amigos. As vezes ele pagava, as vezes eu, as vezes dividíamos e tudo fluía muito bem assim. Mas, se agora que estávamos tendo algum tipo de recomeço, ele queria pagar, eu não ia teimar. Talvez o ego dele precisasse dessa massagem depois de tudo que eu o causei, sei lá... E no final das contas, eu estava falando sério quando disse que merecia um jantar de graça.
Não muito tempo depois, eu comecei a reconhecer os bairros pelos quais passávamos. De certa maneira, fiquei feliz porque poderia ir correndo dar um abraço dos meus pais enquanto ele buscava a tão querida carteira. Eu não fazia isso há algum tempo. Na verdade, tanto tempo que haviam chances de eu cancelar tudo novamente para ficar por ali mesmo, mas nem eu poderia ser tão grossa... Poderia? Afinal de contas, eu descobria novos níveis o tempo todo.
Rapidamente nós chegamos e ele estacionou a moto na entrada na garagem da casa dos seus pais. Descemos, já tirando os capacetes.
— Eu volto correndo, tá?
— Não se apressa não, eu vou ir dar um oi para os meus pais também.
Ele assentiu e eu comecei a atravessar o gramado em passos largos, não querendo levar mais tempo do que o necessário. Eu sabia que assim que eu entrasse seria difícil sair. Entrei sem bater na porta e fui diretamente para a cozinha, onde eu ouvi vozes, e acabei por encontrar não só meus pais, mas também os do .
— Cheguei!
Todos eles pararam surpresos quando eu anunciei a minha presença, só não pelo motivo certo.
— Surpresa! – eles gritaram completamente desorganizados e sem sincronia alguma.
— Vocês chegaram cedo. – minha mãe afirmou, soando desapontada. Tentei não focar nesse detalhe pelo bem da minha autoestima.
— Vocês? – questionei, pois eu era a única pessoa nova no recinto.
— Nossa! Tô começando a entender porque nunca ganhamos uma festa surpresa. Vocês são péssimos! – a voz do veio de trás de mim. Ele deu um tchau constrangido quando me virei para olhá—lo.
— Ela tinha cancelado com a gente! Não tivemos tempo para praticar. – Elizabeth, a mãe do , se defendeu.
— Por que tá todo mundo falando grego? O que tá acontecendo aqui?! – implorei por respostas, nem lembrando mais por que é que eu mesma estava ali.
suspirou, se aproximando de mim.
— O nosso jantar é aqui, eu queria... Bom, queria te fazer uma surpresa que não deu muito certo, mas fica a essência. Eu sei que você tá com a cabeça cheia ultimamente, então pensei que um tempo com a sua, com a nossa família te faria bem.
Eu senti meu queixo cair gradativamente sem que eu tivesse controle. Olhei para os nossos pais encarando a cena com carinho e, passada a confusão inicial, eu quase quis chorar. Bem, eu quis, mas não me debulharia em lágrimas tão cedo. Eu estava tão feliz por não ter que ir embora e tão tocada por ele ter armado aquilo que não queria estragar aquele momento com choro, ainda que fosse de muita, muita, muita felicidade.
Apesar de ter sido o responsável por aquele momento, foi o único que não ganhou um abraço apertado. Ele ganhou um rápido “Obrigada” labial enquanto eu abraçava o meu pai e eu me senti horrível por causa disso. Me senti um monstro por não conseguir simplesmente dar um abraço rápido nele, nem mesmo ter o impulso para tal, e eu queria muito agradece—lo de forma apropriada, queria demais, porém eu simplesmente não conseguia. Nós não éramos mais as duas pessoas que conversavam tranquilamente, se abraçavam e beijavam o tempo todo, sem dúvidas, sem incertezas. Agora, nós éramos as duas pessoas que calculavam cada passo, cada palavra, porque um movimento errado poderia colocar tudo a perder. Fazer essa comparação me machucava e eu não poderia deixar de culpa—lo, de pensar em todos os se que não foram concretizados. Odiá—lo era muito fácil; um escorregão e eu poderia cair naquele território novamente em questão de segundos. Por isso tinha tanto medo.
“Em universidade nos EUA, alunas que denunciam estupros acabam punidas por código de honra.”
“Estupros disparam nos EUA por cultura do futebol americano.”
“Universidades dos EUA são investigadas por ignorar casos de estupro.”
“Documentário The Hunting Ground, um olhar profundo ao estupro no campus.”
“End Rape On Campus, uma organização de advocacia dedicada a acabar com a violência sexual através do apoio a sobreviventes...”
— O que tá fazendo?
Em um movimento rápido, eu fechei meu notebook com mais violência que o necessário e dei um pulo no meu próprio lugar, como se estivesse cometendo algum crime.
Se eu não me sentisse tão estranha em qualquer ambiente daquela universidade nos últimos dias, parecendo estar vivendo em território inimigo, eu provavelmente teria reconhecido sem esforço algum a voz da Mina atrás de mim ao invés de qualquer outro ser humano que poderia concluir que eu estava conspirando contra a UCLA... O que não deixava de ser uma verdade parcial.
— Sendo paranoica. – respondi para mim mesma.
— O quê?
— Nada. – voltei a abrir o notebook. – Só tô fazendo umas pesquisas, recolhendo material para a reunião de amanhã.
Porque sim, Katy finalmente aceitou nossa ajuda para conversar com a diretoria da universidade. Duas semanas depois, Scott Murray, o famoso jogador de futebol que a violentou sexualmente, foi finalmente preso, tendo comparecido na delegacia algumas vezes antes apenas para interrogatório. No entanto, ele não ficou lá por muito tempo. 15 horas depois recebemos a notícia de que ele havia pagado a fiança e sido liberado. Apesar de ainda ter todo um processo contra ele, o acontecimento foi um baita soco no estômago. E no final das contas, ele ainda era um aluno da UCLA, como o resto de nós.
Mina puxou uma cadeira do meu lado para se sentar, apoiou o queixo em uma das mãos e começou a passar os olhos pelas milhares de abas que eu tinha abertas, fazendo uma leitura artificial de algumas. Então suspirou, desistindo.
— Eu ainda não entendi porque te deixaram ir na reunião e eu não. Nós duas temos as mesmas chances de fazer uma cena, não?
Assenti. Era verdade. E eu diria que, dependendo do rumo em que ela iria seguir, essas chances eram bem grandes.
— Acho que eles têm medo do que nós podemos causar juntas. Não se preocupe, eu vou te representar bem. — ela balançou a cabeça, feliz com a minha resposta, mas era claro que seu desejo de estar lá permanecia. — O que tá fazendo aqui essa hora? Não sabia que você frequentava a biblioteca de tarde. Ou em qualquer outro período.
Ela deu de ombros, olhando rapidamente ao redor. Eu conseguia encontrar algum tipo de conforto em todos aqueles livros empoeirados, mesmo que não tivesse a intenção de ler a maioria deles, como a April. Já a Mina exalava tédio.
— Ah, vocês andam tão preocupadas com essa reunião ultimamente que eu decidi vir estudar um pouco. Acho até que a esqueceu que tem uma namorada. — disse, rindo rapidamente. — Não estou reclamando, é claro. Estamos fazendo algo bom. Só tenho medo de algumas de vocês estarem se enterrando demais nisso e esquecendo do resto. Temos provas se aproximando cada vez mais, afinal de contas.
— Você é sempre bem—vinda para me ajudar nas pesquisas que vão me fazer derrubar aquela diretoria. E depois eu posso estudar um pouco com você, que tal?
Estava estampado na sua cara que aquele estava longe de ser seu cenário ideal para uma tarde de segunda—feira, mas ela, assim como todas nós, Kappas, tinha consciência de que as próximas semanas, provavelmente meses, não seriam e estávamos nos acostumando com esse fato.
— Tudo bem. Agora, me dá um espaço. – ordenou, me empurrando para o lado para que pudesse ter uma boa visão e controle do meu computador. – Vamos dar a esse pessoal um motivo para ficarem realmente preocupados.
Eu tinha um novo melhor amigo. Ele era eletrônico, não carregava uma marca de muito renome em sua frente, estava sempre a ponto de dar seu último suspiro, mas seguia firme me auxiliando naquela bagunça que vinha sendo minha vida de universitária. Fiquei encarando ele pela milésima vez naquele dia, agora sem mil coisas abertas para sobrecarregar a minha cabeça. Pelo contrário, o único aplicativo ali deveria servir como algum tipo de alívio, mas no momento parecia me deixar tão nervosa quanto todo o resto.
“Dá uma relaxada, faz algo que você gosta, esvazia a mente, me liga se precisar”, ele disse.
Eu não sabia se precisava, mas definitivamente queria conversar agora, por mais inusitado que fosse. Para ser sincera, o que eu mais queria era ter um diálogo com alguém que estivesse consideravelmente afastado de tudo que vinha acontecendo na Kappa Kappa Gamma, assim eu poderia falar sobre qualquer outro assunto que não envolvesse aquela área. E quando eu digo qualquer assunto, digo o vai—e—volta de qualquer casal famoso pelo qual nunca me interessei ou a irritante existência de pombos. Para isso, eu tinha três nomes me gritando na tela: , e .
O primeiro era, de longe, a melhor opção. Ele me contaria as melhores e mais inusitadas histórias, iria até o inferno na missão de tentar tirar da minha cabeça aquilo que me deixava para baixo. O segundo era arriscado, pois as chances dele querer se atualizar sobre a April eram grandes, especialmente agora que ela parecia não estar dando tanta bola para ele. Todas garotas davam bola para o , ele acabou ficando mal acostumado. O último continuava como uma incógnita para mim, mesmo depois de tantos anos. Eu queria tanto odiá—lo cegamente como vinha fazendo até ali porque ainda tinha consciência do quão mal ele havia me feito, mas, depois de todas as merdas que causamos, eu não sentia mais ter direito àquilo. Além do mais, eu fiz uma promessa e tinha que ao menos tentar me manter fiel à ela... Certo?
Respirei fundo, querendo revirar os olhos para mim mesma. Quando minha vida se tornou tão dramática? No final das contas, não adiantava quanto tempo eu ficava ali repassando todos os pontos possíveis em cima de uma decisão simples, pois eu sabia desde o primeiro minuto que decisão acabaria por tomar. Então me apressei e apenas apertei o botão.
Um “conectando...” brotou logo na tela antes das chamadas começarem e essas ficaram, por tanto tempo que eu comecei a achar que tinha feito a decisão errada. Depois de todo aquele processo de seleção, custava abrir a bendita tela do notebook e me atender? Eu achava que não. Por sorte – não disse de quem –, seu rostinho bonito apareceu de repente no retângulo de vidro quando eu estava prestes a desistir.
— Ei! – ele me recebeu com um grande sorriso que quase tomou todo o meu campo de visão por estar tão perto da webcam.
— Oi, .
— Finalmente você se lembrou de mim! Não te vejo mais nem no café—da—manhã. – disse, se ajeitando em frente a câmera.
— Eu tô comendo aqui em casa ultimamente, mas não quero falar sobre o desaparecimento de toda Kappa Kappa Gamma desse campus, vamos falar sobre outra coisa! – pedi e ele assentiu em compreensão.
— Certo. O que exatamente?
— Eu lá sei? Me fala sobre você. O que tem feito? Quais as novidades? Descobriu alguma comida nova que eu posso amar? Tem pegado alguém? E os estudos? Você vai se dar tão mal nas provas quanto eu?
— Ok, pode parar por aí! Uma coisa de cada vez. Primeiro: é claro que eu não vou me dar mal, tá louca? E você também não devia. Não tem livros? Não tem seus cadernos? Não tem aquele lugar mágica chamada INTERNET, ? Então acorda e vai estudar!
Fiquei quieta, absorvendo a bronca que levei. Senti que deveria estar mal, decepcionada comigo mesmo e a minha falta de vergonha na cara ou até jogando minhas frustrações nele por dizer algo do tipo em um momento delicado como aquele, mas me peguei sorrindo no segundo seguinte.
— Eu te amo tanto, sabia?
Eu vi em sua expressão que o peguei de surpresa. Não falava frases como aquela em um tom que não fosse de brincadeira com muita frequência. No entanto, a maior característica em comum entre e eu era sermos descendentes de cobras, então ele fez questão de disfarçar rapidamente, afinal de contas, ele não deveria ficar mexido por eu fazer nada mais que a minha obrigação: dizer que o amo a todo momento.
— Sei. Como eu ia dizendo: acho que o que eu mais tenho feito ultimamente é descobrir que o é um verdadeiro pé no saco.
Eu ri e balancei a cabeça.
— Não fala assim do meu irmão.
— É sério! – exclamou. – Você não sabe porque nunca viveu 24 horas por dia com ele. , ele é desorganizado ao extremo, tem os amigos mais chatos do planeta terra e eles adoram vir aqui para serem inconvenientes. Eu pensei que as garotas indo e vindo seriam um problema, mas ele tá tão obcecado na sua amiga que tudo que ele fala é April aqui, April ali e meu. Deus! Eu não aguento mais repetir todo santo dia que ela não tem medo dele, só anda ocupada. Você tem que fazer algo! – concluiu, se aproximando tanto da pequena câmera que eu fiquei tentada a me afastar.
— Nossa! Eles ainda estão nessa?
Para ser sincera, eu até havia pensado sobre conversar com a April sobre o assunto, mas no meio de tantos problemas chegando um atrás do outro, acabei me esquecendo completamente.
— Sim! Você sabe que eu amo o , não é? Tenho medo de um dia acordar e a ideia de matar ele me parecer aceitável.
Ri novamente. Como todo mundo, podia ser bem exagerado quando estava afim.
— Menos, , bem menos! Vou falar com ele, prometo.
Ouvimos um barulho ao fundo que o fez virar a cabeça e encarar a sua direita. Depois ele sorriu, satisfeito com o que via.
— Ah, é? Então toma que o filho é teu. ! A .
Poucos segundos depois, o rosto de começou a disputar a tela com o de . Ele tinha um sorriso largo nos lábios, feliz por me ver depois de todos aqueles dias afastada. Eu não era muito fã dessa distância que eu havia criado com o mundo exterior às Kappas ultimamente, porém gostava de pensar que a reunião do dia seguinte seria um divisor de águas para a situação em que nos encontrávamos.
— ! Como você tá? – perguntou alegremente.
— Tô bem, amor. Só um pouco ocupada, mas volto logo. E você?
Na mesma hora, sua expressão mudou para o desânimo completo, num estágio de drama que só quem estava gostando pela primeira vez de alguém poderia chegar.
— Ela me odeia, ! – resmungou.
— Ela não te odeia. – retruquei calmamente.
— Ela não quer mais saber de atletas nem nada relacionado a eles, ou seja, eu!
— Isso não é verdade.
— Eu mal tive a chance de conquista—la e já perdi.
— Nós podemos fazer isso o dia inteiro, sabia?
Ele abriu um sorrisinho.
— Eu sei.
— Tá vendo? Eu tenho que aguentar isso o dia inteiro. Olha só como é gostoso! – ironizou, ganhando um revirar de olhos do .
Senhoras e senhores, é isso que a intimidade extrema faz com amizades!
— Você tem que me dar uma mão, . Me dá uma luz, me diz o que fazer.
— Quer que eu seja sincera? – perguntei. Ele hesitou.
— Talvez...
— Cria vergonha na tua cara, ! – exclamei. – Você não tem noção do impacto que o estupro da Katy teve nessa casa, em cada uma de nós, então, falando como uma pessoa que tende a ser extremamente egocêntrica de vez em quando, eu digo: para! A April tá cuidando da gente nesse momento, ela precisa desse espaço. Acredite em mim, ela vai sair correndo para você na hora em que estiver pronta.
Os dois ficaram congelados na minha tela, digerindo a culpa. Eu havia ligado para o justamente para fugir daquilo, então a mensagem não era realmente para ele, porém ele também parecia estar curtindo a vergonha.
suspirou.
— E se eu não estiver mais disponível quando ela vir?
— Vai estar porque você não é um imbecil, é doce e se importa com ela. Na pior das hipóteses, isso funciona como um teste para os seus sentimentos em relação a ela, até porque já conversamos sobre a possibilidade dela sair magoada e concordamos que ela não deve existir. Certo?
— Certo! – ele afirmou. – Obrigada, . Você sempre sabe o que dizer.
Eu daria atenção para esse elogio se não minha atenção não fosse completamente roubada por , o encarando incrédulo, com o ódio que poderia mata—lo nos olhos.
— Tá brincando, né? Eu tô te falando a mesma coisa há uma semana! – disse indignado.
Eles iniciaram uma séria discussão sobre a credibilidade das minhas palavras em relação as do resto do mundo. E se você pensa que eu desliguei a partir daí, está erradíssima. Eu acompanhei tudo com atenção, virando até algum tipo de terapeuta da relação dos dois, que vinha sofrendo grandes mudanças desde que viraram colegas de quarto. Aquele não era o casal que eu tinha em mente antes, mas definitivamente era muito melhor.
Eu só cortei o contato quase uma hora depois, quando a Nikki entrou no meu quarto e se sentou na cama da , logo ao lado da minha. Me despedi dos garotos rapidamente, imaginando que ela tinha alguma novidade sobre a reunião no dia seguinte, no entanto, quando ela abriu a boca para falar, o assunto era completamente diferente.
— O veio falar comigo. – disse tranquilamente.
— Jura?! – fingi surpresa. – E o que ele queria?
— Não banca a sonsa, . Eu sei que foi você que mandou.
Relaxei, me apoiando na parede e balançando a cabeça. Ele tinha que falar...
— Ah, então tá bom. Como foi?
— Nós conversamos bastante. Ele me esclareceu algumas coisas, eu pude esclarecer outras, ele pediu desculpa pelas merdas que vem fazendo há um tempo. Foi bom, de certa maneira. Acho que precisávamos disso porque... Bom, ele não é uma pessoa que eu gostaria de cortar da minha vida. Teria sido ótimo se ele tivesse tomado a decisão de vir até mim sem o seu empurrão? Seria. Porém garotos são seres estúpidos.
— É, e o veio com uns pontinhos a mais nessa categoria. – comentei e ela riu rapidamente.
— Tadinho, não fala assim.
— Então... Você perdoou ele por tudo?
— É claro que não. As coisas não funcionam com essa facilidade toda, não é? Mas eu vou perdoar eventualmente. Não quero ficar guardando sentimentos ruins, de qualquer maneira. Deus me livre de causar a segunda parte da bagunça que você já nos causou. – me cutucou e eu dei o sorriso de quem já esperava que ela fizesse aquilo.
— Você nunca vai me deixar em paz por isso, não é?
— Pode ter certeza que não.
Dei de ombros. Poderia viver com aquilo.
Entretanto, eu com certeza não poderia viver com a dúvida que tomava os meus pensamentos. Eu tinha 99,9% de certeza de que aquilo nunca seria um problema se tratando da Nikki, mas não podia deixar de me preocupar.
— Então... Ele te falou mais sobre a conversa que tivemos aqui?
— Sim, , ele me falou sobre tentar te reconquistar.
— Eu nem sei se essa é uma boa ideia! Para ser sincera, acho que eu estava envolvida demais no momento, falei que ele podia porque, depois de tudo que eu tinha causado a ele e às nossas casas, não sentia que era justo lhe tirar aquele direito, sabe? E, sejamos sinceras, provavelmente nada vai acontecer. Nosso momento passou. – me expliquei de repente, toda atrapalhada, sem certeza alguma de que minhas palavras faziam sentido.
Ela riu com o meu nervosismo, balançando a cabeça para os lados, como se eu estivesse sendo ridícula. E eu estava.
— Se quer minha opinião, eu acho isso uma boa ideia. Claramente nenhum de vocês superaram um ao outro. Talvez juntos vocês causem menos problemas do que separados.
Forcei uma risada e um sorriso logo depois, tentando soar simpática e não “olha o que você tá falando, cala a boca”... Basicamente.
— Claramente ele não me superou, você quis dizer.
— Eu quis dizer o que eu falei. – afirmou.
— Mas está errada. – retruquei.
Nikki me fitou rapidamente e se levantou, indo em direção a saída.
— Tá bom, . Não vou ficar aqui pela sua negação. – quando chegou na porta, ela se virou novamente. – Ah, é! Eu vim aqui para te dizer que o quer falar com você. Ele tá esperando lá na sala.
— Durante todo o tempo que está aqui?
Ela assentiu, com um sorriso maldoso nos lábios.
— Tô começando a entender o prazer que você sentia em todas aquelas sabotagens. – disse antes de sair.
e eu não sabíamos, mas, aparentemente, havíamos criado um monstro.
Com muito custo, saí da minha cama e desci até o andar de baixo, o tempo todo pensando no que é que ele poderia querer comigo. Eu tinha consciência de que ceder alguns dias antes faria com que nós tivéssemos mais contato e, mais importante, mais contato sem ofensas trocadas para todos os lados, mas não sabia como fazer aquilo. Felizmente, ele parecia ter uma ideia muito boa do assunto.
Quando cheguei na sala, me deparei com um montinho de garotas, então imaginei que o centro daquilo deveria ser a minha visita. Quando me viram, elas foram se dispersando, com comentários que deixavam claro que um Lambda ainda não era bem—vindo nessa casa.
— Obrigado. Você salvou a minha vida. – ele disse com expressão ainda assustada e bochechas rosadas.
— De nada. Tudo bem? – perguntei, me aproximando.
— Sim. Suas amigas só acham que eu tenho certas informações, mas estão erradas.
— Que informações?
— Quem conseguiu arrecadar mais dinheiro na semana de inclusão.
Assenti, compreensiva. No meio de tudo que acontecia, eu acabei esquecendo de um dos grandes questionamentos da casa: quem foi a verdadeira vencedora? Até agora, Nikki e Ryan concordavam apenas em manter o resultado abafado. Claramente eles eram os únicos que gostavam daquela ideia, porém defendiam que era justa, “uma tentativa de manter os nervos baixos em ambas as casas”.
— Ah... Bom, de qualquer maneira, eu acho melhor a gente conversar lá fora. Você não é muito querido aqui.
Ele fez uma careta, mas entendia bem do que eu estava falando. Além do mais, não é como se nós fossemos ser recebidas com flores e vinho na casa deles. O clima ainda era tenso. Ironicamente, os dois que haviam começado a pequena fogueira que levou àquela explosão eram um dos poucos que se falavam pacificamente. Não muito, mas definitivamente mais do que antes.
Nós saímos para fora e nos sentamos na pequena escadaria que havia ali, a mesma em que as veteranas nos receberam meses antes para a iniciação. Nikki nos alertou rapidamente sobre o perigo no campus naquele dia, mas ninguém imaginou que estaríamos nessa posição tão pouco tempo depois (apesar de parecer tempo demais).
— Eu não sei se eu concordo com isso de esconderem quem realmente venceu o desafio. – começou a dizer aleatoriamente, me fazendo franzir o cenho. Ele não viu, pois encarava o ir e vir de estudantes na rua à frente. – Todos nós trabalhamos pra caramba em apoio às nossas casas, é apenas justo saibamos o resultado que conseguimos. Mas entendo o lado da Nikki e do Ryan também, quer dizer... Eles querem acabar de vez com essa competição e isso é ótimo. Divulgar quem ganhou só vai trazer os gostos de vitória e derrota. De certa maneira, eu admiro a força de vontade deles.
Fiquei encarando—o o tempo todo, tentando entender o que diabos ele estava fazendo. Éramos duas pessoas estranhas, eu tinha consciência disso, por isso rapidamente decifrei que aquela era apenas a sua maneira de encher linguiça. Era uma boa enrolação, eu admitiria. Afinal de contas, trazia referências diretas há algo que havíamos acabado de viver, mas não deixava de ser quase que óbvia.
— Não é pra isso que você me chamou, né?
Ele me olhou.
— É claro que não. Preciso ir direto ao ponto o tempo todo? – questionou, levemente ofendido. Eu ergui as mãos em sinal de rendição.
— Não, não precisa. Foi mal.
— Tudo bem. – deu de ombros. – Na verdade, eu queria te contar que finalmente encontrei uma brecha para resolver as coisas com a Nikki. Nós conversamos... Ela brigou, eu escutei...
— É, ela acabou de me contar. – disse e ele me olhou decepcionado. Demorei um pouquinho para entender que aquela expressão era por perder um dos poucos assuntos que poderia discutir comigo. – Mas não deu muitos detalhes. – acrescentei o mais rápido que pude.
Ele revirou os olhos.
— É claro que deu. O que ela falou?
— Ela só disse que achou bom você ter tomado a atitude de ir conversar com ela e que ainda não te perdoou por completo, mas isso definitivamente a deixou mais próxima.
— Hmm… Qual é a de vocês, garotas, e essa mania de perdoar em partes? Minha vida seria tão mais fácil se as desculpas viessem a vista.
— Para de fazer merda que não vai precisar ficar pedindo desculpas.
— Claro, porque você nunca faz nada errado. – disse ironicamente.
— Exatamente! – confirmei, sorrindo. – Podemos ir direto ao ponto agora? O que você quer comigo para arriscar sua saúde física vindo até aqui?
Imediatamente, ele ficou mais tenso, o que me deu certa preocupação. Eu não precisava de mais notícias ruins.
— Tá bom… Eu não sei se você vai gostar da ideia, mas pensa com carinho, tá?
O encarei pelo canto do olho, desconfiada. Se ele mesmo já imaginava que eu não ia gostar da ideia, eu podia ter certeza que boa coisa não era. Enquanto uma parte de mim gostaria que ele nem se desse o trabalho de falar, a outra estava curiosa demais para sequer considerar a ideia.
— Eu prefiro não fazer promessas, se você não se importar…
Ele sorriu nervoso e se virou completamente para mim, esfregando as mãos na bermuda jeans. Se ainda o conhecia bem, eu diria que ele estava secando todo o suor. E calor não tinha nada a ver com aquilo.
— Ok. Você se lembra da nossa conversa, certo? Detalhe por detalhe? – assenti, hesitante. – Então se lembra que eu perguntei se poderia tentar te… Reconquistar. – ele falava pausadamente, tomando o cuidado de avaliar qualquer mudança na minha expressão. – Você me deu a permissão… Depois de consertar as coisas com a Nikki. – engoli em seco. – O meu ponto é: você quer sair para jantar comigo sexta—feira?
Silêncio. Mortal.
Aquela era uma pergunta difícil. Eu queria? Para ser honesta, não tinha aquela resposta, simplesmente porque não esperava ter que verbalizá—la tão cedo. Eram tempos difíceis e eu tinha tanto na cabeça… Um jantar com o não me parecia ser exatamente a melhor maneira de relaxar, justamente porque parecia impossível relaxar estando tão próxima a ele. Em algum momento da minha vida, ele seria a pessoa certa para àquilo, agora eu já não tinha tanta certeza assim.
— Eu… – comecei a falar, mas só para cortar um pouco do silêncio, pois não sabia o que fazer a partir dali. Por sorte – ou muita inteligência por parte dele –, ele voltou a falar antes que eu dissesse alguma abobrinha da qual iria me arrepender.
— Você não precisa responder agora! Bom… Para ser honesto, seria ótimo se você me respondesse agora, mas ninguém pode ter tudo.
Sorri. Ele estava sendo sincero, então achei que não faria tão mal se eu fizesse o mesmo.
— Olha, não é por mal, é só um passo bem grande a ser dado, ainda mais considerando a situação em que estávamos apenas alguns dias atrás. Nós dois fizemos merda pra caralho! Eu não sei você, mas, para mim, pular tão rapidamente em um encontro me parece… Bem, superficial. Como se estivéssemos forçando algo que devia simplesmente fluir.
— Na verdade…
Ele se interrompeu, mas havia uma vontade muito grande de dizer algo em sua expressão. Dessa vez, eu optei por não buscar a resposta, assim eu não me metia em uma pior do que essa.
— Desculpa…
Ele abriu um sorriso leve.
— Não tem problema. Desde que ao menos pense um pouco na possibilidade, tá tudo bem. Não quero que faça nada que não queira só para forçar essa convivência. – ele disse e eu sorri também.
— Obrigada. Vou pensar com cuidado. Só não quero que pense que a resposta é por causa de você... Você sabe que as coisas estão estranhas ultimamente e eu não sei se consigo lidar com isso tudo de uma vez.
No final, acabei ficando surpresa com a naturalidade com que falei aquilo. Exteriorizar minha confusão interna costuma requerer um trabalho e tanto e, mais uma vez, ele não precisava fazer muito para conseguir aquilo.
— Eu entendo, você sabe que entendo. As coisas vão melhorar logo, você vai ver. – balancei a cabeça, esperando que ele estivesse certo. – Vocês vão sair dessas mais unidas que nunca, acredite em mim.
— Não é estranho algo assim ter que acontecer para que fiquemos unidas? – questionei e ele deu de ombros. Não tinha a resposta para aquela pergunta.
Nem eu.
Menos de 24 horas depois, eu, Katy, Suzy, e Nikki esperávamos pela reunião com a diretoria da universidade. Na verdade, já esperávamos há quase uma hora por algo que havia sido previamente marcado para as três da tarde em ponto e, se eles estavam achando que ficaríamos desanimadas com aquilo, estavam enganados. Só estavam nos deixando mais putas da vida.
— Acho que a gente deveria repassar as nossas regras. – disse, levemente ansiosa.
— É, não vai fazer mal. – Katy concordou.
Olhamos para a Nikki, então, esperando que ela começasse, já que ela era a líder da coisa toda e uma das criadoras das ditas regras, junto com quem? É claro que a . Que Deus a livre de perder uma oportunidade de botar ordem em um lugar.
— Tá... Sejam educadas, afinal de contas, nós ainda estudamos e pretendemos nos formar aqui. Fiquem focadas no problema que nós temos agora porque, se as chances de conseguirmos uma solução para este já são poucas, imagina nos outros milhares que temos. E última, mas mais importante: mantenham a calma. Porque só assim vocês vão conseguir manter a cabeça no lugar para argumentar bem, para não se deixar enganar por qualquer coisa que estejam nos preparando com essa demora toda e, claro, mantemos também a nossa credibilidade.
— Por que você falou a última parte olhando para mim? – questionei, quase ofendida. Eu precisava de mais do que aquilo para me ofender de verdade.
— Você conhece o seu histórico tão bem quanto nós, . – Nikki respondeu. Eu revirei os olhos.
— Se eu sou tão indigna de confiança, por que me deixaram vir na reunião? – me arrependi da pergunta logo depois. – Não precisa responder.
Tarde demais.
— Você se ajoelhou no chão e quase chorou implorando. – disseram praticamente em coro. Encolhi os ombros.
— Vocês são malvadas e surdas.
Elas riram, mas eu não achei a graça.
— Só vocês para me fazerem rir em uma hora dessas. – Katy disse, balançando a cabeça e sorrindo. Isso era bom. Qualquer tipo de positividade nos caía muito bem em momentos como aquele.
A porta finalmente foi aberta e nós cinco nos viramos imediatamente em sua direção. Havia chegado a hora de virar aquele jogo (ou não, mas eu preferia nem pensar nessa possibilidade).
— Meninas? Vamos? — disse uma senhora de meia idade com falsa gentileza.
Momentos como aquele me faziam até gostar da Alice, nossa coordenadora. Ela não era exatamente um anjo, mas ao menos estava aberta para nos ouvir. A que nos encarava macabramente só abriu suas portas porque a Katy envolveu a polícia na treta e ao menos contra eles a universidade não poderia ir.
Hellen Richardson era um dos nossos obstáculos para chegar na justiça que desejávamos para a nossa amiga. Braço direito do reitor da UCLA, ela estava ali para “resolver a situação de forma que ambos os lados saiam bem e satisfeitos”. Palavras dela. O problema era que isso significava a retirada da queixa da Katy na polícia, aquela responsável por prendê—lo e pelos julgamentos que estavam por vir, alguns favores aqui e ali e, adivinha só, a permanência de Murray no time, como se nada tivesse acontecido. Talvez a senhora Richardson devesse ter tirado um tempo para perceber que não importava o que acontecesse, as coisas não ficariam mais bem para a Katy. Pelo menos, não tão cedo.
Nós entramos na sala grande demais para apenas uma pessoa pequena como ela e nos acomodamos em uma mesa de reunião ao fundo que ficou quase totalmente vazia, pois éramos poucas.
— Obrigada por nos receber. – disse, simpática. Até demais, eu diria.
— Não há de quê. Estamos fazendo o nosso máximo para resolver logo essa situação e, se a Katy precisa do apoio de vocês aqui, não me importo de conceder. – Katy forçou um sorriso, mas parecia claro que ela não queria estar ali. – Então, por onde devemos começar? Tenho certeza que vocês têm muito a dizer.
Nós trocamos alguns olhares hesitantes. Na verdade, passamos parte do tempo de atraso da reunião tentando decidir se íamos direto ao ponto ou se amansaríamos a fera primeiro, tentando ganhar sua confiança. Não chegamos à conclusão alguma.
Antes que qualquer uma de nós dissesse algo, Katy tomou a frente.
— Talvez a gente devesse começar com o fato do Murray ainda ser um aluno e jogador dessa faculdade quando existe um processo na justiça contra ele. – sugeriu, curta e grossa.
A encaramos por alguns segundos, surpresa. Ela deu de ombros com uma expressão que parecia dizer: “Eu falei que não precisava de vocês”.
Hellen deu um sorriso calmo, como se já esperasse aquilo. Já haviam tido algumas conversas, então ela provavelmente era familiar com a abordagem da garota.
— Pensei que já tivéssemos conversado o porquê de não ser tão simples assim.
— Então explique para elas! Tenho certeza de que vão amar essa história. – e lá estava o sorriso falso novamente.
— Vocês já devem saber que nós temos toda uma investigação em andamento para comprovar a agressão, assim como a polícia tem a sua e, infelizmente, não tem sido fácil fazer um bom trabalho com a interferência deles.
— Ele já foi preso! Realmente precisam de prova maior que essa? – eu me intrometi.
— Ele também foi liberado menos de 24 horas depois. O Scott vai ser julgado, sim, mas até lá não há muito que podemos fazer. Por isso eu tenho insistido na retirada da queixa, Katy. Seria muito mais fácil que resolvêssemos entre nós, sem nenhum juiz envolvido, com muito mais rapidez!
— E muito menos justiça! – concluí.
— , calma. – Nikki disse, colocando sua mão sobre o meu braço.
— Olha, eu não sei porque nós voltamos nesse assunto, mas já foi decidido: eu não vou retirar a queixa! O processo já está em andamento, se tudo der certo, logo ele volta para a cadeia, isso não diz respeito a ninguém daqui! Tudo que eu quero de vocês é que não permitam que um estuprador seja a cara do nosso time!
Todas ficamos em silêncio. Inclusive a Hellen e eu entendia. Ela só tinha uma resposta para aquele problema e já tinha sido dada. Repetir era correr o risco de que a Katy pulasse em cima dela e ninguém ali gostaria que isso acontecesse.
pigarreou, se preparando para falar. Eu esperava que fosse bom porque os nervos estavam a flor da pele naquele cômodo.
— Eu não quero mudar de assunto, mas a fraternidade desse cara já é conhecida pelos abusos, ele é... Até quando vocês vão permitir isso? – Suzy questionou.
— Não vamos nos precipitar. A universidade nunca encontrou as devidas provas para acusar formalmente o jogador, são apenas boatos! Estamos em um lugar cheio deles! Vocês, jovens, veem graça em cada coisa hoje em dia que histórias como essa acabam se espalhando e manchando a carreira desse rapaz.
Minha boca caiu.
— Vocês realmente acreditam que esses boatos não têm algum tipo de fundamento? Isso é, no mínimo, muita ingenuidade.
— Eu já disse e repito: nunca encontramos provas. Por favor, meninas, vamos trabalhar com fatos e não hipóteses, tudo bem?
— Você quer um fato? – começou. – A nossa amiga foi estuprada dentro da casa de uma fraternidade por uma personalidade desse lugar e vocês não estão movendo um dedo sequer para apoiá—la.
— Estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance, eu garanto. – Hellen respondeu, quase que como um robô. Ela devia dizer muito aquelas palavras para todas as garotas que chegavam até ela e que, como a gente, afundavam por ali mesmo.
e eu trocamos um olhar frustrado. Nenhuma de nós gostava de não conseguir o que queríamos e o gostinho da perda daquela batalha tinha um amargor em especial.
Nikki suspirou e se colocou à frente em sua cadeira.
— Escuta, sra. Richardson... Eu entendo que o Murray é importante para essa instituição, realmente entendo. Eu estou dentro desse mundo, eu tenho uma ideia de como as coisas andam. Mas olhe ao seu redor! Cada vez mais, as pessoas estão sabendo do que aconteceu. Elas sabem que a Katy não foi a primeira e elas sabem que não vai ser a última. Acredite em mim, esse não é um movimento que você quer criar.
— Nós temos regras para seguir, Nicole, assim como vocês como irmandade, assim como qualquer aluno e funcionário desta universidade. Eu sei que você presenciou uma dor que nenhuma de nós aqui pode compreender, Katy, e sinto muito por isso, mas existem pessoas muito acima de nós, existem problemas e sistemas muito acima de nós.
Eu balancei a cabeça, desacreditada. Era isso, então? Viemos aqui para ouvir isso?
— E onde é que a gente fica nesse sistema? – questionou. – Caladas? Amedrontadas? Se vocês, como universidade, não podem nos dar voz, quem vai?
Nem a própria Hellen conseguiu ir longe o suficiente para responder essa pergunta.
Nós tentamos outras abordagens, tentamos conseguir uma direção, o que fazer, com quem conversar, mas no final, saímos da reunião pior do que entramos. Sem esperança alguma. Para ser sincera, a única esperança que me restava naquele momento era a de que eu recuperaria todas as outras num futuro próximo. Não poderíamos parar assim. Outras pessoas pararam e olha só no que deu.
— O que nós vamos fazer agora? – questionei logo depois da gente se jogar no chão do gramado mais próximo.
— E se o seu advogado viesse até aqui, Katy? Ele com certeza deve argumentar melhor que a gente... – Nikki sugeriu, mas a Katy balançou a cabeça para os lados, negando.
— Não tenho dinheiro para isso, gente. Já tá difícil pagar o suficiente para ele cuidar de todo o processo jurídico, não dá. Eu esperava que a universidade tivesse um pouco de compaixão, sei lá... Que tivessem eles mesmos a atitude de expulsar o garoto sem a intervenção de outros poderes, mas acho que vou ter que esperar até o final dos julgamentos... E eles nem começaram ainda.
— Não, não, não, não, não! Vamos pensar em alguma coisa, a gente só precisa de um tempo. – disse.
— Não é tão simples assim, pessoal...
— Nós sabemos! – Suzy afirmou, pegando sua mão. – Mas estamos dispostas a continuar tentando, de uma maneira ou de outra. Você não?
Katy sorriu.
— Ei, eu sempre estou disposta! Só quero que tenham certeza de que vocês sabem onde estão se metendo.
Hoje em dia, eu não tinha mais ideia. Porém...
— Vamos arriscar.
Pela segunda vez naquela semana (o que já era mais vezes do que eu gostaria, visto que eu sempre me considerei uma garota decidida), me peguei encarando um aparelho eletrônico que poderia ser um inferno ou a solução para os meus problemas. Infelizmente, meu celular ainda não tinha vontade própria e o próximo passo dependia unicamente de mim.
Eu estava exausta, como nunca achei possível estar. Minha mente estava destruída com a nova possibilidade de vida em que haviam nos jogado três semanas antes. E mais ainda com as soluções para o problema que pareciam cada vez mais distantes. O que estávamos fazendo errado? Por que algo que deveria ser tão simplesmente claro agora parecia impossível?
Com isso, eu cheguei a uma conclusão: relaxar não estava funcionando. Era inútil esquecer qualquer um dos meus problemas por dez minutos se, assim que voltavam, estavam mais fortes e presentes do que nunca. Eu não precisava fugir, mesmo que por pouco tempo, e sim focar o suficiente para resolvê—los, podendo relaxar eternamente depois. Logo, não havia mais motivo para recusar comida de graça — eu era adepta da conta dividida pelos dois em um encontro, mas depois de tudo que ele me fez passar, o mínimo que pode é me alimentar —.
Além do mais, poucas pessoas na minha vida conseguiam tirar minha paz interior (não tão pacífica neste momento) e a número 1 era e sempre seria . Isso significa que eu não só ganho comida, como também uma ótima distração só para a minha mente dar uma desviada de universidade, abuso e qualquer coisa que remetesse a isso. Por fim: sim, eu tinha consciência de que só estava inventando um monte de desculpa para não ter que dizer que não tão fundo assim, eu simplesmente queria passar um tempo com ele.
Eram 17h00 da tarde da bendita sexta—feira, ou seja, as chances dele vir aqui só para atirar o celular na minha cara por tentar fazer aquele jantar acontecer tão em cima da hora eram muito grandes. No entanto, havia também uma pequena possibilidade de que ele movesse o mundo inteiro para encaixá—lo no meu horário, então eu não poderia deixar de tentar. Ainda que fizesse sérios estragos ao meu orgulho voltar atrás dessa maneira.
Antes que eu me arrependesse – e eu iria, definitivamente, me arrepender mais tarde –, apertei o botão que ligaria para o indivíduo. Ele não demorou nada para atender.
— no meu celular? Deve ser sério. – ele atendeu, já acelerando o processo de arrependimento.
Desconsiderei porque ele não estava exatamente errado. Fazia um tempo desde a última vez em que eu o liguei. Na verdade, até poucos dias atrás eu nem tinha mais seu telefone, tive que pegar com a no começo da semana.
— Nem tanto. – respondi, levemente desconfortável. Era de se esperar, eu estava indo contra alguns dos meus maiores princípios, sendo o mais forte deles: ressentir e odiar o acima de todas as coisas.
— Tudo bem? – ele perguntou, soando apenas rotineiro e não preocupado.
— Aham... Só queria ver uma coisa com você.
— Ah, é? Manda!
Nesse exato momento, eu senti na pele porque ele encheu tanta linguiça antes de dizer o que realmente queria anteriormente. Ir direto ao ponto não é tão fácil quanto parece... Em situações muito delicadas como essa, é claro.
— E—eu só queria saber... E entendo completamente se não for possível! Eu queria saber se é tarde demais para aceitar aquele jantar? – de todas as reações que eu poderia ter imaginado, o silêncio completo que ganhei não foi uma delas. Com um pouco de medo, eu acabei ficando quieta por um tempo, mas eventualmente ele ficou tão quieto que eu temi que ele tivesse desligado bem na minha cara. Eu estava em uma situação complicada, porém ainda assim seria inaceitável. – ?
Ele pareceu voltar a respirar.
— Sério? – ele questionou e eu quase entrei em pânico por não conseguir definir se estava bravo ou esperançoso.
— Sim? – não era para soar como uma pergunta, mas, nesse ponto, eu já tinha perdido qualquer certeza. – É um problema?
Mais uma vez, silêncio. Felizmente, ele não precisou da minha ajuda para acordar dessa vez.
— Não! Mas eu preciso ir. Te pego às 19h00?
— 19h00 tá bom, mas me...
Ele desligou.
Voltei a encarar meu celular, me sentindo surpresa, puta da vida... E um pouco idiota. Qual é! Custava respeitar a digestão do meu orgulho? Eu acho que não!
Por um rápido segundo, pensei em ligar para ele novamente só para cancelar a coisa toda mais uma vez. Por fim, acabei concluindo que isso seria um baita desperdício de todo o esforço que eu havia acabado de fazer e isso, sim, seria verdadeiramente estúpido.
Respirei fundo. Estava feito. Nada de voltar atrás agora.
Me sentia estúpida por transformar algo tão simples como um jantar em algum tipo de grande evento, mas muito pouco tempo atrás eu abominava a ideia de qualquer coisa parecida com aquilo. Eu o abominava e uma parte de mim ainda estava naquele estágio. Uma parte grande e extremamente alta de mim queria mata-lo pelo que me fez passar não só depois do nosso término, mas durante o nosso relacionamento. No entanto, havia uma outra que não aguentava mais esses sentimentos ruins e eu precisava ouvi-la. Pelo meu bem mental e pelo bem-estar de todas as outras pessoas ao meu redor. Não dava para continuar carregando todos para o inferno comigo.
Como tudo que eu vinha fazendo recentemente, decidi dar um passo de cada vez. Dessa forma eu pensava mais nos próximos segundos e menos nas próximas horas que eu temia. Tomei um banho gostosinho, tentando focar na minha mente a reunião de alguns dias antes com a diretoria. Nós continuávamos na estaca zero e dizem as línguas que boas ideias vem nos momentos mais estranhos, por que não um banho? Seria muito fácil simplesmente deixar tudo para lá e desistir, como tantas outras vezes já fizeram, mas eu e as garotas continuávamos dando o nosso máximo para nos manter esperançosas. Mesmo que já não estivesse tão presente quanto nos primeiros dias, estávamos trabalhando com aquilo que tínhamos, com fé de que fosse o suficiente. O fato de termos um baita exemplo de esperança com a gente tornava aquilo um pouquinho menos difícil.
Katy agora ia para todas as aulas, sem poder se dar ao luxo de faltar quando as provas estavam tão próximas. Nem garotas violentadas têm tantos privilégios quanto jogadores de futebol. Nesse ponto da bagunça, um bom número de pessoas fora do nosso círculo de conhecidos já sabia do que aconteceu, inclusive quem era o culpado. Por isso, ela ainda era obrigada a aturar olhares indiscretos o dia inteiro e... Bom, eu tenho certa experiência nesse departamento e posso afirmar que não é, de longe, tão glamoroso quanto parece.
Quando achei que já havia passado tempo demais debaixo da água, eu me retirei e dei logo de cara com a April do lado de fora.
— Oi! – ela abriu um sorriso quando me viu. – Vai sair?
— Aham. – respondi, me enfiando dentro do closet atrás de uma roupa.
— Para onde?
Fora de sua visão, eu parei por um segundo. Seria uma boa ideia contar onde eu estava indo? Não tinha certeza. Então, na dúvida, eu decidi ficar quieta por agora. Se tudo desse errado e e eu voltássemos brigados novamente – e temos que concordar que as chances não são nulas –, eu teria uma preocupação a menos.
— Vou jantar com os meus pais. Tô tão concentrada nessa faculdade que não os vejo há tempos.
Me senti um pouco culpada justamente por aquilo não ser completamente uma mentira. Para ser honesta, já havia perdido as contas de quantas vezes tive que recusar uma visita até a minha própria casa por decidir ficar com as meninas ou estudando.
— Ah, eu sei como é... O problema é que meus pais estão a horas de distância.
Nesse momento minha culpa conseguiu aumentar um pouco mais, então tratei de mudar de assunto.
— Seu irmão não vinha te visitar semana passada? – perguntei, buscando alguma roupa, a única parte fácil do processo. costumava gostar de qualquer uma das minhas roupas e eu sabia que se eu aparecesse de pijamas, ele não reclamaria. Só encheria o meu saco pelo resto do século.
— Foi o que ele me disse. – ela suspirou. – Meu irmão é louco, deve ter se metido em alguma confusão por aí. Logo ele aparece.
Eu não queria deixar óbvia minha mentira e também não estava muito afim de me arrumar toda, então escolhi meus usuais jeans, uma blusa bonitinha que eu finalizaria com um coturno só para dar um toque que deveria dizer “tô indo em um restaurante, não na padaria da esquina”.
Porque eu era uma pessoa multifuncional, não pude esquecer de sair do closet com tudo em mãos já respondendo a minha amiga como se ali fosse o único lugar em que minha mente estivera esse tempo todo.
— E você não se preocupa? – questionei com curiosidade. Eu não tinha nenhum irmão, mas cresci com amigos que eram tão próximos quanto e não me imaginava dando de ombros para uma incerteza como aquela.
— Ah, eu me preocupava quando era mais nova, mas já me acostumei. Você vai ver quando conhecer ele. Jude te dá apenas duas opções: morrer de constante preocupação ou jogar o jogo dele. Eventualmente todo mundo cai na segunda.
Assenti. Eu ainda não entendia como ela conseguia fazer aquilo, mas a April sempre sabia o que estava fazendo, muito diferente de mim, então confiei em suas palavras.
Me sentei na penteadeira para roubar as maquiagens da , já que eu não fazia ideia de onde estava a nécessaire com as minhas, sei lá, quatro coisas.
— Posso te perguntar uma coisa? – pelo reflexo do espelho, a vi concordar distraidamente enquanto folheava algum livro. – Por que tá evitando o ?
O que havia dito para alguns dias antes não era mentira, eu não acreditava que ela realmente estivesse evitando ele. Não de propósito, pelo menos. No entanto, imaginei que perguntar daquela maneira traria apenas duas respostas: negação completa e desesperada ou simples concordância. Me surpreendi quando ela não negou e me chamou de louca.
— É complicado... – disse, de ombros encolhidos.
— Complicado?
Ela suspirou.
— Com tudo que tem acontecido, é difícil... De certa forma, ele está envolvido com aquelas pessoas.
Eu parei, ofendida. Não por mim, mas por um dos meus melhores amigos. Ele não estava aqui para se defender.
— Aquelas pessoas?! – questionei, desacreditada, me virando para ela. – Olha, eu gosto muito de você, mas não pode dizer que meu amigo tá envolvido com um estuprador e achar que vai ficar tudo bem comigo.
— Não fica brava, só pensa! Eles treinam juntos, jogam juntos, vão para as mesmas festas, querendo ou não, eles convivem um com o outro, provavelmente tem alguma amizade envolvida ali e eu não quero fazer parte disso, não com tudo que aquele cara fez com a Katy e vai—saber—lá quantas outras garotas.
Respirei fundo porque eu não queria surtar em defesa do , ainda mais com a April. Para dizer a verdade, o máximo de conexão que eu tinha feito entre o infeliz e o era ambos serem atletas, não toda a convivência que vinha com o fato de jogarem no mesmo time, o da universidade.
— Você tá sendo muito injusta. A Nikki também o conhecia, já saiu nos mesmos grupos que ele e ninguém jogou pedra, não acha que o merece o mesmo tratamento?
— ...
— Só conversem! Diz para ele o que tá se passando na sua cabeça, permita que ele se explique, mas não deixa o meu amigo no escuro. Ele gosta muito de você, não é justo. – pedi.
Outra coisa injusta foi o sermão que dei para ele antes, achando que estava apenas sendo paranoico. O mundo dá voltas.
Ela deu um leve revirar de olhos, atitude no mínimo estranha vindo de quem vinha.
— Não exagera. No máximo, ele pensa que gosta de mim porque eu o ajudei.
Preguei meus olhos curiosos nela, que deixou algumas informações passarem.
— Ajudou com o que?
April engoliu em seco. A atitude de minutos antes parecia nunca ter existido.
— N—nada. Eu só... Bom, nós fize—emos... Na verdade, nada. Esquece! – disse, toda nervosa por ter deixado algo escapar.
— Ah, agora fala! Vocês não estão brigados? Então! Não deve nada para ele, me conta! – insisti e ela semicerrou os olhos para o meu lado.
— Primeiro: não estamos brigados. Segundo: mesmo se tivéssemos, não é motivo para eu contar o segredo dele. E terceiro: você é muito cara de pau mentindo na minha cara para conseguir essas informações!
Dei de ombros. Nada de novo sob o sol. Eu a conhecia o suficiente para acreditar que eu poderia insistir por horas e ela não abriria a boca, então decidi que a melhor ideia era voltar logo para o ponto principal.
— Mentir? Eu não faço isso. – murmurei, rindo comigo mesma. – Tá bom, eu vou deixar isso de lado contanto que você prometa que vai ao menos conversar com o . Coisa rápida, coisa simples, só dá uma chance para ele.
Ela considerou a ideia por um momento e eu não pude deixar de pensar que o nome daquilo era karma. Havia dispensado tantas garotas que a única que ele queria agora já não o quer tanto assim. Mas, no que dependesse de mim, eles iriam ao menos tentar chegar em algum lugar, ainda que esse lugar fosse apenas uma grande amizade – desde que nunca tão grande quanto a deles comigo. Por favor, sejamos racionais.
— Tá, tá! Só não fica me enchendo.
Eu sorri. Aquela garota tinha agora o triplo de atitude que tinha quando a conheci e eu não poderia negar: adorava cada pequeno novo crescimento dela.
Pouco mais de uma hora depois, eu estava sentada na sala encarando o relógio. 19h09, ele estava atrasado. Eu já havia mentido para um total de oito pessoas sobre para onde estava indo e aquilo não me deixava muito satisfeita. Teria que me lembrar de tentar ser mais honesta quando o próximo ano chegasse porque nesse eu já havia falhado. Mas dessa vez eu tinha um bom motivo (apesar de eu sempre achar isso nos momentos das mentiras passadas): muitas garotas naquela casa tinham um pé atrás comigo – e eu não as culpava
Meu celular vibrou na minha mão com a mensagem de que ele estava me esperando do lado de fora. Agradeci a tudo que me era sagrado por ele ter feito o que pedi, pois tê-lo na minha porta não faria maravilhas para o meu teatro. Digamos que eu não tinha certeza de que ele faria porque o infeliz não respondeu a minha mensagem. Por isso, quando eu fui para fora, eu não tinha certeza do que iria encontrar: um feliz da vida ou um puto por eu ter recusado seu convite e mudado de ideia tão em cima da hora.
A primeira coisa que me veio a cabeça quando o vi foi alívio por não ter colocado um vestido, já que ele estava montado em sua moto. A segunda coisa foi um xingamento porque o capacete não me deixava ver muito de sua expressão para que eu pudesse tirar minhas conclusões.
— Onde é que nós vamos? – questionei, pois esperava que fossemos simplesmente andar para algum lugar próximo.
— Surpresa. – respondeu, me entregando um capacete. Seu tom também não liberava muito.
Simplesmente subi na moto, tensa. Não por ter medo. Já havia andado para todos os lados com ele naquela moto desde o dia em que ele tirou a carteira (para ser sincera, até antes disso) e ele era um excelente motorista. O negócio era que a última vez em que subi naquela moto as coisas não acabaram exatamente bens, principalmente porque eu estava bêbada e tive que ser arrastada até ela. Eu esperava não acabar a noite da mesma maneira.
Como uma boa pessoa orgulhosa que não queria demonstrar sua insegurança em relação a tudo que estava acontecendo, eu fiz o que faria em qualquer outro momento em que não estivéssemos brigados. Passei meus braços ao redor da cintura dele e me segurei ali. Eu pensava estar atuando bem até que senti uma de suas mãos sobre as minhas, apertando de leve por dois ou três segundos. Muito rápido, mas o suficiente para que eu entendesse que aquela era a sua maneira de dizer: “fica calma, tá tudo bem”. Aquele simples, mas significativo gesto me deu uma sensação gostosa e assustadora no peito que eu não tinha certeza se queria sentir. Era cedo demais, estranho demais depois de tudo que havia acontecido. No entanto, naquele pequeno momento, eu apenas o abracei com mais firmeza e deixei que ele nos guiasse por enquanto.
Passados cerca de dez minutos, ele não parecia estar nem um pouco perto de estacionar e eu comecei a ficar realmente curiosa. Los Angeles não era uma cidade pequena, mas haviam restaurantes dos mais variados para todos os lados, nós precisávamos ir no mais longe deles?
— Mas onde é que fica esse restaurante? – eu gritei sobre o ombro dele, esperando que ele me ouvisse apesar do barulho da moto e do vento.
— Vou ter que passar lá em casa. – se houvesse uma maneira do meu rosto formar um ponto de interrogação, agora seria o momento. – Esqueci minha carteira lá.
— Eu pago, ué.
Ele ficou quieto por alguns segundos até que balançou a cabeça, concluindo:
— Não, eu realmente preciso da minha carteira.
Fiquei quieta. Nós nunca havíamos tido problemas em questão de pagamento das coisas quando namorávamos ou quando éramos apenas amigos. As vezes ele pagava, as vezes eu, as vezes dividíamos e tudo fluía muito bem assim. Mas, se agora que estávamos tendo algum tipo de recomeço, ele queria pagar, eu não ia teimar. Talvez o ego dele precisasse dessa massagem depois de tudo que eu o causei, sei lá... E no final das contas, eu estava falando sério quando disse que merecia um jantar de graça.
Não muito tempo depois, eu comecei a reconhecer os bairros pelos quais passávamos. De certa maneira, fiquei feliz porque poderia ir correndo dar um abraço dos meus pais enquanto ele buscava a tão querida carteira. Eu não fazia isso há algum tempo. Na verdade, tanto tempo que haviam chances de eu cancelar tudo novamente para ficar por ali mesmo, mas nem eu poderia ser tão grossa... Poderia? Afinal de contas, eu descobria novos níveis o tempo todo.
Rapidamente nós chegamos e ele estacionou a moto na entrada na garagem da casa dos seus pais. Descemos, já tirando os capacetes.
— Eu volto correndo, tá?
— Não se apressa não, eu vou ir dar um oi para os meus pais também.
Ele assentiu e eu comecei a atravessar o gramado em passos largos, não querendo levar mais tempo do que o necessário. Eu sabia que assim que eu entrasse seria difícil sair. Entrei sem bater na porta e fui diretamente para a cozinha, onde eu ouvi vozes, e acabei por encontrar não só meus pais, mas também os do .
— Cheguei!
Todos eles pararam surpresos quando eu anunciei a minha presença, só não pelo motivo certo.
— Surpresa! – eles gritaram completamente desorganizados e sem sincronia alguma.
— Vocês chegaram cedo. – minha mãe afirmou, soando desapontada. Tentei não focar nesse detalhe pelo bem da minha autoestima.
— Vocês? – questionei, pois eu era a única pessoa nova no recinto.
— Nossa! Tô começando a entender porque nunca ganhamos uma festa surpresa. Vocês são péssimos! – a voz do veio de trás de mim. Ele deu um tchau constrangido quando me virei para olhá—lo.
— Ela tinha cancelado com a gente! Não tivemos tempo para praticar. – Elizabeth, a mãe do , se defendeu.
— Por que tá todo mundo falando grego? O que tá acontecendo aqui?! – implorei por respostas, nem lembrando mais por que é que eu mesma estava ali.
suspirou, se aproximando de mim.
— O nosso jantar é aqui, eu queria... Bom, queria te fazer uma surpresa que não deu muito certo, mas fica a essência. Eu sei que você tá com a cabeça cheia ultimamente, então pensei que um tempo com a sua, com a nossa família te faria bem.
Eu senti meu queixo cair gradativamente sem que eu tivesse controle. Olhei para os nossos pais encarando a cena com carinho e, passada a confusão inicial, eu quase quis chorar. Bem, eu quis, mas não me debulharia em lágrimas tão cedo. Eu estava tão feliz por não ter que ir embora e tão tocada por ele ter armado aquilo que não queria estragar aquele momento com choro, ainda que fosse de muita, muita, muita felicidade.
Apesar de ter sido o responsável por aquele momento, foi o único que não ganhou um abraço apertado. Ele ganhou um rápido “Obrigada” labial enquanto eu abraçava o meu pai e eu me senti horrível por causa disso. Me senti um monstro por não conseguir simplesmente dar um abraço rápido nele, nem mesmo ter o impulso para tal, e eu queria muito agradece—lo de forma apropriada, queria demais, porém eu simplesmente não conseguia. Nós não éramos mais as duas pessoas que conversavam tranquilamente, se abraçavam e beijavam o tempo todo, sem dúvidas, sem incertezas. Agora, nós éramos as duas pessoas que calculavam cada passo, cada palavra, porque um movimento errado poderia colocar tudo a perder. Fazer essa comparação me machucava e eu não poderia deixar de culpa—lo, de pensar em todos os se que não foram concretizados. Odiá—lo era muito fácil; um escorregão e eu poderia cair naquele território novamente em questão de segundos. Por isso tinha tanto medo.
Capítulo 19
— Você sabe que tá sendo um puta pé no saco agora, não sabe? – eu disse, com o telefone na orelha e um esmalte na mão. Ele havia perdido a minha atenção completa mais ou menos 15 minutos de reclamações atrás.
suspirou, aborrecido.
— Eu só tô tentando cuidar de você. – ele afirmou e eu quase ri de tão esfarrapada que era aquela desculpa.
— Engraçado... O também quer cuidar de mim e não me liga sete vezes por dia. Você precisa parar! Eu tô bem e sei me virar, não preciso da proteção de ninguém. Até parece que não me conhece!
— , você está na casa dele, no território dele!
— Meu Deus! O que você acha que ele é? Um estuprador? Um predador? É só o meu primo, porra! Meus pais estão aqui, não dá pra ninguém fazer besteira com eles por perto. Não uma besteira de verdade, pelo menos. – eu brinquei, mesmo sabendo que fazer piada quando ele estava assim era um grande erro.
Honestamente, ele estava me fazendo passar tanta raiva nos últimos dias que eu não me importava nem um pouco de brincar. Se eu não pudesse rir da minha própria desgraça, aí sim eu ficaria brava e quem me conhece sabe que toda vez que eu fico brava demais, Jéssica e dão um tempo. Eu estava cansada daquilo. E isso porque estávamos a mais de 700 km de distância um do outro, era pertinho que a coisa ficava realmente feia.
— Será que você pode tentar não agir assim? Você sabe porque eu tenho um pé atrás quando se trata desse cara, não é ódio sem fundamento. – insistiu e eu revirei os olhos. Não era possível que ele realmente achasse ter razão nessa história.
— Caralho, ! Isso foi há quatro anos. Eu já superei, por que você não pode fazer o mesmo?
— , ele tentou te beijar e ele vai tentar de novo. Você sabe que vai.
Eu apostava que ia mesmo, lá na mente do , no teatrinho grego que ele inventou e vem desenvolvendo a cada dia que permaneço em São Francisco.
— Se ele tentar, vai levar um belo soco na boca porque agora eu sou uma moça comprometida. Ele sabe disso, não é o idiota completo que você faz dele.
— Eu não consigo confiar nele, . Não consigo confiar na presença dele perto de você quando eu estou tão longe. – ele disse cabisbaixo. Suspirei.
— Não tô pedindo que confie nele, só que confie em mim. – ele ficou em silêncio. Eu não esperava que o que eu disse resolvesse todos os nossos problemas, mas também não imaginava que ganharia um silêncio completo. Isso me deixou chateada e possessa com ele, no entanto, ele estava longe demais para que eu pudesse esganá-lo até aprender como não ser um imbecil. – Eu nunca te dei um motivo para não confiar em mim, .
— E-eu sei... – ele começou a dizer, soando arrependido, porém eu finalizei a ligação e no segundo seguinte, desliguei também o celular, sabendo que ele ligaria sem parar pelos próximos dez minutos na tentativa de consertar a merda que fez.
A minha verdadeira vontade era de arremessar o celular na parede, mas eu era desempregada e meus pais não eram ricos, seria apenas burrice. Partindo desse ponto, apenas quebrar meu celular por causa do ciúme cansativo do meu namorado seria burrice.
Como a vidente genial que ela era – ou simplesmente intrometida por ficar ouvindo a conversa dos outros atrás das portas –, minha mãe logo apareceu do meu lado com o semblante preocupado.
— O que foi dessa vez, filha?
— O que você acha? tendo ciúmes até do colchão em que eu durmo.
Eu vi que ela quis rir do que eu falei, mas se esforçou para permanecer séria. Minha mãe se esforçava bastante para ser “mais severa”, como ela acha que mães devem ser, porém ela vivia falhando nessa missão justamente porque ela estava longe de ser como todas as outras.
— Vocês precisam parar com essas brigas, pelo amor de Deus! Era bonitinho quando eram pequenos, mas são quase adultos agora, isso não é bom para nenhum de vocês.
Outra coisa que minha mãe (assim como meu pai e os pais do ) se esforçava para fazer era não se intrometer mais do que o necessário no nosso relacionamento. Isso porque todos nós éramos muito próximos e meu namorado e eu tínhamos um longo histórico de brigas. Seria estúpido para os nossos pais tomar lados quando sabiam que pouco tempo depois teríamos feito as pazes.
Ou seja, toda vez que eu ia reclamar sobre o quão sem noção era meu namorado, eu recebia respostas indiretas como essa ao invés de: “você tem razão, é um babacão”. Seria ótimo de ouvir e ainda seria engraçado.
— Primeiro: meu amor, eu só tenho 16 anos. Você não pode me xingar de adulta assim não. – ela revirou os olhos e riu rapidamente. – Segundo: eu tento deixar as brigas de lado, mas ele não deixa elas saírem da gente, vou fazer o que?
Eu não era assim tão inocente, sabia disso e minha mãe também, pude ver na cara dela. No entanto, ela optou por guardar aquela informação e eu a agradeci mentalmente por isso.
— Só vou te dizer uma coisa: paciência. Essas discussões não têm levado vocês a lugar nenhum e não é agora que vão começar.
Ela me deixou sozinha antes que eu pudesse pensar em uma resposta esperta para lhe dar. Voltei a focar nas minhas unhas, tentando não pensar no garoto que eu provavelmente estava deixando desesperado lá em Los Angeles.
Algum tempo depois, meu primo Kyle – ou o vilão das fantasias do , se preferir – veio com a irmã me chamar para sair. Eu não estava nem um pouco afim, para ser honesta, mas também não me permitiria passar a noite em casa pensando no meu namorado e no quanto eu desejava ter uma relação normal e pacífica, como qualquer outro ser humano no planeta terra. Então eu fui e meu celular ficou.
Era uma noite de sábado, deveria ser marcante, mas a realidade era que não me diverti nem um pouco, apesar do grande sorriso em todas as fotos que me obrigaram a tirar. Eu queria pagar de desapegada que não estava nem aí para o drama do , porém eu estava aí e não era pouco. Conhecia-o tão bem que podia imaginá-lo revirando na cama por horas em preocupação até finalmente cair no sono. E eu sabia que a preocupação não seria mais pelo meu primo e sim por ter me deixado tão brava e magoada a ponto de cortá-lo totalmente.
Fui a primeira e única a voltar para a casa antes das duas da manhã. Eventualmente até meus primos, que dificilmente desistiam de mim, cansaram de tentar fazer com que eu me divertisse de verdade. Kyle se ofereceu para voltar comigo, mas era ruim o suficiente que a minha noite estivesse arruinada, eu não precisava arrastá-lo comigo. Além do mais, eu conhecia São Francisco quase tão bem quanto LA e queria tomar um pouco de ar, sozinha, ainda que não fosse uma ideia segura.
Em quinze minutos – algo extremamente desapontável para a garota que procurava por uma caminhada dramática –, eu cheguei na casa da minha avó e silenciosamente me enfiei no quarto que dividia com meus pais. Me joguei no pequeno colchão no chão, sem coragem de sequer colocar um pijama. Queria dormir. Logo.
— ligou. – ouvi meu pai dizer de repente. Abri os olhos, um pouco assustada. – Algumas vezes...
Suspirei. Ele definitivamente sabia como marcar sua presença mesmo com toda aquela distância.
— Vou falar com ele amanhã.
— Tá tudo bem?
— Tá tudo normal... O de sempre. – respondi, desanimada. – Boa noite, pai.
— Boa noite, .
Na manhã seguinte, foi muito fácil adiar a ligação. Eu acordei tarde porque ninguém poderia ficar obcecado com pensamentos, culpas e acusações enquanto dormia (a não ser que algum tipo de sonho/pesadelo decidisse nos castigar, mas não tive esse azar). Só levantei quando a música do lado de fora se tornou alta demais para ser ignorada, me dando coragem para tomar um banho e finalmente sair do quarto para encontrar toda a minha família reunida em um churrasco de domingo.
Aproveitei para comer tudo que eu tinha direito e passar um tempo com as pessoas que eu via apenas uma vez por ano, colocando o caso no cantinho da minha mente. Eu gostaria de ter a força de vontade para exclui-lo por completo, mas a preocupação ainda estava ali, questionando o tempo todo se ele estava bem, o que estaria fazendo nesse momento, se estava se divertindo com a sua família e mais um milhão de coisas.
Por isso, algum tempo depois eu cedi. Já havia perguntado sobre a vida de cada ser humano naquela casa, sabendo muito mais do que gostaria sobre a minha própria família, e agora qualquer distração que eu tinha havia desaparecido. Mais de 12 horas depois de ter desligado, eu liguei meu celular, sendo bombardeada com centenas de notificações, sendo várias delas de , e , provavelmente mobilizados pelo meu muito estranho namorado.
Eu olhei primeiro as ligações. Inicialmente, elas vinham uma depois da outra, sem intervalo significativo de tempo. Com o passar delas, ele foi aumentando. Cinco minutos, dez, trinta, duas horas... A última havia sido há quatro, o que por si só já era o acontecimento mais bizarro daquele dia.
Depois parti para as mensagens, ignorando de cara as quase cem primeiras que vinham da conversa com o , e focando na dos meus amigos.
“Você
Pode
Me fazer
O favor
De responder
A porra
Do seu
Namorado
???????????
Ele tá me
Deixando
Louca
E você
Vai
Pagar”
Essa só poderia ser da . estava infinitamente mais calmo.
“Oi,
Tenho certeza de que está bem, fazendo algo muito interessante e útil, mas pode dar uma ligada para o ?
Você conhece a fera
Valeu”
foi prático.
“Liga pro ”
Sem responder eles, eu parti para o que realmente me interessava, mas tinha medo de ver. Ele começou consideravelmente calmo, com desculpas e implorando para que eu ligasse o celular para que pudéssemos conversar. Não fazia sentido algum ele enviar isso no meu próprio celular desligado, porém eu tinha que levar em conta o desespero do rapaz. Até o medo de que eu pulasse diretamente no colo do Kyle, de acordo com suas próprias fantasias.
“Você sabe que eu confio em você mais do que em qualquer outra pessoa
Eu só estava sendo estúpido
Me desculpa
[...]
, você não está sendo justa
Nós precisamos conversar, por que você age como se não?
[...]
Era uma lição que você queria me dar????
Eu já entendi
Agora CHEGA
[...]
Eu vou tentar dormir agora porque não aguento mais pensar nisso
Você tá agindo como uma criança
[...]
POR FAVOR
Sabe que não vou conseguir fazer mais nada até resolver isso
[...]
É sério que vocês saíram????
Eu tô aqui perdendo a cabeça e você tá se divertindo, tirando fotos com o babaca?
Não pode realmente achar isso certo.
Eu vou para São Francisco
To falando SÉRIO
Se você não me responder, eu vou para São Fracisco e aí você vai ter que conversar comigo
E vai ficar bem longe do imbecil do Kyle, me entendeu???"
Conforme eu ficava mais próxima do fim da leitura, minha respiração também ficou mais pesada. Eu sabia que aquelas mensagens não faziam jus ao quão puto ele deveria estar para chegar a ponto de fazer aquela ameaça. Até o tinha seus limites. Ele não faria aquilo.
No entanto, quando cheguei ao fim, a última coisa que ele havia me enviado era: “tô indo”.
Corri para digitar qualquer coisa que o impedisse de fazer aquilo, mas sabia ser em vão. A última mensagem era de mais de cinco horas atrás e, se minhas contas estavam certas, eu poderia esperar a sua presença a qualquer momento, levando em consideração que provavelmente estava de moto e muito, muito rápido.
Quando as mensagens nem chegaram para ele, eu soube que estava perdida. Momentaneamente sem a capacidade de raciocinar, eu fui atrás da minha mãe, na esperança de que ela me desse uma dica sobre o que fazer. Ele poderia chegar ali a qualquer minuto, pois já havia viajado comigo milhares de vezes e definitivamente se lembrava de onde era a casa dos meus avós.
— Mãe, mãe, mãe, mãe, mãe! – cheguei correndo na cozinha, interrompendo sua conversa com a minha prima. – Eu fiz uma coisa ruim.
Apesar do terror no meu rosto, ela nem aparentou surpresa, afinal de contas, eu tinha um histórico e tanto.
— O que foi dessa vez, ? – questionou, já cruzando os braços, pronta para me dar – ou tentar – uma bronca.
— Sabe a minha ideia de ignorar o ?
Não precisei falar mais nada. E não porque minha mãe já havia entendido a situação por completo, mas pela campainha da casa que começou a tocar alta e incansavelmente ao mesmo tempo em que a voz do meu namorado – mais próximo do que nunca de virar ex – gritava: “, !!” a todos pulmões.
A casa inteira ficou em silêncio e assim que corri para chegar no lado de fora novamente, todos já haviam se reunido ali. Achei que nada poderia ser pior do que aquilo até ver quem é que abria o grande portão fechado. Kyle sabia de todo o ciúme que sentia dele, da dor de cabeça que esse fato vinha me dando e... Bem, ele era um rapaz afrontoso, que teve coragem de recebe-lo com um sorriso no rosto e não era de felicidade.
O maior problema foi aquela ser justamente a primeira pessoa que viu do outro lado do portão. Isso somado a toda a raiva por estar longe e completamente no escuro em relação ao que acontecia ali resultou no motivo pelo meu grito de pavor poucos segundos depois: antes que pudesse pensar na piadinha que iria fazer sobre a presença dele ali, Kyle foi atacado.
O susto foi grande, porém não o suficiente para impedi-lo de reagir com rapidez. De repente, eles rolavam no chão, se atacando com socos e palavras que eu mal conseguia compreender.
— , PELO AMOR DE DEUS! – eu me peguei gritando antes de tentar me enfiar no meio da briga sem sentido algum. No entanto, antes que eu chegasse até eles, meu pai me puxou de volta.
— Não se mete ali! – ele mandou.
Logo depois, ele também foi separar os dois, levando meu tio consigo. Cada um deles pegou uma das aparentes crianças de oito anos, fazendo-os desgrudarem um do outro contra as suas vontades, o que era irônico para duas pessoas que se odiavam daquela maneira ficarem tão juntinhas.
— Falei para ficar longe dela!
— Ela é família, seu imbecil! O que quer que eu faça?
— LONGE! EU DISSE LONGE!
— Calem a boca vocês dois! – meu pai ordenou e até eu fiquei com medo. – Vem comigo. – essa última foi só para o , que se encolheu, temeroso pela primeira vez em anos que meu pai brigou com ele, mesmo que ele já tenha merecido algumas outras vezes.
Eles passaram por mim no caminho para dentro de casa, mas eu não levantei meu olhar. Muito pelo contrário, fiquei congelada no meu lugar, ainda mais sem ideia do que fazer. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde teria que reagir, porém nada me tirava da cabeça que minha família inteira estava ali e todos haviam presenciado aquela cena desastrosa causada por ele, meu namorado, um verdadeiro babaca que parecia não conseguir parar para pensar por um segundo sequer.
— Pelo menos não foi você que fez algo ruim dessa vez... – minha prima comentou ao meu lado e eu dei de ombros.
Aquilo me parecia muito pior. Isso porque eu sabia como tomar responsabilidade pelos meus atos. Se eu fazia alguma idiotice, me obrigava a lidar com ela porque é assim que o mundo gira. Agora, eu não fazia ideia de como lidar com as do , especialmente quando ele decidia envolver minha família daquela maneira.
Não fiquei para ouvir todas as opiniões sobre o acontecimento. A maioria daquelas pessoas o conheciam por sermos tão próximos, mas nenhuma delas havia visto aquele lado dele. O lado do namorado ciumento e sem noção. Se eu mesma abominava essa parte, podia imaginar o que eles estavam pensando dele no momento, ainda mais depois de se achar no direito de chegar na casa dos meus avós e pular em cima de alguém da família.
Minha mãe foi comigo até o andar de cima e esperamos no lado de fora da porta do nosso quarto. Ela parecia muito preocupada, por isso eu sabia que se esforçava muito para ficar em silêncio. Era ruim o suficiente que meu pai tivesse sido obrigado a se envolver, ela não precisava piorar a situação.
Quando a porta abriu, meu pai foi o único a sair, bufando de raiva. Ele parou na minha frente, sério de uma maneira que eu havia visto pouquíssimas vezes.
— Ele não se machucou, está bem.
— Que pena. – eu disse, rancorosa.
— Será que dá para vocês terem aquela conversa agora?
Apenas com aquela pergunta eu soube que ele estava me dando um sermão pela minha “frescura” que nos levou até o momento presente.
Ele não precisou dizer duas vezes, rapidamente eu entrei no quarto, batendo a porta atrás de mim. Agora ele ia ouvir! Ia ouvir não só pela estupidez dele, mas pela minha e pela bronca que eu levaria mais tarde depois de vários dias de completa paz.
— ONDE VOCÊ TAVA COM A CABEÇA?? – eu gritei antes mesmo de localizá-lo dentro do cômodo. As paredes daquela casa eram extremamente finas, eu sabia bem, mas ignorei por completo. Não é como se eles já não tivessem visto muita coisa... – PASSOU A NOITE INTEIRA ME CULPANDO POR NÃO ESTAR AGINDO CORRETAMENTE E AÍ TEM A CORAGEM DE VIR ATÉ A CASA DA MINHA FAMÍLIA ATACAR O MEU PRIMO? QUAL É O SEU PROBLEMA?
Ele levantou um pouco o rosto que escondia com as mãos, sentado na beirada da cama dos meus pais. Toda a adrenalina que havia alimentado pelas últimas horas com raiva e paranoias parecia ter finalmente ido embora, dando lugar a culpa por, de repente, estar em São Francisco, a horas de distância de sua casa, cercado por uma família inteira que agora o odiava. E não qualquer família, a , aquela que ele sonhava em um dia poder chamar de sua também. Com exceção de Kyle.
— Eu não sei o que eu estava pensando, ... – disse baixo, balançando a cabeça. Nem ele parecia acreditar na merda que havia feito.
— Você ultrapassou uma linha que... Porra, eu nem consigo acreditar! Que direito doentio que você acha que tem sobre mim para fazer algo assim?!
— Nenhum, eu não tenho direito nenhum, só fiquei desesperado. Eu não sabia o que mais podia fazer, para onde ir, então eu só... vim.
Eu suspirei, balançando a cabeça. Gritar com ele não estava ajudando e esse era um sinal muito ruim. Se eu não podia extravasar minha raiva dessa maneira, o que faria então?
— Meu Deus!!! – exclamei, tampando meu rosto com um travesseiro, como se aquilo fosse me ajudar de alguma maneira. Não rolou. – Eu não consigo nem olhar na sua cara, você tem noção do que é isso? Pela primeira vez em dias longe, você me fez desejar que permanecesse assim mesmo, longe!
Ele balançou a cabeça, parecendo particularmente ofendido com as minhas palavras, diferente de segundos antes, quando ele ainda concordava comigo em relação a merda que fez.
— Não vamos agir como se eu fosse o único a fazer besteira, tá bom? Nada disso teria acontecido se você tivesse simplesmente ligado a droga do celular! Eu sou seu namorado, mereço satisfação!
A última frase embrulhou meu estômago. Ele era, sim, meu namorado. Porém, por alguns segundos, aquele pensamento me aterrorizou e perceber isso mais ainda, se é que aquilo era possível.
— Por favor! Você não merece porra nenhuma. Se eu te dou alguma satisfação, é porque eu quero, entendeu? Você não manda na minha vida, não tem dizer no que eu deixo de fazer ou não, em com quem eu ando ou não.
— Tudo bem, , mil desculpas!! – ele se exaltou, levantando da cama. – Por que estamos namorando há quase dois anos então? Se você é tão livre, se tá pouco se fodendo para o que eu penso, ahn?
— EU NÃO SEI! – explodi também, sem nem mesmo saber se eu estava chorando ou não. Eu definitivamente me sentia muito mal. Como se houvesse algo de errado com o meu corpo, comigo, com ele, com o mundo... – É honestidade que você quer? Nesse momento eu não consigo nem me lembrar do porque estamos juntos há tanto tempo. Não consigo, .
Ele ficou parado, sentindo minhas palavras atingi-lo como repetidos socos. Eu sabia o quanto elas doíam... Dizer também não havia sido exatamente gostoso.
— Você não pode dizer algo assim... – ele sussurrou, magoado. – Eu sei que está com raiva, mas não pode dizer algo assim, nunca.
— Dói, não é? Talvez doa tanto quanto ouvir... Ou melhor, não ouvir que você não confia em mim... Depois de quase dois anos, já que você quer frisar isso.
Ele se aproximou, com um pouco de preocupação tomando espaço em sua expressão.
— Eu não quis dizer que...
— Quer saber? – o interrompi, também parando seu corpo antes que ele tentasse me abraçar. – Eu não tô afim de ouvir suas explicações agora. Na verdade, eu tô dividida entre te mandar embora e me preocupar com você dirigindo nesse estado.
— Eu não vou embora até você me ouvir.
Suspirei, dando alguns passos para trás. Eu sabia que na sua cabeça aquela era uma maneira de não repetir o mesmo erro: falta de comunicação. Na minha, no entanto, era ele me sufocando, tirando todo o meu espaço... Mais uma vez.
— Tudo bem. Eu saio.
estava longe de ser uma boa motorista, mas o carro do meu pai era tudo que eu tinha para ir o mais longe que eu conseguia dele. Ele me seguiu, dando a minha família mais um show para guardar na memória daquelas férias, porém, assim que eu fechei a porta do automóvel comigo dentro, ele não pôde chegar até mim.
Pelo menos eu descobri que me seguir cidade adentro era um limite que ele não ultrapassava. Bom, não por enquanto. Eu costumava pensar o mesmo sobre tudo que havia acabado de acontecer.
Eu estava feliz. Tanto que, naquele exato momento, nada mais existia no mundo, só eu, meus pais, e os pais dele, todos tentando comer apesar de toda a empolgação para falar. Falávamos sobre as nossas vidas, o mundo e tudo o que tinha de engraçado sobre ele, as ideias mirabolantes dos nossos pais (porque nós definitivamente tínhamos a quem puxar nesse quesito) e o passado. Um jantar da família e da família não estaria realmente completo até que tivéssemos discutidos algumas das maiores burrices que e eu tínhamos feito durante a infância e adolescência, por exemplo:
— Por que vocês pensaram que seria uma boa ideia colocar fogo ao lado de um caminhão cheio de álcool? – meu pai perguntou. Balancei os ombros.
— Eu lá sei. Talvez eu quisesse explodir o .
— Rá, rá!
Digamos que fazer coisas idiotas não era um hábito que adquirimos recentemente.
Dessa vez, nossa refeição não acabou em uma bronca que me faria sentir com dez anos de idade novamente, mas sim com uma louça gigantesca que quase me fez esquecer de que o jantar havia sido uma surpresa para mim. Felizmente, não esqueceu e tomou para si a tarefa de secar, me deixando com o trabalho na água, sempre muito mais divertido. Há muitos anos, essa briga pela divisão era rotina entre a gente até que desenvolvemos um sistema de variação. No final, nós dois acabávamos perdendo porque ainda havia uma louça para ser lavada, mas perdíamos juntos.
Nós não falamos muito e tínhamos ali tudo que era necessário para um silêncio desconfortável, porém passou longe disso. Acho que nós dois tínhamos muito a dizer e pouca coragem para isso, como se o tempo todo sentíssemos essa nuvem negra nos cercando, pronta para voltar a pairar sobre as nossas cabeças no mais simples deslize.
Eu me diverti tanto nas últimas duas horas que não vi o tempo passar e devia isso a ele. Eu poderia – e devia, segundo meus pais – visita-los a qualquer momento, mas no meio de tanta coisa eu acabei me afastando, não querendo levar para a minha verdadeira casa, meu verdadeiro lar, toda aquela bagagem. Não havia passado pela minha cabeça que, apesar de todos os apesares, aquele era justamente o lugar ideal para clarear a minha mente e tirar um pouco do peso das minhas costas. Pensei que não seria uma ideia ruim trazer a Katy e as meninas até a minha casa um dia desses. Com exceção da , levaria um tempo para que elas compreendessem bem o ritmo daqui, mas assim que o fizessem, era diversão na certa.
Ri rapidamente, pensando na possibilidade. Especialmente porque eu morava com garotas de personalidades muito distintas e adicionar a dinâmica dos meus pais à elas me parecia no mínimo interessante.
— O que foi? – questionou.
Balancei a cabeça, sorrindo.
— Nada demais. Só estava pensando que seria legal trazer as meninas para conhecer meus pais um dia.
Ele assentiu e sorriu, me fazendo pensar que era realmente uma boa ideia.
Logo toda a louça estava lavada, seca e de volta nos armários, o suficiente para deixar meus pais, que batiam papo com os do na sala, muito orgulhosos.
— Escuta... – o encarei, esperando que ele fosse me falar algo que deixaria nós dois desconfortáveis, mas ele hesitou. – Quer sair um pouco daqui?
— Claro.
O meu tom passava mais certeza do que eu realmente sentia, mas não estava mentindo. Aquele ainda era meio que um encontro, certo? Era justo que passássemos um tempo sozinhos. Eu havia topado estar ali justamente por pensar que aquela havia sido a ideia o tempo todo. Estar com ele – pacificamente falando – ainda era novo e assustador, mas os últimos momentos que tivemos juntos me provavam que as nossas conversas eram ótimas, mesmo que algum tempo tivesse se passado.
Além do mais, aquela poderia ser a minha chance de agradecer de verdade a ele por aquela noite. Porque apesar de todas as risadas, o tempo todo eu tive uma pulguinha atrás da minha orelha me lembrando de que eu não havia sido muito justa. Ele merecia. Eu não perdia a oportunidade de lhe dar o que ele merecia quando isso significava vingança, mas ficava toda doída na hora de fazer um agradecimento decente? Era inacreditável até para mim mesma, a culpada da história.
Ele acabou me levando para a nossa casa na árvore, já não tão firme quanto antigamente, ainda mais com dois brutamontes como nós. havia crescido tanto que teve que se espremer para passar pela entrada. Por fim, conseguimos nos ajeitar um ao lado do outro, mas em paredes opostas para que conseguíssemos nos ver. Toda luz que chegava até ali era um resquício da iluminação da rua e a lua cheia e brilhante do lado de fora. Ainda que não fosse exatamente confortável, aquele lugar era uma das poucas lembranças real e completamente boas que eu tinha do nosso relacionamento.
Ele não demorou muito para voltar a falar, agora claramente mais relaxado.
— Você gosta muito daquelas meninas, não é? – perguntou. De início, eu fiquei confusa até entender que ele estava resgatando a nossa última conversa.
— Gosto... Por que?
Ele balançou os ombros.
— Nada demais, eu só acho legal como você abraçou a causa delas... E sua também, de certa maneira. Não tô surpreso, você sempre teve essa garra, mas com elas parece diferente, parece que existe um apego maior.
Pensei no que ele disse por alguns segundos. Eu nunca havia olhado para o que estava fazendo daquele ponto de vista. Raramente sequer pensava no quanto eu havia me apegado a nossa casa e todas aquelas garotas.
— Acho que existe mesmo. – concordei. – Mas, para ser sincera, eu não penso muito nisso. Tomar a dor da Katy e de tantas outras garotas foi algo meio automático, sabe? Em nenhum momento, eu quis ir em outra direção porque essa em que estamos agora me parecia a única. Bem assustadora, mas estamos aí.
— Eu gosto de pensar que sou um pouco responsável pelo seu encaixe na Kappa Kappa Gamma. – ele disse, erguendo os ombros, todo orgulhoso.
— Por que?! – questionei, rindo. Não era uma risada de concordância, muito ao contrário.
— Precisa perguntar? Eu te deixei tão brava aquele dia com o papo de você não ser o tipo de garota que se torna uma Kappa que você foi para a semana de iniciação com sangue nos olhos! Admite! Eu tenho um pouco de culpa nesse cartório sim.
Suspirei porque ele estava certo. Se não fosse aquela curta conversa no estacionamento do McDonalds, eu só teria ido para marcar presença. No máximo, daria uma força para a April, mas cairia fora assim que tivesse certeza de que ela estava dentro – o que, se me lembro bem, não demorou muito. Apesar de toda a timidez, o carisma da garota é inegável –.
— Ah... Talvez... Ok! Você deu certa força sim, mas só porque eu funciono a base do ódio e o meu ódio por você foi um combustível e tanto nos últimos meses.
— Nossa! Assim você me toca. – disse, juntando as mãos no peito em um teatrinho ruim.
— Tô aqui pra isso! – ri rapidamente e então apoiei a cabeça na parede atrás de mim, observando o céu através da pequena janela que costumava fechar, mas havia sido completamente destruída pelos pequenos demônios no bairro. Você talvez os chame de crianças. – É até estranho lembrar. Eu tinha uma ideia estranha do que significava estar em uma irmandade. E todas as histórias que eu cresci ouvindo não me faziam querer muito também.
— Acho que as coisas mudaram muito desde o tempo em que sua mãe esteve na universidade. – ele falou tranquilamente, mas arregalou os olhos assim que fechou a boca. – Não que ela seja velha! Droga! Você acha que ela tem alguma escuta aqui?
Dei de ombros. Eu não desconsiderava a ideia.
— Se tem ou não, agora já foi. Termina de falar e espera o resultado.
— Só ia dizer que eu até gostava das histórias estranhas da sua mãe e da sua avó. – semicerrei os olhos em sua direção, desconfiada. – É sério! Você achava que eu estava rindo da sua cara de tédio, mas eu estava secretamente rindo delas.
— Então você tem mentido para mim esse tempo todo? – perguntei e ele deu uma leve encolhida nos ombros.
— Tecnicamente, eu nunca menti. Se me lembro bem, eu só ficava quieto enquanto te ouvia reclamar por horas do quanto odiava a lavagem cerebral que elas tentavam fazer em você. – respondeu e eu balancei a cabeça, meio bolada.
— Ué! E por que nunca falou nada?
— Você se conhece? – ergueu as sobrancelhas para o meu lado, todo corajoso de repente. – , se eu falasse algo, você iria tagarelar por horas sobre como eu estava sendo tão maluco quanto elas.
— Ei! Isso não é... – mas era. – Mentira. Bom, você também não era a pessoa mais aberta a opiniões do universo, se me lembro bem. E eu me lembro muito bem, .
Ele sorriu, despreocupado.
— Eu nunca disse que eu era.
Franzi o cenho, irritada com a capacidade dele de me tirar do sério sem mover um dedinho sequer.
— Sabe o que nunca muda, independente de estarmos brigados ou tentando fazer as pazes? A minha irritação quando você fica bancando o sr. Bonzinho, sr. Justiça para o ataque! – disse, tendo todo o trabalho de atuar na última frase.
— Já parou para pensar que esse talvez seja um problema com você e não comigo? Eu faço escolhas erradas, , não significa que sou uma pessoa tão ruim assim. Até porque se essa fosse a regra, você cairia comigo em dois segundos. – ele se justificou.
Ainda que eu concordasse um pouco com a última parte simplesmente porque... Dã! Era óbvio, eu respondi:
— Não... Eu tenho certeza que o problema é você.
Em silêncio, nós refletimos sobre aquela conclusão por poucos segundos até acabarmos rindo de toda a situação juntos. Não porque a discussão era tão boba – apesar de ser, sim –, mas porque nós tivemos discussões como aquela durante a nossa vida inteira e elas eram apenas isso: briguinhas bobas, sem muita maldade, só para encher o saco um do outro e o melhor, elas realmente terminavam quando acabavam, se é que isso faz sentido. É diferente daquelas farpas constantes que trocamos recentemente porque ali ninguém queria machucar ninguém. Eu não podia falar por ele, mas durante cada conflito que tivemos naquela universidade eu tinha comigo que se não fosse para incomodar, eu nem falava.
Era algo tão pequeno, porém eu não conseguia colocar em palavras o quão confortável me deixava. Era como aquela sensação estranha, mas gostosa, de voltar para casa depois de uma longa viagem e ver que tudo está do jeito que você deixou. Um pouco empoeirado, no entanto, não é nada que um pouco de trabalho não possa concertar.
Eu estava sendo um pouco aleatória, mas pensei que não haveria momento melhor do que aquele para verbalizar o que eu precisava.
— Escuta... Eu não acho que eu tenha dado o agradecimento que você merece por esta noite. Eu quase não apareci e mesmo em cima da hora, você se certificou de juntar os nossos pais para isso, então muito obrigada. Muita coisa mudou entre a gente, nós mesmos mudamos muito, e ainda assim você acertou em cheio me trazendo aqui exatamente nesse momento, quando eu precisava deles mais do que pensava precisar.
— ... – ele começou a dizer quando eu fiz uma pequena pausa.
— Só um minutinho! – o interrompi. – Nós dois sabemos que eu não tenho muitos desses momentos. Eu também tenho que te agradecer por todas as conversas que tivemos desde aquele confinamento forçado porque todas elas me ajudaram de alguma maneira, você deve ter um dom de oratória ou algo assim. – ele riu, balançando a cabeça. – É sério! Bom... No geral, eu só preciso dizer obrigada pela paciência. Eu fiz tanta besteira nos últimos meses, levei a minha personalidade que por si só já é difícil a um nível extremo só porque era mais fácil que admitir que, na verdade, eu sentia a sua falta. É por isso que estou aqui hoje, para passar um tempinho com você e relembrar nós, e você me deu muito mais que isso. Obrigada.
Eu sabia que minhas palavras teriam um significado muito maior se eu fosse mulher o suficiente para olhar nos olhos dele, porém essa era uma exigência que eu ainda não conseguia cumprir, não enquanto me abria daquela maneira e, mais ainda, se tratando daqueles olhos.
Ele esperou um tempinho – que quase me matou – para responder, provavelmente não querendo ser interrompido novamente pela minha pessoa.
— Sabe o que me incomoda? – ele perguntou e eu neguei com a cabeça, um pouco confusa por ele ter começado justamente com aquela frase. – Você diz o tempo todo que “precisa” ou “tem que” me agradecer e eu não quero que pense assim. Não sei você, mas eu, , estou tentando ver esse tempo separados como apenas uma pausa no meio do caminho. Eu faço e digo essas coisas porque quero te ver bem, não preciso que você me agradeça por cada coisinha. Você estar aqui comigo já me mostra isso, entendeu? Nunca fomos assim, não precisamos começar agora.
Suspirei, abraçando minhas pernas e apoiando o meu queixo ali. Com ele falando, aquilo parecia fácil, mas eu sabia que não era.
— Você tá pedindo que as coisas voltem a ser exatamente como eram antes. – eu afirmei e ele assentiu. – Você sabe que eu não consigo fazer isso.
— Não quero que seja em todos os sentidos, . Quer dizer... Na verdade, eu queria sim porque se fosse assim, conversar definitivamente não seria o que nós viríamos aqui para fazer. – eu ri com a ideia, balançando a cabeça. Não soava nem um pouco ruim, porém não passaríamos por aquele cenário tão cedo, o que não significa nunca. Pelo menos, esse era o plano. – Tudo bem, eu já entendi que não posso ter tudo, sou um cara grandinho, enfim... Isso não nos impede de manter a melhor parte: a cumplicidade, a confiança. Eu sei que é meio idiota da minha parte te pedir confiança depois de tudo, mas podemos ir criando um caminho em direção a isso, não?
Respirei fundo, encarando seus olhos pidões. Dizer não para um cachorro pedindo comida seria mais fácil do que dizer para ele.
Desencostei minhas costas da parede, me inclinando para que estivéssemos um pouco mais próximos.
— Você sabe que eu não gosto de ficar fazendo promessas que não sei se posso cumprir. – ele assentiu. – Por isso, eu não vou. Mas eu prometo tentar derrubar essa distância entre a gente. Ouviu o tentar? É tentar! Conseguir são outros quinhentos, até porque eu passei mais de um ano reforçando ela e você sabe que eu sou uma pessoa bem forte.
— Eu sei. – ele sorriu. – Não se preocupe, é o suficiente para mim. Obrigado.
— De nada! – eu disse, orgulhosa de mim mesma, afinal de contas, aquela havia sido uma conversa muito produtiva e quem deu o pontapé inicial foi eu. A maioria das coisas que eu começava terminavam em desastre. Agora, eu podia me divertir. – Promessas feitas, agora vamos voltar atrás. O que a gente estaria fazendo? – perguntei, ainda inclinada para frente com o queixo apoiado nas mãos. Esperava que a resposta fosse boa.
As bochechas dele ficaram levemente vermelhas assim que eu perguntei. Não fazia sentido para mim, já que ele havia trazido o assunto à tona, porém aquele era e era melhor eu começar a me acostumar novamente com isso.
— Acho que eu devia estar surpreso por você focar justamente nisso de todas as coisas importantes que eu falei, mas não chego nem perto.
— Ei, eu prestei atenção! Até me dei o trabalho de perguntar depois. Isso é a sua maneira de fugir do assunto? Porque foi você quem começou.
Ele revirou os olhos. não era exatamente tímido, podia falar abertamente sobre sexo e afins, no entanto, ele odiava ser encurralado.
— Não, , eu não quero fugir do assunto. – respondeu. – Eu só reconheço quando você quer se divertir às minhas custas.
— Como eu faria isso? É uma pergunta bem simples, oras.
— Quer saber mesmo? Vamos começar comigo contando o que se passava na minha cabeça, então você finge entrar no clima, me provoca de todas as maneiras que pode e sabem que trazem muitos efeitos e aí simplesmente se retira, me jogando um puta balde de água fria. Tá bom para você?
Eu ria porque aquilo soava semelhante demais com algo que eu não apenas faria como já tinha feito. Na maioria das vezes, a vítima era o rapaz na minha frente. Tá aí um trauma que eu nunca pensei que tivesse dado a ele.
— Se te faz sentir melhor, com você eu nunca precisei fingir nada. – eu disse sorrindo e o queixo dele deu uma leve caída, surpreso.
Aproveitei a deixa para realmente me retirar nesse momento, passando pela portinha de entrada com uma facilidade que eu sabia que ele não teria. Quando cheguei lá embaixo, um “psiu” chamou minha intenção e, ainda lá em cima, ele tinha apenas a cabeça para fora.
— Mesmo no dia do desfile? – ele perguntou e eu franzi o cenho, totalmente confusa.
— Que desfile, garoto?
revirou os olhos para a minha lerdeza.
— O meu desfile, .
Na mesma hora, me veio a doce lembrança dele passando nu pelo meio de uma multidão de pessoas e eu voltei a rir. Meses depois, a cena ainda aquecia o meu coração. Todos os beijos e toques que trocamos poucos minutos antes também me aqueciam, mas de uma maneira completamente diferente.
— Sim, , mesmo no dia do seu desfile nu. Te vejo amanhã. – falei antes de sair correndo para a minha casinha, onde eu passaria a noite.
Nós havíamos combinado mais cedo de dormir ali mesmo e voltar para a universidade no dia seguinte. Eu não queria que o momento de ir chegasse tão cedo, porém tínhamos coisas a resolver lá, em especial várias provas para a qual deveríamos estar estudando durante todo esse tempo em que paramos para conversar. De qualquer maneira, eu não me arrependia porque por mais improvável (ainda que quase óbvio pois éramos melhores amigos), os curtos momentos que vínhamos tendo juntos estavam me fazendo bem. Não abriria mão daquilo... A não ser que ele me obrigasse, de novo.
Dona Claire, seu Johnatan e eu ficamos até a madrugada jogando uma boa variedade de jogos do meu pai. Aquilo por si só já era uma grande vitória para a garotinha dentro de mim que cresceu sem poder relar na coleção dele porque eu provavelmente estragaria tudo. Ele estava certo, eu não era uma criança muito cuidadosa. Na verdade, o meu brinquedo que durou mais tempo teve pouco mais de seis meses de vida, um ursinho de pelúcia chamado Bear. O motivo é simples: destruir um urso de pelúcia não é tão simples quanto filmes fazem parecer, eles são bem resistentes a puxões e arremessos.
Sendo assim, acordamos tão tarde que nosso despertador foi tocando a campainha, pronto para voltar. Como meus pais não têm nada de bobos, eles rapidamente o arrastaram para ao menos tomar um café da manhã com a gente e, mesmo que ele insistisse que já havia comido, foi obrigado a comer de novo.
Só fui liberada para ir embora – ainda que com muitas relutâncias – quando estava de barriga cheia e com a promessa de que eu não demoraria para voltar dessa vez. Eu tinha a intenção de cumprir, mas as vezes a vida vinha me dar uns tapas na cara e aí não havia muito o que fazer.
Como eu esperava que viesse a se tornar um costume, eu pedi para o não me deixar na frente da minha casa e sim em uma esquina afastada, quase chegando na dele. Eu havia tirado um tempinho para pensar na noite anterior e decidi que, mesmo que tudo parecesse ir perfeitamente bem, eu não gostaria de espalhar por aí, nem para os meus melhores amigos. De certa maneira, eu sentia que enquanto essa reaproximação ficasse entre a gente, as coisas ficariam bens. Eu só precisava me certificar de que ele estava na mesma página que eu.
— Então... Você deve estar se perguntando porque eu não quero que vejam a gente. – eu afirmei assim que desci da moto e tirei o capacete, o entregando de volta a ele.
— Mais ou menos. Na verdade, isso é o que eu estou com medo de perguntar. – respondeu hesitante e eu sorri levemente, na tentativa de garanti-lo de que não era nada demais.
— Não se preocupe. Eu só quero pedir que isso que estamos fazendo fique entre nós dois por enquanto. É algo delicado para mim e eu quero me certificar de dar os passos certos antes de sair por aí como seja-lá-o-que-isso-vai-virar. – ele tentou segurar, mas eu vi escapar um pequeno sorriso quando eu disse isso, apenas porque significava que eu estava mais aberta para ele. – Não é que eu quero te esconder nem nada. Você sabe como eu adorava te exibir por aí, não sabe? É só para a gente se resolver primeiro antes de termos que nos preocupar em nos resolver para os outros também.
Ele assentiu, parecendo feliz com a ideia.
— Seu pedido é uma ordem, madame! Tá tudo bem, . Vamos fazer isso funcionar, depois a gente dá atenção para o mundo exterior.
— Obrigada.
E então eu me aproximei para abraça-lo, dessa vez não por que eu havia acabado de ter um surto de choro ou por que era o que eu tinha que fazer, mas apenas porque eu queria. Nem ele estava pronto para aquilo, pois congelou por um tempo, só o suficiente para eu notar, antes de passar seus braços ao redor do meu corpo.
Depois disso, eu voltei para a minha segunda casa até mais leve. O clima era o mesmo de quando eu havia saído: desânimo pelo fracasso completo da reunião, mas nem isso tirou o cantinho de paz que eu tinha no coração. Sabia que não podia deixar minhas outras preocupações de lado e eu definitivamente não faria isso mais uma vez, no entanto, achei que eu merecia curtir essa folga curtinha.
Criei vergonha na cara e tirei aquele sábado para estudar. Eu nunca havia sido a melhor aluna da turma, mas gostava de manter minhas notas altas e não queria diminuir o meu padrão agora que havia entrado para a universidade dos meus sonhos, que tem se mostrado não tão querida quanto eu pensava ser.
Felizmente, o resto da casa estava no mesmo estado de concentração que eu, então era consideravelmente mais fácil passar o dia com a cara nos livros. Em dias normais, eu tinha garotas jogando vídeo game ou vôlei na piscina, conversas pelos corredores que pareciam mais interessantes do que realmente eram etc.
No final da noite, quando a maior parte das garotas já estava dormindo por causa do dia seguinte de aula e provas, eu fui expulsa do meu quarto para que a Mina e a pudessem fazer o mesmo. Tinha a teoria de que elas só queriam se pegar, porém não fiquei ali para confirmar.
Graças a minha aventura de jogos na noite passada e, consequentemente, o horário que acordei, eu não tinha um pingo de sono, então carreguei meus livros e cadernos comigo escadas abaixo até a sala de estar. Eu não tinha sustos de coragem para estudar durante horas seguidas com muita frequência, precisava aproveitar as oportunidades que a vida me dava. A minha surpresinha foi encontrar a Ashley lá também, provavelmente a única pessoa além de mim com energia para viver naquela casa no momento.
Apesar de ser tarde, ela gravava um vídeo para o seu canal. Na falta de luz natural, tinha três artificiais em cima de si que me fizeram questionar como é que ela não estava derretendo de calor. Me sentei em um canto afastado no chão mesmo, assim podia jogar toda minha bagunça em cima de uma mesinha de centro. Ainda a ouvia porque, dã, estávamos no mesmo cômodo, mas não me importei muito. Eu preferia o som de vozes – de pessoas físicas, não do além – do que silêncio total, ainda que fosse a voz estridente dela.
Ri rapidamente e baixinho desse pensamento, só então me lembrando de que ela não era a minha pessoa preferida nessa casa. No meio de assuntos sérios, a gente acabava esquecendo de futilidades como aquela. E dessa vez, quando eu falava “futilidade”, queria dizer a rixa em si e não a própria Ashley. Nós vínhamos nos ignorando há algum tempo, até porque sua inimiga mortal era a Mina e não eu, que só comprei uma briga que nunca foi minha. Elas ainda trocavam farpas sempre que podiam e eventualmente nós, calouras, aprendemos a ignorar da mesma maneira que as veteranas vem fazendo há um tempo. Desejei que um dia as duas encontrassem uma maneira de começar a tentar se entender, assim como e eu fizemos. Bom, assim como o fez, já que eu não estava exatamente querendo paz. Agora, com tudo mais calmo, a ideia de sentir a necessidade de atacar constantemente alguém era cansativa. Muito divertida, mas algo que eu gostaria de fazer com moderação.
Tentei deixar a gravação dela de lado e focar nos números a minha frente, porém a apresentação dela chamava mais a minha atenção do que eles. Depois de tanto tempo fazendo aquilo, ela era muito boa e natural. O problema da Ashley era ter grande consciência disso e fazer questão que o resto do mundo tenha também.
— Agora que os avisos estão dados, podemos ir para o interessa: nosso quadro mensal sobre a minha vida aqui na Kappa House. – algumas garotas ali usavam essa expressão para se referir a nossa casa, mas essa era uma cafonice que eu nunca adquiri. – Eu sei que muitas de vocês sonham com essa vida aqui, mas eu tenho que dizer: nem tudo são flores. São quase onze horas da noite e eu estou gravando esse vídeo porque as coisas não estão fáceis ultimamente. Todas nós gostaríamos de viver apenas da nossa irmandade, seus projetos e eventos, mas a UCLA ainda está batendo na nossa porta todos os dias. – por um tempinho, eu fiquei esperando que ela falasse sobre o estupro. Não sabia qual seria minha reação se ela o fizesse porque a Katy não havia permitido aquilo, não através da Internet. Eu estava tão zen que até a ideia de brigar por algo do tipo não me atraía. – As nossas provas estão começando novamente e se você está aqui há bastante tempo, sabe que essa época não é fácil. Para quem quer saber como é esse período aqui na UCLA, vai nesse link que ele te leva direto para um vídeo que eu fiz ano passado sobre o assunto.
Ela ficou quieta depois disso. Imaginei que tivesse errado alguma coisa e estivesse parada para pensar no que mudar, mas quando tirei os olhos do meu caderno, em que eu fingia prestar atenção, ela estava simplesmente parada, ainda encarando a câmera a sua frente. Esperei alguns segundos, curiosa e preocupada em não interromper sua linha de pensamento até que a cena começou a me deixar aflita.
— Tudo bem aí?
Ela se virou para mim, mas continuava com um ponto de interrogação na cara, como se algo estivesse errado.
— Eu acho que tive uma ideia. – murmurou, parecendo estar mais em seu mundo do que naquele que nós dividíamos.
— Para o seu canal? – perguntei. Era meio óbvio, mas por que não, né?
— Não... Quer dizer, sim. Mais ou menos.
Agora a interrogação estava na minha cara. Cheguei a considerar a ideia dela ter sido abduzida enquanto eu não olhava porque aquela Ashley era uma Ashley muito estranha.
Eu esperei que ela explicasse o que diabos estava fazendo ou pensando, mas a minha resposta demorou a vir. Ela continuou parada, pensando em algo que eu não fazia ideia, porém agora eu queria muito saber.
— Você pretende dividir a sua ideia ou só falou para me deixar curiosa? – questionei finalmente, cansada de tentar adivinhar a charada. Ela me olhou, mas sua mente ainda parecia estar bem longe.
— Talvez seja uma ideia estúpida, mas é melhor que o nada que temos até esse momento. E se a gente levar o que aconteceu com a Katy a público?
— Ahn... Nós já fizemos isso. Toda a universidade sabe, já saiu até na imprensa.
Quando eu dizia imprensa, dizia dois ou três jornais locais que fizeram algumas notas sobre a prisão de Scott Murray, nada espetacular. Apesar disso, tentávamos dar valor porque ao menos haviam falado algo, diferente de todos os outros jornais e programas presentes naquela cidade.
Ashley não gostou da minha resposta. Revirou os olhos, como se minha fala fosse extremamente burra. Eu poderia ter começado uma discussão ali mesmo, mas não queria acabar com o acordo de paz que havia feito comigo mesma.
— Ao público da internet! Não tem lugar melhor! É ali onde tudo viraliza, só temos que fazer isso da maneira certa, chamar atenção para a nossa causa.
Eu pensei na ideia por um momento, meio confusa em como aquilo funcionaria. Em momentos como esse, eu me sentia velha por não ser a jovem mais antenada nas novidades do mundo.
— Eu não sei... Não é muita exposição? – questionei, porém ela se apressou para negar.
— Não! – parou por um momento. – Na verdade, é sim, mas isso não é ruim. Scott Murray é um cara que tem nome e fãs no país inteiro, o único jeito de conseguir um real avanço é arrastando mais pessoas para nos ajudar a fazer pressão. E enquanto isso, nós podemos focar em outra coisa aqui, na universidade.
— Outra coisa tipo?
— Ah, eu não sei, não pensei nisso ainda. O mais importante nesse primeiro momento seria chamar a atenção da Internet para o que tem acontecido aqui dentro, não só da nossa casa, mas de todo campus, todo o nosso sistema universitário.
Por um momento, ela soou como se estivesse pronta para fazer uma revolução, o que nós sabíamos que era infinitamente mais fácil na teoria do que na prática. No entanto, aquela era a melhor e mais original ideia que alguém ali teve durante todo esse tempo, então não poderíamos simplesmente jogá-la pela janela.
— Tá bom... E como você espera que façamos isso? A Internet é um lugar bem grande...
Mais uma vez, ela me olhou como se eu fosse burra, pois a resposta estava bem na minha frente.
— , você está olhando para uma garota que tem um canal com mais de trezentos mil inscritos. – ela afirmou, nem tentando mostrar humildade.
— Não eram duzentos mil?
— Por favor! Eu estou em constante crescimento.
Eu quis rir, mas estava muito surpresa para isso. Ashley estava oferecendo seu próprio canal, aquele que cuidava com todo o carinho – e obsessão – do mundo, para trazer à tona um assunto que seu público poderia não gostar tanto assim, afinal de contas, a ideia era expor um dos melhores jogadores da temporada dos jogos universitários. Era estranho e impressionante, apesar dessa opinião vir de uma pessoa que nunca tinha de fato tirado tempo para conhecer a fundo aquela garota.
— Eu gosto da ideia, gosto bastante! Porém você sabe que não podemos dar um passinho sequer sem a aprovação da Nikki e, principalmente, da Katy, né? – perguntei e ela assentiu rapidamente.
— Eu sei, foi só uma ideia relâmpago. Posso conversar com as meninas e até pensar em algumas formas de aperfeiçoar tudo, também posso ver com elas o que faríamos aqui, como Kappa Kappa Gamma.
— Talvez eu possa ajudar nisso... – disse, sorrindo.
Me parecia uma ideia muito boa.
Ou não.
— Você quer criar uma campanha?! – Nikki exclamou assim que eu verbalizei o que poderíamos fazer no dia seguinte, após o almoço.
— Basicamente, sim. Uma campanha para que liberem bebidas nas irmandades também, assim como em todas fraternidades desse campus. – expliquei, mas ela, e Katy ainda me encaravam como se eu tivesse acabado de anunciar que assassinei um filhote de gato. Ashley estava ao lado, apenas prestando atenção.
— E que ligação isso tem com o que a Ashley quer fazer? – Katy perguntou.
— Não é óbvio? Você mesma disse no nosso primeiro dia aqui que o fato da gente não ter essa permissão nos torna vulneráveis, tendo que ir atrás de fraternidades para festas com bebidas. – disse, apontando para a Nikki. – Se estamos dando um passo enorme levando toda essa história para a internet, por que não começar do mais básico aqui? Seria a nossa maneira de cobrar algo da universidade, já que o mais importante eles não deram.
Elas tiraram um tempinho para pensar, trocando algumas ideias entre si e nós aguardamos. No fundo, eu já preparava alguns argumentos novos caso elas viessem a recusar a minha proposta, apesar de eu torcer para que não fizessem isso.
— Eu não sei, ... A última vez que fizemos algo parecido não terminou tão bem assim. – Nikki murmurou, hesitante.
— Pensem bem! – Ashley começou a argumentar também. – Lembrem que da última vez nós não tínhamos um caso como esse para dar suporte a causa. Além disso, enquanto trabalhamos na liberação aqui, fazemos denúncias online. Eu tô disponibilizando meu canal para o que quer que vocês achem que vai ajudar a colocar o cara na cadeia definitivamente.
— Meninas, eu entendo que vocês estejam muito animadas com essa ideia, mas não é tão simples. – Nikki continuou. – O que você acha, Katy?
Ela suspirou antes de responder e então deu de ombros.
— Sinceramente, eu queria não ter que chegar a esse ponto, mas não acho que as coisas possam ficar piores do que já estão no momento. Eu não sei mais o que fazer, então por que não? Se pensarmos bem e se tudo der certo, estaremos ajudando pelo menos um pouquinho as próximas garotas que entrarão nessa universidade. Eu sei que irmandades já foram punidas severamente por esse tipo de coisa, entendo que você esteja receosa por causa disso, Nikki, mas não nos sobrou muito o que fazer.
— Se a UCLA não se abre para realmente nos ouvir pacificamente, vamos ter que gritar... Muito. – murmurou, parecendo estar falando com ela mesma, toda pensativa.
— Exatamente. – Katy concordou.
Nikki apoiou o queixo em uma das mãos, preocupada.
— Então são quatro sins contra uma indecisão? – nós assentimos. – Ok. Bom, eu vou marcar uma reunião com o resto da casa. Todas merecem votar na proposta porque, se der errado, todas irão sofrer as consequências, certo? – assentimos novamente. – Enquanto isso, vocês podem ir preparando uma apresentação formal da sua proposta. – disse para mim e para a Ashley. – Quero que todas as ideias fiquem bem claras, façam slides, se necessário, sei lá... Vendam o seu peixe. Vocês têm alguns dias.
Mais uma vez, nós concordamos. Não queríamos mostrar felicidade porque ainda não havíamos conquistado nada, porém aquele já era um passo e tanto. Além do mais, sempre existia aquela doce esperança por morarmos em uma casa cheia de garotas fortes e que com certeza dariam a cara a tapa por uma a outra.
Capítulo 20
Você já teve que esperar notícias de algum parente ou amigo em estado crítico no hospital? Cada pequeno sinal de movimentação tira sua calma, os minutos passam com uma lentidão de outro mundo e tudo que você quer é ouvir as palavras. Aquelas palavras que irão te fazer suspirar de alívio, levantar com tudo e gritar: “É ISSO AÍ! NÓS VAMOS VIRAR ESSE CAMPUS DE CABEÇA PARA BAIXO”.
Pelo menos, essa era a fala que eu vinha planejando há algum tempo. E sim, eu sabia que tinha capacidade de criar algo infinitamente melhor.
Ok, talvez comparar a minha espera e da Ashley com a espera em um hospital não fosse a coisa mais legal a se fazer, mas eu não conseguia pensar em muitas outras coisas que chegassem perto daquela aflição.
Ashley e eu estávamos sentadas quietas, apenas observando toda a movimentação, pois Nikki havia nos proibido de falar mais, visto que passamos uma boa hora fazendo uma senhora apresentação do nosso “projeto”. Mantínhamos certa distância porque não queríamos forçar simpatia: não éramos a pessoa preferida uma da outra e já havíamos passado tempo demais juntas nos últimos dias nos preparando para a bendita reunião que levou mais de uma semana para ser confirmada. Isso porque a casa inteira estava cheia de provas e trabalhos acontecendo, eu inclusive, mas tinha minhas prioridades (talvez me arrependesse delas no futuro, com a chegada das notas).
Quando nós terminamos tudo que tínhamos a dizer, acabamos descobrindo que haviam milhares de opiniões, dúvidas e incertezas entre todas aquelas garotas, o que resultou em muita falação e ordem nenhuma. Nós tentamos responder algumas coisas aqui e ali, porém tínhamos que ser honestas: não conhecíamos muitas das respostas, estávamos dando um tiro no escuro e torcendo para que não saísse pela culatra.
Então, depois de muito vai e volta, a sugeriu que todas colocassem um pouco da democracia daquela casa em prática e votassem, cada uma com seu papelzinho e sua caneta, cada uma com a sua opinião, independente de todos os receios. Depois disso, tudo que podíamos fazer era sentar e esperar, pois os nossos posicionamentos já eram bem óbvios. No máximo, pegar uma água na cozinha porque a indecisão naquele ambiente era grande.
— Só mais dois minutinhos, pessoal. Não temos a tarde inteira. – Nikki anunciou e eu tive que conter a vontade de bufar de tédio, optando por olhar a hora no meu celular ao invés disso.
Constatei que eu ainda tinha alguns bons minutos de sobra para não me atrasar para o meu compromisso seguinte. Só esperava que as garotas colaborassem comigo.
Três minutos depois – porque eu contei todos os segundos –, a votação foi oficialmente encerrada e as garotas começaram a contagem. Eu estava confiante. Depois de tudo que havíamos presenciado nas últimas semanas, era difícil acreditar que alguém iria contra o nosso plano. No entanto, eu tinha que manter em mente que estávamos dando um passo gigantesco, que significava bater de frente com uma montanha de ideias erguida durante anos e que nos trouxe até esse lugar, essa casa, a essas pessoas.
Suspirei. Aquela situação era extremamente frustrante.
— Acho que tenho tudo aqui. – murmurou consigo mesma, fazendo com que Ashley e eu nos levantássemos imediatamente em expectativa. – Só tô conferindo. – murchei novamente. Se o assunto não fosse sério, eu a acusaria de fazer algo assim de propósito, já sabendo o quanto me irritaria.
Pelo menos eu não era a única ansiosa. Mina estava a ponto de ser estapeada pela namorada por não sair de cima dela, tentando ver todos os votos e fazer sua própria contagem.
— Vamos lá, ! Nós temos pressa! – reclamou.
— Pronto! Eu em...
Ela deu alguns passos e sussurrou apenas para a Nikki o resultado, o que me fez querer revirar os olhos por impaciência. Tive que me lembrar um tanto de vezes que uma atitude ruim não me levaria a lugar algum... Não naquele lugar nem naquele momento. No entanto, poderia sempre repensar isso em outras horas.
— Tá bom. – Nikki disse e então pigarreou, se preparando para o grande anúncio. – O resultado não foi unânime, o que é uma pena, mas... Bem, vocês já sabem que podem se envolver se quiserem, quando quiserem e o quanto quiserem. O sim venceu... Nós vamos fazer isso.
Dessa vez, ela nos mostrou todas suas incertezas ao dar o resultado. Talvez porque os riscos fossem maiores. Não era mais uma briguinha com alguns garotos – que atualmente todas tentávamos ignorar de tão infantis que elas soavam perto disso –, envolvia um milhão de coisas que nós mal conhecíamos e atitudes que não tínhamos certeza se sabíamos tomar. Agora, descobriríamos de uma vez só.
Nós até comemoramos com certa cautela, sem saber se havia realmente algum motivo para isso. Eu gostava de pensar que sim, apesar de duas palavras tomarem a minha mente: e agora? Precisávamos de um próximo passo. Ashley e eu trabalhamos na ideia, pensamos no resultado final, mas adiamos ao máximo o como.
Felizmente ou não, a própria Katy nos deu algo para nos preocuparmos antes.
— Vocês disseram que um dos nossos objetivos é fazer a nossa causa crescer, certo? Para outras casas, universidades... – nós assentimos rapidamente. – Não seria melhor já começar como um grupo grande?
— O que quer dizer? – Ashley questionou. – Se nos dedicarmos a conquista de novas pessoas e não ao problema em si, as chances do que aconteceu esfriar são muito grandes.
— Eu sei, eu sei. É que nós temos algumas pessoas que já nos conhecem, gostam de todas nós ou pelo menos gostavam, já foram nossos parceiros... – ela sugeriu, dando uma olhada bem sugestiva para a Nikki.
— Ah, não! – exclamou, se levantando em protesto. – De jeito nenhum! Eu faço o que você quiser, Katy, mas não vou pedir ajuda para a Lambda. Não precisamos deles, são uns babacas!
— Mas eles não são! A situação toda era idiota, nós também não fomos muito legais com eles, só precisamos passar por cima disso.
— Não dá, esquece! No máximo, eles vão rir da nossa cara por sermos inocentes o suficiente para aparecer na porta deles.
— Vão mesmo, Nikki? Eles já foram muito bons para a nossa casa no passado. Eu sei que nem todos ali vão gostar da ideia, mas se uma minoria nos apoiar, nossos números já aumentam. Será que não somos maduras o suficiente para deixar o orgulho de lado e dar esse passo, ainda que não dê certo? Quer dizer, se até a conseguiu resolver seus problemas com o , por que nós não conseguimos também?
Dei um passo para trás, definitivamente não querendo ser parte daquele argumento. E então veio o silêncio.
Todo o resto observava o pequeno debate. Por mais interessante que aquilo fosse, eu também não tirava os olhos do relógio. Agora, sim, eu estava atrasada e tinha que resistir ao impulso de não sair correndo.
— Eles não são maduros. – Nikki disse, engolindo em seco.
— Tudo bem. Então nós só vamos nos mostrar superiores mais uma vez. Vale o risco, não?
Nikki pensou muito e em momento algum passou a responsabilidade pela decisão para nós. Ninguém falou nada também, o que era ótimo, ou uma guerra de opiniões se instalaria naquela sala novamente e eu não tinha mais tempo para isso.
— Vou cuidar disso. – disse por fim, arrancando pulinhos de felicidade da nossa Katy.
Eu nem mesmo tinha opinião sobre o assunto. Tudo que eu pensava era que nós precisaríamos de todo o apoio possível, ainda que viessem de caras... aqueles caras.
Só pude sair alguns minutos depois, quando Nikki encerrou oficialmente a nossa reunião. No entanto, fui parada antes que chegasse na porta da frente.
— Onde pensa que vai? Temos que trabalhar no que vamos fazer a partir de agora, criar cronogramas, prazos e tudo mais. – Ashley disse, me fuzilando com o olhar pelo meu quase escape.
— Ah... Eu tenho um compromisso, coisa rápida. Tô de volta em uma, duas horas no máximo. – respondi, tentando soar simpática.
Eu iria de qualquer maneira, ela nunca me impediria, mas agora que tínhamos algum tempo de trabalho juntas pela frente, eu estava tentando manter uma relação mais ou menos pacífica com ela. Isso estava me custando muitas indiretas e muito rancor por parte da Mina, mas era o melhor a se fazer no momento.
— Você chama isso de coisa rápida?!
— Aham! Tchau!
Contornei seu corpo e corri para fora sem dar a ela a chance de me prender ali de novo. Eu havia feito minha parte, merecia uma recompensa e, sejamos sinceros, não estava pedindo muito.
O sol estava abaixando e um ventinho gostoso tornava a minha maratona um pouco mais confortável, mas ainda suada e cansativa. Por azar – já que as coisas estavam indo bem demais até aquele momento –, havíamos escolhido uma cafeteria afastada do campus. Em épocas de provas, elas ficavam especialmente cheias e não queríamos correr o risco de dar de cara com algum conhecido, ainda que não estivéssemos cometendo crime algum.
Eu sabia estar mais de vinte minutos atrasada, o que não era nada bom, porém não me surpreendi ao entrar no estabelecimento e encontra-lo sentado tranquilamente, deslizando o dedo pela tela do seu celular, nem um pouco ansioso pelo possível bolo. Os motivos eram simples: ele me conhecia bem, e não é como se ele tivesse algo melhor para fazer.
Para ser honesta, havia sim uma coisa: estudar, coisa que ele sempre necessitou de alguns empurrões para fazer devidamente. Eu costumava ser a responsável por isso, mas não voltaria a prestar esse papel. sobreviveu seu primeiro ano inteiro na universidade sem eu para fazer cobranças, criar cronogramas e me matar de encher o saco dele, não precisava mais de mim. Além do mais, era um pequeno detalhe que me fazia crer que não estávamos apenas fazendo o mesmo caminho que já havíamos percorrido incontáveis vezes anos antes.
— Você está atrasada. – acusou, sem erguer os olhos de seu smartphone.
— Dá um desconto, você sabia da reunião. As garotas me seguraram lá e por muito pouco, a Ashley quase me prendeu pelo resto da noite. – me defendi e ele assentiu. Não estava chateado nem nada, só gostava de dificultar a minha vida.
— Talvez as pessoas compreendam melhor suas escapadas se souberem o que diabos você está fazendo fora, não? – ele questionou, já me encarando e finalmente deixando o celular de lado. Dei de ombros.
e eu vínhamos saindo escondidos desde o nosso último “encontro oficial”, as vezes para um bar qualquer, um passeio no shopping, uma balada ou apenas um café, como era o caso. Esconder aquilo dos nossos amigos não estava sendo necessariamente fácil, porém ainda parecia com a coisa certa a fazer. Estávamos nos dando bem, muito bem. Muitas vezes até melhor do que nos dávamos quando éramos apenas amigos e, ainda que eu me sentisse culpada por isso todos os dias, não gostava da ideia de incluir outras pessoas em nossa pequena bolha.
Pela primeira vez em muito tempo, nós conseguíamos conversar por horas sem entrar em uma discussão besta. Eventualmente o fazíamos, é claro, só pela diversão, mas era diferente. E bom. Poder sentir a falta dele em um dia que não sobrava tempo era, de certa maneira, bom.
— Só mais um pouco. – eu disse, apoiando o queixo em uma das minhas mãos e o olhando de uma maneira que ele não iria resistir. Pelo menos, nunca foi capaz.
Se quer saber, nas inúmeras vezes em que nos encontramos nos últimos dias não houve um beijo sequer. O mais perto que ele chegou foi da minha bochecha. tentou, muitas e muitas vezes, mas resisti em todas elas. Estava orgulhosa do meu feito porque eu tinha que admitir: não era nada fácil. Se eu parasse para pensar demais no assunto, admitiria também que era quase estúpido.
Lá no fundo, eu só estava tentando não estragar algo que caminhava perfeitamente bem.
Como previ, ele balançou a cabeça e riu.
Antes que pudéssemos dizer qualquer outra coisa, o garçom chegou para anotar nossos pedidos. Eu fiquei com um refrigerante e todo o gelo disponível naquele lugar e escolheu um suco natural. Porque nós éramos os tipos de pessoas que entravam numa cafeteria para tomar tudo, menos café.
— Não dava pra colocar pelo menos um pouco de açúcar? – ele riu mais uma vez, negando. – Você tá muito saudável ultimamente. No outro dia teve coragem de pedir o cardápio fitness na minha frente... O que aconteceu com a gente?
— Eu preciso me alimentar bem, estar em forma, . Acho que as vezes você se esquece que eu tô no time da faculdade.
— Ah, mas eu não esqueço mesmo. – comentei, descendo rapidamente meu olhar para os braços que aquela camiseta não fazia jus.
Ele sorriu, levemente envergonhando.
— Tá... Eu vou ignorar isso vindo da garota que já me rejeitou tantas vezes nos últimos dias que perdi a conta. – eu estava pronta para protestar sobre aquele comentário, porém ele não permitiu. – Continuando... não vou poder ficar muito hoje, tenho treino daqui a pouco.
— Treino? São quase 19h00.
— Eu sei, mas as estaduais estão se aproximando e...
— As estaduais?! Você passou para as estaduais?! – exclamei na voz aguda que eu tanto odiava, mas eram as ESTADUAIS que poderiam leva-lo para as NACIONAIS!
— Sim...
— AH MEU DEUS!!!
Eu não esperei que ele completasse sua frase, só joguei meus braços e corpo sobre a mesa para cima dele. Por sorte, ela era pequena e redonda ou eu teria feito alguns estragos. Ele me abraçou de volta, porém não tinha metade do entusiasmo que eu carregava.
— ... mais de um mês atrás. – completou, confuso.
Me afastei na mesma hora.
— Como assim mais de um mês atrás? – perguntei.
— , a primeira eliminatória já até passou... – ele explicou calmamente para a garota que se mantinha de pé com a boca aberta a sua frente.
— O quê!? Onde é que eu estava para não saber disso? Aliás, por que você não me contou? Por que não me convidou para assistir?! – questionei, me sentando brava e frustrada.
Era bom que ele tivesse uma ótima desculpa porque as chances de nós já termos tido o tão temido diálogo na época eram bem grandes.
— Foi naquela semana que você estava super focada no caso da Katy e na reunião que teriam com a coordenação, pouco antes do nosso encontro. Eu não comentei nada porque achei que alguém tivesse te falado, sei lá... De qualquer maneira, a primeira fase não era aberta ao público.
Cruzei os braços, fazendo o bico de uma criança emburrada. Aquela explicação estava longe de ser suficiente.
O garçom escolheu esse momento para trazer nossas bebidas, provavelmente concluindo que éramos um casal de loucos, pois em um segundo eu estava abraçando-o e no outro, queria chutá-lo.
— Isso é uma palhaçada! Como espera que a nossa amizade retorne quando não me conta algo assim?
— Eu sei, eu sei. Me desculpe, eu devia ter comentado. – disse, se inclinando em minha direção. Quando não recebeu nenhuma resposta, ele pegou um dos meus braços e puxou para cima da mesa, segurando na minha mão. – Vamos lá! O que eu preciso fazer?
— Eu não te digo mais o que fazer, . Não vou cair nas garras do meu controle excessivo novamente.
Ele sorriu compreensivo e apertou minha mão.
— Que tal um convite para a piscina, então? Eu vou estar sozinho lá, você tá com calor...
Revirei os olhos.
— Sabe que nós temos uma piscina em casa, não sabe? Por que eu me daria o trabalho de atravessar o campus para ir em outra? – questionei, debochada. A resposta dele foi simples:
— Porque a outra tem a minha presença.
Eu ri bastante, nem um pouco a fim de deixar um ego desse tamanho passar livremente. Fiz piadas, zombei tanto que até esqueci do que que me incomodava segundos antes. No entanto, quinze minutos depois, assim que terminamos nossas bebidas, eu me vi atravessando a porra do campus ao lado dele.
O prêmio de trouxa do ano definitivamente seria meu.
Para ser honesta, os primeiros 40 minutos me fizeram acreditar que, no final das contas, aquela havia sido uma ideia muito boa. me emprestou uma bermuda leve que eu dobrei até virar um short mais ou menos decente e uma regata que eu só amarrei, me fazendo ficar parecendo um molequinho. A outra opção era ficar de calcinha e sutiã, mas esse passo eu não daria. Não naquele momento.
Enquanto isso, ele ficou com sua sunga, óculos, touca e um relógio para cronometrar o tempo. Era um pouco injusto, porém uma vez que ele entrou na água, foi possível ignorar.
Eu fiquei em uma das beiradas apoiada, eventualmente dando pulinhos para lá e para cá, brincando comigo mesma, enquanto ele ia e vinha, tão rápido que ficou chato tentar acompanhar. Apesar de todas as tentativas dele no decorrer dos anos, eu nunca me tornei uma boa nadadora. Sabia o suficiente para sobreviver em algum acidente, mas o desespero provavelmente faria a maior parte do trabalho.
Estava respondendo algumas mensagens da Ashley aborrecida pela minha demora – que nem havia completado duas horas ainda, diga-se de passagem – quando senti uma mão agarrar meu tornozelo. Eu sabia que era ele, tinha plena consciência de que estava segura, mas isso não me impediu de gritar pelo susto e tentar chutá-lo para longe, movimento que a água dificultou bastante.
— Vai assustar a tua mãe! – exclamei quando ele subiu, aparecendo com um sorriso besta na minha frente.
— Não preciso porque a minha mãe sabe se divertir quando está numa piscina. Vem! – disse, já me puxando e só me dando tempo o suficiente para jogar meu celular de qualquer jeito na beirada, ato pelo qual eu o faria pagar mais tarde.
— Eu só estava acalmando a Ashley, pelo amor de Deus. E eu brinquei bastante ali sozinha.
Ele riu.
— É, eu vi. Vi também todas as suas tentativas fracassadas de boiar. Pensei que eu já tivesse te ensinado isso.
— Belo treino você fez se ficou me assistindo o tempo todo. – cutuquei, apenas porque ele havia ofendido minhas técnicas flutuantes. – Eu sei boiar, tá legal? Só tô um pouco enferrujada.
— Ah, é? Vai lá então. – ele disse, se afastando e parando de braços cruzados para me observar bem.
Como se eu soubesse o que estava fazendo, eu respirei fundo, me esforçando para manter aquele ar ali, e joguei meu corpo para trás. Eu sou delicada como uma mula, então tudo que eu consegui foi começar a afundar e me debater toda em poucos segundos.
— Isso foi... Realmente impressionante. – ironizou depois de me ajudar a ficar de pé e estável novamente.
— Você sabe que eu sou péssima na água. – admiti. Na verdade, esse era um dos poucos fatos sobre mim que eu não tinha problema algum em negar. sempre foi o peixe da nossa relação e sempre seria.
— Vem aqui. Vou te ensinar pela vigésima vez. – falou, voltando a se aproximar. Dessa vez, vindo até um pouco perto demais para o gosto da pessoa que se encontrava constantemente tentando resistir a ele.
Eu tinha que dizer que aquela minha improvisação de look para piscina fazia um ótimo trabalho. Ali, tão perto de um sem camisa, molhado, com a respiração ainda rápida pelo cansaço, o que dava para o seu peito um movimento extremamente... Isso não vem ao caso. O meu ponto é: eu nunca permitiria que nosso terceiro primeiro beijo neste ano acontecesse enquanto eu estava vestida assim. Me chame de frescurenta, mas eu tinha coisas maiores em mente.
— Se eu morrer afogada hoje, quero que saiba que a culpa é toda sua. – eu disse com o sorriso mais ameaçador que eu tinha.
— Você pode morrer de muitas maneiras, , mas sabe que eu nunca permitiria que se afogasse comigo por perto.
Minha boca foi mais rápida que o meu cérebro e se abriu, pronta para falar algo muito esperto, porém eu não tinha nada.
— Tá... – fui capaz de balbuciar e ele riu da minha cara. Balançando minha cabeça rapidamente, eu me livrei daquele momento. – Vamos logo antes que eu desista disso.
— Certo... Deixa o seu corpo cair que eu vou te segurar, tá bom? – assenti, apesar de não amar a ideia, e fiz o que ele pediu. – Com calma... – disse lentamente, o que acabava por me irritar mais do que acalmar. Quando meu corpo ficou completamente na horizontal, eu senti suas mãos firmes embaixo e não gostei nada daquilo. Bom... Eu gostei bastante, na verdade, mas esse gostar não me agradava. – Respira devagar, enche o seu pulmão de ar. Acha que tá estável? Posso te soltar? – assenti novamente e ele o fez. Em dois segundos, eu estava toda estabanada tentando ficar de pé novamente.
— Tá louco?! Quase me matou!
— Não seja dramática. Você tá muito preocupada com a sua cabeça.
— É claro que tô! É por onde eu respiro, sabia?
Ele apenas ignorou meu ataque e continuou falando.
— Quando você força ela, acaba tencionando o seu corpo e começa a descer. Outra coisa: você pode respirar. Se estiver fazendo tudo certo, quando seu pulmão esvaziar, seu corpo vai cair levemente, mas nada que inspirar de novo não resolva. Precisa ficar calma. – revirei os olhos, deixando claro que aquela não era uma opção muito viável no momento. – Vamos tentar mais uma vez?
— Vamos... Eu acho.
Nós fizemos todo o processo novamente até que eu me encontrasse deitada, amparada pelos seus braços e com o rosto bem próximo do dele. Tudo isso resultava em uma nem um pouco calma.
— Vou demorar um pouco mais para te soltar dessa vez, ok? – balancei a cabeça, concordando. – Fecha os olhos. – o olhei com uma interrogação na cara, especialmente pelo seu tom de voz ter mudado drasticamente para um suave e terapêutico, mas ele apenas repetiu: - Fecha os olhos. – então eu o fiz. – Agora respira lentamente e presta bastante atenção no que você está fazendo. Inspira... Expira... Inspira... Expira... Sem pressa. Preste atenção no seu próprio corpo, como ele reage ao movimento da água, como ela reage a ele...
Aquilo era particularmente difícil de fazer porque focar em tudo daquela maneira também me fazia perceber que agora ele estava tão perto que eu podia sentir um pouco de sua respiração bater na minha bochecha. A partir desse momento, tudo começou, literalmente, a ir por água abaixo.
Toda a serenidade e controle que ele havia me ajudado a atingir desapareceram quando eu abri meus olhos e percebi que eu queria muito, mas muito mesmo, beijá-lo naquele segundo. Eu não estava nem um pouco preocupada com a minha instabilidade até que afundei o suficiente para perceber que os braços dele haviam parado de me sustentar há um bom tempo. Então, mais uma vez, eu estava me debatendo para tentar ficar em pé novamente.
, pego de surpresa pelo meu repentino desespero, agiu rápido, chegando a levar alguns tapas pelos quais eu teria que me desculpar mais tarde. Por fim, ele me ajudou a voltar para a sempre segura vertical com um mínimo de água de piscina no meu estômago. Estava longe de ser o ideal, porém era muito bom.
— Tá tudo bem? – ele questionou, ainda me segurando e claramente prendendo a risada.
Eu assenti, o encarando. Era mentira. Minha garganta queimava e a roupa mais desconfortável do mundo para se estar em uma piscina pesava. No entanto, eu ainda tinha em mente o quão doce ele me parecia no momento e o quão chamativo estavam seus lábios.
Acho que ele leu bem meu olhar porque sua vontade de rir foi embora rapidinho. Eu sentia meu coração querer sair pelo peito e um calor completamente inexplicável para duas pessoas que se encontravam dentro de uma piscina gelada. Não sabia se ele estava no mesmo lugar que eu ou se iria me jogar para longe a qualquer momento e essa dúvida foi a única responsável por me manter imóvel, apenas sentindo sua respiração agora ainda mais próxima.
Foi só quando ele se inclinou para me beijar que eu me lembrei: aquilo não podia, de jeito nenhum, acontecer neste momento. Não nessas roupas, não aqui. Então eu juntei todas as minhas forças e me afastei, sabendo que estava sendo uma verdadeira filha da puta que não sabia o que querer da vida.
’ POV
Dei uma boa olhada na quantidade de livros e papeis que eu tinha na minha frente. Eu estava sentado ali já fazia uma hora e não gostaria de aumentar esse número para duas. Nunca havia sido o melhor estudante desse mundo, tinha a natação para me ajudar a completar aquilo que meu intelecto não dava conta, então para que começar agora, certo?
Relaxei na cadeira e peguei meu celular, percebendo em poucos segundos que aquela não havia sido uma boa ideia. Minha tela de bloqueio mostrou a imagem da sorrindo tentando equilibrar seus próprios livro e papeis enquanto tirava a foto e imediatamente eu me senti culpado por desistir tão fácil. Ela me odiaria se soubesse que sua foto estava ali, mas eu estava tomando todos os cuidados necessários para que ninguém tocasse naquele aparelho além de mim.
Com um suspiro, eu ia voltar para os estudos por pelo menos mais uma hora quando alguém bateu na porta. Eu fiquei feliz até ver que a cabeça que surgiu ao abri-la foi a do Ryan. Ele havia deixado de ser alguém que eu suportava estar por perto há algum tempo.
— Ei, posso entrar? – perguntou, já dentro do quarto.
— Agora eu não tenho muita escolha, né?
Ele riu, nem aí para o fato de que eu não estava nem um pouco animado com a presença dele.
— Eu preciso de um favor, cara. – disse, se sentando em uma das camas. – Um grande favor.
— Ah, não, Ryan! Lembra da nossa discussão aquele dia? Você não me pede mais favores, eu já te fiz muitos deles. Chama outra pessoa, eu tenho que estudar.
— Eu preciso especificamente de você agora.
Eu joguei minha cabeça para trás, grunhindo em protesto. Por que eu fui o escolhido? Com tantos caras naquela casa merecendo o castigo.
— Tá bom, Ryan. Fala logo.
— Bom, é sobre a Nikki. Ela meio que me chamou para sair no sábado e eu aceitei. Espero que você esteja bem com isso porque se não estiver, não vai importar muito. Ela já me irritou muito no passado, você sabe, mas é a Nikki! Eu preciso que isso dê certo, !
Fiquei parado por alguns segundos, assimilando aquele momento. Estava dividido entre ficar ofendido pela audácia dele de não se importar e a surpresa pelo convite da Nikki. Aquilo não me parecia certo. Ela chamar o Ryan para sair? Não, definitivamente não soava certo.
— A Nikki te chamou para sair?! Tipo em um encontro? – questionei.
— Sim! – respondeu animado, até que um segundo depois sua expressão mudou para a desconfiança. – Não tá com ciúmes, né? Qual é, , vocês não estão juntos faz um tempo e eu já te vi passeando por aí com outra. Não pode querer todas elas.
Arregalei os olhos.
— Você me viu com quem?
— Não reconheci, estavam longe demais. Mas esse não é o ponto: chegou a minha vez! Eu vou sair com a Nikki.
Lá no fundo, eu soltei um suspiro de alívio. me mataria se ele soubesse. Ainda que eu não fosse exatamente o culpado, ela daria um jeito de me matar por aquilo.
— Faz o que você quiser, Ryan. Nikki e eu somos apenas amigos. – pensei melhor. – Eu acho. O que eu tenho a ver com isso?
— Você precisa me dar dicas! Como eu me comporto? Levo algo para ela? Você tinha tudo indo contra você e acabaram por ficar naquele rolo por um ano, alguma coisa deve saber. – explicou e eu assenti, finalmente compreendendo meu papel naquela história. Um papel que eu preferiria não interpretar, é claro, mas decidi dar a ele algo na esperança de ficar livre pelos próximos dias.
Nós ficamos ali por uns bons minutos. Levou tempo para ele entender que ele não precisava fazer mil coisas, agir de tantas maneiras, porque a Nikki era uma garota bem simples, logo, ela gostava de tudo que era trabalhado com simplicidade. Sem grandes emoções, atos exagerados nem nada do tipo.
Quando ele finalmente foi embora, eu fiz algo que não sabia se tinha a liberdade para fazer. No entanto, pensei que se não tivesse, o pior que poderia acontecer era ser ignorado. Viu? Simples.
"Você vai sair com o Ryan? Tem certeza?"
Voltei a ler alguns textos, mas rapidamente recebi uma resposta.
"Sim... Coisas da Kappa. Por que?"
Sorri, balançando a cabeça. Eu sabia que havia algo ali. Além disso, percebi que havia um toque de em mim quando digitei a próxima mensagem.
"Entendi ahaha só por curiosidade, ele tá bem animado."
Eu poderia evitar uma leve confusão, porém descobrir que ele teria um jantar “de negócios” não faria o Ryan muito feliz. E seria definitivamente divertido, ainda que eu não estivesse lá para ver.
A conversa parou por ali e eu voltei a me dedicar aos livros. Não por muito tempo, mas consegui revisar bem algumas coisas. Seria o suficiente para sobreviver ao dia seguinte.
Ainda eram 20h00 e eu poderia fazer uma infinidade de coisas. Ir atrás do e do para bater um papo, jogar carta com o Joe no andar de baixo, aproveitar as últimas horas do dia para treinar mais um pouco... No entanto, eu tinha uma só coisa na minha mente. Se estava sendo honesto, teria que admitir que ela era a única coisa na minha mente há um bom tempo.
Eu nunca estive confortável com a distância entre a e eu. Com o tempo, apenas me acostumei porque não me restavam muitas opções. Agora que eu podia estar perto dela novamente, semmuitas brigas, era como se eu quisesse compensar por todos aqueles meses em que ficamos separados. Eu sabia que nunca poderia fazer aquilo, especialmente apagar tanta coisa que eu gostaria que não existissem na nossa história, mas todo esse tempo que estávamos passando juntos as vezes me fazia crer que eu poderia ao menos cobrir tudo. Cobrir com momentos e atitudes melhores.
Me sentindo um completo idiota, eu me joguei na minha cama e abri seu instagram apenas para passar o olho pelas fotos. Ela estava linda em cada uma delas. Nunca iriam suprir a minha vontade de ter ela ali naquele segundo, porém, novamente, não me restavam opções, já que a mensagem que eu enviei nem havia chegado, o que significava que ela estava estudando com o celular desligado para evitar tentações.
Pelo menos eu estava me acostumando a passar vontade, o que não é necessariamente bom, mas teria que ser o suficiente. Eu a machuquei, ainda que as vezes eu prefira deixar esse fato de lado. Não poderia culpa-la por ser receosa, por dar passos extremamente lentos quanto se tratava de mim. Enquanto isso, eu fechava os olhos e ficava sonhando com o momento em que poderia beijá-la e tocá-la como eu realmente queria de novo. Não por muito tempo, já que o resultado não é tão satisfatório quanto pode parecer.
— Não seja chato, ! Todas as Kappa Deltas vão estar lá! – Joe disse pela milésima vez naquela noite. Mais uma e eu provavelmente daria um soco nele. Já estava resistindo há um tempo.
— Eu já te falei que eu tenho compromisso e não vou desmarcar por causa de uma festa qualquer. – murmurei, tentando focar minha atenção no meu jantar e não na criança irritante ao meu lado.
— Festa qualquer?! – questionou, ofendido. – Você sequer ouviu o que eu acabei de te dizer? Kappa Kappa Delta!
— E você me ouviu dizer que eu não me importo? Tenho compromisso.
— Desmarca. – afirmou, sorrindo.
Optei por simplesmente ignorar. Não podia dizer que meu compromisso era com a e não queria ir na tal festa, de qualquer maneira.
Por sorte, Ryan chegou marchando na cozinha, o que imediatamente chamou a atenção de todos. Ele estava voltando de seu grande encontro, aquele que fez questão de espalhar para a casa toda. Sua cara não estava muito boa, mas poderia estar pior e isso me fez acreditar que não havia sido de todo ruim.
Haviam no máximo 10 pessoas naquele cômodo, porém ele fez seu anúncio mesmo assim.
— Se vocês têm algum compromisso amanhã, aproveitem hoje para desmarcar.
— O quê!? – Joe exclamou e eu não pude deixar de rir na cara dele. Não que eu estivesse muito feliz com a notícia.
— As kappas vão dar uma festa na piscina amanhã e nós fomos convidados. Preciso de todos vocês lá.
— Delta?
— Gamma, Joe.
Por dentro, eu senti um alívio. De certa forma, não teria que desmarcar meus planos.
— Mas elas não podem dar festas. – alguém atrás de mim disse.
— Sem bebidas alcoólicas. – Ryan respondeu rapidamente.
— Mas essa é a melhor parte! – Joe protestou em mais um capítulo do seu drama.
— Pensei que fossem as garotas. – eu disse, segurando uma risada.
— Fica na tua, . – disse antes de sair extremamente chateado com as novidades.
— Bom, vocês estão responsáveis por espalhar a notícia. Kappa Kappa Gamma, amanhã, 15h00. – Ryan informou, também deixando o cômodo e saindo em direção as escadas.
Fui atrás dele imediatamente, sentindo que o jogo havia virado agora que era eu quem corria atrás.
— E aí, como foi?! – questionei, já subindo os degraus com ele.
— Não foi, . Ainda. – respondeu, claramente chateado com aquilo e nem um pouco feliz com o interrogatório, mas eu merecia e ele sabia disso.
— O que ela queria então?
Eu já estava a par de tudo, graças à . No entanto, não sabia exatamente onde aquela festa na piscina se encaixava no plano geral.
— As garotas querem a nossa parceria de volta. – ele falou com desdém. – Só porque precisam da gente para um protesto ou algo do tipo, não entendi muito bem. Eu sou legal, , então considerei a ideia, mas quem vai ter que conversar com toda a casa vão ser elas, amanhã.
— Isso não é um pouco babaca da nossa parte? – questionei, agora parado com ele em frente ao seu quarto.
— Isso é só uma leve vingança pelas sabotagens seguidas que nós sofremos.
— Pensei que você e a Nikki estivessem se entendendo, quer dizer... Vocês até compartilham o segredo de que casa realmente venceu.
— São dois assuntos separados, . E isso já não importa mais, o que importa é: esteja lá amanhã e garanta que todos os outros rapazes façam o mesmo. – finalizou, passando pela porta e me deixando para o lado de fora.
— Eu não perderia por nada. – sussurrei para mim mesmo.
Poucos minutos depois, eu senti meu celular vibrar incansavelmente pelo grande número de mensagens chegando. Antes de desbloquear, eu já sabia que a estava ciente das novidades e nada feliz com elas. Entre xingamentos e muitos “aaaaaaaaAAAAAaaA”, ela condenou o Ryan por ser um moleque insensível e sem noção alguma da gravidade daquele problema. Decidi começar uma ligação para facilitar aquele momento.
— Calma. – eu disse a ela. – Xingar o Ryan não vai te levar a lugar algum. Acredite em mim, eu já tentei em diversas situações.
— O que você quer que eu faça? Sente e deixe que tudo seja feito da maneira dele?
Eu demorei alguns segundos para responder, esperando que ela chegasse a mesma conclusão que eu apenas para acabar confirmando.
— Exatamente. É tudo que você pode fazer no momento.
— , eu não acho que você tenha noção da gravidade disso! Deixa eu refrescar sua memória rapidinho: sua casa nos odeia e não vai ver vantagem alguma em nos ajudar. Eu vou ficar surpresa até se eles se derem o trabalho de aparecer aqui amanhã. – ela argumentou, impaciente.
— Nós não somos tão babacas quanto você pensa, ok? É claro que alguém vai querer ajudar, ninguém aqui achou graça do que aconteceu com a Katy.
Ela suspirou e eu podia imaginá-la encolhendo os ombros, desanimada.
— Alguém não é o suficiente. Isso é grande... Nós precisamos de toda ajuda possível e não sabemos se vamos conseguir. É assustador.
Eu assenti, mesmo sabendo que ela não podia ver o movimento. Sabia bem que admitir que aquilo a assustava não era nem um pouco fácil para a , especialmente se tratando de mim no outro lado da linha.
— Eu sei... Eu entendo. Todos vão estar lá amanhã, tá bom? Confia em mim.
Ela ficou em silêncio, mas não a culpei por isso.
Poucos minutos depois, eu dei a desculpa de que tinha que estudar para desligar o telefone. A realidade é que tinha trabalhos a fazer e eles não tinham nada a ver com as minhas aulas.
Pode me chamar de trouxa, bobinho ou qualquer que seja a palavra da vez que usam por aí... Eu não podia deixa-la se decepcionar com aquilo. Digamos que eu mesmo seja o cara que já fez isso vezes demais para uma vida inteira. No final das contas, eu sabia o quanto conquistar aquilo a faria bem e se eu podia ajudar de alguma maneira, ainda que besta, por que não?
Foi assim que eu passei as próximas duas horas indo atrás de morador por morador daquela casa para garantir que todos estavam cientes do compromisso de amanhã e que, mais do que isso, estariam lá. A maioria deles foi bem compreensiva, em especial aqueles que não haviam sido diretamente afetados por tudo que houve entre as nossas casas. No entanto, sempre tinham aqueles que precisavam ser seriamente ameaçados para que finalmente se mexessem.
Só quando terminei, pensei que podia finalmente me deitar e dormir em paz, assim como os meus colegas de quarto, que já estavam todos derrubados. Eu esperava que o dia seguinte fosse bom, afinal de contas, estaria perto dela durante grande parte dele. Por outro lado, não é como se eu realmente pudesse estar perto dela como gostaria, primeiro porque ela não permitiria e segundo porque estaríamos cercados de pessoas. Ela não estava pronta para dar esse passo e eu queria respeitar isso... Na maior parte do tempo.
Algum tempo depois, eu percebi que começava a ficar ansioso e preocupado com coisas idiotas, então cortei completamente aquele assunto da minha cabeça, esperando apagar logo.
Já no dia seguinte, eu percebi que minha ansiedade podia atingir níveis realmente altos, o que me parecia ridículo às vezes, quer dizer... Era só a . A mesma com quem eu já saí um milhão de vezes, a mesma que eu namorei durante mais de dois anos.
Não levei muito tempo para perceber que eu estava completamente equivocado. Aquela nunca poderia ser a mesma , pois ela havia crescido e amadurecido em tantos aspectos que eu ainda me sentia um moleque perto dela. Um moleque besta, sem chance alguma, babando na garota mais linda e incrível do mundo.
Revirei os olhos para o meu próprio drama, mas sabendo que havia uma boa quantidade de verdades ali. No entanto, confirma-las me fazia sentir mais ridículo ainda, então eu deixaria que outra pessoa – provavelmente a – as jogasse na minha cara mais cedo ou mais tarde. E todos nós sabíamos que isso com certeza aconteceria eventualmente.
Quando o relógio finalmente marcou 15h00, eu saí recolhendo metade da casa para ir até as meninas. Alguns deles estavam considerando meu comportamento estranho e duvidoso, como se eu tivesse passado para o lado delas, mas ignorei-os. Só queria vê-la logo, especialmente porque não havíamos conversado ainda hoje, e garantir que tudo ficaria bem.
Assim que nos aproximamos da Kappa House, ouvimos música. Seguimos direto para os fundos, onde várias garotas já se encontravam. Toda a piscina estava enfeitada com boias divertidas, haviam algumas mesas com guloseimas e bebidas sem álcool (pelo menos, até a Mina passar por ali) e luzes que deveriam ser acesas mais tarde para todos os lados. Logo os rapazes se espalharam.
Não pude deixar de notar que a Katy não estava ali e, para ser honesto, não achava que a veria hoje. No entanto, a devia estar. Por isso fiquei decepcionado quando não a encontrei em lugar algum.
— Procurando alguém, ? – Mina apareceu, me rondando. Engoli em seco.
— Sim... Sua namorada. Viu ela por aí?
Ela sorriu, maléfica.
— Aham, bem ali no canto, onde você estava olhando até agora. Deixou passar, foi?
Se eu não conhecesse bem a Mina, diria que ela sabia sobre mim e a (se é que havia algo para saber). Porém ela só tinha suas desconfianças. E aquela era a sua maneira de me fazer falar tudo, coisa que eu definitivamente não faria. Bom, se dependesse apenas de mim, até poderia, mas esse não era o nosso caso.
— Olha só como eu tô cego! Obrigada, Mina. – disse, fugindo dela no mesmo segundo e indo em direção a . – Ei! – cheguei rapidamente nela, que terminava de organizar uma das mesas de uma maneira que apenas ela poderia se dar o trabalho de fazer.
— Que susto!
Sorri, me desculpando.
— Viu a por aí? Tenho que conversar com ela. É meio urgente.
— Hoje? Tem certeza? Ela tá num mal humor do cão, pode não querer nem olhar na tua cara. – disse e eu tive que conter minha vontade de revirar os olhos para dizer que ela com certeza queria me ver.
— Acho que eu vou me arriscar. – falei, forçando um sorriso.
— O risco é seu. – disse, dando de ombros. – Tá no nosso quarto terminando de se arrumar.
Parti no mesmo segundo, despreocupado com o que ela acharia daquilo, pois parecia muito bem concentrada em sua decoração. Ela tinha suas prioridades e eu tinha as minhas.
As garotas com quem encontrei no caminho estavam tão concentradas nos últimos detalhes de sua festa que não deram a mínima para mim ou a minha pressa de subir as escadas até o quarto da . Isso não era muito bom, mas tinha suas vantagens para mim, o cara que não estava com vontade alguma de ter que se explicar para alguém.
Bati na porta e na mesma hora ouvi um “Entra” da parte dela. Foi o que eu fiz. Tarde demais, eu percebi que deveria ter me anunciado porque a cena que me esperava do lado de dentro quase fez meu coração parar ali mesmo. se encontrava em frente a um espelho vestindo apenas a calcinha de um biquíni enquanto tentava e falhava ao amarrar sozinha a parte de cima.
Ela só percebeu que eu não era uma das garotas quando me viu rapidamente pela sua visão periférica e deu um pulo em seu lugar, agarrando a primeira toalha que encontrou para cobrir o próprio corpo. Ela se virou então para mim, me fazendo pensar que eu seria, com razão, chutado para fora daquele quarto, mas sua expressão suavizou quando ela identificou que se tratava de mim parado ali.
— Ah, , é só você.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela soltou a toalha, voltando a ficar novamente só de calcinha e com a parte de cima do seu biquíni jogada em volta do pescoço. Por alguma sorte – ou extremo azar – do destino, seu cabelo cobria quase tudo. Porém não o suficiente para me tornar uma pessoa sã.
— E-e... Asss...
Em algum lugar entre essas letras, havia uma frase lutando para sair.
— Aproveitando que está aqui, amarra esse negócio para mim. – pediu, voltando a se virar para o espelho. – O universo tá tão contra mim que eu me tornei incapaz de amarrar um biquíni, legal, né? Fecha a porta, por favor.
— Uhum. – foi tudo que eu fui capaz de murmurar.
Eu tinha duas teorias:
A primeira dizia que a havia desenvolvido um sério caso de bipolaridade, pois em um dia não queria nem ficar de calcinha e sutiã debaixo da água comigo por perto e agora, pouquíssimos dias depois, desfilava seminua na minha frente sem problema algum.
A segunda era mais triste e muito assustadora. Estávamos nos dando tão bem recentemente que ela estava me vendo agora como um amigo gay ou algo do tipo, logo, não havia problema em ficar daquele jeito comigo em um quarto que me parecia tão, mas tão, pequeno.
— Ei! Que tal mandar esse sangue de volta para cima e vir aqui me dar uma mão?
Eu engoli em seco, fechei a porta e fui até ela, consciente demais sobre cada movimento meu. Quando cheguei perto o suficiente para conseguir fazer o serviço, mas longe o suficiente para nada, sinceramente, porque qualquer lugar dentro daquele cômodo me parecia perto demais, ela já me esperava com o tecido devidamente colocado sobre os seus seios, segurando as cordinhas para mim.
Tomando todo o cuidado que eu tinha em mim para não tocar nela, eu comecei a amarrar a peça.
— Pode apertar mais um pouco? – ela perguntou, me olhando através do espelho e eu tive que me segurar para não dizer: “não posso, não. Vai ficar assim”.
— Posso. – o cara educado que infelizmente era parte de mim disse.
Respirando devagar e com uma lentidão exagerada, dei os últimos nós. Nos rápidos segundos em que meus dedos roçaram suas costas, eu senti meu corpo inteiro ficar tenso. Bom... Senti outras coisas também, mas não sabia se queria pensar naquilo.
Assim que terminei, vi suas costas balançarem em um riso. Pelo reflexo do espelho, eu vi que seu olhar estava fixo em mim.
— Eu tô quente, é?
Arregalei os olhos, confuso com o que diabos aquela pergunta deveria significar. Era alguma pegadinha? Seu tom não havia deixado muito espaço para interpretações.
— O q... Como?
— Você tá com medo de encostar em mim. Não vai se queimar, sabe? – ela explicou, com certo humor no olhar. Balancei a cabeça levemente e ri, apenas por puro nervoso. – Nossa, a sua cara tá ótima. O que há com você hoje?
Revirei os olhos.
— Você realmente precisa perguntar? – ela deu de ombros.
Não me pergunte como, mas no segundo seguinte eu me peguei explicando para ela as minhas duas teorias, só porque aquilo era tudo que eu tinha no momento. Quando terminei, ela não conteve seu riso, aproximando seu corpo do meu rapidamente só para me dar um leve empurrão. Eu congelei no meu lugar.
— Uma garota não pode simplesmente mudar de ideia? – disse e, mais uma vez, eu travei.
Tá legal. Eu tenho consciência de que não estava soando como o cara que mais queria tê-la nos braços no momento, cara esse que eu era, mas você tem que compreender de onde isso vem. Havia sido rejeitado e deixado na mão por essa garota tantas vezes nas últimas semanas que banhos gelados e... Bem, outras coisas não funcionavam mais.
Estava apenas cuidando e temendo pela minha saúde.
— Pode... É claro que pode. – respondi, engolindo em seco.
Para a minha surpresa, agora eu estava consciente do quão próximo estávamos e da proporção de pele que ela tinha a mostra em um nível que não achava possível ser atingido. Ela tinha razão, havia algo muito quente naquele espaço mínimo que os nossos corpos ocupavam.
— Então... – ela disse, prolongando a sílaba final e voltando a chamar minha atenção para o reflexo no espelho, por onde ela me olhava com uma expressão extremamente sugestiva. Na verdade, tão sugestiva que eu desconfiava ter dado alguns passos fora da realidade e estar vendo coisas.
— Tá falando sério? – não pude deixar de questionar. – Porque você já me rejeitou tantas vezes em tão pouco tempo... Tá começando a afetar minha autoestima, sabia? Então se isso for algum tipo de brincadeira apenas para cortar o meu barato daqui a pouco, eu prefiro que...
Enquanto eu tagarelava minhas idiotices, observei seus olhos deixarem os meus no espelho para que ela pudesse se virar de frente para mim e definitivamente colar o seu corpo ao meu. Só isso foi necessário para que eu perdesse de vez a minha fala. Porque queimava. Ah, como queimava. E o sentimento não era nem um pouco ruim.
A próxima e última coisa que eu vi foi seu sorriso antes de me puxar pela nuca e selar também os nossos lábios. A partir daí, eu não tive dificuldade alguma para reagir. Finalmente estávamos onde a minha mente esteve esse tempo todo e agora eu sabia exatamente o que fazer.
A tomei pela cintura, garantindo que nossos corpos estivessem o mais próximo possível e aprofundando o beijo, tudo na tentativa de fazer valer todos aqueles momentos em que sonhei em tê-la exatamente assim, mas não pude. Não precisei de dois segundos completos para concluir que valia a pena, que cada novo toque dela compensava todo e qualquer espaço de tempo longe e eu sabia que estava completamente perdido por causa disso.
Quando me dei por mim, já estávamos na beirada da sua cama e tivemos que nos separar para que ela pudesse se deitar no beliche sem nenhum acidente. Observei enquanto ela encostava suavemente sua cabeça no travesseiro, espalhando seus fios de cabelo através do tecido, com a respiração entrecortada e por um momento eu perdi meu ar. Não houve um momento em que eu esqueci o quão linda ela era, porém olhá-la daquela maneira, com um sorriso leve nos lábios rosados, bochechas coradas e um olhar profundo que poderia facilmente enxergar minha alma, eu não tinha palavras. Realmente não tinha palavras para o que aquilo significava.
— Dar uns amassos em uma cama de verdade... Acho que não fazemos isso há um tempo. – ela disse, felizmente me tirando da minha bolha antes que eu começasse a babar nela ou algo do tipo.
— E a culpa é de quem, ?
— Acho que você não quer entrar nessa discussão agora, .
Eu parei. Ela tinha razão. Aquela conversa tinha potencial para chegar em lugares em que eu não gostaria, especialmente enquanto eu tinha seu corpo sob e tão próximo ao meu.
Fui eu quem tomei a atitude de beijá-la dessa vez, já sentindo certa abstinência da sua boca, seu gosto, sua língua, do deslizar ansioso das suas mãos pelos meus ombros, a inconstante indecisão entre tirar ou não tirar minha camiseta, basicamente cada pequeno aspecto de estar com ela que me fazia esquecer completamente da existência de um mudo exterior a nós dois... E eu não poderia me importar menos.
Por isso, eu não saberia responder – muito menos chutar – por quanto tempo ficamos ali, apenas na companhia um do outro. Eu sabia que as horas corriam de forma impressionante quando estávamos juntos, porém naquela situação em particular, nós parecíamos ter batido algum tipo de recorde.
— .
A voz repentina que não pertencia a mim nem a garota embaixo de mim somada ao som da maçaneta virando me fizeram levantar imediatamente sem nem pensar. A falta de racionalidade me fez esquecer de que eu estava em um beliche, trabalho que a cama de cima tratou de fazer quando minha cabeça foi diretamente de encontro a ela.
Alguns centímetros abaixo, se dividia entre segurar o riso, se preocupar com a minha possível fratura craniana e com a pessoa do lado de fora da porta, que não entrou graças ao meu cuidado em trancá-la mesmo quando não conseguia nem pensar direito. Parece que eu tenho pelo menos um pouco de senso de preservação, afinal de contas.
Levei a mão até a área atingida, orgulhoso de mim por não ter feito som algum de dor, pois o impacto já havia feito o suficiente.
— Machucou? – ela sussurrou.
Estava pronto para dizer algo do tipo: “que pergunta! É claro que machucou! Não ouviu o barulho que essa merda fez?”, mas fui interrompido pela voz da agora-identificável April.
— ? O que foi isso? Abre a porta.
Com essas perguntas, ela pareceu acordar para a vida abruptamente, me chutando para fora da cama em que estávamos.
— Para baixo da cama, agora! – ela ordenou, mas eu fiquei parado, pensando na possibilidade dela estar realmente falando sério. Não foi uma boa ideia, pois logo depois vieram seus braços fracos, mas ardidos me empurrando para baixo. Decidi cooperar, porém já planejando uma briga para o nosso futuro por esse momento, e me enfiei debaixo da cama da , a única que poderia me esconder de verdade.
— Tô indo! – disse, correndo para a porta depois de se certificar que eu não poderia ser visto. – Foi mal, eu estava trocando de roupa. – justificou enquanto eu ouvia os passos apressados da April dentro do quarto, parecendo não dar a mínima para o que a poderia estar fazendo sozinha e trancada ali.
Ouvi a porta do closet ser aberta às pressas e então roupas e mais roupas serem jogadas no chão.
— Não tem nada aqui!
— O que você tá procurando?
Silêncio.
— Isso! É de algo assim que eu preciso, algo que destaque a minha pele, que me faça parecer bonita sem nem me esforçar. Por que eu não tenho algo assim?
Franzi o cenho. Era difícil compreender o diálogo quando me privavam da minha visão.
— Do que você tá falando? O seu é lindo!
— Não é! – me assustei com o movimento do colchão acima de mim, sinalizando que ela havia sentado. – É preto e sem graça. Como que eu vou me destacar em uma casa cheia de garotas maravilhosas com um biquíni assim?
aproveitou para se sentar na mesma cama, mas do lado contrário, me dando uma oportunidade de vingança que eu nunca me permitiria desperdiçar.
— Por que você precisa se destacar? O seu objetivo não era sempre se escon... – agarrei um dos seus tornozelos, a fazendo engasgar. – ...conder.
— Agora é diferente...
— Estamos falando da presença do ? – perguntou, tentando me chutar para longe. No silêncio, imaginei que a April assentia. – Você sabe que, para o , você já se destacou, né? Só precisa existir ali. Mas fico feliz que tenha superado suas desconfianças em relação a ele.
Enquanto ela suspirava, eu me esforçava para fazer cosquinhas no pé da , lugar que eu sabia bem o quanto ela odiava.
— Eu não sei não... Por que vocês chamaram ele em? Eu perdi minha tranquilidade. E qual é o problema das suas pernas que não param de se mexer?
No mesmo segundo, elas pararam. Para o meu azar, foi pisando rudemente na minha mão e prendendo-a ali. Ela sabia jogar.
— N-nada, só uma coceira. Você pode pegar esse meu biquíni, se quiser. Ia exibir ele por aí, mas eu não acho que mereçam me ver nele.
Ouch.
— Tem certeza? Você tem outro?
— Eu tenho vários, não se preocupe. Sou uma garota da praia. – e então ela deu uma última apertada na minha mão contra o chão, quase me fazendo exclamar algo de surpresa. – Vem, vamos trocar. No banheiro.
Pelo menos, essa era a fala que eu vinha planejando há algum tempo. E sim, eu sabia que tinha capacidade de criar algo infinitamente melhor.
Ok, talvez comparar a minha espera e da Ashley com a espera em um hospital não fosse a coisa mais legal a se fazer, mas eu não conseguia pensar em muitas outras coisas que chegassem perto daquela aflição.
Ashley e eu estávamos sentadas quietas, apenas observando toda a movimentação, pois Nikki havia nos proibido de falar mais, visto que passamos uma boa hora fazendo uma senhora apresentação do nosso “projeto”. Mantínhamos certa distância porque não queríamos forçar simpatia: não éramos a pessoa preferida uma da outra e já havíamos passado tempo demais juntas nos últimos dias nos preparando para a bendita reunião que levou mais de uma semana para ser confirmada. Isso porque a casa inteira estava cheia de provas e trabalhos acontecendo, eu inclusive, mas tinha minhas prioridades (talvez me arrependesse delas no futuro, com a chegada das notas).
Quando nós terminamos tudo que tínhamos a dizer, acabamos descobrindo que haviam milhares de opiniões, dúvidas e incertezas entre todas aquelas garotas, o que resultou em muita falação e ordem nenhuma. Nós tentamos responder algumas coisas aqui e ali, porém tínhamos que ser honestas: não conhecíamos muitas das respostas, estávamos dando um tiro no escuro e torcendo para que não saísse pela culatra.
Então, depois de muito vai e volta, a sugeriu que todas colocassem um pouco da democracia daquela casa em prática e votassem, cada uma com seu papelzinho e sua caneta, cada uma com a sua opinião, independente de todos os receios. Depois disso, tudo que podíamos fazer era sentar e esperar, pois os nossos posicionamentos já eram bem óbvios. No máximo, pegar uma água na cozinha porque a indecisão naquele ambiente era grande.
— Só mais dois minutinhos, pessoal. Não temos a tarde inteira. – Nikki anunciou e eu tive que conter a vontade de bufar de tédio, optando por olhar a hora no meu celular ao invés disso.
Constatei que eu ainda tinha alguns bons minutos de sobra para não me atrasar para o meu compromisso seguinte. Só esperava que as garotas colaborassem comigo.
Três minutos depois – porque eu contei todos os segundos –, a votação foi oficialmente encerrada e as garotas começaram a contagem. Eu estava confiante. Depois de tudo que havíamos presenciado nas últimas semanas, era difícil acreditar que alguém iria contra o nosso plano. No entanto, eu tinha que manter em mente que estávamos dando um passo gigantesco, que significava bater de frente com uma montanha de ideias erguida durante anos e que nos trouxe até esse lugar, essa casa, a essas pessoas.
Suspirei. Aquela situação era extremamente frustrante.
— Acho que tenho tudo aqui. – murmurou consigo mesma, fazendo com que Ashley e eu nos levantássemos imediatamente em expectativa. – Só tô conferindo. – murchei novamente. Se o assunto não fosse sério, eu a acusaria de fazer algo assim de propósito, já sabendo o quanto me irritaria.
Pelo menos eu não era a única ansiosa. Mina estava a ponto de ser estapeada pela namorada por não sair de cima dela, tentando ver todos os votos e fazer sua própria contagem.
— Vamos lá, ! Nós temos pressa! – reclamou.
— Pronto! Eu em...
Ela deu alguns passos e sussurrou apenas para a Nikki o resultado, o que me fez querer revirar os olhos por impaciência. Tive que me lembrar um tanto de vezes que uma atitude ruim não me levaria a lugar algum... Não naquele lugar nem naquele momento. No entanto, poderia sempre repensar isso em outras horas.
— Tá bom. – Nikki disse e então pigarreou, se preparando para o grande anúncio. – O resultado não foi unânime, o que é uma pena, mas... Bem, vocês já sabem que podem se envolver se quiserem, quando quiserem e o quanto quiserem. O sim venceu... Nós vamos fazer isso.
Dessa vez, ela nos mostrou todas suas incertezas ao dar o resultado. Talvez porque os riscos fossem maiores. Não era mais uma briguinha com alguns garotos – que atualmente todas tentávamos ignorar de tão infantis que elas soavam perto disso –, envolvia um milhão de coisas que nós mal conhecíamos e atitudes que não tínhamos certeza se sabíamos tomar. Agora, descobriríamos de uma vez só.
Nós até comemoramos com certa cautela, sem saber se havia realmente algum motivo para isso. Eu gostava de pensar que sim, apesar de duas palavras tomarem a minha mente: e agora? Precisávamos de um próximo passo. Ashley e eu trabalhamos na ideia, pensamos no resultado final, mas adiamos ao máximo o como.
Felizmente ou não, a própria Katy nos deu algo para nos preocuparmos antes.
— Vocês disseram que um dos nossos objetivos é fazer a nossa causa crescer, certo? Para outras casas, universidades... – nós assentimos rapidamente. – Não seria melhor já começar como um grupo grande?
— O que quer dizer? – Ashley questionou. – Se nos dedicarmos a conquista de novas pessoas e não ao problema em si, as chances do que aconteceu esfriar são muito grandes.
— Eu sei, eu sei. É que nós temos algumas pessoas que já nos conhecem, gostam de todas nós ou pelo menos gostavam, já foram nossos parceiros... – ela sugeriu, dando uma olhada bem sugestiva para a Nikki.
— Ah, não! – exclamou, se levantando em protesto. – De jeito nenhum! Eu faço o que você quiser, Katy, mas não vou pedir ajuda para a Lambda. Não precisamos deles, são uns babacas!
— Mas eles não são! A situação toda era idiota, nós também não fomos muito legais com eles, só precisamos passar por cima disso.
— Não dá, esquece! No máximo, eles vão rir da nossa cara por sermos inocentes o suficiente para aparecer na porta deles.
— Vão mesmo, Nikki? Eles já foram muito bons para a nossa casa no passado. Eu sei que nem todos ali vão gostar da ideia, mas se uma minoria nos apoiar, nossos números já aumentam. Será que não somos maduras o suficiente para deixar o orgulho de lado e dar esse passo, ainda que não dê certo? Quer dizer, se até a conseguiu resolver seus problemas com o , por que nós não conseguimos também?
Dei um passo para trás, definitivamente não querendo ser parte daquele argumento. E então veio o silêncio.
Todo o resto observava o pequeno debate. Por mais interessante que aquilo fosse, eu também não tirava os olhos do relógio. Agora, sim, eu estava atrasada e tinha que resistir ao impulso de não sair correndo.
— Eles não são maduros. – Nikki disse, engolindo em seco.
— Tudo bem. Então nós só vamos nos mostrar superiores mais uma vez. Vale o risco, não?
Nikki pensou muito e em momento algum passou a responsabilidade pela decisão para nós. Ninguém falou nada também, o que era ótimo, ou uma guerra de opiniões se instalaria naquela sala novamente e eu não tinha mais tempo para isso.
— Vou cuidar disso. – disse por fim, arrancando pulinhos de felicidade da nossa Katy.
Eu nem mesmo tinha opinião sobre o assunto. Tudo que eu pensava era que nós precisaríamos de todo o apoio possível, ainda que viessem de caras... aqueles caras.
Só pude sair alguns minutos depois, quando Nikki encerrou oficialmente a nossa reunião. No entanto, fui parada antes que chegasse na porta da frente.
— Onde pensa que vai? Temos que trabalhar no que vamos fazer a partir de agora, criar cronogramas, prazos e tudo mais. – Ashley disse, me fuzilando com o olhar pelo meu quase escape.
— Ah... Eu tenho um compromisso, coisa rápida. Tô de volta em uma, duas horas no máximo. – respondi, tentando soar simpática.
Eu iria de qualquer maneira, ela nunca me impediria, mas agora que tínhamos algum tempo de trabalho juntas pela frente, eu estava tentando manter uma relação mais ou menos pacífica com ela. Isso estava me custando muitas indiretas e muito rancor por parte da Mina, mas era o melhor a se fazer no momento.
— Você chama isso de coisa rápida?!
— Aham! Tchau!
Contornei seu corpo e corri para fora sem dar a ela a chance de me prender ali de novo. Eu havia feito minha parte, merecia uma recompensa e, sejamos sinceros, não estava pedindo muito.
O sol estava abaixando e um ventinho gostoso tornava a minha maratona um pouco mais confortável, mas ainda suada e cansativa. Por azar – já que as coisas estavam indo bem demais até aquele momento –, havíamos escolhido uma cafeteria afastada do campus. Em épocas de provas, elas ficavam especialmente cheias e não queríamos correr o risco de dar de cara com algum conhecido, ainda que não estivéssemos cometendo crime algum.
Eu sabia estar mais de vinte minutos atrasada, o que não era nada bom, porém não me surpreendi ao entrar no estabelecimento e encontra-lo sentado tranquilamente, deslizando o dedo pela tela do seu celular, nem um pouco ansioso pelo possível bolo. Os motivos eram simples: ele me conhecia bem, e não é como se ele tivesse algo melhor para fazer.
Para ser honesta, havia sim uma coisa: estudar, coisa que ele sempre necessitou de alguns empurrões para fazer devidamente. Eu costumava ser a responsável por isso, mas não voltaria a prestar esse papel. sobreviveu seu primeiro ano inteiro na universidade sem eu para fazer cobranças, criar cronogramas e me matar de encher o saco dele, não precisava mais de mim. Além do mais, era um pequeno detalhe que me fazia crer que não estávamos apenas fazendo o mesmo caminho que já havíamos percorrido incontáveis vezes anos antes.
— Você está atrasada. – acusou, sem erguer os olhos de seu smartphone.
— Dá um desconto, você sabia da reunião. As garotas me seguraram lá e por muito pouco, a Ashley quase me prendeu pelo resto da noite. – me defendi e ele assentiu. Não estava chateado nem nada, só gostava de dificultar a minha vida.
— Talvez as pessoas compreendam melhor suas escapadas se souberem o que diabos você está fazendo fora, não? – ele questionou, já me encarando e finalmente deixando o celular de lado. Dei de ombros.
e eu vínhamos saindo escondidos desde o nosso último “encontro oficial”, as vezes para um bar qualquer, um passeio no shopping, uma balada ou apenas um café, como era o caso. Esconder aquilo dos nossos amigos não estava sendo necessariamente fácil, porém ainda parecia com a coisa certa a fazer. Estávamos nos dando bem, muito bem. Muitas vezes até melhor do que nos dávamos quando éramos apenas amigos e, ainda que eu me sentisse culpada por isso todos os dias, não gostava da ideia de incluir outras pessoas em nossa pequena bolha.
Pela primeira vez em muito tempo, nós conseguíamos conversar por horas sem entrar em uma discussão besta. Eventualmente o fazíamos, é claro, só pela diversão, mas era diferente. E bom. Poder sentir a falta dele em um dia que não sobrava tempo era, de certa maneira, bom.
— Só mais um pouco. – eu disse, apoiando o queixo em uma das minhas mãos e o olhando de uma maneira que ele não iria resistir. Pelo menos, nunca foi capaz.
Se quer saber, nas inúmeras vezes em que nos encontramos nos últimos dias não houve um beijo sequer. O mais perto que ele chegou foi da minha bochecha. tentou, muitas e muitas vezes, mas resisti em todas elas. Estava orgulhosa do meu feito porque eu tinha que admitir: não era nada fácil. Se eu parasse para pensar demais no assunto, admitiria também que era quase estúpido.
Lá no fundo, eu só estava tentando não estragar algo que caminhava perfeitamente bem.
Como previ, ele balançou a cabeça e riu.
Antes que pudéssemos dizer qualquer outra coisa, o garçom chegou para anotar nossos pedidos. Eu fiquei com um refrigerante e todo o gelo disponível naquele lugar e escolheu um suco natural. Porque nós éramos os tipos de pessoas que entravam numa cafeteria para tomar tudo, menos café.
— Não dava pra colocar pelo menos um pouco de açúcar? – ele riu mais uma vez, negando. – Você tá muito saudável ultimamente. No outro dia teve coragem de pedir o cardápio fitness na minha frente... O que aconteceu com a gente?
— Eu preciso me alimentar bem, estar em forma, . Acho que as vezes você se esquece que eu tô no time da faculdade.
— Ah, mas eu não esqueço mesmo. – comentei, descendo rapidamente meu olhar para os braços que aquela camiseta não fazia jus.
Ele sorriu, levemente envergonhando.
— Tá... Eu vou ignorar isso vindo da garota que já me rejeitou tantas vezes nos últimos dias que perdi a conta. – eu estava pronta para protestar sobre aquele comentário, porém ele não permitiu. – Continuando... não vou poder ficar muito hoje, tenho treino daqui a pouco.
— Treino? São quase 19h00.
— Eu sei, mas as estaduais estão se aproximando e...
— As estaduais?! Você passou para as estaduais?! – exclamei na voz aguda que eu tanto odiava, mas eram as ESTADUAIS que poderiam leva-lo para as NACIONAIS!
— Sim...
— AH MEU DEUS!!!
Eu não esperei que ele completasse sua frase, só joguei meus braços e corpo sobre a mesa para cima dele. Por sorte, ela era pequena e redonda ou eu teria feito alguns estragos. Ele me abraçou de volta, porém não tinha metade do entusiasmo que eu carregava.
— ... mais de um mês atrás. – completou, confuso.
Me afastei na mesma hora.
— Como assim mais de um mês atrás? – perguntei.
— , a primeira eliminatória já até passou... – ele explicou calmamente para a garota que se mantinha de pé com a boca aberta a sua frente.
— O quê!? Onde é que eu estava para não saber disso? Aliás, por que você não me contou? Por que não me convidou para assistir?! – questionei, me sentando brava e frustrada.
Era bom que ele tivesse uma ótima desculpa porque as chances de nós já termos tido o tão temido diálogo na época eram bem grandes.
— Foi naquela semana que você estava super focada no caso da Katy e na reunião que teriam com a coordenação, pouco antes do nosso encontro. Eu não comentei nada porque achei que alguém tivesse te falado, sei lá... De qualquer maneira, a primeira fase não era aberta ao público.
Cruzei os braços, fazendo o bico de uma criança emburrada. Aquela explicação estava longe de ser suficiente.
O garçom escolheu esse momento para trazer nossas bebidas, provavelmente concluindo que éramos um casal de loucos, pois em um segundo eu estava abraçando-o e no outro, queria chutá-lo.
— Isso é uma palhaçada! Como espera que a nossa amizade retorne quando não me conta algo assim?
— Eu sei, eu sei. Me desculpe, eu devia ter comentado. – disse, se inclinando em minha direção. Quando não recebeu nenhuma resposta, ele pegou um dos meus braços e puxou para cima da mesa, segurando na minha mão. – Vamos lá! O que eu preciso fazer?
— Eu não te digo mais o que fazer, . Não vou cair nas garras do meu controle excessivo novamente.
Ele sorriu compreensivo e apertou minha mão.
— Que tal um convite para a piscina, então? Eu vou estar sozinho lá, você tá com calor...
Revirei os olhos.
— Sabe que nós temos uma piscina em casa, não sabe? Por que eu me daria o trabalho de atravessar o campus para ir em outra? – questionei, debochada. A resposta dele foi simples:
— Porque a outra tem a minha presença.
Eu ri bastante, nem um pouco a fim de deixar um ego desse tamanho passar livremente. Fiz piadas, zombei tanto que até esqueci do que que me incomodava segundos antes. No entanto, quinze minutos depois, assim que terminamos nossas bebidas, eu me vi atravessando a porra do campus ao lado dele.
O prêmio de trouxa do ano definitivamente seria meu.
Para ser honesta, os primeiros 40 minutos me fizeram acreditar que, no final das contas, aquela havia sido uma ideia muito boa. me emprestou uma bermuda leve que eu dobrei até virar um short mais ou menos decente e uma regata que eu só amarrei, me fazendo ficar parecendo um molequinho. A outra opção era ficar de calcinha e sutiã, mas esse passo eu não daria. Não naquele momento.
Enquanto isso, ele ficou com sua sunga, óculos, touca e um relógio para cronometrar o tempo. Era um pouco injusto, porém uma vez que ele entrou na água, foi possível ignorar.
Eu fiquei em uma das beiradas apoiada, eventualmente dando pulinhos para lá e para cá, brincando comigo mesma, enquanto ele ia e vinha, tão rápido que ficou chato tentar acompanhar. Apesar de todas as tentativas dele no decorrer dos anos, eu nunca me tornei uma boa nadadora. Sabia o suficiente para sobreviver em algum acidente, mas o desespero provavelmente faria a maior parte do trabalho.
Estava respondendo algumas mensagens da Ashley aborrecida pela minha demora – que nem havia completado duas horas ainda, diga-se de passagem – quando senti uma mão agarrar meu tornozelo. Eu sabia que era ele, tinha plena consciência de que estava segura, mas isso não me impediu de gritar pelo susto e tentar chutá-lo para longe, movimento que a água dificultou bastante.
— Vai assustar a tua mãe! – exclamei quando ele subiu, aparecendo com um sorriso besta na minha frente.
— Não preciso porque a minha mãe sabe se divertir quando está numa piscina. Vem! – disse, já me puxando e só me dando tempo o suficiente para jogar meu celular de qualquer jeito na beirada, ato pelo qual eu o faria pagar mais tarde.
— Eu só estava acalmando a Ashley, pelo amor de Deus. E eu brinquei bastante ali sozinha.
Ele riu.
— É, eu vi. Vi também todas as suas tentativas fracassadas de boiar. Pensei que eu já tivesse te ensinado isso.
— Belo treino você fez se ficou me assistindo o tempo todo. – cutuquei, apenas porque ele havia ofendido minhas técnicas flutuantes. – Eu sei boiar, tá legal? Só tô um pouco enferrujada.
— Ah, é? Vai lá então. – ele disse, se afastando e parando de braços cruzados para me observar bem.
Como se eu soubesse o que estava fazendo, eu respirei fundo, me esforçando para manter aquele ar ali, e joguei meu corpo para trás. Eu sou delicada como uma mula, então tudo que eu consegui foi começar a afundar e me debater toda em poucos segundos.
— Isso foi... Realmente impressionante. – ironizou depois de me ajudar a ficar de pé e estável novamente.
— Você sabe que eu sou péssima na água. – admiti. Na verdade, esse era um dos poucos fatos sobre mim que eu não tinha problema algum em negar. sempre foi o peixe da nossa relação e sempre seria.
— Vem aqui. Vou te ensinar pela vigésima vez. – falou, voltando a se aproximar. Dessa vez, vindo até um pouco perto demais para o gosto da pessoa que se encontrava constantemente tentando resistir a ele.
Eu tinha que dizer que aquela minha improvisação de look para piscina fazia um ótimo trabalho. Ali, tão perto de um sem camisa, molhado, com a respiração ainda rápida pelo cansaço, o que dava para o seu peito um movimento extremamente... Isso não vem ao caso. O meu ponto é: eu nunca permitiria que nosso terceiro primeiro beijo neste ano acontecesse enquanto eu estava vestida assim. Me chame de frescurenta, mas eu tinha coisas maiores em mente.
— Se eu morrer afogada hoje, quero que saiba que a culpa é toda sua. – eu disse com o sorriso mais ameaçador que eu tinha.
— Você pode morrer de muitas maneiras, , mas sabe que eu nunca permitiria que se afogasse comigo por perto.
Minha boca foi mais rápida que o meu cérebro e se abriu, pronta para falar algo muito esperto, porém eu não tinha nada.
— Tá... – fui capaz de balbuciar e ele riu da minha cara. Balançando minha cabeça rapidamente, eu me livrei daquele momento. – Vamos logo antes que eu desista disso.
— Certo... Deixa o seu corpo cair que eu vou te segurar, tá bom? – assenti, apesar de não amar a ideia, e fiz o que ele pediu. – Com calma... – disse lentamente, o que acabava por me irritar mais do que acalmar. Quando meu corpo ficou completamente na horizontal, eu senti suas mãos firmes embaixo e não gostei nada daquilo. Bom... Eu gostei bastante, na verdade, mas esse gostar não me agradava. – Respira devagar, enche o seu pulmão de ar. Acha que tá estável? Posso te soltar? – assenti novamente e ele o fez. Em dois segundos, eu estava toda estabanada tentando ficar de pé novamente.
— Tá louco?! Quase me matou!
— Não seja dramática. Você tá muito preocupada com a sua cabeça.
— É claro que tô! É por onde eu respiro, sabia?
Ele apenas ignorou meu ataque e continuou falando.
— Quando você força ela, acaba tencionando o seu corpo e começa a descer. Outra coisa: você pode respirar. Se estiver fazendo tudo certo, quando seu pulmão esvaziar, seu corpo vai cair levemente, mas nada que inspirar de novo não resolva. Precisa ficar calma. – revirei os olhos, deixando claro que aquela não era uma opção muito viável no momento. – Vamos tentar mais uma vez?
— Vamos... Eu acho.
Nós fizemos todo o processo novamente até que eu me encontrasse deitada, amparada pelos seus braços e com o rosto bem próximo do dele. Tudo isso resultava em uma nem um pouco calma.
— Vou demorar um pouco mais para te soltar dessa vez, ok? – balancei a cabeça, concordando. – Fecha os olhos. – o olhei com uma interrogação na cara, especialmente pelo seu tom de voz ter mudado drasticamente para um suave e terapêutico, mas ele apenas repetiu: - Fecha os olhos. – então eu o fiz. – Agora respira lentamente e presta bastante atenção no que você está fazendo. Inspira... Expira... Inspira... Expira... Sem pressa. Preste atenção no seu próprio corpo, como ele reage ao movimento da água, como ela reage a ele...
Aquilo era particularmente difícil de fazer porque focar em tudo daquela maneira também me fazia perceber que agora ele estava tão perto que eu podia sentir um pouco de sua respiração bater na minha bochecha. A partir desse momento, tudo começou, literalmente, a ir por água abaixo.
Toda a serenidade e controle que ele havia me ajudado a atingir desapareceram quando eu abri meus olhos e percebi que eu queria muito, mas muito mesmo, beijá-lo naquele segundo. Eu não estava nem um pouco preocupada com a minha instabilidade até que afundei o suficiente para perceber que os braços dele haviam parado de me sustentar há um bom tempo. Então, mais uma vez, eu estava me debatendo para tentar ficar em pé novamente.
, pego de surpresa pelo meu repentino desespero, agiu rápido, chegando a levar alguns tapas pelos quais eu teria que me desculpar mais tarde. Por fim, ele me ajudou a voltar para a sempre segura vertical com um mínimo de água de piscina no meu estômago. Estava longe de ser o ideal, porém era muito bom.
— Tá tudo bem? – ele questionou, ainda me segurando e claramente prendendo a risada.
Eu assenti, o encarando. Era mentira. Minha garganta queimava e a roupa mais desconfortável do mundo para se estar em uma piscina pesava. No entanto, eu ainda tinha em mente o quão doce ele me parecia no momento e o quão chamativo estavam seus lábios.
Acho que ele leu bem meu olhar porque sua vontade de rir foi embora rapidinho. Eu sentia meu coração querer sair pelo peito e um calor completamente inexplicável para duas pessoas que se encontravam dentro de uma piscina gelada. Não sabia se ele estava no mesmo lugar que eu ou se iria me jogar para longe a qualquer momento e essa dúvida foi a única responsável por me manter imóvel, apenas sentindo sua respiração agora ainda mais próxima.
Foi só quando ele se inclinou para me beijar que eu me lembrei: aquilo não podia, de jeito nenhum, acontecer neste momento. Não nessas roupas, não aqui. Então eu juntei todas as minhas forças e me afastei, sabendo que estava sendo uma verdadeira filha da puta que não sabia o que querer da vida.
’ POV
Dei uma boa olhada na quantidade de livros e papeis que eu tinha na minha frente. Eu estava sentado ali já fazia uma hora e não gostaria de aumentar esse número para duas. Nunca havia sido o melhor estudante desse mundo, tinha a natação para me ajudar a completar aquilo que meu intelecto não dava conta, então para que começar agora, certo?
Relaxei na cadeira e peguei meu celular, percebendo em poucos segundos que aquela não havia sido uma boa ideia. Minha tela de bloqueio mostrou a imagem da sorrindo tentando equilibrar seus próprios livro e papeis enquanto tirava a foto e imediatamente eu me senti culpado por desistir tão fácil. Ela me odiaria se soubesse que sua foto estava ali, mas eu estava tomando todos os cuidados necessários para que ninguém tocasse naquele aparelho além de mim.
Com um suspiro, eu ia voltar para os estudos por pelo menos mais uma hora quando alguém bateu na porta. Eu fiquei feliz até ver que a cabeça que surgiu ao abri-la foi a do Ryan. Ele havia deixado de ser alguém que eu suportava estar por perto há algum tempo.
— Ei, posso entrar? – perguntou, já dentro do quarto.
— Agora eu não tenho muita escolha, né?
Ele riu, nem aí para o fato de que eu não estava nem um pouco animado com a presença dele.
— Eu preciso de um favor, cara. – disse, se sentando em uma das camas. – Um grande favor.
— Ah, não, Ryan! Lembra da nossa discussão aquele dia? Você não me pede mais favores, eu já te fiz muitos deles. Chama outra pessoa, eu tenho que estudar.
— Eu preciso especificamente de você agora.
Eu joguei minha cabeça para trás, grunhindo em protesto. Por que eu fui o escolhido? Com tantos caras naquela casa merecendo o castigo.
— Tá bom, Ryan. Fala logo.
— Bom, é sobre a Nikki. Ela meio que me chamou para sair no sábado e eu aceitei. Espero que você esteja bem com isso porque se não estiver, não vai importar muito. Ela já me irritou muito no passado, você sabe, mas é a Nikki! Eu preciso que isso dê certo, !
Fiquei parado por alguns segundos, assimilando aquele momento. Estava dividido entre ficar ofendido pela audácia dele de não se importar e a surpresa pelo convite da Nikki. Aquilo não me parecia certo. Ela chamar o Ryan para sair? Não, definitivamente não soava certo.
— A Nikki te chamou para sair?! Tipo em um encontro? – questionei.
— Sim! – respondeu animado, até que um segundo depois sua expressão mudou para a desconfiança. – Não tá com ciúmes, né? Qual é, , vocês não estão juntos faz um tempo e eu já te vi passeando por aí com outra. Não pode querer todas elas.
Arregalei os olhos.
— Você me viu com quem?
— Não reconheci, estavam longe demais. Mas esse não é o ponto: chegou a minha vez! Eu vou sair com a Nikki.
Lá no fundo, eu soltei um suspiro de alívio. me mataria se ele soubesse. Ainda que eu não fosse exatamente o culpado, ela daria um jeito de me matar por aquilo.
— Faz o que você quiser, Ryan. Nikki e eu somos apenas amigos. – pensei melhor. – Eu acho. O que eu tenho a ver com isso?
— Você precisa me dar dicas! Como eu me comporto? Levo algo para ela? Você tinha tudo indo contra você e acabaram por ficar naquele rolo por um ano, alguma coisa deve saber. – explicou e eu assenti, finalmente compreendendo meu papel naquela história. Um papel que eu preferiria não interpretar, é claro, mas decidi dar a ele algo na esperança de ficar livre pelos próximos dias.
Nós ficamos ali por uns bons minutos. Levou tempo para ele entender que ele não precisava fazer mil coisas, agir de tantas maneiras, porque a Nikki era uma garota bem simples, logo, ela gostava de tudo que era trabalhado com simplicidade. Sem grandes emoções, atos exagerados nem nada do tipo.
Quando ele finalmente foi embora, eu fiz algo que não sabia se tinha a liberdade para fazer. No entanto, pensei que se não tivesse, o pior que poderia acontecer era ser ignorado. Viu? Simples.
"Você vai sair com o Ryan? Tem certeza?"
Voltei a ler alguns textos, mas rapidamente recebi uma resposta.
"Sim... Coisas da Kappa. Por que?"
Sorri, balançando a cabeça. Eu sabia que havia algo ali. Além disso, percebi que havia um toque de em mim quando digitei a próxima mensagem.
"Entendi ahaha só por curiosidade, ele tá bem animado."
Eu poderia evitar uma leve confusão, porém descobrir que ele teria um jantar “de negócios” não faria o Ryan muito feliz. E seria definitivamente divertido, ainda que eu não estivesse lá para ver.
A conversa parou por ali e eu voltei a me dedicar aos livros. Não por muito tempo, mas consegui revisar bem algumas coisas. Seria o suficiente para sobreviver ao dia seguinte.
Ainda eram 20h00 e eu poderia fazer uma infinidade de coisas. Ir atrás do e do para bater um papo, jogar carta com o Joe no andar de baixo, aproveitar as últimas horas do dia para treinar mais um pouco... No entanto, eu tinha uma só coisa na minha mente. Se estava sendo honesto, teria que admitir que ela era a única coisa na minha mente há um bom tempo.
Eu nunca estive confortável com a distância entre a e eu. Com o tempo, apenas me acostumei porque não me restavam muitas opções. Agora que eu podia estar perto dela novamente, sem
Me sentindo um completo idiota, eu me joguei na minha cama e abri seu instagram apenas para passar o olho pelas fotos. Ela estava linda em cada uma delas. Nunca iriam suprir a minha vontade de ter ela ali naquele segundo, porém, novamente, não me restavam opções, já que a mensagem que eu enviei nem havia chegado, o que significava que ela estava estudando com o celular desligado para evitar tentações.
Pelo menos eu estava me acostumando a passar vontade, o que não é necessariamente bom, mas teria que ser o suficiente. Eu a machuquei, ainda que as vezes eu prefira deixar esse fato de lado. Não poderia culpa-la por ser receosa, por dar passos extremamente lentos quanto se tratava de mim. Enquanto isso, eu fechava os olhos e ficava sonhando com o momento em que poderia beijá-la e tocá-la como eu realmente queria de novo. Não por muito tempo, já que o resultado não é tão satisfatório quanto pode parecer.
— Não seja chato, ! Todas as Kappa Deltas vão estar lá! – Joe disse pela milésima vez naquela noite. Mais uma e eu provavelmente daria um soco nele. Já estava resistindo há um tempo.
— Eu já te falei que eu tenho compromisso e não vou desmarcar por causa de uma festa qualquer. – murmurei, tentando focar minha atenção no meu jantar e não na criança irritante ao meu lado.
— Festa qualquer?! – questionou, ofendido. – Você sequer ouviu o que eu acabei de te dizer? Kappa Kappa Delta!
— E você me ouviu dizer que eu não me importo? Tenho compromisso.
— Desmarca. – afirmou, sorrindo.
Optei por simplesmente ignorar. Não podia dizer que meu compromisso era com a e não queria ir na tal festa, de qualquer maneira.
Por sorte, Ryan chegou marchando na cozinha, o que imediatamente chamou a atenção de todos. Ele estava voltando de seu grande encontro, aquele que fez questão de espalhar para a casa toda. Sua cara não estava muito boa, mas poderia estar pior e isso me fez acreditar que não havia sido de todo ruim.
Haviam no máximo 10 pessoas naquele cômodo, porém ele fez seu anúncio mesmo assim.
— Se vocês têm algum compromisso amanhã, aproveitem hoje para desmarcar.
— O quê!? – Joe exclamou e eu não pude deixar de rir na cara dele. Não que eu estivesse muito feliz com a notícia.
— As kappas vão dar uma festa na piscina amanhã e nós fomos convidados. Preciso de todos vocês lá.
— Delta?
— Gamma, Joe.
Por dentro, eu senti um alívio. De certa forma, não teria que desmarcar meus planos.
— Mas elas não podem dar festas. – alguém atrás de mim disse.
— Sem bebidas alcoólicas. – Ryan respondeu rapidamente.
— Mas essa é a melhor parte! – Joe protestou em mais um capítulo do seu drama.
— Pensei que fossem as garotas. – eu disse, segurando uma risada.
— Fica na tua, . – disse antes de sair extremamente chateado com as novidades.
— Bom, vocês estão responsáveis por espalhar a notícia. Kappa Kappa Gamma, amanhã, 15h00. – Ryan informou, também deixando o cômodo e saindo em direção as escadas.
Fui atrás dele imediatamente, sentindo que o jogo havia virado agora que era eu quem corria atrás.
— E aí, como foi?! – questionei, já subindo os degraus com ele.
— Não foi, . Ainda. – respondeu, claramente chateado com aquilo e nem um pouco feliz com o interrogatório, mas eu merecia e ele sabia disso.
— O que ela queria então?
Eu já estava a par de tudo, graças à . No entanto, não sabia exatamente onde aquela festa na piscina se encaixava no plano geral.
— As garotas querem a nossa parceria de volta. – ele falou com desdém. – Só porque precisam da gente para um protesto ou algo do tipo, não entendi muito bem. Eu sou legal, , então considerei a ideia, mas quem vai ter que conversar com toda a casa vão ser elas, amanhã.
— Isso não é um pouco babaca da nossa parte? – questionei, agora parado com ele em frente ao seu quarto.
— Isso é só uma leve vingança pelas sabotagens seguidas que nós sofremos.
— Pensei que você e a Nikki estivessem se entendendo, quer dizer... Vocês até compartilham o segredo de que casa realmente venceu.
— São dois assuntos separados, . E isso já não importa mais, o que importa é: esteja lá amanhã e garanta que todos os outros rapazes façam o mesmo. – finalizou, passando pela porta e me deixando para o lado de fora.
— Eu não perderia por nada. – sussurrei para mim mesmo.
Poucos minutos depois, eu senti meu celular vibrar incansavelmente pelo grande número de mensagens chegando. Antes de desbloquear, eu já sabia que a estava ciente das novidades e nada feliz com elas. Entre xingamentos e muitos “aaaaaaaaAAAAAaaA”, ela condenou o Ryan por ser um moleque insensível e sem noção alguma da gravidade daquele problema. Decidi começar uma ligação para facilitar aquele momento.
— Calma. – eu disse a ela. – Xingar o Ryan não vai te levar a lugar algum. Acredite em mim, eu já tentei em diversas situações.
— O que você quer que eu faça? Sente e deixe que tudo seja feito da maneira dele?
Eu demorei alguns segundos para responder, esperando que ela chegasse a mesma conclusão que eu apenas para acabar confirmando.
— Exatamente. É tudo que você pode fazer no momento.
— , eu não acho que você tenha noção da gravidade disso! Deixa eu refrescar sua memória rapidinho: sua casa nos odeia e não vai ver vantagem alguma em nos ajudar. Eu vou ficar surpresa até se eles se derem o trabalho de aparecer aqui amanhã. – ela argumentou, impaciente.
— Nós não somos tão babacas quanto você pensa, ok? É claro que alguém vai querer ajudar, ninguém aqui achou graça do que aconteceu com a Katy.
Ela suspirou e eu podia imaginá-la encolhendo os ombros, desanimada.
— Alguém não é o suficiente. Isso é grande... Nós precisamos de toda ajuda possível e não sabemos se vamos conseguir. É assustador.
Eu assenti, mesmo sabendo que ela não podia ver o movimento. Sabia bem que admitir que aquilo a assustava não era nem um pouco fácil para a , especialmente se tratando de mim no outro lado da linha.
— Eu sei... Eu entendo. Todos vão estar lá amanhã, tá bom? Confia em mim.
Ela ficou em silêncio, mas não a culpei por isso.
Poucos minutos depois, eu dei a desculpa de que tinha que estudar para desligar o telefone. A realidade é que tinha trabalhos a fazer e eles não tinham nada a ver com as minhas aulas.
Pode me chamar de trouxa, bobinho ou qualquer que seja a palavra da vez que usam por aí... Eu não podia deixa-la se decepcionar com aquilo. Digamos que eu mesmo seja o cara que já fez isso vezes demais para uma vida inteira. No final das contas, eu sabia o quanto conquistar aquilo a faria bem e se eu podia ajudar de alguma maneira, ainda que besta, por que não?
Foi assim que eu passei as próximas duas horas indo atrás de morador por morador daquela casa para garantir que todos estavam cientes do compromisso de amanhã e que, mais do que isso, estariam lá. A maioria deles foi bem compreensiva, em especial aqueles que não haviam sido diretamente afetados por tudo que houve entre as nossas casas. No entanto, sempre tinham aqueles que precisavam ser seriamente ameaçados para que finalmente se mexessem.
Só quando terminei, pensei que podia finalmente me deitar e dormir em paz, assim como os meus colegas de quarto, que já estavam todos derrubados. Eu esperava que o dia seguinte fosse bom, afinal de contas, estaria perto dela durante grande parte dele. Por outro lado, não é como se eu realmente pudesse estar perto dela como gostaria, primeiro porque ela não permitiria e segundo porque estaríamos cercados de pessoas. Ela não estava pronta para dar esse passo e eu queria respeitar isso... Na maior parte do tempo.
Algum tempo depois, eu percebi que começava a ficar ansioso e preocupado com coisas idiotas, então cortei completamente aquele assunto da minha cabeça, esperando apagar logo.
Já no dia seguinte, eu percebi que minha ansiedade podia atingir níveis realmente altos, o que me parecia ridículo às vezes, quer dizer... Era só a . A mesma com quem eu já saí um milhão de vezes, a mesma que eu namorei durante mais de dois anos.
Não levei muito tempo para perceber que eu estava completamente equivocado. Aquela nunca poderia ser a mesma , pois ela havia crescido e amadurecido em tantos aspectos que eu ainda me sentia um moleque perto dela. Um moleque besta, sem chance alguma, babando na garota mais linda e incrível do mundo.
Revirei os olhos para o meu próprio drama, mas sabendo que havia uma boa quantidade de verdades ali. No entanto, confirma-las me fazia sentir mais ridículo ainda, então eu deixaria que outra pessoa – provavelmente a – as jogasse na minha cara mais cedo ou mais tarde. E todos nós sabíamos que isso com certeza aconteceria eventualmente.
Quando o relógio finalmente marcou 15h00, eu saí recolhendo metade da casa para ir até as meninas. Alguns deles estavam considerando meu comportamento estranho e duvidoso, como se eu tivesse passado para o lado delas, mas ignorei-os. Só queria vê-la logo, especialmente porque não havíamos conversado ainda hoje, e garantir que tudo ficaria bem.
Assim que nos aproximamos da Kappa House, ouvimos música. Seguimos direto para os fundos, onde várias garotas já se encontravam. Toda a piscina estava enfeitada com boias divertidas, haviam algumas mesas com guloseimas e bebidas sem álcool (pelo menos, até a Mina passar por ali) e luzes que deveriam ser acesas mais tarde para todos os lados. Logo os rapazes se espalharam.
Não pude deixar de notar que a Katy não estava ali e, para ser honesto, não achava que a veria hoje. No entanto, a devia estar. Por isso fiquei decepcionado quando não a encontrei em lugar algum.
— Procurando alguém, ? – Mina apareceu, me rondando. Engoli em seco.
— Sim... Sua namorada. Viu ela por aí?
Ela sorriu, maléfica.
— Aham, bem ali no canto, onde você estava olhando até agora. Deixou passar, foi?
Se eu não conhecesse bem a Mina, diria que ela sabia sobre mim e a (se é que havia algo para saber). Porém ela só tinha suas desconfianças. E aquela era a sua maneira de me fazer falar tudo, coisa que eu definitivamente não faria. Bom, se dependesse apenas de mim, até poderia, mas esse não era o nosso caso.
— Olha só como eu tô cego! Obrigada, Mina. – disse, fugindo dela no mesmo segundo e indo em direção a . – Ei! – cheguei rapidamente nela, que terminava de organizar uma das mesas de uma maneira que apenas ela poderia se dar o trabalho de fazer.
— Que susto!
Sorri, me desculpando.
— Viu a por aí? Tenho que conversar com ela. É meio urgente.
— Hoje? Tem certeza? Ela tá num mal humor do cão, pode não querer nem olhar na tua cara. – disse e eu tive que conter minha vontade de revirar os olhos para dizer que ela com certeza queria me ver.
— Acho que eu vou me arriscar. – falei, forçando um sorriso.
— O risco é seu. – disse, dando de ombros. – Tá no nosso quarto terminando de se arrumar.
Parti no mesmo segundo, despreocupado com o que ela acharia daquilo, pois parecia muito bem concentrada em sua decoração. Ela tinha suas prioridades e eu tinha as minhas.
As garotas com quem encontrei no caminho estavam tão concentradas nos últimos detalhes de sua festa que não deram a mínima para mim ou a minha pressa de subir as escadas até o quarto da . Isso não era muito bom, mas tinha suas vantagens para mim, o cara que não estava com vontade alguma de ter que se explicar para alguém.
Bati na porta e na mesma hora ouvi um “Entra” da parte dela. Foi o que eu fiz. Tarde demais, eu percebi que deveria ter me anunciado porque a cena que me esperava do lado de dentro quase fez meu coração parar ali mesmo. se encontrava em frente a um espelho vestindo apenas a calcinha de um biquíni enquanto tentava e falhava ao amarrar sozinha a parte de cima.
Ela só percebeu que eu não era uma das garotas quando me viu rapidamente pela sua visão periférica e deu um pulo em seu lugar, agarrando a primeira toalha que encontrou para cobrir o próprio corpo. Ela se virou então para mim, me fazendo pensar que eu seria, com razão, chutado para fora daquele quarto, mas sua expressão suavizou quando ela identificou que se tratava de mim parado ali.
— Ah, , é só você.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela soltou a toalha, voltando a ficar novamente só de calcinha e com a parte de cima do seu biquíni jogada em volta do pescoço. Por alguma sorte – ou extremo azar – do destino, seu cabelo cobria quase tudo. Porém não o suficiente para me tornar uma pessoa sã.
— E-e... Asss...
Em algum lugar entre essas letras, havia uma frase lutando para sair.
— Aproveitando que está aqui, amarra esse negócio para mim. – pediu, voltando a se virar para o espelho. – O universo tá tão contra mim que eu me tornei incapaz de amarrar um biquíni, legal, né? Fecha a porta, por favor.
— Uhum. – foi tudo que eu fui capaz de murmurar.
Eu tinha duas teorias:
A primeira dizia que a havia desenvolvido um sério caso de bipolaridade, pois em um dia não queria nem ficar de calcinha e sutiã debaixo da água comigo por perto e agora, pouquíssimos dias depois, desfilava seminua na minha frente sem problema algum.
A segunda era mais triste e muito assustadora. Estávamos nos dando tão bem recentemente que ela estava me vendo agora como um amigo gay ou algo do tipo, logo, não havia problema em ficar daquele jeito comigo em um quarto que me parecia tão, mas tão, pequeno.
— Ei! Que tal mandar esse sangue de volta para cima e vir aqui me dar uma mão?
Eu engoli em seco, fechei a porta e fui até ela, consciente demais sobre cada movimento meu. Quando cheguei perto o suficiente para conseguir fazer o serviço, mas longe o suficiente para nada, sinceramente, porque qualquer lugar dentro daquele cômodo me parecia perto demais, ela já me esperava com o tecido devidamente colocado sobre os seus seios, segurando as cordinhas para mim.
Tomando todo o cuidado que eu tinha em mim para não tocar nela, eu comecei a amarrar a peça.
— Pode apertar mais um pouco? – ela perguntou, me olhando através do espelho e eu tive que me segurar para não dizer: “não posso, não. Vai ficar assim”.
— Posso. – o cara educado que infelizmente era parte de mim disse.
Respirando devagar e com uma lentidão exagerada, dei os últimos nós. Nos rápidos segundos em que meus dedos roçaram suas costas, eu senti meu corpo inteiro ficar tenso. Bom... Senti outras coisas também, mas não sabia se queria pensar naquilo.
Assim que terminei, vi suas costas balançarem em um riso. Pelo reflexo do espelho, eu vi que seu olhar estava fixo em mim.
— Eu tô quente, é?
Arregalei os olhos, confuso com o que diabos aquela pergunta deveria significar. Era alguma pegadinha? Seu tom não havia deixado muito espaço para interpretações.
— O q... Como?
— Você tá com medo de encostar em mim. Não vai se queimar, sabe? – ela explicou, com certo humor no olhar. Balancei a cabeça levemente e ri, apenas por puro nervoso. – Nossa, a sua cara tá ótima. O que há com você hoje?
Revirei os olhos.
— Você realmente precisa perguntar? – ela deu de ombros.
Não me pergunte como, mas no segundo seguinte eu me peguei explicando para ela as minhas duas teorias, só porque aquilo era tudo que eu tinha no momento. Quando terminei, ela não conteve seu riso, aproximando seu corpo do meu rapidamente só para me dar um leve empurrão. Eu congelei no meu lugar.
— Uma garota não pode simplesmente mudar de ideia? – disse e, mais uma vez, eu travei.
Tá legal. Eu tenho consciência de que não estava soando como o cara que mais queria tê-la nos braços no momento, cara esse que eu era, mas você tem que compreender de onde isso vem. Havia sido rejeitado e deixado na mão por essa garota tantas vezes nas últimas semanas que banhos gelados e... Bem, outras coisas não funcionavam mais.
Estava apenas cuidando e temendo pela minha saúde.
— Pode... É claro que pode. – respondi, engolindo em seco.
Para a minha surpresa, agora eu estava consciente do quão próximo estávamos e da proporção de pele que ela tinha a mostra em um nível que não achava possível ser atingido. Ela tinha razão, havia algo muito quente naquele espaço mínimo que os nossos corpos ocupavam.
— Então... – ela disse, prolongando a sílaba final e voltando a chamar minha atenção para o reflexo no espelho, por onde ela me olhava com uma expressão extremamente sugestiva. Na verdade, tão sugestiva que eu desconfiava ter dado alguns passos fora da realidade e estar vendo coisas.
— Tá falando sério? – não pude deixar de questionar. – Porque você já me rejeitou tantas vezes em tão pouco tempo... Tá começando a afetar minha autoestima, sabia? Então se isso for algum tipo de brincadeira apenas para cortar o meu barato daqui a pouco, eu prefiro que...
Enquanto eu tagarelava minhas idiotices, observei seus olhos deixarem os meus no espelho para que ela pudesse se virar de frente para mim e definitivamente colar o seu corpo ao meu. Só isso foi necessário para que eu perdesse de vez a minha fala. Porque queimava. Ah, como queimava. E o sentimento não era nem um pouco ruim.
A próxima e última coisa que eu vi foi seu sorriso antes de me puxar pela nuca e selar também os nossos lábios. A partir daí, eu não tive dificuldade alguma para reagir. Finalmente estávamos onde a minha mente esteve esse tempo todo e agora eu sabia exatamente o que fazer.
A tomei pela cintura, garantindo que nossos corpos estivessem o mais próximo possível e aprofundando o beijo, tudo na tentativa de fazer valer todos aqueles momentos em que sonhei em tê-la exatamente assim, mas não pude. Não precisei de dois segundos completos para concluir que valia a pena, que cada novo toque dela compensava todo e qualquer espaço de tempo longe e eu sabia que estava completamente perdido por causa disso.
Quando me dei por mim, já estávamos na beirada da sua cama e tivemos que nos separar para que ela pudesse se deitar no beliche sem nenhum acidente. Observei enquanto ela encostava suavemente sua cabeça no travesseiro, espalhando seus fios de cabelo através do tecido, com a respiração entrecortada e por um momento eu perdi meu ar. Não houve um momento em que eu esqueci o quão linda ela era, porém olhá-la daquela maneira, com um sorriso leve nos lábios rosados, bochechas coradas e um olhar profundo que poderia facilmente enxergar minha alma, eu não tinha palavras. Realmente não tinha palavras para o que aquilo significava.
— Dar uns amassos em uma cama de verdade... Acho que não fazemos isso há um tempo. – ela disse, felizmente me tirando da minha bolha antes que eu começasse a babar nela ou algo do tipo.
— E a culpa é de quem, ?
— Acho que você não quer entrar nessa discussão agora, .
Eu parei. Ela tinha razão. Aquela conversa tinha potencial para chegar em lugares em que eu não gostaria, especialmente enquanto eu tinha seu corpo sob e tão próximo ao meu.
Fui eu quem tomei a atitude de beijá-la dessa vez, já sentindo certa abstinência da sua boca, seu gosto, sua língua, do deslizar ansioso das suas mãos pelos meus ombros, a inconstante indecisão entre tirar ou não tirar minha camiseta, basicamente cada pequeno aspecto de estar com ela que me fazia esquecer completamente da existência de um mudo exterior a nós dois... E eu não poderia me importar menos.
Por isso, eu não saberia responder – muito menos chutar – por quanto tempo ficamos ali, apenas na companhia um do outro. Eu sabia que as horas corriam de forma impressionante quando estávamos juntos, porém naquela situação em particular, nós parecíamos ter batido algum tipo de recorde.
— .
A voz repentina que não pertencia a mim nem a garota embaixo de mim somada ao som da maçaneta virando me fizeram levantar imediatamente sem nem pensar. A falta de racionalidade me fez esquecer de que eu estava em um beliche, trabalho que a cama de cima tratou de fazer quando minha cabeça foi diretamente de encontro a ela.
Alguns centímetros abaixo, se dividia entre segurar o riso, se preocupar com a minha possível fratura craniana e com a pessoa do lado de fora da porta, que não entrou graças ao meu cuidado em trancá-la mesmo quando não conseguia nem pensar direito. Parece que eu tenho pelo menos um pouco de senso de preservação, afinal de contas.
Levei a mão até a área atingida, orgulhoso de mim por não ter feito som algum de dor, pois o impacto já havia feito o suficiente.
— Machucou? – ela sussurrou.
Estava pronto para dizer algo do tipo: “que pergunta! É claro que machucou! Não ouviu o barulho que essa merda fez?”, mas fui interrompido pela voz da agora-identificável April.
— ? O que foi isso? Abre a porta.
Com essas perguntas, ela pareceu acordar para a vida abruptamente, me chutando para fora da cama em que estávamos.
— Para baixo da cama, agora! – ela ordenou, mas eu fiquei parado, pensando na possibilidade dela estar realmente falando sério. Não foi uma boa ideia, pois logo depois vieram seus braços fracos, mas ardidos me empurrando para baixo. Decidi cooperar, porém já planejando uma briga para o nosso futuro por esse momento, e me enfiei debaixo da cama da , a única que poderia me esconder de verdade.
— Tô indo! – disse, correndo para a porta depois de se certificar que eu não poderia ser visto. – Foi mal, eu estava trocando de roupa. – justificou enquanto eu ouvia os passos apressados da April dentro do quarto, parecendo não dar a mínima para o que a poderia estar fazendo sozinha e trancada ali.
Ouvi a porta do closet ser aberta às pressas e então roupas e mais roupas serem jogadas no chão.
— Não tem nada aqui!
— O que você tá procurando?
Silêncio.
— Isso! É de algo assim que eu preciso, algo que destaque a minha pele, que me faça parecer bonita sem nem me esforçar. Por que eu não tenho algo assim?
Franzi o cenho. Era difícil compreender o diálogo quando me privavam da minha visão.
— Do que você tá falando? O seu é lindo!
— Não é! – me assustei com o movimento do colchão acima de mim, sinalizando que ela havia sentado. – É preto e sem graça. Como que eu vou me destacar em uma casa cheia de garotas maravilhosas com um biquíni assim?
aproveitou para se sentar na mesma cama, mas do lado contrário, me dando uma oportunidade de vingança que eu nunca me permitiria desperdiçar.
— Por que você precisa se destacar? O seu objetivo não era sempre se escon... – agarrei um dos seus tornozelos, a fazendo engasgar. – ...conder.
— Agora é diferente...
— Estamos falando da presença do ? – perguntou, tentando me chutar para longe. No silêncio, imaginei que a April assentia. – Você sabe que, para o , você já se destacou, né? Só precisa existir ali. Mas fico feliz que tenha superado suas desconfianças em relação a ele.
Enquanto ela suspirava, eu me esforçava para fazer cosquinhas no pé da , lugar que eu sabia bem o quanto ela odiava.
— Eu não sei não... Por que vocês chamaram ele em? Eu perdi minha tranquilidade. E qual é o problema das suas pernas que não param de se mexer?
No mesmo segundo, elas pararam. Para o meu azar, foi pisando rudemente na minha mão e prendendo-a ali. Ela sabia jogar.
— N-nada, só uma coceira. Você pode pegar esse meu biquíni, se quiser. Ia exibir ele por aí, mas eu não acho que mereçam me ver nele.
Ouch.
— Tem certeza? Você tem outro?
— Eu tenho vários, não se preocupe. Sou uma garota da praia. – e então ela deu uma última apertada na minha mão contra o chão, quase me fazendo exclamar algo de surpresa. – Vem, vamos trocar. No banheiro.
Capítulo 21
’s POV
Depois de passar um tempo garantindo a April que tudo definitivamente ficaria bem e que a presença de naquele dia não era algo tão grande assim, eu consegui finalmente fechar e trancar novamente a porta. Eu queria ter certeza de que ela estava calma, ao seu natural, mas também me preocupava com o rapaz impaciente debaixo da cama da . Poucas coisas eram boas o suficiente para compensar 30 minutos ali. E, por seu próprio azar, não iria conseguir nenhuma delas nas próximas horas.
Você não achou que eu teria todo aquele trabalho de chegar até ali para entregar o prêmio tão rápido, né? Confie em mim, é um prêmio e tanto.
— Eu devia te fazer pagar por isso. - ele disse, arrastando seu corpo para fora da cama que parecia muito pequena para abrigar um cara tão grande.
Aquilo me fez pensar que a April definitivamente o notaria se não estivesse com a mente tão perturbada por causa de algo tão simples.
— Por favor! Você me deve isso e muito mais.
Ele me olhou por alguns segundos até dar de ombros, sabiamente concluindo que não valia a pena questionar aquilo. E, pelo olhar que me lançou logo depois, tendo em mente que existiam muitas coisas mais interessantes para serem feitas dentro daquele quarto.
— Tem razão. - disse automaticamente, apenas para garantir que eu não tivesse nenhuma resposta que fosse desviá-lo de seu caminho.
Ele se aproximou e empurrou com calma meu corpo com o seu até a parede mais próxima. Eu sabia que existia um mundo inteiro do lado de fora daquelas paredes, mas nem essa consciência foi capaz de parar minhas mãos ao fazerem seu caminho para a nuca dele, puxando seus lábios de volta para os meus, onde eu gostaria que eles ficassem o tempo todo a partir de agora.
Eu também sabia que não poderia ir muito longe. Não hoje, não depois de tudo que havia acontecido entre nós. No entanto, ficou incrivelmente fácil ignorar isso quando ele desceu uma de suas mãos até a minha cintura, puxando-a com firmeza até que eu parecesse ter perdido meu raciocínio ao ponto de me esquecer como beijá-lo, apenas jogando minha cabeça para trás no máximo que a parede deixava e me permitindo sentir todas aquelas sensações, me permitindo senti-lo. Se não fosse a merda de alguns pares de roupa.
Ele aproveitou sua chance para deslizar seus lábios pelo meu pescoço e nesse momento eu perdi completamente a batalha. Perdi e não poderia me importar menos com isso.
Até ouvir um par de punhos baterem na porta sem piedade. se afastou no mesmo segundo, resmungando suas frustrações.
— O q… A April voltou? - eu questionei, tendo certas dificuldades para raciocinar com a interrupção abrupta de um momento muito, muito, bom.
— ! Precisamos de você lá embaixo, anda logo!
Por um tempo, só consegui pensar que a Mina definitivamente tinha um tipo de garota. Todas as minhas experiências apontavam que a pessoa do lado de fora da porta tinha que ser a , mas a voz só poderia pertencer a Ashley.
Eu sabia que o meu não gostar dela faria sentido um dia e esse era justamente o momento.
Ela voltou a bater na porta e eu procurei pelo , que estava agora escorado na parede ao meu lado, tentando trazer sua respiração de volta ao normal.
— .
— !
Eles pronunciaram ao mesmo tempo, mas foi nele que eu foquei.
— Você precisa dizer alguma coisa.
Eu assenti, me esforçando para acordar do meu momento. Um momento que havia sido arruinado. Suspirei. Aquilo não me parecia justo. Eu vinha sendo uma boa garota, não merecia ter esses tipos de momentos interrompidos constantemente.
— Certo… - dei alguns passos em direção a porta. - É… Eu to terminando de me trocar, já desço, tá legal?
— Ainda? Você estava terminando de se trocar meia-hora atrás!
Engoli em seco.
— Eu sei, só tive alguns… contratempos. Eu já vou.
— Tá bom. - disse, seu tom demonstrando que não estava, não. - Vê se não demora, precisamos da sua ajuda.
Me virei de volta para o com um sorriso sem graça. Ele entendeu o recado, pois assentiu com a expressão de quem entendia, porém não estava nada feliz com aquilo. Estava na hora de sair da nossa bolha e voltar para o mundo exterior.
— Posso te pedir só um favor? - ele perguntou e eu o encarei em curiosidade. - Se troca no banheiro dessa vez. Não aguento mais uma sessão de tortura sem nenhuma recompensa, … é pela minha saúde.
— Tudo bem. - concordei, sem conseguir deixar de rir um pouco. A situação era triste, realmente triste. - Por que não me espera lá embaixo?
Ele se sentou na minha cama, aparentando desconforto.
— Eu preciso de um tempo.
Eu o encarei por um tempinho, lerda para caralho, até que me caiu a ficha.
— Ah! Ok. Sinto muito por isso. - disse, segurando um sorriso e correndo para o closet a fim de pegar o primeiro biquíni que encontrei.
— Não sente não. - respondeu, arremessando uma almofada na minha direção. Ela acertou a porta do banheiro assim que eu a fechei comigo dentro e ri abertamente da sua situação. Não que a minha estivesse melhor.
Aproveitei que eu tinha um chuveiro para tomar um banho rápido na expectativa de mandar ralo abaixo toda a minha vontade de ficar ali no quarto só com ele. Pelo menos agora. Eu tinha coisas importantes para fazer do lado de fora, coisas que mereciam minha total atenção e não me permitiria tirar meu foco daquilo por causa de um romance, ou melhor, tesão.
Troquei um pijama velho que havia encontrado ali quando entrei com a April por um biquíni preto, tão velho quanto o anterior, e saí pela porta. se encontrava agora jogado na cama, mas melhor.
Bom… até abrir os olhos. Ele levantou o tronco, me viu e gemeu de frustração, voltando a se deitar. Ignorei-o, seguindo meu caminho até o closet.
— Por favor, me diz que você vai colocar um short em cima disso.
Eu travei. Parei no meio de um passo, atordoada demais com a infinidade de sentimentos que aquela simples frase me trouxe. Eu tinha plena consciência de que nunca havia ouvido palavras parecidas vindo da boca dele, mas ainda assim elas me desestabilizaram. Ou melhor, o medo que elas me trouxeram me desestabilizaram por completo. Meu coração ia sair pela minha boca, eu tinha certeza disso.
— Ah, Deus! Não, , não foi o que eu quis dizer. - de costas, senti ele se aproximar e colocar suas mãos sobre os meus ombros. - Eu falei no sentido de não aguentar só te olhar de biquíni o dia inteiro, não foi uma ordem para se cobrir, por favor, não pense que foi isso.
Me virei para ele, querendo analisar cada aspecto de sua expressão.
— Tem certeza? - questionei baixinho. Sabia que precisava ouvir, assim eu poderia mandar embora todo aquele receio.
— Sim, , certeza absoluta! Eu melhorei, juro que sim, não quero que pense que… que pense que eu me atreveria a falar algo assim para você algum dia. Nunca fui tão longe e não me atraveria a fazer isso agora. Por favor, por favor, por favor, confie em mim. - implorou, colocando nossas testas juntas. - Eu sei que é difícil de tantas coisas que aconteceram, mas preciso que acredite.
Minha respiração estava pesada, eu ainda sentia alguns dos efeitos que frases como aquela me traziam e não compreendia muito bem o porquê, porém seu olhar era sincero. Seu desespero, seu medo e seu arrependimento estavam ali, mais fortes que nunca, então eu me permiti acreditar. Não porque confiava, pois era cedo demais para isso, mas porque eu queria, porque eu sentia olhando em seus olhos que era a coisa certa a fazer.
Apesar de tudo, ainda era o cara que havia me levantado em momentos que eu não tinha força para levantar sozinha e, nas últimas semanas, eu nunca me esquecia disso.
— Tudo bem. - eu disse e ele imediatamente me envolveu em um abraço apertado.
Agora, não havia nada sexual naquela proximidade. Só um alívio gigantesco pela parte dele e, pela minha, bem estar; um sentimento de que eu estava em um dos lugares mais acolhedores do mundo, do meu mundo, de onde eu gostaria de nunca ter sido arrancada.
— Obrigada. - ele sussurrou no meu ouvido alguns segundos depois e eu assenti, tentando soar tranquila por fora para organizar a bagunça de dentro.
— Não se preocupe, só… cuidado com o que você fala, ok?
Ele balançou a cabeça em concordância, nos afastando. Não gostei da sensação, mas, de certa forma, o agradeci mentalmente por isso. Não podia me atrasar mais e se as coisas dependessem da minha força de vontade, definitivamente não daria certo.
Andei até o closet atrás do short que eu já planejava colocar antes e o vesti. continuou parado no mesmo lugar, pensativo.
— Posso fazer uma pergunta? Talvez você não goste dela. - avisou enquanto eu tentava dar um jeito no meu cabelo.
O encarei pelo reflexo do espelho, receosa, mas mais curiosa do que qualquer outra coisa.
— Manda.
— Depois disso… - começou, se referindo a todas os beijos e toques da última hora. - … onde é que nós ficamos?
— O que quer dizer? Você quer um nome para o que nós temos?
— É. Talvez seja idiota, mas eu gostaria saber se não temos nada, se estamos juntos, sei lá.
Pensei por alguns segundos, pois ainda não tinha parado para pensar no que diabos era aquilo que estávamos fazendo. Acabei por concluir que eu não tinha uma resposta concreta para dar a ele, então fiz o máximo que consegui.
— Nós estamos tentando estar juntos, eu acho. Estamos nos conhecendo novamente e nos divertindo um pouco. - respondi, encarando-o ao terminar em uma pergunta silenciosa: era o suficiente por enquanto?
Ele sorriu e assentiu, parecendo feliz com as minhas palavras.
— Ok. Vou indo então. Preciso manter distância?
— Não muita. - comecei, me virando para ele. - As garotas sabem que estamos nos dando consideravelmente bem, então seria bom que ficasse por perto. Só tenta não me agarrar em público. Sei que vai ser difícil.
sorriu novamente, rindo baixo.
— É, eu vou tentar. - disse antes de sair pela porta.
Ainda do lado de dentro, eu suspirei, me sentindo bem. Tão bem que não fazia sentido, tão bem que eu não podia me livrar da ideia de que aquilo não era tudo.
Enrolei mais alguns minutos antes de descer. Lá fora, a música estava alta, mas não o suficiente para abafar todas as vozes. A cena inteira me fez lembrar da festa de iniciação da Lambda, com pessoas felizes e que apreciavam o fato de estarem juntas, se divertindo.
tentava manter tudo organizado, levando a Mina consigo. April e conversavam e riam afastados de todo mundo. ouvia o falar alguma coisa surpreso e o resto do pessoal estava espalhado, batendo papo. Procurei a Ashley, que havia prendido um grupo de rapazes só para si e me juntei a ela, explicando melhor a situação em que nos encontrávamos e quais as nossas ideias.
Muitos daqueles rapazes conheciam a nossa casa há anos. Mesmo depois de tudo que houve, era notável o quão simples era apenas conversar com eles, sem intrigas envolvidas. Uma casa ajudando e segurando a mão da outra, como deveria ser o tempo todo… até e eu chegarmos.
Bom, já havia pedido desculpas por aquilo e não ficaria me martirizando por esse erro, só continuaria me dedicando para fazer com que tudo volte ao normal. De preferência, até melhor do que era.
A tarde passou rápido. Eventualmente, as conversas cessaram, a música se sobressaiu e as pessoas começaram a dançar, mesmo sem bebida alguma - que não fosse escondida no meio das coisas da Mina -. Volta e meia, aparecia para conversar um pouco comigo, sempre quando eu já estava com alguém, como a ou até a Suzy. Nunca sozinhos.
O sol já estava baixo quando nós dois, e Mina nos sentamos juntos em um dos extremos da piscina. Logo os outros se juntaram a nós. Primeiro April e , que não desgrudaram um do outro, apesar de eu não ver beijo nenhum, só muito contato; depois veio o Joe e, por fim, . Jogávamos conversa fora de bom humor e, pelo menos por parte das garotas, ansiosas para tudo que tínhamos por vir.
Em meio a um eletrônico de qualidade duvidável, o barulho alto de uma moto acelerando na rua chamou a atenção de alguns de nós. Coincidentemente, ele pareceu cessar ao parar em algum lugar muito perto da nossa casa, mas só confirmei minhas desconfianças quando um rapaz alto apareceu de repente, dando a volta na casa pelo lado de fora.
Em qualquer dia comum, seria só alguém novo chegando para a festa, porém aquele tinha suas particularidades que imediatamente chamaram atenção de todos. Vamos começar com o fato dele estar vestindo uma jaqueta de couro em um calor que parecia chegar perto dos 30°. Ela era preta, assim como todas as peças de roupas que vestia, inclusive uma bota, também de couro. Eu realmente não queria saber o que estava acontecendo debaixo daquilo tudo.
Além disso, ele usava óculos escuros quando o sol já não fazia diferença alguma e tinha os cabelos escuros na altura dos ombros, tão desgrenhados quanto os meus em um dia ruim. Não parecia com qualquer pessoa que eu já tenha visto no campus, mas entrava com uma confiança de se admirar.
Todos nós o observamos tirar seu óculos e olhar ao redor, procurando por algo ou alguém. Eu saberia facilmente quem se não tivesse tão curiosa para não prestar atenção no pequeno ser humano bem ao meu lado. Ele fez isso por mim, abrindo um largo e caminhando apressado em nossa direção.
— April!
Arregalei os olhos, surpresa. Antes que ela dissesse as palavras, eu já sabia.
— Oi, Jude.
— Ele é seu irmão?!
— Tá falando sério? Explica isso direito.
— April, como é o nome dele?
— Será que rola um número de telefone?
— De onde ele tá vindo? Seattle? Uh, uh, Nova Iorque?
— Quer prestar atenção no que a gente tá falando?
— Não, eu não quero! Pelo amor de Deus, eu preciso respirar. - disse, desviando de toda a atenção e saindo da cozinha com um copo de refrigerante de limão para sua visita.
Me senti no direito de segui-la. Primeiro porque íamos para o mesmo lugar e segundo porque ela vestia meu biquíni, ou seja, me devia respostas.
— Ei, ei, ei! Devagar! Você não me disse que seu irmão era assim.
— Eu disse que ele era estranho.
— Estranho? April, seu irmão é sexy. - ela me olhou rapidamente com cara de nojo. - Quer dizer, ele exagera um pouco no couro e precisa pentear o cabelo, mas quem sou eu pra julgar?
— Eu realmente não quero ter essa conversa agora. Já basta a vergonha de ter todo mundo olhando para ele e, consequentemente, para mim. Não vamos falar sobre isso.
— Você sabe que não pode fugir de mim, né? Sou uma pessoa curiosa e vou te encher o saco pelo resto da eternidade se não conseguir minhas informações.
Ela suspirou, diminuindo seus passos até parar completamente e se virar para mim.
— Me desculpe por isso. - eu sorri, acreditando que tinha vencido a batalha, porém logo descobri que as desculpas eram por outra coisa. - O fato de você ter enfiado o debaixo da cama quando eu cheguei me faz pensar que não queira que ninguém saiba sobre esse relacionamento. Você vai me deixar em paz nesse momento porque se não, eu vou contar, . E não para todo mundo, mas para a .
Ela voltou a andar, me deixando paralisada atrás. Talvez eu merecesse aquilo, mas definitivamente não achava que ela havia notado a presença dele no quarto.
Alguns segundos depois dela, eu me sentei junto ao resto do grupo, do lado do . Jude contava alguma história incrível sobre sua última aventura no Alaska ou algo do tipo.
— Tá tudo bem? - ele perguntou. - Parece que viu um fantasma.
Um fantasma, não. Uma garota muito audaciosa, com certeza.
— Tudo ótimo. - respondi com a voz trêmula.
A minha reação não tinha nada a ver com a April. Bom… Nada a ver com a sua ameaça. Eu sabia que ela nunca falaria nada, aquela era apenas sua forma de dizer que sabia ao mesmo tempo em que me implorava para calar a boca. No entanto, alguém saber sobre nós me dava a sensação de que logo outras pessoas também saberiam e isso, sim, me assustava.
O medo de tudo ir por água abaixo a partir do momento que todos soubessem sobre nós era aterrorizante. E eu não podia fazer nada a não ser tentar ser mais cuidadosa, o que era extremamente difícil de se fazer quando eu queria agarrar ele o tempo todo.
— Ei! - percebi que Jude falava comigo e o olhei. - Você é a , certo? A famosa !
— Famosa, é? Pelo que? - questionei, ainda que minha vida no geral indicasse que aquela poderia não ser uma resposta agradável.
— Ora, você é a garota que empurrou minha irmãzinha para essa irmandade. É algo realmente impressionante.
— Você sabe que eu tenho 18 anos, não é? Sabe que não deve usar diminutivos para se referir a mim há algum tempo. - April o interrompeu, na típica briga de irmão e irmã.
— Eu só empurrei mesmo, o mérito de todo o resto é dela. - respondi, ignorando a birra dela.
— Ainda assim, foi bem legal da sua parte. - finalizou, piscando para mim com um sorriso de lado nos lábios.
Continuei encarando-o por alguns segundos, tentando descobrir de onde é que aquilo havia saído. Não me entenda mal, ele tinha um rosto bonito o suficiente para tornar o gesto casual e divertido, mas a última vez que eu havia visto um cara agir assim foi… Bem, em alguma comédia romântica por aí.
April também se atrapalhou com o momento, pois soltou um som estranho que se misturava com a sua respiração nervosa e levantou, puxando seu irmão pelos braços.
— Ok, vamos conversar.
Como se não tivesse nada de errado, ele se levantou e a seguiu, não deixando de lançar mais um dos seus já característicos sorrisos para todos nós na rodinha. Jude realmente era uma figura e tanto. Além disso, não era nada ruim de se olhar.
— Tá… O que foi isso? - perguntou assim que ele se afastou.
— Ah, ele me parece legal. - afirmou.
— Divertido. - continuou.
— Bem alto astral, né? - teve sua vez.
— Gostoso pra caralho. - eu disse baixinho, no entanto, as outras vozes cessaram bem na minha vez, fazendo com que todos me ouvissem e me olhassem desconfiados. em especial quase virou a própria garota do exorcista para me encarar.
— ! - me repreendeu.
— O que? Vocês todos estão pensando, eu só tive coragem de dizer as palavras.
— Eu vou ter que concordar. - Joe disse, balançando a cabeça como se estivesse se repreendendo por essa opinião.
— É sério?! - voltou a questionar. Ele se redirecionava para todo o grupo, porém eu sabia que sua mente estava em mim.
— Por que, ? Tem algum problema com isso? - Mina perguntou com um sorriso maldoso nos lábios, me deixando em estado de alerta total.
Ele engoliu em seco, forçando seus lábios a se erguerem no sorriso mais falso que esse mundo já viu.
— Não tenho, Mina. Achei ele um pouco convencido. Só isso.
— Um pouco de autoestima não faz mal a ninguém, certo? - encerrou a conversa, se levantando. Provavelmente estava indo buscar algo para beber.
Nosso papo foi em outras direções enquanto April continuava dentro de casa com o rapaz. Eu não poderia imaginar sobre o que ela estava tão preocupada, pois já havia me dito anteriormente que se preocupar com Jude era perda de tempo. No entanto, imaginei que falar da boca para fora fosse uma coisa e viver aquilo já era outra completamente diferente.
Cerca de 20 minutos depois, eles voltaram. Ele parecia relaxado, característica que eu começava a pensar que era constante para aquele garoto. April tinha a testa franzida e apreensão estampada em seu rosto. Ela veio diretamente até nós.
— Posso falar com você? - ela me perguntou antes de se virar na direção da e da Mina. - E você? E você?
Nós assentimos e ela rapidamente voltou a andar, seguindo de volta para dentro de casa. Nos apressamos para segui-la.
É claro que, no meio do caminho, não pude deixar de notar que Jude havia arrumado uma bermuda e agora pulava na piscina usando apenas ela. Eu estava certa anteriormente, ele era algo a se admirar.
Como boas sedentárias que éramos, , Mina e eu nós sentamos em um dos sofás assim que chegamos na sala. Já April se esforçava para cavar um buraco com os próprios pés, andando de um lado para o outro repetidas vezes. Nós aguardamos pacientemente até o momento em que ela parou.
— Ok… Preciso começar dizendo que o meu irmão é um completo idiota. - afirmou, rindo de nervoso. Literalmente. - E eu entendo completamente se vocês não quiserem aceitar o que eu vou pedir porque é um pedido e tanto, não tenho o direito de cobrar ou exigir nada, eu sei disso. Mas seria um grande favor e espero que vocês saibam que eu sou muito boa na arte de retribuir favores, eu faço um ótimo trabalho, mesmo! Confiem em mim. Um ótimo trabalho! Juro.
— Acho melhor você ir com calma. - sugeriu. - Não se preocupe, somos suas amigas, iremos entender.
April assentiu e respirou fundo antes de começar a falar, dessa vez sem afobação.
— Vocês conhecem o meu irmão agora, certo? Bom… ele é fã de aventuras. O problema é que na última delas, ele deixou meus pais na mão e bem zangados. Para piorar tudo, ele gastou toda parte dele da herança da nossa avó. Basicamente, agora ele não tem uma casa para voltar nem dinheiro nenhum para arrumar algum lugar aqui em LA.
— E onde exatamente nós três entramos nessa história? - Mina questionou.
— Vocês entram como minhas colegas de quarto. - sorriu. - Eu preciso de um tempo para consertar as coisas entre ele e os meus pais, alguns dias, duas semanas no máximo! E, eu não sei se vocês já notaram, mas nós temos uma cama sobrando no quarto.
Nós fizemos alguns segundos em silêncio, absorvendo aquele pedido. Realmente, era um baita pedido.
— Quer que a gente hospede seu irmão no nosso quarto? - perguntei, só para conferir que eu tinha entendido tudo perfeitamente.
Ela balançou a cabeça em concordância, se sentando em um dos sofás de lado oposto ao nosso. O nervosismo estava desenhado em sua expressão, só faltava roer as unhas - o que eu sabia que ela estava ansiosa para fazer -.
— Por mim, tudo bem. - Mina respondeu rapidamente.
e eu trocamos um olhar. Nós também não nos importávamos de fazer isso, porém compreendíamos que existia uma outra preocupação quanto a esse assunto.
— Ahn… Talvez você esteja falando com as pessoas erradas, April. - começou.
— É… Nós temos na casa uma garota que foi recentemente violentada, então talvez você queira saber como ela se sente sobre isso porque nós estamos bem, ele pode ficar o quanto quiser.
— E a Nikki. - continuou. - É sempre bom falar com a Nikki, o que significa que você também vai ter que falar com as outras garotas, mas… Você sabe, colocar um garoto hospedado dentro da nossa casa não é algo que aconteça com frequência.
— Eu sei, eu sei. Vou fazer isso. Só queria esclarecer com vocês primeiro porque não acho que significa muito ter a aprovação da casa inteira sem ter a de vocês, que dormiriam literalmente do lado dele. - disse, se levantando e indo em direção a saída. - Eu vou indo então, acho que tenho muito a fazer.
Mina e decidiram ficar ali dentro mais um pouco conversando - só que não - e eu voltei para o meu grupinho. No lado de fora novamente, não pude deixar de pensar que April não teria tanto trabalho assim para fazer com que as garotas da casa aceitassem a presença dele, pois muitas delas já pareciam encantadas por ele. Quando eu passei, por exemplo, ele estava cercado por cinco enquanto contava mais uma de suas histórias, que agora eu imaginava ser muitas.
A festa seguiu sem maiores surpresas, o que era meio chato, mas muito bom, considerando que seu objetivo não era embebedar ninguém nem fazer as pessoas se beijarem loucamente. No final do dia, April já havia conversado com todo mundo e os rapazes iam embora depois de um dia tranquilo (considerando que os últimos dias que essas casas estiveram no mesmo ambiente haviam sido tudo, menos tranquilos e pacíficos).
Eu estava ocupada ajudando as garotas a organizarem toda a bagunça, então só consegui me despedir do com um aceno à distância. Ele tinha planos para treinar cedinho no dia seguinte, não podia esperar até muito tarde. E era bom, de qualquer forma, pois evitávamos mais algum acidente, como o da April na parte da tarde.
— Parece que estamos quase lá. - Ashley apareceu de repente falando ao meu lado. - Deu tudo certo.
Assenti. Tudo realmente havia dado certo e, acredite em mim, eu esperei muito o momento em que algo iria desandar. Não por querer que isso acontecesse, só por conhecer algumas probabilidades.
— Aparentemente, sim. - concordei. - Acho que você já pode gravar o vídeo com a Katy.
— Vou fazer isso essa semana.
— Ok.
E então ela se afastou.
Gravar o vídeo com a Katy era o primeiro passo da ação em si. Era a maneira mais eficaz que havíamos encontrado para expôr a situação e chamar a atenção de outras pessoas que tenham sofrido o mesmo ou que simplesmente se solidarizem com a causa.
Quando a casa voltou ao seu estado de limpeza normal, eu não demorei para subir e tomar um banho. Aquele havia sido um dia e tanto. Havia tantas coisas em que eu deveria pensar, a maioria delas envolvendo e o nosso momento juntos, porém não tinha coragem ainda. A saída mais fácil era simplesmente dormir um pouco e descansar.
No quarto, cada um já se encontrava em sua cama, inclusive nosso hóspede. e Mina haviam adquirido o hábito de dividirem a cama, mas, naquele dia, estavam separadas, talvez por vergonha. Passei diretamente por eles, que conversavam coisas aleatórias, e fui direto para o meu banho, um bom e definitivamente merecido banho.
Assim que voltei, a frase que me recebeu e me fez rir foi:
— Quem é esse que tá dando em cima da minha irmã? - Jude perguntou, fazendo o rosto da April entrar em combustão imediatamente.
— E-ele não está dando em cima de mim.
— Tá sim. - murmurei tranquilamente enquanto passava e já deitava na minha cama. De certa forma, era uma leve vingança pela ameaça que recebi mais cedo.
— Você acha que eu sou cego? Ele não saiu do seu lado o dia inteiro. - continuou, se mexendo em sua cama, que era pequena pequena demais para um cara daquele tamanho.
— Podemos não falar sobre isso? - ela perguntou. Nós já sabíamos a resposta.
— Argh! Essa vai ser uma daquelas noites em que todo mundo fica batendo papo ao invés de dormir, não é? - Mina se intrometeu, claramente infeliz com aquela ideia.
— Precisamos receber bem nosso convidado. - afirmou antes de começar a encher ele de perguntas sobre sua vida e seus planos.
Eu tinha uma leve impressão que aquela era a maneira que ela havia encontrado de aliviar a barra para o lado da April, mas não tentei descobrir, pois estava indo bem.
Jude era um cara, no mínimo, estranho - apesar de lindo -. Parecia viver e se aventurar livremente, sem muita preocupação com o que o amanhã poderia trazer. Havia largado a faculdade alguns anos atrás e perambulava por aí, fazendo bicos, ganhando dinheiro e torrando tudo no segundo seguinte. A coisa só ficou realmente complicada quando ele teve idade o suficiente para ter acesso ao dinheiro que sua avó deixou para ele e, ao invés de ser responsável, continuou fazendo exatamente a mesma coisa, dessa vez com mais dinheiro disponível, permitindo que ele fosse bem mais longe, aka, Alaska.
— Isso me parece um pouco estúpido. - só percebi que meu pensamento foi em voz alta quando todos ficaram em silêncio. - Desculpa.
Normalmente, eu não pedia desculpas com essa facilidade, porém o cara havia acabado de chegar e não estava numa situação agradável… Era como chutar alguém que já estava no chão. Isso nunca era divertido.
— Não se desculpe, é o que todos geralmente pensam do meu… - pensou por um segundo. - ...estilo de vida. As pessoas são criadas para fazer planos, se matar correndo atrás deles e entrarem em depressão quando não chegam lá. Se chegam, nunca é o suficiente, vocês precisam de mais e mais. É assim que o mundo gira.
Franzi o cenho com a audácia.
— E você não é assim? - questionei.
— De certa forma, não. Eu faço o que eu quero, quando eu quero, sem me preocupar com o que está por vir. Não fico esperando as coisas acontecerem, vou atrás daquilo que eu quero no momento, daquilo que vai me fazer bem. Não sofro para chegar em um lugar que eu nem quero estar porque me disseram que lá é onde estão as pessoas realizadas, felizes consigo mesmas e com o universo. Eu vivo minha vida pelo agora. Se encontro imprevistos, dou um jeito de passar por eles, seja isso fácil ou não. Sou feliz assim.
Estava escuro e eu não podia vê-lo, apenas ouvi-lo. De certa forma, aquilo fazia sua voz se destacar, especialmente enquanto ninguém mais dava um ‘piu’.
— Você é feliz assim, é? E seus pais? Sua irmã? Você mata eles de preocupação ao ponto de terem que fingir que não se importa, porque assim é mais fácil. - questionei, me sentindo um pouco grossa, mas extremamente incomodada com aquilo.
— Ei, que tal voltarmos a falar sobre o ? - April sugeriu no meio do seu nervosismo.
— Eu só posso me responsabilizar pelos meus atos, . Me preocupo com eles, muito, mas preciso que entendam que essa é a forma que eu escolhi viver. Por que? Você nunca faz nada que magoe alguém?
riu nesse momento, me fazendo revirar os olhos.
— Ahhh, a hipocrisia! - cantarolou.
Encerramos a conversa por ali.
No dia seguinte, eu acordei com uma movimentação estranha perto de mim. Abri os olhos só por alguns segundos, mas o susto de encontrar alguém me encarando tão perto me fez dar um pulo para trás.
Ok, eu exagerei. Ele não estava tão perto. Estava sentado no chão perto da minha cama, porém o fato de me observar enquanto eu dormia me dava calafrios.
— Que merda é essa?!
— Bom dia. - Jude disse, sorrindo e pegando um copo de suco atrás do seu corpo para me entregar. - Queria conversar com você.
— Não podia me esperar acordar como uma pessoa normal? - questionei, assustada.
— Eu ia esperar. Acabei de sentar aqui. Quem acordou foi você.
Ainda o encarando como se fosse algum tipo de maníaco, eu me sentei, puxando meu lençol comigo. Eu vestia um pijama, mas, em momentos como aquele, toda precaução era necessária. Peguei o copo de suco que ele me estendia porque acordar daquela maneira dava muita sede.
— O que você quer? - perguntei, olhando para os lados a fim de ver alguém no quarto. Não encontrei ninguém para gritar por ajuda, nem sua própria irmã.
— Só quero garantir que não falei algo que pudesse te chatear ontem. Aquilo não foi uma briga, eu só estava sendo sincero e respondendo suas perguntas.
— Ahnn… - balbuciei, confusa. - Não.
— Tem certeza? Gosto de você, não gostaria que me odiasse.
— Gosta de mim? Depois de ontem e das minhas perguntas?
Jude assentiu.
— Você é sincera. Eu admiro uma pessoa sincera. Passei o dia inteiro ontem contando um monte de histórias absurdas e ninguém virou para mim uma vez sequer para questionar isso, apesar de eu ter certeza que estavam fazendo isso em pensamento. Você questionou. É sempre bom que questione.
— Tá bom… Fico feliz que pense assim. - falei, sendo sincera também nesse momento. Ele não parecia ser tão louco assim, afinal de contas.
— Ok, então estamos resolvidos! Faça suas perguntas quando quiser, eu não me importo. É um verdadeiro prazer te conhecer, . - ele disse, me estendendo sua mão.
E então o que eu pensei que seria um simples aperto de mãos virou ele pagando de cavaleiro e levando a minha até seus lábios rapidamente. Depois ele soltou delicadamente e saiu do quarto, sorrindo.
Ele era meio louco, sim. Mas aparentemente inofensivo.
O dia passou rapidamente, assim como os próximos. Tudo ia bem, muito melhor do que pensávamos que iria, porém ainda estávamos na fase inicial das coisas. Entre gravações, preparações, planejamentos e o fim das provas, a semana correu.
O tempo todo, eu esperei que algo fosse dar muito errado. Esperei que descobrissem nossos planos e os parassem antes de sequer começar. Esperei que alguém desse para trás, causando um efeito dominó até que não tivéssemos mais ninguém na causa. Todo cenário ruim possível, eu criei na minha cabeça. Nada aconteceu.
N-A-D-A.
Mas eu insistia no fato de ter experiências o suficiente nesta vida para compreender que aquilo nunca poderia ser um sinal bom. Haviam piores, mas aquele me dizia que o universo estava só nos dando um tempo para respirar antes de todo o trabalho e, se tudo der certo, o caos. Pois era isso que estávamos interessadas em trazer.
E, para mim em particular, começou mais cedo do que eu esperava.
— Nossa, isso aqui está muito bonito. - minha mãe disse, encarando seu prato cheio com várias comidinhas.
— Tem razão. Isso é bacon? - meu pai questionou.
— Sim, picadinho. Quer experimentar?
e eu nos olhamos enquanto eles provavam a comida um do outro.
Meus pais haviam nos convidado para um brunch no domingo, com a desculpa de que estavam com saudades. Tudo bem, esse era um motivo bom, mas eu sabia que na realidade eles queriam mais informações sobre nós. E quando eu digo nós, eu digo nós.
Porque sim, eu decidi contar a eles. Parte porque eles já imaginavam que havia algo ali, afinal de contas, me levou para um encontro na minha própria casa, e porque eu gostava de ter a opinião deles sobre isso que tínhamos. Nossos pais eram as pessoas que mais conheciam nosso relacionamento - além de nós mesmos -, logo, não hesitariam em avisar caso estivéssemos fazendo alguma grande merda. Pelo menos, esse era o mínimo que eu esperava.
— E então, como estão as aulas? - dona Claire perguntou.
Ele respondeu primeiro.
— Muito bem. As provas e trabalhos intermináveis chegaram ao fim, eu tenho mais tempo livre para me dedicar aos meus treinos.
— O irmão da April está visitando, então nós temos um membro honorário no nosso grupo e ele é bem gente boa.
— Quantos anos ele tem? Onde estuda? - meu pai questionou.
— 22. Ele trancou a faculdade.
— Então não é gente boa o suficiente para mim. - disse, me fazendo revirar os olhos. , por outro lado, só faltava dar pulinhos em seu próprio lugar.
— Como estão as coisas lá em casa? - perguntei, mudando drasticamente de assunto.
— Vão indo, filha. - minha mãe respondeu. - Nós reinauguramos os jantares de sexta-feira, vocês sabem que são sempre bem-vindos. , sabia que seus pais adotaram dois gatinhos? Tão fofos!
— Eu sei, eles me mandam centenas de fotos e vídeos todos os dias. Acho que eles estão lá para me substituir. - comentou, risonho, mas meu pai pareceu não pegar a dica de que era apenas uma piada.
— Não diga isso, meu filho. Você é insubstituível para os seus pais, os gatinhos só tem a somar a família de vocês. Eles sentem falta de cuidar de alguém, isso é muito comum, sabia?
sorriu, desconfortável com a situação, mas atuou como se tudo estivesse na maior normalidade.
— Claro. Obrigada, Johnatan.
Conforme comíamos, eu senti eles ficarem mais tensos e estranhos. Em uma família normal, isso poderia não significar nada, porém, se tratando deles, eu sabia que havia alguma coisa. Não conseguia imaginar o quê, mas eles sempre arrumavam uma forma de me surpreender.
— Tá legal, desembuchem. - mandei, chamando a atenção dos três para mim.
— Como? - minha mãe disse, rindo para tentar disfarçar. Claramente não funcionou.
— Eu sei que estão aprontando algo, está na testa de vocês. Por que outro motivo vocês me fariam acordar antes do 12h00 em pleno domingo?
Eles me encararam, parecendo procurar na minha expressão o quanto eu sabia do que tinham para falar. Não encontraram nada porque meus conhecimentos sobre aquilo realmente não iam muito longe. Eu só os conhecia demais para ser enganada.
— Uau, ela é boa. - meu pai falou para a minha mãe, surpreendentemente chocado com a minha perspicácia.
— Tudo bem, nós temos novidades. - ela disse.
— Ah, é? Me contem!
Eles se olharam, apreensivos. Fiz o mesmo com o , só para verificar se ele estava entendendo melhor do que eu o que acontecia ali, porém tudo que ele faz foi dar de ombros, tão confuso com aquela cerimônia toda quanto eu.
— Nós estamos muito felizes com isso, , então manera na sua reação, ok? - ela pediu, já entregando que eu não deveria esperar algo bom a partir de agora.
No entanto, apenas assenti, curiosa sobre as novidades. Eles esperaram mais um pouquinho, analisando minha expressão, até que minha mãe cutucou meu pai com o cotovelo, incentivando-o a falar. Esse era o segundo sinal de que eu deveria me preocupar, pois minha mãe adorava falar, em especial coisas legais que eu adoraria ouvir. Parece que esse não seria o caso.
Ele pigarreou, se preparando.
— Bom, acredito que você se lembre da conversa que tivemos alguns meses atrás, sobre o quanto temos sentido sua falta desde que saiu de casa. - e ali estava o sinal número 3. - Nós esperamos, esperamos, mas não conseguimos nos acostumar com a casa vazia.
— Onde é que vocês querem chegar com isso? - questionei, hesitante.
Na minha cabeça, haviam duas opções. Primeira: eles iriam voltar com a conversa de eu voltar a morar na casa deles, implorando ou algo assim. Segunda: eles iriam tirar minha liberdade de escolha e exigir que eu voltasse para casa.
Mais uma vez, ambos trocaram alguns olhares. E então se viraram para mim, sorrindo.
— Nós vamos adotar uma criança. - disseram juntos.
Era bom que eu não tivesse tomando nada no momento, pois iria engasgar na certa. O ar já foi o suficiente para me causar tosses e, consequentemente, lágrimas nos olhos pelo soco no estômago que eu parecia ter levado depois daquela frase.
O quê!? Adotar? O que diabos eles tinham na cabeça?!
Fiquei encarando-os por um bom tempo, aguardando o momento em que eles iriam rir e anunciar que era uma pegadinha. Das ruins. Busquei também informação no , que continuava tão perdido quanto eu. A diferença era que ele disfarçava seu espanto, pois na nossa frente estavam aqueles que ele esperava que voltassem a ser seus sogros.
— Vocês têm que estar brincando. - eu disse depois do momento de silêncio, esperando que isso fosse incentivo o suficiente para eles rirem e dizerem: é claro que estamos. Mas nada, tinham apenas as expressões animadas de duas pessoas ansiosas para fazer uma grande merda. - Por favor, me digam que estão brincando. - tentei mais uma vez.
— … - meu pai começou a falar em um tom de voz calmo e aí tive certeza que tudo estava perdido.
— VOCÊS QUEREM ADOTAR UMA CRIANÇA?! QUEREM OUTRO FILHO?! - disse, ultrajada. Ouvi o ‘shhh’ do ao meu lado e continuei. - Eu não sou suficiente?! Vocês tem que arrumar outra?! - exclamei, ainda que sussurrando dessa vez, pois havia atraído alguns olhares desagradáveis.
— Não, querida! É claro que você é suficiente, você é mais do que nós merecemos. - minha mãe se apressou em responder. - Mas, com a casa tão vazia…
— Vocês acharam uma boa ideia colocar alguém no meu lugar, alguém para me substituir, é isso? - completei para ela, que negou imediatamente.
Eu sabia que estava certa, no entanto. Por que outro motivo eles iriam querer criar uma criança nessa idade? Eles não eram idosos nem nada, porém essa era a hora certa para eles irem viajar o mundo, fazer um cruzeiro ou algo do tipo sem a filha enchendo o saco, não para arrumar outra!
— , pensa nisso! Pensa no quão gostoso seria ter um irmão ou uma irmã mais nova. Você poderia brincar com eles, ser o exemplo a ser seguido, não é legal?
A encarei com a minha melhor expressão de: o que diabos você está falando? Era como se ela não me conhecesse nem um pouco. Eu odiava crianças. Eu odiava crianças quando era uma delas e o sentimento só cresceu junto comigo.
— Não! Eu nunca quis a porra de um irmão mais novo, por quê iria querer agora?
— Cuidado com o linguajar, . - meu pai me repreendeu, me fazendo revirar os olhos. Eu não estava sendo uma filha muito respeitosa, mas a culpa era apenas deles.
Eu não ouvia nem a respiração de do meu lado, o que me levava a crer que ele estava imóvel, tentando não chamar atenção para não ser jogado bem no meio do furacão. Ele havia crescido na nossa casa, logo, sabia muito bem que esse era sempre um risco.
— Deus! - exclamei, cobrindo meu rosto com as mãos. - Como é que vocês têm essas ideias malucas? Não é possível!
— , nós só queremos que considere a ideia, pare um pouco para pensar. Isso não é um ataque a você, eu juro. - ela disse, mas eu balancei a cabeça, negando a possibilidade.
— Preciso de um ar. - afirmei, me levantando e andando em direção a saída.
Atrás de mim, ouvi o dizer:
— Deixa que eu vou, Claire. Vou conversar com ela.
Típico.
Pensei em virar para trás e gritar para que ele nem se desse o trabalho de me seguir, porém pensei melhor e decidi que já havia chamado atenção demais naquele restaurante. E que eu definitivamente nunca iria voltar ali.
— Você ouviu aquele monte de baboseira? Consegue acreditar naquilo tudo? Meu Deus! - eu falava, andando de um lado para o outro e gesticulando.
— …
— Quer dizer, quais são as chances disso dar certo? Nenhuma, cara! Uma criança? Nesse ponto da vida deles? Não faz sentido algum!
— .
— E eles ainda tem coragem de olhar na minha cara enquanto falam que não estão me substituindo. Eu sei que estão, ! Eu sei que estão.
— !
— Quer saber de uma coisa? Eu aposto que isso é mais uma maneira deles tentarem me arrastar de volta para a casa deles! Podem estar blefando, esperando pelo momento em que eu vou implorar para me aceitarem de volta, o que nós dois sabemos que não vai acontecer.
— Pelo amor de Deus, para um pouco e me escuta! - ele disse, se enfiando em meu caminho e me segurando pelos ombros.
— Que foi? - questionei.
Ele viu que tinha minha atenção, então olhou bem no fundo dos meus olhos para falar.
— Você se colocou por um segundo sequer no lugar dos seus pais? - engoli em seco. É claro que não e ele sabia disso. - , eu não quero ser o cara que te diz isso, mas já me enfiaram na história, então lá vai: você está sendo extremamente egoísta.
— Egoísta?! Como é que eu estou sendo egoísta? E eles?
— Eles só estão tentando ser felizes sem você.
Encarei-o, erguendo uma sobrancelha.
— Eu vou te dar um tempo para reformular essa frase ou desenvolver muito bem ela, caso não queira ser chutado nos próximos segundos.
suspirou. Suas mãos ainda seguravam meus ombros, me impedindo de voltar a andar freneticamente.
— Pensa um pouquinho. Seus pais passaram os últimos 18 anos da vida deles vivendo em prol do seu bem estar, da sua saúde e felicidade. De repente, você está na faculdade, cheia de tarefas, liga algumas vezes por semana e não precisa mais deles ali o tempo todo. Como você espera que eles estejam bem com isso?
— Eu não faço ideia, ! Mas esse é o ciclo. Por que os seus pais conseguiram e eles não? Por que todos os pais do mundo conseguem e eles não?
— Conseguiram? Meus pais têm dois gatos agora! E a última vez que conversei com a minha mãe, ela estava planejando reformar o fundo da nossa casa para montar um lugar onde ela poderia resgatar e cuidar de animais de rua para doar depois.
Aquilo, sim, era fofo! Por que não haviam enfiado os meus nesse negócio também?
— Você realmente tá comparando uma criança a gatos? Eles são seres infinitamente superiores! Os gatos, eu digo. - eu disse, arrancando dele uma risada.
— Só estou tentando te dizer que cada um reage da sua maneira. Não tem nada de errado com o que seus pais estão fazendo, na verdade é bem bonito. E ter um irmão mais novo não pode ser tão ruim assim… A e o conseguem, você pode pedir dicas. - ele sugeriu, me soltando agora que eu estava mais calma.
Senti falta do calor das suas mãos, porém não diria aquilo em voz alta.
— Eu não sei se consigo estar bem com essa ideia…
— Você não precisa. Pelo menos, não agora. Mas conversa com os seus pais. Não olhe ou trate eles como se devessem ser jogados em um hospício apenas por serem seres humanos.
Bufei, frustrada por ter que voltar lá para dentro com o rabo entre as pernas para admitir que eu não estava sendo justa anteriormente. Mas eu o faria, pois a ideia de fazê-los sentirem daquela maneira era insuportável. Eles mereciam mais, muito mais do que uma filha ciumenta e orgulhosa.
Se aquela criança realmente viesse, eu faria questão de ensiná-la a não ser como eu, pois só pode haver uma nesse mundo. Meus pais ficariam loucos com outra. E se eu podia fazer essa espécie de plano sobre o pirralho ou a pirralha, talvez eu pudesse também aceitar em pensar na ideia.
— Você é bem espertão quando se trata da família dos outros, né? - ele deu de ombros. - Odeio quando você é sensato.
Ele me acompanhava restaurante adentro e estufou o peito de orgulho com o meu elogio, todo metido.
— É melhor se acostumar, meu bem. Eu sou um novo homem.
Poucos segundos depois, ele derrubou metade das coisas que estavam na bandeja de um garçom ao se distrair olhando para mim para se exibir um pouco mais. Eu apenas ri e me afastei, fingindo que não o conhecia.
Depois de me desculpar com os meus pais e prometer que eu pensaria com carinho - mas nem tanto - na ideia, pude continuar minha refeição que havia sido tristemente interrompida. Não tocamos mais naquele assunto em especial, aproveitando ao máximo o que nos restava daquele tempinho juntos… Antes que a criança dos infernos tomassem eles para si mesma, me deixando sem nada.
Eu realmente iria considerar aquela ideia.
Depois de passar um tempo garantindo a April que tudo definitivamente ficaria bem e que a presença de naquele dia não era algo tão grande assim, eu consegui finalmente fechar e trancar novamente a porta. Eu queria ter certeza de que ela estava calma, ao seu natural, mas também me preocupava com o rapaz impaciente debaixo da cama da . Poucas coisas eram boas o suficiente para compensar 30 minutos ali. E, por seu próprio azar, não iria conseguir nenhuma delas nas próximas horas.
Você não achou que eu teria todo aquele trabalho de chegar até ali para entregar o prêmio tão rápido, né? Confie em mim, é um prêmio e tanto.
— Eu devia te fazer pagar por isso. - ele disse, arrastando seu corpo para fora da cama que parecia muito pequena para abrigar um cara tão grande.
Aquilo me fez pensar que a April definitivamente o notaria se não estivesse com a mente tão perturbada por causa de algo tão simples.
— Por favor! Você me deve isso e muito mais.
Ele me olhou por alguns segundos até dar de ombros, sabiamente concluindo que não valia a pena questionar aquilo. E, pelo olhar que me lançou logo depois, tendo em mente que existiam muitas coisas mais interessantes para serem feitas dentro daquele quarto.
— Tem razão. - disse automaticamente, apenas para garantir que eu não tivesse nenhuma resposta que fosse desviá-lo de seu caminho.
Ele se aproximou e empurrou com calma meu corpo com o seu até a parede mais próxima. Eu sabia que existia um mundo inteiro do lado de fora daquelas paredes, mas nem essa consciência foi capaz de parar minhas mãos ao fazerem seu caminho para a nuca dele, puxando seus lábios de volta para os meus, onde eu gostaria que eles ficassem o tempo todo a partir de agora.
Eu também sabia que não poderia ir muito longe. Não hoje, não depois de tudo que havia acontecido entre nós. No entanto, ficou incrivelmente fácil ignorar isso quando ele desceu uma de suas mãos até a minha cintura, puxando-a com firmeza até que eu parecesse ter perdido meu raciocínio ao ponto de me esquecer como beijá-lo, apenas jogando minha cabeça para trás no máximo que a parede deixava e me permitindo sentir todas aquelas sensações, me permitindo senti-lo. Se não fosse a merda de alguns pares de roupa.
Ele aproveitou sua chance para deslizar seus lábios pelo meu pescoço e nesse momento eu perdi completamente a batalha. Perdi e não poderia me importar menos com isso.
Até ouvir um par de punhos baterem na porta sem piedade. se afastou no mesmo segundo, resmungando suas frustrações.
— O q… A April voltou? - eu questionei, tendo certas dificuldades para raciocinar com a interrupção abrupta de um momento muito, muito, bom.
— ! Precisamos de você lá embaixo, anda logo!
Por um tempo, só consegui pensar que a Mina definitivamente tinha um tipo de garota. Todas as minhas experiências apontavam que a pessoa do lado de fora da porta tinha que ser a , mas a voz só poderia pertencer a Ashley.
Eu sabia que o meu não gostar dela faria sentido um dia e esse era justamente o momento.
Ela voltou a bater na porta e eu procurei pelo , que estava agora escorado na parede ao meu lado, tentando trazer sua respiração de volta ao normal.
— .
— !
Eles pronunciaram ao mesmo tempo, mas foi nele que eu foquei.
— Você precisa dizer alguma coisa.
Eu assenti, me esforçando para acordar do meu momento. Um momento que havia sido arruinado. Suspirei. Aquilo não me parecia justo. Eu vinha sendo uma boa garota, não merecia ter esses tipos de momentos interrompidos constantemente.
— Certo… - dei alguns passos em direção a porta. - É… Eu to terminando de me trocar, já desço, tá legal?
— Ainda? Você estava terminando de se trocar meia-hora atrás!
Engoli em seco.
— Eu sei, só tive alguns… contratempos. Eu já vou.
— Tá bom. - disse, seu tom demonstrando que não estava, não. - Vê se não demora, precisamos da sua ajuda.
Me virei de volta para o com um sorriso sem graça. Ele entendeu o recado, pois assentiu com a expressão de quem entendia, porém não estava nada feliz com aquilo. Estava na hora de sair da nossa bolha e voltar para o mundo exterior.
— Posso te pedir só um favor? - ele perguntou e eu o encarei em curiosidade. - Se troca no banheiro dessa vez. Não aguento mais uma sessão de tortura sem nenhuma recompensa, … é pela minha saúde.
— Tudo bem. - concordei, sem conseguir deixar de rir um pouco. A situação era triste, realmente triste. - Por que não me espera lá embaixo?
Ele se sentou na minha cama, aparentando desconforto.
— Eu preciso de um tempo.
Eu o encarei por um tempinho, lerda para caralho, até que me caiu a ficha.
— Ah! Ok. Sinto muito por isso. - disse, segurando um sorriso e correndo para o closet a fim de pegar o primeiro biquíni que encontrei.
— Não sente não. - respondeu, arremessando uma almofada na minha direção. Ela acertou a porta do banheiro assim que eu a fechei comigo dentro e ri abertamente da sua situação. Não que a minha estivesse melhor.
Aproveitei que eu tinha um chuveiro para tomar um banho rápido na expectativa de mandar ralo abaixo toda a minha vontade de ficar ali no quarto só com ele. Pelo menos agora. Eu tinha coisas importantes para fazer do lado de fora, coisas que mereciam minha total atenção e não me permitiria tirar meu foco daquilo por causa de um romance, ou melhor, tesão.
Troquei um pijama velho que havia encontrado ali quando entrei com a April por um biquíni preto, tão velho quanto o anterior, e saí pela porta. se encontrava agora jogado na cama, mas melhor.
Bom… até abrir os olhos. Ele levantou o tronco, me viu e gemeu de frustração, voltando a se deitar. Ignorei-o, seguindo meu caminho até o closet.
— Por favor, me diz que você vai colocar um short em cima disso.
Eu travei. Parei no meio de um passo, atordoada demais com a infinidade de sentimentos que aquela simples frase me trouxe. Eu tinha plena consciência de que nunca havia ouvido palavras parecidas vindo da boca dele, mas ainda assim elas me desestabilizaram. Ou melhor, o medo que elas me trouxeram me desestabilizaram por completo. Meu coração ia sair pela minha boca, eu tinha certeza disso.
— Ah, Deus! Não, , não foi o que eu quis dizer. - de costas, senti ele se aproximar e colocar suas mãos sobre os meus ombros. - Eu falei no sentido de não aguentar só te olhar de biquíni o dia inteiro, não foi uma ordem para se cobrir, por favor, não pense que foi isso.
Me virei para ele, querendo analisar cada aspecto de sua expressão.
— Tem certeza? - questionei baixinho. Sabia que precisava ouvir, assim eu poderia mandar embora todo aquele receio.
— Sim, , certeza absoluta! Eu melhorei, juro que sim, não quero que pense que… que pense que eu me atreveria a falar algo assim para você algum dia. Nunca fui tão longe e não me atraveria a fazer isso agora. Por favor, por favor, por favor, confie em mim. - implorou, colocando nossas testas juntas. - Eu sei que é difícil de tantas coisas que aconteceram, mas preciso que acredite.
Minha respiração estava pesada, eu ainda sentia alguns dos efeitos que frases como aquela me traziam e não compreendia muito bem o porquê, porém seu olhar era sincero. Seu desespero, seu medo e seu arrependimento estavam ali, mais fortes que nunca, então eu me permiti acreditar. Não porque confiava, pois era cedo demais para isso, mas porque eu queria, porque eu sentia olhando em seus olhos que era a coisa certa a fazer.
Apesar de tudo, ainda era o cara que havia me levantado em momentos que eu não tinha força para levantar sozinha e, nas últimas semanas, eu nunca me esquecia disso.
— Tudo bem. - eu disse e ele imediatamente me envolveu em um abraço apertado.
Agora, não havia nada sexual naquela proximidade. Só um alívio gigantesco pela parte dele e, pela minha, bem estar; um sentimento de que eu estava em um dos lugares mais acolhedores do mundo, do meu mundo, de onde eu gostaria de nunca ter sido arrancada.
— Obrigada. - ele sussurrou no meu ouvido alguns segundos depois e eu assenti, tentando soar tranquila por fora para organizar a bagunça de dentro.
— Não se preocupe, só… cuidado com o que você fala, ok?
Ele balançou a cabeça em concordância, nos afastando. Não gostei da sensação, mas, de certa forma, o agradeci mentalmente por isso. Não podia me atrasar mais e se as coisas dependessem da minha força de vontade, definitivamente não daria certo.
Andei até o closet atrás do short que eu já planejava colocar antes e o vesti. continuou parado no mesmo lugar, pensativo.
— Posso fazer uma pergunta? Talvez você não goste dela. - avisou enquanto eu tentava dar um jeito no meu cabelo.
O encarei pelo reflexo do espelho, receosa, mas mais curiosa do que qualquer outra coisa.
— Manda.
— Depois disso… - começou, se referindo a todas os beijos e toques da última hora. - … onde é que nós ficamos?
— O que quer dizer? Você quer um nome para o que nós temos?
— É. Talvez seja idiota, mas eu gostaria saber se não temos nada, se estamos juntos, sei lá.
Pensei por alguns segundos, pois ainda não tinha parado para pensar no que diabos era aquilo que estávamos fazendo. Acabei por concluir que eu não tinha uma resposta concreta para dar a ele, então fiz o máximo que consegui.
— Nós estamos tentando estar juntos, eu acho. Estamos nos conhecendo novamente e nos divertindo um pouco. - respondi, encarando-o ao terminar em uma pergunta silenciosa: era o suficiente por enquanto?
Ele sorriu e assentiu, parecendo feliz com as minhas palavras.
— Ok. Vou indo então. Preciso manter distância?
— Não muita. - comecei, me virando para ele. - As garotas sabem que estamos nos dando consideravelmente bem, então seria bom que ficasse por perto. Só tenta não me agarrar em público. Sei que vai ser difícil.
sorriu novamente, rindo baixo.
— É, eu vou tentar. - disse antes de sair pela porta.
Ainda do lado de dentro, eu suspirei, me sentindo bem. Tão bem que não fazia sentido, tão bem que eu não podia me livrar da ideia de que aquilo não era tudo.
Enrolei mais alguns minutos antes de descer. Lá fora, a música estava alta, mas não o suficiente para abafar todas as vozes. A cena inteira me fez lembrar da festa de iniciação da Lambda, com pessoas felizes e que apreciavam o fato de estarem juntas, se divertindo.
tentava manter tudo organizado, levando a Mina consigo. April e conversavam e riam afastados de todo mundo. ouvia o falar alguma coisa surpreso e o resto do pessoal estava espalhado, batendo papo. Procurei a Ashley, que havia prendido um grupo de rapazes só para si e me juntei a ela, explicando melhor a situação em que nos encontrávamos e quais as nossas ideias.
Muitos daqueles rapazes conheciam a nossa casa há anos. Mesmo depois de tudo que houve, era notável o quão simples era apenas conversar com eles, sem intrigas envolvidas. Uma casa ajudando e segurando a mão da outra, como deveria ser o tempo todo… até e eu chegarmos.
Bom, já havia pedido desculpas por aquilo e não ficaria me martirizando por esse erro, só continuaria me dedicando para fazer com que tudo volte ao normal. De preferência, até melhor do que era.
A tarde passou rápido. Eventualmente, as conversas cessaram, a música se sobressaiu e as pessoas começaram a dançar, mesmo sem bebida alguma - que não fosse escondida no meio das coisas da Mina -. Volta e meia, aparecia para conversar um pouco comigo, sempre quando eu já estava com alguém, como a ou até a Suzy. Nunca sozinhos.
O sol já estava baixo quando nós dois, e Mina nos sentamos juntos em um dos extremos da piscina. Logo os outros se juntaram a nós. Primeiro April e , que não desgrudaram um do outro, apesar de eu não ver beijo nenhum, só muito contato; depois veio o Joe e, por fim, . Jogávamos conversa fora de bom humor e, pelo menos por parte das garotas, ansiosas para tudo que tínhamos por vir.
Em meio a um eletrônico de qualidade duvidável, o barulho alto de uma moto acelerando na rua chamou a atenção de alguns de nós. Coincidentemente, ele pareceu cessar ao parar em algum lugar muito perto da nossa casa, mas só confirmei minhas desconfianças quando um rapaz alto apareceu de repente, dando a volta na casa pelo lado de fora.
Em qualquer dia comum, seria só alguém novo chegando para a festa, porém aquele tinha suas particularidades que imediatamente chamaram atenção de todos. Vamos começar com o fato dele estar vestindo uma jaqueta de couro em um calor que parecia chegar perto dos 30°. Ela era preta, assim como todas as peças de roupas que vestia, inclusive uma bota, também de couro. Eu realmente não queria saber o que estava acontecendo debaixo daquilo tudo.
Além disso, ele usava óculos escuros quando o sol já não fazia diferença alguma e tinha os cabelos escuros na altura dos ombros, tão desgrenhados quanto os meus em um dia ruim. Não parecia com qualquer pessoa que eu já tenha visto no campus, mas entrava com uma confiança de se admirar.
Todos nós o observamos tirar seu óculos e olhar ao redor, procurando por algo ou alguém. Eu saberia facilmente quem se não tivesse tão curiosa para não prestar atenção no pequeno ser humano bem ao meu lado. Ele fez isso por mim, abrindo um largo e caminhando apressado em nossa direção.
— April!
Arregalei os olhos, surpresa. Antes que ela dissesse as palavras, eu já sabia.
— Oi, Jude.
— Ele é seu irmão?!
— Tá falando sério? Explica isso direito.
— April, como é o nome dele?
— Será que rola um número de telefone?
— De onde ele tá vindo? Seattle? Uh, uh, Nova Iorque?
— Quer prestar atenção no que a gente tá falando?
— Não, eu não quero! Pelo amor de Deus, eu preciso respirar. - disse, desviando de toda a atenção e saindo da cozinha com um copo de refrigerante de limão para sua visita.
Me senti no direito de segui-la. Primeiro porque íamos para o mesmo lugar e segundo porque ela vestia meu biquíni, ou seja, me devia respostas.
— Ei, ei, ei! Devagar! Você não me disse que seu irmão era assim.
— Eu disse que ele era estranho.
— Estranho? April, seu irmão é sexy. - ela me olhou rapidamente com cara de nojo. - Quer dizer, ele exagera um pouco no couro e precisa pentear o cabelo, mas quem sou eu pra julgar?
— Eu realmente não quero ter essa conversa agora. Já basta a vergonha de ter todo mundo olhando para ele e, consequentemente, para mim. Não vamos falar sobre isso.
— Você sabe que não pode fugir de mim, né? Sou uma pessoa curiosa e vou te encher o saco pelo resto da eternidade se não conseguir minhas informações.
Ela suspirou, diminuindo seus passos até parar completamente e se virar para mim.
— Me desculpe por isso. - eu sorri, acreditando que tinha vencido a batalha, porém logo descobri que as desculpas eram por outra coisa. - O fato de você ter enfiado o debaixo da cama quando eu cheguei me faz pensar que não queira que ninguém saiba sobre esse relacionamento. Você vai me deixar em paz nesse momento porque se não, eu vou contar, . E não para todo mundo, mas para a .
Ela voltou a andar, me deixando paralisada atrás. Talvez eu merecesse aquilo, mas definitivamente não achava que ela havia notado a presença dele no quarto.
Alguns segundos depois dela, eu me sentei junto ao resto do grupo, do lado do . Jude contava alguma história incrível sobre sua última aventura no Alaska ou algo do tipo.
— Tá tudo bem? - ele perguntou. - Parece que viu um fantasma.
Um fantasma, não. Uma garota muito audaciosa, com certeza.
— Tudo ótimo. - respondi com a voz trêmula.
A minha reação não tinha nada a ver com a April. Bom… Nada a ver com a sua ameaça. Eu sabia que ela nunca falaria nada, aquela era apenas sua forma de dizer que sabia ao mesmo tempo em que me implorava para calar a boca. No entanto, alguém saber sobre nós me dava a sensação de que logo outras pessoas também saberiam e isso, sim, me assustava.
O medo de tudo ir por água abaixo a partir do momento que todos soubessem sobre nós era aterrorizante. E eu não podia fazer nada a não ser tentar ser mais cuidadosa, o que era extremamente difícil de se fazer quando eu queria agarrar ele o tempo todo.
— Ei! - percebi que Jude falava comigo e o olhei. - Você é a , certo? A famosa !
— Famosa, é? Pelo que? - questionei, ainda que minha vida no geral indicasse que aquela poderia não ser uma resposta agradável.
— Ora, você é a garota que empurrou minha irmãzinha para essa irmandade. É algo realmente impressionante.
— Você sabe que eu tenho 18 anos, não é? Sabe que não deve usar diminutivos para se referir a mim há algum tempo. - April o interrompeu, na típica briga de irmão e irmã.
— Eu só empurrei mesmo, o mérito de todo o resto é dela. - respondi, ignorando a birra dela.
— Ainda assim, foi bem legal da sua parte. - finalizou, piscando para mim com um sorriso de lado nos lábios.
Continuei encarando-o por alguns segundos, tentando descobrir de onde é que aquilo havia saído. Não me entenda mal, ele tinha um rosto bonito o suficiente para tornar o gesto casual e divertido, mas a última vez que eu havia visto um cara agir assim foi… Bem, em alguma comédia romântica por aí.
April também se atrapalhou com o momento, pois soltou um som estranho que se misturava com a sua respiração nervosa e levantou, puxando seu irmão pelos braços.
— Ok, vamos conversar.
Como se não tivesse nada de errado, ele se levantou e a seguiu, não deixando de lançar mais um dos seus já característicos sorrisos para todos nós na rodinha. Jude realmente era uma figura e tanto. Além disso, não era nada ruim de se olhar.
— Tá… O que foi isso? - perguntou assim que ele se afastou.
— Ah, ele me parece legal. - afirmou.
— Divertido. - continuou.
— Bem alto astral, né? - teve sua vez.
— Gostoso pra caralho. - eu disse baixinho, no entanto, as outras vozes cessaram bem na minha vez, fazendo com que todos me ouvissem e me olhassem desconfiados. em especial quase virou a própria garota do exorcista para me encarar.
— ! - me repreendeu.
— O que? Vocês todos estão pensando, eu só tive coragem de dizer as palavras.
— Eu vou ter que concordar. - Joe disse, balançando a cabeça como se estivesse se repreendendo por essa opinião.
— É sério?! - voltou a questionar. Ele se redirecionava para todo o grupo, porém eu sabia que sua mente estava em mim.
— Por que, ? Tem algum problema com isso? - Mina perguntou com um sorriso maldoso nos lábios, me deixando em estado de alerta total.
Ele engoliu em seco, forçando seus lábios a se erguerem no sorriso mais falso que esse mundo já viu.
— Não tenho, Mina. Achei ele um pouco convencido. Só isso.
— Um pouco de autoestima não faz mal a ninguém, certo? - encerrou a conversa, se levantando. Provavelmente estava indo buscar algo para beber.
Nosso papo foi em outras direções enquanto April continuava dentro de casa com o rapaz. Eu não poderia imaginar sobre o que ela estava tão preocupada, pois já havia me dito anteriormente que se preocupar com Jude era perda de tempo. No entanto, imaginei que falar da boca para fora fosse uma coisa e viver aquilo já era outra completamente diferente.
Cerca de 20 minutos depois, eles voltaram. Ele parecia relaxado, característica que eu começava a pensar que era constante para aquele garoto. April tinha a testa franzida e apreensão estampada em seu rosto. Ela veio diretamente até nós.
— Posso falar com você? - ela me perguntou antes de se virar na direção da e da Mina. - E você? E você?
Nós assentimos e ela rapidamente voltou a andar, seguindo de volta para dentro de casa. Nos apressamos para segui-la.
É claro que, no meio do caminho, não pude deixar de notar que Jude havia arrumado uma bermuda e agora pulava na piscina usando apenas ela. Eu estava certa anteriormente, ele era algo a se admirar.
Como boas sedentárias que éramos, , Mina e eu nós sentamos em um dos sofás assim que chegamos na sala. Já April se esforçava para cavar um buraco com os próprios pés, andando de um lado para o outro repetidas vezes. Nós aguardamos pacientemente até o momento em que ela parou.
— Ok… Preciso começar dizendo que o meu irmão é um completo idiota. - afirmou, rindo de nervoso. Literalmente. - E eu entendo completamente se vocês não quiserem aceitar o que eu vou pedir porque é um pedido e tanto, não tenho o direito de cobrar ou exigir nada, eu sei disso. Mas seria um grande favor e espero que vocês saibam que eu sou muito boa na arte de retribuir favores, eu faço um ótimo trabalho, mesmo! Confiem em mim. Um ótimo trabalho! Juro.
— Acho melhor você ir com calma. - sugeriu. - Não se preocupe, somos suas amigas, iremos entender.
April assentiu e respirou fundo antes de começar a falar, dessa vez sem afobação.
— Vocês conhecem o meu irmão agora, certo? Bom… ele é fã de aventuras. O problema é que na última delas, ele deixou meus pais na mão e bem zangados. Para piorar tudo, ele gastou toda parte dele da herança da nossa avó. Basicamente, agora ele não tem uma casa para voltar nem dinheiro nenhum para arrumar algum lugar aqui em LA.
— E onde exatamente nós três entramos nessa história? - Mina questionou.
— Vocês entram como minhas colegas de quarto. - sorriu. - Eu preciso de um tempo para consertar as coisas entre ele e os meus pais, alguns dias, duas semanas no máximo! E, eu não sei se vocês já notaram, mas nós temos uma cama sobrando no quarto.
Nós fizemos alguns segundos em silêncio, absorvendo aquele pedido. Realmente, era um baita pedido.
— Quer que a gente hospede seu irmão no nosso quarto? - perguntei, só para conferir que eu tinha entendido tudo perfeitamente.
Ela balançou a cabeça em concordância, se sentando em um dos sofás de lado oposto ao nosso. O nervosismo estava desenhado em sua expressão, só faltava roer as unhas - o que eu sabia que ela estava ansiosa para fazer -.
— Por mim, tudo bem. - Mina respondeu rapidamente.
e eu trocamos um olhar. Nós também não nos importávamos de fazer isso, porém compreendíamos que existia uma outra preocupação quanto a esse assunto.
— Ahn… Talvez você esteja falando com as pessoas erradas, April. - começou.
— É… Nós temos na casa uma garota que foi recentemente violentada, então talvez você queira saber como ela se sente sobre isso porque nós estamos bem, ele pode ficar o quanto quiser.
— E a Nikki. - continuou. - É sempre bom falar com a Nikki, o que significa que você também vai ter que falar com as outras garotas, mas… Você sabe, colocar um garoto hospedado dentro da nossa casa não é algo que aconteça com frequência.
— Eu sei, eu sei. Vou fazer isso. Só queria esclarecer com vocês primeiro porque não acho que significa muito ter a aprovação da casa inteira sem ter a de vocês, que dormiriam literalmente do lado dele. - disse, se levantando e indo em direção a saída. - Eu vou indo então, acho que tenho muito a fazer.
Mina e decidiram ficar ali dentro mais um pouco conversando - só que não - e eu voltei para o meu grupinho. No lado de fora novamente, não pude deixar de pensar que April não teria tanto trabalho assim para fazer com que as garotas da casa aceitassem a presença dele, pois muitas delas já pareciam encantadas por ele. Quando eu passei, por exemplo, ele estava cercado por cinco enquanto contava mais uma de suas histórias, que agora eu imaginava ser muitas.
A festa seguiu sem maiores surpresas, o que era meio chato, mas muito bom, considerando que seu objetivo não era embebedar ninguém nem fazer as pessoas se beijarem loucamente. No final do dia, April já havia conversado com todo mundo e os rapazes iam embora depois de um dia tranquilo (considerando que os últimos dias que essas casas estiveram no mesmo ambiente haviam sido tudo, menos tranquilos e pacíficos).
Eu estava ocupada ajudando as garotas a organizarem toda a bagunça, então só consegui me despedir do com um aceno à distância. Ele tinha planos para treinar cedinho no dia seguinte, não podia esperar até muito tarde. E era bom, de qualquer forma, pois evitávamos mais algum acidente, como o da April na parte da tarde.
— Parece que estamos quase lá. - Ashley apareceu de repente falando ao meu lado. - Deu tudo certo.
Assenti. Tudo realmente havia dado certo e, acredite em mim, eu esperei muito o momento em que algo iria desandar. Não por querer que isso acontecesse, só por conhecer algumas probabilidades.
— Aparentemente, sim. - concordei. - Acho que você já pode gravar o vídeo com a Katy.
— Vou fazer isso essa semana.
— Ok.
E então ela se afastou.
Gravar o vídeo com a Katy era o primeiro passo da ação em si. Era a maneira mais eficaz que havíamos encontrado para expôr a situação e chamar a atenção de outras pessoas que tenham sofrido o mesmo ou que simplesmente se solidarizem com a causa.
Quando a casa voltou ao seu estado de limpeza normal, eu não demorei para subir e tomar um banho. Aquele havia sido um dia e tanto. Havia tantas coisas em que eu deveria pensar, a maioria delas envolvendo e o nosso momento juntos, porém não tinha coragem ainda. A saída mais fácil era simplesmente dormir um pouco e descansar.
No quarto, cada um já se encontrava em sua cama, inclusive nosso hóspede. e Mina haviam adquirido o hábito de dividirem a cama, mas, naquele dia, estavam separadas, talvez por vergonha. Passei diretamente por eles, que conversavam coisas aleatórias, e fui direto para o meu banho, um bom e definitivamente merecido banho.
Assim que voltei, a frase que me recebeu e me fez rir foi:
— Quem é esse que tá dando em cima da minha irmã? - Jude perguntou, fazendo o rosto da April entrar em combustão imediatamente.
— E-ele não está dando em cima de mim.
— Tá sim. - murmurei tranquilamente enquanto passava e já deitava na minha cama. De certa forma, era uma leve vingança pela ameaça que recebi mais cedo.
— Você acha que eu sou cego? Ele não saiu do seu lado o dia inteiro. - continuou, se mexendo em sua cama, que era pequena pequena demais para um cara daquele tamanho.
— Podemos não falar sobre isso? - ela perguntou. Nós já sabíamos a resposta.
— Argh! Essa vai ser uma daquelas noites em que todo mundo fica batendo papo ao invés de dormir, não é? - Mina se intrometeu, claramente infeliz com aquela ideia.
— Precisamos receber bem nosso convidado. - afirmou antes de começar a encher ele de perguntas sobre sua vida e seus planos.
Eu tinha uma leve impressão que aquela era a maneira que ela havia encontrado de aliviar a barra para o lado da April, mas não tentei descobrir, pois estava indo bem.
Jude era um cara, no mínimo, estranho - apesar de lindo -. Parecia viver e se aventurar livremente, sem muita preocupação com o que o amanhã poderia trazer. Havia largado a faculdade alguns anos atrás e perambulava por aí, fazendo bicos, ganhando dinheiro e torrando tudo no segundo seguinte. A coisa só ficou realmente complicada quando ele teve idade o suficiente para ter acesso ao dinheiro que sua avó deixou para ele e, ao invés de ser responsável, continuou fazendo exatamente a mesma coisa, dessa vez com mais dinheiro disponível, permitindo que ele fosse bem mais longe, aka, Alaska.
— Isso me parece um pouco estúpido. - só percebi que meu pensamento foi em voz alta quando todos ficaram em silêncio. - Desculpa.
Normalmente, eu não pedia desculpas com essa facilidade, porém o cara havia acabado de chegar e não estava numa situação agradável… Era como chutar alguém que já estava no chão. Isso nunca era divertido.
— Não se desculpe, é o que todos geralmente pensam do meu… - pensou por um segundo. - ...estilo de vida. As pessoas são criadas para fazer planos, se matar correndo atrás deles e entrarem em depressão quando não chegam lá. Se chegam, nunca é o suficiente, vocês precisam de mais e mais. É assim que o mundo gira.
Franzi o cenho com a audácia.
— E você não é assim? - questionei.
— De certa forma, não. Eu faço o que eu quero, quando eu quero, sem me preocupar com o que está por vir. Não fico esperando as coisas acontecerem, vou atrás daquilo que eu quero no momento, daquilo que vai me fazer bem. Não sofro para chegar em um lugar que eu nem quero estar porque me disseram que lá é onde estão as pessoas realizadas, felizes consigo mesmas e com o universo. Eu vivo minha vida pelo agora. Se encontro imprevistos, dou um jeito de passar por eles, seja isso fácil ou não. Sou feliz assim.
Estava escuro e eu não podia vê-lo, apenas ouvi-lo. De certa forma, aquilo fazia sua voz se destacar, especialmente enquanto ninguém mais dava um ‘piu’.
— Você é feliz assim, é? E seus pais? Sua irmã? Você mata eles de preocupação ao ponto de terem que fingir que não se importa, porque assim é mais fácil. - questionei, me sentindo um pouco grossa, mas extremamente incomodada com aquilo.
— Ei, que tal voltarmos a falar sobre o ? - April sugeriu no meio do seu nervosismo.
— Eu só posso me responsabilizar pelos meus atos, . Me preocupo com eles, muito, mas preciso que entendam que essa é a forma que eu escolhi viver. Por que? Você nunca faz nada que magoe alguém?
riu nesse momento, me fazendo revirar os olhos.
— Ahhh, a hipocrisia! - cantarolou.
Encerramos a conversa por ali.
No dia seguinte, eu acordei com uma movimentação estranha perto de mim. Abri os olhos só por alguns segundos, mas o susto de encontrar alguém me encarando tão perto me fez dar um pulo para trás.
Ok, eu exagerei. Ele não estava tão perto. Estava sentado no chão perto da minha cama, porém o fato de me observar enquanto eu dormia me dava calafrios.
— Que merda é essa?!
— Bom dia. - Jude disse, sorrindo e pegando um copo de suco atrás do seu corpo para me entregar. - Queria conversar com você.
— Não podia me esperar acordar como uma pessoa normal? - questionei, assustada.
— Eu ia esperar. Acabei de sentar aqui. Quem acordou foi você.
Ainda o encarando como se fosse algum tipo de maníaco, eu me sentei, puxando meu lençol comigo. Eu vestia um pijama, mas, em momentos como aquele, toda precaução era necessária. Peguei o copo de suco que ele me estendia porque acordar daquela maneira dava muita sede.
— O que você quer? - perguntei, olhando para os lados a fim de ver alguém no quarto. Não encontrei ninguém para gritar por ajuda, nem sua própria irmã.
— Só quero garantir que não falei algo que pudesse te chatear ontem. Aquilo não foi uma briga, eu só estava sendo sincero e respondendo suas perguntas.
— Ahnn… - balbuciei, confusa. - Não.
— Tem certeza? Gosto de você, não gostaria que me odiasse.
— Gosta de mim? Depois de ontem e das minhas perguntas?
Jude assentiu.
— Você é sincera. Eu admiro uma pessoa sincera. Passei o dia inteiro ontem contando um monte de histórias absurdas e ninguém virou para mim uma vez sequer para questionar isso, apesar de eu ter certeza que estavam fazendo isso em pensamento. Você questionou. É sempre bom que questione.
— Tá bom… Fico feliz que pense assim. - falei, sendo sincera também nesse momento. Ele não parecia ser tão louco assim, afinal de contas.
— Ok, então estamos resolvidos! Faça suas perguntas quando quiser, eu não me importo. É um verdadeiro prazer te conhecer, . - ele disse, me estendendo sua mão.
E então o que eu pensei que seria um simples aperto de mãos virou ele pagando de cavaleiro e levando a minha até seus lábios rapidamente. Depois ele soltou delicadamente e saiu do quarto, sorrindo.
Ele era meio louco, sim. Mas aparentemente inofensivo.
O dia passou rapidamente, assim como os próximos. Tudo ia bem, muito melhor do que pensávamos que iria, porém ainda estávamos na fase inicial das coisas. Entre gravações, preparações, planejamentos e o fim das provas, a semana correu.
O tempo todo, eu esperei que algo fosse dar muito errado. Esperei que descobrissem nossos planos e os parassem antes de sequer começar. Esperei que alguém desse para trás, causando um efeito dominó até que não tivéssemos mais ninguém na causa. Todo cenário ruim possível, eu criei na minha cabeça. Nada aconteceu.
N-A-D-A.
Mas eu insistia no fato de ter experiências o suficiente nesta vida para compreender que aquilo nunca poderia ser um sinal bom. Haviam piores, mas aquele me dizia que o universo estava só nos dando um tempo para respirar antes de todo o trabalho e, se tudo der certo, o caos. Pois era isso que estávamos interessadas em trazer.
E, para mim em particular, começou mais cedo do que eu esperava.
— Nossa, isso aqui está muito bonito. - minha mãe disse, encarando seu prato cheio com várias comidinhas.
— Tem razão. Isso é bacon? - meu pai questionou.
— Sim, picadinho. Quer experimentar?
e eu nos olhamos enquanto eles provavam a comida um do outro.
Meus pais haviam nos convidado para um brunch no domingo, com a desculpa de que estavam com saudades. Tudo bem, esse era um motivo bom, mas eu sabia que na realidade eles queriam mais informações sobre nós. E quando eu digo nós, eu digo nós.
Porque sim, eu decidi contar a eles. Parte porque eles já imaginavam que havia algo ali, afinal de contas, me levou para um encontro na minha própria casa, e porque eu gostava de ter a opinião deles sobre isso que tínhamos. Nossos pais eram as pessoas que mais conheciam nosso relacionamento - além de nós mesmos -, logo, não hesitariam em avisar caso estivéssemos fazendo alguma grande merda. Pelo menos, esse era o mínimo que eu esperava.
— E então, como estão as aulas? - dona Claire perguntou.
Ele respondeu primeiro.
— Muito bem. As provas e trabalhos intermináveis chegaram ao fim, eu tenho mais tempo livre para me dedicar aos meus treinos.
— O irmão da April está visitando, então nós temos um membro honorário no nosso grupo e ele é bem gente boa.
— Quantos anos ele tem? Onde estuda? - meu pai questionou.
— 22. Ele trancou a faculdade.
— Então não é gente boa o suficiente para mim. - disse, me fazendo revirar os olhos. , por outro lado, só faltava dar pulinhos em seu próprio lugar.
— Como estão as coisas lá em casa? - perguntei, mudando drasticamente de assunto.
— Vão indo, filha. - minha mãe respondeu. - Nós reinauguramos os jantares de sexta-feira, vocês sabem que são sempre bem-vindos. , sabia que seus pais adotaram dois gatinhos? Tão fofos!
— Eu sei, eles me mandam centenas de fotos e vídeos todos os dias. Acho que eles estão lá para me substituir. - comentou, risonho, mas meu pai pareceu não pegar a dica de que era apenas uma piada.
— Não diga isso, meu filho. Você é insubstituível para os seus pais, os gatinhos só tem a somar a família de vocês. Eles sentem falta de cuidar de alguém, isso é muito comum, sabia?
sorriu, desconfortável com a situação, mas atuou como se tudo estivesse na maior normalidade.
— Claro. Obrigada, Johnatan.
Conforme comíamos, eu senti eles ficarem mais tensos e estranhos. Em uma família normal, isso poderia não significar nada, porém, se tratando deles, eu sabia que havia alguma coisa. Não conseguia imaginar o quê, mas eles sempre arrumavam uma forma de me surpreender.
— Tá legal, desembuchem. - mandei, chamando a atenção dos três para mim.
— Como? - minha mãe disse, rindo para tentar disfarçar. Claramente não funcionou.
— Eu sei que estão aprontando algo, está na testa de vocês. Por que outro motivo vocês me fariam acordar antes do 12h00 em pleno domingo?
Eles me encararam, parecendo procurar na minha expressão o quanto eu sabia do que tinham para falar. Não encontraram nada porque meus conhecimentos sobre aquilo realmente não iam muito longe. Eu só os conhecia demais para ser enganada.
— Uau, ela é boa. - meu pai falou para a minha mãe, surpreendentemente chocado com a minha perspicácia.
— Tudo bem, nós temos novidades. - ela disse.
— Ah, é? Me contem!
Eles se olharam, apreensivos. Fiz o mesmo com o , só para verificar se ele estava entendendo melhor do que eu o que acontecia ali, porém tudo que ele faz foi dar de ombros, tão confuso com aquela cerimônia toda quanto eu.
— Nós estamos muito felizes com isso, , então manera na sua reação, ok? - ela pediu, já entregando que eu não deveria esperar algo bom a partir de agora.
No entanto, apenas assenti, curiosa sobre as novidades. Eles esperaram mais um pouquinho, analisando minha expressão, até que minha mãe cutucou meu pai com o cotovelo, incentivando-o a falar. Esse era o segundo sinal de que eu deveria me preocupar, pois minha mãe adorava falar, em especial coisas legais que eu adoraria ouvir. Parece que esse não seria o caso.
Ele pigarreou, se preparando.
— Bom, acredito que você se lembre da conversa que tivemos alguns meses atrás, sobre o quanto temos sentido sua falta desde que saiu de casa. - e ali estava o sinal número 3. - Nós esperamos, esperamos, mas não conseguimos nos acostumar com a casa vazia.
— Onde é que vocês querem chegar com isso? - questionei, hesitante.
Na minha cabeça, haviam duas opções. Primeira: eles iriam voltar com a conversa de eu voltar a morar na casa deles, implorando ou algo assim. Segunda: eles iriam tirar minha liberdade de escolha e exigir que eu voltasse para casa.
Mais uma vez, ambos trocaram alguns olhares. E então se viraram para mim, sorrindo.
— Nós vamos adotar uma criança. - disseram juntos.
Era bom que eu não tivesse tomando nada no momento, pois iria engasgar na certa. O ar já foi o suficiente para me causar tosses e, consequentemente, lágrimas nos olhos pelo soco no estômago que eu parecia ter levado depois daquela frase.
O quê!? Adotar? O que diabos eles tinham na cabeça?!
Fiquei encarando-os por um bom tempo, aguardando o momento em que eles iriam rir e anunciar que era uma pegadinha. Das ruins. Busquei também informação no , que continuava tão perdido quanto eu. A diferença era que ele disfarçava seu espanto, pois na nossa frente estavam aqueles que ele esperava que voltassem a ser seus sogros.
— Vocês têm que estar brincando. - eu disse depois do momento de silêncio, esperando que isso fosse incentivo o suficiente para eles rirem e dizerem: é claro que estamos. Mas nada, tinham apenas as expressões animadas de duas pessoas ansiosas para fazer uma grande merda. - Por favor, me digam que estão brincando. - tentei mais uma vez.
— … - meu pai começou a falar em um tom de voz calmo e aí tive certeza que tudo estava perdido.
— VOCÊS QUEREM ADOTAR UMA CRIANÇA?! QUEREM OUTRO FILHO?! - disse, ultrajada. Ouvi o ‘shhh’ do ao meu lado e continuei. - Eu não sou suficiente?! Vocês tem que arrumar outra?! - exclamei, ainda que sussurrando dessa vez, pois havia atraído alguns olhares desagradáveis.
— Não, querida! É claro que você é suficiente, você é mais do que nós merecemos. - minha mãe se apressou em responder. - Mas, com a casa tão vazia…
— Vocês acharam uma boa ideia colocar alguém no meu lugar, alguém para me substituir, é isso? - completei para ela, que negou imediatamente.
Eu sabia que estava certa, no entanto. Por que outro motivo eles iriam querer criar uma criança nessa idade? Eles não eram idosos nem nada, porém essa era a hora certa para eles irem viajar o mundo, fazer um cruzeiro ou algo do tipo sem a filha enchendo o saco, não para arrumar outra!
— , pensa nisso! Pensa no quão gostoso seria ter um irmão ou uma irmã mais nova. Você poderia brincar com eles, ser o exemplo a ser seguido, não é legal?
A encarei com a minha melhor expressão de: o que diabos você está falando? Era como se ela não me conhecesse nem um pouco. Eu odiava crianças. Eu odiava crianças quando era uma delas e o sentimento só cresceu junto comigo.
— Não! Eu nunca quis a porra de um irmão mais novo, por quê iria querer agora?
— Cuidado com o linguajar, . - meu pai me repreendeu, me fazendo revirar os olhos. Eu não estava sendo uma filha muito respeitosa, mas a culpa era apenas deles.
Eu não ouvia nem a respiração de do meu lado, o que me levava a crer que ele estava imóvel, tentando não chamar atenção para não ser jogado bem no meio do furacão. Ele havia crescido na nossa casa, logo, sabia muito bem que esse era sempre um risco.
— Deus! - exclamei, cobrindo meu rosto com as mãos. - Como é que vocês têm essas ideias malucas? Não é possível!
— , nós só queremos que considere a ideia, pare um pouco para pensar. Isso não é um ataque a você, eu juro. - ela disse, mas eu balancei a cabeça, negando a possibilidade.
— Preciso de um ar. - afirmei, me levantando e andando em direção a saída.
Atrás de mim, ouvi o dizer:
— Deixa que eu vou, Claire. Vou conversar com ela.
Típico.
Pensei em virar para trás e gritar para que ele nem se desse o trabalho de me seguir, porém pensei melhor e decidi que já havia chamado atenção demais naquele restaurante. E que eu definitivamente nunca iria voltar ali.
— Você ouviu aquele monte de baboseira? Consegue acreditar naquilo tudo? Meu Deus! - eu falava, andando de um lado para o outro e gesticulando.
— …
— Quer dizer, quais são as chances disso dar certo? Nenhuma, cara! Uma criança? Nesse ponto da vida deles? Não faz sentido algum!
— .
— E eles ainda tem coragem de olhar na minha cara enquanto falam que não estão me substituindo. Eu sei que estão, ! Eu sei que estão.
— !
— Quer saber de uma coisa? Eu aposto que isso é mais uma maneira deles tentarem me arrastar de volta para a casa deles! Podem estar blefando, esperando pelo momento em que eu vou implorar para me aceitarem de volta, o que nós dois sabemos que não vai acontecer.
— Pelo amor de Deus, para um pouco e me escuta! - ele disse, se enfiando em meu caminho e me segurando pelos ombros.
— Que foi? - questionei.
Ele viu que tinha minha atenção, então olhou bem no fundo dos meus olhos para falar.
— Você se colocou por um segundo sequer no lugar dos seus pais? - engoli em seco. É claro que não e ele sabia disso. - , eu não quero ser o cara que te diz isso, mas já me enfiaram na história, então lá vai: você está sendo extremamente egoísta.
— Egoísta?! Como é que eu estou sendo egoísta? E eles?
— Eles só estão tentando ser felizes sem você.
Encarei-o, erguendo uma sobrancelha.
— Eu vou te dar um tempo para reformular essa frase ou desenvolver muito bem ela, caso não queira ser chutado nos próximos segundos.
suspirou. Suas mãos ainda seguravam meus ombros, me impedindo de voltar a andar freneticamente.
— Pensa um pouquinho. Seus pais passaram os últimos 18 anos da vida deles vivendo em prol do seu bem estar, da sua saúde e felicidade. De repente, você está na faculdade, cheia de tarefas, liga algumas vezes por semana e não precisa mais deles ali o tempo todo. Como você espera que eles estejam bem com isso?
— Eu não faço ideia, ! Mas esse é o ciclo. Por que os seus pais conseguiram e eles não? Por que todos os pais do mundo conseguem e eles não?
— Conseguiram? Meus pais têm dois gatos agora! E a última vez que conversei com a minha mãe, ela estava planejando reformar o fundo da nossa casa para montar um lugar onde ela poderia resgatar e cuidar de animais de rua para doar depois.
Aquilo, sim, era fofo! Por que não haviam enfiado os meus nesse negócio também?
— Você realmente tá comparando uma criança a gatos? Eles são seres infinitamente superiores! Os gatos, eu digo. - eu disse, arrancando dele uma risada.
— Só estou tentando te dizer que cada um reage da sua maneira. Não tem nada de errado com o que seus pais estão fazendo, na verdade é bem bonito. E ter um irmão mais novo não pode ser tão ruim assim… A e o conseguem, você pode pedir dicas. - ele sugeriu, me soltando agora que eu estava mais calma.
Senti falta do calor das suas mãos, porém não diria aquilo em voz alta.
— Eu não sei se consigo estar bem com essa ideia…
— Você não precisa. Pelo menos, não agora. Mas conversa com os seus pais. Não olhe ou trate eles como se devessem ser jogados em um hospício apenas por serem seres humanos.
Bufei, frustrada por ter que voltar lá para dentro com o rabo entre as pernas para admitir que eu não estava sendo justa anteriormente. Mas eu o faria, pois a ideia de fazê-los sentirem daquela maneira era insuportável. Eles mereciam mais, muito mais do que uma filha ciumenta e orgulhosa.
Se aquela criança realmente viesse, eu faria questão de ensiná-la a não ser como eu, pois só pode haver uma nesse mundo. Meus pais ficariam loucos com outra. E se eu podia fazer essa espécie de plano sobre o pirralho ou a pirralha, talvez eu pudesse também aceitar em pensar na ideia.
— Você é bem espertão quando se trata da família dos outros, né? - ele deu de ombros. - Odeio quando você é sensato.
Ele me acompanhava restaurante adentro e estufou o peito de orgulho com o meu elogio, todo metido.
— É melhor se acostumar, meu bem. Eu sou um novo homem.
Poucos segundos depois, ele derrubou metade das coisas que estavam na bandeja de um garçom ao se distrair olhando para mim para se exibir um pouco mais. Eu apenas ri e me afastei, fingindo que não o conhecia.
Depois de me desculpar com os meus pais e prometer que eu pensaria com carinho - mas nem tanto - na ideia, pude continuar minha refeição que havia sido tristemente interrompida. Não tocamos mais naquele assunto em especial, aproveitando ao máximo o que nos restava daquele tempinho juntos… Antes que a criança dos infernos tomassem eles para si mesma, me deixando sem nada.
Eu realmente iria considerar aquela ideia.
Continua...
Clique aqui para ler do capítulo 22 em diante.
Nota da autora: Olááá! Estamos indo muito bem até aqui, não? Pois bem, deem aquela respirada gostosa antes dos próximos capítulos chegarem.
Espero que tenham gostado! E, como de costume, não esqueçam de me dizer o que acharam que eu sempre amo uma boa opinião <3
O capítulo 22 vem dar o ar da sua presença muito logo!
Outras Fanfics:
Especial de ano novo: Let's be bad together
14. Freak
14. Angel on Fire
14. They just don't know you
06. Choke
Espero que tenham gostado! E, como de costume, não esqueçam de me dizer o que acharam que eu sempre amo uma boa opinião <3
O capítulo 22 vem dar o ar da sua presença muito logo!
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