PARTE 01 | A DETETIVE 00
Manchester, Inglaterra. .
Ela acordou como sempre: vomitando e tremendo.
Levou cerca de vinte minutos para ela compreender onde ela estava, e o que estava acontecendo. O zumbido intenso em seus ouvidos emudeceu tudo ao seu redor, sua pulsação se confundiu com a memória traumática dos disparos. O coração dela ainda está acelerado, martelando de maneira nauseante contra sua caixa torácica, os instintos ainda em alta alerta, sensíveis e à espera do golpe iminente. A respiração pesada, irregular e rarefeita. A tosse que se segue é mais nervosa do que qualquer outra coisa, enquanto sua mente só registra meio a parte a falta de ar.
Tudo estava girando.
Ela tenta respirar, mas quanto mais o fazia, mais parece que falta ar. null rolou para o lado, sem perceber que acabava de enfiar sua mão na poça de vômito dela, tentando se colocar sentada, instintivamente buscando uma arma, ou qualquer coisa que pudesse usar para se defender enquanto o grito pelo nome de Beatriz morria em sua boca. Ela encarou diretamente a televisão ligada no que parecia ser um canal de segunda mão, ecoando o jornal matinal.
A estática da televisão de tubo fazia não apenas com que a imagem ficasse instável, como, igualmente, aumentava a sensação de desconforto do emudecimento de seus ouvidos. null franziu o cenho, tremendo, hiperventilando, inicialmente confusa por não estar compreendendo nada do que é dito, sentindo como se algo estivesse completamente errado, mas então ela percebeu. Inglês. Porra! Manchester. Certo, certo! Ela havia se esquecido disso.
Inglaterra, porra, ela estava na Inglaterra, ótimo, porra, fantástico.
Puta merda, null fechou os olhos com força, ignorando o gosto horrível amargo de bile em sua boca enquanto se deixava sentar para trás esbarrando em sua mesa, e quase caindo para trás se não fosse a perna de sua cadeira deitada no chão, de onde ela deveria ter caído na noite anterior após apagar completamente.
Ainda hiperventilando, ela fez uma careta para si mesma ao observar os indícios do próprio vômito em sua mão, praguejando baixo em português e buscando algo para limpar. Qualquer pano que ela encontrasse no meio do caminho serviria como auxílio para que ela a limpasse, cuspindo no chão antes de usar o antebraço para afastar as mechas revoltas de seus cabelos para longe de seus olhos e testa.
Estava encharcada de suor, e apesar de ter a sensação de sua pele estar febril, o suor é frio e a sensação ainda pior. Quer dizer, ela já havia caído dentro de um lago congelado antes, ela sabia como era a sensação de quase morrer congelada, e ainda assim, havia algo de completamente não natural em soar frio que a incomodava. null tinha poucos medos, e certamente, a morte não era um deles, mas isso não significava que ela gostasse de sentir desconforto.
Ela era maluca, não sádica. Não com ela mesma, pelo menos.
Puta merda, sua cabeça estava para explodir e ela ainda estava naquela maldita névoa desorientadora de puro medo e instinto. Ela praguejou outra vez, atingindo o próprio rosto com alguns tapas fortes, tentando aumentar sua adrenalina o suficiente para ela se concentrar em outra coisa.
Havia aprendido que a dor era uma boa maneira de limpar sua mente, ao lhe oferecer algo prático para se concentrar. Não era a melhor solução, ela sabia, mas funcionava, então, foda-se. Os olhos null dela dispararam de um lado para o outro, as pupilas se contraindo enquanto se fixam na televisão ligada à sua frente. null exalou por entre os dentes, tentando se obrigar a ouvir algo. Uma das piores partes daquela merda, não era a desorientação, ou a sensação de que estava prestes a morrer, com as solas dos pés e as mãos formigando sem parar, e muito menos a sensação de descontrole de seu próprio corpo, como uma desconexão de seu físico com sua mente, mas o ruído em seu ouvido, abafando tudo ao redor, enquanto ela só conseguia hiperventilar. Quanto mais tentava respirar, mas a falta de ar lhe causava. Ela tentou se concentrar na televisão, parecendo estar submersa debaixo d’água inicialmente, antes de lentamente conseguir focar nos sons que o aparelho velho, decrépito e caindo aos pedaços, estava fazendo.
——... de acordo com o Parlamento Canadense, a ação foi necessária para manter a integridade do sistema de justiça. O Primeiro Ministro Canadense, David null, informou esta manhã sobre as investigações ao escândalo de corrupção na bancada republicana no Parlamento, em seu discurso durante a abertura de um dos novos hospitais para crianças de baixa renda com doenças raras ou tratamento intensivo experimental, o Primeiro Ministro fez questão de frisar que… —— A imagem muda de uma loira elegante envolta por roupas profissionais de âncora de jornal para um homem engravatado de rosto sério, concentrado, mas que estranhamente aparentava uma gentileza capaz de fazer o estômago de null revirar. Tinha olhos null, cabelos grisalhos nas laterais, embora perfeitamente alinhados e null no topo, pendendo por seu rosto de galã grisalho hollywoodiano, barba perfeitamente aparada, fazendo-o parecer mais novo, e roupas impecáveis.
null não conseguiu conter um sorriso de desgosto e nojo que se espalhava instintivamente por seus lábios, sabendo perfeitamente que as pessoas que mais tentavam esconder-se por trás de um véu de perfeição, são as que mais tinham algo a esconder. Ou talvez ela fosse apenas cínica demais, null sequer prestou atenção no discurso que o tal David null faz.
Os olhos null dela se encontraram com os amendoados de Beatriz. Os olhos de Beatriz sempre haviam sido mais castanhos, como mel, e sempre haviam sido mais doces que os dela. Olhos arregalados, braços cruzados à frente de seu corpo, mas os pulsos e as mãos estão faltando, os ossos expostos, a cabeça dela pende para o lado, pendurado em seu tronco de onde a espinha vertebral dela se projetava para fora. E o sangue se espalhava por todo lado.
null piscou os olhos rapidamente, encarando as próprias mãos enquanto sua respiração se tornava insuportavelmente irregular.
A notícia do tal Primeiro Ministro Canadense muda bruscamente para alguma coisa relacionada há algum conflito no Oriente Médio. Os gritos, o som da bomba explodindo, é demais para ela. null tateou desesperadamente pelo controle da televisão, cegamente, sem se levantar de onde estava, os músculos ainda travados, o corpo ainda tremendo. Ela praguejou baixo ao perceber que teria que se levantar, e então, com uma mistura de preguiça e pura incapacidade de mover-se com segurança, juntamente com a certeza de que iria cair sobre seu próprio corpo, seu peso cedendo a suas pernas, ela apenas jogou o que achou ao seu lado na direção da televisão. Um chinelo, uma pedra, um pote com canetas esferográficas com cheiro de morango e outras frutas, com glitter, porque ela havia comprado por algum motivo quando estava bêbada demais para se lembrar do porquê.
—— Porra —— null cuspiu outra vez, tacando sua cópia velha e rasgada de Memórias do Subsolo na direção de sua televisão, propositalmente para desligá-la da forma que dava. Quer dizer, o aparelho estava quebrado a meses, funcionava por intervenção sobrenatural ou divina, embora null estivesse mais inclinada a apenas acreditar que o aparelho funcionava por vontade própria. E a única forma de desligar era dando um tapa ou chute, ou arrancar o cabo da tomada, mas se ela arrancasse a merda do cabo da tomada, o apartamento inteiro ficaria sem luz, porque sua vida era simplesmente incrível, não é? null fechou os olhos novamente, apoiando a cabeça contra uma das pernas da cadeira derrubada, encarando o teto por um longo tempo completamente envolvida em silêncio.
Não era que ela gostasse de silêncio, na verdade sentia repulsa, a imprevisibilidade e a paranoia a envia para um estado de alerta pior e mais profundo na maioria das vezes, esperando de onde viria o próximo ataque ou quem iria agarrar seus cabelos dessa vez e arrastá-la para algum canto escuro. Igualmente não era como se ela quisesse ouvir os dois filhos da puta gemendo em alto e bom tom, do outro lado de sua parede. Ao menos, era melhor do que ouvir os gritos de Beatriz, de novo e de novo e de novo, como acontecia todos os dias.
A cabeceira da cama batia ritmadamente contra a parede a esquerda de sua sala, estupidamente fina para o próprio gosto dela —— afinal, pelo menos no Brasil as paredes eram feitas de grossas camadas de tijolos, e isso ao menos abafava um pouco os ruídos. Sem a televisão para abafar o som, ela conseguia ouvir os grunhidos e gritos agudos dos dois pervertidos que pareciam ter tempo para aquilo logo de manhã.
null não havia se dado ao trabalho de investigar muito sobre a vizinhança naquele maldito pardieiro, tudo o que havia tido como garantido era que ninguém faria perguntas ou era bisbilhoteiro o suficiente para querer saber quem ela era. Algo sobre gangues menores que eram subjugadas aos Blinders ainda. O que quer que aquela merda significasse para eles. O que null não gostava e, definitivamente não esperava era acabar sendo vizinha de dois idiotas filhas da puta ninfomaníacos. Além disso, null tinha quase certeza que o exibicionismo era apenas uma tentativa de validação pessoal para confirmar que “sim, realmente, casal muito apaixonado” quando não havia substancia alguma além do sexo. Típico. null encara o vazio a sua frente, se questionando pela primeira vez no dia, que porra ela havia feito com a própria vida.
—— Puta que pariu, só pode ser brincadeira —— null apertou a ponte de seu nariz, tentando conter os tremores restantes de seu corpo, ou ao menos, mantê-los sob controle, antes de obrigar-se a levantar, meio cambaleando, meio rosnando consigo mesma ao esbarrar pelos móveis no meio do caminho.
null balançou a cabeça de maneira negativa, genuinamente irritada, enquanto tentava afastar a sensação de torpor que a envolvia, unindo as sobrancelhas, no máximo de determinação que ela possuía —— o que por si só era mínimo. Ela agarrou um pé de cabra no canto do seu corredor de seu apartamento, e então ela propositalmente acertou violentamente a parede. Mas os gemidos, para sua descrença, continuam. Então, xingando em alto bom tom, ela acertou a parede novamente, e de novo, e de novo, até fincar o pé de cabra atravessando-o do outro lado.
Um grito feminino em pânico e uma sequência de palavrões pouco criativos, a faz sorrir como o próprio diabo. Se era briga que o machão idiota procurava, então null estava completamente aberta para enterrar a cabeça de merda dele, no chão, com os próprios punhos.
—— CALA BORA PORRA! —— Ela gritou, chutando a parede em um aviso, por pura raiva, antes de assoprar as mechas de seu cabelo para longe de sua boca, irritada, apoiando as suas duas mãos em seus quadris.
Ela fechou os olhos com força, girando o pescoço, tentando aliviar a tensão em seu corpo, inspirando fundo. O ar gélido queimava suas narinas, ou talvez fosse apenas o pó que a estivesse a incomodando, mas a alta da adrenalina e a raiva lhe dão, ao menos, um breve foco além de ficar voltado para Beatriz, e isso já lhe valia muito.
Pelo menos o ataque de pânico havia diminuído.
Ela podia sentir as mãos tremendo ainda, mas enquanto ela convencesse a si mesma que não estava sentindo nada, então ela firmemente não iria sentir nada. Era um jogo perigoso e puramente estupido que ela fazia consigo mesma, mas o problema de seus ataques de pânicos era que eles não ocorriam de súbito. Eles ocorriam gradualmente, até um ponto de explosão. Ela podia sentir na maneira irregular que seu coração martelava contra sua caixa torácica, ou a maneira com que sua mente parecia presa em um manto esquisito de falsa estabilidade, sentindo a familiaridade do espaço, mas notando algo que não estava ali —— algo que ela não estava vendo. Iria ficar pior, ela sabia, mas no momento? Bem, estava sob controle, e ela manteria assim. Por desprezo —— a si mesma.
null usou o antebraço para limpar a própria boca, ignorando os xingamentos e gritos do outro lado da parede. Ela puxou com força o pé de cabra da parede, observando o buraco que se abriu no espaço, antes de abrir um sorriso torto, desgostoso e dando-lhe o dedo do meio ao ver alguém tentar espiar pelo buraco aberto.
null jogou o pé de cabra sobre sua mesa próxima a janela, sem se importar com o fato de que ela havia errado feio e acertado o vidro da janela, criando uma bagunça de cacos no chão. null caminhou até seu banheiro minúsculo e apertado, fedendo a água sanitária e limão. Puta merda, um dia ela ainda se mataria naquela merda por misturar produtos químicos que não deveria ser misturados, sem a preocupação de verificar se era adequado ou não o fazer. Um grunhido escapou por entre os lábios dela, quando ela calculou mal o espaçamento do degrau e tropeçou para dentro, batendo o ombro na quina da bancada do gabinete do banheiro, e quase acertando a cabeça dela no box de vidro.
null fechou os olhos por um segundo, pensando em desistir de tudo simplesmente, e, ficar ali pelo resto do dia, questionando novamente o que diabos havia feito com sua própria vida. Mas os espasmos suaves em suas mãos, cedendo lugar aos tremores anteriores, evidenciavam o começo da abstinência. null abriu os olhos, obrigando-se a levantar-se e então apoiou as duas mãos na pia, franzindo o rosto com a claridade que invade o banheiro.
Ela odiava as manhãs.
A água gelada a acertou como um soco preciso, livrando-a de qualquer resquício de ressaca que ela poderia ter no momento, e um suspiro de alívio escapou por entre os lábios dela, quando ela cuspiu a água de sua boca após a lavar. O gosto de menta ainda está em sua língua, quando os olhos null se encontraram com seu reflexo. Olheiras abaixo dos olhos, a pele mais pálida que o normal, meio doentia, os lábios com alguns machucados das peles que ela costumava arrancar inconscientemente na noite anterior enquanto se afogava na bebida sozinha. null soltou um chiado entre dentes desviando os olhos quase imediatamente, incapaz de se olhar no espelho, como se sua imagem a queimasse, e então abriu a porta do armário em busca dos frascos dos remédios. Tateou meio cegamente derrubando um dos frascos dentro da pia, mas para sua surpresa, todos estavam vazios.
null prendeu a respiração. Merda!
Não, não, não, não!! Isso não poderia estar acontecendo! Não agora! Não hoje! Mas que caralho?! Então tudo se desfez no fundo de sua mente. Ela abriu as gavetas do gabinete de seu banheiro, procurando na bagunça por mais um frasco da droga. Ela não poderia estar sem aquela merda de remédio. Se estivesse, então… null fechou os olhos com força, tentando silenciar o medo que começava a atingir e espalhar-se por seu peito como veneno, praguejando entre dentes. Ela não podia enfrentar Beatriz. Não agora. Nunca. Os dedos longos dela, meio tortos, buscam rapidamente por sua bagunça ali, jogando no chão alguns sabonetes, lenços umedecidos, absorventes internos, esmaltes velhos, sem se importar com o caos que estava construindo em seu banheiro. Sem se importar com nada que não fosse aquelas malditas pílulas.
Ela exalou de maneira afiada, por entre dentes, fechando os olhos com força, acertando um tapa por pura frustração na quina do gabinete antes de enterrar o rosto em suas mãos. Que porra! Era só o que ela precisava! Era cuidadosa e costumava pegar mais doses do que deveria para garantir que não faltaria. Porra, porra, porra! Como ela havia deixado aquilo acontecer?! Puta que pariu! null inspirou uma única vez, negando com a cabeça, disparando na direção de seu quarto.
Ela se trocou rapidamente com a primeira roupa limpa que ela encontrou pelo caminho. Vestiu com uma careta a jaqueta de couro, seguido do boné esfarrapado escuro, prendendo-o em sua cabeça de maneira firme antes de puxar o gorro de sua jaqueta com um movimento rápido. Alguns hábitos levavam tempo para morrer.
O vento gélido queimava o rosto dela, fazendo seu nariz arder e sua respiração se tornar uma fumaça suave, esbranquiçada, ao escapar por entre seus lábios, ao passo que ela desceu rapidamente as escadas decrépitas do pardieiro que ela vivia em Manchester, empurrando com um grunhido o portão de ferro, antes de preparar-se para andar, apenas para receber um golpe violento em sua cabeça.
null tossiu, engasgando-se com a própria saliva, desorientada por um segundo, enquanto desabava no chão como uma jaca podre. Os olhos null dela se arregalaram levemente enquanto encontravam com o rosto genuinamente irritado e desesperado, de um homem truculento, com uma calvície bem evidenciada e uma expressão de filha da puta que havia acabado de ser pego em flagrante e não estava conseguindo dormir por conta disso. Ele tentava segurar os braços dela. Péssima decisão.
O instinto voltou como uma memória muscular cravada em sua mente, e null não percebeu que reagiu até ter quebrado o nariz do idiota, e o tê-lo preso contra a parede a sua frente, torcendo o braço dele nas costas, imobilizando-o enquanto a mão esquerda dela segura os cabelos dele com força, puxando a cabeça para trás para ver o rosto de seu quase agressor. O impulso gritando mais alto, ecoando para que ela acertasse repetidas vezes a cabeça do idiota contra os tijolos irregulares do prédio em que ela vivia até que ele estivesse morto —— mate-o, o que está esperando? Termine o trabalho null, mate-o!.
null exalou lentamente fazendo uma careta antes de empurrar o filho da puta para frente, soltando os cabelos dele, e chutando-o no meio das pernas apenas para descontar sua frustração. Os olhos null percorreram momentaneamente o restante das pessoas que caminham por entre a calçada, unindo as sobrancelhas grossas e bem marcadas em uma expressão de poucos amigos ao perceber tardiamente que ela estava chamando mais atenção do que deveria. Ela exalou novamente, a fumaça esbranquiçada de seu hálito projetando-se a frente de seus olhos, enquanto ela voltava a encarar o maldito homem.
Senhor Andrews, desabado em seus próprios joelhos, segurando a virilha com dor, enquanto xingava até a última geração de null.
Talvez ela estivesse finalmente enlouquecendo. Talvez, fosse pura frustração. Ou, talvez, fosse simplesmente incredulidade, mas ela soltou um riso nasalado, incrédula, cambaleando um pouco para trás enquanto apoiava as duas mãos nos quadris, furiosa. Justo naquele dia, puta que pariu! Se algo mais desse errado, ela genuinamente iria considerar saltar da primeira ponte que encontrasse em seu caminho…
O senhor Andrews era um filho da puta na casa dos quarenta anos. Até poderia ser considerado alguém bonito, quando jovem, mas agora era uma desculpa medíocre de um homem branco e velho entrando na meia idade que, por algum motivo, estava desesperado para ter uma validação masculina em sua vida ao agir como se tivesse quinze anos novamente —— uma crise de meia idade, típico para pessoas como ele. Não apenas isso, dormia com garotas de quinze anos também. null estava na cola dele fazia sequer duas semanas, quando a Senhora Andrews, ou apenas Genevieve, como ela havia pedido para que null a chamasse, havia entrado em contato com ela, e pedido para que null o investigar a fim de descobrir se ele estava a traindo ou não. A verdade previsível? É claro que sim. O problema era que esse maldito professor do ensino médio, estava a traindo com as alunas dele. E fale de ameaça a sociedade.
—— Ah puta que pariu, pau no cu do caralho, para de falar, minha cabeça tá explodindo e você só tá piorando essa porra —— null cortou com pura impaciência, confundindo-se com os idiomas, e começando a falar em português, sua língua materna, antes de perceber o que estava fazendo e se corrigir para falar um inglês meio quebrado, devido sua irritação. null conteve o impulso de chutá-lo outra vez, colocando-se de cócoras para observar o homem gemendo de dor com o golpe que havia recebido, encarando-o com desprezo. Ela apoiou os cotovelos nos joelhos dobrados, ajeitando o boné em sua cabeça novamente, antes de encará-lo com atenção.
Andrews estava vermelho, o rosto em uma mistura de vergonha, raiva e frustração, e tinha claramente alguns arranhões frescos em seu rosto. null bufa consigo mesmo, um sorriso torto surgindo por seus lábios, quase discretamente demais para ser percebido, enquanto ela supôs que, ao menos, Genevieve havia conseguido acertá-lo onde o doía mais: sua aparência.
Bom para ela.
—— O que você quer, seu merda?
—— Vadia!
null sorriu, erguendo uma sobrancelha.
—— Ótima habilidade de observação, mas redundante —— null apontou com escárnio divertindo-se sombriamente com a tentativa de ofensa daquele homem miserável. Não porque tivesse algo contra ele, apenas o fazia por passatempo. Palavras eram apenas palavras quando você não se importava. E null… bem, fazia muitos anos que ela havia se importado com algo. —— Vou assumir que toda essa tentativa de intimidação é por causa das fotos? Sabe, se vai trair a sua mulher com uma garota de 16 anos, que tem idade para ser amiga da sua filha, pelo menos, e ênfase no pelo menos, tenta ser discreto sobre, sabe? Fecha as janelas, cronometra entradas e saídas, evite câmeras e, não sei, encontre alguém que esteja na idade legal para ter sexo com você, não uma criança. —— null ofereceu um sorriso repleto de escárnio, encarando com uma ponta de diversão o homem ficar ainda mais vermelho que antes e gaguejar para tentar se defender. Em outro momento, ela teria se divertido muito em ver ele lutar para encontrar justificativas plausíveis, apenas pelo prazer de vê-lo escorregar em seus argumentos, e recusar-se a admitir o que todos sabiam: ele era medíocre. Uma desculpa patética de covardia que sequer merecia o nome que carregava. Mas porra ela só queria se livrar dele o quanto antes e continuar seu caminho até o porto. Não conseguiria começar seu dia se não estivesse com as merdas da pílulas a seu alcance, e, certamente, não iria conseguir dormir. —— Corta a baboseira, parceiro, vai direto ao ponto.
—— Eu ordeno que me dê as fotos sua puta! É o mínimo que você pode fazer por destruir meu casamento e minha carreira! —— Rosnou Andrews tentando parecer corajoso. Mas null null conhecia monstros piores e muito mais assustadores que ele. Porra, ela era um monstro pior e mais assustador que a merda de um idiota que não conseguia manter seu pau dentro da calça quando via crianças.
null estreitou os olhos, inclinando a cabeça suavemente para a direita, de maneira quase felina, enquanto os olhos null se fixavam firmemente no rosto de Andrews, analisando-o com cuidado, perigosamente inexpressiva, sem revelar uma emoção além dos desprezo característico que ela tratava a tudo e a todos.
—— E eu faria isso porque…? —— null questionou, erguendo uma sobrancelha ao observá-lo com mais atenção ainda. Estava blefando, e isso não era sequer um questionamento, mas null de repente considera as possibilidades por um segundo, imaginando que havia uma quantidade de dinheiro considerável que ela poderia usar para extorquir do maldito patético homem antes de se livrar dele. Além disso, querendo ou não, Andrews estava fodido, e nem havia percebido. null não se considerava uma justiceira, muito menos estava inclinada a fazer algo de graça apenas pela bondade e bom moralismo. Não. Foda-se aquela merda, Mas bem, ela tinha as fotos, e era claro para qualquer um que o juiz não demoraria muito para começar uma investigação criminal, já que seria pressionado, e estavam em época de eleição. Andrews havia atirado na própria cabeça, ela só estava entregando a arma.
—— Porque… porquê… porquê… porque é uso indevido de imagem! —— Ele cospiu, desesperado. null franziu o cenho com uma ponta de desprezo. Mais do que a hipocrisia, ela detestava a fraqueza que exibiam. Pessoas que não levavam suas posturas de merdas até o fim. Chame-a do que quiser, mas null era uma fã assídua de consistência. Se você era um filho da puta, então que fosse até o fim, sem arrependimentos, ou julgamentos. Ela conteve a vontade de rir, apertando os lábios em uma linha, enquanto estreitava os olhos, observando a oportunidade que se abria à sua frente. Andrews, agora, estava chorando. null colocou-se de pé com um movimento econômico e elegante. Se ela tivesse ao menos um coração… —— null! Escuta! Escuta! Eu faço qualquer coisa, qualquer coisa! Se Gen... se Genevieve apresentar essas fotos para o júri, eu não vou só perder tudo, minha carreira, meus filhos, eles… eles vão me mandar para cadeia! Sabe o que acontece com alguém indiciado por esse tipo de coisa… eles vão… eles vão… só me diz o que você quer, e eu faço! Eu prometo! Qualquer coisa!
—— Implora.
null alargou seu sorriso quando o viu se postar de joelhos à sua frente, realmente implorando, mas ela segurou uma risada alta. Por Deus, ele era mais patético do que ela havia imaginado que ele fosse capaz de ser. E agora, haviam pessoas que havia presenciado o desespero dele. Uma confissão, para todos os efeitos, não havia como ele negar se ele estava desesperado daquela forma. Como sempre, null havia apenas entregado a arma para Andrews, ele quem havia puxado o gatilho. Idiota de merda. Os olhos null de null repousaram por um breve momento nas câmeras que permeavam a rua, antes de voltar sua atenção para Andrews, desesperadamente tentando segurar os pulsos dela, como se fosse capaz de a fazer compadecer-se. Mas bem, ele mesmo havia dito. Ela era só uma vadia.
—— Por favor, null…
—— Não. —— null disse calmamente ajeitando a lapela de sua jaqueta de couro, antes de distraidamente examinar suas unhas com uma expressão contemplativa. Ela simplesmente odiava quando esmalte descascava, simplesmente porque tinha algo dentro de si mesma que a impedia de retocar o espaço descascado, ao em vez disso, ela iria descascá-lo até que ficasse com a unha limpa novamente. Ela revirou os olhos, arrancando um pouco do esmalte distraidamente com o canto da unha de seu polegar, antes de dar de ombros, com desdém para o Andrews, patético, ajoelhado e chocado com a recusa dela. Pessoas se sentiam tanto no direito de serem ajudadas após dizerem por favor. Como se ela fosse ajudar alguém. —— Se quer as fotos originais, Sr. Andrews, seja esperto, me ofereça a quantia certa, e serão todas suas. Simples assim. Se não tem o dinheiro, não se incomode em vir atrás de mim —— null resmungou com desinteresse, indicando com o queixo na direção dele, antes de fazer menção de voltar a andar. Mas então, ela para. Estreitando os olhos e assumindo uma postura mais firme, perigosamente alerta. —— Tenta de novo essa merda comigo, e vai acabar morto. E isso não é uma ameaça, é um aviso. Mantenha isso em mente, garotão.
Na 6 St Anns Square ficava a antiga igreja St Ann’s. Um prédio consideravelmente grande com dois andares, e uma torre com um relógio ao lado da entrada da igreja. As paredes de tijolos evidenciaram a passagem de tempo, deixando os tijolos escurecidos, criando padrões irregulares, de tijolos desbotados, escurecidos e avermelhados recém trocados. Musgo espalhava-se nos cantos do gesso que decoravam as paredes. A porta dupla de madeira estava fechada, mas null conseguiu ouvir o barulho suave do canto gregoriano enquanto empurrava-a para frente para abri-la. O cheiro de mirra e incenso atinge o rosto dela, fazendo o nariz dela arder enquanto os olhos null dela percorrem o ambiente interno, observando os vitrais coloridos e elegantes, com imagem de santos que ela não conseguia acreditar e um deus que, se fosse real mesmo, estava longe de ser a concepção de uma criatura gentil, misericordiosa e amorosa. Quer dizer, chame-a do que quiser, mas se existia um deus a quem contavam ser: onisciente e onipresente, e via toda a desgraça e sofrimento que envolvia o mundo e não fazia nada, ou este não era onisciente, ou onipresente, ou, simplesmente não se importava. E se não se importava, significava que era apenas um desgraçado cruel como qualquer outro. Para que temer o inferno quando o paraíso parecia igualmente uma punição?
Mas null não estava ali para orações, tampouco para buscar perdão —— aquele navio já havia saído do porto a muito, muito tempo para ela. Não, longe disso. Estava ali por uma pessoa, e apenas isso. Ela apertou os lábios em uma linha tensa enquanto os olhos null dela percorreram pelas fileiras de bancos de madeira escura, pilares brancos se projetam nas laterais, levando ao segundo andar da igreja, e imagens de santos de pelo menos um metro de altura de momentos sacros, como a crucificação, a morte de cristo e outros momentos que null genuinamente não tinha interesse algum de observar. null exalou por entre os dentes trincados, caminhando em direção a um púlpito largo próximo de um dos pilares brancos arredondados da igreja, observando a fileira de velas acesas. null soltou um riso baixo, desdenhoso e desagradado. Não eram velas de verdade, mas simulavam velas acesas, e para acendê-las, era necessário colocar algumas moedas. null revirou os olhos, retirando algumas moedas do bolso de sua jaqueta de couro, e então coloca uma por uma na pequena fenda no canto, a fim de ascender ao menos uma vela.
Mesmo que ela não acreditasse naquele tipo de merda, isso não significava que ela não poderia deixar de aproveitar aquilo a sua vantagem. Estava comprando tempo, tentando encontrar a melhor linha de ação para a situação em mãos. Anos nas Forças Especiais ao menos teriam que lhe servir de algo. Mas estava falando de Ziyad Karam.
Os olhos dela repousaram nas costas do homem grisalho, calmamente lendo um livro pequeno enquanto a mão direita permanecia enrolada em um terço. Para todos os efeitos Karam era um homem comum. Evidentemente elegante e com uma postura impecável, que parecia exibir privilégios de uma vida que estava além da compreensão de null. Quer dizer, ela lembrava-se de ter crescido em uma favela, e então… bem, então havia sido apenas um puro e desesperador pesadelo do qual ela tentava a qualquer custo esquecer.
Ziyad Karam usava as roupas nos melhores cortes, das maiores grifes, não porque desejava ostentar seu dinheiro, mas simplesmente porque o dinheiro que possuía lhe comprava a autonomia de vestir-se discretamente, em ternos requintados que evidenciaram seu poder, mas que eram simples. Passavam a mensagem que desejava: efetividade. Os cabelos crespos agora já estavam todos brancos, mas apesar disso, e de algumas linhas de expressão em seu rosto, Ziyad Karam permanecia impecavelmente mais jovem do que deveria. Os óculos estavam presos na ponta de seu nariz enquanto ele entoava a oração, concentrado. Ele deveria ser mulçumano, mas era católico romano. Ele deveria ser letal, mas era um avô dedicado e presente. Ele deveria ser apenas mais um merda fanático que buscava justificativas divinas para a bunda desamparada de sua recusa a aceitar sua própria insignificância —— porque todos eram insignificantes, apenas sacos de carne e água, à espera de uma falha para virar uma pilha de vermes ——, e no entanto, era Doc, a porra do dono daquele país. Líder não apenas uma gangue, mas uma máfia inteira. O melhor no que fazia, é claro, porque se havia algo que Ziyad Karam não aceitava, era mediocridade.
null hesitou por um segundo, voltando a encarar as velas à sua frente, com uma sensação de desapego emocional crescente. É como se ela estivesse amortecida demais para sentir qualquer coisa que não fosse apenas um puro vazio. Uma indiferença profunda que se projetava como veneno por sua mente, mas que, a essa altura, era só um local familiar para ela. Ainda assim, naquela breve fração estúpida de segundos, ela sentiu-se tentada a fazer uma prece. Uma prece para Beatriz. Tentada a ver se, talvez estivesse errada, talvez, onde quer que a irmã gêmea estivesse, se era possível que… se Beatriz era capaz de… null umedeceu os lábios secos, balançando a cabeça discretamente, de maneira negativa, praguejando consigo mesma. Estava sendo idiota, e perdendo tempo. Por anos quando era pequena havia esperado encontrar um maldito herói, e tudo o que havia recebido em suas mãos em troca por suas súplicas era apenas sangue, terror e uma constante contagem. Nada mais. Nenhum herói veio, e tampouco viria agora.
A verdade nua e crua? O mundo era uma merda, e as pessoas, piores ainda.
—— Considerando que não é sequer uma devota, e muito menos alguém capaz de arrependimentos, null, teria mais sucesso jogando moedas em uma fonte, do que aqui —— A voz de Karam ecoou pelos ouvidos de null de maneira baixa, concentrada e pomposa. O sotaque britânico pesado, era o de alguém que vivia no Chelsea, em Londres, e não em Manchester, e tampouco fazia parte de uma máfia. Mas as aparências nunca eram realmente o que apresentavam, eram? Os estalos do sapato de Karam contra o assoalho de madeira da igreja antiga, param um pouco mais atrás dela, e null uniu as sobrancelhas bem marcadas, em uma expressão defensiva, apesar de tudo. —— Pensei que havia sido claro a você que não desejava mais ver o seu rosto outra vez, e, no entanto, aqui está você, parecendo uma merda, mas ainda respirando. Eu quero saber o porquê?
null, deu um passo para trás, afastando-se do púlpito largo com as velas de mentira, e então voltou-se para encarar Karam no fundo de seus olhos. Ela enfiou as duas mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro, inclinando a cabeça para o lado enquanto o avalia por um longo momento. Karam não se deu ao trabalho de sequer encará-la, ele sabe que ela não irá lhe fazer nada, estava em seu, teoricamente, contrato para ficar ali, mas ainda assim por um segundo, ela considerou as possibilidades. Quebrá-lo seria fácil, até demais. Para alguém da idade dele, bastava dois golpes bem colocados na altura de seu abdômen, e um golpe na cabeça, e ele provavelmente teria algum ferimento irreversível no cérebro e estaria morto. Mas, igualmente, matá-lo seria a coisa mais idiota que ela poderia fazer, então null trincou os dentes com força, assentiu para si mesma, tentando lembrar-se das regras que Edgar a havia ensinado desde que ela tinha oito anos.
Não cague onde você não tem a porra de um pano para se limpar.
—— Meu remédio acabou. Preciso demais. Cortez é o único fornecedor nessa merda de cidade, mas ele responde a você —— null disse de maneira tensa, escolhendo as palavras com cuidado, enquanto fazia uma careta consigo mesma, ao dizer remédio mas sem outra alternativa senão usar a palavra, ao menos ali. Ela revirou os olhos quando Doc solta um chiado por entre os dentes dela, em advertência ao palavrão que ela diz. null não se importava, mas igualmente não deseja chamar atenção para si mesma. Então, null deu mais um passo para trás, dando espaço para que Karam pudesse se aproximar do púlpito com as velas, observando-o como um gato, atenta e tensa.
Havia uma ponta de desprezo nos lábios de Karam, e null não pode deixar de sentir uma pontada direta em seu ego. O golpe é certeiro, e a fez sentir raiva imediatamente. Não por Karam ou pelo desprezo dele, mas por encontrar na expressão de Karam, o espelhamento do que ela pensava sobre si mesma. E puta merda, como odiava a sensação. O fracasso. A falha. O reconhecimento de que era desprezível, e deplorável. Tão patética quanto. Mas null obrigou-se a engolir a frustração e a raiva, porque mais do que um ego ferido e orgulho de merda, ela precisava das pílulas.
—— Por favor, você não precisa escolher suas palavras comigo. Sua metanfetamina acabou, e como qualquer outra viciada, você está desesperada por mais, mas suas ações a colocaram em uma posição desvantajosa comigo —— Karam disse calmamente, com sua indiferença característica, e null lutou consigo mesma para não ceder a parte ruim de sua personalidade e estragar ainda mais as coisas. null umedeceu os lábios, engolindo em seco, mas não o respondeu ao comentário de Karam.
Karam parou a frente do púlpito largo com as velas falsas, e por um breve momento, pareceu se esquecer de tudo que não seja sua prece. null o observou com uma careta, desdenhosa, quando o homem levou as duas mãos em direção ao próprio rosto, unidas, fazendo uma oração baixa. Ela admira a hipocrisia, supondo que haviam pelo menos mais 14 mães espalhadas pelas periferias de Manchester fazendo o mesmo gesto, implorando pela à vida dos filhos que Karam havia mandado matar a meses; implorando que eles voltassem para casa são e salvos —— eles não voltariam, nada descartado dentro do mar voltava a superfície.
O terço enroscado na mão dele, as contas de madeira contrastando com o prateado do metal das correntinhas que as prendiam no lugar, a cruz, igualmente prateada, oscilando para frente e para trás em quase uma zombaria. Então ele fez o sinal da cruz, tocando a testa, a barriga, e então os dois ombros, antes de retirar algumas moedas e acender ao menos quatro vê-las. Uma para sua filha, Catherine, e três para seus netos. Um menino, duas meninas. null poderia ser muitas coisas, mas era uma boa investigadora.
Os olhos null dela não se desviaram de Karam nem por um segundo. Ela o observou ajeitar a lapela de seu terno de grife em um corte excepcionalmente adequado e perfeccionista, antes dos olhos dele voltar a fixarem-se no seu. Ela não deixou se intimidar, mesmo que se tencionasse, ela permaneceu firme, sua expressão cuidadosamente estoica.
—— Agora, você veio até aqui a fim de descobrir se eu teria um trabalho para você tentar se redimir. Minha pergunta, querida, é a seguinte: por que diabos eu precisaria de você?
—— Porque eu ainda sou a melhor que você tem à disposição, Doc —— null disse com um tom de voz baixo, cauteloso.
Não era que ela gostasse de ser arrogante, a verdade era que isto, no fim das contas, acabava como uma falha fatal para ela mesma, mas em determinados momentos, quando estava desesperada e não tinha mais escolha, ela precisava apelar, e isso significava lembrar a todos porque a chamavam de Butcher, no exército. null cruzou os braços por sobre os seios, trincando a mandíbula com força, sem perceber que estava prendendo a respiração instintivamente. Os olhos null dela acompanharam os mínimos movimentos de Karam, a espera de uma reação mais perigosa, uma reação explosiva, mas esta não vem. Ziyad Karam, apenas a encarou em silêncio por alguns segundos, antes de deixar uma risada alta, intrigado, escapar por seus lábios.
null exalou por entre seus dentes cerrados.
—— Agora, isso é desespero.
null não negou. Ele tinha um ponto. E por mais que ela desprezasse a ideia de ter que rebaixar-se a alguém como Karam, ou pior, ver-se prisioneira das vontades de outro idiota maluco com problemas de ego, pouco ela poderia fazer quando a pessoa que era responsável pela distribuição dos remédios que ela costumava a tomar para dormir e a metanfetamina vinha justamente dele.null mordeu o interior de suas bochechas, observando por um momento, distraída, alguns idosos que se espalhavam pela igreja. Era consideravelmente curioso que, quando de cara com a própria mortalidade, todos encontravam algum tipo de fé. Neste aspecto, null supôs que estivesse quebrada, porque havia ficado diante da morte muitas vezes, e em nenhuma vez encontrou algum tipo de espiritualidade, pelo contrário. Havia apenas raiva. Uma revolta profunda e enlouquecedora, que a sufocava em momentos de vulnerabilidade. Ela queria colocar fogo no mundo inteiro, ela queria morrer e lutar com o próprio demônio se isso lhe garantisse a possibilidade de ser vingada. Por tudo o que havia passado, mas no fim, isso sequer importava? Era uma causa perdida de começo, e a essa altura, ela estava cansada demais para sequer considerar fazer algo além de sobreviver.
—— Qual é o trabalho? —— É tudo o que ela perguntou, e pela primeira vez, durante a conversa toda, quando Karam a encarou novamente, havia um mínimo sorriso preso em seus lábios, satisfeito.
null odiou o que viu.
PARTE 01 | A DETETIVE 01
Manchester, Inglaterra.
Sua cabeça estava explodido, e não havia nada que ela pudesse fazer para evitar.
Talvez fosse o ritmo insuportável, alto e marcado do techno eletrônico que ecoava pelo espaço, o bass tão marcado que null conseguia sentir as vibrações pelo corpo inteiro, reverberando pelos dentes trincados e pelo crânio dela. A sensação de estar sendo sufocada, piorando em escalada ao observar pessoas dançando no meio da pista com luzes estroboscópicas, esfregando-se uma nas outras como se estivessem em algum tipo de transe. Se era as Strippers retirando sutiãs ou demonstrando suas habilidades com tassels vibrantes presos em seus mamilos, ou jogando os cabelos de um lado para o outro, ou os alguns idiotas em uma mesa cheirando cocaína, ou apenas bebendo até esquecerem seus nomes. Ou se era a merda da fadiga causada pela abstinência começando a afetá-la com mais intensidade. Sua boca estava amarga, os lábios secos, suas mãos tremendo enquanto ela segurava com mais força o copo de cristal com a gin tônica. Este era o problema de precisar daquela merda de remédio: os fantasmas que a seguiam se ela não o fizesse.
Os olhos null se estreitaram enquanto registraram o fluxo contínuo de pessoas de um lado para o outro na boate, Boca do Inferno. Há uma sensação vertiginosa de desprezo dentro do peito de null, e ela sequer consegue impedir-se de ao menos soltar um resmungo inteligível quando alguém tentou aproximar-se dela. Não estava interessada em uma noite sem compromisso, especialmente porque não tinha paciência para lidar com outra pessoa que não fosse ela mesma, mas era mais do que isso naquele momento, estava a trabalho ali. Não poderia foder as coisas à toa. Não desta vez. null levou o copo em direção aos lábios dela, virando de uma vez, sentindo o álcool aquecer sua garganta enquanto suspirava pesado, exasperada consigo mesma.
—— Cortez —— Karam disse simplesmente, pegando um folheto do púlpito com um interesse desdenhoso, enquanto apalpava distraidamente o bolso interno de seu casaco, em busca de seus óculos. null analisou com cuidado a expressão do negro, as sobrancelhas se unindo enquanto ela registrava o que ele havia dito.
Puta que pariu, se alguém lhe dissesse a uma semana atrás que conseguir os remédios que ela precisava para continuar ao menos desligando a parte do cérebro dela que a matava todos os dias contaria com matar a pessoa que ela mais detestava. null teria mandado você se foder e teria rido sozinha por horas. Não era apenas o universo rindo de sua cara, era Karam agindo estranhamente com um propósito que ela ainda não havia conseguido descobrir e isso, bem, isso era perigoso.
null umedeceu os lábios com a língua, sem conseguir conter um pequeno sorriso que surgiu por seus lábios, petulante, e ao mesmo tempo, incrédula com o que ela havia escutado.
—— Não me olhe assim, querida, ingenuidade não lhe cai bem.
—— Pode me culpar? Quer dizer, é uma reviravolta no mínimo interessante —— null disse com um tom de voz divertido e ao mesmo tempo, cético. Era difícil comprar o que Karam estava falando quando null sabia, em primeira mão, que, talvez, Cortez, o cafetão e dono de uma das divisões de Karam na cidade, responsável por redistribuir a cocaína e outras drogas nos quarteis mais leal de Karam, poderia ter feito para irritar o Rei do Crime da Inglaterra. null cutucou o canto de sua boca com a língua assentindo lentamente enquanto seu cérebro, acelerado pela tensão, adrenalina e fadiga da abstinência tentava compreender o que diabos estava acontecendo e porque Karam queria que null matasse Cortez. null cruzou os braços por sobre os seios, trocando o peso de perna enquanto inclinava um pouco a cabeça para o lado, os olhos null estreitados, atentos.
Era uma armadilha. Não para Cortez, mas para null.
—— O que ele fez? —— null questionou estrategicamente, fingindo-se de curiosa, mas ciente de que Karam não iria comprar seu falso interesse em algo que não lhe dizia respeito. Ainda assim, ela estava familiarizada com o prospecto daquele jogo, com as palavras doceis que se deveria dizer para conseguir extrair a informação necessária. null deu de ombros singelamente deixando-se recostar em um dos pilares da igreja, observando atentamente Karam, tentando encontrar a abertura em sua postura impecável que lhe revelasse alguma coisa. Qualquer coisa... —— Qual é, Karam? Se quer que eu o mate, pelo menos pode me dizer o motivo pôr o fazer.
—— Como a putinha dos militares, eu presumi que você, de todos, não precisava de um motivo para matar alguém, null, apenas seguir a ordem que lhe foi dada. Eu me equivoquei desta vez? —— Karam respondeu de maneira cortante. null obrigou-se a morder sua língua para controlar sua raiva, que imediatamente espalha-se por seu corpo como uma onda quente e sufocante de fogo por suas veias. O gosto de seu próprio sangue é pungente por sua boca. null precisava admitir, o filho da puta sempre tinha uma boa resposta para tudo, e àquela, igualmente, não mostrava apenas controle sobre ela, mas como igualmente um certo conhecimento que aterrorizava null. Seu passado precisava ficar enterrado.
null tencionou a mandíbula com força, sustentando o olhar de Karam enquanto algo nele parece procurar alguma coisa em seu rosto. Ela se obrigou a manter-se estoica. Obrigou-se a reforçar aquela parede que a separava dos outros, que a prendia e a isolava de todos os outros, ciente do que significaria expor vulnerabilidade naquela merda de mundo que ela vivia. E todavia, ela não conseguia impedir-se de afundar naquela maldita memória. Instintiva como o ato de respirar. null lembrou-se do maldito porão. Das paredes escuras e opressoras a sua mente, obscurecidas pelo mofo e manchas de sangue seco. Do cheiro pungente de merda, urina, sangue e carne putrefata de dias, sufocando-a lentamente. Acima de tudo, do silêncio gritante que ela simplesmente não conseguia fugir, não conseguia abafar por mais que tentasse, a tensão que pairava no ar enquanto ela se encolhia a qualquer ruído que pudesse ser ouvido do outro lado da porta. O desespero para conseguir alcançar a mão de Beatriz apenas para encontrá-la rígida, fria, imóvel...
—— Veja como um teste. Você estará provando para mim até onde a sua lealdade está, se é que algum dia você foi capaz de compreender o significado dessa palavra.
—— Agora me ofendeu.
—— E me ofende você agir como se você não soubesse que eu a conheço, null —— Karam cortou null bruscamente. Ela não se moveu, mas observar Karam deliberadamente caminhar em direção dela, a colocou, imediatamente em um estado de alerta gritante. Ela se obrigou a permanecer parada, mesmo que seu corpo inteiro gritasse para que ela corresse para o mais longe que ela conseguisse. null inspirou fundo, prendendo a respiração quando Karam para frente a frente a ela. —— Você é uma vadia egoísta que não se importa com ninguém além de si mesma, e tirando por sua óbvia covardia natural para lidar com situações complexas, você é boa em resolver o problema. —— null estreitou os olhos ao tentar absorver a expressão impassível de Karam, mas então, o velho deixou um sorriso discreto, quase imperceptível de ser compreendido surgir por seus lábios. null nunca sabia o que era pior, naquelas situações: quando Karam a ameaçava, ou quando ele sorria. —— É por isso que eu gosto de você, null. E é por isso que você irá fazer o que estou pedindo sem mais questionamentos e hesitações. Estamos claros?
null inclinou a cabeça suavemente para a esquerda, considerando o que iria responder para Karam. Uma palavra em falso poderia colocar a cabeça dela e prêmio, e, honestamente, aquilo era a última coisa que ela desejava no momento. null engoliu em seco, movendo sua mandíbula enquanto colocava suas duas mãos atrás de suas costas, em uma postura militar de sentido. A postura, a essa altura não passava de um eco instintivo, padronizado em sua memória sempre que aquela parte de si mesma, a parte que havia aprendido a servir e agir como soldado primeiro e depois questionar despertava-se.
—— Entendido?
—— Sim, senhor.
null repousou o copo dela novamente sobre a bancada, inspirando fundo uma única vez, como se estivesse tentando se preparar mentalmente para o que vinha antes de se endireitar, estalando o pescoço dela. Porra ela estava travada para cacete o dia inteiro.
Merda. Ela odiava assassinatos.
Não porque ela tivesse algum tipo de moralidade de quinta em que matar era errado ou algum tipo de pecado —— sejamos honestos, se houvesse uma maneira de gabaritar pecados, a essa altura, null já estaria no final da lista ——, ou algo que não deveria fazer, longe disso. Era o trabalhado que dava para matar. O trabalho que dava para localizar a vítima, então acertar um ponto vital sem fazer muita bagunça quando o sangue começasse a se esvair, porque, você faria bagunça se não tivesse completamente certeza de onde acertou. null inclinou sua cabeça para trás, em um martírio pessoal antes de preparar-se.
Prontos ou não, lá vou eu, heh, como se eu tivesse a porra de uma escolha, ela pensa.
null desviou dos corpos dançantes perceptivelmente alucinados, puxando o capuz de sua jaqueta para cobrir sua cabeça e rosto, permitindo-se ser guiada apenas pelo movimento de terceiros enquanto os olhos null dela percorriam por todo o espaço.
O cheiro pungente de açúcar queimado, plástico, álcool, suor e fluídos corporais forte o suficiente para fazer o nariz dela arder, ou o ar estava apenas seco mesmo. null desceu algumas escadas, virando à esquerda onde a boate e bar se transformava em uma sequência de corredores apertados com inúmeras portas. Algumas estão completamente abertas com pelo menos oito corpos se movendo em sincronias um contra os outros, em um frenesi em busca de gozar o quanto antes; outras, estão completamente fechadas. Gemidos altos, suspiros, choramingo e engasgos ecoava corpos se movendo em sincronia, outras estão completamente fechadas. Uma pequena explosão de um homem amordaçado, se projetam para fora da porta a esquerda dela, com a máscara de um coelho suja, e sem mais roupa nenhuma, com marcas nas costas de algum tipo de chicote e sua ereção na mão, antes de passar por null, empurrando-a para fora de seu caminho enquanto corria quase por sua vida. Seguindo-o, um pouco atrás, algum filha da puta com calça de couro apertada, de cós baixo, com ombros largos e a máscara de lobo presa em seu rosto ocultando completamente a visão que poderia se ter de seu rosto. Caminhava calmamente na direção do coelho em algum tipo de roleplay de caça, o que até seria apelativo, se não fosse esquisito para porra. Quer dizer, quem era ela para julgar fetiches, certo? Ah sim, a filha da puta que havia visto, então, ela meio que se sentia no direito de julgar de qualquer forma. null revirou os olhos, de tudo o que provavelmente estava acontecendo ali, “caça” não era exatamente o mais diferente ou surpreendente. Ainda assim, não são os corpos nus que chamam a atenção dela, e tampouco os rostos desconhecidos apesar de parecerem ser o tipo de rostos que frequentavam lugares caros, e não as favelas e bares horríveis no sul da cidade, tampouco algumas prostitutas ainda dançando ou se esfregando em algum cliente em uma sala separada e muito menos a música que martelava em sua cabeça de maneira pulsante e incomoda. Não. Não, longe disso, o que havia chamado a atenção de null era o cheiro.
Sândalo, pimenta, cigarros e couro.
Familiar. Familiar demais, puta que pariu... null uniu as sobrancelhas, inclinando a cabeça suavemente para o lado, e então lançou um olhar desconfiado na direção da única outra alma viva que caminhava na direção contrária a qual ela estava seguindo no corredor, voltando de onde ela estava prestes a chegar. Suas roupas eram caras e elegantes, usava peças de grife apesar de não terem marcas, calça de alfaiataria, sapatos italianos, anéis de ouro branco e prata espalhados pelos dedos longos e grossos, o relógio caro no pulso direito parecendo custar pelo menos a vida inteira de null naquela maldita cidade, usava uma blusa de manga longa, arregaçada nos antebraços fores e firmes, exibindo algumas tatuagens que cobriam centímetros e mais centímetros de pele visível, a gola alta ocultava quaisquer visões que null pudesse ter do pescoço, ou mandíbula dele, mas ela podia ver com facilidade os cabelos dele, longos, null, estranhamente familiar. Ela já havia visto aqueles cabelos antes, a maneira com que caiam por sobre as orelhas, um pequeno brinco de argola preso na orelha esquerda. Havia algo de errado ali, muito errado.
O desconhecido usava uma máscara de Onni, vermelha escura, a bocarra larga com duas presas curvadas para cima, de uma tonalidade marrom clara, enquanto a parte inferior da borraca exibia apenas dois dentes menores. Os chifres, dois, um de cada lado, partindo das têmporas, se curvava para cima com pelo menos cinco centímetros de altura, tingidos de preto. Não eram as mesmas máscaras que os outros usavam naquela merda de lugar, esta não era simples.
null estreitou os olhos tencionando a mandíbula com força, enquanto ela passava pelo mesmo, os ombros esbarrando levemente com o movimento, mas não chegando a se tocarem. Há algo nele que a deixava não apenas desconfiada, mas insegura. A maneira com que os olhos null dele, intensos, pareciam familiar sob a iluminação precária do corredor estreito, fixando-se no rosto dela como se pudessem ler sua alma com facilidade, a maneira com que se estreitaram e à cabeça se inclinou um pouco para o lado, acompanhando fixamente os mínimos movimentos de null, fixos, quase vidrados, enquanto ela passava por ele.
E o maldito cheiro... de onde ela o conhecia?
Merda...
Só havia uma resposta para aquilo, e era simples: ela estava alucinando outra vez.
Puta que pariu, sorte do caralho, merda, vai tomar no cu essa desgraça dos infernos! Ela precisava da porra do remédio logo! null balançou a cabeça como se quisesse tentar clarear seus próprios pensamentos antes de descer mais algumas escadas. Talvez fosse seu cinismo o calcanhar de Aquiles aqui, talvez fosse as próprias alucinações causadas pela a abstinência, pouco poderia saber ou compreenderia no momento, mas se ela tivesse verificado por uma segunda vez seu ombro direito, teria percebido que o homem em questão, havia parado de andar no segundo em que ela havia passado por ele, acompanhando-a com os olhos desaparecer sala a dentro. Os punhos do mesmo se fechando com força, os nós dos dedos ficando pálidos. Perigo.
null se deparou com um grande salão aberto. Duas paredes e o teto eram feitos de piscinas com fundos transparentes, refletindo as mulheres e homens nus que nadavam por entre a água tingida de vermelho. null engoliu em seco, sentindo os músculos de seu corpo se tencionarem, enquanto sua garganta ficava subitamente seca. Merda, ela odiava como aquilo parecia mais sangue do que água, maldito Cortez! null tentou imediatamente ignorar a sensação de desconforto crescente, ao notar o reflexo da água vermelha espiralando ao redor, mas não conseguiu desligar a parte de sua mente que despertava ao fundo de sua mente a memória enterrada a camadas e mais camadas de tentativas de esquecer a verdade. O restante das paredes são feitas de espelhos. Luzes neon se espalhavam pelo chão, igualmente vermelhas, estranhamente mais claras do que deveria ter sido a intenção, mas não mudava o fato que estavam ali para acentuar um pouco mais o ambiente, merda havia até gelo seco espiralando pelo espaço como se fosse necessário oferecer ambientações também para uma orgia. Algumas camas se espalham pelo espaço com mais ou menos entre 3 á 5 pessoas se movendo em sincronia. Duas strippers dançam ao ritmo marcado da música, agora mais lenta e sensual, deslizando e girando em bastões de ferro, igualmente mascaradas de pombinhas ou coelhos. Outros mascarados de cervos, patos, porcos, bois, macacos, mesmo pandas, permaneciam em gaiolas suspensas no chão, enquanto um pouco mais ao fundo, no centro de tudo...
Cortez.
E lá estava o grande filha da puta, huh?
Sentado na porra de uma cadeira como se fosse um trono pessoal, enquanto assistia a cena com uma fascinação idiota presa no rosto. As calças amontoavam-se nos calcanhares dele, enquanto a mão acariciava para cima e para baixo sua ereção, enquanto assistia as cenas ao redor. Maldito voyeur. Mas quem era null para julgar o fetiche alheio? Bem, a idiota que estava presenciando-o, certo? Então, nesse caso, ela se sentia sim no direito de julgar.
null bufou consigo mesma, um sorriso amargo surgindo por seus lábios, enquanto ela voltava sua atenção para uma garrafa de vodca abandonada sobre uma das mesas de apoio do espaço, cheirando instintivamente por um breve momento, tentando identificar se havia algum tipo de droga ali, já que manchas de pó branco se espalhavam pela mesa que ela havia encontrado a garrafa, mas não havia nada. Com uma careta, irritada consigo mesmo, ela a virou, sentindo o álcool queimar por sua garganta e aquecer seu corpo inteiro. Não era o suficiente, mas bem, uma ótima maneira de começar a funcionar.
—— Não se cansa de ser patética, gatinha? —— Beatriz sussurrou no ouvido direito de null, perigosamente real dessa vez. Ecoando como um ronronar, e, ao mesmo tempo, o ruído de unhas contra uma lousa. Arrepiava os pelos da nuca dela, e enviava uma onda de intensa de adrenalina por sua corrente sanguínea, gélida, como se lascas de gelos se desprendessem do fundo de sua alma e se movessem por seu sangue. Sua boca ficou seca e ela tinha a sensação vertiginosa de que iria vomitar. null apertou com força o gargalo da garrada de vodca, os nós de seus dedos ficando pálidos com a força que ela imprimia no gesto, mas não respondeu. Não é real. Beatriz não está de fato ali. É uma fantasia, ela sabe, mas não menos dolorosa. Uma ilusão causada por sua própria abstinência.
null inspirou fundo, tentando desligar aquela parte de sua mente, mas a risada de Beatriz, estranhamente desconexa e distante, enviou mais uma onda de arrepios pelo corpo inteiro de null, a fazendo engolir em seco, tentando desesperadamente encontrar uma maneira de a silenciar. Pelo canto do olho, null podia ver o fantasma de Beatriz sentado em uma das camas, pernas cruzadas, um sorriso afiado enquanto a cabeça dela pendia para a esquerda, em um ângulo não natural. O osso projetando-se para cima, embora, desta vez, Beatriz tivesse a mesma idade que null. Os olhos castanhos doces de Beatriz, um completo oposto aos de null. Ela prendeu a respiração, encarando fixamente o espelho.
—— Você sabe que Karam te mandou aqui apenas para que você morra, certo? Ele não está querendo seus serviços, gatinha, ele só quer te matar. Você é um problema, para todo mundo, que diabos você achou que conseguiria aqui?
null não respondeu. Ela sabia que Beatriz tinha um ponto, e fazia muito mais sentido Karam a ter enviado para sua própria morte naquele maldito inferno, do que de fato, porque ele havia encontrado um resquício de misericórdia e havia oferecido a null a chance de ao menos conseguir um pouco mais do remédio que ela precisava. Doc não tinha misericórdia. null fechou os olhos com força, ela sabia que era uma armadilha desde o início, mas bem, havia ainda uma parte de sua mente que tinha a esperança de que fosse apenas uma possibilidade. Bem, era o que era, e null pouco poderia fazer algo agora, se não executar a ordem que lhe foi dada. Morta ou viva, o trabalho null iria fazer, isso você poderia ter certeza.
—— Own, e pensar que este é o seu melhor? Que perda de tempo você é, gatinha.
null prendeu a respiração, ignorando as provocações de Beatriz, enquanto marchava na direção de Cortez. O cheiro pungente de sexo, suor e algo estranhamente artificial, incomodando o nariz dela, ao puxar para fora de seu caminho um dos homens mascarados de coelho, observando-o inexpressiva, quando ela acertou com o fundo da garrafa de vodca, a cabeça do mesmo, vendo-o desabar no chão, inconsciente. null fez uma careta, os olhos null dela ergueram-se para encontrar os olhos de Cortez, que evidenciavam uma surpresa por vê-la ali.
Claro, o cenário não era exatamente apelativo para null —— havia algo de repulsivo em ver o pau de Cortez tão de perto. null forçou um sorriso verdadeiramente falso para Cortez, sem se importar em apresentar um papel na frente de todos de cordialidade e educação, já que o outro igualmente não era lá seu maior fã, inclinando a cabeça suavemente para o lado enquanto dava de ombros desdenhosamente, com uma ponta de tédio. null soltou o restante da garrafa no chão, estrategicamente chutando-a para trás, enquanto erguia as duas mãos para cima, para convir uma inocência da qual ela tampouco possuía.
—— Impressionante. Quando eu penso que você não pode ficar pior, você sempre consegue me surpreender, Cortez.
Miguel soltou um gemido baixo, meio uma risada, meio visível desconforto apesar de permanecer cinicamente agindo como se ela não estivesse ali ao recostar-se contra a cadeira que lhe servia quase como um trono pessoal enquanto assistia a orgia, languidamente movendo sua mão para cima e para baixo de seu pau em longas e lentas carícias —— se por exibicionismo ou apenas para irritar null, era difícil compreender, e tampouco ela poderia dizer que se importava muito com isso. null o observou inclinar a cabeça para o lado, observando-a com uma expressão desdenhosa, apesar do sorriso preguiçoso preso aos lábios.
—— Puta merda, o que cê quer aqui hein? Achei que da última vez que a gente conversou, eu tivesse sido claro contigo, se não me desse o que eu queria, não precisava vir aqui.
null estreitou os olhos, erguendo o queixo levemente em um desafio silencioso enquanto os cantos dos lábios dela quase se curvavam em um meio sorriso desacreditado. Porra, ela odiava assassinatos pelo o trabalho, mas o prospecto de finalmente dar a surra que Cortez merecia, era muito, muito tentador. Ainda assim, ela precisava pelo menos descobrir quais eram as intenções de Karam ao mandá-la para morte, e porque de repente Cortez e Karam estavam em lados opostos. Algo não estava certo ali, e null não era nem idiota de não descobrir. Não porque faria alguma coisa, na verdade ela só queria saber para conseguir se mandar do meio daquela confusão o quanto antes. Quase três anos escondendo-se naquela maldita cidade, cuidadosamente mantendo-se fora dos radares e agindo pelas as sombras, ela havia se esforçado bastante para foder com tudo simplesmente porque dois idiotas estavam brigando de galo. Ou o que quer que isso significasse, null meio que não se importava.
—— Eu não vou dar para você, Miguel. Cê não é o meu tipo.
—— Vá se foder, null. Eu sou o tipo de todo mundo. Além disso, não é sobre comer você ou não, é sobre lealdade. Sobre submissão —— Cortez resmungou, o sotaque mexicano levemente mais pesado do que o normal, denotando sua impaciência, fosse por simplesmente vê-la ali, ou por ter que lidar com ela. null fez uma careta, com nojo. As merdas que ela tinha que ouvir as vezes... salubridade deveria ser um critério de se estar vivo a essa altura, huh? Cortez inclinou a cabeça para trás, estreitando os olhos, ao observá-la. —— Cê tá querendo mais do meu remédio né não? Porra, mas aí... ah, null, nem mesmo você consegue ajudar a si mesma —— Miguel soltou uma gargalhada que atingiu em cheio a alma de null como lâminas em brasas. Sua alma não, pior, seu orgulho. null abaixou lentamente as mãos, prendendo a respiração enquanto lançava um olhar ao redor das outras pessoas, tirando um breve tempo para analisa-las com cuidado. Três seguranças camuflados, presos nas jaulas, mas estão atentos.
Havia mais dois na cama à esquerda, mas assumindo que um penetrava o outro enquanto o segundo tem seu pau chupado por uma das strippers que outrora dançava, era difícil que fossem perceber as intenções de null até que ela já as tivesse executados. Altos, musculosos, mas não exatamente fortes. Eram mais aparência do que habilidade, e isso era estupido, se não imprudente. A cara de Cortez, huh? Bom. Bom, ela poderia trabalhar com isso. null dá de ombros, tentando manter sob controle suas próprias emoções. Não fode com isso, ela pensa consigo mesma, exasperada. Ela queria arrebentar Miguel na porrada? Com certeza, nem por isso ela era estípida para fazer algo sem pensar ou calcular direito todas as possibilidades, null engoliu em seco, dando instintivamente um passo para trás quando Miguel se colocou de pé.
null estreitou os olhos. Um movimento discreto, quase imperceptível do pulso direito de null e a mão dela repousou na pistola automática enterrada no cós de sua calça jeans, atrás de suas costas. Miguel por um segundo permitiu seu olhar percorrer pelo corpo inteiro de null, que se coça para acertá-lo de uma vez. Não, ainda não...
—— Olha, eu tô me considerando muito bondoso hoje, então vou te dar uma chance de conseguir o remédio que você precisa. Viu? Eu sou um cara muito legal, então vamos fazer o seguinte: Você fica de joelhos agora, e usa essa boquinha adorável para....
A cabeça de Miguel explodiu.
null arregalou os olhos, congelando no lugar enquanto levava cerca de um minuto para que ela percebesse o que diabos está acontecendo. Um disparo limpo, vindo da sua esquerda, certeiro, bem em sua testa, abrindo um buraco considerável. Sangue se chocou contra o rosto de null, respingando com alguns pedaços contra a pele dela, quente, pegajoso, e null quase teria vomitado se não tivesse um problema maior. Puta merda. Fodeu. Fodeu para um caralho!
O corpo de Miguel desabou no chão com um baque molhado contra o chão, e é somente aí que os gritos começam.
null arregalou os olhos, lançando-se na direção do chão, instintivamente rolando por sobre seu ombro esquerdo, a fim de desviar de quaisquer ataques vindo de suas costas, arrancando a pistola automática de sua calça e então a empunhando no segundo que ela se volta para trás.
O tempo pareceu desacelerar ao redor dela.
Sua respiração estava pesada, irregular, e seus ouvidos estavam zunindo. A sensação de adrenalina percorrendo sua corrente sanguínea parecia uma mistura de veneno e gelo, sufocante, acelerando seus batimentos cardíacos ao ponto que ela conseguia ouvir apenas sua pulsação. O tremor que atingiu seu corpo é duramente suprido por ela enquanto ela empunhava a arma na direção do maldito homem com máscara de Onni. null se tencionou no segundo que a arma se inclina levemente para a direita, agora, mirada na cabeça de null, sua respiração se perdendo enquanto ela tentava buscar em sua mente de onde que o conhecia.
Não, não, não, porra! De onde que ele era familiar?! De onde ela havia o visto anteriormente?! Ela começou a se questionar mas então a realização a atingiu como uma onda gelada e assustadoramente sufocante. Merda!
Não... não podia ser... mas ele...
E no entanto, lá estava.
Os olhos null queimando o rosto dela. A mistura de raiva e algo mais sombrio espiralando pelas íris familiares enquanto as pupilas se dilatavam. A postura impecavelmente ereta e arrogante, segundando a arma apenas com a mão esquerda, como se o empuxo da arma não fosse nada para ele, os músculos firmes movendo-se por baixo de sua pele, marcadas com as inúmeras tatuagens, os cabelos null... merda, merda, MERDA! Como ela poderia ter sido tão idiota de não ter percebido aquilo antes. Ela havia achado que era apenas uma alucinação, mas ali, bem em frente dela, a última pessoa que null queria encontrar naquele momento, o filho da puta descarado, maldito e infernal que ela havia jurado nunca mais ver outra vez em toda sua vida, parado a poucos passos de distancia dela, com a arma em mãos, apontando, agora, diretamente para null. A merda do homem que havia fodido com a vida dela —— de certa forma ——, depois de tantos anos.
Darren...
Ele dispara.
null soltou um grunhido alto, lançando-se para a esquerda, a fim de escapar da linha de tiro de Darren Gauthier, mas não conseguiu, porque a bala acertou de raspão o ombro direito dela. A arma de null escapou de suas mãos. null, rosnou baixo, tentando conter sua própria raiva e frustração, disparando, não na direção de Darren, mas propositalmente na direção das paredes de vidro que compunham as piscinas eróticas e tingidas de vermelha de Cortez. Gritos ecoam pelo espaço, mas null nem mesmo presta atenção nisso. Os seguranças se livram da névoa de seus próprios prazeres ou realidade paralelas, e avançam na direção dos dois, e null trincou os dentes com força, porque agora as coisas iriam ficar feias.
A intenção era matar Cortez de maneira limpa e se mandar antes que os seguranças percebessem o que havia acontecido. Isso geraria menos suspeita ao ocorrido, e mais suspeita dentro da própria instituição. Afinal, não importava quem havia matado Cortez quando era praticamente uma concepção pessoal e bem presente que competições sob o comando da parte narcótica das operações de Doc, eram rotativas e disputadas. Sempre haviam alguém disposto a assumir o lugar do predecessor. Era a cobertura perfeita. null entrava, matava Cortez, saia, provava um ponto para Karam e então desapareceria novamente —— talvez fosse para a Bahia de novo, sua terra natal, talvez fosse para São Petersburgo sem olhar para trás, não importava. Mas não. É claro que não! Porra não! Darren Gauthier precisava aparecer não é?! Filho da puta desgraçado! E como sempre precisava fodê-la. Com a atenção dos seguranças agora nos dois, aquilo iria virar uma bagunça generalizada, e quaisquer chances que null tinha de conseguir o remédio que ela precisavam, agora, estavam completamente descartadas.
Porra Darren!
null avançou no primeiro segurança dos cinco, agarrando-o pela mão e mordendo-o com força, os dentes fincando na carne e arrancando sangue, enquanto ela usava a mão esquerda para tencionar o pulso do segurança, quebrando-o, antes de atingir com violência no meio das pernas, e então apoiando o braço direito sobre o pescoço do mesmo, null usou toda a força que ela tinha para empurrar a cabeça do segurança contra o encosto da cadeira, empurrando o segurança um pouco para trás, o suficiente para conseguir atingir o pescoço do mesmo, ainda prendendo com a mão esquerda o braço do segurança, antes de passar o braço por cima da cabeça dela, fazendo-o curvar-se para frente e roubar a arma no coldre do segurança. Antes que mais alguém possa reagir, null imediatamente disparou nos outros dois seguranças. Acertou consecutivamente: perna do segundo segurança, o peito do terceiro segurança, e então a cabeça do segundo segurança.
null soltou um grito baixo, girando o primeiro segurança em seus braços para usá-lo como escudo quando mais disparos quase a atinge de relance. null arregalou os olhos, agora genuinamente irritada. Ela ia matar aquele filha da puta desgraçado! Maldito dos infernos! null empurrou o corpo do primeiro segurança no chão, no momento em que os olhos null dela se encontram com onde Darren estava, do outro lado da sala, despachando o último segurança de Cortez com um disparo preciso na cabeça e chutando-o com o desdém de sempre para fora de seu caminho.
Então, tudo ficou em completo silêncio.
Tirando pela respiração irregular dos dois, e o eco abafado da música bem marcada pelas paredes, não há mais barulho de nada. null trincou os dentes com força sentindo a raiva atingir sua corrente sanguínea como veneno enquanto voltava a empunhar sua arma roubada. Os olhos null cintilavam como os de um felino enquanto ela sentia a raiva, impaciência, frustração e acima de tudo o desejo de vingança percorrer por seu corpo, como chamas, a consumindo lentamente, mas de maneira avassaladora enquanto ela jogava para o inferno a própria cautela e mirava na cabeça de Darren. null tencionou a mandíbula com força, observando-o com olhos fixos, intensos, sem deixar escapar nem mesmo os mínimos detalhes de sua postura.
Ela viu tudo.
Como o peito dele subia e descia pela respiração pesada e irregular, evidenciando uma ponta de exaustão que não deveria estar o afetando tanto assim —— null quase sorriu com desgosto com a visão, olha só, se o grande diabo não estava ficando velho a essa altura. Como ele estalava o próprio pescoço com um grunhido baixo, antes de endireitar os ombros largos, a maneira com que levava a mão direita em direção ao próprio rosto e arrancava a máscara de sua face sem muita cerimônia, jogando-a nos pés de null, enquanto seus olhos finalmente encontravam-se com os dela. null engoliu em seco, sem perceber que sua respiração se perdeu em algum lugar de sua garganta por uma fração de segundos, mas imediatamente culpa ao fato dela estar com raiva e desesperada para acabar com a vida do desgraçado, os dedos de null se curvaram tentadoramente ao redor do gatilho enquanto ela mantinha o antebraço firme, segurando-se para não mover nem mesmo um milímetro sequer que a fizesse perder aquela merda de tiro. Não. Desta vez, Darren estava na porra da mira dela, e a vida dele seria dela.
Era dela. Ele devia a ela, porra!
—— Eu vou matar você —— A voz de null não é mais alta que um sussurro enquanto ela cuspiu as palavras como se queimassem em sua boca; como se fossem puro veneno. Não é uma ameaça. null nunca fazia ameaças, era puramente e simplesmente um aviso. Ela iria matá-lo. Sua respiração estava acelerada, e irregular, ela sentiu os músculos de seus ombros e braços tensos, sentindo o tremor traiçoeiro aumentar gradativamente enquanto ela segurava com mais e mais força a arma. Foda-se que ela estivesse tremendo, suas mãos não estariam.
Os olhos de Darren nunca estiveram mais null, quanto naquele momento. A cor profunda parecia se destacar ainda mais com a iluminação avermelhada daquela maldita sala de Cortez, fazia com que notas de tons calorosos surgirem pelos olhos dele, mas não havia nada de quente em seu olhar. Não, longe disso. Sequer poderia dizer-se que havia uma alma por trás daqueles olhos —— como se null pudesse dizer o que tinha ou não uma alma. As pupilas dele se contraíram antes de se dilatarem, enquanto algo sombrio percorre o rosto dele. null odiou o que viu, porque percorre o corpo dela como chamas, seu coração dispara e ela pode sentir a adrenalina deixando-a mais atenta e sensível a tudo ao seu redor. E a pior parte? Ela não conseguiu desviar os olhos dos dele. Como se tudo estivesse desaparecendo ao seu redor, recolhendo-se a sua insignificância e desmanchando no plano de fundo. E então, há somente Darren a sua frente, e a fúria enlouquecedora em seu peito. E Darren não disse nada, por um longo momento, Darren Gauthier apenas a encarou em completo silêncio. As sobrancelhas grossas dele se uniram em uma expressão que parecia espelhar a raiva que null sentia, mas havia algo a mais naquele olhar. Algo sombrio. Perigoso. Ameaçador. Como se ele estivesse a acusando de algo. Filho da puta. Se havia um mentiroso ali era ele, não ela. Se null sequer tivesse medo dele...
Ele havia envelhecido.
Os cabelos agora eram maiores do que antes, na altura de suas maçãs do rostos altas e elegantes, adornando a face dele, ainda null. A mandíbula bem pronunciada, quadrada e cortante, agora era coberta por uma camada de barba bem aparada, porém mais grossa do que no passado, e talvez, fosse a iluminação, ou talvez seja simplesmente porque null era boa em memorizar pequenos detalhes, mas, em meio ao tom levemente mais escuros de seus pelos faciais, ela podia ver alguns fios grisalhos já. Não muito, mas o suficiente para ter feito null quase rir com desdém da passagem do tempo, se o olhar de Darren não estivesse fixo nela daquela maldita forma.
Darren a observava de cima a baixo, como se não desejasse escapar nenhum maldito detalhe, antes de parecer trincar sua mandíbula com um pequeno estalo, um músculo saltando no canto da mandíbula bem marcada e cortante como uma navalha dele, a raiva perceptível na maneira com que ele analisava, primeiro a arma que null agora empunhava, e então, o rosto dela. null engoliu em seco, esperando que ele apontasse novamente a arma dele para ela, mirando na merda de sua cabeça outra vez. Ele havia atirado da primeira vez, certo? Então que fizesse de novo! Ela esperou que ele entregasse a ela a desculpa que ela desesperadamente tentava encontrar! Que ele lhe oferecesse a merda da justificativa que ela precisava para executá-lo ali, e agora. Ele iniciou. Ele começou toda aquela merda. Não ela. Ele. Mas é claro que ele não faria isso não é?! Era a porra de Darren afinal! Ele nunca faria nada que fosse para facilitar a vida de null. Não porque ele se importasse com ela, porque a muito tempo os dois já haviam estabelecido que não havia nada além de mutuo desprezo e ódio entre si mesmos, mas porque havia algo de sádico dentro dele que gostava de observá-la se contorcer. Que gostava de torturá-la até a beira da loucura. E puta merda, se ele não se usaria de tudo, se não se aproveitaria de tudo para conseguir aquilo.
null o odiava.
—— Tá esperando o que então, mon Coeur? Vá em frente, mate o seu marido —— Darren disse lentamente, o sotaque Cajun se sobrepondo em sua fala, fazendo com que as palavras soassem levemente mais ásperas, mais arrastadas e com o vago ritmo francês. Como um perigoso ronronar, estranhamente atraente, e, ao mesmo tempo, assustadoramente baixo e gutural para a fazer ter certeza que, seja lá quais eram as intenções dele, não eram boas. null sentiu nojo pela maneira com que o corpo dela respondeu ao tom de voz dele. A familiaridade. O arrepio traiçoeiro. Darren retirou a munição de sua arma, jogando-a no chão, e com um sorriso torto, desprovidos de quaisquer traços de humor que não fosse apenas uma raiva cuidadosamente contida, afiado, ele estendeu os braços, abertos em paralelo, enquanto o olhar dele queima o rosto de null em um desafio silencioso. O queixo levemente erguido, a expressão cínica evidenciando uma ponta de zombaria á null.
Ele não acreditava que ela vá atirar.
Estava debochando de null, a provocando silenciosamente, seja pela maneira com que a olhava, ou como exibe sua linguagem corporal a ela. null não conseguiu conter um riso baixo, nasalado, desprovido de quaisquer traços de humor em sua voz, se não puro desprezo. Os olhos de null acompanharam até mesmo o mínimo movimento dele, buscando a pegadinha, buscando a armadilha que certamente a espera, sem perder absolutamente nada. Nunca mais. Oh, se o filho da puta não havia de fato a subestimado dessa vez.
null não hesitou. Ela atira.
Nova Orleans, EUA.
—— Tango na mira. Aguardando ordens.
null desligou a linha geral de comunicação de seu rádio com um pequeno chiado, enquanto levava em direção aos lábios o chiclete que o Sargento Graham o havia oferecido mais cedo antes da operação em questão se iniciar. Coisa ruim, a pior que tinha, o gosto de melão era repulsivo, e comumente a fazia ter ânsia lembrando a algo quente quando doces deveriam ter a impressão de serem gelados para null, mas ainda assim, servia para conter sua própria ansiedade enquanto aguardava as suas ordens, então, para alguma coisa servia afinal. Não era muito, mas era o que precisava, e se tivesse que aturar um pouco do sabor de melão, pelo menos ela poderia se conformar posteriormente em poder limpá-lo de sua boca com alguma bebida alcoólica quando estivesse se retirando de volta para a base. null exalou lentamente, baixinho, voltando a inclinar a sua cabeça para a esquerda, a fim de apoiar melhor sua sniper em seu ombro direito, mantendo o braço direito completamente estável, firme, quase com uma precisão cirúrgica. null não poderia errar.
Puta merda, ela odiava o gosto de melão.
Os olhos null dela acompanham atentamente os movimentos de seu alvo. Ziyad Karam. Homem difícil de encontrar se quer saber, mas bem, fazia parte da missão, e ela deveria cumpri-la, custasse o que custasse.
null apertou os lábios em uma linha, inspirando fundo enquanto observava o negro sorrir educadamente e cumprimentar um Capitão do exército afastado com uma ponta de desinteresse. A questão toda ali não era nem mesmo a corrupção óbvia em toda aquela situação, mas sim o vazamento de informações. Capitão Abbott havia sido destituído de sua posição fazia alguns meses, após ser flagrado em uma situação no mínimo comprometedora com um dos recrutas nos chuveiros. Não que aquilo não acontecesse com frequência, o problema foi Abbott ser pego. Isso e a sucessão de missões falhas dele deram a desculpa perfeita para que o Coronel Murray desse a Abbott a chance de se retirar silenciosamente de sua posição e manter um low profile em alguma outra base distante da de Londres. O idiota havia encontrado uma excelente oportunidade nos Estados Unidos, afinal, Abbott ainda era um soldado de elite, como null, então não teria problemas em trabalhar em nome de outras pessoas se isso fosse pagá-lo bem. Mas quando Murray demitiu Abbott, Abbott saiu com os arquivos deles. E agora essa merda de arquivos estava nas mãos do pior criminoso de Nova Orleans.
Doc.
Mas a motivação de null não era apenas o dever, e tampouco recuperar as informações dos outros soldados. Não, longe disso. null tinha um único propósito e nada mais: fazer os arquivos dela sumirem de vez. A última coisa que null precisava era que os militares finalmente começassem a conectar os pontos e descobrissem quem ela era de fato, e porque sua excepcionalidade com armas e combate não provinha de pura genialidade natural, e não, treinamento intensivo de anos confinada a uma luta por sua própria sobrevivência sob a tutela de um completo maluco. Não. null morreria primeiro antes de deixar que mais alguém descobrisse quem ela era de fato.
—— Oi, Butcher. Há quatro horas de você. Fique esperta.
null revirou os olhos com a voz de Graham pelo rádio mas não respondeu nada mais do que apenas um resmungo em concordância inteligível. null moveu a mira de sua sniper na direção de onde Graham havia avisado para que ela ficasse vigiando, e observou o grupo de quatro homens de Doc caminhando rapidamente em direção a entrada do hotel temático e turístico de Nova Orleans, tencionando a mandíbula dela.
—— Os tenho na mira, senhor.
Um chiado, e então, Tenente Logan disse:
—— Verde, Butcher.
E null não precisou ouvir mais nada. Os músculos dos ombros dela se tencionaram, assim como o de seu antebraço direito, preparando-se para amortecer o repuxo da arma enquanto o indicador dela enroscava-se firmemente no gatilho. Ela é rápida e precisa, encontrando os momentos no meio das ações para executar os soldados de Doc, esperando-os se afastarem, ou então, virarem de costas para atingir com precisão a nuca ou a têmpora. Os corpos caíram no chão com baques molhados e surdos, que ela não escutou, mas não precisava se preocupar por muito tempo, quando, através da mira, null observou Graham e Harris dispararem pelas escadarias, retirando os corpos do caminho enquanto alguns civis, confusos e curiosos são orientados para se retirarem dali por um exasperado Walker.
—— Boa, Butcher.
null sentiu um pequeno sorriso se formar pelo canto dos lábios dela, mas ela não respondeu, voltando a mira de sua arma novamente para onde Doc e Capitão Abbott estavam. null inspirou novamente, ajeitando a arma em seu ombro direito novamente, enquanto unia as sobrancelhas concentrada. Ela tinha Abbott em sua mira. Posição perfeita, bastava apenas Tenente Logan autorizá-la e a ameaça seria completamente eliminada. Mas Logan só o faz três segundos tardiamente.
Quando a voz de Logan ecoou autorizando null a executar o antigo Capitão das Forças Especiais, null estava congelada no chão, porque, naquele pequeno espaço de tempo, ela sentiu o peso de algo contra suas costas, pressionando-a contra o concreto do telhado em que ela estava escondida. O peso de uma pessoa, sobre si. Uma mão agarrou os cabelos dela por sua nuca, um golpe brusco que praticamente puxou sua cabeça para trás, e um grunhido inconsciente escapou por entre os dentes cerrados de null, enquanto a respiração cálida se choca contra a parte de trás de sua orelha direita, mandíbula e lateral do pescoço. Cheirava a sândalo, pimenta e cigarros. A respiração é cálida contra sua pele, mas regular, controlada, e null conseguiu sentir o cano frio de alguma coisa repousando na lateral do pescoço dela. null conteve um praguejar baixo, ao perceber que deveria se tratar de uma arma. Porra! Ela foi pega!
—— Se você se mexer, eu vou explodir a sua cabeça, cher, então, seja uma boa garota, e fica parada. —— A voz, carregada pelo sotaque cajun é baixa e gutural, como um ronronado e, ao mesmo tempo parece vibrar pelos ossos de null de uma maneira inconveniente. Não é ruim de ouvir, mas não há nenhuma ameaça na maneira com que ele fala, apenas um aviso do que ele irá fazer. null podia sentir os lábios dele pressionados contra a orelha dela, enquanto comandava-a a avisar seu time que ela havia perdido o alvo, mesmo que Abbott ainda estivesse na mira. A arma pressionada na lateral do pescoço dela é empurrada um pouco mais, o suficiente para machucar e lembrar null do que estava em jogo.
Porra... agora ela estava fodida.
PARTE 01 | O DEMÔNIO 00
Nova Orleans, EUA.
Ele sabia que ela iria quebrar.
Estava sozinha, escorada pesadamente no balcão do bar melancolicamente observando o próprio copo, em um vestido vermelho carmim de vingança, apertado na cintura, curto nas coxas com uma fenda na lateral esquerda, ressaltando a bunda, os cabelos loiros pendendo pelo ombro esquerdo em algum tipo de penteado desalinhado propositalmente para parecer sensual, mas eram os olhos dela que revelavam a história. Olhares languidos na direção do idiota dançando com a morena na pista de dança, a maneira com que as lágrimas se acumulavam ao redor de seus olhos a cada mísero novo gesto que o idiota do namorado dela fazia com a morena, ou ao menos a percepção de que as mãos do namorado dela estavam deslizando para além da parte baixa das costas da morena, apenas uma amiga dele, a tornavam o alvo perfeito.
O nome da loira era Ava Casey. O idiota era Noah Kennedy. E null estava ali apenas por Noah, mas uma vez no inferno, porque não diabos roubar o trono do diabo e colocar fogo em todos os ciclos, não? Além disso, seria no mínimo divertido aquele jogo.
De especial, Noah não tinha nada se não o sobrenome certo e o fato de que era o primogênito de um empresário grande, logo, em alguns meses iria assumir a presidência de uma companhia que o pai havia “construído” do zero, e manter a imagem de “jovem bem sucedido sozinho” na internet porque bem, aquele discurso sempre vendia mais. É claro que aquilo tudo era apenas um estratagema do pai de Noah; uma tentativa de manter uma marionete na cadeira da presidência enquanto o pai dele tornava-se investidor, e influenciava os outros stakeholders e investidores para aumentar seu controle sobre a empresa, por baixo dos panos, é claro, e não o contrário. Ninguém iria querer um idiota que só se importava com seguidores na internet, objetos luxuosos e tinha uma vida boemia no topo de uma empresa se este não fosse ser apenas um “garoto propaganda”.
null ajeitou a lapela de seu casaco de trincheira novamente, aproximando-se de onde Ava Casey estava, os olhos null dele permitindo-se a analisa-la no conforto de sua própria insignificância onde ela não perceberia. Ele tentou ter pequenos vislumbres da personalidade dela, e de suas fissuras. Não levou muito tempo para que null os identificasse: no fim dos dias, todo mundo queria ser apreciado.
Todo mundo desejava receber atenção e ser visto por alguém. Todo mundo queria ouvir que era especial e que alguém os amava. E migalhas tornavam-se banquetes se você soubesse dizer as palavras certas para alguém desesperado e faminto, por tanto tempo. E na posição de vulnerabilidade que Ava estava, ver alguém que se dizia amar rejeitando-a publicamente enquanto o desespero para convencer-se de que aquilo não era verdade —— o desespero para acreditar que as palavras de carinho, os afetos e demonstrações haviam tido significado, que alguém que havia dito que a amava não poderia machucá-la se ela não merecesse ——, a deixava exposta e aberta para qualquer verme se aproximar.
Se não era, então, a sorte de null.
—— Sabe, uma mulher como você, chorar por um idiota como aquele parece apenas desperdício —— null resmungou dando de ombros com desinteresse, enquanto se escorava preguiçosamente no balcão, ao lado da loira. null inclinou a cabeça para o lado, observando-a em silêncio, a maneira com que a maquiagem era visivelmente mais suave do que a rival morena na pista de dança, roupas femininas que definitivamente não lhe eram interessantes, mas uma forma de agradar Noah especificamente. null alçou a margarita de Ava com um interesse fingindo, um sorriso torto surgindo por seus lábios ao retirar o guarda-chuvinha de enfeite da bebida intocada, arrancando-a sem muita cerimônia, e então colocando sobre sua orelha esquerda, os olhos estreitando-se por um momento, analisando-a com curiosidade, antes de virar o copo de uma vez, tomando toda a bebida.
null então encarou Ava novamente, apenas observando-a como ela reagiria a ele. Ele podia ver uma ponta de surpresa, por sua atitude, desconfiança, curiosidade e acima de tudo, interesse velado.
null era o exato oposto de Noah, e tinha feito questão de manter sua atenção completa na loira que deveria estar se sentindo péssima durante a noite inteira. Era quase mais fácil do que deveria. null ofereceu um sorriso charmoso a Ava, os olhos null cintilando como os de um gato enquanto ele a observava, e a via, a contra gosto, sorrir em retorno.
—— Olha, eu tive que tomar a sua bebida, que é horrível a propósito, de que outra forma eu poderia encontrar a desculpa perfeita para te pagar uma?
Ava soltou um riso sincero, e null até se sentiria culpado, se realmente se importasse com Ava, mas ela era, infelizmente, um meio para os fins que desejava, então, é fácil para null continuar com aquele jogo sem se importar muito como iria acabar do outro lado.
—— E isso já funcionou com alguém antes? —— Ava questionou, lançando um olhar curioso na direção de null que deu de ombros eloquentemente, com um sorriso torto.
—— Funcionou com você agora?
Ava apertou os lábios, tentando ocultar seu sorriso, mas null podia ver os cantos dos lábios dela se curvando enquanto Ava negava com a cabeça lentamente, e ele o retribuiu, quase sincero dessa vez, rindo baixo.
—— Não, então não funcionou com ninguém, ainda —— null respondeu com bom humor, o sotaque cajun dele soando um pouco mais pronunciado em sua voz, e ele praguejou mentalmente por isso, porque não deveria deixar pistas fáceis de serem identificadas, então ele tomou o cuidado para manter o sotaque falso de Nova York presente em sua voz, deixando sua voz mais arrastada e demorando um pouco para formar suas palavras tentando apagar a parte com os erres e Os ficavam mais acentuados. —— Mesmo assim, eu tomei sua bebida, amor, me deixa te comprar outra, pelo menos só para repor o que eu bebi —— null ofereceu propositalmente chamando-a de amor, mas não para encantar a loira, e sim para conseguir a atenção de Noah. Os olhos null de null deixaram o rosto da loira por um breve momento, e encontraram-se momentaneamente com o olhar da morena nos braços de Noah, observando-a erguer uma sobrancelha em uma pergunta silenciosa para null enquanto ela movia os quadris em ritmo com os de Noah, mas null a ignora completamente, o olhar dele deslizando silenciosamente para repousar no idiota atrás da morena. Bom, a atenção de Noah agora estava presa nele, exatamente o que null queria.
Propositalmente, null se aproximou um pouco mais de Ava, gentilmente colocando uma mecha de cabelo dela atrás da orelha dela, observando meio aparte, não como ela corou sob seu toque, como as pupilas dela se dilataram e como a respiração dela se perdeu em sua garganta, não, ele observou os diamantes presos na estrutura delicada em formato de cortina do brinco. No mínimo dez mil aquela merda. null sentiu raiva, mas se conteve com uma carícia mais suave do que ele faria normalmente, ao deixar as pontas dos dedos dele deslizar pela lateral da mandíbula de Ava. Um tremor percorre o corpo da loira —— bom, muito bom.
Ele se inclinou na direção dela, os lábios roçando, cálidos, contra a orelha dela, apenas perguntando a loira qual era a bebida que ela queria, tentando convencê-la a tomar algo mais forte —— seria mais fácil se ela estivesse completamente bêbada. Ela cheirava a algo entre morango e alguma coisa mais doce, como algodão doce, puro açúcar, um perfume gostoso até, mas muito doce para null, forte demais para não se prender ao casaco de null, mas isso fazia parte do jogo. Os olhos null de null, todavia, não haviam se desviado em nenhum momento de Noah, e puta que pariu, se o idiota não estava começando a ficar enfurecido. O sorriso torto de null aumentou um pouco apenas, agora, direcionado somente para Noah.
Provocando-o. Desafiando-o.
Não importava que null estivesse apenas oferecendo sugestões de bebidas para Ava, e mantendo a conversa, apesar do claro flerte, nítido a qualquer um que os ouvisse, até mesmo inocente —— como se null fosse. O que realmente importava era a aparência que null dava a cena toda. O que ele manipulava para parecer que ele queria que parecesse: que null iria foder aquela loira até que ela implorasse por uma pausa recuperar sua respiração, e Ava iria perceber o quão bem ela poderia estar sendo fodida que, desta vez, não iria hesitar em abandonar um cara medíocre como Noah, por algo melhor —— algo que era exatamente o que Noah queria fingir que era. Puta que pariu, se aquilo não era uma brincadeira de criança. Se eles, como homens, não tinham uma coisa chamada ego para doerem-se genuinamente com algo. Não importava se eles amavam uma mulher ou não, isso era apenas uma característica adicional ao longo do caminho, não, não o que realmente importava, era simples: o quão afagado, ou dolorido o ego, a sensação de território e possessão, seria atingida. E mesmo que Noah estivesse fazendo de tudo para humilhar Ava publicamente, e testar quais eram os limites do que ela aceitava ou não —— o quanto ela incondicionalmente “amava” Noah ——, Noah não iria deixar que nenhum outro homem se aproximasse de Ava com alguma intenção, porque Ava era o brinquedinho de Noah e mais ninguém. Era quase fácil demais.
Veja bem, null não fazia s regras do jogo, ele apenas jogava-os à sua maneira. Era o que era. Simples assim. Um meio para que ele conseguisse o que ele queria.
Ele não estava ali para ser o herói.
Ainda com o sorriso debochado preso nos lábios direcionado somente para Noah, null permitiu-se prender sua atenção e olhar, agora, para a loira ao seu lado. Não ocultou maneira com que até mesmo a objetifica, desavergonhadamente admirando o decote da loira, ou a maneira com que ela jogou a cabeça para trás em uma risada genuína a alguma piada que ele havia feito, ou como aos poucos —— na verdade mais rápido do que deveria —— Ava começou a genuinamente aceitar os flertes e os retribuir. Ela estava no segundo copo de whisky quando Noah finalmente perdeu a paciência e se aproximou de onde Ava e null estavam. Se null não precisasse manter a seriedade para convir veracidade na situação, ele teria rido alto, mas os olhos null de null estavam cintilando como os de um gato, intensos e sem ocultar o divertimento sombrio que pairava por seu olhar.
Um riso silencioso desprovido de quaisquer traços de humor escapa pela garganta de null, baixo e controlado, quando Noah, em um grande momento de “machão”, agarra a lapela de seu casaco de trincheira e o puxa bruscamente para longe de Ava. Como se isso fosse o impedir de algo, é tão estupido que null tem vontade de rir —— como se um empurrão fosse mudar alguma coisa, genial. Então Noah imediatamente avançou na direção de null, que sequer fez questão de desviar do soco torto e desbalanceado de Noah.
A dor explodiu pelo lado esquerdo do rosto de null, o gosto pungente de seu próprio sangue atingiu a ponta de sua língua, e por um breve segundo, seu ouvido esquerdo ficou amortecido, com um zumbido insuportável ecoando ali null ergueu as mãos para cima, sem conter o riso baixo, pela maneira com que Noah agarrou a lapela de seu casaco de trincheira, e se aproxima o suficiente de null para que ele pudesse sentir o hálito azedo de whisky e alguma coisa nojenta que deveria ter sido o “jantar” que ele havia levado Ava e a morena para “aproveitar”.
—— Woah! Woah! Segura a mão aí, mon ami —— null disse com um tom de voz divertido, e apesar de tudo, relaxado, os olhos null, incandescentes enquanto Noah piscou, parecendo surpreso pela reação de null, mas é claro que ele não iria abaixar a guarda, muito menos deixar de lado o ato de machão, quando haviam agora muitos olhares voltados para ambos. Mas null o tinham exatamente a onde ele queria. —— Qual foi? Eu não estava fazendo nada! Sua namorada e você pareciam entretidos na pista de dança, e achei um absurdo deixar uma garota doce como ela —— null indicou com o queixo na direção de Ava, antes de voltar sua atenção para Noah de novo, sorrindo como o próprio demônio. Os dentes tingidos de vermelho pelo sangue, escorrendo um pouco pelo canto da boca dele e manchando a lateral de sua mandíbula bem marcada e afiada como uma lâmina. —— sozinha em um bar como esse. Nada errado, d’accord oui?
null sabia que havia atingido exatamente onde doía. O ego de Noah. Porque a própria estupidez do desgraçado ocultava uma verdade simples sobre toda a situação: enquanto ele estava na pista de dança se exibindo com a morena, Ava estava sozinha, e sem a companhia de ninguém, logo, era jogo livre. Bancar o namorado ciumento, depois de ter mostrado a todos na pista de dança quem ele preferia, não era apenas uma falha tentativa de provar o quão “homem” ele era, mas só uma mancha para a postura e caráter dele. Mesmo que alguns homens fosse o aplaudir por seu ato, não mudava o fato de que, agora, era claro a escória que Noah realmente era. null riu baixo, observando Noah tomar uma decisão diferente e então inspirando fundo, ele estendeu a mão na direção de null em uma apresentação formal. null segurou a mão de Noah em um cumprimento firme, sustentando o olhar de Noah com uma ponta de desprezo.
—— Acho que você se confundiu, parceiro. Ela —— Noah indicou com a cabeça na direção de Ava, e null estreitou os olhos, analisando-a com cuidado. Observando os bolsos, tanto internos de seu terno, quanto os externos, buscando com o olhar rapidamente onde o cartão de entrada de seu quarto estava. —— É minha namorada. E eu posso ter me distraído um pouco, mas agora estou aqui, então se for esperto vai sair daqui imediatamente.
null inclinou a cabeça para trás com uma sobrancelha erguida, observando Noah como a cobra que ele era. Não era apenas observar a previsibilidade dos atos que costumava entreter null, ah, não, longe disso, era justamente as emoções, as expressões e alterações no comportamento que deixava null entretido. Era como observar um experimento, e a intenção de falha ou sucesso não existia de fato, apenas a maneira com que a informação seria absorvida e poderia ser extraída.
—— Saio apenas se ela me disser para sair, parceiro.
Noah se virou furioso na direção de Ava, e por uma fração de segundos os olhos de null se encontraram com a morena que Noah estava dançando na pista de dança. Uma comunicação silenciosa ali, mas null ignorou completamente, aproveitando a distração de Noah, que está discutindo com Ava, evidentemente ainda tentando ocultar o caso que estava claramente tendo com a morena ao manipular Ava, para agir. null foi rápido, alçando a carteira de Noah com um movimento preciso, e guardando-o dentro de seu bolso, antes de erguer as duas mãos para cima, sorrindo com desprezo velado para Noah e acenando desdenhosamente quando Noah agarrou a cintura da morena e a arrasta para fora da boate.
null acenou com a cabeça quando os seguranças se aproximaram para entender a confusão que estava acontecendo ali, e calmamente se aproximou de Ava, a fim de oferecer um ombro amigo e embebedá-la até que ela não estivesse conseguido ficar mais consciente, o que, para ser sincero, não demora muito.
Ava não era pesada, pelo contrário, era estranhamente leve para uma adulta “saudável”, então carregá-la até o hotel em que ela e Noah estavam hospedados não é exatamente um problema, apenas um incômodo passageiro. null usou todo o seu charme com a atendente, se cobrindo no papel de cavaleiro branco a disposição de uma jovem em apuros, pedindo para que a atendente ligasse para o pai de Ava, ou algum responsável para avisar que ela estava no quarto de hotel, e ofereceu para que um membro do staff o acompanhasse até o quarto dela, a fim de não gerar suspeitas ou maior perigo a loira. null até mesmo se propôs a entreter a atendente que o acompanhava até o quarto de Ava, ouvindo-a contar sobre sua vida, os dois filhos pequenos, como null era forte, e tinha um físico atraente, e null usou seu charme para dar a entender que seja lá qual fosse o flerte que a atendente estava tentando usar com ele, estava funcionando. Porque mulheres não conseguiam resistir homens que faziam o mínimo não é? E se fosse atraente e tivesse músculos, estavam dispostas a lutarem por um baita partidão.
null colocou Ava gentilmente sobre sua calma, puxando com cuidado os cabelos do rosto da loira, e então a cobriu com o cobertor, antes de verificar se todas as portas e janelas estavam devidamente trancadas, e colocar uma armadilha próxima da porta para que, se fosse bruscamente aberta, o barulho das coisas caindo, acordassem Ava.
null forçou um sorriso charmoso para a atendente dizendo a ela que precisava ir no banheiro primeiro, apenas para conseguir se livrar da atendente. Girando em seus calcanhares null fez o mesmo caminho, mas na direção do quarto em que Noah deveria estar com a morena, puxando o capuz de sua jaqueta por baixo de seu casaco de trincheira pesado e mantendo a cabeça abaixada. Não só tentando aproveitar-se dos pontos cegos das câmeras de segurança, mas com o único propósito de que fosse deixar um rastro —— e seja realista, ele iria acabar deixando um rastro para trás ——, então o faria com o único propósito de aproveitar-se para estender a provocação para quem ele realmente queria atingir. O homem que iria, eventualmente encontrar aquelas câmeras e que iria desejar nunca ter ficado em seu caminho.
null sorriu para a câmera de segurança, um sorriso debochado e sugestivo, antes de retirar a carteira de Noah, e desbloquear a tranca do quarto em que ele deveria estar com a morena com o cartão do hotel, estreitando os olhos ao observar as luzes apagadas.
A princípio, não havia nada. Apenas a visão de um quarto presidencial, realmente luxuoso, deixado no escuro. Sobre uma das mesas redondas da entrada, encontrava-se um balde de metal com uma garrafa de champanhe e duas taças: uma pela metade, e uma completamente vazia. As roupas estavam espalhadas pelo chão de carpete bege, a maioria as roupas do idiota, incluindo a gravata nojenta listrada, azul e vermelha em uma das cômodas. null parou por um breve momento, apenas para alçar a taça vazia de champanhe, levando-o em direção ao nariz apenas para sentir o cheiro ali, reconhecendo o sonífero, antes de jogar a taça de cristal no chão, atravessando o portal da entrada do quarto, e observando, inexpressivo, a morena, sentada sobre um Noah completamente desacordado, terminando de algemar os pulsos de Noah contra a cabeceira da cama.
—— Porra null! —— A voz da morena ecoou com um pequeno guincho baixo enquanto null fechava a porta do quarto atrás de si. —— Você não podia ir mais devagar, podia? —— Os olhos null na direção da mulher, com uma sobrancelha erguida, silenciosamente desafiando a mulher reclamar. Beatriz null, havia descartado o vestido que estava usando na boate, e agora só exibia a lingerie rosa escura, de renda e com alguns pontos de transparência estratégicos adornando seu corpo. A tatuagem de dragão vermelho envolvendo a lateral da cintura de null, assim como enroscava-se no pulso esquerdo de null. Para sua sorte, ou talvez fosse somente o senso comum de Beatriz, a morena se calou abruptamente, lançando um olhar hesitante na direção de null. —— Desculpa, eu não quis...
—— Por quanto tempo ele irá ficar apagado? —— null ignorou o que quer que Beatriz null queira dizer a ele, aproximando-se de Noah, e agarrando o rosto dele, movendo de um lado para o outro enquanto analisava os sinais vitais do idiota, antes de larga-lo com desgosto.
—— Doze horas. Como falou para fazer —— Beatriz disse apressadamente e a expressão de falso charme de null finalmente pode desabar para a neutra, desprovida de quaisquer sinais de interesse que não fosse pelo maldito notebook de Noah, escondido em algum canto daquele quarto.
—— Então se mexe, Beatriz! Eu não pago você para ficar parada! —— Retorquiu null, irritadiço, porque ele conhecia Beatriz, e sabia perfeitamente que o fato de ela não ter se importado em vestir o vestido novamente não era porque ela não tinha tido tempo, mas sim porque, depois de tudo, ela ainda estava tentando conquistá-lo.
Beatriz se encolheu, visivelmente ofendida e incomodada pela maneira fria com que null a trata, mas null a ignorou completamente buscando pelo quarto, o maldito notebook, passando pela morena sem oferecer-lhe outro olhar novamente.
null não era idiota, e muito menos cego, ele sabia que Beatriz estava magoada. Ele sabia que Beatriz deveria estar repassando em sua mente o que havia de diferente entre ela e Ava —— porque uma completa desconhecida havia recebido mais gentileza da parte de null do que qualquer outra pessoa que ele havia convivido a anos a fio. Ele sabia que ela deveria estar sentindo ciúmes e ressentindo-se a cena que null havia causado na boate. Mas bem, não era culpa de null tudo isso, era? Não, não, longe disso, a culpa era inteiramente de Beatriz. As fantasias que ela havia criado para si mesma, os desejos e projeções sobre ações que null não havia feito questão alguma de alimentar, e mesmo assim, ela havia encontrado uma maneira de alimentar isso. A busca nos gestões simples para maiores significados que, no fim, não passava apenas de uma gentileza social que null não desejava fingir ter se não fosse necessário obrigar-se a ter. As justificativas desnecessárias para atos que só traduziam simplesmente para: falta de interesse, e nada mais. Bem, isso tudo havia sido feito, criado e projetado por Beatriz e Beatriz sozinha. null não tinha nenhum interesse na morena que não fosse apenas no que ela podia lhe oferecer —— e uma foda casual não era seu propósito ali.
Beatriz era facilmente submissa. Não questionava. Fazia o que precisava ser feito sem dizer nada. Não era a arma perfeita para null, mas suficiente para que null conseguisse o que desejava. E melhor, Beatriz não escondia de ninguém que era apaixonada por null, logo faria o que null pedisse sem hesitar apenas pela possibilidade de ter seus sentimentos correspondidos. Era matemática básica, no fim das contas. As pessoas enxergavam o que desejavam, sempre, null apenas aproveitava-se para apresentar a pintura que fosse lhe favorecer. Nada de errado em apenas apoiar a mentira que se contava para si mesmos. Se Beatriz conhecia null, então, era estupida por alimentar tais sentimentos quando null já havia deixado muito claro quais eram as intenções dele, e a única coisa que importava a ele.
null encontrou o notebook de Noah enfiando no meio de um amontoado de pastas com os nomes de empresas: Percepta, Sterling Financial Advisors, Vanguard HR, Oasis Health & Wellness, que deveria pertencer ao pai de Noah. Empresa principal e as filiais que eles usavam para ocultar o dinheiro quando necessário, pequeno negócios que tinham a proposta de serem “familiares” e em ascensão que cediam apenas o nome e nada mais, nas notas fiscais. null cerrou a mandíbula dela com força, um músculo pequeno movendo-se sob a pele enquanto os olhos null passavam rapidamente pelas informações ali. Algumas informações chamam imediatamente sua atenção: pagamentos para uma instituição de caridade que era apenas a porra de uma fachada e diversas transições para Toronto sob o nome desconhecido de Amélia, no Canadá. Uma ponta de satisfação obscura se mistura com a fúria, enquanto ele lança um olhar breve na direção de onde Noah está, acessando o notebook do idiota e em busca das contas bancárias.
Levou quase meia hora para que null conseguisse limpar todas as contas. Você sempre poderia contar com a arrogância de um idiota para deixar suas senhas há fácil acesso e gravadas no mesmo aparelhos de uso diário. Cinco minutos, é o que levou para que o celular de Noah começasse a ser bombardeado pelo pai de Noah. null estava prestes a fechar o notebook quando ele finalmente encontrou o que estava procurando naquela maldita confusão de contas, senhas e informações relacionadas a empresa. A instituição de caridade que havia sido nomeada a Amélia null. null apagou todo o rastro que ele havia deixado para trás no notebook, retirando o pendrive de dentro de seu bolso e conectando-o ao notebook com o único propósito de instalar o vírus ali para que fosse identificado como uma falha pessoal de Noah e não uma invasão, antes de guardar o notebook de volta no lugar e levantar-se de maneira abrupta.
—— Cinco minutos, anda, a gente tem que sair daqui.
Beatriz soltou um pequeno guincho baixo, pela maneira com que null agarrou o braço dela, com mais força do que o necessário, e praticamente a puxava junto consigo, determinado a sair daquele maldito hotel o quanto antes conseguisse. null conscientemente desligou a parte de sua mente que deveria estar ouvindo Beatriz, seu coração estava martelando contra seu peito, e há algo de satisfatório e, terrivelmente viciante percorrendo sua corrente sanguínea enquanto sua mente, rapidamente começava a acessar as possíveis respostas a este ato. É claro que não ficaria barato. É claro que viriam atrás dele.
E é claro que null estava sendo arrogante e brincando com fogo. Mas puta que pariu, ele queria que queimasse. Que tudo queimasse completamente. Os olhos null dele repousavam momentaneamente nas chaves do carro de Noah, e desta vez, ele não hesitou em roubá-las para si, mandando uma mensagem imediatamente para Johnny, avisando sobre a nova carga que havia conseguido, enquanto Beatriz cambaleava tentando acompanhar os passos de null, entrando no carro o mais rápido que ela conseguisse.
Beatriz era uma problemática para null.
Normalmente ele gostava de agir sozinho, mas Beatriz tinha exatamente o que null precisava para tirar o olhar de si. Era de um conhecimento geral que, quando determinado a roubar a carteira de um idiota, você finge que irá pegar o relógio; a atenção do idiota focada apenas em proteger o relógio, deixa a carteira vulnerável. Mas puta que pariu, se ele não desejava uma maneira de se livrar da morena. Não porque tivesse algo contra ela, mas porque era simplesmente irritante a maneira com que ela o olhava. Como se esperasse algo.
Quando finalmente a policia é notificada, o Bentley Continental já estava estacionado dentro da garagem de Johnny Price, enquanto Johnny gritava visivelmente irritado pelo descuido de null ao trazer um carro caro como aquele direto para a oficina de Johnny. Mas null descartou quaisquer fosse o choro de Johnny, observando a tela de seu celular finalmente se acender. null recebeu apenas uma ligação. Não mais do que dois toques, é claro, rápida, e indiferente. Apenas uma notificação que null sabia perfeitamente o significado. Estou de olho em você. Satisfação percorre a corrente sanguínea de null enquanto algo mais sombrio, que ele havia trancado ao fundo de sua mente a muito, muito tempo atrás espiralando por sua cabeça, nublando seus pensamentos. O monstro cujas garras arranhava os limites de sua racionalidade com uma ponta sombria de prazer. Bom, muito bom. O celular apaga então, novamente, levando consigo a ligação perdida e a notificação com o nome: David null.
O pai dele.
Manchester, Inglaterra.
null atirou, mas o tiro nunca chega.
Raiva queimou pelas veias de null como veneno. Quente, sufocante e eletrizante. Ele podia sentir a tensão envolver os músculos de seu corpo como uma corrente elétrica, os pelos de sua nuca eriçando-se, enquanto sua garganta estava estranhamente mais seca do que deveria. A respiração controlada, estava mais rápida, mesmo que ele estivesse tentando controla-la. Os olhos null dele se arregalaram brevemente em uma mistura de surpresa, choque e pura frustração, mas no fundo, bem no fundo, a algo mais... algo sombrio, intenso e que ele tampouco fazia questão de controlar. Primitivo, e instintivo: se ele queria devorá-la ou destruí-la eram duas coisas completamente opostas das quais ele nunca havia imaginado que iria experienciar juntas, e todavia, lá estava ele. Preso, novamente, naquela maldita dança com ela. E porra se ele não queria sair dali. Sabia que deveria. Sabia que o mais esperto seria quebrar o pescoço dela, e sair antes que fosse localizado por dor ou alguns dos homens de Doc. Le Diable Blanc não tinha tempo para aquele tipo de merda! Mas como em todas as vezes, antes mesmo que ele sequer pudesse usar de sua racionalidade para sair daquele maldito inferno. null percebeu, tardiamente que já havia jogado tudo para o alto sem se importar. Seu coração martelando de maneira irritante contra sua caixa torácica, um indicativo da antecipação eletrizante que os envolvia, e a estática insuportável que pairava no ar, fazendo tudo ao seu redor desaparecer e só restar os dois naquele maldita sala, era o suficiente para convencê-lo de que não importava mais nada.
Os outros poderiam esperá-los. null, não.
Os olhos null de null deslizaram do rosto retorcido por pura fúria de null, para focalizar na maneira com que os músculos da garganta dela se contraíam e se pronunciavam, conforme ela respirava fundo e prendia a sua respiração, revelando que ela não estava assim tão no controle de si mesma quanto estava tentando mostrar. Era por isso que ele gostava dela —— e odiava, ao mesmo tempo ——, a maldita falta de controle que ela parecia tentar recusar-se a assumir não importava o que fosse feito. Os olhos null dele registraram como a clavícula dela fica bem marcada abaixo da jaqueta de couro e a regata preta de aparência desgastada e velha, parecendo estar determinada a não soltar nenhum ruído de dor, quando a arma que ela havia pegado de um dos seguranças mortos, emperrou ao apertar o gatilho; o disparo que deveria tê-lo, no mínimo, matado.
O tiro que nunca o atingiu porque a arma emperrou. Uma péssima qualidade de material de trabalho ali, mas bem, estavam falando de Miguel Cortez, naquele momento, até parece que Miguel Cortez teria o cuidado de gastar o dinheiro dele de maneira correta para proteger seu negócio, e não em algum tipo de sala especial para orgias, apenas pelo fato de que ele poderia fazer algo com estética questionável? Bem, a burrice havia o levado a morte, é claro, como faria com todos, mas demorar-se em Miguel e suas questionáveis ações era a última coisa que null desejava fazer no momento.
Agora, tudo o que importava para ele, era apenas null null.
Burrice levaria a todos a morte, e isso incluía, sem sombra de dúvidas, null também. null faria questão de se certificar de que, dessa vez, ela realmente estivesse morta e não fosse apenas uma mentira contada a ele por um filho da puta maldito que o queria fora de seu caminho. Ah, não, e quando ele se encontrasse com Doc, os dois iriam acertar aquele pequeno impasse. Mas isso, bem, isso seria para um outro momento.
null era dele, e só dele.
E null não se importava com o que precisava fazer para lembrá-la disso, e puta que pariu, se ele não iria lembrá-la de uma vez.
—— Que engraçado, sabe? Eu destruí a porra do seu epitáfio e tive que pagar, mas nem mesmo você está na vala, então, eu paguei o que? Depredação de um túmulo vazio? Eu deveria saber que era mais uma das suas mentiras —— null quebrou o silêncio com uma ponta de cautela, mas os dentes trincados não ocultam a raiva, o sentimento de traição pela desgraçada filha da puta que ele havia acreditado erroneamente que havia sido morta em algum momento há três anos e meio atrás. A raiva pela óbvia mentira que ele não havia conseguido enxergar até que fosse tarde demais. A traição, de certa forma, que null havia cometido contra ele. Ele cerrou com mais força sua mandíbula, sentindo uma pequena pontada de dor em sua têmpora, mas não se importa. Uma parte mais sombria de si está muito mais interessada no que a dor pode lhe oferecer no momento do que misericórdia. Nah, se ela queria a porra do caos, então null colocaria aos pés dela o inferno inteiro. Ela era dele. Quisesse ela ou não, esse fato nunca iria mudar.
E por um longo momento, os dois apenas se encararam.
Havia inúmeras coisas que ele gostaria de gritar para null. Havia inúmeras acusações, e puta merda se ele pudesse, ele já teria avançando no pescoço dela e finalizado o trabalho de uma vez. Foda-se que aquilo custasse o que quer que tivesse sobrado da alma que ele duvidava ter. Foda-se que ela tivesse se tornado a merda de um dos fantasmas constantes que o assombravam nos últimos três anos e meio. Porra, ele havia colocado o rabo dele na reta para proteger ela. Porra ele havia feito muito pior para conseguir que ela escapasse da merda de vida que ela levava. E daí que havia custado Beatriz?! null havia feito por ela! Por null! E era assim que ela lhe pagava? Com a porra de uma faca nas costas, a falsa certeza de que havia perdido a desgraçada apenas para, alguns anos depois encontrá-la viva?! Oh-ho-ho ela iria ter que implorar... null estava tremendo, os olhos null dela estão cintilando, viscerais, fixos no rosto de null sem desviar por um segundo de seu rosto. E mesmo que ele lutasse contra a maldita parte traidora de seu corpo e sua mente, ele falhou miseravelmente. Porque ele não conseguia evitar admirá-la, ainda que a contragosto, e contra toda a racionalidade de sua mente. Como os cabelos dela pendiam por seu rosto, desalinhados, visivelmente mal cortados, as mechas null grudado onde o suor envolvia sua pele, fazendo com que uma mecha rebelde de seu cabelo, se movesse para frente e para trás, conforme ela expirava por entre os lábios. Como a pele dela estava mais pálida do que deveria ser, como a merda das olheiras se formavam um pouco abaixo dos olhos dela, marcando visivelmente que ela deveria estar tendo uma grande merda de semana, talvez meses. Como os lábios estavam ressecados, com um pequeno corte no canto. Ela deveria estar parecendo horrível, mas porra se null não se sentia ainda atraído por aquela desgraçada.
Esse era o problema de null com ele. null o tinha em suas mãos. Um controle sobre null que ia muito além do que null poderia sequer tentar compreender, ou queria entender. Um domínio que null nunca, nunca mais a deixaria sequer ter conseciência que possuía sobre ele outra vez. Não, essa história já havia sido enterrada a sete pés e iria permanecer assim. Ela queria manter-se morta, não é? Que o fosse. Agora tudo o que importava a null era retribuição. E pro inferno se ela achava que tinha direito de decidir alguma coisa ali. null iria pagar, disposta ou não.
—— O que? Não pensou em ligar ou mandar uma mensagem? Porra, nem mesmo uma carta? Ouch, cher... —— null provocou com um tom de voz afiado, as mãos dele se abriam e se fechavam, tentando aliviar a frustração que o envolvia como um manto sufocante, mas sem conseguir de fato. Ele deu alguns passos na direção de null, inclinando a cabeça para o lado, observando-a tencionar-se ainda mais, andando para o lado contrário que ele seguia, como se fosse um animal selvagem, ferido, à espera do mínimo deslize para atacar e fugir. Ele sabia que ela iria agir primeiro, ele sabia que ela irá atacá-lo, então, ele não a impediu quando a viu avançar em sua direção, mesmo que a água que escapava do buraco do disparo de um dos seguranças, agora mortos, estivesse começando a formar uma poça considerável no chão, e deixando-o suficientemente escorregadio ao ponto de ser um problema em potencial.
null acertou um chute brusco na altura do abdômen de null, que imediatamente sentiu sua respiração ser cortada abruptamente, enquanto ele cambaleava um pouco para trás. A dor tomou um banco reserva ao fundo de sua mente, a adrenalina, pulsando por sua corrente sanguínea como veneno, amortecendo, e inibindo quaisquer pensamentos que ele pudesse ter que não seja somente o alerta e o instinto de sobrevivência. null parecia estar na beira do precipício, caindo aos pedaços, e ainda assim era dona de uma força impressionante. O suficiente para que null pudesse ter certeza que o golpe que ela havia deferido nele iria acabar como uma mancha roxa apesar das tatuagens que ele tinha por seu corpo inteiro. Um grunhido escapou do fundo da garganta de null, enquanto ele recebia um golpe preciso de null novamente em seu abdômen, mas usou o momento para agarrar a frente da jaqueta de null, usando o joelho esquerdo, dobrado para atingir a lateral da cintura de null, mas null é mais rápida que ele —— sempre havia sido.
O joelho de null cedeu a seu peso, mas ela usou o impulso para passar por baixo do braço de null que agarrou a frente da jaqueta dela, torcendo o braço dele com o movimento, o suficiente para conseguir imobilizá-lo com um crack sonoro, e então, usando a posição para violentamente empurrá-lo contra a parede de vidro da piscina, ouvindo-a quebrando mais e mais, mas sem se romper permanentemente ainda. Algo quente escorreu pela lateral da têmpora de null. Era encorpado, pegajoso, cheirando a ferrugem por baixo de todos os outros odores daquela maldita sala, mas ele não tem muito tempo para registrar a dor ou a sensação cálida escorrendo pela lateral de seu rosto, porque null o empurrou para trás tentando usar o joelho para chutar outra vez o abdômen de null. Desta vez, todavia, ele encontrou uma abertura na postura dela, e antes que ela o esfaqueasse, mantendo ainda o aperto firme como ferro no ombro de null, com a mão esquerda, null agarrou o pescoço de null, empurrando a cabeça dela para trás, as unhas fincando-se na pele macia enquanto as unhas de null arranhavam o rosto dele, e fincavam-se profundamente no pulso de null com força o suficiente para conseguir arrancar sangue.
null empurrou com força null contra a parede mais próxima, ouvindo-a soltar um grito estrangulado, baixo, o choque do corpo dela contra o espelho reverberando não apenas pelo corpo dela, mas pelo braço dele também. null estava perfeitamente ciente da maneira com que o vidro se parte, como cortar a pele dela, e como o sangue dela escorreu pela lateral direita do rosto dela, acumulando-se na luva de couro que ele sempre usava. Quente, pegajoso e espesso. null usou a desorientação de null para empurrá-la no chão, prendendo-a ali.
—— Se rende —— null rosnou entre dentes. Os olhos null dele fixos no rosto dela, revelavam uma impaciência e frustração gritante, mas por baixo de toda essa camada, havia uma nota de desespero. Mesmo que ele não quisesse que ela visse aquilo, ela o viu, e isso parecia apenas alimentar ainda mais a fúria de null. A parte racional de sua mente quer acabar com tudo aquilo de uma vez. Ele não tem tempo para aquela merda! Quanto mais tempo eles possuem até que os malditos seguranças de Cortez entrem ali? E, ao mesmo tempo, lá estava ele, rosnando para que null usasse a porra do senso comum dela e desistisse de tentar matá-lo, porque null não iria parar. Porque ele não queria matá-la; ele o faria se ela continuasse. Ele queria sim quebrá-la. A queria de joelhos e implorando. Que ela pelo menos pagasse pelo o que havia feito com ele. Mas ele não a queria morta. Nunca morta. Não de novo... —— Se rende porra! —— null pressionou, com mais intensidade, mas suas palavras saíram quase inteligíveis, graças a maneira com que null agarrou o rosto de null, em um ato de sobrevivência ou desespero, ou ambos, empurrando a cabeça dele para trás com força, tentando quebrar o pescoço dele pelo o impulso do movimento.
Um grunhido de pura frustração escapou do fundo da garganta de null, profundo e quase primal, reverberando em notas graves por sua garganta. As pupilas de seus olhos se dilataram um pouco mais, ao mesmo tempo em que a explosão de dor percorre seu rosto quando null acertou um soco bem dado, no nariz dele. A dor explodiu por sua mente, amortecendo-o, os olhos lacrimejando, enquanto ele sentiu o sangue escorrer pelos lábios e o queixo dele, pingando na frente de sua blusa e formando uma mancha que seria difícil de disfarçar. Puta merda, ele havia pagado caro naquela porra de blusa!
null não conseguiu bloquear a tempo quando null, com um grunhido, acertou um cruzado meio torto, mas não menos desorientador, no rosto dele. Ele sentiu seu rosto ser lançando bruscamente para a esquerda, o fazendo se desequilibrar e desabar para trás, pontos de luzes espalhados por seus olhos, os cantos se obscurecendo levemente enquanto ele tosse, engasgando-se com seu próprio sangue. null grunhiu com dor e impaciência, tentando livrar-se do torpor causado pela dor, enquanto null avançava na direção dele. E então, ela está sentada em cima dele. As pernas dela, presas, uma de cada lado do corpo dele, tentando mantê-lo preso no lugar, embora null consiga livrar seu braço direito do aperto dela. Um rosnado escapou do fundo de sua garganta, null agarrou instintivamente a frente da roupa dela, enquanto as mãos de null envolviam com força o pescoço de null, tentando sufocá-lo.
Às vezes era fácil se esquecer a força que null realmente tinha.
As unhas dela se fincaram dolorosamente em seu pescoço, a pressão roubando o restante do fôlego dele, o tronco de null se curvando enquanto ele tentava encontrar uma forma de tirá-la de cima de si, mas falhava miseravelmente. Um riso dolorido escapou por entre os lábios dele, enquanto o sangue escorria pelos cantos dos lábios dele, porque, apesar de tudo, puta que pariu, se ele não havia sentido falta da visão de tê-la sentada sobre ele, tentando matá-lo —— para variar. Pontos escuros começam a surgir nos cantos de seus olhos, enquanto sua cabeça estava latejando com a pressão causada pela falta de ar, seu pulso martelando por seus ouvidos com um zumbido alto, enquanto ele se engasgava com o próprio sangue.
Ela vai matá-lo. Puta que pariu, ela vai realmente matá-lo. E ele estava sorrindo como o próprio demônio. Ele havia sentido falta do fogo, da raiva, e daquela merda de olhar assassino que null sempre tinha em seu olhar. Ele havia sentido falta da maneira com que ela apoiava todo o peso dela contra o tronco dele, e não em seus calcanhares usando o próprio peso para o mantê-lo no lugar, como ela trincava os dentes com força e os exibia como se fosse algum tipo de animal selvagem determinado a finalizar o que havia começado, a maneira com que os olhos null dela cintilavam com uma fúria que parecia queimar por seu corpo e despertava a parte inconsequente de sua mente.
null rosnou, tentando se livrar do aparto de null, sentindo sua consciência começar a escapar por entre seus dedos, a dor em seus pulmões queimando seu peito, enquanto sua cabeça parecia latejar com a pressão da falta de ar, a sensação de que ele iria desmaiar a qualquer segundo, enquanto seu corpo inteiro implorava por um pequeno resquício de oxigênio, tentando inspirar uma fração que fosse.
Um tiro ecoou, e null foi violentamente jogada para a direita. Ela desabou com um grito baixo, e null imediatamente arqueou suas costas, tossindo e tremendo enquanto sua cabeça estava girando. Sentiu-se como se estivesse bêbado, e, ao mesmo tempo, amortecido para sua própria dor. Os olhos embaçados tinham dificuldade para focalizar em alguma coisa, mas ele estava completamente consciente de que o tempo deles havia acabado. Os seguranças de Miguel finalmente havia os alcançado.
null obrigou-se a se levantar, cambaleando, sentindo suas pernas cederem ao seu próprio peso, graças a null. Seu corpo instintivamente se virou para null, preparando-se para se jogar contra a desgraçada e usar a si mesmo como escudo para protegê-la, quando os olhos null dele se arregalaram em uma mistura de raiva e frustração. Porque é claro que null sempre tinha a porra de um plano por trás de cada merda de ação. E antes que ele pudesse gritar o nome dela, null, com um buraco aberto no ombro e flanco esquerdo dela, agarra a maldita cadeira mais próxima de si, e arremessou com toda a força de seu corpo contra a parede de vidro, da piscina, terminando de romper a parede de vidro completamente.
—— Filha da put.... —— O grunhido de null é engolido pela água.
Continua...


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