Última atualização: 19/05/2021

#1

É só um dia ruim, não uma vida ruim
(When You Grow Up, Your Heart Dies - GUNSHIP)


Faltava dois dias para finalmente me matricular na universidade. Eu ainda estava cursando o último ano do colegial, mas já havia sido aceita para entrar no primeiro semestre do ano seguinte. Meus pais estavam orgulhosos, pois minha trajetória como jogadora de handebol tinha me rendido bons frutos: uma bolsa de estudos integral em biologia.
Bom, você deve estar se perguntando quem sou eu. Meu nome é , tenho 18 anos, sou estudante do ensino médio e capitã do time municipal de handebol. E essa é a história de como descobri que meu pai não era a pessoa que tinha “ajudado” minha mãe a me fazer.
Confuso? Eu explico melhor.
Vamos voltar uma semana no tempo…
Depois de ter recebido a carta de aceite da universidade, corri para contar aos meus pais e melhor amiga. Passada a euforia inicial, no dia seguinte, decidi que iria organizar a documentação necessária para a matrícula, pois as coisas desapareciam com uma facilidade impressionante na minha casa.
Sem saber onde encontrar os documentos que não eram de uso frequente, como meus registros de vacinação e certidão de nascimento, perguntei à minha mãe. Instruindo-me onde encontrá-los em sua gaveta de registros pessoais, entregou-me a chave de seu escritório.
Odiava entrar naquele espaço perfeitamente alinhado e planejado, pois ali habitava a mulher sisuda, rígida e estressada que Antonella, minha mãe, costumava ser no trabalho. Segundo ela, amava o que fazia, por isso, era incapaz de ter uma personalidade que não tivesse apenas adjetivos ruins para descrevê-la.
Indo direto para a gaveta que me dissera, retirei de lá algumas pastas e envelopes. Previsível como era, minha mãe havia colado uma etiqueta com meu nome em frente à uma pasta, indicando que era ali que estava o que eu procurava. Prestes a guardar todos os outros itens que havia tirado do armário, um envelope em especial chamou minha atenção. Na parte frontal, o nome de meu pai, , estava impresso e, ao que aparentava, era o resultado de um exame. O mais estranho era que ainda estava lacrado.
Curiosa como sou, decidi dar uma espiada no conteúdo, já que ninguém o tinha feito. Tirei de dentro uma folha e, em uma leitura dinâmica, as palavras pulavam diante dos meus olhos. Teste de paternidade, , , Resultado: NEGATIVO.
Lendo tudo duas, três vezes, fiquei atônita. O chão havia sido arrancado de baixo dos meus pés e eu mal sabia como reagir ou se deveria existir uma reação.
Pus a folha de volta em seu local de origem e guardei junto das outras coisas na gaveta, levando para o meu quarto apenas o que tinha ido buscar.
A parte ruim de se ter um bom relacionamento parental é: se você esconde algo deles, se sente mal por ser uma vaca mentirosa; se os confronta, você é uma vadia sem coração atrás de briga. Não havia uma solução simples e rápida para mim. Em qualquer uma das opções, alguém saíria ferido sem sombra de dúvidas.
Remoendo dentro de mim o que fazer, peguei meu celular e enviei mensagem para o meu psicólogo perguntando se poderíamos adiantar a próxima sessão para o dia seguinte. Quando sua resposta positiva chegou, um alívio tomou conta do meu peito.

- x x x -


Com um sorriso afetuoso, Will me chamou para entrar em seu consultório, pois era minha vez de ser atendida. No auge dos seus 30 anos, William Shermann era um psicólogo em início de carreira. Começou a me atender quando eu tinha 15 anos e não me sentia mais confortável em ser cliente de alguém especializada no tratamento de crianças.
Por cuidar, em sua maioria, de adolescentes, Will geralmente usava roupas mais modernas e casuais, tinha um corte de cabelo que favorecia seu formato de rosto e cílios naturais que davam inveja em qualquer viciada em postiços, como minha mãe.
― Posso saber qual é o motivo da visita prematura essa semana? ― questionou ao sentar-se na poltrona em frente à minha com a prancheta posta sobre o colo.
― Meus pais esconderam algo de mim e não sei como reagir ou abordar isso com eles.
― Você pode falar o que é ou vamos jogar aquele jogo em que eu finjo que sei o que é e tento te direcionar para uma solução? ― suspirei.
― Fui procurar meus documentos pra me matricular na universidade e minha mãe tinha um teste de paternidade no nome do meu pai guardado nas coisas dela. Dei uma espiadinha só para ver do que se tratava já que estava lacrado e descobri que ele não é meu pai biológico.
― Primeiro de tudo: mais uma vez, parabéns pela entrada na faculdade. Segundo: você não se lembra de ter feito esse exame?
― Me lembro de que, há uns 10 anos, eles me contaram no meu aniversário que ele era meu pai.
― Antes disso, ele não era?
― Eu o chamava de ‘tio’. Minha mãe dizia que eu não tinha pai.
― Como você está se sentindo em relação à essa descoberta?
― Traída. Eles sempre foram abertos comigo em relação a coisas muito mais pessoais que esta e por que justo nisso eles decidem não falar nada?
― E você pensa em abordar o assunto de alguma forma com eles?
― Sim, mas ainda não sei como ou quando. Eu só… não entendo. Por que eles mentiriam?
― Você se incomoda com o fato de ele não ser seu pai biológico? Acha que isso muda algo na relação de vocês?
― Bom… não. Mas eu tenho curiosidade de saber quem é o homem que me gerou.
― Por quê? ― dei de ombros. ― Como você acha que seria sua reação se soubesse que ele decidiu que não queria assumir você como filha?
― Não o julgaria. Sei que foi muito complicado pra minha mãe me criar sozinha, mas acho que prefiro alguém que assuma que não queria ser pai e vá embora do que alguém que se force a ficar e é como se já tivesse ido.
, diferente da maioria dos pais dos meus clientes adolescentes, seus pais sempre me pareceram bem abertos ao diálogo, seja sobre qualquer assunto. Acredito que você pode se abrir como está se sentindo em relação à essa descoberta, mas só quando estiver pronta para assumir que você mexeu em um envelope lacrado que não era seu. Para evitar situações emocionalmente desgastantes ou instáveis para você, só o faça se estiver pronta para ouvi-los e para saber a verdade.
― Sabe o que eu tenho mais medo? ― incentivou-me a continuar com um aceno de cabeça. ― Que não haja um motivo, que eles só não queiram… dividir isso comigo. ― aquela constatação em voz alta fez um bolo crescer e fechar a minha garganta.
― Entendo que esta é uma parte importante da sua história, de quem você é, mas já parou para pensar que talvez esse seja um assunto delicado para eles? ― em silêncio, refleti sobre aquela pergunta e, de fato, aquele sempre tinha sido um tema muito caro para os meus pais desde que eu era criança.
Melhores amigos, meus pais se conheciam desde os 15 ou 16 anos. Ao fim do ensino médio, os dois foram para a faculdade juntos, o que foi um alívio para as minhas avós por não terem de largar seus preciosos filhos sozinhos em um território estranho e inexplorado. Convivendo boa parte do dia juntos, algo mudou no que sentiam um pelo outro. Minha mãe, que nunca quis se envolver romanticamente com ninguém, deixou claro desde o início que nunca seria nada além de sexo casual.
Meses depois, quando menos esperavam, eu já estava à caminho.
Por mais que meus pais não fossem casados ou estivessem em um relacionamento como os outros pais das pessoas que conheci na infância, nenhum dos dois fora ausente ou negligente comigo. Dentro de suas possibilidades, fizeram tudo que estava ao seu alcance para estarem presentes e participarem do meu desenvolvimento.
Mais tarde, quando meu pai conheceu a tia Sam e começou a namorá-la oficialmente, era como se eu tivesse ganhado uma segunda mãe. Éramos uma grande família e não conseguia nos visualizar de outra forma.
― Will, você acha que vou ser egoísta ou incoerente se quiser conhecer meu progenitor?
― De forma alguma. Como eu disse, é uma parte importante da sua história e cabe a você saber o quanto isso te interessa ou afeta. Claro, não aconselho que o faça sem discutir previamente com seus pais. Mas, independente da reação deles, lembre-se sempre que só você sabe o que é melhor para si. ― fez uma rápida anotação em sua prancheta, voltando a me olhar. ― Nossa sessão hoje fica por aqui.
― Tem certeza? ― fiz careta. ― Parece que nosso tempo tá cada vez mais curto.
― Você está se tornando adulta, , logo, seus problemas estão se tornando mais complexos e demandam mais tempo de conversa e reflexão.
Levantei-me da poltrona, despedindo-me de William e saindo. Do lado de fora, sentado nas poltronas da sala de espera, meu pai me aguardava. Em pé, beijou a lateral da minha cabeça e seguimos até seu carro.
― Onde tá a tia Sam? Hoje é nosso jantar em família, né? ― questionei afivelando o cinto de segurança.
― Sim, é hoje, mas ela precisou viajar. Foi convidada para palestrar na Brown. ― respondeu com um sorriso orgulhoso.
Samantha Ito, minha madrasta, era uma escritora mundialmente conhecida. Seu primeiro romance, Conectados, havia feito tanto sucesso no ano de lançamento que foi traduzido para 15 idiomas e lhe deu a confiança que precisava para investir de vez em sua carreira.
Meu pai ficava todo bobo ao falar das conquistas de Sam. Acho que, às vezes, nem ele acreditava que havia se casado com uma mulher tão admirável quanto ela.
― Como foi a terapia? ― engasguei com a minha própria saliva. Odiava o fato de ser tão transparente. ― Tá tudo bem? ― pôs a mão sobre meu ombro, desviando os olhos da estrada à sua frente para me checar. ― Parece que alguém andou falando de seu velho pai para o Will. ― brincou.
― Não, não é isso. ― pigarreei.
, tá tudo bem se falou. ― riu. ― Eu também falo de você na terapia e tenho certeza de que sua mãe também fala.
― O que você fala de mim? ― olhei-o com as sobrancelhas franzidas.
― Estou protegido pelo sigilo da terapia. Não vou falar. ― fingiu passar um zíper na boca. Fiz uma cara de tédio, que, ao me olhar, riu. ― Já que a terapia não é algo que possamos discutir hoje, como está a preparação para a sua última feira de ciências?
e eu vamos cuidar do planetário esse ano.
― Tipo fazer o passeio lá dentro e tal?
― É.
― Nossa, isso é bem legal, né?
― Sim, o professor só escolhe os melhores da turma pra isso. ― dei um meio sorriso.
― Parabéns, filha. Eu sei o quanto é importante pra você. ― sorriu.
― Você vai?
― Claro que sim. ― acariciou a ponta da minha orelha como sempre fazia quando não podia me abraçar ou fazer um movimento mais brusco qualquer.

- x x x -


Como era a vez de meu pai cozinhar, fui dispensada da cozinha, pois ele odiava ficar cercado de pessoas enquanto realizava algum afazer doméstico. Era uma daquelas raras espécies de pessoas que preferem fazer tudo sozinhas. No máximo, ter a companhia de alguém que lave a louça.
Ao entrar no meu quarto, fechei a porta, abri a janela, sentando-me no parapeito. era meu vizinho desde que tínhamos 11 anos. Sua família foi a primeira que vi morar na casa que era colada à minha.
Saindo na sacada de seu quarto, ao me avistar acenou para mim. Devolvi o gesto ao mesmo tempo que meu celular começou a tocar no meu bolso. Seu nome se iluminava em minha tela. Era assim que conversávamos na maior parte do tempo em que não estávamos na escola: pelo telefone, ele em sua sacada e eu em minha janela.
― Sua cara tá horrível. ― foi a primeira coisa que disse assim que atendi.
― Obrigada, . Você ajuda muito na minha autoestima. ― ironizei.
― Agora é sério. O que rolou?
― Tretas de família. Preciso criar coragem para abordar o assunto com meus pais.
― Você é viciada em drogas?
― Não.
― Foi presa?
― Não.
― Ganhou mais do que uma multa de trânsito no último mês?
― Não.
― Então tá tranquilo. ― sorri. ― , seus pais são muito legais. Não sei o que tá rolando, mas seja o que for, tenho certeza que eles vão ficar de boa.
― Assim espero. ― respondi puxando um fio que se soltava da minha blusa. ― Como seus pais receberam a notícia que você não conseguiu a bolsa?
― Chá de climão em todos os jantares. Eles estavam contando que eu já poderia me considerar o mais novo engenheiro da família.
― E o que você vai fazer?
― Estou aguardando a resposta de outras universidades ainda.
― Sabe que não pode fazer isso só porque eles querem que você faça, né?
― Nem todo mundo tem uma família que te trata como um ser humano com vontade próprias. ― deu uma risadinha anasalada. Vi-o olhar para trás. ― Preciso ir jantar.
― A gente pode conversar mais tarde sobre a apresentação?
― Pode ser na sua casa? Meus pais odiariam saber que continuo envolvido com uma cientista maluca. ― ri.
― Pode, sim. Até mais tarde.
― Até. ― desligou.
Aproveitei o tempo que ainda faltava para o jantar para estudar um pouco sobre a estrutura do planetário deste ano. Os alunos que ficavam responsáveis pela visitação tinham que cuidar de todo o roteiro de apresentação do local para quem quisesse entrar.
já tinha feito uma boa parte da abertura, só precisava de alguns pequenos ajustes e um roteiro de respostas para as perguntas mais frequentes que havíamos observado nos anos anteriores.
Quando ouvi minha mãe gritar meu nome do andar de baixo, fechei o notebook e desci para jantar.
Na cozinha, como sempre, os vi conversando sobre trabalho, sentados em volta da ilha, com a comida já posta.
― Conseguiu achar os documentos que você tava procurando ontem? ― enquanto colocava uma porção de legumes em seu prato, minha mãe perguntou.
― Consegui.
― E quando é sua matrícula? ― meu pai se introduziu no assunto.
― Na próxima semana.
― Você quer que a gente vá junto com você?
― Não sei se é necessário. ― dei de ombros.
― Tonya, por que você nunca diz logo que quer ir junto com ela? ― meu pai riu.
― Porque agora ela é adulta e temos que respeitar o espaço dela. ― arqueei as sobrancelhas. ― Que foi? ― perguntou ao me olhar.
― É que… sei lá. Nunca achei que fosse ouvir isso tão cedo.
― Você já é adulta, mas continua sendo o meu bebê, se é isso que quer saber. ― apertou minha bochecha. Fiz uma careta e ambos riram.
― Você não perde a oportunidade, né? ― dei uma garfada na salada que havia posto no meu prato.
― Jamais. A única função social dos pais depois que os filhos crescem é envergonhá-los. Então, já tô treinando. ― deu um sorriso debochado, colocando um pedaço de brócolis na boca.
― Mas vocês não me envergonham.
― Ainda. Espere só até o dia que tivermos que fazer sua mudança para o campus e sua mãe começar a chorar na frente de todo mundo. ― meu pai ria enquanto minha mãe estapeava seu braço.
― Quem vê, eu sou a sensível mesmo, né? Babaca. ― deu um tapa na traseira de sua cabeça para finalizar.
― Na verdade, você chora tão pouco que eu tenho medo que talvez um dia, quando você não conseguir mais segurar, acabe explodindo em litros de lágrimas.
― Por acaso você é minha psicóloga pra me ver chorar? ― rebateu.
Meu olhos iam de um para o outro.
Sim, os nossos jantares em família eram sempre… animados assim. A diferença é que geralmente a tia Sam estava ali para apaziguá-los ou para conversar comigo sobre qualquer coisa e ignorá-los por completo.
― As crianças já terminaram ou vão deixar a comida esfriar antes de comer? ― debochei ao servir mais uma porção de legumes em meu prato.
― Eu já nem consigo mais lembrar do que estávamos falando antes.
― Não acho que a gente precise voltar no mesmo assunto. ― respondi a minha mãe antes que meu pai o fizesse com uma nova piadinha que a irritasse.
― Pra onde Sam foi dessa vez? ― indagou ao meu pai.
― Estados Unidos. Foi convidada para palestrar para uma turma de formandos de Artes Literárias da Brown.
― Será que a gente pode ver online como da outra vez? ― perguntei colocando a última batata do meu prato na boca.
― Acho que não. Dessa vez, acho que é algo mais interno mesmo.
Ouvindo a porta da frente abrir, não demorou até que aparecesse na cozinha.
― Oi, .
― Oi, senhora Levy. ― acenou para a minha mãe.
― Já jantou? ― meu pai apontou para as travessas sobre o balcão.
― Ah, sim. Vim porque já tinha combinado com a de terminarmos nosso trabalho da feira de ciências.
― Vocês vão ficar no planetário, né? Estou orgulhosa de vocês. ― deu aquele sorriso carinhoso.
― Obrigado, sra. Levy.
, se quiser ir pro meu quarto, eu já subo. ― assentiu, rumando para as escadas.
Levantei do meu assento, pegando meu prato e o levando até a pia.
― Se quiserem deixar a louça aqui, depois eu posso lavar. ― me pronunciei antes de sair.
Prestes a subir as escadas, minha mãe me chamou outra vez.
― Sim? ― olhei-a.
― Eu sei que você tirou de dentro da sua caixa de emergência e colocou na minha, mas a reabasteci com camisinhas, caso precise. ― meu pai começou a gargalhar alto.
― Eu odeio vocês. ― fechei a cara e fui para o meu quarto.
Ao entrar no cômodo, vi sentado na beirada.
― Tá tudo bem lá embaixo? Seu pai tá berrando. ― franziu as sobrancelhas.
― Por favor, não vamos falar sobre isso.
― Ok. ― ergueu as mãos em sinal de rendição.
Abri o notebook e trabalhamos em cima do que tínhamos nas três horas seguintes.


#2

Apenas tente e mantenha em mente tudo que eu te disse
(play this when I'm gone - Machine Gun Kelly)


Na noite seguinte, tia Sam ainda não tinha voltado para casa. Havia perdido seu voo e tivera que comprar o segundo horário seguinte por ser o único que ainda tinha assentos vagos. Por isso, meu pai decidiu jantar conosco outra vez.
Por mais que tivesse a mais plena e absoluta certeza de que não estava pronta para encarar as consequências de ter mexido em algo que não era meu sem autorização, não conseguia mais guardar aquilo para mim. Precisava com urgência entender o que era aquilo e por que tinham escondido de mim por tanto tempo.
Ouvindo-os conversar animadamente na cozinha, desci as escadas e fui de encontro a ambos. Sentei-me em uma das banquetas em frente a ilha, calculando quais seriam minhas palavras para trazer o assunto à tona.
― Posso falar com vocês um minuto? ― questionei tentando parecer firme em meu propósito.
― Aconteceu alguma coisa? ― meu pai foi o primeiro a parar de cortar legumes para me olhar.
― Bem, eu… há alguns dias precisei procurar meus documentos no escritório da mamãe e eu achei algo. Sei que não devia ter mexido, pois não tinha meu nome, mas eu abri e… a questão é: por que vocês nunca me disseram que você não era meu pai biológico? ― os olhos do homem se arregalaram e, como se tivessem combinado, ambos trocaram um olhar preocupado.
― Nós também não sabíamos, querida. ― mamãe respondeu ao me olhar.
― Como não? Vocês fizeram um teste de paternidade. ― franzi as sobrancelhas em sinal de incompreensão.
― Mas nós nunca… eu nunca abri o envelope do resultado. ― papai respondeu. ― Desculpe, meu amor. Não queríamos soar como se estivéssemos escondendo algo. É só porque, no fim, o resultado não tinha importância pra mim e queria que a decisão de descobrir a verdade fosse sua. ― pôs a mão sobre minha, que estava descansada sobre o mármore.
― Desde que você era criança, queríamos que você conhecesse o mundo por si só, tivesse suas próprias escolhas e opiniões. Nosso trabalho era só protegê-la enquanto você não conseguia e nem podia fazê-lo sozinha. ― mamãe deu um meio sorriso dolorido.
Meu olhos intercalaram entre suas feições ternas e apreensivas.
― Mas vocês planejavam me contar ou se esperavam que um dia eu descobrisse?
― Confesso que fomos adiando pelo máximo de tempo possível e acabamos perdendo o timing.
― Como sua mãe disse ontem, aos nossos olhos, você sempre será o nosso bebê, por isso, às vezes perdemos a noção do que fazemos. ― deu uma risadinha nervosa, coçando uma das orelhas.
― E vocês não estão bravos por eu ter mexido em algo que não era meu?
― O que podemos fazer quanto a isso? Não é como se você fosse uma criança que acabou de achar um vibrador na minha gaveta de calcinhas. ― deu de ombros e meu pai gargalhou tão alto que mais parecia um ganso grasnando.
Por vezes, me perguntava se minha mãe tinha noção das coisas que falava em voz alta ou se ela a estava perdendo conforme ia envelhecendo.
― Você tá ficando vermelha?! Desculpa, não tá mais aqui quem falou. ― deu um tapinha na própria boca, conferindo as panelas no fogão.
Sem mais nada a dizer, o assunto morreu. Horas mais tarde, tia Sam ligou por chamada de vídeo para papai, que posicionou o celular de forma que pudesse ver a todos nós.
― Como você não chegou e eu estava sozinho, resolvemos fazer um segundo jantar em família. ― justificou antes que ela fizesse aquela cara de quem não estava entendendo o contexto.
― Por favor, me digam que podemos fazer um terceiro. Eu morreria pra comer aquele seu frango frito, Antonella. ― tia Sam quase miou do outro lado.
― Vou colocar na lista de compras de amanhã. ― em nossa casa, era bem difícil haver qualquer tipo de carne, em qualquer refeição.
Eu já não comia mais desde os seis anos, quando descobri de onde vinha a proteína de origem animal, consequentemente, meus pais acabaram reduzindo drasticamente o consumo ao longo dos anos, porém nenhum dos dois poderia carregar o rótulo de vegetariano.
, meu amor, quando será a feira de ciências?
― No próximo fim de semana.
― Soube que alguém vai ser a rainha do planetário esse ano. ― deixou no ar, toda sorridente.
― Não é nada demais. ― murmurei.
― Como não? Eu sei o quanto você deu duro por isso o ano inteiro. Não diminua suas conquistas.
― É só o colegial, tia. Não é como se eu tivesse ganhado um Nobel. ― franzi os cantos dos lábios.
― Ainda assim, uma conquista. Sua carreira como cientista já começou e tenho certeza de que seu futuro será brilhante.
― Sam tem razão, filha. Você pode achar que isso não é grande coisa, mas tudo isso tem um significado gigantesco para sua trajetória. ― dei um meio sorriso tímido para minha mãe.
― Se vocês dizem…
― Preciso desligar. Nos vemos amanhã?
― Claro, amor. Faça uma boa viagem de volta.
― Até logo!
― Tchau! ― mamãe e eu respondemos em uníssono, acenando.
Papai encerrou a ligação e voltamos a jantar. Ao final, o homem ajudou com a louça, se despediu e foi embora.
Já em seu quarto, mamãe estava com a porta fechada, porém a luz escapava pela fresta, denunciando que ainda estava acordada. Bati e, ao ouvi-la gritar “entra”, o fiz.
― Você tá ocupada? ― negou com a cabeça, abaixando o livro que lia e tirando os óculos do rosto.
Sentei ao seu lado na cama.
― Talvez ainda esteja cedo para voltar nesse assunto, mas você sabe quem pode ser meu pai biológico?
― Sei. Podem ser outras duas pessoas, mas não tenho mais contato com eles, se é isso que quer saber.
― Você ficaria brava se eu quisesse descobrir quem é e conhecê-lo?
― Não, mas você sabe que não é pra mim que você precisa perguntar isso, né? ― fechou o livro definitivamente.
― Ele ficaria chateado, certo? ― suspirei.
― Meu amor, seu pai ama você. O que você encontrou é um pedaço de papel que basicamente exclui seu pai do posto de doador de órgãos compatível com você. Não existe nada que aquele homem não faria por você.
― A menos que eu precise de um rim. ― ironizei.
― Aí ele teria que comprar um no mercado clandestino. ― rimos. ― Mas, voltando ao assunto, mesmo que, às vezes, ainda haja certa relutância da nossa parte em aceitar, você já é adulta e precisa fazer suas próprias escolhas. ― acariciou meu rosto. ― Quando eu tinha sua idade e recém descoberto que você estava à caminho, prometi para mim mesma que não iria te criar como minha mãe me criou, com medo, receio, sem voz ativa ou vontade própria. ― ajeitei minha postura, pois aquela conversa estava ficando interessante. Minha mãe nunca falava sobre minha avó.
― O que ela fazia com você?
― Assim como eu, minha mãe também engravidou cedo. Diferente de mim, ela foi uma mãe solo, já que meu progenitor não quis assumir a responsabilidade. Por isso, durante toda a minha vida, ela achou que, se controlasse cada passo meu, evitaria que eu tivesse o mesmo destino, o que se mostrou a maior mentira 18 anos depois. ― segurou minha mão sobre seu colo. ― Seu pai foi uma das primeiras pessoas pra quem eu contei sobre a gravidez e ele se ofereceu para assumir a paternidade diante da sua avó porque achou que ela gostasse dele. Tudo isso mudou quando contamos a ela e Denise. Regina reagiu extremamente mal, ofendeu e me expulsou de casa. A partir daí, Denise foi como se fosse minha mãe. Ela quem nos acolheu e cuidou de nós três.
Vi uma foto escorregar de dentro do seu livro.
― Posso olhar? ― apontei e a mesma tirou a imagem do meio das páginas, entregando-me.
Impressa em papel luminoso e em preto e branco, havia a figura de uma mulher cabeça para baixo, olhos fechados, boca entreaberta e algumas mechas de seu cabelo tocavam a lente da câmera.
― É a tia Sam? ― franzi o cenho.
― Não. ― riu. ― Amor, você não lembra?
Analisei a foto por mais alguns segundos, revirando minhas memórias em busca do que supostamente deveria me lembrar.
― Espera, a tia Sam tinha uma irmã, né? ― assentiu. ― O que aconteceu com ela? Elas não se falam mais?
― Você não se lembra? ― meneei a cabeça negativamente. ― Ela morreu quando você tinha sete anos. Você se lembra daquele período em que ficamos em casa por quase dois anos inteiros? ― assenti. ― Ela foi uma das azaradas que pegou covid-19 quando a vacinação começou a acontecer. ― deu um sorriso sem humor.
― Quem fez essa foto?
― Sua mãe fez. ― seu sorriso ganhou algo parecido com orgulho.
― Muito bonita. ― sorri. ― Ela deve ter sido bem importante pra você. ― arqueou uma das sobrancelhas. ― Quer dizer, você colocou ela no meio do livro que você está lendo e creio que isso não seja só porque você acha essa foto bonita, né?
Após alguns segundos de silêncio, a mulher soltou um suspiro sonoro.
― Ok, você me pegou. Na época, digamos que nós… ― de repente, a mulher parecia ter perdido as palavras.
― Vocês namoravam? ― completei.
― Não. Não era nada sério. ― deu uma risadinha nervosa.
― Mas você queria que fosse, né? ― pouco a pouco, aquela postura inabalável começou a se desfazer frente aos meus olhos.
Conseguia contar nos dedos as vezes que senti ou percebi que as muralhas que minha mãe havia construído a sua volta estavam desmoronando.
― Teve apenas duas pessoas ao longo de toda a minha vida com quem eu construiria algo. Uma dessas pessoas era o seu pai. ― deu um meio sorriso. ― A outra pessoa, certamente, seria Serena. Uma pena que tudo tenha acontecido antes que ela soubesse disso.
― E você ainda… sabe, gosta dela?
― Quando você abre seu coração pra alguém e, por algum motivo que não é culpa de nenhuma das duas pessoas, as coisas dão errado, é sempre mais difícil seguir em frente. ― piscando sequencialmente rápido, sabia que estava segurando o choro.
Talvez fosse hora de dar esse assunto como encerrado.
Guardei a foto dentro de seu livro outra vez, ouvindo-a fungar baixinho.
― E você e o ? ― deu um tapinha leve na minha mão.
― O que tem?
― Não sei. ― deu de ombros. ― Vocês parecem próximos nos últimos tempos.
― Nós somos vizinhos e estudamos juntos desde, sei lá, a quinta série?
― Você sabe o que quero dizer.
― Mãe, não tem nada rolando. Eu não tenho esse tipo de interesse nele.
― Você não tem esse interesse nele ou em garotos?
― Nele. ― ri. ― Eu não gosto de meninas.
― Eu ‘não gostava’ ― fez aspas com as mãos. ― de meninas até os 27 anos. ― ri.
― Eu tenho plena certeza que não gosto de meninas. 100% de certeza, ok? ― ergueu as mãos em sinal de rendição.
― Tudo bem. Não tá mais aqui quem falou. ― passou um dos braços sobre meus ombros, puxando-me mais para perto de si. ― Mas você sabe que pode contar comigo pra qualquer coisa, né?
― É, eu sei. ― abracei-a.

- x x x -


Na noite seguinte, após o jantar, arrumei minha mochila e voltei para casa com meu pai e tia Sam, pois ambos haviam me convidado para dormir lá para me levarem à feira de ciências no dia seguinte.
Durante todo o caminho, fiquei me questionando se valia a pena entrar no assunto “paternidade” com meu pai e até mesmo se procurar pelo meu progenitor era uma opção realmente válida. Afinal, no que aquilo mudaria minha vida?
Ao chegar em casa, tia Sam decidiu que iria tomar banho, meu pai que iria fumar um cigarro na varanda coletiva e eu que iria atrás dele para aproveitar o pouco de coragem que ainda havia em mim.
― Quando você faz isso de ficar me seguindo pela casa, sinto saudades do Five. ― Five, o gato preto e antissocial, havia falecido há dois anos de causas naturais.
― Você deveria adotar outro gatinho. ― sugeri, sentando-me no degrau da escada, observando-o acender o cigarro preso entre os lábios.
Em momentos como aquele, desejava muito poder acender um também. Meus pais nem meus amigos sabiam, todavia, há dois anos, devido as crises de ansiedade que me atacavam no meio da noite, descobri que fumar me ajudava a lidar com meus pensamentos e com a inquietação.
Antes disso, não entendia por que meu pai nunca tinha conseguido largar o cigarro completamente e sempre acabava retomando os velhos hábitos. Atualmente, entendia perfeitamente.
― Nervosa pra amanhã? ― assenti. ― Vai dar tudo certo. Lembre-se: tudo que você tem que falar e fazer amanhã são coisas que você já sabe. Vai se sair muito bem. ― soltou a fumaça rapidamente após sua fala.
― Assim espero. ― dei uma risadinha nervosa.
Sentou-se em um banco à minha frente, mantendo aquela distância segura para que a fumaça não me atingisse.
― Filha, posso te fazer uma pergunta? ― concordei. ― Tudo bem se você não se sentir à vontade em responder, mas por que você tirou as camisinhas da sua caixa de emergência? ― arqueei as sobrancelhas, surpresa.
Apesar de sempre rir quando minha mãe usava de seu bom humor para me envergonhar enquanto me aconselhava, meu pai não conseguia ter a mesma abordagem descontraída. Ele costumava ser mais sério e direto em determinados assuntos. Obviamente que isso não significava que fosse mais difícil de dialogar com ele. Na verdade, sempre o achei muito mais acessível em determinados temas.
― Porque não há razão para eu ter algo que não uso. ― respondi um pouco mais baixo, não conseguindo conter o calor de constrangimento que se formou em minhas bochechas.
― Você sabe que não precisa ter preservativo por perto só quando planejar ter uma relação sexual, né? Ou só se você não for mais virgem… ― deixou no ar, dando outra tragada em seu cigarro. ― Enfim, o que estou tentando dizer é que você nunca sabe quando pode precisar de um e nós insistimos tanto que você tenha porque nos preocupamos com você. Queremos que você aproveite sua vida, mas de uma forma saudável e segura. ― soltou o resto da fumaça na direção contrária à minha.
― Pra não repetir os erros de vocês? ― perguntei mais para mim do que para ele.
― Mesmo que tenha vindo mais cedo do que esperávamos ou queríamos que viesse, você não foi um erro. Na realidade, foi um dos muito poucos acertos que tive na vida. ― deu uma risadinha anasalada, pondo o tabaco entre os lábios.
― O aborto nunca foi uma opção?
― Na verdade, foi a primeira opção, mas algo na sua mãe mudou e ela quis você. ― seus olhos se perderam no horizonte.
― É por isso que ela e a minha avó não se falam? ― assentiu.
Depois de longos segundos em silêncio, retomou:
― De qualquer forma, o que eu e sua mãe fizemos é completamente irresponsável. ― olhou-me. ― Nunca, em hipótese alguma, transe sem camisinha a não ser que você esteja planejando ser mãe porque, mesmo que você não engravide, você pode pegar uma doença e morrer. ― ri da forma dramática como falou. ― Garota, você não ri que eu tô falando sério. ― ri mais ainda, contagiando-o.
― Desculpa. ― respondi ainda tentando controlar a risada.
― Mas, falando muito sério, não faça sexo com ninguém sem proteção. Nem com meninos nem com meninas, ok?
― Por que tá todo mundo achando que eu gosto de meninas? ― franzi as sobrancelhas.
― É uma possibilidade. ― deu de ombros. ― Sua mãe, por exemplo, gosta de meninos e meninas. Eu só gosto de algumas meninas… ― abaixou o tom de voz da última frase.
― Como assim?
― O quê? ― se fez de desentendido.
― Você disse que só gosta de algumas meninas. O que isso significa?
― Bom, nem todo mundo tem sexualidades normativas. ― odiava quando tentavam bancar os enigmáticos. ― O que quero dizer é que tudo bem se você não se sente confortável em fazer as coisas que as pessoas da sua idade estão fazendo. Todo mundo tem seu próprio tempo. ― arqueei as sobrancelhas ainda tentando entender. ― Você ainda tá calculando o que eu disse, né? ― desviei o olhar, tentando disfarçar. ― Eu sou demissexual, , o que significa que só consigo me envolver com pessoas com quem crio conexões. Por isso, Sam e sua mãe fazem parte do minúsculo grupo de mulheres com quem eu saí. ― encerrou o cigarro em uma última tragada, apagando a bituca no cinzeiro.
― Sair você quer dizer… ― deixei no ar para que ele entendesse a sugestão.
― Isso mesmo. ― riu.
― Isso não te atrapalhou pra perder a virgindade?
― Pra ser sincero, não. Foi tão normal e tão mais ou menos quanto a de qualquer outro garoto.
― Você tinha quantos anos?
― 17. E, antes que você pergunte, foi com uma amiga da escola.
― Espera. Você não perdeu sua virgindade com a minha mãe? ― franzi o cenho.
― Foi isso que ela te contou?
― Não, mas era o que eu imaginava.
― Sua mãe também não perdeu a virgindade comigo.
― Ah, mas isso eu já sabia. ― inclinou a cabeça para o lado. ― Pai, por favor, não vamos entrar no mérito de qual dos dois é mais emocionado, né? ― riu.
― Bom, o que estou tentando te explicar é que você não precisa perder sua virgindade só porque seus colegas estão fazendo e nem se sentir pressionada a gostar ou sair com alguém só porque dizem que você já tem idade suficiente para isso. Sua mãe e eu te pedimos apenas que tenha juízo e que respeite seus próprios limites, cuide do seu corpo e da sua saúde, ok? ― dei um meio sorriso.
― Pai?
― Quê?
― Talvez não tenha nada a ver com o assunto, mas eu preciso te perguntar isso. Se eu, hipoteticamente, quisesse saber quem é meu progenitor, isso te chatearia?
― Você sente essa necessidade? ― suspirei.
― Não sei se é necessidade. É mais… curiosidade de saber como ele é, quem ele é.
― Se você quer fazer isso, não há nada que eu possa dizer a respeito. ― cruzou os braços em frente ao peito e, com aquela pose de quem tentava se agarrar em algo, deu de ombros.
― Essa não foi minha pergunta. ― franzindo os lábios, afrouxou os braços, dando um suspiro.
― Talvez eu fique um pouco chateado porque sinto como se você estivesse tentando me substituir ou coisa do tipo. E esse era um dos motivos pelo qual eu tinha mais medo de descobrir que talvez você não era minha filha biológica. ― levantei-me para me agachar a sua frente e segurar suas mãos.
― Pai, eu amo você. Não importa se não foi você que me colocou nesse mundo. Pelo menos você tentou. ― dei uma piscadinha, fazendo-o rir. ― Você sempre vai ser meu pai, independente de tudo e qualquer coisa. Você me criou, me ensinou quase tudo que eu sei, cuidou e ainda cuida de mim. Se isso não é ser pai, eu não sei o que é. ― envolveu meus ombros em um abraço, que retribui desajeitadamente.
Levantou-se e eu fiz o mesmo, deixando-o passar um dos braços por sobre meus ombros.
― Eu não acredito em propósito, mas cada vez mais fico convencido de que, se eu tivesse um, era ser seu pai. ― beijou meu rosto e eu assenti, abraçando-o pela cintura.


#3

Diga! O que está na sua mente?
(Tangerine - Violet Soda)


Sábado de manhã, um sol de rachar e um calor que poderia matar todo mundo que resolvesse entrar nas estufas da feira de ciências. A primeira pessoa que encontrei foi Jade, a monitora responsável pelas chaves de salas e auditórios da feira. A segunda foi , que estava parado à porta de onde seria o planetário.
― Vi seu pai e sua madrasta há uns minutos. Eles são muito legais, né?
― Tá querendo ser adotado? ― ironizei, destrancando a porta do local.
― Você sabe que esse não é o único jeito de entrar pra família, né? ― arqueou as sobrancelhas de um jeito sugestivo e com um sorriso convencido nos lábios. Revirei os olhos em resposta, deixando-o entrar primeiro no local.
Antes de fechar a porta atrás de nós, pendurei a plaquinha de “fechado” do lado de fora para que soubessem que ainda não estávamos abertos a visitação.
― Nervosa?
― Como se esse fosse o primeiro dia em uma escola nova. E você?
― Como se estivesse prestes a beijar pela primeira vez de novo.
― Você não tem vergonha de ser assim, não? ― zombei.
― Meu único erro é amar demais. ― brincou e eu ri.
Ajeitando todas as cadeiras em um único canto, não conseguia evitar vez ou outra conferir o garoto do outro lado da sala, testando o equipamento de som que usaríamos para reproduzir o vídeo de apresentação do local. Os cabelos perfeitamente bagunçados com suas poucas mechas de dread caindo sobre o rosto, a camisa xadrez com todos os botões fechados e a calça jeans preta combinavam com muito sua personalidade. De longe, sua figura esguia quase parecia da minha altura, porém, se me aproximasse alguns passos dele a diferença de quase um palmo começava a ficar visível. Dos lábios, saía uma cantoria que eu não tinha a menor ideia de que música era enquanto suas mãos se mantinham ocupadas com todos os cabos e aparelhos que necessitavam ser conectados.
tinha o par de mãos mais bonitos que eu já tinha visto na vida. Os dedos longos tinham espessura média e unhas bem cuidadas. Nunca havia segurado sua mão, apenas nos encostamos acidentalmente durante um dia no laboratório, por isso, sabia que eram macias e mornas.
Em uma madrugada, enquanto dormia, sonhei com suas mãos me tocando, passeando pelo meu corpo. Quando começaram a escorregar rumo a “certos lugares”, acordei assustada, pois não era assim que deveria nos imaginar ou nos ver, certo? Na escola, no dia seguinte, passei boa parte do dia fugindo dele, só parando de evitá-lo na hora de ir embora, visto que eu era sua carona para voltar para casa.
Nossos olhares se cruzaram. sorriu e eu apenas desviei os olhos. Às vezes, tinha a sensação de que as pessoas ao meu redor conseguiam ver através de mim e isso me assustava muito mais do que a possibilidade de acabar como a minha mãe.
Ao terminar de arrumar o que ainda estava fora do lugar e testar tudo o que precisaríamos para a apresentação, abrimos as portas para visitação. Meus pais e minha madrasta eram as primeiras pessoas da fila, como imaginei que seriam.
Com um grupo de aproximadamente 20 pessoas, fizemos a primeira visita guiada do planetário. Cada uma tinha cerca de 40 minutos, incluindo a sessão de perguntas e respostas que abríamos ao final. Nas primeiras vezes que precisei responder algo, minha voz tremeu imperceptivelmente, porém, por mais brega que isso soe, ver minha família na primeira fila com aquele olhar de quem confiava em mim e sabia que eu era capaz me deu a pontinha de força que precisava para seguir em frente, pois aquele era só o primeiro de dois dias.

- x x x -


Às 18h, fechamos o auditório, afinal, a escola já estava fechando. Avisei minha família que precisava manter tudo ordenado para o dia seguinte, além de que e eu havíamos combinado de sair para comer com Sophie. Solidária como o usual, minha mãe me emprestou o carro para que eu deixasse minha amiga em casa e tivesse como voltar para a nossa.
Ao terminarmos, fomos caminhando até uma lanchonete a duas quadras dali, onde pedimos hambúrgueres ― ainda bem que eles tinham proteína de soja ― e milkshakes para comemorar o primeiro dia bem sucedido de feira.
― Sua mãe veio me cumprimentar hoje. Meu Deus, ela é bonita demais. Será que ela consideraria dar uma chance a essa pobre camponesa? ― Sophie inclinou a cabeça, encolhendo-se como se quisesse parecer mais fofa do que era.
― Soph, você não tá nem na faculdade ainda. Acho que você já sabe o que isso significa, né? ― rebati.
Assim como a maioria das pessoas da nossa idade, Sophie estava descobrindo e explorando sua sexualidade. Depois de alguns anos achando que havia algo de errado por não se interessar em garotos, Sophie entendeu que talvez seu lance fossem garotas e ela estava investindo pesado nisso para tirar o atraso de toda a sua adolescência. E, aparentemente, nem minha mãe escapava de seu radar.
― Será que quando eu oficialmente for de maior tenho alguma chance? ― e eu nos entreolhamos e a fitamos com as sobrancelhas franzidas. ― Que foi? Talvez mulheres mais velhas sejam a minha vibe. ― deu de ombros.
― Soph, a Antonella realmente é uma mulher muito bonita, mas ela literalmente tem idade pra ser nossa mãe. ― respondeu rindo.
― Quem não chora, não mama. ― deu um sorriso sugestivo e nós dois entendemos do que ela estava falando.
― Pelo amor de Deus, Soph, se a nossa amizade tem algum valor pra você, por favor pare. ― ri.
― Você só não quer ter uma madrasta legal como eu. ― após dois segundos trocando olhares sérios, nós três gargalhamos.
Nossos pedidos chegaram e, nos minutos seguintes, ficamos calados. O único som possível em nossa mesa era o das mastigações e das gargantas engolindo comida.
― Você tá com ketchup aqui. ― indicou sua bochecha para que eu soubesse onde se indicava a sujeira em meu rosto.
― Aqui? ― passei o guardanapo e, ao conferi-lo, percebi que estava limpo.
― Não. Aqui. Espera, eu limpo. ― pegou-o da minha mão, passando um pouco mais acima de onde eu tinha passado.
Observando-o, dei um meio sorriso em agradecimento assim que me devolveu o pedaço de papel um pouco sujo. O garoto sorriu em resposta.
― Por favor, arrumem um quarto. ― Sophie se manifestou do outro lado da mesa, bebendo seu milkshake. ― É sério. Se vocês negarem de novo que não tá rolando, ninguém vai acreditar.
― Mas não tem nada rolando. ― respondi.
Desta vez, não soltou nenhuma piadinha. Restringiu suas ações a voltar a comer em silêncio.
― Sei.
Quando terminamos de comer, retornamos ao estacionamento da escola para pegar o carro. Não fosse pela música que saía dos alto-falantes do veículo, conseguiríamos ouvir até o barulho de nossos olhos piscando, tamanho era o silêncio. Aparentemente, Sophie estava marcando um encontro, respondia mensagens de seus pais e eu apenas me concentrei em nos levar para casa em segurança.
Sophie foi a primeira a se despedir de nós. Em seguida, dirigi rumo às nossas casas vizinhas.
Mesmo que morássemos literalmente um ao lado do outro, sempre estacionava em frente a casa de antes de guardar o carro em nossa garagem.
― Prometo que vou parar, ok? ― soltou seu cinto de segurança.
― Parar com o quê?
― Com as brincadeiras. Só é legal quando nós dois nos divertimos. ― arqueei uma das sobrancelhas. ― Eu vi que você ficou desconfortável quando Sophie falou sobre nós. ― ajeitei-me no banco para olhá-lo um pouco mais confortável.
― Olha, , nós somos amigos há muito tempo e quantas vezes você me viu sair com alguém? ― por um segundo, o garoto realmente pareceu refletir sobre. ― Eu beijei um total de dois caras a minha vida inteira e, pra falar bem a verdade, fiz isso porque achei que estava perdendo alguma coisa por não fazer, sabe? Todo mundo fazendo e eu não… ― dei uma risadinha nervosa. ― O problema não é ser você brincando. Não me sentiria confortável se fosse qualquer outro cara.
― Por mim, tudo bem. Nem deveria estar fazendo esse tipo de brincadeira sendo que eu já gosto de uma pessoa. ― deu de ombros.
― Uh, é mesmo? ― por fora, fiz minha melhor cara de deboche, por dentro, senti uma pontada em meu estômago, como se alguém o alfinetasse.
― É. Mas eu ainda não sei se ela gosta de mim também, então, seguimos em um impasse até eu descobrir.
― E por que você só não pergunta a ela?
― Quero ter um pouco mais de certeza antes de abordar isso pra não correr o risco de ter entendido tudo errado e levar um fora histórico. ― contraiu os ombros.
― Não sei quem é essa garota, mas eu tenho certeza de que ela não recusaria você. ― deu um sorriso tão aberto que tive certeza de que não estava entendendo mais nada.
― É sempre muito bom contar com seu apoio, . ― beijou meu rosto e saiu do carro.
Incrédula, fitei suas costas até que entrasse em casa com um sorriso bobo estampado em meus lábios.

- x x x -


Na segunda-feira de manhã, andando pelos corredores da escola, avistei mexendo em seu armário enquanto conversava animadamente com Jullia, que estava encostada no armário ao lado. De todas as visões péssimas, horríveis e tenebrosas para se ter em uma segunda de manhã, esta certamente era a pior delas, uma vez que, desde o primário, Jullia não perdia uma única oportunidade de debochar de mim. Não importava qual o motivo. Podiam ser as minhas roupas, o fato de ser mais alta que maioria dos caras e, consequentemente, “não combinar com nenhum deles”... até o fato de meus pais não serem casados e se darem bem ela já tinha se aproveitado para ser irritante.
Se eu pudesse escolher alguém para dar uma surra, com toda a certeza do mundo ela seria a minha escolhida. Sem pestanejar.
Guardando meu material no armário e pegando apenas o essencial, fechei-o e dei de cara com do outro lado.
― Se cansou da sua nova amiga?
― Ela não é minha amiga.
― É o que todos os caras dizem em filmes de adolescente. ― zombei.
― Você sabe o que eu quis dizer, né?
― Na verdade, não.
― Você tá com ciúmes?
― Não sei se essa é a colocação correta. Digamos que eu não sou a pessoa preferida de Jullia. Na real, acho que sou a pessoa que nem entra na lista dela. A não ser que seja a lista de quem será a próxima pessoa com quem ela vai praticar bullying. Nessa, eu devo figurar quase todas as posições. ― debochei.
― De qualquer forma, não somos amigos. Somos colegas na classe de matemática.
― Você não precisa me dar nenhuma satisfação.
― Do jeito que você explanou sobre os conflitos de vocês, achei que incluir esse detalhe não faria mal.
― Ótimo. ― dei o assunto por encerrado.
― Tá tudo bem? ― parou a minha frente.
― A gente vai continuar falando dessa garota?
― Não, tô falando de você. Tá tudo bem? Lembro que você tinha dito há um tempo que tinha algo pra resolver com seus pais e, depois disso, percebi que você ficou meio avoada. Não conseguiu resolver?
― Bom, é uma longa história, mas resumindo, meu pai não é meu pai biológico.
― Mas isso tava meio na cara, não? ― franzi as sobrancelhas. ― Olha, , você pode nunca ter se dado conta disso porque ele é seu pai e você o ama, mas vocês não são parecidos. Na verdade, você é uma cópia perfeita da sua mãe. A única coisa que me diz que você é filha do é seu jeito manso de falar e a quantidade de vezes que você franze as sobrancelhas durante uma conversa, tipo como você tá fazendo agora. ― cobri minhas sobrancelhas com uma das mãos. ― Por favor, não as cubra. ― abaixou minha mão gentilmente. ― Acho incrível o tanto de coisas que você consegue dizer só fazendo isso. ― dei um meio sorriso. ― Enfim, temos duas opções: matar a próxima aula pra podermos conversar sobre tudo que está te incomodando e o que você tá planejando fazer sobre isso ou ir pra aula e cada um de nós morrer a sua própria maneira, você com vontade de desabafar; eu com curiosidade de saber todos os detalhes.
― Você tá sugerindo que eu estrague minha presença perfeita na aula de literatura?
― Não. Estou sugerindo que você passe um tempo com seu amigo. Você vê as coisas por uma ótica errada, . ― meneei a cabeça negativamente, segurando uma risada.
― E pensar que eu competia pra ser a melhor com você.
― Todo mundo sabe que você é muito melhor que eu, não precisa nem você fazer força.
― Até porque convenhamos que, se eu fizer força, te quebro no meio. ― rimos.
― Ok, capitã do time, vamos dar o fora daqui. ― com um pouco de dificuldade, pôs um dos braços sobre meus ombros e me guiou para fora da escola.
Sentados no meu carro, comendo batatinhas às 9h da manhã, ouviu tudo o que eu tinha a dizer sobre minhas mais recentes descobertas a respeito da minha família. Quando terminei, limitou-se a dizer:
― E qual é o plano?
― Por que você acha que eu tenho um plano?
, te conheço desde que a gente tinha 11 anos. Você sempre tem um plano.
― Isso é mentira!
― Tem certeza? Lembra daquela aula de química que a professora disse que ia dar prova surpresa, você ficou irritada e explodiu um dos experimentos só pra acabar com a prova?
― Mas ela foi injusta!
― É e eu não consegui salvar nenhum dos livros que estavam na minha mochila por causa dos sprinklers que foram acionados. Não foi seu melhor plano, ainda assim, foi um plano. ― suspirei.
― Ok, você venceu. Minha mãe me deu o nome dos dois outros caras que podem ser meu progenitor. Sei que um deles, John, fazia música, o outro, Victor, é engenheiro mecânico. Andei pesquisando na internet pelo nome, profissão e universidade onde estudaram. Achei quatro homens chamados John que cursaram música e tem uma idade parecida com a da minha mãe. Victor engenheiro mecânico, achei apenas dois. ― comecei a procurar meus históricos de busca no celular. ― Como você mesmo disse, sou uma cópia perfeita da minha mãe, então, talvez procurar por um homem que se pareça comigo não é o suficiente. O único fator determinante é, se minha pele é mais clara que a da minha mãe, significa que meu pai é mais claro que ela, certo? ― assentiu. ― Nisso, eu exclui dois John’s.
― Tá e como você vai proceder? Como você vai achá-los? Ou melhor, por que você só não mostrou os caras pra sua mãe e perguntou quem eles eram?
― Não queria incomodá-la com esse assunto de novo. Além do mais, não deve ser a coisa mais difícil do mundo, né? Os Victors que achei são donos de empresas em cidades vizinhas. Um John é professor de música em um conservatório musical e o outro toca saxofone em uma orquestra famosinha aí.
― Meu Deus, quanto tempo você ficou pesquisando tudo isso? ― franziu a testa, vendo-me mostrar todos os prints de tela que bati das informações que achei.
― A noite toda.
― E, depois de encontrá-los, o que vai fazer?
― Explicar a situação e pedir um teste de DNA, se eles estiverem de acordo.
Relaxando as feições preocupadas estampadas em seu rosto, parecia, agora, ponderar sobre as palavras que viriam a seguir.
, o quão importante pra você é isso? Pergunto porque, talvez você não esteja vendo, mas a sua abordagem tem grandes chances de não funcionar e, se não funcionar, você vai ficar frustrada. ― virou-se pra mim. ― Escuta, você já tem uma família, então, por que ir atrás de uma pessoa que você não tem nem ideia de como é?
― Porque eu sinto que a minha vida inteira foi uma mentira! ― rebati. Sem conseguir olhá-lo, descansei o olhar na rua à nossa frente. ― Eu sei que tenho um pai que me ama e que cuida de mim, mas e quem é essa outra pessoa? Ele nem sabe que eu existo! Assim como nunca contou pra mim, minha mãe também nunca contou pra esse cara que ele tem uma filha.
― Mas e se ele for um completo babaca? Você acha que vai conseguir lidar com isso?
― Considerando que, atualmente, ele não existe na minha vida, não vai fazer diferença se eu tiver que mantê-lo afastado depois de conhecê-lo. No máximo, vou ficar me perguntando como minha mãe teve coragem de transar com alguém ruim. ― riu.
― Tudo bem. Então, vamos?
― Aonde? ― fiz uma careta.
― Atrás do primeiro cara. Toca pro lugar onde ele trabalha. ― atônita, fiquei fitando-o para entender se aquela conversa era mesmo real. ― Garota, você tá esperando o quê?
, estamos em período de aula.
― Pelo amor de Deus, , você vem pra esse hospício todos os dias e estamos no final do ano letivo, você já foi aceita pela faculdade que quer. Vamos ter uma única aventura que seja nesses nossos traseiros nerds. ― arqueei as sobrancelhas e ri.
Jogando minha mochila no banco traseiro, dei a partida no carro e segui para o endereço do conservatório onde o primeiro John trabalhava.


#4

Não vai ficar melhor que isso
(Turn - The Wombats)


O conservatório musical se parecia com um internato qualquer, a diferença era que ali ninguém era obrigado a morar. O ambiente sofisticado intimidava os reles mortais como , que seguia em meu encalço, e eu.
Na recepção, pedi para falar com John Castleman. A recepcionista perguntou meu nome e, após ligar para alguém e informar que havia uma visitante que gostaria de falar com o professor, me disse para aguardar por alguns minutos. Olhando ao nosso redor, parecia maravilhado com o local, afinal, no fundo, seu sonho era estudar/trabalhar em um lugar como aquele.
― Quem de vocês queria falar com John? ― um homem alto de cabelos lisos e compridos, vestido com roupa social inteiramente preta se aproximava de nós.
― John Castleman? ― assentiu e eu estendi a mão para cumprimentá-lo. ― Eu sou e este é meu amigo, . ― o homem nos cumprimentou com apertos de mão e meios sorrisos.
― A que devo a honra?
― Bem, eu preciso de uma informação e talvez você possa me ajudar.
― Me acompanhem até minha sala, assim podemos conversar. ― guiou-nos por um curto corredor, abrindo uma porta à sua esquerda.
A sala era pequena, porém organizada. Atrás da mesa, haviam dois violões em suportes e um teclado desmontado. Exatamente como quando estávamos na recepção, continuava a olhar tudo ao nosso redor.
― Em que posso ser útil? ― sentou atrás da mesa, apoiando os braços sobre ela.
― Eu vou direto ao ponto. Você conhece essa mulher? ― mostrei uma foto antiga de minha mãe no celular para ele.
― Não. Eu deveria?
― Você e ela estudaram na mesma universidade.
― Tudo bem, mas, ainda assim, não a conheço.
― Certo. Então, quem tem assuntos a tratar é ele. ― apontei para .
― Eu? ― apontou para si mesmo, confuso.
― É. Fala logo que você quer estudar música.
! ― me repreendeu.
― Quem é que é contra na sua família? ― o homem à nossa frente questionou com um sorriso.
― Meus pais. ― respondeu hesitante.
― Para músicos, só existem dois tipos de pais: os que te incentivam e os que odeiam que você seja artista. ― rimos. ― Eles querem que você seja o quê? Médico?
― Engenheiro. A família inteira é.
― Quantos anos vocês tem?
― 18. ― respondemos em uníssono, nos entreolhando com as sobrancelhas franzidas.
― É uma ótima idade. Tem a vida inteira pela frente. ― sorriu. ― Vão pra faculdade?
― Sim.
― Não.
― Vai, sim. ― o repreendi.
― Na verdade, eu não sei. ― respondeu.
― Olha, se você tem dúvida sobre ir ou não para a faculdade, talvez esse não seja o seu momento. Existem muitas pessoas que decidem ir mais tarde e está tudo bem. As pessoas superestimam as experiências de quando estão lá, como se não pudessem vivê-las em outro lugar. E, alerta de spoiler, você pode, sim, ter essas experiências aqui fora também.
― E como exatamente funciona o conservatório?
― Você já toca alguma coisa ou é iniciante?
― Toco violino e arranho um pouco de piano.
― Ótimo. Então, acho que precisamos de um tour pela escola. ― levantou-se e o seguimos para fora.
Apresentando-nos cada sala, cada professor por quem passávamos pelo corredor e explicando a todo o processo de aprendizagem ao longo dos anos na instituição, o tour completo levou quase uma hora para ser finalizado. Vendo seus olhos brilharem, sabia que aquilo tinha alimentado algo dentro do meu amigo, que, sinceramente, eu esperava que não morresse assim que cruzasse a soleira da porta de entrada de sua casa.
Pegando um cartão de visitas que Castleman ofereceu a nós, nos despedimos do professor, adentrando no carro e partindo para o teatro onde aconteciam os ensaios da orquestra de John Waugh, mais conhecido como John número dois.

- x x x -


Diferente do conservatório, na recepção e na bilheteria do teatro não havia ninguém, entretanto, conseguíamos ouvir uma música soar bem alto já do hall de entrada. Aproveitando que não havia sequer um segurança para nos impedir, passamos pelas cortinas que levavam a plateia, sentando-nos na última fileira do meio. À um primeiro momento, nenhum dos músicos pareceu perceber nossa presença no recinto, uma vez que a música seguiu até o fim. Tão logo que a música acabou, o maestro bateu palmas, agradeceu a todos, cumprimentando um a um, que guardavam seus instrumentos nas cases e partiam, passando por nós com olhares estranhos. Os mais simpáticos diziam “oi” antes de sumirem pelas cortinas que levavam à saída.
O último homem sobre o palco trajava calça jeans e camisa completamente pretas, seus cabelos caíam sobre os ombros, formando algumas ondas pelo comprimento e assoviava uma música qualquer, desmontando o saxofone para guardá-lo.
De pé, caminhei rumo ao palco, sentindo a presença de em meu encalço.
― Com licença, você é o John? John Waugh? ― conferi seu nome no pedacinho de papel onde havia anotado o nome de todos os meus supostos pais.
Parando o que estava fazendo e virando a cabeça na direção da minha voz, o homem olhou-me com estranhamento.
― Sou eu. Algum problema? ― sua postura ficou ereta.
― Eu sou e esse é . ― apontei para o garoto por cima do meu ombro. ― Isso provavelmente vai te parecer muito, muito, muito estranho, mas você conhece essa mulher? ― mostrei a foto no celular.
Waugh pôs as partes que segurava de seu instrumento sobre a espuma da case e veio até à beira do palco, agachando-se.
― Tonya? ― franziu as sobrancelhas, desviando os olhos da tela para me olhar. ― Você é parente dela?
― Você se lembra dela?
― Claro que me lembro. ― deu um meio sorriso. ― Estudávamos em prédios vizinhos. Aconteceu algo com ela? ― seu tom se alterou para uma mistura de preocupação e desconfiança.
― Acho que essa não é bem a colocação correta. ― franzi os lábios. ― Eu sou filha da Antonella. ― guardei o celular no bolso.
― Você realmente se parece muito com ela. ― concordou.
― Todo mundo diz isso. ― dei de ombros. ― Mas, indo direto ao ponto, você se lembra que dela grávida na faculdade?
― Lembro que, depois de alguns meses que nos conhecemos, ela deu uma desaparecida. Não comparecia mais às festas e tal. ― seu olhar me dizia que estava revirando a memória, buscando o que sabia.
― Bom, o bebê que ela esperava era eu. E, por anos, achei que meu pai fosse o cara que sempre esteve lá e que eu chamava de pai, mas adivinhe só… não era. Então, em uma conversa franca com a minha mãe, ela disse que havia chances de você ser meu progenitor.
― Espera… quê? ― franziu o cenho, balançando as mãos em um sinal para que eu parasse de falar. ― Como assim?
― Você quer mesmo que eu explique? ― ironizei.
― Mas, se existia essa possibilidade, por que ela nunca me disse nada? Nós literalmente estudávamos em prédios vizinhos e ela sabia onde eu morava, meu telefone…
― Quem sabe? ― dei de ombros. ― Essas são perguntas que só minha mãe é capaz de responder.
― E exatamente o que você espera descobrir vindo até aqui e me contando todas essas coisas? ― lançou-me um olhar curioso.
― Um exame de DNA?
― Primeiro: por que eu pagaria por isso? Segundo: por que eu faria um exame de DNA? Até hoje mais cedo eu não tinha filho nenhum e até esses dias você tinha um pai. Acho que você pode voltar pra sua casa sem isso, né? ― incrédula, continuei a encará-lo.
― Se você está preocupado que eu vá pedir pensão ou que fique te incomodando pra ser meu pai, está muito enganado. Eu tenho um pai.
― Então, por que está aqui? ― aproximou-se um pouco mais de mim, questionando baixo.
― Porque eu acho que mereço muito mais do que a dúvida de saber de onde eu vim. ― minha feição facial se endureceu. Em minha visão panorâmica, estava próximo e seus olhos quicavam entre o músico e eu.
Minha voz não vacilou tampouco meu olhar se desviou, no entanto, dentro de mim haviam muitas dúvidas. Por que exatamente eu estava fazendo aquilo? Em uma única frase, John número dois havia deixado explícito que não era um cara tão legal quanto John número um e um resultado positivo não mudaria isso. Eu queria mesmo descobrir se era filha de uma pessoa que havia me tratado assim?
Waugh ficou por muitos minutos em silêncio, me analisando. Talvez estivesse esperando que minha postura mudasse ou algo do gênero.
― Foda-se, não sou obrigada a isso. ― dei as costas para o homem. ― Vamos, . ― começamos a caminhar rumo a saída.
Prestes a abrir caminho entre as cortinas, ouvi:
― Ei. ― virei na direção da voz sobre o palco.
John ainda sustentava aquele olhar desconfiado e analítico, observando a nós dois a distância.
― Tem certeza de que só quer saber quem foi que te fez? ― não sabia dizer se era só isso mesmo.
Quando me perguntava sobre o que mudaria na minha vida saber ou não sobre isso, a resposta geralmente era nada. Afinal, eu já tinha um pai que sempre esteve lá. Talvez só estivesse procurando pela decepção que ainda não tivera ao longo dos meus 18 anos, pois, se um homem como Waugh realmente fosse meu pai, havia quase 100% de probabilidade de apenas ter gasto gasolina e minha mesada do último ano inteiro em vão.
― Tenha certeza de que, se você for meu progenitor, eu não vou querer absolutamente nada de você. ― dei um sorriso debochado.
― Uau. Realmente não tem como dizer que você não é filha da sua mãe. ― sorriu, balançando a cabeça ― Enfim, você já tem uma clínica para fazer o exame? ― remexi minha mochila enquanto dava passos largos rumo ao palco.
― Sua coleta de sangue está agendada para amanhã, às 9h da manhã. ― entreguei o cartão de visitas da clínica em suas mãos.
― Mas eu acabei de aceitar. ― franziu o cenho.
― Você não é o único que minha mãe me disse que podia ser meu pai. ― ironizei.
Dando-lhe as costas outra vez, retomei o trajeto até a saída, sendo seguida por até o estacionamento do local.
― O que você vai fazer se ele for seu pai mesmo? ― questionou ao fechar a porta do carro.
Dei de ombros.
― Não pensei muito sobre isso.
― Pois deveria. , o cara é um idiota. ― suspirou. ― Quem são os outros caras?
― Os Victors. Estão em cidades vizinhas.
― E nós estamos aqui no estacionamento por quê?
― Você quer ir atrás deles agora? ― franzi as sobrancelhas e, ao vê-lo assentir, ri. ― Você tá ficando doido.
― Ué, mas não foi você que disse que marcou os exames?
― Marquei em dois dias: amanhã e depois. Como não sabia em qual ordem conseguiria convencê-los a fazer, marquei os dois primeiros exames no nome dos quatro.
― Como você conseguiu fazer isso? ― semicerrou os olhos.
― Pagando. ― dei de ombros. ― Não existe nada que você não consiga ameaçando ou pagando alguém. Palavras de Antonella Levy.
― Às vezes penso em contar pra sua mãe sobre seu comportamento estranho, mas aí eu lembro que é o mesmo tipo de comportamento que ela tem e desisto. ― dei um tapinha com as costas da mão em sua barriga.
― Palhaço.
― Já que você não quer ir procurar seu pai, acho que devíamos comer algo, ir ao cinema, fumar um, encher a cara, qualquer coisa.
― Da sua lista, só tem duas coisas que eu faria. ― sorriu.
― Eu sei, mas nunca é tarde pra ter novas experiências, certo? ― seus olhos tinham aquele brilho travesso que, vez ou outra, lhe tomavam o olhar. ― Eu tô pra conhecer alguém mais careta que os próprios pais. ― ri.
― Alguém tem que ser o ponto de equilíbrio daquela casa. ― olhei para as minhas mãos sobre meu colo, fingindo cutucar minhas cutículas. ― ?
― Quê?
― Posso te perguntar uma coisa?
― O que quiser.
― O que você acha de mim? Tipo, realmente…
― Que pergunta é essa? ― franziu a testa.
Pondo metade de uma perna sobre o assento, virei meu corpo em sua direção para vê-lo melhor.
Sentindo o peso de seu olhar sobre mim, dei de ombros.
― Não sei, eu só… ― passei uma das mãos pelo rosto, respirando fundo. ― Sei lá, às vezes, me sinto uma estranha, sabe? Como se eu não coubesse em lugar nenhum. ― encolhi os ombros.
― Já pensou que talvez você só não tenha achado seu lugar no mundo? ― ajeitou-se no banco, virando o tronco para mim e descansando a mão sobre meu joelho. ― , eu e você nos conhecemos há anos e sei o quanto você se cobra em relação à tudo. Se cobra pra ter boas notas, pra ser a melhor do time, pra ser uma boa capitã, uma boa amiga, uma boa filha… mas essa cabecinha aí tem sido um bom lugar pra se viver? O que eu quero dizer é que talvez seja hora de você respirar fundo e parar de se importar tanto com o que os outro vão dizer ou achar de você. Nós só temos 18 anos, nossa única preocupação deveria ser qual vai ser a próxima merda que vamos fazer antes de entrarmos na faculdade e começarmos a trilhar um caminho sem volta para a vida adulta. ― sorri.
― Você sempre sabe como melhorar meu humor.
― Seria muito mais fácil se você fumasse maconha. ― deu uma piscadinha e eu ri.
― Ok, vamos comer antes que você me convença de que nossa próxima parada tem que ser numa biqueira. ― endireitei a postura no assento, pondo a chave na ignição e ligando o veículo.
― Espera. Existe essa possibilidade de conseguir te convencer?
― Vou contar pros meus pais que você é uma péssima influência. ― pus o cinto de segurança.
― Tenho total certeza de que seus pais me apoiariam na ideia de que um baseado só te faria bem.
― Tá bom, Bob Marley. ― debochei, fazendo-o rir.
Tirando o carro do ponto morto, dirigi até a lanchonete mais próxima de onde estávamos.
Enquanto lanchávamos, e eu planejávamos como faríamos para encontrar e interceptar os Victors e como deveria ser a minha nova abordagem, uma vez que a usada com os Johns talvez não tivesse sido a melhor das minhas ideias.
No fim do dia, ao retornamos para casa e observando meu amigo caminhar pelo trajeto cimentado em meio ao gramado que levava à da sua frente de sua casa, agradeci mentalmente por poder contar com seu apoio. Não era todo mundo que tinha a mesma sorte que eu.


#5

Eu continuo cavando mais fundo em mim mesma, eu não vou para até chegar onde você está
(Graveyard - Halsey)


No dia seguinte, acordei determinada a ir atrás dos dois Victors que ainda não fazia ideia onde encontrar, por isso, de madrugada, antes de dormir, mandei mensagem para perguntando se poderia me acompanhar nesse segundo dia de buscas logo depois que eu fosse fazer a coleta de sangue para os testes de paternidade. Confirmando sua presença, fiquei mais segura em colocar meus planos em prática.
Após o banho e a troca de roupa, desci até a cozinha para tomar café e esperar pela chegada de para “irmos à escola”, como rotineiro.
Sentia a todo instante o olhar de minha mãe pesando sobre mim a cada garfada que que dava em minha porção de frutas.
― Se você quiser falar algo, esse é o momento. Só, por favor, para de ficar me olhando assim. Me deixa agoniada. ― dei um sorrisinho amarelo ao final da frase.
― O que você tá aprontando? ― apoiou o rosto em uma mão.
― Quê? Nada. ― dei de ombros, bebendo um gole de suco.
― Garota, não se faça de sonsa. Seu treinador ligou ontem perguntando por que você faltou e se estava tudo bem.
Suspirei, largando o garfo dentro da tigela.
e eu fomos atrás de uns caras que poderiam ser meu progenitor.
― Como assim? Mas vocês nem sabem como eles são! ― franziu a testa, confusa.
― Mãe, você sabia que existe uma coisa no mundo moderno que chama internet? Com ela fazemos coisas mágicas, inclusive, descobrir nomes de pessoas, local onde trabalham, onde estudaram e, com um pouco de sorte, dá pra descobrir onde moram também. ― ironizei.
― Me mostra quem são as pessoas. ― arqueei as sobrancelhas. ― Anda, garota. Vou facilitar o trabalho de vocês. ― tirei o celular do bolso do moletom, procurando minha galeria de fotos pelos prints de tela contendo as informações dos Victors.
― Só passar pro lado. ― entreguei o aparelho em suas mãos. ― Esses são os últimos dois da lista.
Vi-a fazer uma careta para tela.
― Que foi?
― Você acha mesmo que eu daria pra este homem feio? ― virou a imagem para mim.
De fato, o primeiro dos Victors tinha uma aparência duvidosa, entretanto, não poderia descartar ninguém, independente de quem quer que fosse. Além do mais, não tinha muita noção de como era o gosto pessoal da minha mãe para homens. Para mulheres, eu sabia, uma vez que meu pai e ela tinham se apaixonado por mulheres com exatamente o mesmo rosto.
Porém, não sabia dizer, por exemplo, o que a fez gostar do meu pai. Era a aparência, era o jeito, era a cumplicidade, a convivência? Na verdade, podia ser literalmente qualquer coisa.
― Não sei. Não entendo muito o seu gosto pra homens. ― dei de ombros.
Voltou a olhar para a tela, passando a imagem para o lado.
― Este aqui, sim. Pode ir atrás dele. ― entregou-me o aparelho com a foto do Victor número dois estampada.
― Mãe?
― Sim?
― O que você vê em uma outra pessoa?
― Como assim?
― Bom, você disse que já gostou do meu pai, mas, olhando pra ele, não sei dizer o que faria você gostar dele, entende? Ele tem várias qualidades, isso é fato, mas não sei dizer por que você se apaixonaria por alguém como ele. Ou como o Victor número dois, por exemplo.
Olhando em vários pontos no horizonte ao meu redor, parecia pensar sobre o assunto.
― Seu pai tinha aquele ar de mistério, de cara que você não sabe se ele tá mesmo interessado em você ou só tá sendo legal. Exatamente como a Serena, que eu nunca sabia se ela só queria me dar uns beijos ou se era algo a mais. ― cruzou os braços sobre o mármore da bancada à sua frente. ― Porém, assim como Vic, seu pai parecia bom demais pra mim. O tipo de pessoa com quem eu jamais entraria em uma relacionamento por ter certeza de que o destruiria. ― deu um meio sorriso amargurado.
― Você sabe que não é essa pessoa horrível que pinta, né? ― pus uma mão sobre seu braço.
― Você é suspeita falar. ― deu uma risadinha anasalada.
― E por que com a Serena você não tinha medo de se relacionar?
― Nós não tínhamos nada a perder. ― um meio sorriso se formou no canto de seus lábios e entendi o que estava dizendo. Pondo uma mão sobre a minha, continuou: ― Por favor, não endureça seu coração. Nem deixe que alguém faça isso com você. A vida é muito, muito, muito curta, filha. ― segurando minha mão, levou-a até seus lábios depositando um beijo sobre meus dedos. ― Não me importo com quem seja ou se ao menos vai existir alguém na sua vida, se você vai pra faculdade ou se vai largar tudo e viajar pelo mundo. Só quero que você seja muito feliz. ― ver seus olhos se marejarem enquanto falava me deixava nervosa por uma infinidade de motivos, mas principalmente porque conseguia contar nos dedos as vezes que vi aquilo acontecer e isso não só me deixava desconfortável, bem como sem ação.
― Como a gente veio parar aqui? Eu só queria saber o que te fazia gostar de um homem. ― brinquei, fazendo-a rir enquanto secava as lágrimas que se formavam.
― Já respondi sua pegunta. Apague a foto do Vic feio e vá atrás apenas do bonito. Aliás, você não está entrando sozinha locais fechados com homens adultos desconhecidos, né?
está me acompanhando.
― Não sei se devo ficar preocupada com isso, mas ótimo. ― deu um sorrisinho sugestivo ao mesmo tempo que surgiu em nossa cozinha, pronto para partimos.
Enquanto o garoto cumprimentava minha mãe, que lhe contava que sabia o que andávamos fazendo, porém que daria cobertura caso seus pais perguntassem, ajeitei minha mochila sobre os ombros e sinalizei a ele para que saíssemos.
? ― minha mãe chamou pouco até que sumisse de seu campo de visão.
― Quê? ― olhei-a e a vi mexer os lábios formando a frase “tem camisinha na sua bolsa?” Revirei os olhos e saí.
Colocando a mochila no banco traseiro do carro e sentei no banco do motorista. Ambos prendemos nossos cintos de segurança e partimos rumo à cidade vizinha.
Inquieto, colocou uma música qualquer para tocar no rádio e passou a batucar todas as melodias nas próprias pernas. Normalmente, isso seria mais que suficiente para me irritar e mandá-lo parar antes que eu o surrasse. Não desta vez. Só de ter concordado em vir junto comigo, meu vizinho já havia se tornado um ótima companhia. Além do mais, aproveitei que não estávamos conversando para pensar em como abordar Victor quando chegássemos lá.
Para conseguir falar com o homem, marquei um horário de atendimento, como se fosse uma cliente querendo contratar seus serviços. A bem da verdade era que eu não tinha certeza do que exatamente um engenheiro mecânico fazia, todavia, isso eram detalhes. Não era algo que precisava realmente saber, afinal, estava indo encontrá-lo para outras finalidades.
Depois de enfrentarmos um trânsito do caralho em uma das rodovias que precisávamos pegar para sair da cidade, chegamos à casa de Victor, onde atendia seus clientes, quase duas horas depois de termos saído da clínica onde fiz a coleta de sangue. Estacionei o carro em frente ao vasto da gramado que se estendia em frente à sua casa, que mais parecia um pequeno prédio. A construção branca com detalhes em prata era robusta, porém de muito bom gosto, com belíssimas flores ornando a varanda de entrada.
Saindo do carro, acionei o alarme e caminhamos até a porta. Hesitante e encontrando um pouco de coragem no olhar que me lançava, toquei a campainha e esperamos até que uma mulher alta de cabelos ondulados, pele tom de oliva e vestida de maneira relativamente formal abrisse a porta. O meio sorriso que estampava no rosto não escondia por completo a feição de estranhamento que se esforçava tanto para não demonstrar.
― Olá. Em que posso ajudar?
― Eu sou . Este é Olmo. ― ofereci a mão e ela me cumprimentou com um aperto, repetindo o gesto com . ― Nós temos um horário marcado com o Victor.
― Ah, claro. Ele está esperando por vocês. Entrem. ― deu-nos passagem e fechou a porta atrás de nós.
Atravessamos a elegante sala de estar e a seguimos por um longo corredor bem iluminado pela luz natural que adentrava pela grande vidraça ao nosso lado esquerdo. Ao fim do corredor, abriu a porta e nos deixou entrar.
― Chegaram seus clientes. ― anunciou. ― Vocês aceitam um chá?
― Sim. ― e eu respondemos em uníssono, trocando um olhar levemente espantado.
― Pra mim também, Gloria. ― Victor pediu com um sorriso simpático pouco antes da mulher sair do cômodo. ― Vocês são… ― remexeu em sua agenda, provavelmente, procurando onde havia anotado nossos nomes. ― e . Isso? ― assenti. ― Em que posso ajudá-los?
Olhando para meu amigo, esperei encontrar aquele pouquinho de coragem que só ele era capaz de compartilhar comigo. Quando o vi discretamente assentir para mim, me incentivando, tirei o celular de dentro do bolso, procurando pela foto de minha mãe na galeria.
― Você conhece essa mulher? ― pus o celular sobre a mesa, empurrando-o vagarosamente em sua direção.
O homem se inclinou de leve sobre a mesa, observando a imagem por alguns segundos. Em seguida, alternou o olhar entre mim e a foto.
― Você é parente dela?
― Filha. ― corrigi, franzindo os lábios involuntariamente.
― Você tem exatamente a mesma cara da sua mãe quando eu a conheci. ― sorriu. ― Ela está bem?
― Está. ― dei um meio sorriso em resposta, não dando continuidade a minha fala, pois a mulher que nos atendera estava de volta com o chá. No entanto, ao terminar de distribuir as xícaras entre nós três, ela não saiu novamente. Muito pelo contrário. Assumiu a cadeira na mesa que ficava do lado contrário do escritório. Ótimo. Ele trabalha com a esposa o dia inteiro.
― Ela ainda está com aquele amigo dela? ― franzi as sobrancelhas.
? ― chutei.
― Esse mesmo.
― Mas eles nunca estiveram juntos. ― não conseguia relaxar minha testa devido a preocupação com os rumos que aquela conversa estava tomando.
― Enfim, eu conheço a Antonella, mas o que exatamente você precisa saber? ― olhei sobre meu ombro para a mulher na outra mesa.
― Eu não sei se devo falar na frente da sua esposa. ― falei um pouco mais baixo, para que ficasse apenas entre nós três.
― Gloria não é minha esposa. ― respondeu em um tom brincalhão. ― É minha irmã. ― arqueei as sobrancelhas. ― É, eu sei. Sou bem mais bonito. ― deu uma piscadinha acompanhada de um sorriso bem aberto na direção da irmã, que lhe lançou um olhar fulminante em troca.
― Victor, você se lembra da minha mãe grávida na universidade?
― Com barrigão e tudo o mais, não. Mas sua mãe e eu saímos apenas uma vez depois de ela ter descoberto que estava grávida. Lembro perfeitamente de ter ficado pensando na possibilidade de ser meu, mas aí ela falou com tanta certeza que era desse amigo dela que descartei completamente essa ideia. ― e eu, mais uma vez, trocamos um olhar cúmplice.
― Bom, então, é aí que temos um problema. não é meu pai biológico e eu descobri isso há pouquíssimo tempo ao encontrar um um exame de DNA com mais de uma década que nunca tinha sido aberto. E, de acordo com as respostas da minha mãe quando perguntei a ela, você é um dos caras que possivelmente pode ser meu progenitor. ― suspirei.
Com olhos analíticos, o homem à minha frente parecia estar à espera de uma conclusão em meu relato.
― Depois que descobri isso, resolvi ir atrás de respostas. Quero saber quem é meu pai biológico. ― sequei o surto das mãos em minha calça. ― Não quero que pense que estou aqui porque quero alguém presente ou dinheiro ou qualquer coisa do tipo. Até porque eu já tenho um pai.
― Eu só fico me perguntando uma coisa.
― O quê?
― Por que Antonella nunca me disse nada?
― Isso é algo que só ela pode te responder. ― dei de ombros.
― Tudo bem, mas, se você não está aqui pelos motivos que geralmente levariam alguém a procurar o pai biológico, então, o que você quer?
― Olha, durante os primeiros anos da minha vida, eu não tive alguém a quem eu pudesse chamar de pai. Mesmo que na minha certidão de nascimento conste o nome de nesta figura, minha mãe não queria depositar essa responsabilidade nele. Acho que, no fundo, ela sabia que não era meu pai de verdade. Isso mudou quando eu tinha 6 anos por insistência dele, afinal, por mais que minha mãe não quisesse, já desempenhava esse papel paterno na minha vida, logo, não faria muita diferença se eu começasse a chamá-lo de pai. ― percebendo que estava divagando e não chegando a lugar algum, respirei fundo antes de retomar. Bebi um gole do chá que estava à minha frente e retomei: ― Eu só quero saber a verdade. É só. Não quero dinheiro, atenção, nem um novo pai. Só quero saber quem é a outra pessoa que me colocou no mundo.
Dando um meio sorriso, Victor quebrou o silêncio:
― Você é mesmo filha da sua mãe.
― Obrigada. Eu acho. ― franzi a testa.
― Isso foi um elogio, caso seja o que está pensando. Sua mãe sempre foi muito clara e muito direta no que tinha a dizer. E você certamente puxou isso dela. ― dei um meio sorriso orgulhoso. ― Enfim, o que quer que eu faça?
― Um exame de DNA. Já tenho a clínica e um horário marcado, só preciso que você compareça neste endereço ― entreguei o cartão de visitas da clínica. ―, às 8h30 da manhã, para fazer a coleta de sangue. Mas, claro, só se você concordar. ― o homem mordia a parte interna da bochecha encarando o pequeno cartão em mãos.
― Tá bom.
― O quê?
― Tá bom, eu faço. ― arqueei as sobrancelhas.
― Sem mais nenhum questionamento?
― Bom, na época que sua mãe me contou, eu achei que houvesse alguma chance, mas nunca foi confirmado por ela. Só que a situação muda de cenário a partir do momento em que você está aqui, sentada na minha frente me pedindo isso. Se nós dois temos dúvidas a respeito, não vejo por que não fazer. ― deu de ombros.
Franzi os lábios para baixo, acenando lentamente com a cabeça em concordância.
― Hã, Victor, isso era tudo que eu tinha a tratar com você. Não quero tomar seu tempo até porque você deve ter clientes a atender. Digo, clientes de verdade. ― dei uma risadinha nervosa.
― Quando o resultado sair, eu posso entrar em contato com você?
― Meu telefone está no verso do cartão. ― checou para ver se estava no mesmo instante. ― e eu precisamos ir. O resultado sai em duas semanas, então, até lá. ― estendi a mão em sua direção e o mesmo a apertou em um cumprimentou, dando um sorriso simpático.
― Foi um prazer conhecê-la.
― Digo o mesmo. ― sorri.
Após apertar a mão de , levantou-se de seu assento e nos acompanhou até a saída da casa em silêncio. Ao chegarmos a porta, pouco antes de sair, voltei-me para o mais velho com o indicador levantado, pronta para dar uma sugestão que, com toda a certeza, minha mãe reprovaria.
― Victor, você namora, é enrolado, tem pretendentes?
― Você é um pouco jovem demais pra mim, não acha? ― brincou.
― Na verdade, tem uma outra pessoa que eu acho que gostaria muito de te rever. ― deixei no ar, lançando-lhe um olhar sugestivo. ― Enfim, se quiser revê-la, o nome da empresa dela é Cellophane. Joga no google que você acha o número da presidente. ― arquei as sobrancelhas rapidamente, fazendo-o entender o que eu insinuava.
O homem riu e assentiu em resposta.
― Obrigado pela dica.
― Disponha. Até mais. ― acenei e parti, seguindo até o carro estacionado.
― Eu achei que seria mais difícil. ― o garoto assumiu seu assento no banco carona.
― Você pode achar que eu sou pessimista, mas eu sinto que o conflito ainda tá por vir, sabe? ― coloquei o cinto de segurança.
― Esperamos que pelo menos o positivo seja para o Victor e não para o John.
― Se Deus existe, que ele te ouça. ― ergui as mãos, fingindo fazer uma prece. ― E agora? O que fazemos? ― conferi a hora no meu celular. ― São 10h37. Até voltarmos vai ser próximo do meio-dia. Ainda podemos ir pra aula.
― Aula? Mulher, você só pensa nisso?
, eu quero me formar.
― É, mas contando ontem e hoje, você teve um total de duas faltas em quatro anos de ensino médio! Por favor, viva! ― ri do tom pseudo-desesperado que usou.
― Ok e o que você sugere, senhor descolado que falta aula todos os dias?
― Eu sei exatamente o que fazer.
― É mesmo? ― zombei.
― Toca pra cidade. ― batucou com as mãos sobre o painel do carro e eu ri, ligando-o e partindo rumo a rodovia que nos levaria para fora da cidade.
Presos na fila quilométrica de veículos, demoramos quase três horas para conseguirmos chegar à nossa cidade de origem. Na entrada do centro, me guiou pelas ruas sem me dizer para onde estava me levando. Quando me disse para estacionar, soube exatamente onde estávamos.
― É sério? ― semicerrei os olhos.
― Não reclama. Vamos. ― deu um tapinha sobre meu joelho.
Desafivelamos nossos cintos de segurança e entramos em nossa antiga escola de natação. Puta que pariu, hein?


#6

Tudo o que você sente em cada noite sozinha é porque precisa de mim
(Anything - Catfish And The Bottlemen)


Com nossas mochilas nas costas, adentramos no local. Não sabia o que ele planejava com aquilo, afinal, eu, pelo menos, não pisava ali desde que tinha 13 anos, logo, não havia um sentido lógico para a nossa visita.
Na recepção, cumprimentou um homem, que, apesar das feições joviais, parecia ser mais velho que nós e, muito provavelmente, era instrutor da escola. Trocando meia dúzia de palavras e com um aperto de mão que durou muito mais do que o normal, o garoto deu um último sorriso para o homem, caminhou em minha direção e segurou meu braço, me puxando pelo extenso corredor que levava às portas dos vestiários. destrancou a última que, pelo que me lembrava, era a piscina intermediária de reabilitação.
― Agora pode me explicar por que e o que estamos fazendo aqui? ― cruzei os braços, assistindo-o trancar a porta depois de entrarmos.
― Nate me deixa usar a piscina por uma hora sempre que quero por 20 pratas. ― largou a mochila sobre um dos bancos ao lado dos armários.
― Tá, mas ainda não explicou o que estamos fazendo aqui.
― O que se faz em uma piscina? ― indagou como se fosse óbvio.
, não sei se você notou, mas tá frio pra caralho.
― A piscina é aquecida.
― A gente nem tem roupa de… PELO AMOR DE DEUS! ― berrei ao vê-lo começar a tirar a roupa, dando as costas para ele. ― Podia avisar, né?
― Não é como se você nunca tivesse me visto sem camisa ou só de cueca. Eu não vou tirar tudo, pode olhar. ― dando uma breve espiada por cima do ombro, o vi de samba-canção.
Deixando as roupas ao lado de sua mochila sobre o banco, saiu andando rumo à piscina. Próximo a beirada, pulou na água, submergindo por inteiro. Ao voltar à superfície, passou a mão pelos cabelos para tirá-los do rosto.
― Você não vai entrar? A água tá ótima.
― Eu não tenho biquíni.
― Você tá de calcinha e sutiã, não?
― Eu não vou tirar a roupa na sua frente.
― Não é como se você nunca tivesse ficado de biquíni na piscina da minha casa, né?
― Mas é diferente.
― Em quê? ― a diferença era que, naquele dia em específico, eu estava com um sutiã rendado que deixava meus mamilos amostra sob o tecido. ― Se te tranquiliza, eu não vou olhar. ― virou de costas. ― Quando eu puder me virar de novo, me avise.
Revirei os olhos, dando-me por vencida.
Despi-me rapidamente, pois sabia que, se demorasse muito, talvez eu desistisse na metade e vestisse tudo de novo. Deixando minhas roupas amontoadas próximas a parede, entrei na piscina. só se voltou para mim depois que a água parou de se mexer por completo.
― Quero ver conseguir sair daqui depois. ― resmunguei, fazendo-o rir.
― Tem toalhas nos armários.
― É, mas eu não tenho roupa íntima reserva. ― franzi a testa.
― Nem eu, ou seja, somos dois fodidos, mas tudo bem. ― ri. ― Desde quando você… ― apontou para o próprio peito.
Abaixando a cabeça para ver a região onde seus olhos estavam fixos em meu corpo, entendi que o garoto falava da tatuagem de flor em meio aos meus seios.
― Ah, isso? ― sinalizei o desenho, vendo-o assentir. ― Fiz no verão passado. Sempre quis uma assim, mas não tinha coragem, aí meu pai disse que pagaria pra mim e ainda me daria 30 pratas se eu tivesse mesmo coragem.
― Seus pais são surreais mesmo. ― rimos. ― Mas ficou bem em você.
― Obrigada. ― dei um meio sorriso. ― Aliás, acho que não te agradeci por estar vindo comigo e tudo o mais, né?
― Não é nada demais.
― É, sim. É mais do que qualquer outra pessoa faria e você não tem obrigação alguma de estar aqui e, mesmo assim, veio.
― Como eu disse, nossos traseiros nerds precisam viver algumas aventuras. Além do mais, é isso que os amigos fazem, né? ― por algum motivo, ouvi-lo se referir a nós como meros amigos remexeu algo dentro de mim de um jeito não muito bom.
Incomodada não só com sua resposta, mas também com o que tinha causado em mim, limitei-me a responder:
― É, acho que sim. ― com um sorrisinho amarelo estampado no rosto.
Caímos em silêncio profundo. Por mais que não o estivesse encarando, conseguia perceber em minha visão panorâmica que não tirava os olhos de mim e isso me deixava um pouco desconfortável por uma infinidade de motivos.
Eu não era nem de longe a garota mais bonita que conversava com . Em relação às outras, arriscava a dizer que era uma das mais estranhas. Não tinha o corpo curvilíneo nem “a altura que uma garota atraente deveria ter”. Na verdade, era muito magricela e mais alta até que maioria dos garotos da minha idade, meus seios eram quase inexistentes e as curvas mais avantajadas presentes em mim eram dos cachos em meus cabelos. Sem contar que, apesar de já ter 18 anos, minha fisionomia dava a impressão de que eu deveria ter no máximo 14.
E poderia conseguir a garota que quisesse. Mesmo que fosse um dos caras mais nerds que conheci em toda a minha vida, por fora, ele só se parecia com qualquer cara descolado da escola, afinal, se vestia e agia como tal. Quando éramos mais novos, fazíamos natação juntos. Aos 14, o garoto largou para se dedicar inteiramente ao time de lacrosse da escola, atuando como defensor até o fim do ano anterior. Por isso, talvez fosse um dos nerds mais populares na história dos nerds.
― E aí? Já criou coragem pra falar sobre o assunto proibido na sua casa?
― A minha estratégia é a mesma de sempre: ficar em silêncio, me fingindo de morto até todo mundo esquecer essa história de universidade.
― Você sabe que eles não vão esquecer, né? ― semicerrei os olhos.
― Claro que vão.
, nós literalmente estamos no final do semestre. Em algum momento, essa conversa vai ter que acontecer.
― Não enquanto eu puder evitar. ― revirei os olhos.
― Faça o que quiser. Avisado você foi. ― dei de ombros.
Após milésimos de segundo calado e me encarando, passou a língua pelos lábios disfarçando um sorriso.
― Sabe, eu vou sentir muito a sua falta quando você for embora.
― Você fala como se eu fosse pra muito longe.
― Não é longe, mas sei como você é em relação aos estudos, então, tenho certeza que vai voltar pra casa bem menos do que esperamos.
― Não seja dramático. Você pode me visitar sempre que quiser. Podemos até ir à alguma festa juntos.
― Quem é você e o que fez com a ? ― debochou.
― Ué, mas não é você que vive me dizendo que eu preciso aproveitar mais a minha juventude?
― E é completamente verdade. Ignore a minha surpresa e vá em quantas festas você aguentar. Não faça nada que eu não faria. ― deu uma piscadinha.
― Ou seja, só não posso cometer homicídios. ― ironizei, me divertindo às suas custas.
― Você tem uma péssima imagem de mim, sabia?
, eu te conheço há tempo suficiente para saber das coisas que você é capaz de fazer.
― É mesmo? ― aproximou-se vagarosamente de mim.
Mesmo que uma vozinha no fundo da minha cabeça, vez ou outra, pedisse para que ele chegasse mais perto, naquele instante, fui atropelada por todas as minhas inseguranças e queria muito que mantivéssemos a distância de anteriormente. Parecendo ter ouvido meus pensamentos, estacionou a alguns centímetros de mim. Não estávamos tão próximos, todavia, estávamos mais perto do que deveríamos.
Seus olhos não se desgrudavam dos meus, como se tentasse ler meus pensamentos a todo custo. E, por um segundo, agradeci aos céus por ele não conseguir ler mentes, pois, em looping, meu cérebro só conseguia produzir suposições sobre como seria beijar sua boca e a sensação de suas mãos no meu corpo.
Não queria pensar em dessa forma. Não queria vê-lo assim, porém era mais forte do que eu.
A única coisa capaz de nos fazer acordar de nosso transe foi o barulho que a maçaneta de entrada do vestiário fez, anunciando que alguém tentava entrar no recinto. Entreolhamo-nos com os olhos arregalados. , com o indicador em frente aos lábios, me pediu para fazer silêncio. Assenti e seguimos com os ouvidos atentos, quase trancando nossas respirações para ouvirmos os barulhos do lado de fora.
Uma voz do outro lado falou um nome masculino mais alto, perguntando o que fazia ali e explicou que haviam aulas que precisavam de um professor substituto. Alguns poucos minutos depois, ouvimos passos e as vozes de ambos os homens se afastando. Suspirei de alívio e segui meu amigo para fora da piscina.
Andando a passos largos e ligeiros até o vestiário, lançou uma toalha em minha direção, que segurei próxima ao meu peito, passando a me secar muito rápido.
― Parece que vamos encerrar nosso passeio com a adrenalina que faltava. ― debochou e eu ri.
― Nossa, eu te odeio, sabe?
― Tudo bem. Eu posso viver com o peso de ser odiado por você. ― deu de ombros, parando de se secar e me encarando. ― Pelo menos eu te provoco algum sentimento. ― deu um meio sorriso.
Balancei a cabeça negativamente, segurando um sorriso.
Após me secar mal e porcamente, procurei pelas minhas roupas, quase entrando em desespero. Entretanto, lembrei de tê-las deixado na área da piscina e respirei aliviada de não ter que voltar seminua para casa. Ao juntar minhas roupas do chão, as vesti e retornei para o vestiário, arrumando minha mochila. Prestes a colocá-la sobre meus ombros, algo caiu de um dos bolsos, chamando nossa atenção.
Mais do que depressa, se abaixou e juntou o maço de cigarros, mostrando-o para mim.
― Andou guardando os contrabandos do seu pai? ― brincou.
Apreensiva, peguei a caixa de sua mão e enfiei no bolso do meu casaco, sem nada responder. Com um olhar desconfiado, continuou a me observar por alguns segundos antes de dizer:
― Não é do seu pai, né? ― mordi a parte interna da bochecha. ― Quem diria, hein? , gostosa, tatuada e fumante? Por essa, nem eu esperava.
― Idiota. ― revirei os olhos, caminhando para a porta.
― Ei, ei. Calma. É só brincadeira. ― deu alguns passos mais rápido que eu para se meter entre mim e a porta. ― Não precisa ficar brava. E, não se preocupe, sei que, se você não me contou, é porque ninguém sabe, então, também não vou contar pra mim.
Franzi os cantos dos lábios em uma tentativa de sorriso.
O garoto vestiu a camiseta, pôs a mochila sobre os ombros e destrancou a fechadura. Antes de sairmos, colocou a cabeça em meio à uma fresta na porta, olhou para ambos os lados e, ao constatar que estava tudo bem, saímos apressados pelo corredor.
Na recepção, rapidamente entregamos a chave para Nate e fomos embora.
Nosso retorno para casa foi do mais pleno e total silêncio. Meu amigo não falou absolutamente nada sobre os cigarros nem batucou os dedos no ritmo da música que saiu dos alto-falantes do carro, tampouco fez piada sobre nossas bundas molhadas.
Ao deixá-lo em frente à sua casa, estacionei o carro na garagem da minha, lendo a mensagem que minha mãe me mandara, avisando que ficaria fora até mais tarde e poderia usar seu cartão de crédito para pedir comida se quisesse.
Cansada subi para o meu quarto, joguei a mochila em um canto, tirei o casaco e as calças molhadas. Catando nos bolsos o maço de cigarros, tirei um de dentro da caixa, acendendo-o com o isqueiro. Sentei no parapeito da janela para observar a noite caindo e para que a fumaça não impregnasse em meu quarto.
Quando sentia muita vontade de fumar, ponderava que talvez experimentar tivesse sido uma das ideias mais idiotas que tive em toda a minha vida. Eu vi ao longo de muito anos a batalha que era para meu pai tentar parar. Sempre, ao fim de um curto período, retomando o velho hábito. No entanto, ao pesar em minha balança imaginária, ter algo com o que me distrair em momentos de crise me fez mais bem do que mal. Pelo menos conseguia desviar meus pensamentos durante os minutos que levavam para queimar um cigarro por inteiro.
Ouvindo meu celular vibrar, desci de onde estava, com o cigarro posto entre os lábios, para encontrá-lo. Atendi ao notar que era quem me ligava.
― Apesar de ser um hábito péssimo, você fica bonita quando fuma. ― olhei pela janela e o vi na sacada de seu quarto.
― Estava me espionando de novo? ― questionei, tirando o tabaco da boca e voltando a me debruçar sobre a janela para soltar a fumaça.
― Você parecia um pouco… nervosa por eu ter descoberto seu segredinho, então… ― deixou a frase morrer.
Sim, estava nervosa por ter sido descoberta. Todavia, também estava nervosa por precisar urgentemente de um cigarro e por ter ficado tão próxima dele.
Ultimamente, a mera presença de me deixava agitada e eu queria muito não me sentir assim.
― Eu tô bem. Acho que só precisava fumar. ― mostrei o cigarro em minhas mãos para ele.
― E ainda você ficou falando mal do meu baseado. ― fingiu indignação. ― Pelo menos eu não vou morrer de câncer no pulmão.
― Isso é o que você pensa. ― brinquei.
― Seus pais surtariam se descobrissem que você fuma? Por isso, você esconde?
― Na verdade, acho que eles ficariam decepcionados. Faz pelo menos uns 10 anos que meu pai tá tentando parar, mas nunca consegue. O máximo que conseguiu foi reduzir, o que já é algo, né? ― contraí os ombros. ― E eu odeio decepcioná-los.
― Às vezes, você se cobra tanto em relação aos seus pais que parece que eles são pessoas totalmente diferentes do que realmente são.
― Eu só não quero virar uma rebelde sem causa, sabe? ― traguei o fumo longamente. ― Sim, eles são legais, mas nem por isso eu posso sair por aí fazendo tudo o que me dá na telha sem considerar os sentimentos deles, né?
― Mesmo fumante e tatuada, no fim do dia, você é uma boa garota, . ― sorriu.
― É. Acho que sim. ― dei um meio sorriso, abaixando a cabeça. ― Bom, eu não sei você, mas eu preciso de um banho urgentemente. ― apaguei o cigarro na parte metálica da janela.
― Tudo bem. Se tiver mais algum segredo que queira me contar depois, você sabe meu número.
― Você tá bem engraçadinho hoje, né?
― É o meu charme. ― ri.
― Tchau, . ― o cortei e desliguei, ainda rindo.
Pegando meu pijama de cima da cama, fui para o banheiro.
Joguei a bituca do cigarro no vaso sanitário e dei descarga. Não era burra o suficiente para jogá-las no lixeiro comum, mesmo que minha mãe pensasse que havia sido obra do meu pai.
Tirei o resto das roupas molhadas do corpo e entrei no box, deixando a água quente escorrer pelo meu corpo por inteiro. Aproveitei para lavar os cabelos que, além do cheiro de cloro, agora também cheiravam a fumaça de cigarro. Ao terminar, me sequei e me vesti, levando as roupas molhadas para a lavanderia. No estado em que estavam, gerariam perguntas e eu não estava a fim de responder nenhuma.
De volta ao meu quarto, me joguei na cama e me cobri. Por mais que meus olhos ardessem de cansaço, demorei muito tempo para conseguir pegar no sono. Meus pensamentos começavam em e logo se chocavam com as minhas preocupações acerca dos resultados dos exames de paternidade. Não se demorando tanto nesse assunto, como um controle remoto que zapeia canais na TV, meus pensamentos voltaram para e seu sorriso de garoto sapeca. e seus cabelos cacheados com alguns dreads na parte da frente. e seu arsenal de piadas sobre absolutamente qualquer assunto.
Porra de garoto bonito.
Com uma sensação de toque muito vívida nos meus seios, acordei assustada.
Conferindo a hora no relógio, eram 2h14 da madrugada e o motivo do meu susto tinha nome, um rosto e era meu vizinho.
Estava se tornando cada vez mais comum sonhar com . Em todos os sonhos, acabávamos, pelo menos, nos beijando. Contudo, desta vez, estávamos um pouco mais adiante. Uma de suas mãos estava sobre um dos meus seios enquanto a outra estava ocupada me masturbando.
Com a certeza de que não conseguiria pegar no sono de novo tão cedo, levantei-me, acendi outro cigarro e abri a janela do quarto a fim de soltar a fumaça na rua.
Precisava levar esse tormento para a terapia antes que fosse engolida por todos esses sonhos. Will já tinha me ouvido mais de uma vez a respeito da minha sexualidade e da minha dificuldade em desenvolver e demonstrar afeto.
Eu sabia que, assim como afirmado pelo meu pai, não deveria me sentir incomodada por não estar tendo as mesmas experiências que outras pessoas da minha idade supostamente estavam tendo. Sabia que devia respeitar meu tempo e tudo o mais. Porém era simplesmente impossível não me sentir afetada em relação à minha virgindade.
Boa parte da razão pela qual seguia virgem era por nunca ter me interessado por ninguém o suficiente para querer sair e ter algo com essa pessoa. Entretanto, pouco a pouco, passei a perceber que os garotos não pareciam se sentir atraídos por mim, o que acabava minando minha baixa confiança em relação à minha aparência.
E, mesmo que me sentisse relativamente angustiada com todas essas conclusões, ainda não me sentia pronta para deixar que outra pessoa tocasse meu corpo.
Ai, ai, nada como um inferno pessoal dentro da própria cabeça, não é mesmo?
Quando o primeiro cigarro acabou, acendi outro, fumando-o mais rápido e indo tomar um segundo banho. Precisava esconder os vestígios de fumaça e de tesão que me impediriam de dormir em paz se o fizesse.
Às 3h27 voltei para cama, mas só consegui adormecer quase duas horas depois.
Vida de merda.


#7

Por que você está com tanto medo?
(Afraid - POORSTACY)


― Como foram suas últimas duas semanas?
― Conclui que meu destino é morrer virgem, então, não sei se me mato agora ou se espero até a terra resolver me sugar pra dentro de si. ― debochei, jogando-me sobre a poltrona em frente a Will para iniciarmos mais uma de nossas sessões.
― Ok. Já temos a resolução dos problemas, mas o que acha de me contar como chegou a ela? ― brincou.
― Eu sei que a gente já conversou um monte de vezes sobre esse assunto e que parecia ter sido solucionado da última vez, mas não sei o que tá rolando que tudo que eu consigo pensar é: e se eu morrer virgem porque ninguém quer transar comigo?
― E esses pensamentos são aleatórios, vieram do nada mesmo? ― suspirei.
― Então… digamos que não é tão aleatório assim. ― comecei a estalar os dedos de nervosismo. ― Tem esse garoto, ... já falei dele pra você, não?
― O seu vizinho?
― Esse mesmo. Bom, depois que eu descobri sobre meu pai não ser meu pai, decidi ir atrás do cara que é meu pai e quis ir junto comigo. E foi muito legal ter o apoio de alguém nesse momento e tal, só que aí chegamos no problema. e eu somos amigos desde os 11 anos e, por algum motivo, eu comecei a ter sonhos estranhos com ele.
― Estranhos como? Do tipo você matando ele ou do tipo erótico?
― Mais o segundo tipo. ― respondi, sentindo um calorzinho se instalando em minhas bochechas.
― E você nunca os tinha tido antes?
― Não com a frequência de agora.
― E por que isso te incomoda?
― Primeiro porque, como eu disse, somos amigos. Segundo porque, eu sei que não posso fazer as coisas por pressão externa e também não me sinto completamente pronta pra… fazer isso com alguém, mas parece que o fato de ser virgem e de os garotos não se interessarem por mim fizeram um acordo pra me engolir viva.
― Você acha que o também não se interessa por você?
― Eu não acho. Eu tenho certeza. Às vezes, ele até faz umas brincadeiras comigo, mas eu sei que é só isso. Brincadeiras. Ele pode ter a garota que quiser.
― E por que você acha que a garota que ele quer não pode ser você?
― Will, querido, olha pra mim, sabe? Eu sou a personificação humana do boneco de ar dos postos de gasolina: alta, magricela e com cara de boba. ― arregalei os olhos, abrindo os braços.
, me parece que o problema maior nessa história toda é a sua insegurança. Em todos as vezes que conversamos sobre sua sexualidade, sobre relacionamentos e afins, um dos aspectos que parece sempre se sobressair é que essa preocupação por não ter iniciado a sua vida sexual tem muito mais a ver com o fato de não se achar interessante o suficiente para tal do que algo sobre o que os outros vão pensar de você. ― ajeitou-se na poltrona, anotando algumas coisas em sua caderneta antes de voltar a me olhar. ― Parando para analisar tudo o que sente em relação a esse garoto em específico, você acha que é só desejo ou é algo a mais?
A verdade é que eu não tinha parado para refletir sobre.
Os primeiros itens que minha me vinham à mente eram todas as vezes que tinha acordado excitada de sonhos eróticos, dos quais sempre me questionava como minha mente conseguia produzir tais sensações no resto do meu corpo, uma vez que nunca tinha provado transar com ele nem com qualquer outra pessoa. Em seguida, vinham as vezes que tinha sucumbido ao desejo e me masturbado pensando nele ― mesmo que tentasse a todo custo desviar meus pensamentos dele. Todavia, depois de todas as camadas de tesão, me lembrava da sensação de alegria e do peito aquecido todas as vezes que sorria para mim e que insistia em ter a minha companhia.
Meu Deus…
― Nunca pensei muito sobre isso. ― omiti.
― Ok. ― anotou mais algumas coisas em sua caderneta. ― Eu vou te propor um exercício.
― Ah, não. ― franzi a testa. ― Eu tenho mesmo que fazer?
― Como quase tudo na vida, você não é obrigada. É apenas uma proposta e você decide se vai colocá-la em prática ou não, ok? ― bufei.
― Tá, fala. ― cruzei os braços em frente ao peito.
― Já que, aparentemente, existe essa dúvida sobre ele gostar ou não de você, quero que o chame pra sair.
― Quê? Como assim? A gente já sai o tempo todo juntos. ― arqueei uma das sobrancelhas estranhando.
― Sim, porém como amigos. Dessa vez, você vai chamá-lo pra um encontro.
― Quê? Não, eu não vou fazer isso! ― rebati rápido.
, calma. Como eu disse, é só um exercício. Você faz se quiser e quando quiser.
― Nós acabamos? ― tentei não soar irritada, no entanto, era bem difícil quando eu realmente estava irritada.
― Por hoje, sim. Me mantenha informado caso decida cumprir com o exercício, ok? ― assenti, passando a língua pelos lábios.
Levantei-me do assento conferindo se não havia deixado nada cair, acenei para Will e fui embora. Naquele dia em questão, estava de carro e, ainda bem, ninguém iria me buscar. Não estava com a menor paciência para explicar o que quer que fosse para quem quer que fosse.
Ligando o som do carro, aumentei o volume ao constatar que a primeira música em modo aleatório era I Don’t Sleep, do Sarcastic Sounds, o que era, no mínimo irônico, uma vez que estava realmente tendo problemas para dormir devido aos constantes sonhos com e a falta de certeza sobre meus sentimentos em relação a ele. Entretanto, o que era mais engraçado era o fato de a música ser sobre uma insônia causada por não saber quais eram os sentimentos da outra pessoa em relação à você, pois enquanto você sonha com ela, ela sonha com os próprios dentes caindo, o que pode ser interpretado como um presságio de morte.
Onde eu queria chegar com todos esses pensamentos? Não sei, contundo, foi o que deu pra achar durante o pouco mais de um minuto da música.

- x x x -


Duas semanas depois, tudo que eu ainda conseguia pensar se dividia em dois tópicos: o resultado dos exames de DNA de John e Victor e a possibilidade de chamar para ser meu par no baile de formatura. Por vezes, o segundo tópico até se sobressaía muito mais que o primeiro na quantidade de tempo perambulando pela minha cabeça.
Eu não odiava festas, mas não eram o meu evento social preferido. Tanto que não tinha comparecido a nenhum baile oferecido pela minha escola em nenhum dos anos que estudei lá. Porém, desta vez, estava considerando comparecer mesmo que não aceitasse meu convite, pois aquele era meu último ano e eu teria tempo suficiente para ser uma adulta amarga depois de me formar.
As coisas estavam tão doidas na minha mente que nem quando a carta de confirmação da minha matrícula na universidade chegou consegui me desfocar dos dois itens principais que me guiavam através dos dias.
Naquela sexta-feira tudo parecia estar dando errado desde o momento em que acordei atrasada. Meu celular não tinha despertado, pois o carregador estava com mal contato e não carregou a bateria ao longo da noite. Levantei num pulo quando minha mãe bateu à porta, questionando se já estava pronta porque já estava me esperando na sala para irmos para a escola.
Ensandecida, vesti meu conjunto de moletom do time, escovei os dentes, lavei o rosto, amarrei os cabelos e saí com a mochila sobre um único ombro.
Sabendo que eu estava atrasada, minha mãe jogou as chaves do carro pra mim e acenou, nos desejando um bom dia. Com em meu encalço, fui para a garagem, destravei as portas do veículo, jogando a mochila no banco traseiro ao mesmo tempo que o garoto. Dando a partida, seguimos para a escola.
O dia foi todo esquisito, como sempre o é quando estou sem celular. A sensação é de sempre estar perdendo algo ou de que todos sabem alguma coisa que ainda não sei. E isso se mostrou verdade ao término das aulas, quando fiquei sabendo por uma colega que o treino de handebol havia sido cancelado e eu era a única que não sabia de nada.
Rodando a escola atrás de , o encontrei na sala de robótica, de jaleco e óculos de proteção, mexendo em um de seus últimos protótipos.
― E aí, nerd? Vamos pra casa?
― Ué, não foi pro treino? ― virou-se, erguendo os óculos para me olhar.
― Cancelaram por causa da dedetização do ginásio e eu era a única que não sabia de nada.
― Parece que seu maior medo se concretizou, hein? Todo mundo saber de algo que você não sabe porque está sem celular.
― A vida é muito cruel comigo. ― rimos.
― Ou você é muito regrada. Veja o cancelamento do seu treino como uma dádiva. Um direito ao descanso. ― rebateu, tirando os óculos e o jaleco, dobrando-o e guardando dentro do armário ao lado da mesa. ― Tô pronto. ― pôs a mochila sobre os ombros e caminhamos para a saída juntos.
No estacionamento, pus nossas mochilas no banco traseiro pela segunda vez no dia enquanto , após ter posto o cinto de segurança, começou a mexer no aparelho de som para conectar seu celular, por fim, colocando SAD GIRLZ LUV MONEY, da Amaarae e Moliy para soar pelos alto-falantes.
― A festinha começou cedo, né? ― , hoje é sexta-feira, se permita ser uma adolescente feliz pelo menos uma vez na sua vida. ― ri, balançando a cabeça negativamente, dando a partida no carro.
Cantarolando durante todo o trajeto, segui seu conselho e me permiti ser uma pessoa feliz até chegarmos em frente à sua casa, onde, decididamente, iria convidá-lo para ser meu par no baile.
? ― desliguei o carro, após puxar o freio de mão em frente ao gramado sempre bem aparado de sua casa.
― Quê? ― tirou o cinto de segurança.
― Você… quer ir no baile comigo?
― Baile? No baile de formatura? ― franziu a testa.
― É.
― Achei que você achasse eles a coisa mais brega do mundo. ― deu um meio sorriso.
― Eu acho. Mas você, meus pais e até o Will vivem me dizendo o quanto preciso relaxar e eu realmente acho que preciso. ― meus ombros estavam começando a doer de tensão. ― Enfim, é nosso último ano e é minha última oportunidade de ser rabugenta em um local público, cheio de pessoas que conhecemos desde sempre. ― riu.
― Sim.
― Sim o quê? ― franzi as sobrancelhas.
― Eu adoraria ir ao baile com você. ― trocamos um sorriso. ― Fico feliz que tenha me escolhido para participar desse momento icônico que vai ser você indo pela primeira vez em um baile escolar.
― Calado. ― cutuquei com o cotovelo, rindo.
― Preciso ir. Nos falamos mais tarde? ― pegou a mochila no banco de trás.
― É. Tchau. ― acenei timidamente, vendo-o corresponder o gesto.
Como se tivesse tirado um peso de cima de mim, relaxei os ombros e suspirei de alívio.
Vendo a silhueta de um homem estranho na porta da minha casa, estacionei o carro na garagem, saindo de lá o mais rápido possível.
A alguns metros de distância, sabia exatamente de quem se tratava.
― Victor?
― Ah, oi. ― sorriu, virando-se pra mim. ― Desculpe aparecer assim. Eu tentei te ligar e te mandar mensagem mais cedo, mas…
― Eu estou sem celular hoje. Aconteceu alguma coisa? Ou, melhor, como você sabia onde eu moro? ― franzi as sobrancelhas e semicerrei os olhos.
― Bom, não é muito difícil. Joguei seu nome no google pra achar alguma rede social sua e apareceram várias outras coisas. ― arqueei as sobrancelhas. ― Inclusive, isso pode ser um pouco perigoso. Enfim, eu vim aqui por causa do resultado do exame. Ele saiu hoje e, como você não me respondeu, achei que ainda não sabia. ― ofereceu o grande envelope para mim.
Querendo saber o resultado, mas com muito medo do que fosse encontrar lá, peguei-o em mãos e abri lentamente, arrastando a folha para fora hesitantemente. Lendo as palavras impressas uma a uma, o mais devagar que conseguia, estava tentando evitar o inevitável.
Positivo.
, aconteceu algo? Ouvi barulho do carro e… ― minha mãe saiu pela porta da garagem falando pelos cotovelos, porém pareceu congelar ao ver Victor à minha frente. ― Vic? ― seu rosto era uma máscara de surpresa.
― Oi, Tonya. ― acenou.
― Mãe, é… acho que precisamos convidá-lo pra entrar. ― estendi o resultado do exame para ela, que analisou até o fim.
― É, eu também acho. Vamos entrar? ― acenou com a cabeça em direção à porta de casa para Victor.
Concordando silenciosamente, o homem nos seguiu para dentro de casa.


#8

A realidade está sobre nós
(Violent Crimes - Kanye West ft. Ty Dolla Sign, 070 Shake & Nicki Minaj)


― Vic, estes são , o pai da , e Samantha, a esposa dele. ― tive a impressão de ouvi-la enfatizar a palavra “pai” e, por um segundo, tive a sensação de que os conflitos que achei que ainda estavam por vir estavam mais próximos do que imaginei que estariam um dia.
― É um prazer. ― apertou a mão de ambos para cumrimentá-los. ― Bem, me desculpem por ter vindo aqui sem avisar. Acho que estou atrapalhando algo, né?
― Não, de forma alguma. ― meu pai se manifestou. ― Nos reunimos pelo menos uma vez a cada 15 dias para um jantar em família.
― Compreendo. ― deu um meio sorriso. ― De qualquer forma, dadas as circunstâncias, vim até aqui porque acho que precisamos conversar. ― dirigiu-se a minha mãe.
Meu pai, tia Sam e eu assistíamos aos dois como se assistíssemos uma partida de tênis, vendo a bola saltar de um lado para o outro.
― Seja lá o que você tem a dizer, pode ser aqui e agora. é adulta e a iniciativa de procurar o pai biológico foi dela; é o pai dela na certidão e a criou como tal; Samantha, desde que conheceu , ajudou a cuidar de sempre que possível. Creio que não haja algo a esconder deles.
― Bom, mas… acho que eu me importo de discutir sobre isso na frente de outras pessoas, afinal, foi você que não me contou sobre a possibilidade de termos uma filha juntos. ― usou de um tom levemente mais ríspido.
― Então, não há muito que eu possa fazer. As pessoas mais interessadas neste assunto estão aqui e eu jamais excluiria nenhuma delas desta discussão.
― Isso é estranho pra caralho. ― resmungou com um sorriso irônico nos lábios, passando a mão no queixo e alternando o peso do corpo entre as pernas.
― Como é? ― minha mãe franziu as sobrancelhas com os braços cruzados em frente ao peito.
― Pra vocês isso aqui pode parecer, ok, mas não é algo que estou acostumado. ― aquela frase fez minhas feições endurecerem. Tinha quase certeza de que sabia do que ele falava.
― Isso o quê? ― questionei e seu rosto automaticamente pareceu perder a cor. ― Me corrija se eu estiver errada, mas você está insinuando que somos estranhos? ― dei um sorriso debochado ao final. ― Olha, cara, como eu te disse, só fui atrás de você porque queria saber quem você era. Nunca quis e nem quero nada de você, seja material ou afetivo. Tudo que eu preciso está aqui, com minha mãe, minha madrasta… ― caminhei até meu pai e dei um beijo em seu rosto, passando o braço por cima de seus ombros. ― e meu pai. Então, se você veio aqui fazer algum tipo de cobrança ou nos insultar, eu sugiro que vá embora agora mesmo.
― Vamos. ― minha mãe se pronunciou depois de alguns segundos o encarando séria, andando rumo, provavelmente, ao seu escritório.
Parou alguns passos depois, olhando para trás, vendo o homem ainda estático no mesmo.
― Vai continuar aí? ― parecendo acordar de um transe, seguiu-a, desaparecendo pelo corredor.
― Incrível como os anos se passaram e sua mãe ainda consegue assustar qualquer homem que tente bancar o machinho pra cima dela. ― meu pai brincou, fazendo a mim e tia Sam rirmos. ― E eu estou orgulhoso de você, filha. ― pôs a mão sobre meu ombro, pressionando-o.
― Realmente, foi muito bonito, querida. ― tia Sam imitou seu gesto.
― Bom, se a gente parar bem pra pensar, o caos foi instaurado por mim, né? Fui eu que comecei essa história de ir atrás dele.
― Filha, a culpa não é sua, ok? Você tem todo o direito de querer saber a verdade e todos nós sabíamos que, se você descobrisse quem era, situações como essa poderiam acontecer.
― Mas é isso que eu tô dizendo. Por que eu tinha que ir atrás de outra pessoa sendo que minha família já tá aqui?
, escuta. ― tia Sam me fez olhá-la. ― A vida é feita de erros e acertos. E os erros são numerosos, mais do que cabem nos dedos das nossas mãos. Estou dizendo que o que você fez foi um erro? De forma alguma. Você queria saber a verdade e você tinha todo o direito porque faz parte da sua história e de quem você é. Seus pais fizeram o que acharam que era o melhor e mais correto, mas todas as nossas ações tem muitas consequências, boas e ruins. Cabe a nós aprendermos a lidar e fazer delas nossas lições de vida, ok? ― assenti.
Mesmo, por fora, concordando com ambos, ainda assim, não conseguia parar de me culpar dentro da minha cabeça. Afinal, sim, tinha sido total e inteiramente minha culpa. Se eu não inventasse de conhecer quem era meu pai biológico, nenhum deles teria sido arrastado para essa confusão, principalmente, minha mãe, que estava lidando, literalmente, com o seu passado.
Longos minutos se passaram, que, logo, se transformaram em uma hora.
Cansada de esperar que os dois saíssem de lá, avisei meu pai e tia Sam que estaria na parte de trás do quintal fazendo cestas para distrair enquanto os dois terminavam de fazer o jantar.
Queria chamar para jogar comigo, no entanto, achei que seria egoísta da minha parte arrastar mais uma pessoa para o olho do furacão. Uma pessoa que já tinha suas próprias questões para lidar, diga-se de passagem.
De todos os dias que resolvi fazer cestas, este sem sombra de dúvidas estava sendo o pior. Não conseguia me concentrar, quando isso acontecia, não conseguia mirar a bola no aro, por isso, não consegui acertar a maioria das cestas que tentei e isso me deixava irritada. Por mais que não fosse uma competição ou não valesse nada ao final, sempre ficava puta quando não conseguia ganhar, mesmo que de mim mesma.
Prestes a derrubar a cesta móvel que deixávamos ao lado da porta da garagem, me contive quando, de soslaio, vi a figura de Victor se aproximar com as mãos postas dentro dos bolsos frontais do jeans que usava.
?
― Sim? ― não olhei. Segui fingindo que tentar fazer cestas era mais interessante.
― Sinto muito pela forma como me comportei lá dentro. Eu estava nervoso e confuso. Quer dizer, ainda estou confuso.
― E você acha que isso é desculpa pra forma como falou com a minha mãe ou como se referiu a minha família? ― pus a bola embaixo do braço, segurando-a junto ao meu quadril. ― Olha, cara, sinceramente, eu não me importo se você tá confuso ou não. Só acho meio escroto da sua parte vir até a minha casa e falar daquele jeito com a gente. ― dei de ombros. ― Só isso já me faz entender completamente porque minha mãe preferiu me criar sozinha.
― Eu sinto muito mesmo. Sua mãe e eu conversamos, ela me explicou tudo, desde o começo. E eu compreendo totalmente cada palavra que ela disse. ― tirou as mãos dos bolsos, passando uma pelo queixo enquanto, a outra, depositou em seu quadril. ― Sei que pra você sou só um estranho, mas eu quero muito te conhecer quando você estiver pronta pra isso. Não sei quanto tempo vai demorar, mas, por favor, considere me incluir, mesmo que aos pouquinhos, em sua vida.
― Me dê um bom motivo pra fazer isso.
― Você pode até já ter um pai, mas eu não tenho filhos. Sempre quis ter e nunca imaginei que já tivesse, muito menos que ela já fosse adulta. ― deu um meio sorriso. ― , eu perdi 18 anos da sua vida e esse tempo é irrecuperável. Não vou poder te segurar pela primeira vez no colo, ver você falar suas primeiras palavras, começar a engatinhar, nem assistir você dar seus primeiros passos. Não estive lá quando você resolveu praticar um esporte, quando ganhou seu primeiro campeonato nem quando você virou a capitã do time. Mas quero muito poder participar da sua vida, ver você se transformar na mulher incrível que eu tenho certeza que você vai ser.
Analisando-o, não sabia se deveria mesmo confiar nele. Contudo, o que saiu por entre meus lábios foi:
― Amanhã, no almoço, você tá livre?
― Claro, tô. ― seu rosto se iluminou em uma feição alegre.
― Mais tarde, te passo o endereço de onde me encontrar, ok? ― assentiu e eu quase sorri. Entretanto, uma das habilidades que me orgulhava muito de ter aprendido com a minha mãe era disfarçar meus reais sentimentos em relação a pessoas estranhas.
Parecendo inquieto, após alguns segundos, Victor finalmente verbalizou:
― Acho melhor eu ir. Nos vemos amanhã, então? ― concordei com a cabeça.
O homem acenou em minha direção e partiu.
Minha mãe realmente tinha talento para escolher homens emocionados com qualquer migalha de afeto. Isso incluía meu pai.

- x x x -


Quando cheguei ao restaurante em que havia mandado o endereço para Victor na noite passada, o vi sentado próximo a uma das janelas. Ao me ver, o homem acenou como se sinalizasse onde estava. Andando até lá, sentei-me no banco à sua frente, depositando a bolsa ao meu lado.
― Você tá bem? ― assenti.
― E você?
― Bem também. Quer fazer seu pedido? ― estendeu o cardápio para mim e eu recusei, pois sempre pedia a mesma coisa ali.
Chamando Dana, que me cumprimentou sorridente, a garota veio até a minha mesa, me atualizou sobre o cardápio e alguns fatos que haviam acontecido desde a última vez que estive ali. Não precisou anotar meu pedido já que era o mesmo há três anos.
― Você vem muito aqui?
― É um dos poucos restaurantes na cidade que não soca carne até na água e cobra um preço justo.
― Você também não come carne?
― Você também não?
― Parei aos 17, quando saí da casa dos meus pais. E você?
― Parei aos seis. ― arqueou as sobrancelhas.
― Um pouco cedo, né?
― Victor, meus pais me criaram com total liberdade pra ser quem eu sou, mesmo que isso significasse ser completamente diferente deles. Isso pode te soar estranho, mas é assim que as coisas funcionam na nossa família. Todos temos direito à uma opinião e às nossas vontades.
― E eu acho muito legal que funcione assim pra vocês. ― inclinou-se com os dedos das mãos entrelaçados sobre a mesa. ― Sua mãe me falou que você vai pra universidade.
― É. ― dei um meio sorriso.
― Vai fazer o quê?
― Biologia.
― Uau, uma cientista.
― É o que esperamos.
― Você vai se sair muito bem. ― sorriu.
Dana se aproximou de nossa mesa com nossos pedidos, depositando ambos os pratos à nossa frente, respectivamente, e saiu.
― Sua mãe tá solteira? ― reprimi uma gargalhada.
― Discreto, hein?
― É que… bom, eu achei que ela e seu pai estivessem juntos. Lembro que eles sempre foram muito próximos. Mas ele é casado com a… ― pressionou as pálpebras uma contra a outra, tentando se lembrar.
― Sam. ― completei.
― Isso. Foi um pouco surpreendente, na verdade.
― Minha mãe não é o tipo que namora. Acho que você deve saber disso.
― Achei que isso tivesse mudado com o tempo.
― Na verdade, não. Ela sempre foi muito fiel à ideia de ser uma mulher livre e desimpedida e isso ficou mais forte depois que… uma pessoa que ela gostava muito morreu. ― dei uma garfada nos meus legumes, desviando o olhar.
― Deve ter sido difícil.
― É, foi. ― afirmei após engolir a comida.
― E você?
― Eu o quê?
― É solteira? ― franzi as sobrancelhas. ― Como eu disse, vim aqui pra te conhecer.
― Achei que a cara de nerd já entregasse tudo. ― debochei.
― Você não tem cara de nerd.
― Você também não tem e é solteiro. ― rebati.
― Afiada igual sua mãe, hã? ― dei um meio sorriso, vitorioso.
― Você é tipo minha mãe que não namora ninguém, só ilude umas pessoas de vez em quando? ― riu.
― Eu sou divorciado, na verdade.
― O que aconteceu?
― A vida aconteceu. Nós dois nos casamos muito jovens. Estávamos no fim da faculdade e uma vida a dois exige coisas que talvez pessoas em seus 20 e poucos anos, tentando construir carreiras individuais não consigam oferecer uma a outra. ― concordei com um aceno lento de cabeça. ― A verdade é que todos deveriam pensar um pouco melhor antes de decidirem se casar porque, às vezes, é mais difícil do que parece.
― Acredito que as maiores chances de casamentos darem certo estão reservadas a relacionamentos já de longo prazo. Não só românticos, claro.
― Por quê?
― Meu pai e a tia Sam resolveram oficialmente se casar há cinco anos, sendo que eles se conhecem há 11 e moram juntos há nove. Nesse meio tempo, eles nunca terminaram.
― Eles têm uma história longa.
― É. E eu acredito que esse é o segredo para se ter um bom relacionamento. As pessoas se casam o mais rápido possível motivadas pela paixão porque estão empolgadas, como se a outra pessoa fosse uma peça de roupa nova ou coisa do gênero. Mas pessoas que levam anos para se casarem se casam única e exclusivamente por amor porque, se, mesmo depois de conhecer todos os defeitos, se irritar e brigar com a mesma pessoa durante anos, você ainda a quer na sua vida, só pode ter duas explicações: ou você é louco ou você realmente ama aquela pessoa. ― riu baixinho.
― É, você tá certíssima.
Voltei a comer e, durante os minutos seguintes, caímos em um certo silêncio. Não foi desconfortável, era como se realmente estivéssemos aprendendo a permanecer um na presença do outro.
Esporadicamente, Victor retomou suas perguntas a meu respeito. O que eu gostava de fazer em meu tempo livre, que tipo de música ouvia, se era fã de algo, como se jogava handebol, dentre outras coisas. Ele estava se esforçando para se atualizar na minha vida, mesmo que fosse impossível falar de 18 anos inteiros em um único almoço.
Ao ficarmos em silêncio outra vez, disse a ele que precisava ir, pois tinha marcado de ir à casa de Sophie. O homem se ofereceu para me dar uma carona até lá. Agradeci e aceitei, pois me economizava uma passagem de trem.
Tentando ser agradável, na hora de ligar o som, colocou Team, da Lorde, para tocar e eu sorri. Cantarolei baixinho para não incomodá-lo.
Quando estacionou em frente à casa da minha amiga, desafivelei o cinto de segurança e pus minha bolsa sobre o ombro.
― Victor?
― Sim?
― Queria te convidar pra uma coisa. ― mordi a parte interna da bochecha.
― O quê?
― Minha formatura é em três semanas. Se você quiser ir, vai ser no ginásio da escola mesmo. ― fingi conferir minhas cutículas, tentando disfarçar o nervosismo. ― Se não quiser, tudo bem. Você não tem obrigação alguma…
? ― interrompeu-me.
― Quê?
― Eu vou, sim. Quero muito ir. ― trocamos um meio sorriso. ― E, antes de ir, por favor, sei que é cedo pra sugerir que me chame de pai, mas, pelo menos, me chame de Vic. Só meu pai e meus clientes me chamam de Victor. ― ri.
― Ok. Vic. Obrigada pela carona.
― Se precisar de algo, você tem meu número. ― assenti, saindo do veículo.
Nas semanas que se seguiram, Vic e eu ainda nos encontramos mais quatro vezes em horários diferentes para comermos juntos ou só conversarmos mais um pouco. Ele estava se esforçando de verdade para estar presente. Ainda tinha muitas coisas a respeito de como era a minha dinâmica familiar que Victor não entendia e parecia se reprimir para não falar nada a respeito, como o fato de meu pai passar muito mais tempo na minha casa do que o considerado ok ― por ele ser casado com outra pessoa e já ter tido algo com a minha mãe ― ou que meus pais não me cobravam um horário limite para chegar em casa, contanto que avisasse onde e com quem estava.
No entanto, eu havia percebido algo. Não era só de mim que Victor havia se aproximado nos últimos dias. Dadas as informações das minhas fontes ornamentais ― meu pai ― minha mãe estava trocando mensagens com meu progenitor e já até haviam se encontrado para conversar. Segundo o que mamãe havia relatado ao papai, foi apenas para conversar sobre mim e eventuais gastos com a minha faculdade. Vic havia se oferecido para custeá-los caso fosse necessário. Ah, tá bom...


#9

Eu abro meu coração, é tudo pra você, você pode ou me deixar do jeito que quiser
(High Tops - Del Water Gap)


Na semana da minha formatura, mamãe me deu dinheiro para sair com Sophie para comprar nossos vestidos para o baile de formatura. E nós duas literalmente rodamos a cidade em busca de algo que ficasse minimamente decente em mim. Na primeira loja que entramos, minha amiga achou um vestido bordô que lhe coube muito bem. Já eu, precisei bater ponto em oito lojas diferentes.
Um era muito curto, outro muito comprido; este era muito largo, aquele, era vestido da seção infantil.
Até que, por fim, só de me olhar, a vendedora da oitava loja disse que tinha algo que ficaria perfeito para o meu tipo de corpo e sumiu. Cerca de três minutos depois, a mulher voltou com um saco de TNT sustentado por um cabide. Abrindo o zíper, nos mostrou um vestido curto, de alças finas, decote frontal, de cetim prateado e fundo azulado.
Pegando o cabide em mãos, entrei em um dos provadores na lateral, tirando as roupas rapidamente. Odiava experimentar roupas porque sempre acabava suando muito durante o processo.
Ao fechar o zíper na lateral do vestido, encarei meu reflexo no espelho em vários ângulos diferentes. Não era o tipo de roupa que estava acostumada a usar, logo, não conseguia reconhecer a garota estampada na superfície luminosa à minha frente. E, mesmo que me sentisse estranha, ainda assim, me sentia bonita.
A tatuagem em meio aos meus seios aparecia e, pelo menos uma vez na vida, fiquei feliz por eles serem pequenos, afinal, couberam exatamente no local onde deveriam ficar.
Tirei o vestido do corpo, pondo-o de volta dentro do saco e vestindo minhas roupas novamente. Saindo do provador, Sophie e a vendedora lançaram-me olhares frustrados.
― Que foi?
― Achamos que você ia mostrar. ― minha amiga respondeu com um tom chateado.
― Ficou bom e eu vou levar. É isso. ― entreguei o vestido para a vendedora e a segui até o caixa.
Depois de gastar mais do que imaginei em um vestido, Sophie e eu fomos tomar sorvete antes de voltarmos para casa.
― Sua mãe tá bem?
― Quer saber se ela continua solteira? ― ri.
― Não. Imaginei que, com toda essa história de achar seu pai biológico, ela deve ter ficado mexida, né? ― colocou uma colher cheia de sorvete na boca.
― É, um pouco. Acho que foi muito mais por remexer em algo que estava adormecido há tanto tempo, sabe? E confesso que, de início, me arrependi um pouco de não ter deixado essa história pra lá, mas aí, depois, Vic se mostrou um cara até bem legal. ― botei uma pequena quantidade de sorvete na boca e prossegui: ― Cá entre nós, eu acho que ele ainda gosta da minha mãe.
― Sério? ― assenti.
― Ele fica meio estranho quando fala dela e, agora, eles até se encontraram. ― arregalou os olhos.
― Será que ele vai ser seu padrasto? Não, espera… ― franziu as sobrancelhas, parecendo fazer cálculos complexos em sua mente.
― Ele vai ser meu… pai? ― sugeri, segurando o riso.
― Amiga, pelo amor de Deus, desenha a árvore genealógica da sua família, pois muito complexa. ― gargalhei.
― Juro que até a gente chegar aos 30 você vai ter se acostumado.
― Assim espero.
― E seus pais? Você vai viajar com eles?
― Eu realmente não tô nem um pouco a fim de voltar a estudar logo depois de ter estudado a minha vida inteira, então, viajar um ano inteiro me parece uma boa ideia.
― Mas você sabe que não vai ser como aqui que você pode simplesmente sair de casa e voltar três dias depois quando brigar com eles, né?
Por alguns milésimos de segundo, Sophie ponderou sobre a questão e concluiu:
― Talvez um ou dois meses esteja de bom tamanho, né? ― ri.
Terminamos de comer nossos sorvetes e fomos embora.
Deixei Sophie em casa e segui para a minha, surpreendendo-me com a cena que vi quando cheguei lá. Vic e minha mãe estavam bebendo e rindo de algo que eu não fazia ideia do que poderia ser, porém achei ótimo que ambos estivessem se dando bem.
Cumprimentando-os, bebi um copo de água e disse que iria para o meu quarto, pois estava cansada. Por não ter dito nada, entendi que a visita de Victor não era para mim, mas para a pessoa risonha à sua frente e não pude conter um sorrisinho enquanto subia as escadas.

- x x x -


No dia da formatura, por insistência, deixei Sophie me maquiar e, apesar de não ter feito nada exagerado nem muito forte, tal qual o vestido que havia comprado para usar à noite, no baile, me olhar no espelho daquela forma fez eu me sentir estranha. Estas eram versões minhas que ainda não tinha visto e que me assustava ao vê-las.
Mesmo sendo uma colação de grau no ginásio da escola, minha mãe estava extremamente arrumada. Não que no dia-a-dia ela já não fosse extremamente arrumada, porém, nesta ocasião em especial, Antonella tinha se vestido daquele jeito elegante que a fazia parecer superior a todos os reles mortais. E, quando o motivo atravessou a soleira da nossa porta da frente, passei a língua pelos lábios, mordendo o inferior discretamente para reprimir um sorriso.
Vic e minha mãe pareciam estar usando minha colação de grau de encontro na maior cara de pau.
Escolhendo dar privacidade a ambos, Sophie e eu pegamos carona com meu pai e tia Sam para chegarmos à escola.
No ginásio, procuramos as cadeiras com nossos nomes e, para nosso azar, haviam colocado em ordem alfabética, não de afinidade. Portanto, Sophie fora designada a sentar-se ao fundo, e eu sentamos um ao lado do outro, mas, para meu completo desgosto, apenas uma cadeira nos separava de Jullia.
O universo dá e o universo tira, não é mesmo?
Ouvindo todas as músicas cafonas que haviam sido escolhidas pelos meus colegas de classe para irem buscar seus diplomas, e eu segurávamos a risada quando víamos a postura de alguns, que pareciam estar se formando no doutorado e não no ensino médio, o que era ainda mais rídiculo.
Sustentando um sorriso em seus lábios, parecia iluminado naquele dia, como quando a gente fica quando tira um peso das próprias costas. Observando-o, não conseguia conter um sorriso, afinal, não me lembrava quando havia sido a última vez que o vira sorrir tão genuinamente sem motivos aparentes. Notando que meus olhos não saíam dele, o garoto me encarou, agora, sorrindo para mim. Sem pensar muito sobre o que tal gesto significava, segurei sua mão, sentindo-o fechar os dedos ao redor da minha, pressionando-a e aquecendo-a afetuosamente.
era uma das pessoas mais bonitas que eu tivera a honra de conhecer e não me referia à sua beleza exterior.
Não sabia quanto tempo havia se passado enquanto nos encarávamos, entretanto, com um sorriso ainda mais largo e sapeca disse:
― É a sua vez. ― franzi as sobrancelhas. ― Seu diploma.
― Ah. ― riu ao me ver levantar toda desajeitada.
Meu nome vinha antes do de devido aquelas bobeiras de medalha de honra e mérito: melhor média da turma com menor número de faltas ao longo de todo o ensino médio.
Subindo ao palanque, cumprimentei meus professores com apertos de mãos e sorrisos, peguei meu canudo e deixei que meu professor de biologia colocasse a medalha em meu pescoço. Em posse de ambos, virei-me para a platéia a tempo de ver minha família de pé ao fundo, me aplaudindo. Se eu não estava enganada ou vendo coisas, vi minha mãe chorando, o que foi um misto de cômico, triste e alegre.
Sei o que havíamos passado juntas desde que eu era criança. Sei quantas coisas ela abdicou para me ter e para me criar. E, por muito anos, mesmo que não tivesse que ser assim, sei o quanto ela achou que eu era uma obrigação somente dela. No fim de tudo, era muito saber que todas as minhas conquistas, por menores que fossem, não eram só minhas e era ótimo tê-la lá para presenciar cada uma delas.
Descendo do palanque, no meio do corredor, o segundo melhor aluno da turma deu uma piscadinha para mim. Agradeci mentalmente por não ter cedido às pressões estéticas e ter ido de tênis, pois meus joelhos tremeram. Muito bom não ter controle do próprio corpo.
Sentei-me outra vez em minha cadeira e esperei que voltasse para seu lugar ao meu lado. Quando o fez, segurou minha mão. Meu olhar se alternou entre nossas mãos juntas e sua feição sorridente, que me contagiou. E, de novo perdendo a noção de tempo e espaço, ao cair em mim, notei que já estávamos nos aplausos finais e maioria de nossas colegas planejava fazer aquela coisa clichê de jogar o capelo para cima. Decidida que em meu último dia como colegial iria cumprir com todas as tradições, por mais bobas que fossem, segui a todos os outros, jogando meu capelo para o alto e o perdendo de vista assim que se misturou a todos os outros.
Juntando-se a nós, Sophie nos envolveu em seus braços curtos, apertando-nos contra si.
― Eu nem acredito que acabou mesmo. ― soltou com uma voz espremida devido a força que fazia para nos segurar em meio ao seu abraço.
― Ainda bem porque não sei mais quanto disso eu aguentaria. ― desvencilhou-se dela.
― Calado, nerd. Você foi o segundo melhor da turma em anos. ― sua expressão facial se contorceu, fingindo nojo e eu ri.
― Ela tem razão. ― dei de ombros.
― Vamos embora daqui. ― com dificuldade, Soph passou os braços por sobre nossos ombros, nos guiando para a saída do ginásio, onde se encontravam nossos familiares.

- x x x -


Ajudando-me com meu cabelo e o pouco de maquiagem que as autorizei a passarem no meu rosto, minha mãe e tia Sam ficaram pouco mais de uma hora em cima de mim, o que, apesar de não ser meu programa preferido, se mostrou divertido por nunca tê-las visto tão empolgadas com algo ao mesmo tempo.
― Então, seu par é o ? ― tia Sam ajeitava meus cachos na parte de trás da minha cabeça.
― É. Mas não é um encontro. Como vocês bem sabem…
― Sim, vocês são amigos. Sabemos. Muda o disco, filha. ― minha mãe completou passando rímel em meus cílios inferiores.
― Mas é a verdade.
― Se ela está dizendo, deve ser verdade, né? ― ao expressar sua “opinião”, tive certeza de que as duas estavam mancomunadas.
― Olha só pra vocês. Trabalhando juntas contra mim.
― Contra você, só você mesmo, anjinho. A única inimiga da felicidade aqui é a senhorita. ― minha mãe rebateu e eu arqueei as sobrancelhas.
― Como é?
― Garota, não se faça de sonsa. Aquele garoto te cerca desde novinho e eu bem percebo o jeito que você olha pra ele.
― E, além do mais, nada impede que vocês sejam amigos com benefícios. Certas pessoas aqui têm vasta experiência no assunto. ― tia Sam deixou no ar.
Minha mãe e eu nos entreolhamos, então, olhamos para ela.
― Menti? ― arqueou uma das sobrancelhas.
― Em nenhuma vírgula. ― minha mãe concordou e, por um segundo, tive a sensação de que havia perdido algo, afinal, desde quando elas falavam nesse assunto tão abertamente? ― O que eu quero dizer é que talvez você devesse se permitir experimentar certas coisas enquanto ainda é jovem. Ninguém vai te julgar por isso. ― tirando as mãos de meus cabelos por ter acabado o que fazia, depositou-as sobre meus ombros.
― Mas e se… eu não tiver certeza de que é o momento? ― minha mãe se agachou à minha frente e segurou as minhas mãos.
― Seja o que quer que você queira fazer, se for o momento, vai acontecer. ― deu um meio sorriso. ― Agora, vai terminar de se arrumar que tá quase na hora de o aparecer. ― assenti e ambas saíram do quarto, deixando-me à sós para me trocar.
Vestida e calçada, desci as escadas rumo à sala de estar e já estava sentado no sofá. Com os lábios comprimidos, segurava um sorriso e suas sobrancelhas arqueadas deixavam transparecer surpresa.
― Você tá muito bonita. ― lancei-lhe um olhar divertido. ― Não que você… quer dizer, você já é bonita…
― Eu entendi. ― o som da minha risada saiu pelo nariz. O garoto corou e tentou disfarçar coçando a orelha e abaixando a cabeça. ― Nós estamos indo. ― gritei para que minha mãe ouvisse.
A passos apressados e com tia Sam sorrindo em seu encalço, minha mãe apareceu na sala, vinda da cozinha.
― Divirtam-se. Não bebam, se beberem, liguem pra nós irmos buscar vocês. Se cuidem e juízo. ― abraçou a nós dois.
― Não é pra gente beber, mas se bebermos… ― brincou, passando a língua pelos lábios.
― Garoto, não brinque comigo. ― ameaçou com o dedo em riste. ― Agora, sumam da minha frente. E se divirtam. ― nos acompanhou até a porta da garagem, acenando para nós depois que adentramos no veículo e eu o liguei.
― Soph não vai com a gente?
― Ao que eu entendi, ela ia com a acompanhante dela.
― Você conhece essa garota?
― Nunca vi. Mas acho que hoje é o dia, certo? ― acelerei.
Ajeitei meu cinto de segurança, soltei o freio de mão e partimos rumo à escola.
Diferente da maioria dos dias comuns, haviam poucos carros no estacionamento da instituição, sendo que, aparentemente, uma boa parcela pertencia aos professores encarregados de cuidar do evento. Estacionando no lado contrário a entrada do ginásio, bem escondidinha ao fundo do local, tirei a chave da ignição, desafivelamos nossos cintos de segurança, saímos do veículo e acionei o alarme.
Ao adentrarmos no baile, era exatamente o tipo de festa brega que se vê em filmes adolescentes antigos. A decoração tinha estrelinhas e uma lua feita em papel laminado, havia um cantinho para que os casais tirassem fotos, uma mistura de músicas animadas e lentas para agradar a todos os gostos e ponche de sabor duvidoso.
Enxerguei Sophie próxima ao cenário para fotografias acompanhada de uma garota que nunca tinha visto na vida.
Olhando ao redor, vi voltando para perto de mim com dois copos de bebida vermelha na mão. Fiz uma careta por saber que se tratava do ponche, provavelmente, cor groselha.
― Você vai ter coragem de beber isso? ― apontei para o copo em sua mão com o queixo.
― Não só eu, como você também.
― Eu? ― pus a mão no peito.
― Você disse que faria todos os rituais de passagem do ensino médio para a faculdade. Bebe. ― entregou-me o copo.
Rindo, entrelacei meu braço ao seu e bebemos, como os casais recém-casados fazem.
De fato, aquele ponche era horrível e tinha gosto de açúcar puro.
― E então?
― Sinto os níveis de glicose no meu sangue subindo tanto que sou capaz de desenvolver diabetes. ― rimos.
― Você é muito exagerada.
― Não. Eu tenho uma alimentação decente. São duas coisas bem diferentes.
Ao fundo, o DJ trocou de música, colocando para tocar Pink, do No Rome, e estendeu a mão para mim.
― Que foi?
― Vamos dançar. ― franzi as sobrancelhas, sorrindo. ― Anda. Eu sei que você gosta dessa. ― chacoalhou a mão.
Segurando minha mão, me puxou para o meio dos nossos colegas. Largando nossos copos em uma das mesas, que já estava cheia de copos vazios empilhados, me fez rodopiar antes de começarmos a dançar. Para uma pessoa que não ia em festas, até que eu disfarçava muito bem. Sem contar que era um ótimo par uma vez que ele também não era o melhor dançarino de todos.
Quando a música foi reduzindo aos poucos, ao fundo, o DJ aumentava o som em outro canal Half-Light, de Rostam e Kelly Zutra [n/a: coloca pra tocar essa]. Vendo todos se aproximando, quase tomei um susto ao sentir as mãos de Noah em minha cintura.
― Se você não quiser dançar essa…
― Não, tudo bem. Eu gosto dessa música. ― na realidade, aquela música me deixava triste, ainda mais quando estávamos tão próximos.
Entrelacei os braços em seu pescoço e o deixei me guiar em passos ritmados para a esquerda e para a direita.
Ouvindo aquela música, sentindo seu corpo próximo ao meu e pensando em como estava me sentindo em relação à ele nos últimos tempos, haviam muitas coisas que não sabia nomear, me deixavam confusa e frustrada. Mesmo que tivesse certeza do que quer que aquilo fosse, ainda assim, em um mês e meio eu arrumaria minhas malas e me mudaria para o campus da universidade, que ficava a quase duas horas de distância de nossas casas.
― Você tá pensativa.
― Eu sempre estou.
― É verdade. ― trocamos uma risadinha.
― Fiquei pensando que falta muito pouco pra eu ir embora.
― Isso é ruim? ― dei de ombros.
― Não é tão longe daqui, mas também não como se eu pudesse ver vocês sempre que eu quisesse, né?
― A gente sempre pode ir te visitar. ― sorri.
― É, podem.
, esse é o seu sonho. Agora, pode parecer um pouco ruim deixar sua família, Soph, o time ou, até mesmo, a mim para trás, mas tudo vai valer a pena. Isso foi o que você sempre quis, não?
― E se isso não for o que eu realmente quero? E se eu estiver enganada?
― Nós sempre vamos estar aqui. E a vida é bem longa. Você tem bastante tempo pra descobrir.
Puxando seu corpo para perto do meu, abracei-o forte, deitando a cabeça em seu ombro.
― Obrigada. ― murmurei.
Abraçando-me pela cintura, deu um beijo na parte de trás da minha cabeça e eu sorri. Muitos segundos mais tarde, nos afastamos um pouco e retomamos nossa dança.
Sophie e sua acompanhante também dançavam e, aos nos verem, começaram a dançar andando em nossa direção.
― Faz quanto tempo que vocês chegaram?
― Uns 40 minutos.
― Pouquíssimo tempo. Essa é Alice. Alice, esses são meus melhores amigos, e .
― É um prazer conhecê-los. Ela fala muito de vocês. ― falou mais baixo, como se contasse um segredo.
― Óbvio que eu falo de vocês. ― sorriu.
― É a gente sabe que ela é falsa. ― debochou e levou um tapa no braço, que o fez rir.
― Calado. Ah, meu Deus, preciso contar uma coisa pra vocês. ― soltou de uma vez só atropelando uma palavra na outra com aquele tom de fofoqueira. ― Ao que aparenta, o rei e a rainha da escola não estamos mais juntos.
― Como assim? Desembucha. ― cutuquei-a para continuar.
― Eu estava fazendo xixi quando Jullia e a gangue dela entraram no banheiro. Ela tava chorando muito e, pelo que eu entendi, Tobias terminou com ela por mensagem.
― Que horror. ― franzi a testa.
Sophie arqueou as sobrancelhas, chocada.
― Que foi? Ela é uma pessoa horrível, mas ninguém merece falta de honestidade e responsabilidade emocional, sabe?
― Nossa, , você é um ser muito evoluído. ― Soph pôs a mão sobre um dos meus ombros.
― Amiga, é só o colegial. Não importa o que tenha acontecido até aqui, hoje é nosso último dia pisando nesse lugar. Em dois ou três anos, não vamos nos lembrar de metade das coisas que aconteceram enquanto ainda estávamos aqui, muito menos das pessoas.
Sophie sorriu, assim como Alice e fiquei feliz que aquilo fez tanto sentido depois que deixou de ser um mero pensamento na minha cabeça.
Utilizando o mesmo esquema de baixar o som da música atual e ir substituindo pela próxima, chegamos em uma mais animada que eu não conhecia. Avisando a que precisava ir ao banheiro, Alice e Sophie me acompanharam, deixando o garoto à procura de seus ex-companheiros do time de lacrosse.
Diferente de como achei que seria, o baile estava divertido o suficiente para me fazer ficar o máximo que conseguisse. Aquela seria minha última noite como estudante de ensino médio ao lado dos meus amigos e estávamos aproveitando cada segundo, como se fosse uma última centelha do passado que construímos para as nossas versões do futuro.
Nós cantamos e dançamos todas as músicas como se fossem as últimas. Alice, em dado momento, tirou de dentro de seu vestido um pequeno cantil, dando um golinho de vodca para cada um de nós. Eu não a conhecia bem o suficiente para afirmar, porém parecia uma garota legal. O tipo de garota que faria minha amiga feliz, o que era bom.
Sophie e Alice decidiram irem embora uma meia hora antes de nós, pois Alice teria que acordar mais cedo no dia seguinte.
Por fim, já cansados, e eu entregamos os nossos pontos pouco antes da meia noite, decidindo em comum acordo voltarmos para casa. Tão despercebidos quanto em nossa chegada, nos retiramos do ginásio e fomos para o estacionamento, em busca do meu carro.
?
― Hm? ― murmurei encaixando a chave na ignição do carro.
― Eu queria contar pra pessoa que eu gosto sobre como me sinto, mas não sei como fazer isso.
― Falando sobre seus sentimentos com ela é um bom começo. ― brinquei.
― É, eu sei. Mas queria saber o que posso dizer a ela.
A verdade era que estava começando a ficar irritada com esse assunto. Sabia que tinha uma queda por Jullia e isso me fazia ficar com… ciúmes talvez? Não sabia identificar exatamente qual era o sentimento.
e eu éramos amigos há muito tempo. Talvez o que eu sentia em relação a ele fosse apenas um sentimento de proteção, pois havíamos desenvolvido um laço que transcendia os anos. Aquele garoto estava em minha vida e havia presenciado quase tudo de importante que havia me acontecido. Mais do que isso, esteve lá todas as vezes que precisei.
Juntos, descobrimos desde como se faz para coçar a pele coberta pelo gesso até como se fazia um bolo de chocolate vegano decente. E haviam muitas coisas que eu gostaria de descobrir ao seu lado, porém não seria possível se estivesse gostando de outra garota que não eu.
― Diga a ela todas as coisas que te fazem notá-la, as coisas que te fazem gostar dela ou as coisas que te fazem não conseguir tirar os olhos dela. ― sugeri sentindo o suor umedecendo as minhas mãos devido ao nervosismo.
Não queria ajudá-lo a conquistar Jullia, todavia, sabia o quão importante era que eu o ajudasse. jamais pediria opinião a outra pessoa que não a mim.
― É uma boa ideia. Eu vou tentar. ― ajeitou-se no banco carona, virando-se para mim. ― Não sei muito por onde começar, mas aí vou eu. Você é extremamente metódica nas coisas que faz, o que é bem engraçado, mas é muito… bonito te ver fazer algo. Você sempre se concentra muito e se dedica mais ainda. Se alguém diz que você não consegue, você tenta até provar que, sim, você consegue. ― deu um meio sorriso. ― Você não nota, mas sempre que seu time não tá tão bem em algum jogo importante, quando você tá prestes a mudar a estratégia, você amarra o cabelo de um jeito diferente no meio da partida mesmo. Aliás, você fica muito sexy quando tá completamente suada e vermelha de tanto correr. E quando você tá prestes a engolir o time adversário? Uma lenda. ― não contive um sorriso.
, eu não…
― Espera. Não terminei ainda. ― pôs a mão sobre minha.
Alternei meu olhar entre nossas mãos, uma sobre a outra, e seu rosto.
― Das coisas que eu mais gosto em você, o fato de todo dia eu descobrir algo novo é algo que me surpreende. Nos conhecemos há quase uma década e parece que todo dia eu desvendo um novo mistério a seu respeito, como a sua tatuagem do verão passado ou o fato de você fumar. ― ri. ― E, por último, mas não menos importante, não consigo tirar meus olhos de você por ser a criatura mais bonita que eu já tive a honra de pôr meus olhos. Por dentro e por fora, na mesma medida. ― sorriu. ― Agora, eu terminei.
, eu… ― meus pensamentos estavam tão bagunçados que não tinha certeza se conseguiria formular alguma frase coerente. ― Eu não sei o que dizer. Achei que você gostasse de outra pessoa.
― De quem? ― franziu a testa.
― Jullia.
― Pelo amor de Deus. ― riu. ― Ela é bonitinha, mas meu negócio é mulher que pode facilmente me desmontar com um soco se quiser. ― não conseguia segurar a gargalhada que dei, inclusive, soltei um ronco no meio dela, contagiando-o a rir comigo. ― Enfim, fiz todo esse discurso pra dizer que eu sempre gostei de você, mesmo que você já tenha me dado um milhão de foras. Não quero que você me dê uma resposta definitiva nem nada, só achei que deveria saber e que esse era o momento, já que, em breve, você vai se mudar e, quem sabe, conheça o amor da sua vida que não sou eu.
Respirando fundo, criei coragem para falar.
― Talvez eu não consiga me expressar com a clareza que gostaria, mas acho que esse é o momento. ― desviei o olhar dele, fixando-o em nossas mãos sobre minha perna. ― Eu gosto de você por um monte de motivos que provavelmente nem consigo citar agora, mas principalmente porque você sempre esteve lá, em vários momentos. A gente descobriu tantas coisas juntos. Como cozinhar doces veganos, como não explodir as soluções ácidas na aula de química, como tirar mancha de carpê e até fizemos aquele coçador com cabide quando torci o tornozelo e fiquei dois meses de tala, lembra? ― riu, assentindo. ― E quero muito descobrir outras coisas com você.
― Tipo… ― deixou no ar.
― Isso. ― aproximei-me dele o máximo que consegui, não demorando a sentir nossos lábios se tocarem.
Aos poucos, a sensação de calor que sua boca proporcionou na minha, passou a se espalhar pelo resto do meu corpo, fazendo-me arrepiar dos pés à cabeça quando suas mãos mornas tocaram minha nuca e meu maxilar.
Em minha curta vida, não havia beijado tantas bocas para comparar com , no entanto, estava muito óbvio para mim que nenhum deles havia feito com que eu me sentisse como ele fazia. O coração palpitante, as mãos suadas, os pelos eriçados, o meio da minhas pernas em chamas.
Percebendo a dificuldade de prosseguir com o beijo na posição em que estávamos, desvencilhei-me de sua boca e, desajeitadamente, sentei sobre seu colo, com as pernas dobradas uma de cada lado das suas.
Olhando-me nos olhos, sorriu e acariciou meu rosto com ambas as mãos, voltando a me beijar em seguida.
Um calafrio percorreu minha espinha quando suas mãos desceram da minha nuca para as minhas coxas, pouco acima de meus joelhos. Meu corpo inteiro estava febril e ansiava pelo seu toque, pelo seu corpo, seu cheiro.
Subindo as mãos por baixo do tecido da minha saia, fazia um rastro de pelos eriçados onde quer que as pontas de seus dedos tocassem. Seus lábios saíram dos meus para beijar meu queixo e meu pescoço. Já minhas mãos, que antes se encontravam em seu rosto, dirigiram-se para sua nuca, agarrando-se aos curtos cabelos da região enquanto sentia seu beijos molhados e sua respiração pesada contra a minha pele.
Em questão de segundos, passei a sentir somente uma de suas mãos apertando minha coxa bem próxima da minha virilha, não demorando até que notasse que sua outra mão estava ocupada afastando um dos lados da minha calcinha. Com as bochechas queimando de vergonha, fechei os olhos, me recusando a qualquer contato visual enquanto sua mão estivesse em meio às minhas pernas.
Parando de senti-lo beijar meu pescoço, sabia que o garoto estava me olhando, por isso, segui com os olhos fechados.
Dois de seus dedos faziam movimentos circulares sobre meu clitóris vagarosamente, fazendo-me morder meu lábio inferior para não produzir nenhum ruído vergonhoso durante o processo.
Como qualquer garota de 18 anos, eu já tinha “explorado meu corpo”. Na verdade, às vezes, me masturbava com mais frequência do que gostaria de admitir. Mas o ponto era: eu sabia distinguir o que era estimulante e excitante e o que não era.
Só o que eu não esperava é que poderia ser muito melhor quando feito por outra pessoa.
Seus dedos deslizavam sobre meu ponto mais sensível formando vários círculos em um ritmo lento, porém contínuo, o que começava a gerar uma sensação de prazer gostosa em meu baixo ventre.
Entretanto, quando tentou usar os mesmos dedos para me penetrar, em um reflexo muito rápido, segurei seu antebraço ao mesmo passo que contrai ambas as coxas, em uma tentativa falha de fechar as pernas. Abri os olhos e lá estava seu olhar confuso.
― Que foi? ― sua voz assumiu aquela tonalidade preocupada.
― Se você não se importa, eu prefiro que a gente… que você… ― suspirei, tentando me acalmar. ― Eu quero ir devagar. ― forçando-me a sustentar nosso contato visual, prossegui: ― Aliás, não sou tão fã assim de… você sabe. ― sinalizei.
― De penetração? ― completou e eu assenti, tentando não desmaiar de vergonha só de ouvir a palavra. ― Tudo bem. A gente não precisa fazer isso agora. Podemos fazer só o que você se sente segura e pronta, tá? ― assenti, respirando fundo. ― Quer continuar? ― com um breve aceno de cabeça, iniciei um beijo calmo, sentindo a mão que antes estava em minha coxa ao redor da minha cintura.
Instantes após, os dedos de voltaram a deslizar sobre meu clitóris, desta vez, trocando os círculos por movimentos para frente e para traz. Mordendo o lábio inferior novamente e, involuntariamente, tranquei a respiração, tamanha era minha vontade de não produzir nenhum som que fosse.
― Você não precisa se preocupar com os barulhos da sua respiração. Só tem nós dois aqui, lembra? ― é, eu lembrava, mas era justamente dele que estava tentando esconder. Não queria ser o tipo de garota que faz um escândalo em um momento como aquele.
Finalmente me permitindo voltar a respirar, soltei um gemido baixo e rouco, que fez meu rosto ruborizar de novo.
À medida que ficava mais próxima de um orgasmo, ficava mais difícil deixá-lo fazer tudo sozinho e permanecer silenciosa. Minha respiração estava ofegante e completamente audível, além disso, meu quadril passou a se movimentar sobre sua mão, para frente e parar trás, acelerando a velocidade pouco a pouco.
O vidro da janela estava começando a ficar embaçado ao nosso lado ao mesmo tempo em que eu perdia o controle do meu meu corpo, cujos espamos faziam parecer que estava tomando choques em várias partes diferentes do meu corpo.
Uma sensação de plenitude se formou em meu baixo ventre e eu tentei segurá-la o máximo que pude, pois sabia o que vinha depois daquilo. Com uma mão no vidro úmido do carro e outra no teto, aumentei ainda mais a velocidade com que meu clitóris roçava em sua mão, não demorando até um orgasmo intenso explodir em meio às minhas pernas, deixando-me ainda mais molhada e desnorteada que segundos atrás.
Sentindo seu olhar queimar sobre mim, fechei os olhos e me deixei curtir aquele breve instante de extremo relaxamento só. Aquele ainda era um momento embaraçoso para mim, afinal, até a noite anterior, um orgasmo era um acontecimento íntimo somente meu. Ninguém nunca tinha me “assistido” gozar e muito menos tinha sido responsável pelo meu orgasmo.
Ainda sem conseguir olhá-lo, ajeitei minha roupa íntima e saí de seu colo, retornando ao banco de motorista. Contudo, não é necessário nem um único movimento de meus olhos para saber que continuava a acompanhar cada micro ação minha, como quem assiste a um filme muito atentamente.
― Vamos pra casa? ― foi tudo o que consegui dizer.
Por sua vez, , parecendo recém-acordado de um transe, murmurou um “uhum” xoxo e pôs o cinto de segurança. Dando a partida, nos levei para casa enquanto a festa ainda rolava sem muito horário para acabar no ginásio da escola.
Dirigindo mais devagar que o normal, demorei quase o dobro do tempo que costumava para estacionar em frente à sua casa. Talvez eu só estivesse inconscientemente me recusando que a noite acabasse tão cedo.
― Entregue. ― disse quando puxei o freio de mão e desliguei o veículo.
― Uau, virei um pacote? ― brincou e eu ri.
desatou o cinto de segurança, porém não fez menção de se despedir. Portanto, imaginei que ele estivesse esperando que eu dissesse alguma coisa. Qualquer coisa.
― Sinto muito se você esperava que a gente… sabe? ― por alguma razão, eu tinha uma dificuldade enorme de dizer palavras relacionadas a sexo quando se tratavam de mim. Quem sabe esse deva ser o tema da minha próxima terapia. ― Não estava pronta pra… ― deixei a frase morrer pela metade.
, tá tudo bem. Eu não estava pensando que fosse rolar algo hoje. ― olhei-o a tempo de vê-lo dar um meio sorriso. ― Tenho esperado por esse momento há algum tempo, acho que posso esperar mais um pouco. Na realidade, não sei se eu também estou pronto.
― Bom, pelo menos você já fez isso outras vezes.
― Fiz o quê? ― seu rosto assumiu uma feição divertida. ― , eu não se você sabe, mas eu também sou virgem. Quer dizer, dependendo do seu conceito de virgindade, talvez agora eu seja o único virgem aqui. ― pela risadinha que deixou escapar, eu deveria ter feito uma cara surpresa muito mais explícita do que imaginava ter feito.
― Eu pensei que… mas como? ― franzi a testa.
― Simples: eu nunca transei com ninguém. ― ironizou. ― Cacete, você deduz várias coisas erradas sobre mim, né? ― riu. ― , como eu disse mais cedo, sempre gostei de você e, se você nunca me deu um fora de verdade e definitivo, significava que eu tinha chances, logo, não tinha por que fazer com outra pessoa se podia ser com você. ― confessou. ― Claro, eu sabia que talvez você perdesse a sua virgindade com outra pessoa ou quem sabe só não queira perder comigo, mas… ― deixou no ar.
Em delay, meu cérebro parecia assimilar suas palavras uma por uma antes de conseguir juntá-las em uma frase inteira, com coerência e coesão. Quando isso aconteceu, minhas sobrancelhas arquearam.
― Não, espera. Você ‘guardou’ ― fiz aspas com os dedos. ― sua virgindade pra perder… comigo?
― Você falando assim soa meio ridículo. ― deu um sorriso sem graça. ― Mas é basicamente isso. ― coçou a parte traseira da orelha. ― Então, se você não quer nada comigo, esse é o momento dizer. ― sua voz ainda carregava aquele tom zombeteiro, entretanto, havia um fundo de verdade em suas palavras.
Soltando meu cinto de segurança, inclinei-me em sua direção e selei nossos lábios, afastando-me alguns centímetros apenas para encará-lo. Segundos depois, com a mão em minha nuca, me puxou para perto de si, beijando-me outra vez. Seu dedão acariciava meu maxilar enquanto sua boca quente cobria a minha.
Tentei suprimir um sorriso, porém não consegui evitar.
― Vou entender isso como um “por favor, espere, pois nosso momento vai chegar”. ― passou a língua pelos lábios e trocamos um sorriso.
― Que bom que você entendeu. ― selando nossos lábios demoradamente uma última vez, me desejou boa noite e saiu do carro.
Observando-o entrar em casa com um sorriso bobo no rosto, eu tinha certeza absoluta que aquela era uma boa noite mesmo.


#10

Você ainda tem uma vida pra viver
(Pretty Bones - yeule)


As férias de verão estavam oficialmente chegando ao fim, faltando apenas dois dias para eu me mudar para o campus. Fazia uma semana que meu quarto estava uma bagunça insustentável e eu ainda nem tinha começado a embalar nada, só havia revirado minhas gavetas, o closet e algumas caixas que não eram mexidas há, pelo menos, seis meses.
Sabendo que não iria vencer aquilo sozinha, mandei mensagem para perguntando se estava livre. Quase 20 minutos depois, sua resposta chegou, afirmando que em cinco minutos estaria na minha casa.
Desde a noite no baile as coisas estavam… diferentes entre nós. Não estávamos namorando, mas também não éramos mais só amigos. O garoto passava boa parte dos dias na minha casa e, quando não estava lá, ficávamos praticamente o dia todo trocando mensagens. E eu me sentia completamente boba, pois estava sentindo saudades de uma pessoa que via, literalmente, todos os dias desde os 11 anos.
Porém não era como quando nunca tínhamos nos beijado. Era algo mais específico. Sentia falta do seu cheiro, da sua voz, do seu toque, dos seus lábios, dos arrepios que me causava… só de lembrar minhas bochechas queimavam, afinal, isso me levava a outros tipos de pensamentos.
Ao chegar, deu leves batidinhas com as juntas dos dedos no batente da porta para anunciar sua presença. Sorri e acenei para que adentrasse no recinto. Próximo à mim, selou nossos lábios demoradamente. Desvencilhando-me dele, mordi o lábio inferior, segurando o sorriso largo que queria se formar em meus lábios.
― Do que você precisa?
― De socorro. ― ri, passando a mão pelo cabelo que caía em minha testa. ― Preciso embalar o que tá em cima da escrivaninha, guardar minhas roupas e mais umas coisas que eu ainda não achei.
― Então, mãos à obra, né? ― assenti.
Com uma caixa de papelão em mãos, começou a cuidadosamente guardar os livros que eu havia deixado separados sobre a escrivaninha, bem como meu porta-canetas e outros objetos.
Havia algo diferente nele. Parecia contente com algo e, provavelmente, não era por estar ali ou por estarmos nos vendo. Era algo a mais.
― Aconteceu alguma coisa? ― sentei-me na cama, observando sua silhueta iluminada pelo sol de fim de tarde.
― Tá tão na cara assim?
― Bom, você acabou de me confirmar que, sim, aconteceu. O que é? ― encostou o quadril na escrivaninha, me encarando com um meio sorriso.
― Não vim mais cedo para cá porque meus pais e eu tivemos uma discussão.
― E isso é bom?
― Eles queriam saber quais eram meus planos já que não consegui bolsa em nenhuma das universidades pras quais me inscrevi. Disse a eles que não consegui as bolsas porque eu não queria nenhuma delas. Meu pai ficou puto, me deu um sermão de meia hora sobre como eu estava desperdiçando meu intelecto e dinheiro da minha família. Minha mãe perguntou o que eu queria fazer então se engenharia nunca foi uma opção. Falei que queria estudar música e que tudo bem se eles não quisessem pagar, contanto que me deixassem tentar uma bolsa de estudos ou algo assim.
― E o que eles disseram?
― Meu pai falou que tudo bem, mas que não vai pagar nada, se eu quiser, terei que conseguir uma bolsa ou trabalhar. ― deu de ombros.
, isso é ótimo.
― Com certeza é. ― sorriu. ― Já comecei a preparar minha carta de candidatura para o próximo semestre e vou voltar a dar aulas particulares de exatas. Assim, mesmo que eu não consiga a bolsa, vou ter como pagar as mensalidades do conservatório. ― levantei-me da cama e o abracei forte.
― Eu sabia que você ia conseguir.
― Obrigado por acreditar nisso desde o início. ― sorri.
Depois de alguns selinhos trocados, voltamos aos nossos devidos afazeres ao som de Anything, Anything, do Dramarama, para levantar nosso humor. Não que isso fosse nos fazer ser mais eficientes nas tarefas, entretanto, nos deixava mais empolgados e o cansaço demoraria mais a ser percebido pelos nossos corpos.
Às 19h em ponto, minha mãe nos chamou para jantar.
Vic havia aparecido por volta das 17h e, apesar de ter aparecido no meu quarto para nos cumprimentar e saber como estavam os preparativos da minha mudança, permaneceu as duas horas seguintes na cozinha com a minha mãe. Os dois estavam se tornando inseparáveis, o que era fofo, visto que agiam como se fossem um casal, mesmo que não tivessem insinuado sobre um possível relacionamento em nenhuma ocasião.
Quando chegamos à cozinha, ambos já estavam sentados lado a lado em volta da ilha, com a lasanha de brócolis posta sobre o mármore.
― Como está a arrumação lá em cima? ― minha mãe perguntou enquanto cortava pequenos quadrados da lasanha para facilitar a retirada da travessa.
― Faltam algumas coisas, mas acho que até amanhã vai estar tudo embalado. ― dei de ombros.
― Ótimo porque, não sei se você se lembra, mas amanhã é seu último dia aqui.
― Obrigada por lembrar, mãe. ― ironizei. ― Você tá adorando que eu vou embora, né?
― A vida dos pais se resume a: 1) querer um filho; 2) esperar ansiosamente pelo dia que ele vá embora da sua casa. ― debochou, fazendo todos nós rirmos. ― Falando em ir embora, e você, ?
― Bom, eu não entrei em nenhuma das universidades pras quais tinha me inscrito. ― tentou não parecer afetado ao admitir aquilo em voz alta para minha mãe.
― Por que você não quis, né? ― a mulher inclinou a cabeça, como se o incentivasse a olhá-la. Quando o garoto o fez, ambos trocaram um meio sorriso cúmplice.
― É tão óbvio assim?
― Qual é? Você sempre foi o segundo da turma. Acha mesmo que alguma universidade te recusaria? ― deu de ombros. ― Só seus pais para acreditarem nisso. ― falou mais baixo, fazendo-o soltar uma risadinha. ― E o que planeja fazer?
― Conversei com meus pais e eles disseram que posso tentar bolsas para estudar música, mas que não vão pagar por isso.
― Conhecendo eles do jeito que conheço, sei que isso é ótimo.
― É.
― E você precisa de ajuda pra conseguir o dinheiro?
― Vou voltar a dar aulas de reforço, já falei com meus antigos alunos e está tudo bem.
― Qualquer coisa que você precisar, sabe que pode contar conosco, né? ― sorriu e assentiu.
― Muito obrigado. ― minha mãe o respondeu com um outro sorriso, concentrando-se nas primeiras garfadas que deu em seu prato.
― Nossa, isso aqui é muito bom. ― Vic se pronunciou pela primeira vez e, parecendo se lembrar da presença do homem, a mulher, com as sobrancelhas arqueadas, soltou os talheres e limpou a boca com um guardanapo.
― Preciso dizer algo, que, inclusive, é motivo pelo qual Vic está aqui.
― Vai fazer isso agora? ― quase cochichou, como se quisesse que só minha mãe ouvisse.
― Se não fizer agora, quando? ― senti um tom de confronto em sua voz e, aparentemente, Victor também o havia captado.
― Ok, dá pra parar com o mistério?
― Queria dizer que Vic e eu… ― olhou para o homem. ― estamos saindo. ― endireitou a própria postura. ― Não estamos namorando, mas…
― Achamos que deveríamos te contar, já que faz algum tempo. ― Vic completou.
Alternei o olhar entre ambos, mantendo uma feição séria durante os segundos seguintes. Queria ter certeza de que não era nenhum tipo de brincadeira, o que se comprovou devido às suas posturas rígidas e muito tensas, aguardando por uma resposta. Sem conseguir me conter por mais tempo, comecei a sorrir.
― Eu já sabia.
― Já? Como? ― a mulher semicerrou os olhos.
― Vocês não são muito bons em disfarçar. ― dei de ombros.
― Vocês também não. ― rebateu e senti meu rosto queimar.
Encabulado, se concentrou apenas em seu prato. Victor parecia ser o único perdido à mesa e continuou assim pelo resto do jantar por não ter perguntado nada.
Quando todos terminaram, tiramos nossos respectivos pratos da mesa. e eu nos oferecemos para lavar a louça, porém fomos dispensados sob a desculpa de que poderíamos continuar nosso trabalho anterior ou irmos descansar. Na verdade, era só um pretexto para deixá-los a sós de novo.
À caminho do meu quarto, questionou se podíamos assistir um filme, visto que era sexta-feira e este era o nosso ritual das sextas quando éramos crianças. Abrindo o notebook sobre a escrivaninha, li os títulos de todos os filmes guardados em minha nuvem. Para minha surpresa, disse que gostaria de assistir Garota infernal por ser o único dos citados que ele nunca tinha visto além do pôster.
Chocada que alguém que estava em minha vida há tanto tempo ainda não tivesse visto aquela maravilha do cinema trash, conectei o computador a televisão e me sentei ao lado do garoto na cama.
Sem muita cerimônia, segurou minha mão desde o momento que me sentei.
Todavia, lá pelas tantas do filme, de soslaio, o peguei me olhando.
― Que foi? ― comprimi os lábios para não sorrir igual idiota.
Assim que desviou os olhos dos meus, pôs a mão livre em minha nuca, me puxando para perto de si, iniciando um beijo tranquilo. Fechei meus olhos apenas para sentir seus lábios com a devida atenção.
Ao desvencilhar-se de mim, foi minha vez de colar nossos lábios, desta vez, indo, como diria minha mãe, “com muita sede ao pote”. O beijo havia se tornado tão intenso que nossas bocas não estavam sincronizadas, tanto que nossos dentes se chocaram algumas vezes e, definitivamente, não era uma das coisas mais agradáveis que já me aconteceram.
Ajeitando-se, o garoto ficou de joelhos sobre o colchão, ainda sem tirar a boca da minha, apenas para ficar com o corpo mais próximo do meu.
Com a musculatura facial cansada, encerrei o beijo, olhando seu rosto.
― A gente vai…? ― deixei no ar.
― Você quer? ― sem conseguir olhá-lo nos olhos por constrangimento, assenti.
selou nossos lábios e eu dei um meio sorriso.
― Espera aí. ― levantei-me da cama, indo em direção à porta e trancando-a.
Antes de voltar, passei pelo banheiro e procurei pelas tais camisinhas na caixa de emergência. Ao encontrar, fechei a mão ao seu redor e levei para o quarto, depositando-a sobre a mesa de cabeceira.
Subindo na cama outra vez, o deixei me beijar.
A boca do estômago estava apertada de nervosismo. Não acreditava que iríamos fazer aquilo quando supostamente deveríamos estar assistindo o filme que continuava a passar na TV. Ao mesmo tempo em que estava excitada com a ideia de que iríamos experimentar mais uma coisa juntos, estava apreensiva de fazer algo errado ou de não gostar daquilo tanto quanto as pessoas diziam que eu gostaria quando fizesse.
Afastando-se alguns centímetros de mim, tirou o moletom e a camiseta juntos, jogando-os no chão. Selando nossos lábios, suas mãos se dirigiram até a barra da minha camiseta, arrastando-a alguns centímetros para cima. Sabendo que iria tentar tirar minha blusa a qualquer instante, segurei suas mãos para impedi-lo.
― Você se importa se eu não tirar a blusa? ― passei a língua pelos lábios para umedecê-los.
― Tem algo de errado? Se não quiser hoje, nós…
― Não. ― o interrompi. ― Não tem nada de errado e eu quero que seja hoje. Eu só não… enfim, não gosto tanto assim deles e acho que você também não vai gostar.
― Ei, ei, ei. ― segurou meu queixo para que eu o olhasse. ― Não tem nada em você que eu não vá gostar. Você é perfeita à sua própria maneira, . ― deu um beijo na minha testa. ― Mas se você não quer que eu veja, tudo bem. ― sorri, iniciando um novo beijo, fazendo-o cair de costas contra o colchão.
Inclinando-se sobre mim, inverteu nossas posições ficando por cima de mim. Gentilmente afastando minhas pernas uma da outra com a sua, colocou-se em meio a elas, subindo uma das mãos pela minha coxa em direção à bainha do meu short.
Mesmo tensa pelo misto de nervosismo e ansiedade, não consegui evitar suspirar em meio ao beijo quando o senti pressionar sua intimidade contra minha e esfregá-las uma na outra. Era um péssimo dia para ter escolhido usar jeans ou não ter colocado o pijama mais cedo.
Tirando os lábios dos meus, se concentrou em abrir o botão e o zíper do meu short. Ao fazê-lo, saindo do meio das minhas pernas e pondo-se ao meu lado, com um pouco de dificuldade, deslizou uma das mãos para dentro da minha calcinha, passando os dedos algumas vezes sobre o meu clitóris.
― Me fala se eu fizer algo errado, tá? ― assenti.
Até essa parte nós já tínhamos ido na noite do baile, mas ter consciência disso não foi suficiente para não fazer meu corpo inteiro se enrijecer e minhas bochechas ficarem febris. Seus dedos não deslizavam com tanta facilidade e com toda certeza isso estava acontecendo por não estar tão lubrificada. Tal qual aquele dia no meu carro, fechei os olhos para não ter que vê-lo assistir tudo aquilo acontecendo com o rosto tão próximo do meu.
Por mais que seu toque fizesse alguns calafrios percorrerem minha espinha, ainda não estava sendo capaz de me deixar suficientemente molhada. Juntando o pouquinho de coragem que estava surgindo dentro de mim, abri os olhos e, segurando o cós da calça e da calcinha juntos, tirei ambas as peças, jogando-as no chão.
― Posso te mostrar uma coisa? ― questionei baixo, com medo que alguém do outro lado da porta pudesse nos ouvir.
assentiu.
Segurando a mão que usara para massagear meu clitóris, posicionei-a em um ponto específico, iniciando movimento circulares.
― Fica aqui, nessa velocidade. Não precisa mais força nem ser mais rápido, até porque, se você for mais rápido que isso, eu vou… você sabe, muito rápido. ― apertei as pálpebras de leve, mordendo o lábio inferior para bloquear um suspiro alto de sair da minha boca.
Continuando a movimentar os dedos como eu havia sugerido, beijou-me lentamente, inclinando-se para ficar sobre mim outra vez.
Como se tivéssemos regressado ao verão, sentia um calor insuportável tomando conta do meu corpo, me fazendo começar a suar em áreas que, normalmente, nem lembrava que existiam. Por isso, afastei sua mão da minha vagina, ao mesmo tempo em que o garoto, afastou-se para me olhar.
― Eu até aguento duas vezes, mas chegar lá na segunda é meio demorado, então, se a gente vai fazer outras coisas, é melhor parar aqui. ― trocamos um meio sorriso.
Ocupando minhas mãos na tarefa de abrir e ajudá-lo a tirar as próprias calças, estava finalmente conseguindo relaxar por estar tudo correndo bem. Meu rosto ainda estava quente, porém não sabia mais dizer se era somente de vergonha por estar seminua na sua frente, se pela temperatura do cômodo extremamente abafado ou se realmente estava quente ― esta última opção era só eu inventando justificativas na minha cabeça.
Assim que jogou suas últimas peças de roupa para fora da cama, estiquei o braço para alcançar a embalagem de camisinha sobre a mesa de cabeceira. Entreguei-a para , que colocou-a entre os dentes para ouvir e, sem querer, quase o espanquei.
― Tá ficando louco?! Não faz isso! ― tomei de sua mão, rindo de nervoso, abrindo-a e devolvendo a ele. ― Sabe colocar?
― Se eu não souber, sei exatamente quem vai ter o prazer de me ajudar. ― brincou e dei um tapa em seu braço, rindo.
Quando o vi se ajeitar na cama para colocar a camisinha em seu pênis, tive vontade de fechar os olhos. Não queria olhar para seu membro, pois aquilo soava ainda mais constrangedor do que ficar nua na sua frente, entretanto, precisava ver se estava colocando certo. Sim, nem de longe este estava sendo o momento menos embaraçoso da minha vida.
Pondo as mãos no meu maxilar, acariciou-o e trocamos um sorriso cúmplice milésimos de segundos antes de sua boca se grudar na minha outra vez, beijando-me tranquilamente, como já havia feito tantas outras vezes.
Era nestes breves instantes que refletia sobre o quanto esperei por isso. Não pela primeira transa em si, mas para ter esse momento com ele. e eu nos conhecíamos há tanto tempo, porém não assim e, depois da primeira vez que nos beijamos, queria muito poder conhecê-lo nesse sentido também. Essa curiosidade só aumentou após saber que ele também esperava ter essa experiência comigo. E, cá estávamos nós, muito mais do que imaginando, realizando o que imaginávamos em nossos momentos mais íntimos.
Ajeitando-se em meio às minhas pernas novamente, o garoto continuava a me beijar, como se estivesse me dando tempo para me acostumar com a ideia do que viria a seguir. Desvencilhando sua boca da minha, me olhou nos olhos, afagando meus cabelos próximos às minhas orelhas, afastando algumas mechas do meu rosto.
― A hora que você quiser… ― sussurrei, selando nossos lábios, esperando pela sua próxima ação.
Tirando uma das mãos da minha cabeça, se posicionou em minha entrada, penetrando-me aos poucos. Fechando os olhos, soltei um suspiro baixinho à medida que o sentia mais e mais dentro de mim. Não doeu e, se houve sangue, era algo que veria depois, entretanto, não foi a melhor sensação que já senti em toda a minha vida.
As primeiras vezes que o senti entrando e saindo, mesmo que muito vagarosamente, foram desconfortáveis. Não era insuportável e nem chegava a gerar dor, só não era… gostoso, como os filmes, os livros e as revistas femininas tanto vendiam.
Todavia, pouco a pouco estava me acostumando. Conforme aumentava a velocidade com que seu quadril se chocava contra o meu, parecia que seu membro deslizava com cada vez mais facilidade para dentro e para fora de mim. Sua respiração batia contra o meu rosto, quente e pesada, misturando-se à minha. A verdade é que estávamos nos esforçando para não fazer ruídos que chamassem demais a atenção de nenhuma das duas pessoas que estavam no andar de baixo.
Tirei uma das mãos de sua cintura, direcionando-a ao meu clitóris para estimulá-lo. Parando de se movimentar, o garoto pareceu tremer um pouco e saiu por inteiro de dentro de mim. Continuei a desenhar círculos imaginários sobre meu ponto mais sensível. Entendendo que eu ainda não tinha conseguido gozar, penetrou dois de seus dedos em mim, mantendo uma velocidade parecida com a que eu havia estabelecido no clitóris, imitando-me sempre que acelerava um pouco mais.
Quando um gemido baixo escapou pelos meus lábios, me beijou para abafar todos os outros que vieram logo após.
Meu corpo se contorcia e minhas costas arqueavam brevemente toda vez que um arrepio percorria minha espinha. Uma sensação de preenchimento crescia em meu ventre, acumulando-se, pontinho por pontinho, prestes a explodir. Todo o ar dos meus pulmões era expelido pela minha boca, queimando minhas vias aéreas.
A mistura de tudo isso ao mesmo tempo, sem demora, transformou-se em um orgasmo cheio de espasmos que afetavam meus membros inferiores e superiores.
Arrastando os dedos para fora de mim, selou nossos lábios uma última vez antes de se levantar para jogar o preservativo usado no lixo do banheiro, voltando para se deitar comigo alguns minutos depois.
Lado a lado, ficamos encarando o teto por algum tempo com nossos ombros se encostando.
― Foi bom pra você? ― questionou.
― Sempre achei que fosse ser meio bosta, mas foi melhor do que eu imaginava. ― dei uma risadinha nervosa. ― E pra você?
― Foi bom, mas me sinto meia bomba por ter gozado antes. ― controlando a vontade de gargalhar, me limitei a soltar uma risada sem som. ― E você ainda ri.
― Pelo menos você não broxou na primeira. Isso, sim, seria frustrante. ― riu.
― Sempre pode ser pior, né?
― Sempre.
De soslaio, o vi deitando-se de lado para me olhar.
― Acho que vou ter que assistir o fim do filme outra hora. ― sorri. ― De preferência, sozinho. ― dei um empurrãozinho de leve em seu peito.
― A gente assiste outra hora. Com meus pais na sala. ― riu.
― Ansioso pra esse momento com meus sogros.
― Que sogros? ― franzi as sobrancelhas.
, eu sei que você vai embora em dois dias e que, provavelmente, vai conhecer algum cara bombado na faculdade, mas eu queria...
― Sim. ― o interrompi, deitando-me de lado para olhá-lo.
― Você nem sabe o que eu vou falar.
― Sei, sim, e estou evitando o constrangimento que vai ser você ficar até amanhã pra formular essa frase, sendo que a resposta é sim.
― Você nem pensou sobre. ― mordeu a parte interna da bochecha.
― E eu nem preciso. A gente acabou de dividir algo importante, acho que isso é o suficiente, né? ― puxando-me para perto, envolveu-me em seus braços e, em silêncio, acabamos adormecendo.
Na manhã seguinte, ao acordar, nos vestimos, escovamos os dentes ― e Sophie tinham utensílios de higiene básica armazenados nos armários do meu banheiro para noites em que ficavam por ali mesmo ― e descemos para tomar café.
Surpreendendo um total de zero pessoas, Victor ainda estava lá, o que indicava que eu não era a única a ter dormido acompanhada.
― Ele dormiu aqui? ― Vic arqueou uma das sobrancelhas, apontando para com jeito de que estava preparando uma bronca.
Dei de ombros, fazendo pouco caso.
sempre pôde dormir aqui, assim como a Sophie.
― Você também dormiu aqui, Victor, e ninguém está fazendo disso uma grande coisa. ― minha mãe o repreendeu com um deboche. quase riu, não fosse pelo pisão que dei em seu pé.
― Sim, mas é diferente.
― Em quê? ― minha mãe arqueou as sobrancelhas como quem espera por uma resposta, assumindo aquela postura de ataque, com os braços cruzados em frente ao peito. ― e se conhecem desde que eram crianças. Ele tem minha permissão para vir e dormir aqui sempre que quiser e precisar, ok?
― Ok, desculpe. ― ergueu as mãos em sinal de rendição.
― Ah, desculpe também. Deveríamos ter perguntado se tudo bem eu ficar aqui. ― o garoto tentou apaziguar a situação. ― É que assistimos filme e acabou ficando tarde, então… ― coçou o maxilar.
― Mesmo que não fosse isso, tá tudo bem, querido. Você é bem-vindo sempre que quiser, certo? ― pôs uma mão sobre o ombro do garoto e lançou um olhar brevemente irritado para Victor. Por mais que não falassem mais sobre isso na nossa frente, aquele assunto não acabaria tão cedo.
Enquanto tomávamos nosso café, minha mãe perguntou o que ainda faltava ser arrumado para minha mudança no dia seguinte. Assim que listei o que havia ficado por fazer, Vic e ela, bem como , se voluntariaram para me ajudar a finalizar o mais rápido que conseguíssemos.
Após terminarmos a refeição, fomos todos ao meu quarto e só ouvi minha mãe soltar um “puta que pariu” bem baixinho ao ver a bagunça que o cômodo estava. Mas isso não foi o pior. Ajudando-me a passar fita para lacrar as caixas já prontas, a mulher sussurrou:
― Porra, filha, podia ter terminado de arrumar essa merda antes de dar umazinha, né? ― arregalei os olhos instantaneamente.
As notícias corriam muito rápido naquela casa e não era preciso nem que fossem verbalizadas para isso.
Finalizamos tudo pouco antes das 17h. Minha mãe havia decidido que iríamos sair para jantar em minha última noite em casa, convidando para ir conosco. Por ter passado praticamente os últimos dois dias na minha casa, meu, agora, namorado recusou, dizendo que apareceria na manhã seguinte para nos despedirmos. Chateada, fiz uma força tremenda para não deixar isso transparecer. Não queria que se sentisse obrigado a ir para não me contrariar ou coisa do tipo.

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Durante o jantar, minha mãe levantou-se para ir ao banheiro, deixando Vic e a mim à sós com nossas respectivas refeições.
― Você e o seu amigo estão… ficando, namorando?
― Agora, namorando. ― dei um meio sorriso.
― Desculpe por hoje de manhã. Não fiz por mal. É só que… às vezes, me esqueço que você não está mais na fase de ser cobrada ou censurada em relação a certas coisas, que eu perdi essa parte da sua vida. ― mordeu a parte interna da bochecha. ― Enfim, ele parece um bom garoto e vocês parecem se gostar. Acho que isso é o que realmente importa, né?
― Foi até engraçado, na verdade. ― sorri. ― Quer dizer, nunca ninguém falou aquelas coisas pra mim e aí até achei que você tava, sei lá, brincando. ― riu. ― Desculpa, é que é meio absurdo ouvir aquilo e ser algo sério. ― franzi a testa, tentando não soar de um jeito que pudesse ser mal interpretada.
― É que você foi criada de um jeito completamente diferente de todas as outras crianças da sua idade que vi crescendo. Ainda é um pouco difícil assimilar algumas coisas, mas tô me esforçando. Seus pais fizeram um bom trabalho com você. ― dei um meio sorriso.
― É, eles fizeram, sim.
Quando minha mãe voltou, o assunto mudou totalmente, pois estava cheia de piadinhas para contar sobre o que havia acontecido com a nova leva de modelos que havia contratado na agência.

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De manhã, com o porta-malas do carro carregado, meus pais, minha madrasta, Victor e meu namorado estavam todos de pé, um ao lado do outro, prontos para se despedirem de mim. Inicialmente, o plano era que me levassem até o campus, no entanto, como a minha família era a personificação da casa da mãe Joana na vida real, achamos melhor que a despedida fosse em casa mesmo e eu que me virasse para descarregar minha mudança no meu dormitório.
Tia Sam foi a primeira pessoa a me abraçar. Desejando-me boa sorte em minha nova jornada, segurou meu rosto entre suas mãos, dando uma boa olhada e puxando-me para baixo para poder me dar um beijo na testa. Como era costume com quase todos nós, me deu de presente um saquinho com incensos para acender em meu novo lar, para afastar os maus espíritos, me ajudar em momentos de ansiedade e me dar prosperidade de conhecimento.
Em seguida, foi a vez do meu pai, que me deu um abraço longuíssimo, do qual achei que ele não me soltaria jamais. Não teria nenhuma objeção a fazer quanto a isso, uma vez que, em meio aos braços do meu pai, foi onde estive mais segura durante toda a minha vida. Beijando meu rosto, desvencilhou-se de mim sem dizer nada.
Abracei minha mãe, encostando a cabeça em seu ombro. Seus olhos estavam avermelhados, porém não haviam lágrimas nele. Ela estava segurando o máximo que podia, com toda a certeza.
― Não aceite bebidas de estranhos, não saia com homens muito mais velhos, não aceite carona de quem você não conhece. Se quiser usar drogas, por favor, compre as suas e use perto de alguém de confiança, ok? ― cochichou no meu ouvido e eu ri.
― Não é isso que você deveria me dizer. ― desvencilhei-me dela.
― E você quer que eu diga o quê? Não faz tanto tempo assim que eu fui universitária e, sinceramente, não existe nada que você pense em fazer que não fiz, pelo menos, três vezes pior. ― franziu as sobrancelhas. ― Você vai se sair bem contanto que respire fundo, beba água, diminua os cigarros e se aqueça bem antes dos treinos. ― passou as mãos pelos meus braços.
― Como você sabe sobre…? ― não finalizei.
― Você acha que eu sou trouxa? , fumar de janela aberta não impede que o carpê e as cortinas do seu quarto tenham cheiro de cigarro, ok? Assim como o seu pai, já sei que você não vai parar, então, só tente não fumar tanto quanto ele, tá? ― dei uma risadinha sem graça, assentindo.
Dando dois passos para o lado, parei em frente à . Despedir-me dele em frente a todos é que seria constrangedor.
― Você vai me ligar quando chegar lá? ― perguntou e eu concordei com a cabeça, sorrindo. ― Vou sentir sua falta. ― selou nossos lábios e me abraçou.
― Eu também vou sentir a sua. Por favor, não me troque por nenhuma vadia básiquinha enquanto eu não estiver por perto, tá? ― sussurrei em seu ouvido, fazendo-o rir.
― Eu vou tentar. ― respondeu ao me soltar.
― Idiota. ― dei um tapinha com as costas da mão em seu peito.
Ao seu lado, estava Vic, com as mãos nos bolsos frontais da calça.
― Então… ― deixou no ar.
― Então… ― imitei-o.
― Acho que é um até logo, né? ― assenti.
― Vic, sei que nunca te agradeci por ter acreditado nas minhas palavras e ter aceitado fazer o teste, então, acho que te devo isso, né?
― Você não me deve nada, . Fico muito feliz e grato que você tenha me aceitado na sua vida, mesmo a gente tenha convivido tão pouco e vá conviver ainda menos a partir de agora.
― Vic? ― chamei-o depois de alguns segundos. ― Você se importa se eu também te chamar de pai? ― arqueou as sobrancelhas, surpreso.
Alguns segundos se passaram até que palavras saíssem por entre seus lábios novamente.
― Posso te dar um abraço… filha? ― sorri, abrindo os braços e deixando-me ser envolvida por ele.
Por muito tempo na minha infância, sempre imaginei como seria ter um pai. Eu via as outras crianças acompanhadas de seus pais na saída da escola, no parquinho, no treino de handebol e imaginava que deveria ser algo legal, diferente de só ter mãe.
Minha mãe sempre foi uma mulher muito determinada, porém ela não conseguia interpretar dois papéis. Às vezes, não dava conta nem do dela e tudo bem porque a vida é difícil, nem sempre damos conta de tudo que achamos que conseguimos dar.
Quando se declarou meu pai, tudo parecia ter mudado. Eu não era mais , a menina sem pai. Naquele momento, havia alguém que tinha assumido aquele papel na minha vida e que poderia denominá-lo assim, pai. E ele foi o melhor. Cozinhou para mim, me deixou jogar videogame por mais tempo do que minha mãe deixava, me ensinou a fazer tranças, retocou a coloração azul do meu cabelo e até seguiu meu plano de exercícios semanalmente quando me tornei capitã do time.
Entretanto, ao descobrir que não compartilhávamos ligações sanguíneas, algo em mim pareceu se perder. continuava sendo meu pai, mas ilusão que tinha sobre quem era eu pareceu se quebrar. Foi como perder uma parte da minha identidade. Se não era biologicamente , então… quem eu era?
Um grande ponto de interrogação surgiu sobre a minha cabeça e só ganhou uma nova forma quando Victor entrou em cena. A interrogação agora tinha nome, sobrenome, endereço fixo, uma renda e um passado compartilhado com a minha mãe.
Observando-o de perto, não havia nada que dissesse que não éramos pai e filha. Compartilhávamos os mesmos olhos claros, pele de subtom quente e cabelos de cachos largos.
E, de repente, aquela sensação de registro de identidade desaparecido tinha ido embora para sempre. Agora, eu não só sabia de onde vinha, como tinha plena certeza de para onde queria ir e, de quebra, gostaria muito que meus dois pais estivessem lá comigo.
Quem diria, hein? Sete anos sem um pai. 11 anos com um pai. E, atualmente ― e contando―, com dois pais.
É, eu era mesmo uma garota de sorte.
Afastando-me de Vic, dei um último sorriso antes de finalmente entrar no carro e afivelar meu cinto de segurança. Dando partida, liguei o som, onde a introdução de Heroes, de David Bowie, passou a preencher os auto-falantes e, antes de soltar o freio de mão, gritei um “amo vocês” pela janela do carro e acenei.
Ao mesmo tempo que sentia uma pontada no peito pela partida, sabia que era temporário. Em breve, nos veríamos outra vez, como nos filmes.
E eu tinha certeza que enquanto os tivesse, não importava onde fosse, sempre teria um lar para retornar.




FIM.



Nota da autora: Não consigo expressar em palavras a alegria e a tristeza que tô sentindo por termos chegado aqui. who are u? durou bem menos que minhas outras longs, mas ela teve o tempo que precisava ter sem se perder ou ficar sem pé nem cabeça rs
Essa é uma fic bem diferente de tudo que eu já escrevi por ser bem mais levinha, os pps serem bem mais jovens e estarem em ambientes bem diferentes do que costumo abordar, por isso, espero que tenha suprido o que vocês queriam ou imaginavam que ia ser porque pra mim foi uma delícia criar e escrever cada um deles <3
Obrigada a todes e nos vemos por aí!!


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