2015 — Ele

— Ei, campeão! — coloquei a cabeça para dentro do quarto e vi o menino sorrir.
— Pai! — ele deixou o controle do vídeo game na mesa de cabeceira e me chamou com a mão. Entrei, encostei a porta e sentei ao seu lado na cama. — Como foi a festa?
Eu sabia o quanto ele estava animado para ir, mas o horário era completamente inapropriado para crianças, então preferi não entrar em detalhes sobre os acontecimentos.
— Chata. Muito chata. — fiz uma careta, colocando a língua para fora e ele riu.
— Ufa. Ainda bem que não fui então. Foi muito mais legal jogar vídeo game e brincar com o Gabe.
— Aposto que sim. — sorri — Mas o que o senhor ainda faz acordado? Amanhã tem escola, cabeçudo. — baguncei seus cabelos apenas para irritá-lo e ganhei uma cara feia e um “Para, pai!” com um tom entediado. — Pode tratar de desligar o jogo e ir dormir.
— Eu sei... É que eu... — ficou nervoso e mordeu a bochecha internamente. Mania da mãe. Sorri. — Eu queria te perguntar uma coisa. — olhei em seus olhos, procurando algum sinal de que algo estava errado, mas ele parecia apenas ansioso.
— Pode perguntar. — ele levantou os olhos e escaneou o quarto, provavelmente procurando as palavras certas. — Fala, filho.
— Pai... O senhor já se apaixonou? — soltou as palavras nervoso e respirou fundo.
— Claro que sim, filho. Acha que estaria casado com a sua mãe se não fosse apaixonado por ela?
— Não... Eu quero dizer... O senhor já amou? Tipo aqueles amores da TV. À primeira visita ou algo assim... — ele gesticulava com as mãos, tentando se livrar do nervosismo. Mais uma mania herdada da mãe.
— À primeira vista, campeão. — eu ri e ele rolou os olhos.
— É, tanto faz. E ai, sim ou não?
— Filho... — respirei fundo, pensando em como iniciar uma conversa com essa com um menino de dez anos. — O amor tem várias formas. Vários gestos que demonstram o sentimento. Amar alguém é querer ver quem se ama sempre feliz. Amar é desejar o bem, é cuidar, é querer estar perto. Amar é olhar para alguém e saber que aquela pessoa é essencial para a sua vida e que, sem ela, as coisas são mais difíceis, menos agradáveis. Entende?
— Então amar é só querer que os dois sejam felizes?
Passei a mão no cabelo, completamente desnorteado. Por que diabos ele não poderia ter perguntando para a mãe?
— Pense assim: quando não há amor, é como se tudo fosse cinza, sem graça. Mas, quando há amor, qualquer tipo de amor, a cor nasce, deixando tudo mais alegre.
Ele acenou com a cabeça, como se entendesse a metáfora ridícula que eu tentara usar. Nunca fui bom em expor meus sentimentos, quem dirá explicar o significado. desligou o vídeo game, deitou na cama e eu puxei o cobertor até a metade de seu corpo.
— Posso saber o motivo da pergunta?
— Pai... Eu acho que estou amando.
Quase engasguei. Meus olhos arregalados devem ter anunciado minha surpresa com a frase, porque encolheu o corpo no colchão.
— É mesmo? E quem seria a garota sortuda que tem meu filho como um pretendente?
— Ah... — ele balançou a mão no ar — O nome dela é Helena. Estudamos na mesma classe. Mas não acho que ela sinta o mesmo por mim.
— No começo é assim mesmo, filho. Não há como ter certeza. O que importa é saber se ela gosta tanto da sua companhia como você provavelmente gosta da companhia dela. O resto vem com o tempo.
— Quanto tempo?
— No seu caso, muito tempo, campeão. — eu ri e ele soltou um risinho nasalado. Dei um beijo em sua testa e levantei da cama.
— Pai…
— Hm?
— Qual foi o nome do seu primeiro amor? Porque assim, você e a mamãe já estão muito velhos... Não pode ter sido ela.
Eu apenas gargalhei e balancei a cabeça. Se ele não iria esquecer do assunto tão cedo, era melhor contar logo de uma vez.
— Tudo bem. Vou lhe contar uma história, pode ser? — olhei para o relógio, confirmei que tínhamos alguns minutos e sentei novamente na cama. Ele acenou animado e eu comecei. — Veneno, filho. O nome dela era Veneno.

1989 — Ela
“Meia noite no meu quarto
Ela vai surgir...”

— Verdade ou consequência?
— Por favor, até parece que não me conhece. — bufei — Consequência, óbvio. — Carolina sorriu maliciosa, pensou um pouco e, quando julgou bom o suficiente, lançou-me o desafio.
— Quero que você invada algum desses apartamentos.
O burburinho foi inevitável. Alguns a encaravam chocados, outros apoiavam a escolha e os mais medrosos gritavam meu nome, dizendo que aquilo era correr risco por besteira. Eu apenas rolei os olhos e apontei para o apartamento no primeiro andar, cuja janela era de fácil acesso graças à imensa árvore que estava na frente. Tirei minha jaqueta de couro para não ter nenhum empecilho durante a escalada e mandei um beijo no ar para todos ali presentes.
Não era como se invadir o apartamento fosse dar cadeia. No máximo, os proprietários chamariam a polícia e essa nos dispensaria com uma advertência e um telefonema para os nossos pais. Não estávamos bebendo ou usando drogas e a maioria de nós morava ali por perto. Éramos apenas um grupo de dez adolescentes ávidos por segredos estúpidos do colegial e um placebo de adrenalina.
Respirei fundo e firmei o pé na árvore, para ter certeza de que não quebraria nenhum osso caso caísse lá de cima. Quando senti confiança, puxei alguns galhos para ter impulso e comecei a subir. Todos os prédios de apartamentos do Plano Piloto tinham apenas seis andares, então a altura era relativamente pequena. Apenas alguns minutos depois, eu já apoiava metade do corpo no parapeito da janela do quarto e forçava a trinca que, para a minha sorte, abriu com pouco esforço. Coloquei uma perna do lado de dentro e outra do lado de fora do quarto e dei um “tchauzinho” para os meus amigos.
Pulando no quarto com o máximo de graciosidade e silêncio possível, consegui firmar os pés no chão sem grandes ruídos. Estava salva. Comecei a andar pelo cômodo, iluminado apenas pela luz que vinha de fora do prédio, e notei algumas roupas jogadas em um canto do chão, uma bola de basquete e outra de futebol, pôsteres na parede e a cama desarrumada. Sem bonecas, sem penteadeira, sem rosa. Com certeza um quarto masculino até normal para os padrões. Se não fosse a estante absurdamente grande de livros e LP’s.
Eu sabia que meu desafio estava cumprido e que já poderia descer, mas a curiosidade falou mais alto. Voltei para a janela e vi meus amigos já entretidos com alguma outra coisa, esquecendo completamente de mim. Sorri com o tempo extra que havia ganho, encostei a porta do quarto do ser estranho que ali dormia e acendi o abajur, localizado na mesinha ao lado do grande pote de ouro.
Não gastei muito tempo com os livros, mas Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa eram alguns dos nomes, além de Stephen King, Shakespeare, Victor Hugo e Oscar Wilde. Alguns livros de escola, enciclopédias e mais algumas coisinhas. Hm, pessoa culta e inteligente. Gostei. Quando cheguei aos LP’s, senti meu coração bater mais forte. The Rolling Stones, The Clash, Led Zeppelin, Queen, Sex Pistols, The Beatles... Ok, esse estranho definitivamente merece meu respeito.
Estava analisando um chaveiro maravilhoso dos Beatles quando ouvi o tilintar de um copo ao cair no chão. Droga. Eu havia sido pega. Fechei a mão no chaveiro e virei para encarar a futura pessoa que me colocaria em encrenca.
— Deus! Quer acordar a vizinhança inteira deixando esse copo quebrar? — sussurrei para a figura que eu imaginava ser o dono do quarto e passei a mão no cabelo, extremamente nervosa.
— Quem diabos é você e o que está fazendo no meu quarto?
Inferno! Fiquei tão concentrada e apaixonada pelo gosto musical do ser humano que não percebi a porta abrir ou a figura bizarra parar exatamente atrás de mim. Olhei para todos os cantos, tentando achar algum lugar para correr, mas o menino relativamente alto e que estava na minha frente, com toda certeza, conseguiria me alcançar caso eu ameaçasse correr.
— Er... Eu... Hm... — minhas mãos suavam frio e eu já havia pensado em trinta e sete mil desculpas diferentes para dar, mas nenhuma pareceria convincente o suficiente para me tirar dali.
— Vai desengasgar ou preciso chamar a polícia? — ele levantou uma sobrancelha e esticou a mão até o aparelho de telefone.
— Não! — gritei e ele voltou o olhar para mim — Não precisa chamar ninguém. Eu já estava de saída. — comecei a andar em direção à janela, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro e fazer ainda mais barulho, mas ele segurou meu braço com força e eu soube que não haveria escapatória.
— Vou te dar mais uma chance de responder. Quem é você e o que está fazendo aqui?
Respirei fundo, coloquei a maior cara de encrenqueira e voltei meu corpo para frente. Se ele queria informações, eu lhe daria informações. E ainda sairia dali com graça e charme.
— Ei, calma. Não precisa estressar. — ele levantou mais uma vez a sobrancelha e eu apontei para o meu braço, querendo que ele o soltasse — Eu só entrei aqui para cumprir um desafio. Não ia roubar nem nada. Fica tranquilo.
— Tranquilo? — o estranho riu sarcástico e eu bufei. Estava ficando sem paciência para estar ali. — Eu saio para buscar um copo com água e encontro uma pirralha metida a roqueira dentro do meu quarto, mexendo nas minhas coisas, à meia noite. — ele rolou os olhos — Pode ter certeza de que tranquilo será meu último estado emocional.
— Pirralha metida a roqueira é o seu nariz. — ponto para o estranho. Eu estava oficialmente irritada e ofendida — Eu até pensei em elogiar seu gosto musical, mas você é tão desprezível que não vale o elogio.
— Você invade o meu quarto e eu sou desprezível? É inacreditável.
— Inacreditável é eu ainda estar aqui. — virei mais uma vez em direção à janela. — Se me dá licença, eu preciso ir embora.
Dei as costas e corri até a janela, mas ele conseguiu ser mais rápido e me impediu de sair, entrando na minha frente, trancando a janela e sentando no parapeito.
— Você não sai daqui até me dar uma explicação decente. — cruzou os braços e me desafiou.
— Eu já falei! Inferno!
— Quer que eu acredite que entrou aqui apenas por um desafio? — riu — Você?
— Tem algum problema comigo? — empinei o nariz e cruzei os braços. Dois podem jogar esse jogo, baby.
— Todos, aparentemente. — eu rolei os olhos e ele suspirou, descruzando os braços e os levantando em posição de rendição. — Olha, eu não quero problemas, então prometo não ligar para a polícia. Mas acho que mereço saber a verdade.
Olhei em sua direção e ponderei a oferta. Eu realmente não queria voltar para casa no carro da polícia ou fazer a vovó acordar em plena madrugada para me buscar, correndo o risco de causar um infarto na velhinha, então assenti e aceitei suas palavras.
— Eu falei a verdade. Olha, meus amigos moram aqui perto e nós estávamos no gramado da quadra, jogando verdade ou desafio. — ele ameaçou falar, mas eu levantei o dedo e o impedi de continuar. — Como não sou covarde, aceitei o desafio de invadir algum quarto do prédio e, graças à gigante árvore exatamente na frente da sua janela, o seu foi o escolhido.
— Continue…
— Foi apenas isso. O plano era entrar, esperar uns cinco minutos e depois sair. Sem pegar ou danificar nada. Não sou ladra.
— Não, mas gosta de invadir a casa das pessoas.
Bufei e ele riu.
— Não era para você saber. Meu problema foi bisbilhotar sua coleção de LP’s e perceber que seu gosto musical é surpreendentemente bom.
— Conhece as bandas que estão ali? — ele encarou-me surpreso e eu revirei o olho.
— Não sou uma pirralha metida a roqueira. Eu realmente gosto das músicas.
— Ok. — ele desencostou do parapeito e caminhou até a cama, apontando com o dedo para que nós sentássemos. — Estou oficialmente surpreso. Quem diria que você sabe alguma coisa sobre música?
— Sei bem mais do que pensa.
— Ótimo. Teremos assunto para conversar então, já que você mandou meu sono para a China.
— Conversar? — sacudi a cabeça e tentei organizar as ideias. Ele estava achando que eu ficaria ali?
— É. — assentiu — Senta. Eu não mordo.
— Não sei o que tinha na sua água, mas eu não vou ficar. Preciso ir embora e tenho que aproveitar meus amigos para me levarem em casa.
— Bom, se não vai ficar, poderia voltar qualquer dia... Eu posso ser bonzinho e te deixar mexer nos meus LP’s. — ele sorriu e eu joguei a primeira coisa que consegui encontrar em sua direção.
A bola de futebol teria acertado em cheio a cabeça do garoto se os reflexos dele não fossem tão irritantemente bons. Ele rolou os olhos e jogou a cabeça para trás e eu aproveitei para passar uma perna pela janela.
— Ei! — ele segurou meu braço mais uma vez. Que maniazinha irritante! — Você é rapidinha, hein?
— E você tem uma mania chata de pegar nas pessoas sem permissão. — apontei com a cabeça e ele desfez o aperto, coçando a nunca em seguida.
— Desculpe. Mas você realmente já vai embora?
— Ficou encantado pela pirralha? — desdenhei.
— Claro, assim como ficaria encantado com a nossa conversa sobre bonecas…
O estranho se aproximou e eu conectei nossos olhares. Não tinha percebido até agora, ocupada em irritá-lo ou achar uma maneira de fugir, mas ele era verdadeiramente bonito. Seus traços já de homem, um início de barba por fazer, o sorriso impecável e os olhos claros, que refletiam a luz vinda do lado de fora do quarto. Sorri e deixei que ele se aproximasse ainda mais de mim, quase colando nossos corpos.
— Não vai nem me dizer seu nome?
— Nomes são irrelevantes, principalmente quando não se planeja encontrar a outra pessoa por um longo período de tempo. — ele negou e eu continuei — Além disso, não é como se fôssemos lembrar disso daqui a uma semana, então não.
Ele respirou resignado e acenou, saindo do caminho para que eu tivesse um espaço maior para pular até a árvore.
— Espero que chegue em casa inteira.
— Obrigada. — agradeci verdadeira — Ah, e por falar nisso, estou levando aquele chaveiro maravilhoso dos Beatles comigo! — abri a mão e mostrei o objeto.
— Você disse que não era ladra.
— Eu sei, mas ele realmente cativou minha atenção. — sorri sapeca e pulei, alcançando a árvore com facilidade.
— Meu nome é !
— Não que eu ligue, mas muito prazer, . — ele riu — Eu sou a menina que invadiu a sua casa.
Sorri e terminei de descer da árvore, encontrando meus amigos já na saída do parque da quadra. Vesti a jaqueta de couro que havia deixado com eles antes de subir e segurei o chaveiro de dentro do bolso, como se não quisesse que aquele momento escapasse e, revivendo os últimos segundos com ele, tinha quase certeza de que seu sussurro realmente havia sido real e não apenas fruto da minha imaginação.
“Não, menina. Você é veneno.”
— Adeus, .

2000 —Ele
“Eu nem sei qual seu nome
Mas nem preciso chamar...”

Olhei no espelho mais uma vez e chequei minha produção. Estava bom o suficiente para conquistar algumas moças. Hoje à noite, o pessoal da comunicação resolveu fazer um baile para os alunos e, como sempre, meus amigos me arrastaram. Não curtia muito festas. Preferia andar no parque, ir ao Pontão fazer um som, um cineminha, ou até mesmo ficar em casa ouvindo os LP’s que tenho desde criança.
The Beatles parou de tocar e decidi colocar uma coisa mais brasileira. Mexi na gaveta ao lado do guarda-roupa e peguei a caixa cheia de discos, uma herança do meu avô. Desde criança, dividíamos o amor por coisas antigas e quase tudo foi herdado dele. Lembro-me como se fosse ontem: nós dois na varanda de casa e ele me mostrando cada artista, contando várias histórias da sua juventude e tomando um gole de vinho. Por mais engraçado que seja, levei essa tradição para vida e, nesse momento, uma taça de vinho descansava na bancada ao lado dos meus livros.
Peguei o disco intitulado aleatório — com várias músicas de artistas diversos — e coloquei para rodar. Voltei em frente ao espelho, arrumando a máscara, já que a festa era a fantasia, como se fosse coincidência, Menina Veneno começou a tocar. Nesse exato momento, flashes vieram em minha mente e pude me recordar de uma garota em especial. A menina maluca e linda que invadiu meu quarto a 11 anos atrás.
Até hoje não consegui descobrir o seu nome e isso me atormentou durante boas horas no dia em que a conheci. Desci e procurei embaixo do prédio, mas não havia nem rastro da tal invasora. Nem preciso dizer o quão abobalhado fiquei quando encontrei uma garota bonita dentro do meu quarto. Pensei que era obra dos meus amigos, mandando alguém para me “colocar na linha”, mas quando ela veio com o papo de discos e ainda roubou meu chaveiro, já estava apaixonado no senso mais ridículo da palavra. Desde então, sempre que ouço essa música, a Veneno, como a apelidei, aparece na minha cabeça e eu me bato internamente cada segundo por não tê-la impedido de partir.
Tirei os tais pensamentos da minha cabeça quando meu celular tocou. Abri o aparelho e vim uma mensagem do Thiago, meu amigo. Ele já estava lá embaixo me esperando, então apenas arrumei a máscara no rosto e saí. A noite seria longa.

***

A festa estava animada. Música alta, pessoas dançando com copos na mão. Tentei entrar no clima, já que estava ali, e peguei uma bebida colorida. Saí andando no ritmo da música e sorri para algumas moças que me olhavam, sendo o mais simpático que podia. Aproximei-me do resto do meu grupo de amigos já me preparando para ouvir suas piadinhas. Como não saía muito para esses programas de jovens, sempre era o alvo da zoeira da turma.
— Olha quem resolveu sair da toca. — meu amigo comentou rindo.
— Ih, nem vem. Estou aqui, não é? — respondi carrancudo.
— Foi uma dificuldade para tirar esse bundão de casa, mas finalmente consegui. — Thiago chegou ao meu lado fazendo gracinha.
— Vou me arrepender de ter vindo? — questionei, sem tempo para piadas.
¬— Vamos deixar a boneca de lado, pelo menos ele veio. — André disse.
— Agora que eu já fui buscar e garanti que ele estava aqui, vou procurar uma loirinha que vi quando a gente chegou. — Thiago disse malicioso e sumiu no meio da pista.
Continuei tomando minha bebida e socializando com meus amigos. Olhei para o lado, meio distraído com a conversa, quando a notei entrando. Se eu dissesse que ela era a garota mais bonita que eu vi na vida, não estaria mentindo nem exagerando. Mesmo que estivesse de máscara, conseguia ver aqueles olhos verdes refletidos na luz forte do lugar. O rosto de boneca e corpo escultural apenas completavam a obra de arte.
Fiquei abobalhado no primeiro instante. A menina conversava com todos a sua volta de uma forma natural. Estava encantado e não conseguia tirar meus olhos da convidada misteriosa. Os rapazes com certeza perceberam, porque todos pararam a conversa e se concentraram em mim, mas eu não conseguia olhar para outra coisa a não ser a garota no meio da pista.
— Quem é essa? — perguntei, sem tirar os olhos dela.
— Como?
— A garota que está dançando. — olhei para André. — Você costuma conhecer todo mundo e deve saber o nome dela, então, qual é?
¬— Juro que eu não me lembro dessa garota. Nunca a vi na vida, pelo menos não estou reconhecendo-a de máscara.
Assenti inconformado e bebi o último gole da minha bebida. Com uma coragem súbita, levantei do lugar e fui até ela. No meio do caminho, uma música lenta começou a tocar e, se eu pudesse, ajoelharia e agradeceria a Deus naquele momento. Já era um cara desajeitado dançando músicas lentas, imagine eletrônica?! Respirei fundo e me aproximei, fixando meu olhar na linda moça. Ela olhou de volta para mim e sorriu, os dentes brancos e o sorriso brilhante. Aproximei-me ainda mais e estendi minha mão, sendo supervisionado por seu olhar analisador.
— Aceita dançar comigo?
— Não sei se deveria. — respondeu atrevida, deixando um sorriso no canto da boca.
— Só vai saber se aceitar. — disse convicto. — Então, aceita?
Ela olhou para mim, talvez considerando a ideia de aceitar ou não. No momento em que meu braço já havia cansado de estar estendido e as esperanças se esvaiam dentro de mim, decidi sair e voltar ao meu lugar. No entanto, a misteriosa garota pegou minha mão e sorriu, puxando-me para a pista de dança, como se ela tivesse me convidado e eu fui, como um bobo atrás dela, até pararmos no centro.
— Oi. — disse, tentando puxar um papo.
— Vamos dançar, sim? — focou aqueles olhos enlouquecedores em mim e eu só consegui assentir.
Agarrei-a pela cintura e a trouxe mais para perto. Seus braços foram diretamente ao meu pescoço e pude sentir seu hálito bem próximo dos meus lábios. Respirei fundo, tirando uma força de não sei onde e me concentrei apenas em dançar com ela. Começamos a nos movimentar no ritmo da música e eu me senti mais ousado, pousando meu rosto em seu pescoço e aspirando o cheiro único de morango que saía dos cabelos e toquei a pele dela devagar, que se arrepiou de imediato.
— Qual é o seu nome? — sussurrei no seu ouvido.
— Qual é o seu nome? — questionou, imitando meu gesto.
— . — respondi. — E você, como se chama?
— Por que tanta curiosidade em saber meu nome, ? Provavelmente nunca mais vamos nos ver. — senti suas mãos percorrendo minhas costas.
— Se você quiser, podemos nos ver todo dia. ¬— senti seu corpo tremendo. — Por que está rindo?
— Você nem me conhece ou sabe quem sou eu... Como quer me ver de novo?
— Se é assim... — afastei-me um pouco e a encarei. — Meu nome é , tenho 27 anos, moro na Asa Sul, formado em Letras e futuro professor universitário. Gosto de ler, escrever e tenho uma coleção de discos antigos do meu avô.
— Hm, um homem culto. — ela riu.
— Sua vez.
— Não tem muito o que eu possa falar, . — deu ombros.
— Por que sempre diz meu nome?
— Não sei, talvez eu goste como o som sai dos meus lábios, . — sorriu e se aproximou do meu ouvido novamente.
— Não vai me contar nada sobre você?
— Tudo que você precisa saber é que eu sou a menina com a máscara no happy hour da Comunicação. — sussurrou no meu ouvido e me deu um beijo no rosto. — A música foi ótima, , mas eu preciso ir.
— Mas já? — segurei seu braço.
— Já passa da meia noite e a Cinderela precisa ir para casa. — piscou para mim. — Tchau, , até uma próxima.
Então ela virou e saiu, mas antes, não pude deixar de perceber uma marca em suas costas. Uma tatuagem muito familiar, a mesma que já vi há 11 anos atrás. Senti meu coração bater mais forte e um calor surgir. Não acreditava que podia ser ela. A Veneno, a garota que invadiu meu quarto e roubou meu chaveiro. Será que o destino seria tão filho da mãe a ponto de colocá-la no meu caminho novamente e deixá-la fugir por entre meus dedos?!
Quando minhas pernas voltaram a funcionar, corri como um maluco no meio das pessoas. Estava muito lotado e o jogo de luzes me confundia. Cheguei até a entrada, olhei para todos os lados e, mais uma vez, não a via em nenhum lugar sequer. Xinguei em pensamento algumas vezes e voltei para dentro do salão. Para piorar ainda mais a situação, começou a tocar a maldita música. A música dela.
Bufei irritado e só mandei uma mensagem para meus amigos avisando que estava indo embora. Não conseguiria mais me divertir. Sabia que depois dela, a noite estaria mais do que acabada. Chamei um táxi e voltei para casa, só precisava tomar um banho, uma taça de vinho e dormiria o resto da noite. Ou talvez algo mais forte, acho que o vinho não ia funcionar.
Paguei o homem, que ouviu toda minha decepção durante o caminho, e entrei no prédio, cumprimentando o porteiro. Fui para o elevador e segui até o andar, ainda com a maldita tatuagem martelando na minha cabeça e me indagando se a convidada misteriosa seria ou não a Veneno. Destranquei a porta, coloquei a chave em cima da mesinha e tirei minha máscara junto com o paletó. Caminhei até o quarto e percebi a luz acesa. Fiquei em alerta por alguns segundos até perceber uma pessoa deitada na minha cama, ou melhor, uma mulher deitada na minha cama.
— Ahn, oi? — perguntei, vendo-a de costas.
— Demorou muito, . — a moça virou de frente e eu a vi. A mesma mulher da boate, a mesma que invadiu meu quarto anos atrás.
— Veneno? — questionei, não conseguindo acreditar que ela estava ali.
— Como? — olhou para mim, não entendo o apelido.
— É você mesmo? — aproximei-me.
— Aparentemente sim, . — ela riu. — Seu quarto não está muito diferente da última vez que estive aqui, acho que só ficou mais adulto. — começou a andar, focalizando nos meus discos novamente. — Ainda gosta de LP’s?
— Claro, é uma tradição. — dei ombros. ¬— Coisa minha e do meu avô.
— E onde ele está agora?
— Espero que no céu. — sorri e sentei na cadeira da minha mesa de estudos.
— Oh, sinto muito, não queria tocar nesse assunto. — olhou para mim com as bochechas coradas.
— Não se preocupe, já superei a morte dele há tempos. — dei de ombros.
— Você tem uma coleção e tanto. — passou a mão nos meus cds. — Vamos ver se eu acho alguma coisa que me agrade.
Ela andou de um lado para o outro, se abaixou algumas vezes, tirou alguns do lugar, até encontrar o que procurava. Sorriu para mim e foi a minha “vitrola”, que na realidade não era uma de verdade, e colocou o disco. Escolheu a música que mais lhe agradava e chegou perto, estendendo a mão para mim.
— Aceita dançar comigo?
— Por que eu deveria? — imitei sua fala mais cedo.
— Só vai saber se aceitar. — olhou desafiadora e eu assenti, pegando sua mão.
A música começou a tocar e eu gargalhei no mesmo momento. Aquela com certeza era a melodia que embalava nossos encontros. Trouxe-a para mais perto e me aproximei do seu ouvido, sussurrando baixo o suficiente para arrepiar seu corpo todo.
— Essa música, Menina Veneno, é a sua cara.
— Por que?
— Preste atenção na letra e tire suas próprias conclusões. — dei um impulso para ela rodar e a segurei novamente.
— Hoje não tem perigo de acordar ninguém?
— Não, eu moro sozinho. — pisquei para ela.
— Melhor para nós, então. — arqueou as sobrancelhas e foi até o som, aumentando o volume e voltando para os meus braços, de onde nunca devia ter saído.

“Seu corpo inteiro é um prazer
Do princípio ao fim”

Continuamos a dançar e embalamos numa conversa. Ela era uma garota bacana, bom gosto musical, além de ser muito engraçada e divertida. Tínhamos muita coisa em comum, muito mais do que eu poderia imaginar. No entanto, em algum momento da noite, essa química se transformou em outra coisa e acabamos os dois jogados na cama, nos entregando um ao outro, da maneira como devia ser.
Beijei cada parte do corpo daquela mulher com adoração e recebi diversos arranhões em resposta, que foram muito bons, diga-se de passagem. Pude senti-la por completo. Notei que ela se entregou da mesma maneira que eu, e, quando finalmente atingimos o ápice, foi a primeira vez em que me senti verdadeiramente completo. Coloquei a cabeça entre o vão do seu pescoço e sussurrei diversas vezes que ela era o meu Veneno e que eu adorava isso. Então adormeci.
Acordei, com ela ainda dormindo ao meu lado e sorri de orelha a orelha. Parecia a droga de um sonho do qual eu não queria acordar. Meu sonho de tantos anos estava finalmente se realizando e ela estava ali, próxima a mim. Poderia tocá-la sem restrição e tê-la novamente em meus braços. Aproximei-me mais e passei os dedos lentamente por sua pele macia, sentindo o cheiro de morango de seus cabelos, até chegar a tal tatuagem que me assolou durante todos esses anos.
— Bom dia. — sussurrei em seu ouvido.
— É uma boa forma de acordar. — comentou sonolenta.
— Diria que uma ótima forma de acordar.
— Bom dia, . — virou para mim e sorriu.
— Bom dia, Veneno. — beijei-lhe o rosto. — Sempre quis saber o que significa essa tatuagem, desde o dia em que você foi embora e me deixou.
— Você é muito curioso, , nunca te disseram isso?
— Talvez eu seja mesmo. — gargalhei. — Foi a única lembrança sua durante todos esses anos, acho que mereço saber a procedência dela.
— Façamos o seguinte: você busca nosso café e eu te conto o que quiser. O que acha? — virou de frente para mim, abraçando-me pelo pescoço.
— Feito. — dei-lhe um beijo. — Já volto.
Andei até a padaria, praticamente correndo, e comprei tudo o que eu achei que a agradaria. Sabia que essa “relação” era loucura e eu nem sabia o nome dela, mas não podia negar o quanto a desconhecida mexia comigo desde o primeiro dia em que a vi. Queria conhecê-la, saber tudo sobre ela e até mesmo sobre a tal tatuagem. Não queria mais só uma lembrança boba de anos atrás, então comprei uma rosa no meio do caminho e voltei para casa, entrando rapidamente e colocando tudo na cozinha. Fui até o quarto chamá-la, mas, para minha decepção, estava tudo vazio e somente com um bilhete em cima da cama.
“Estou ansiosa para o nosso próximo encontro. Beijos, .”
Sentei na cama e observei o papel escrito por alguns segundos. Meu chaveiro dos Beatles estava ali, no criado mudo. Olhei para a janela e ela estava aberta, da mesma forma como quando ela se foi anos atrás, mas uma coisa eu sabia: o nome dela. E diferente da outra vez, a procuraria em qualquer lugar.

2015 — Ele

— Nossa, pai! — o menino exclamou. — Mas ela dormiu na sua casa? Não é perigoso?
— Claro que é, campeão, por isso não repita o eu fiz, certo? — ele assentiu.
— E você nunca mais a viu?
— Isso você só vai descobrir depois. — olhei para o relógio. — Já está na hora de dormir, e se eu não for agora, sua mãe come meu fígado.
— É, eu não quero um pai sem fígado! — nós dois gargalhamos. —Mas pai, o senhor acha que a Helena gosta de mim?
— Considerando tudo que já conversamos, pode ser que sim, mas você nunca vai saber se não disser como se sente em relação à ela.
— Mas e se ela me rejeitar?
— Aí você fica só como amigo. Não é o fim do mundo, acredite.
Ele parou por alguns minutos e ficou pensativo, provavelmente reconsiderando minha ideia. era muito jovem e estava assustado com a primeira paixão da vida. Mal sabia ele que as primeiras paixões nem sempre são as que ficam. Olhou para mim novamente e sorriu, entrando embaixo do edredom.
— Vou falar com ela, pai!
— Que ótimo, meu filho. — o cobri por inteiro. — Não se esquece de me contar, sim?
— Claro, não vou esquecer. — beijei a testa dele. — Pai, o senhor vai me contar o resto da história amanhã?
— Não tem muito que contar, filho, o final todo mundo conhece. — o garoto apenas concordou e fechou os olhos me desejando uma boa noite.
Desliguei as luzes e fechei a porta, indo para o quarto. Comecei a desabotoar a camisa e me livrar das roupas no meio do caminho. Estava cansado da festa e precisava descansar urgente. Assim que entrei, encontrei minha bela esposa deitada na cama, concentrada, lendo um livro com aqueles óculos de armação grande. Mesmo que necessitasse de um banho, queria dar uma atenção à mulher da minha vida, então me aproximei dela e deitei ao seu lado.
— Oi, Veneno. — tirei o livro de suas mãos e beijei seu rosto.
— Olá, . — devolveu meu cumprimento. — Você demorou no quarto do . Aconteceu alguma coisa?
— Nosso filho está apaixonado.
— Sério? — ela riu.
— Sim, aí ele veio com uns papos de amor à primeira vista e eu tive que lhe contar a história de uma invasora e um homem loucamente apaixonado por ela.
— É? — disse baixo, chegando mais perto de mim.
— Sim. Só não contei o final. — abracei minha esposa.
— E qual o final, garanhão?
— Depois que a mocinha foge, ele corre como um louco apaixonado e os dois se encontram no meio do caminho. Anos depois eles se casam, têm um filho e conversam sobre isso deitados na cama numa sexta feira à noite. — comentei risonho.
— Sabia que seu nome ainda soa muito bem em meus lábios, ?
— Sabe que eu ainda sou louco por essa sua tatuagem? — beijei a pele marcada. — Foi ela que me ajudou a te achar. “Nenhum homem, doença ou veneno será capaz de me matar a menos que eu queira morrer.”
— Sabia que sou louca por você, ?
— Sabia que você ainda é minha veneno, ? — sussurrei em seus ouvidos. — Não tinha ideia de qual era o seu nome, mas parecia que eu nem precisava te chamar, você sempre vinha.
— Eu já estava encantada por você. — sussurrou de volta.
— Então venha me entorpecer, Veneno. — pulei em cima dela, recebendo um grito.

Nota da autora: (26/12/2015) Gabriela:
Gente, que delícia escrever Menina Veneno <3 Sério. Dona Polly me convidou para participar do Mixtape com ela e quebramos a cabeça para decidir qual seria a música, mas depois de escolhermos, a ideia surgiu instantaneamente. Foi maravilhoso dividir uma história tão apaixonante com uma amiga tão querida e espero que vocês tenham gostado tanto quanto eu. Muito obrigada pela leitura e não esqueçam de deixar um comentário *-*
Boas festas e até uma próxima.
Xx
Gabriela

Polly:
Olha quem está aqui… EU! HAHAHA
Gente, eu amo TANTO essa história, vocês não têm noção! Sou apaixonada por essa música, Menina Veneno, e quando eu vi a oportunidade de usá-la, já fui correndo atrás da Gabs pra gente escrever (eu queria fazer uma parceria com ela). Foi corrido, foi intensoo, mas foi tudo lindo e eu espero MUITO que vocês tenham gostado da história e desse casal tanto quanto eu gostei. E Gabe, foi uma honra dividir uma história tão linda com você. Não sei bem o que falar, porque estou emocionada com tudo, mas muito obrigada, gente. Espero que tenham gostado e se divertido tanto quanto eu! Beijão.

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