Última atualização: 29/09/2017

Capítulo Único

Já olhou para trás, alguma vez, e percebeu que as coisas talvez fossem mais fáceis se, do alto de nossa arrogância impúbere, ouvíssemos mais os conselhos das pessoas mais velhas ou daqueles que nos querem bem? Já se pegou pensando nos erros do passado, naqueles que nos assombram à noite como se nossos cérebros, pilantras e sádicos, nos relembrassem apenas para nos torturar? Ou, não sei, já se pegou pensando que talvez tenha desperdiçado seu tempo com coisas fúteis? Eu sempre achei que não pertencia. Foi algo que, em mim, sempre foi nato. Eu não pertencia à minha família e nem ao que eles esperavam de mim. Olhava aquele fardo nos meus ombros, olhava as minhas amigas às voltas com seus namorados, suas felicidades que, passageiras, esmagavam-se logo no primeiro e frágil término. Mas, muito mais persistentes que eu, elas insistiam nessa busca intermitente pelo amor eterno. Eu? Me sentia deslocada. A vida cotidiana sempre foi, ao menos para mim, uma piada. Olhava-os, todos comuns, em suas vidinhas medíocres, rindo do quanto eles queriam se encaixar em moldes preconcebidos do que era certo: conhecer alguém, se apaixonar, casar, ter filhinhos e um cachorro. Eu não me via assim.

Minhas amigas queriam romances de filmes americanos. Namorados românticos, cheios de pompa, roupas de líderes de torcida. A nossa realidade sempre foi bem diferente. Eu sempre fui bem diferente. Ao contrário delas, por exemplo, eu sempre fui mais focada em estudar. Rapazes, festas, bebidas… Eu tinha essas coisas, mas não me descabelava por elas. Namorei dois rapazes ao longo da minha adolescência, minhas amigas tiveram vários namorados. Eu ia em uma ou outra festa, elas saíam todos os finais de semana, nas sessões de matinê.

Com toda a sinceridade, nunca fui romântica. Sempre fui muito cínica, um tanto fechada. E sempre tive medo de ter o meu coração quebrado. O medo de me machucar sempre foi maior do que a vontade de abrir o meu coração e me entregar para alguém.

Pessoas inteligentes também fazem coisas idiotas. Isso era algo que meu pai costumava dizer. Quando eu era jovem, não entendia muito bem o significado dessas palavras. Acho que, já bem mais velha e madura, ele queria dizer que qualquer um está sujeito a erros. Pelo menos, é o que interpretei de suas palavras. Durante a minha vida toda, me considerei inteligente. As pessoas costumavam me dizer isso. Sempre que me perguntavam algo e eu respondia de forma sensata, eles diziam o quão inteligente eu era. Mas, assim como o ditado de meu pai, eu também era capaz de fazer coisas idiotas: eu achava que sabia coisas demais para cair em alguma armadilha, mas foi a minha arrogância que me fez decair.

— Eu espero que as enfermeiras não reclamem de você de novo, . — Eu sorri para ele ao ver o modo como ele me olhava. sempre tinha um olhar gentil, um sorriso caloroso que fazia surgir ruguinhas nos cantos de seus olhos. Ele me olhou de cima a baixo.
— Elas reclamariam se eu tivesse um ataque agora, só de te ver? — Eu rolei os olhos diante do flerte, aproximando-me de seu leito para checá-lo.
— Vejo que não perdeu o bom humor. — Por enquanto, minha preocupação era com os pontos. Queria checar se tudo estava certo, mesmo que o cirurgião fosse altamente confiável. — Como está se sentindo?
— Tenho uma mulher linda comigo e estou seminu em cima de uma cama, doutora. — Seu sorriso era enviesado e cheio de ironia. — Eu poderia estar melhor, mas não quero assustá-la.
— Acha que eu me assusto fácil? — Seu sorriso se alargou. Ele tomou a minha mão, segurando-a mais forte quando eu tentei tirá-la, mas, ainda assim, seu toque era gentil.
— Meus gostos são peculiares, . Você não entenderia. — Aquilo me fez rir, verdadeiramente. Ele sorriu junto, seus olhos fixos no meu rosto enquanto eu ria de sua citação horrível.
— Citar 50 Tons de Cinza só vai te fazer perder pontos comigo. — Tirei minha mão da dele. cruzou os braços abaixo da cabeça, permitindo que me afastasse e anotasse as conclusões no prontuário.
— Você não gosta de homens ricos, dominadores, obcecados e controladores?
— Ninguém gosta de homens ricos, dominadores, obcecados e controladores. — Eu respondi, caindo em sua isca. Mas, quando estava pronto para rebater com mais uma piada, eu o interrompi. — Eu estou tentando fazer sua ausculta. Fique calado.
— Eu tenho uma reclamação a fazer. — Ele disse, chamando-me a atenção, quando afastei o estetoscópio. Sabia que nada de bom viria daquele tom cheio de troça, mas, ainda assim, continuei olhando-o enquanto ele falava. — Acordei com um tubo na garganta.
— O tubo é necessário. — Atalhei, voltando os olhos às minhas anotações.
— Ele me incomodou bastante. — Anuí.
— Eu posso imaginar. — Ele ainda sorria quando eu o olhei. Não sei como suas bochechas não cansam.
— O médico da manhã não era tão gentil como você. Senti sua falta.

Foi a minha vez de sorrir. Eu sei, é estúpido. É realmente estúpido flertar com um paciente. Eu sei que estou errada, mas é, simplesmente, encantador. Eu o conheço já há algum tempo. Ele deu entrada no hospital para operar o joelho. Era uma cirurgia simples. Ele estava na minha lista de pacientes para a ronda daquela noite. Aquela também foi a primeira vez que me chamou para jantar com ele. Ele tinha acabado de acordar, sorriu para mim, perguntou meu nome, se a operação o deixaria manco e se ele podia me levar em um jantar para agradecer. Eu recusei.

As enfermeiras falavam sobre ele, como era bonito, como era charmoso, como ficava conversando com elas durantes vários minutos de madrugada, quando a maioria dos outros pacientes estava dormindo.

E então, um dia antes de ter alta, teve um infarto, o que, é óbvio, o levou a ser medicado. Eu tinha acabado de vê-lo, de madrugada, e quando decidi que poderia fechar os olhos por, pelo menos, meia hora, fui chamada para vê-lo. A segunda vez que eu o vi, depois de medicá-lo, ele me chamou para ir à praia. Disse que conhecia um lugar lindo em Angra dos Reis. E eu, mais uma vez, lhe disse não.

Ele passou alguns dias em observação e o cardiologista resolveu operá-lo. Seria melhor, ele pensou, para prevenir que ele tivesse outro infarto, já que – segundo o que ele me disse – apontou que ele mora sozinho (e que poderia morrer antes de conseguir ligar para a portaria do prédio). Então, ele passou uma semana inteira internado, antes de fazer sua Ponte de Safena.

Eu já estou aberto, não é? É melhor fazer tudo de uma vez, ele me explicou naquela madrugada.

— Você gosta de comida japonesa? — Ele me perguntou, olhando-me de esguelha.
— Você tem sentido dor no peito desde a operação? — Ele balançou a cabeça negativamente.
— Um pouco. Eu respondi a sua pergunta, responda a minha. — Sua exigência veio acompanhada de outro sorriso.
— …Gosto. — Respondi, de má vontade. — As enfermeiras vão…
— Vir aqui e me furar? Monitorar meus sinais vitais? Checar se eu ainda estou tão lindo quanto antes de operar?
— Sim, sim e não. — Eu observei o monitor. Batimentos normais. Nada parecia fora de ordem.
— Mas eu ainda estou lindo como antes? — Ele me perguntou. Eu fingi analisá-lo por um segundo.
— Não, acho que você estava mais lindo quando estava desacordado e calado.

Ele levou a mão ao peito e fechou os olhos, fazendo uma careta. E embora eu tenha me assustado e me adiantado para examiná-lo, ele apenas disse:

— Eu acabei de operar o meu coração, , faça o favor de não quebrá-lo logo. — Alívio inundou o meu corpo e eu respirei fundo, pousando a mão na beira do leito. Quando ele abriu os olhos e me viu daquela forma, começou a rir, mas isso logo se transformou em uma crise de tosse.
— Isso vai acontecer. Você vai expelir algumas secreções, pode tossir; você não vai estourar os seus pontos. — Fingi que não gostei da crise de tosse ter me salvado de suas gracinhas.

Depois de mais alguns exames, eu me virei para sair e ir em direção ao próximo quarto, mas ele me chamou de novo:

, você quer sair comigo quando eu tiver alta? — Ele podia até estar ainda sentindo dor por causa da tosse, mas isso não transparecia em seu rosto.

Eu tenho que ser sincera, ele era muito bonito. E era engraçado, eu sempre gostei de um homem que me faça rir. Além de tudo, eu sou solteira. Não tenho marido e nem ex-marido. Trabalho tanto que mal tenho tempo para encontrar alguém interessante, durmo menos de seis horas por noite e só tenho a companhia do meu gato quando dirijo até o meu apartamento pela manhã.

— Vamos ver.
— Já é melhor do que a última vez, quando você me recusou na cara de pau. — Ele disse, provavelmente bastante satisfeito consigo mesmo.

teve alta do hospital. Ele me ligou. Nós marcamos de nos encontrar no meu único dia de folga, uma quarta-feira, mas ele não reclamou. Nós nos demos bem. Ele era engraçado, bonito, gentil, não tentou forçar a conversa do motel, não tentou se enfiar no meu apartamento, não tentou forçar qualquer situação onde eu pudesse me sentir desconfortável. Nós falamos sobre nossas vidas, eu falei sobre meu gato – e ele prestou atenção. Nenhum filme de comédia romântica havia me preparado para o quão rápido eu poderia me apaixonar por . Nem na adolescência eu tive esse tipo de paixão avassaladora. O amor não era uma estrada onde as placas te avisam sobre os quebra-molas ou curvas fechadas. Eu não tinha ideia do que estava me metendo.

— O que você faz para se divertir? — Ele passou no meu apartamento com duas sacolas de plástico cheias de quentinhas com comida japonesa. Estávamos sentados no meu sofá rasgado pelo Mozart, meu gato.
— Eu estudo. — Ele pareceu chocado, mas, depois, um sorriso surgiu em seus lábios bem desenhados. Meu deus, eu já amava aquele sorriso cheio de ironia.
— Você só pode estar brincando.
— Meu conhecimento é minha distração. — Eu disse, enfiando um sashimi de salmão na boca, logo depois.
— Outra coisa que seu pai costumava dizer? — Eu fiz que sim, com a cabeça. — Eu queria ter conhecido dele.

Meu pai morreu quando eu tinha treze anos. Não foi fácil, eu não tinha um bom relacionamento com a minha mãe, mas, no fim, nós duas entendemos que precisaríamos sobreviver sem ele. Meu pai morreu de câncer de estômago. Ele foi mandado para casa para definhar. E eu o vi minguar aos poucos. Foi aos treze anos que eu entendi que eu queria ser médica, que eu queria ajudar pessoas como o meu pai.

— Ele não ia gostar de você, você é muito metido a engraçadinho. — Eu não permitiria que o clima ficasse tenso e triste de repente. Eu não queria me sentir triste com ele ao meu lado.
— Todos os pais das minhas namoradas me amavam. — Ele estufou o peito, cheio de orgulho.
— Eu não acredito em você.
— As enfermeiras me amavam. — Ele relembrou.
— Elas estavam caídas pelo seu charme de cafajeste.
— Eu sou um cara amável, . — Ele tinha novamente aquela expressão irônica no rosto.
— Tanto quanto uma mula é delicada. — Rebati.

rastejou até o meu lado do sofá e eu fingi não vê-lo, baixando os olhos para os sushis alinhados na quentinha, mas ele a tirou das minhas mãos e aproximou o rosto do meu.

— Sou tão amável que você não resistiu a mim.
— É mais certo dizer que você me ganhou pelo cansaço. — Frisei as palavras, mas ele as negou com um meio sorriso.
— Você sabe que não foi isso que aconteceu. — Eu ergui as sobrancelhas.
— E o que aconteceu? — Perguntei, embora já soubesse que ele daria um jeito de fazer alguma gracinha.

beijou meu queixo. O contato da barba mal feita dele com a minha pele me causou um arrepio.

— Eu acordei depois de quase morrer e vi a mulher mais linda da minha vida. — Ele disse, seu polegar acariciando o meu maxilar. Ele falava perto da minha pele, em um tom grave e cheio de alguma coisa que eu só poderia descrever como desejo. — E ela fica muito bonita de jaleco branco. — Os lábios dele pousaram onde antes estava seu polegar e eu me arrepiei de novo. — E cada vez que eu a cantava, ela sempre parecia se divertir bastante, mas me rejeitava. — Os olhos dele encararam fixamente os meus, sua boca naquele sorriso enviesado que eu detestava naquele momento. — Mas, então, Deus ouviu as minhas preces e ela me deu uma chance.
— Você nem reza… — Mas o resto de minha frase foi abafada pelo beijo dele. A boca dele era quente, as mãos dele seguraram meu rosto e eu abaixei a guarda.

Eu queria ser beijada por . Eu queria que ele embrenhasse as mãos nos meus cabelos e que a barba dele pinicasse a pele do meu pescoço, quando ele me beijasse ali. Eu queria sentir o peso do corpo dele em cima do meu. Queria tudo dele, queria ele.

E me queria. Ele me quis desde que eu o rejeitei pela primeira vez, tomando-o por algum paciente abusado qualquer. Segundo o que me disse, ele me quis desde o começo. Desde que me viu. E, agora, ele tinha exatamente o que queria. Ele me tinha de corpo e alma.

Nós fomos para o meu quarto, meu pequeno covil desorganizado, mas ele não ligou. Ele não ligou que eu não tivesse tempo para arrumar o quarto ou que o relógio mostrasse, eternamente, quatro horas. Ele não se importou quando Mozart miou alto, nos observando de cima da minha escrivaninha. Porque e eu apenas nos importávamos com nós dois.

Eu conheço o corpo humano. Eu me formei para isso. Mas parecia já conhecer o meu corpo. Nós rolamos pela cama, nos despimos de modo descuidado, nos enrolamos um pouco até descobrir nosso próprio ritmo, ainda mais com o joelho operado dele, mas, quando achamos, então funcionou. Havia química, isso era inegável. Eu senti que tínhamos química desde o primeiro momento em que nos vimos. Acho que, por isso, eu tentei evitar. Porque, segundo a minha mãe, eu tenho problemas com intimidade e relacionamentos. Ela diz que eu não me abro para as pessoas. Ela está certa.

Seu mundo está fechado para visitação, ela disse, certa vez, sugerindo que eu me fechava como uma ostra toda vez que alguém tentava se aproximar de mim. Eu admito que faço isso. É fácil, eu acho, não permitir que as pessoas cheguem perto, assim elas não me magoam. Assim eu posso permanecer bem. Mas a que custo? Às custas da minha felicidade, talvez.

Eu não conheço bem a felicidade. Meus amigos de faculdade hoje em dia são conhecidos. Minha melhor amiga acabou de ter um filho e passa as noites, como eu, acordada, mas cuidando de seu bebê. Eu não namoro porque não tenho tempo de procurar alguém. E embora eu achasse que era feliz dessa forma, trabalhando e existindo, respectivamente, me mostrou que eu estava apenas perdendo uma parte enorme do que é ser um ser humano. Nós começamos a namorar. Não houve um pedido formal, mas nos víamos sempre que eu podia ter algum tempo. Ele me mandava comida no hospital, sempre com algum bilhetinho que o entregador, certamente, lia antes de me dar. Era sempre uma promessa de que nos veríamos em breve ou um lembrete de que ele me amava. Em alguns meses, a saúde dele estava perfeita de novo. E eu estava me acostumando a ter alguém que queria saber da minha rotina, que notava quando eu estava calada demais ou quando não comia o meu harumaki de Nutella. Alguém que se preocupava comigo e me tratava como uma rainha, mas que, à noite, me dava orgasmos de fazer meus olhos lacrimejarem. Em suma, eu tinha conseguido alguém para amar e que me amava de volta.

Decidimos morar juntos, por ideia dele. Assim, nos veríamos mais. Eu concordei porque meus pareciam vazios quando ele não estava comigo.

— Eu sabia que era mais que uma quedinha pela médica bonita. — Ele me disse enquanto lotávamos o elevador com as minhas caixas cheias de livros, DVDs e mais livros. — E eu sabia, também, que você me achava um gato.
— Cala a boca. — Mas eu ri, porque, sim, eu o achava bonito. E interessante, engraçado, sem o menor medo de dizer o que estava em sua mente.
— Pelo menos agora eu tenho uma médica particular para me ajudar se eu tiver outro infarto.
— Você não vai ser outro infarto se cuidar bem dessa saúde. — Eu o vi sorrir para mim e me inclinei para pousar um beijo leve em seus lábios.
— Vou tentar viver o suficiente para que nós dois possamos ver nossos netos.
— Eu nem sabia que teríamos filhos. — Contra-argumentei, curiosa com as fantasias dele.
— Um menino e uma menina. — Ele me olhou nos olhos. — O menino se parece comigo, mas é inteligente como a mãe. E a menina é a coisa mais linda que eu já vi na vida, muito parecida com você, mas com o meu sorriso. — E, então, ele me dá aquele sorriso que eu amo e odeio.
— Acho que eu gostaria que um deles tivesse o seu sorriso. — Dessa vez, ele me puxou pelas mãos, colando meu corpo ao dele.
— Confesse que você ama o meu sorriso.
— Você é tão convencido que eu não preciso nem dizer nada para que você fique feliz. — Resmunguei e ele soltou uma risada.
, você está vindo morar comigo. Se você não me ama, então está de olho na minha herança.

O medo mora perto das ideias loucas, ele disse e eu concordei. Era uma frase que o definia. E eu só podia estar louca. Ele me encarou, afrouxando a gravata. E, sentada na cama, eu me perguntei quantos botões ele teria que lutar contra se quisesse me tirar de dentro daquele vestido estupidamente branco.

. — Ele disse, me chamando, pela primeira vez, pelo meu nome de casada. — Fica bonito.
— Fica, sim.

Havia uma aliança de ouro no meu anelar. Estranhamente, eu sentia conforto ao vê-la ali. Eu me sentia estranhamente feliz. Tinha estado assustada, antes, quando ele me pediu em casamento, e só pedi que a cerimônia fosse pequena e discreta. Eu não tinha muitas pessoas na família para chamar além da minha mãe e minha avó por parte de pai. Eu não queria nada escandaloso. Queria que a festa fosse sobre nós dois.

As coisas que nós fazemos por amor… atendeu todos os meus pedidos. Eu diminuí as minhas horas de trabalho, ele também. Nós planejamos nosso casamento e, no meio do caminho, descobrimos que eu estava grávida. O meu estômago ligeiramente saliente me cumprimentou tão logo eu baixei os olhos. acompanhou o meu olhar e sorriu. Ele se sentou ao meu lado na cama.

— E então? Menino ou menina? — Seu questionamento me fez acenar negativamente com a cabeça.
— Eu não tenho preferências.
— Nem eu. — Sua mão acariciou a minha barriga. — Você vai continuar trabalhando durante a gravidez?
— Estou grávida, não estou doente. — Ele anuiu, apesar do meu tom brusco, não se ofendeu.
— A sua mãe é uma cabeça dura. — Ele sussurrou para a minha barriga, como se eu não fosse ouvir.

Mas eu ri. Eu ri porque estava feliz. E era estranho, eu nunca tinha pensado que uma vida de comercial de margarina fosse combinar comigo. Eu amo o meu trabalho, era só nisso que eu pensava ultimamente. Mas eu também amo o fato de que pude conhecer , algo que aconteceu no hospital, durante o meu plantão.

Como todos os casais, nossa vida não era perfeita. Costumávamos brigar sobre coisas estúpidas, mas logo fazia uma piada e eu me esquecia que estava irritada com ele. Nem ele e nem eu nos acostumamos, de cara, a morar juntos: eu era desorganizada, ele não; eu gostava de cozinhar, mas detestava lavar a louça, ele também não gostava; meu gato cansou de pular nele, de madrugada, e ele jurava que Mozart estava tentando matá-lo enquanto ele dormia. Nada era perfeito. E era isso que tornava o nosso relacionamento algo que funcionava. Eu não queria uma vida perfeita, não existe vida perfeita com seres humanos, nós somos imperfeitos.

Mas, ainda assim, há certas coisas que podemos fazer para deixar a vida melhor. Amar, por exemplo. Eu aprendi isso.

As coisas que planejei para a minha vida aconteceram, mas outras, não planejadas, e nem por isso indesejadas, também vieram. E eu, arrogante, achava que sabia como tudo seria. Achava que podia controlar o destino porque eu sabia das coisas. Porque eu podia dizer, de cor, todos os 206 ossos do corpo humano. Porque eu podia abrir o peito de uma pessoa e salvar a sua vida.

Nós somos seres naturalmente arrogantes e não gostamos de pensar em coisas que fujam do nosso controle. Nós não pensamos na morte, mesmo que ela seja a única coisa da qual temos certeza. Eu não sabia.

Nove meses passaram mais rápido do que eu esperava, mas também imensamente mais devagar do que achei que seria. E embora isso seja paradoxo, era exatamente assim que eu me sentia quando, na cama do hospital, eu sentia a pior dor da minha vida.

— Qual o intervalo das contrações? — Um colega médico perguntava à enfermeira.
— Três minutos. — Eu respondi, um grunhido ininteligível saía da minha boca.

não estava comigo, mas a minha mãe estava. Ela repetiu a informação para o médico. Minha mãe desistiu de segurar a minha mão depois que eu quase fraturei a dela, agora, ela só me olhava, muito nervosa, enquanto o médico saía do quarto.

— Eu não tenho passagem. — Expliquei pra ela. — Eles vão fazer uma cesárea. — A enfermeira empurrava a minha cadeira pelo quarto, com a minha mãe andando ao seu lado. — Quando o chegar, diga a ele que eu o odeio por ter me fecundado. E que eu vou chutá-lo no saco até ele sentir o que eu senti nesses nove meses.

Minha mãe riu, mas eu não estava brincando. Eu seria uma mãe muito mais feliz quando aquele bebê saísse do meu útero. Como devia ser segurar o meu próprio bebê? Eu não sabia. Já tinha, é claro, segurado bebês, mas aquele seria meu. Uma mistura genética minha e do . Um serzinho que fizemos com muito amor e sexo fantástico. O primeiro dos dois filhos que ele tinha planejado, nossa menina. . Escolhemos o nome juntos. . Minha filha e dele.

Eu estava anestesiada, mas desperta, porque, se dão sedativos à mãe, então bebê também é sedado. E eu queria olhar a minha filha, ver seu rostinho, me regozijar ao ser a primeira pessoa, nesse mundo, que a amaria profundamente. Quando ouvi o choro dela, eu percebi que tinha esperado por aquele som desde o momento em que soube que tinha engravidado. Eu percebi que a amava mesmo sem nunca tê-la visto. E isso é a coisa mais estranha e adorável do mundo. Eles a colocaram nos meus braços e eu pude vê-la.

— Bem-vinda ao mundo, .

chorou. O homem que sorria sempre e sempre tinha uma piada pronta na ponta da língua, esse homem chorou. Ele a segurou como se fosse a coisa mais preciosa do mundo e me beijou no rosto tantas vezes que perdi a conta.

— Ela é nossa. — Ele disse, olhando o bebê recém-nascido e avermelhado em seus braços. — É a nossa garotinha.
— Sim…

Eu não me sentia bem. Respirei fundo, depois de amamentar, e pedi a que me deixasse dormir. Ele atendeu o meu pedido. Ele sabia que colocar um outro ser humano no mundo era um trabalho que exigia um enorme esforço físico.

— Eu vou ligar para a minha mãe, ela vai querer vir aqui imediatamente.
— Pelo amor de deus, não. — Ele riu e me beijou na testa.
— Eu amo você.
— Eu amo você, também. — Respondi, fechando os olhos.

A gente nunca sabe quando vai ser a última vez que vamos fechar os olhos e nunca mais acordar. Eu nunca mais acordei.

Eles chamam isso de embolia amniótica. Eu estudei sobre isso. É uma complicação rara que acontece com algumas mulheres, durante ou depois do parto. Por quê? Ninguém sabe. Ninguém sabe porque isso acontece. Quando voltou, meu coração não batia mais. Sei disso porque eu estava ali… Eu queria dizer a ele o que os médicos deviam fazer, quem ele devia chamar, mas ele não me ouvia. Ele não me ouvia. Eu queria dizer que precisavam me reanimar e cuidar de mim imediatamente, porque eu poderia entrar na fase hemorrágica e isso logo me mataria.

Eu nunca me planejei para a minha morte. Eu nunca nem pensei que poderia morrer antes de ver a minha filha crescer. Eu nem ao menos pensava em ter uma filha, antes, mas agora não me imaginava sem a minha .

Eles me reanimaram, trouxeram os desfibriladores, me injetaram com adrenalina, procuraram fazer meu pulso voltar, mas, no final, eu apenas podia ver as lágrimas de . Eu podia vê-lo sendo posto para fora do quarto do hospital, porque ele não deixava os médicos trabalharem direito.

Eu quis voltar. Eu quis muito voltar. Eu queria ficar com o meu marido, com a minha filha, eu queria ter as coisas que, antes, tirava tanto sarro. Eu queria ouvir as piadas do meu marido e brigar com ele porque ele não sabia desligar seu charme de cafajeste e acabava sempre me deixando com ciúmes. Eu queria coçar as orelhas de Mozart uma última vez. Queria dizer à minha mãe, pela última vez, que eu a amava. Como isso poderia ser justo? Como a minha vida podia acabar assim? Eu tinha trinta e dois anos. Ainda era jovem, ainda tinha muito o que ver pela frente. Não era justo morrer dessa forma. Mas, então, a minha consciência começou a desaparecer.

Eu nunca pensei no além e nem em como seria toda a coisa que acontece após a morte. Eu ouço os gritos dele, eu consigo, eu acho, sentir o cheiro dele e o calor dele, mas todas essas coisas se desvanecem aos poucos. Eu sempre tive curiosidade para ver o que podia haver atrás do véu da morte… Há coisas que sei agora mesmo: sei que jamais me perdoará por morrer desse jeito e o deixar, sei que ele será um pai maravilhoso para a nossa filha, mesmo que eu não esteja por perto e sei que ela terá o meu sorriso e ele a amará cada vez mais. São tantas coisas que eu não sabia antes, mas, depois disso… Sim, eu sei. Eu sei que o amor é que rege todas as coisas e eles vão se acertar. Mesmo que eu não esteja por perto. É melhor assim.



Fim




Nota da autora:
Primeiramente, vou mandar um beijo para as outras autoras que, pelo whatsapp, me ajudaram e me impulsionaram a escrever essa história. A gente surta junto, se desespera junto e, no fim, tudo dá certo. Obrigada: Lua, Babi e Jubs.

E, à quem possa interessar, aqui estão meus outros trabalhos:

Longfics:
Fortune Teller (Outros/Em Andamento)
The Swan Dive (Restritas/Outros/Em Andamento)

Beijo para todas e bom mixtape!





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