Bonnie & Clyde

Postada em: 16/02/2018
Music Video: Dean - Bonnie & Clyde

Capítulo Único

27 de Novembro de 2017.

“We’re sorry, your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
(Nós sentimos muito, mas a ligação não pôde ser completada. Por favor cheque o número e tente outra vez.)


O som incessante da ligação caindo continua ecoando em meu ouvido. Eu sinto falta do modo sereno como ela atendia às minhas ligações, dizendo seu “olá” arrastado. Se fosse possível, eu me afundaria ainda mais no sofá, mas o couro envelhecido pelo tempo já parece ter se ajustado ao formato exato de meu corpo, me acomodando com frieza.
Se duas pessoas amam uma à outra, então não pode haver final feliz. A tatuagem riscada na pele exposta da coxa dela era quase como o epítome de todos os alarmes enviados pelo destino, tentando me alertar sobre o desfecho de nossa própria história.
Eu ainda me lembro da primeira vez em que ela escorregou sobre o banco do passageiro do meu carro velho — vestindo shorts que continham mais rasgos do que pedaços de tecido inteiros —, e meu olhar curioso vagou por suas pernas até encontrar a maldita profecia, gravada em sua carne como uma cicatriz de um dano ainda não feito. E eu juro que isso parecia fazer todo o sentido do mundo na época, ainda que todo o sentido do mundo tenha sido substituído por uma abstração digna de Salvador Dalí, que não me deixa pregar os olhos de noite.
“Ernest Hemingway.” a voz frágil dela se sobressaiu ao ruído do som ligado em uma estação qualquer de indie-rock, e, por um segundo, eu pensei que sua fala só existisse em minha imaginação, contudo, outra dúzia de palavras foi derramada por seus lábios pintados de vermelho sangue. “Foi ele quem escreveu isso… Se duas pessoas se amam, não existe possibilidade alguma de um final feliz.”
“Você não parece o tipo de garota que lê Ernest Hemingway.”
“Você acabou de me chamar de burra?” Seu tom ofendido era mais falso do que meus cartões de crédito e todas as identidades esquecidas no porta-luvas do meu Maverick 68. “E você não parece o tipo de garoto que rouba bancos e atira em outras pessoas sem pensar duas vezes”, devolveu sem hesitar, a força de suas palavras chegando até mim como uma ventania catastrófica.
E não eram só suas palavras que pareciam ter um poder devastador; era ela inteira. Desde a escuridão presente em seu olhar — sempre voltado para o horizonte — até o modo como seus dentes afiados castigavam a pele macia de seu lábio inferior, em uma mania tão obsessiva que chegava a ser adorável. E ela ter me feito acrescentar a palavra “adorável” em meu dicionário meia-boca era a prova concreta de que estávamos destinados ao fracasso, porque eu me peguei a amando.
“Bom, acho que uma garota como você não deveria andar com um cara como eu.” Lembro de ter dito isso da boca para fora, apertando o volante entre meus dedos com mais força, a fim de enganar o nervosismo que a ideia de vê-la concordar e se afastar me causou naquele momento. Eu era um homem de vinte e quatro anos agindo como um adolescente de quinze que tinha acabado de descobrir como uma mulher podia foder com a gente, de um jeito que ia muito além do físico.
“Eu acho que garotas como eu podem andar com quem elas querem… E você devia dar uma chance pro Hemingway.” E isso deu o assunto por encerrado. A bola rosa de chiclete que ela soprou, estourou em uma onomatopeia barulhenta, e seu perfume de lavanda me intoxicou por toda noite.
Eu não consigo lembrar com exatidão de tudo que fizemos naquela noite de primavera, mas ainda me lembro da sensação de seu toque quente em minha pele, me rasgando como a bala de um revólver e me marcando para sempre. O seu cheiro continua impregnado em minhas roupas e o gosto doce do seu batom ainda perturba meu paladar no meio de tantos outros sabores que tento provar. Para ser sincero, a maioria das minhas lembranças foi corrompida pela imagem distorcida de poças de sangue, porém, as palavras que ela usou para terminar a noite ainda estão gravadas no fundo do meu lobo frontal.
“Isso parece ilegal… Tô dentro.”
E o timbre determinado e suave da voz dela percorreu cada fibra do meu corpo como um feitiço, e esse foi o nosso primeiro engano conjunto. Acreditar que estar dentro parecia certo, e que todo o feitiço duraria para sempre. Ela me avisou de antemão que o amor, quando mútuo, só podia resultar em separação, e eu resolvi desafiar as palavras de Hemingway; esse foi o nosso segundo engano.

O terceiro engano, é claro, foi acreditar que puxar o gatilho resolveria as coisas.

04 de Novembro de 2016.

— Você sabe como segurar uma arma, ? — Eu me divirto com a expressão entediada que ela esboça, como se minha pergunta fosse, na verdade, a coisa mais ridícula que ela teve que ouvir ao longo do dia.
. O nome dela parece uma farsa em minha boca e, quando perguntei se ela estava mentindo sobre isso, tudo que disse foi “e isso faz alguma diferença? É o nome que eu quero…”.
— Qualquer pessoa com mãos sabe como segurar uma arma, — ela rebate com a voz arrastada, deixando transparecer sua preguiça. Faz pelo menos meia hora que ela está jogada sobre o capô de meu carro estacionado no meio de uma estrada de terra deserta, cercada por mato por todos os lados. Os raios intensos de sol castigam sua pele exposta pelo vestido florido curto, que me deixa ter uma visão privilegiada de suas coxas.
— Você não se cansa de usar esse tom irônico comigo? — eu pergunto, enquanto guardo o revólver no coldre preso em meu jeans rasgado e me aproximo dela, afastando suas pernas com minhas mãos para encontrar algum espaço entre suas coxas. Ela apoia os cotovelos sobre a carroceria desgastada do carro para erguer o corpo, apenas o suficiente para sustentar meu olhar.
A intensidade de seus olhos escuros me faz tremer por dentro, e eu sei que jamais vou conseguir me acostumar com toda a selvageria que inunda suas íris. Existe alguma coisa na essência que exala de seu corpo e invade meus pulmões, e isso faz com que eu me sinta caminhando por uma corda bamba, prestes a despencar de um penhasco. A sensação de euforia que isso me causa se parece com uma droga que corrói minhas sinapses e me torna um dependente dela. A textura do dinheiro roubado na ponta de meus dedos, o som das armas disparadas ecoando pelo ar como uma sinfonia, nada disso se compara a trama do corpo dela, e a sua respiração abafada enquanto ela geme meu nome presa embaixo de mim. Na verdade, estar com ela se parece uma mistura de tudo isso… Dos crimes, das fugas, das contas bancárias clandestinas e cheias.
— Por que eu deixaria de usar esse tom, quando eu sei todos os efeitos que ele causa em você? — ela me provoca, abraçando meu quadril com as pernas e me prendendo entre seu corpo. O canto da boca sempre pintada de batom vermelho escuro se repuxa em um de seus vários sorrisos obscenos, e aprendi que ela sempre pode me surpreender com uma nova expressão.
— Essa pose de garota má não se combina em nada com esse vestido florido, sabia?
Minha resposta chega na forma de um riso baixo e rouco que escapa que sua boca, seguido por seus braços sendo jogados ao redor de meu pescoço, enquanto sinto os dedos dela — cobertos por anéis — envolverem os cabelos em minha nuca. As unhas longas e escuras arranham meu couro cabeludo e ela desliza a ponta de seu nariz pela lateral do meu rosto, em uma carícia tão leve quanto à brisa de fim de tarde. Assim que sua boca se aproxima do meu ouvido, ela derrama suas palavras enfeitiçadas sobre mim outra vez, me fazendo dela.
— Então, por que você não me ajuda a me livrar dele?

13 de Dezembro de 2016.

Quando terminamos de traçar os detalhes de nosso próximo roubo, ela alinha sua cabeça em meu ombro e deixa um suspiro pesado escapar de seu peito.
Antes de adormecemos, abre o dicionário de seu celular e digita depressa.
Coexistência.
Ela diz que essa é nossa palavra chave.

15 de Dezembro de 2016.

O barulho do motor ganhando vida é seguido pelo som alto da porta do carro sendo batida com força. Ela ainda está tentando se equilibrar no banco do passageiro, enquanto afundo o pé no acelerador, voando pelas ruas da cidadezinha litorânea. Os vidros baixados fazem com que a maresia invada o carro e o aroma salino impregna toda atmosfera ao nosso redor, mas esse é o menor dos problemas. O problema maior está a poucos quilômetros de nós, avançando depressa e anunciando sua presença graças à combinação de luzes azul-vermelho refletidas no retrovisor. E, é claro, graças também ao som alarmante da sirene policial.
— Você conseguiu pegar tudo? — pergunto com a voz cansada, e percebo que ainda não consegui recuperar todo o fôlego perdido durante nossa fuga entre a joalheria e o carro. Me permito desviar o olhar da estrada por um breve segundo, repousando-o sobre a mulher ao meu lado, percebendo que ela parece tão cansada quanto eu. No entanto, há o fantasma de um sorriso vitorioso enfeitando o canto de seus lábios cheios, o que faz com que meu peito se encha de algo que não sei nomear.
— Claro, eu jamais iria deixar umas dessas coisinhas lindas para trás. — Ela cola seu olhar ao meu para responder, dando um riso divertido ao final. Um saco preto cheio de dinheiro ocupa o espaço do banco entre suas pernas, e ela se ocupa em prender um colar de pérolas em torno de seu pescoço bronzeado.
Eu sinto vontade de estacionar o carro em um canto qualquer e descer com ela para aproveitar a praia, o sol e até mesmo o cheiro enjoado do sal, contudo, a polícia atrás de nós é um detalhe que não pode ser ignorado, e que me faz acelerar ainda mais o carro. Os ponteiros no painel do Maverick sobem depressa e o vento dentro do carro se torna maior e maior, fazendo com que os cabelos de minha parceira de crime voem para todos os lados. Vez ou outra ela coloca a cabeça para fora e olha para trás, como se tentasse ter certeza de que ainda temos alguma vantagem.
— Você precisa desviar eles… — ela afirma o óbvio, mas o som aveludado de sua voz é tão confortável que nem consigo ficar irritado com sua constatação. Ela poderia me pedir para estacionar o maldito carro e entrar em combate corpo a corpo com os policiais, e eu chegaria a considerar a opção.
— Preciso que você me faça um favor, meu anjo — eu peço, enquanto tento guiar o carro em alta velocidade com uma só mão, usando a outra para alcançar o revólver escondido em meu jeans imundo. Pelo canto dos olhos, vejo ela deixar as joias de lado por um segundo para prestar atenção em mim. — Você consegue segurar isso aqui para mim? — pergunto me referindo ao volante, e ouço um suspiro pesado escapar de sua garganta.
— Por que você sempre pergunta se consigo fazer as coisas, ao invés de me mandar fazer?
O sorriso enviesado que surge em meu rosto é involuntário, e ela não pode me culpar pela série de pensamentos eróticos que ocupam minha cabeça.
— Você quer que eu mande em você? — devolvo a pergunta.
E é evidente que esse não é o momento certo para discutirmos esse tipo de coisa. O momento certo seria na cama do próximo motel barato de beira de estrada ou no banco de trás do carro. Não agora, com a polícia local em nossa cola e com uma fortuna em joias e dinheiro roubado repousando no meio das pernas dela, ao lado da maldita tatuagem de Hemingway.
— Idiota — ela resmunga carinhosamente, e dá o assunto por encerrado, segurando o volante e tomando o controle do carro.
Sem hesitar, me apoio o suficiente sobre a lateral do carro e inclino a cabeça para fora, mirando a viatura que segue logo atrás de nós. Um, dois, três, e perco a conta dos disparos, mas logo preciso recarregar a arma para atirar novamente. A adrenalina que corre por minhas veias deixa meu coração acelerado e a visão péssima, devido aos raios fortes de sol que chegam a me causar uma cegueira temporária, só tornando a coisa toda ainda mais intensa. Uma bala passa raspando pelo lado do passageiro e deixa um protótipo de grito engasgado escorregar de sua boca, entretanto, o som de seu riso nervoso logo contamina o interior do carro, que vez ou outra parece perder a estabilidade.
O jogo de cão e gato se estende por mais alguns quilômetros, e, apesar de parecer que estamos sendo perseguidos há horas, tenho certeza de que apenas cerca de dez minutos devem ter se passado desde o momento em que o alarme de segurança da joalheria começou a soar. Alguns fios de cabelo começam a grudar em minha testa devido à camada de suor que se espalha por minha pele, em razão do calor e também do nervosismo, e músculos retesados de meus ombros começam a protestar, me causando dor. A diversão e o prazer que acompanham o crime, a perseguição e a sensação de vitória e impunidade começam a ser substituídos por minha impaciência crescente, e talvez seja exatamente isso que faz com que um novo disparo finalmente atinja seu alvo.
De longe, eu assisto a bala atingir o pneu dianteiro da viatura, fazendo com o veículo se desestabilize no meio da estrada e perca velocidade, ficando para trás. Eu espero até ter certeza de que não há chance alguma de continuarmos sendo perseguidos e, então, jogo a arma sobre o banco traseiro, voltando a segurar o volante, e assistindo retornar para seu lugar, relaxando as costas contra o assento. Um sorriso.
Nenhum de nós diz nada pelos próximos minutos.
Minhas mãos continuam segurando firme no volante, e meus olhos voltados para a estrada deserta, que corta um pedaço de terra esquecido entre um oceano e rochedos.
As mãos dela permanecem entretidas com a barra de sua regata cavada, que deixa as laterais de seu corpo expostas. Os olhos de mar em fúria também fixos na paisagem em nossa frente.
Mas não é preciso quebrar o silêncio para falar sobre a tensão que começa a crescer dentro do espaço pequeno e apertado de meu Maverick. Cada pedaço esquecido de meu corpo anseia pelo toque dela, e o modo como ela se remexe em seu banco me faz ter certeza de que não sou o único que consegue reconhecer nossa conexão, forjada em desejo mútuo. O som da sua respiração pesada se confunde com o uivo do vento, e já é madrugada quando meus pés cansados finalmente encontram uma folga, se afastando dos pedais assim que estaciono em uma hospedagem.
No segundo em que o ronco do motor cessa, o silêncio entre nós também desaparece e é substituído pelo som abafado da boca dela encontrando a minha, com a força de um furacão no auge de seu poder devastador. O seu corpo se ajusta sobre o meu em um piscar de olhos e sem dificuldade alguma, e suas unhas marcam a pele sensível de meu pescoço. O gosto da boca dela me deixa embriagado, e por um breve momento me esqueço de todos os crimes e perseguições, mas as memórias são trazidas à tona quando meus dedos se enroscam no cordão de pérolas que enfeita seu pescoço. Eu uso a joia para puxá-la para mais perto, e o calor de nossa proximidade explode em ondas, dominando tudo ao nosso redor.
E ela não parece se importar nenhum pouco com a dezenas de pérolas que se saltam e se espalham por todas as direções, desaparecendo dentro de meu carro.

05 de Fevereiro de 2017.

Eu termino de limpar o ferimento de sua coxa, tomando o cuidado de desinfetar o local uma centena de vezes antes de isolar a ferida com um curativo improvisado. Ela ainda tem os braços cruzados na altura do peito, o que faz com que o decote do vestido fique maior, mas tudo que enxergo são as marcas pretas do rímel borrado e escorrido por todo seu rosto, traçando a curva de seu pescoço em tons mais claros. O seu olhar distante parece perdido, mirando algo através de mim e do próprio horizonte que se estende atrás de nós, visível apenas através da janela quebrada do motel.
— Achei que você soubesse como segurar uma arma — eu digo ao terminar de cuidar de seu machucado, ficando de pé em sua frente. O sangue seco embaixo de minhas unhas me deixa enjoado e adio minha ida até o banheiro, colocando em primeiro plano a missão de entender o que aconteceu.
— Qualquer pessoa sabe como segurar uma arma… — ela diz de imediato, com um tom agressivo e tão ferido quanto sua coxa, rasgada pela lâmina de uma faca — O erro foi seu em não ter perguntado se eu sabia como atirar. — E, por uma fração de segundos, a inocência de suas palavras me faz lembrar da garota de meses atrás, que invadiu meu carro e minha vida sem saber no que estava prestes a se afundar.
— É só puxar o gatilho — tento soar indiferente, afastando qualquer traço de emoção de minha voz. Essa não é a resposta que ela deseja ouvir, porém é a mais correta. Ela pressiona os lábios e baixa o olhar, e eu me sinto um gigante monstruoso diante de sua fragilidade exposta sem máscaras.
— E como é que você lida com o que acontece depois? — Sua voz chega até mim em vibrações calmas e espaçadas.
— Eu tento não pensar sobre isso.
Dessa vez ela não responde, e nossa proximidade parece bloqueada por um abismo com as dimensões do Grand Canyon, e minha analogia não poderia ser mais bem pensada. Eu olho para meus próprios pés, me atentando para a camada avermelhada de pó que cobre meus coturnos, e todos os diferentes contrastes da cor parecem me causar enjoo, porque a imagem do sangue manchando o jeans claro de — que parece ter sido tatuada em minhas retinas — ainda machuca minhas têmporas. Ela se remexe na beirada na cama, mas o simples movimento parece machucá-la, por isso, a vejo ficar imóvel outra vez, e decido dar a noite por encerrada.
No entanto, no segundo em que meus pés se movem sobre o piso de madeira podre, a voz arranhada dela reverbera pelo quarto, chegando até meus ouvidos e, estranhamente, atingindo meu coração.
— Eu achei que você era meu herói, mas agora você se parece com o vilão.
O soco seco e indireto que me atinge bloqueia minhas sinapses, e minha garganta não consegue reproduzir mais do que meia dúzia de palavras.
— Por que você acha isso?
— Porque eu não consigo ir embora.

07 de Fevereiro de 2017.

Instabilidade.
Ela diz que essa é nossa nova palavra.

13 de Fevereiro de 2017.

Eu me esgueiro pelos fundos do bar, segurando na mão dela e guiando-a logo atrás de mim.
O peso da jaqueta de couro que repousa sobre meus ombros não é nada se comparado à força com que seus dedos se agarram aos meus, os anéis de prata arranhando minha pele. A chave roubada permanece protegida em minha mão livre e sou obrigado a estreitar o olhar para ajustar minha visão, tentando reconhecer os veículos estacionados no fundo do bar podre de beira de estrada. Uma melodia parecida com Bad Habit, do The Kooks, ecoa dentro do ambiente, e a ironia da situação me faz sorrir inconscientemente.
O som de passos adiante me obriga a parar bruscamente, e o corpo dela se choca contra o meu, seu braço livre abraçando meu tronco e seu rosto afundando em minha nuca. O som de seu riso é quase nulo, mas a vibração de seus lábios em minha pele quente me faz arrepiar, porque eu sou um homem condenado aos caprichos dela, e é inútil esconder a verdade dolorosa de que o simples toque dela me desmonta e me faz tremer por dentro.
— Por que eu concordei com isso mesmo? — sussurro, virando o rosto em sua direção para que minhas palavras possam alcançá-la.
— Porque você não sabe dizer não pra mim — ela responde despreocupada, ciente da verdade absoluta que repousa em sua afirmação.
— Convencida pra caralho — sopro para mim mesmo, sendo recompensado com um beijo demorado na curva de meu pescoço, na parte exposta pela gola da jaqueta escura.
Assim que o risco de alguém se aproximar e nos enxergar no escuridão do estacionamento desaparece, eu volto a nos guiar pelo terreno poeirento, que cheira como uma mistura de álcool e mijo. A visão de uma moto estacionada entre caminhões de carga finalmente surge em meu campo de visão, iluminando a noite escura. Acelero meus passos e, consequentemente, os dela, e logo estamos parando ao lado da Harley-Davidson do mesmo tom escuro das lascas de esmalte negro que ainda se agarram as unhas de .
Eu sou o primeiro a subir, travando uma batalha silenciosa com tudo ao meu redor, determinado a não fazer barulho algum que possa denunciar nossa presença. Ela imita meus gestos e sobre logo atrás, passando os braços ao redor de minha cintura e escorregando pelo banco, aproximando seu corpo do meu até que não haja centímetro algum nos distanciando. O seu aroma de lavanda perfuma a noite, se sobressaindo aos odores fétidos do local.
Quando coloco a chave na ignição, seu aperto se torna mais intenso e sinto sua respiração quente se aproximar de meu ouvido, cortando a noite fria.
— Você devia se livrar daquele carro e ficar com a moto — suas palavras se atropelam.
— Por que eu faria isso?
— Porque eu gosto de motos.
Eu deixo um riso baixo e curto escapar, posicionando minhas mãos sobre os guidões.
— Eu percebi isso… Você acabou de me convencer a roubar uma… Mas, ainda assim, esse não é um bom motivo.
Antes que ela tenha tempo de responder, dou a partida e o som do motor ganhando vida se alastra pelo estacionamento. Acelero sem pensar duas vezes, voando em direção à estrada que se estende pelo deserto. O volume alto e grosso de uma voz proferindo uma variedade impressionante de xingamentos nos atinge por trás, mas não tarda para que a única canção da noite seja a dos pneus varrendo o asfalto liso da pista.
Quando estacionamos vários quilômetros à frente e descemos em outro bar perdido no espaço-tempo — visível na escuridão graças à presença de um letreiro caindo aos pedaços —, ela tenta me dar um segundo motivo.
— Você fica ridiculamente gostoso de jaqueta de couro e em cima de uma moto… Esse motivo parece melhor?

28 de Fevereiro de 2017.

Ela parece ter se confundindo e derrubado metade do saleiro sobre o pacote de pipoca, mas mastigo cada grão estourado de milho como se ela tivesse preparado um manjar digno dos deuses. Uma camada generosa de plástico de cozinha envolve seu braço, protegendo a tatuagem recém-gravada em sua pele, que se parece com uma nova profecia de nosso destino incerto e também como um lembrete para ela própria. Pull the trigger.
O controle remoto em suas mãos se parece com um brinquedo do qual ela abusa sem se importar com o tempo de vida útil das pilhas. Seus dedos apertam os botões de forma quase que obsessiva, e meu cérebro — entorpecido pelas várias latas de cerveja — mal consegue registrar as imagens chuviscadas que aparecem e desaparecem na tela de poucas polegadas. Meus dedos sujos de sal continuam tamborilando sobre sua coxa, traçando padrões e desenhos aleatórios em sua pele nua. Eu contorno as letras de sua tatuagem uma porção de vezes, até que fazer isso se torna cansativo.
— O que você continua procurando? — a questiono, impaciente com a mudança contínua de canais. — Você não pode parar em uma porcaria qualquer, para gente assistir como pessoas normais?
— E desde quando a gente se enquadra na categoria de pessoas normais? — brinca, mas o sorriso em seu rosto desaparece tão rápido quanto o novo conjunto de pixels que se forma na tela.
“O casal foragido é procurado pela polícia de treze estados diferentes.”
A voz nasalada da repórter invade o quarto alugado do hotel, mas é a fotografia que brilha na tela que prende minha atenção. O Maverick 1968 ao fundo, servindo de cenário para uma imagem minha e de frente a frente, com uma arma entre nós, compartilhada por nossas mãos. A diferença entre nossas alturas parece mais evidente agora, vista por outro ângulo. Há pelo menos quinze centímetros de diferença entre nós e, enquanto eu me pareço com um andarilho que não é mais capaz de reconhecer o significado por trás da palavra casa, ela usa um de seus vários vestidos floridos e uma trança. Meu corpo serve como um muro, impedindo que o sol chegue até ela, deixando-a nas sombras, protegida das luzes e mergulhada na escuridão. E a realização disso não me atinge agora, mas deveria.
“Não há informações adicionais sobre suas identidades e a fotografia, tirada por um viajante que teve sua moto roubada pelo casal, é a única prova dos crimes cometidos pela dupla, que recentemente vem sendo apelidada de Bonnie e Clyde. Há uma recompensa no valor de cem mil reais para quem conseguir capturar e entregar ambos com vida para a polícia, e recompensas menores fornecidas mediante informações verídicas e importantes.”
A foto desaparece e a reportagem chega ao fim, como se tivesse sido apenas parte de uma alucinação proveniente de um universo paralelo. Mas o fantasma de minha imagem na televisão ainda parece congelada em minha visão, e preciso piscar algumas vezes para me concentrar outra vez na realidade.
— Bonnie e Clyde — Ela repete, como se estivesse testando os nomes na ponta de sua língua. Não consigo identificar quais as emoções presentes em sua voz, porém, estudo seu rosto com cautela, reconhecendo o brilho imprudente de seu olhar selvagem e o canto inclinado de sua boca.
— Eu acho essa uma excelente comparação — digo animado, me esparramando ainda mais no sofá e jogando outro bocado de pipoca para dentro da boca, sentindo meus olhos lacrimejarem pelo sal.
Percebo que ela para com sua busca incessante por algo para assistir, e o controle remoto da televisão é posto sobre o sofá como um brinquedo abandonado na manhã seguinte ao natal. Aproveito sua distração para tirar o pacote de pipoca do seu colo e jogá-lo sobre a mesa de centro aos nossos pés, ignorando a sujeira que o movimento provoca e desviando meu olhar para ela. Minhas mãos salgadas buscam por sua cintura e meu toque faz com que ela desperte de seu transe, lembrando que estou ao seu lado. Um sorrisinho pequeno ilumina seu rosto e ela se permite assumir o controle, jogando o peso de seu corpo sobre o meu e me obrigando a deitar sobre o sofá rasgado.
Eu a deixo guiar nosso ritmo, ainda que ela resolva fazer tudo com uma lentidão excruciante. O calor que emana entre nossos corpos é desproporcional a temperatura baixa de suas mãos, contudo, a discrepância brusca de temperaturas não me incomoda, e seu toque frio me queima tanto quanto suas palavras quentes despejadas ao pé de meu ouvido. O movimento cadente de seu quadril sobre o meu me faz afundar as unhas curtas e sujas de sal em sua cintura, machucando sua pele macia. Sua boca busca pela minha, mas ela paralisa por um momento, deixando nossos lábios a uma respiração de distância.
— Você não devia achar uma excelente comparação. — Suas palavras me beijam com uma dose moderada de preocupação.
— Por que não?
Seu olhar sobre o meu é feroz, entretanto, sua intensidade se desfaz em calmaria quando ela torna a falar, em um tom mais baixo.
— Você não sabe como Bonnie e Clyde terminaram?
E então o seu medo velado faz sentido, e quero me transformar em um herói capaz de salvá-la por toda sua vida, ainda que ela própria seja forte o suficiente para fazer isso sem precisar de minha ajuda.
— Nós não vamos acabar como Bonnie e Clyde, meu anjo — tento acalmá-la, falando tão manso quanto ela. Há algo em seu olhar que se parece com um misto de insegurança e desilusão, e é isso que me faz querer acrescentar as palavras “eu juro”, mas me contenho.
— Por que você tem tanta certeza disso?
Eu não tenho certeza.
O pensamento vem e o mando para longe, porque no meio de minha vida incerta, essa é a única incerteza que não sou capaz de suportar.
— Porque eu te amo — Confesso, arrastando meus dedos por sua coxa e acariciando o pedaço de pele tingido por letras cursivas.

21 de Março de 2017.

Essa não é uma história bonita ou digna de uma retratação fiel. Para ser honesto, é uma daquelas histórias sobre as quais os pais alertam seus filhos, ordenando que estes fiquem longe. Mas, por outro lado, essa também não é uma daquelas histórias das quais você consegue sair facilmente. Uma vez dentro, e as saídas de emergência deixam de existir. No fim das contas, não há escapatória do destino.
Nós adentramos o bar com a missão de ter uma noite de folga. O cheiro forte de cigarros e álcool impregna o ambiente, mas o aroma já é nosso velho conhecido, sempre presente em nossas viagens de boteco em boteco. Uma camada de pó avermelhado suja as duas mesas de sinuca, e a bola branca adquiriu uma cor amarelada pelo tempo de uso. Porém, há bebida o bastante, e a jukebox — esquecida no canto — toca uma canção dos anos 80, fazendo o clima quente de verão parecer um presente enviado dos céus.
Mas a verdade é que ninguém esta se importando com a música, com o choque entre as bolas na mesa de sinuca, ou com a bebida quente que é servida em copos trincados. É ela a única atração do lugar, hipnotizando todos os presentes e atraindo seus olhares com um poder magnético. Eu cuido para ter certeza de que não há nenhum celular sendo apontado para nós, ou que nenhuma ligação está sendo feita, entretanto, depois do quarto ou quinto copo, eu também me torno vítima da maldição que ela lança sobre os homens.
Todos prestam atenção no modo como o decote da regata preta deixa pouco para a imaginação quando ela se inclina sobre a mesa, para melhorar sua jogada. Não há ninguém no salão que não esteja reparando em como seus dedos longos e finos, cobertos por anéis, seguram o taco com cuidado, acariciando-o enquanto ela aguarda sua vez de jogar. E eu sei que não sou o único tendo a sanidade perturbada pelo modo como ela prende o lábio inferior entre os dentes, castigando-o cada vez que a bola passa perto o suficiente da caçapa, mas não perto o bastante.
— O que você acha de darmos a noite por encerrada? — eu pergunto quando me aproximo dela por trás, fazendo-a se desconcentrar por um seguindo e adiar seu movimento.
— Mas já? Nós acabamos de chegar. — Seu protesto é manhoso. — O que aconteceu?
— Todo mundo está te comendo com os olhos.
— E isso te incomoda?
— Bom, na verdade, sim… Porque não posso te jogar aqui nessa mesa e fazer isso na frente de todos, para perceberem que sou o único que posso te tocar.
— Você está me atrapalhando meu jogo, sabia? — É a resposta malcriada que ela me dá, seguida de um risinho baixo que tenho certeza que sou o único filho da puta sortudo o suficiente para escutar.
— Então deixa eu ajudar. — Não espero por sua permissão. Me inclino sobre ela, fazendo com que seu corpo fique ainda mais debruçado sobre a mesa, e deslizo minha mão por seu braço, até alcançar a mão dela que segura o taco, ajudando-a a posicioná-lo melhor. Empurro uma de minhas pernas entres as dela, e sinto seu corpo se tornar tenso, sendo assim minha vez de sorrir, sabendo que deve haver uma espécie de alvo em minhas costas, porque todos os presentes não pensariam duas vezes antes de me matar para ocupar meu lugar no meio das pernas dela. Ficamos imóveis por um segundo, minha respiração desaparecendo na curva de seu pescoço e suas coxas fartas e sempre expostas seja pelos shorts ou pelos vestidos apertando minha perna — Agora, você precisa fazer isso com calma — sopro em seu ouvido.
— E o que te faz pensar que não fiz isso com calma antes?
— Você quer mesmo que eu responda isso? — Ela balança a cabeça, concordando. — Três dias atrás, quando você achou que era uma boa ideia me chupar enquanto eu dirigia, e eu te pedi para ter calma… Você não lembra o que respondeu? — Dessa vez, ela balança a cabeça em negação, contudo, sei que ela lembra. Sei que ela quer me ouvir falar. — Você disse que não sabia o que era calma.
Nós adentramos no bar com a missão de ter uma noite de folga. Mas, quando resolvemos sair dele, um infeliz resolve nos fazer trabalhar. No tempo em que vou até o caixa pagar por nossas bebidas, o homem de fios loiros e olhos verdes envoltos por hematomas roxos resolve que é uma boa ideia se aproximar e, mais do que isso, tentar beijá-la. Eu escuto o som da voz dela pedindo pra ele se afastar e, antes que ela consiga resolver a situação sozinha, sem pensar, já estou me aproximando e puxando o homem pela jaqueta, fazendo-o cambalear para trás e aproveitando sua distração para acertar um soco certeiro em seu rosto.
Ele caí no chão e não dou tempo para que ele possa se recuperar e ficar de pé novamente. Ao invés disso, avanço em sua direção e agarro sua camisa para desferir outro soco contra o olho já machucado, o que faz com que o supercílio mal cicatrizado volte a sangrar. A voz dela me pede pra parar, porém o timbre rouco é abafado pela fúria que me cega, me fazendo enxergar tudo em tons de vermelho. O estranho resolve reagir e não sei como, mas começamos a brigar no chão, rolando pelo piso sujo e entrando em um combate corpo a corpo. Ele acerta meu rosto uma vez e sinto o gosto amargo de sangue contaminar meu paladar. A coisa toda saiu do controle quando outras pessoas tentam se aproximar, entretanto, não sei se querem acabar com a briga ou apenas torná-la ainda pior. -
A cena só chega ao fim quando um som alto se sobressaí ao barulho de garrafas sendo quebradas e xingamentos sendo gritados. O barulho alarmante do disparo só não me surpreende mais do que a queimação quase que insuportável que atinge a parte de trás de meu ombro, de raspão. As pessoas ao redor ficam paralisadas e rolo para longe do loiro, sentindo meu corpo protestar e doer. No instante em que consigo ficar de pé e olhar para trás, minha visão petrificada encontra a dela. O revólver em sua mão continua apontada em minha direção, e seus lábios entreabertos parece tão trêmulos quanto seus dedos.
Ela dá o seu primeiro tiro essa noite, e a bala me atinge como uma carícia violenta.
Mas não sou eu quem morro.
É algo nela.

22 de Março de 2017.

— Você não quer falar comigo? — insisto, enquanto ela termina de cuidar do ferimento em meu ombro, em silêncio, sentada atrás de mim.
— O que você quer que eu fale?
— Qualquer coisa. — Ela coloca outra gaze sobre o machucado.
— Por que você não está bravo comigo?
— Porque você nunca disse que sabia atirar… e você só puxou o gatilho, não foi culpa sua me atingir — Eu tento acalmá-la, mas minhas palavras parecem vazias, incapazes de chegar até ela.
— Eu poderia ter matado você.
— Você não fez de propósito.
Ela não volta a falar e não consigo enxergar o seu rosto.

29 de Março de 2017.

Ela se fecha em um mundo particular por quase uma semana.
Não mudamos de hotel ou viajamos durante esse tempo, e penso em dizer a ela que isso é perigoso e que precisamos mudar de cidade, mas ela se revira na cama cada vez que o som de minha voz surge, perturbando seu sossego conturbado.
Quando ela finalmente se reencontra e consegue sair da cama e calçar suas botas já desgastadas, arrisco perguntar qual é a palavra da vez, e ela me responde sem, de fato, responder.
Silêncio.

14 de Maio de 2017.

Ela tem cheiro de lavanda e shampoo barato de motel, e eu afundo o rosto em seus cabelos macios e volumosos, inspirando o seu perfume como se o trabalho de meus pulmões dependesse exclusivamente do aroma dela para ser bem executado. O gosto da pele dela em minha língua é como mel, tocando o céu de minha boca e me fazendo ter uma overdose adocicada. Ela parece com uma mistura do céu e do inferno caminhando pela terra, e no segundo em que um gemido rouco desliza de sua boca para dentro da minha enquanto nos beijamos, não tenho certeza se sou um sortudo por cruzar o seu caminho ou um maldito azarado.
— Me faz uma pergunta — me pede ainda sem fôlego, a cabeça deitada em meu peito nu e o corpo quente e suado enrolado entre os lençóis brancos e o meu.
— Como assim? Uma pergunta do tipo “foi bom para você?” ou do tipo “qual seu sabor de sorvete preferido?”? — Ela dá uma risada tão gostosa que, doentiamente, me sinto triste por não ter sido capaz de gravar o som com meu celular ou algo do gênero. Tenho certeza de que minha memória jamais fará justiça a esse som.
— Uma pergunta de algo que você quer saber sobre mim. Vamos jogar! Você faz uma pergunta, e eu faço outra… — responde, se aninhando ainda mais contra meu corpo, buscando um refúgio entre meus braços. Ela tem essa mania de querer conversar sobre nós depois do sexo, eu aprendi. Expiro e tento pensar em algo que ainda não saiba, e as possibilidades são tantas, mas ao mesmo tempo quase nulas.
— Por que é que você resolveu tatuar uma frase de Hemingway?
— É isso que você quer saber? — Ela parece surpresa com o que pergunto, e me olha através dos cílios longos, esperando por uma confirmação.
— Essa é sua pergunta para mim? — brinco, vendo-a revirar os olhos.
— Tive que ler Hemingway no colégio. Você sabe, comecei pensando que iria odiar e na verdade terminei odiando mesmo. — Ela ri outra vez, a vibração do som faz cócegas no meu pescoço. — Mas odiando porque parecia que ele tinha toda a razão do mundo, e que eu jamais teria sido capaz de perceber todas aquelas coisas sozinha. Achei que algumas ideias dele eram muito interessantes, então resolvi tatuar algo.
— Você é uma garota inteligente, tenho certeza de que teria sido capaz disso e de muito mais — elogio, dando um beijo demorado em sua testa. — O que foi que você achou tão interessante?
— Acho que é a minha vez — protesta e concordo. — Por que você resolveu me chamar para sair?
— Porque você era a garota mais gostosa do bar — confesso sem pensar demais, e ela resmunga, frustrada. — Você queria uma resposta romântica?
— Se a gente considerar que você deu a entender que eu era burra logo de cara…
— Ah não, você sabe que não foi aquilo que eu quis dizer…
— Você quis dizer que eu me parecia com alguém que lia revista de fofocas e não livros com mais de duzentas páginas, eu sei. — Seu tom de voz é sério, mas o sorrisinho perdido no canto da boca revela que ela não está brava de verdade, o que me faz relaxar.
— Te chamei pra sair, porque você não combinava com aquele lugar parado e esquecido no tempo… — A primeira resposta não é mentira, mas talvez essa seja mais verdadeira. — Você me olhou por trás do balcão do bar me implorando por uma aventura, e isso eu podia oferecer.
Ela silencia, pensativa.
— É a sua vez agora.
— O que foi que você achou tão interessante? — refaço minha pergunta, agora no momento certo. — Quer dizer, ele era um suicida, não?
— O que isso tem a ver? Talvez eu ache suicidas interessantes. — Seu olhar enviesado busca pelo meu, me desafiando de maneira silenciosa a ir contra ela. — Uma vez ele escreveu que a coisa mais dolorosa que você pode fazer é acabar se perdendo por amar alguém demais… Ele também disse que a vida não é difícil de ser controlada se você não tem nada a perder, sabia? Você não acha isso tudo interessante?
— Um pouco — confesso. — Ele devia ter muita coisa a perder, já que a vida dele não foi nada controlada, não?
Minha fala é o suficiente para que ela se vire na cama, deitando-se de bruços e apoiando o tronco sobre os cotovelos, para me fitar melhor.
— Você não entendeu? — Franzo o cenho quase que automaticamente, confuso. — Todo mundo tem algo a perder… É por isso que somos incapazes de controlar nossas vidas.
— Certo, é melhor você me fazer uma pergunta que não envolva todas as reflexões, porque meu senso filosófico sempre foi pior que o lógico — brinco, vendo-a sorrir com o canto da boca antes de ajeitar o cabelo atrás da orelha, parecendo um anjo.
Ela hesita e fica pensativa, e então uma de suas mãos avança na direção de minhas costelas, tocando o pequeno número sete tatuado no lado esquerdo.
— Você nunca me contou porque tem um número sete tatuado aqui…
— É o meu número da sorte — O sorriso que cresce em seu rosto se parece com o raiar do sol depois de um século de escuridão. — O que foi?
— Sete… Foi o dia em que a gente se conheceu.

05 de Junho de 2017.

O dia de sol e calor nos faz dirigir com a capota do carro abaixada, e ela se diverte com o vento dançando com seus cabelos soltos e com a música que toca na rádio. Uma de minhas mãos guia o carro, enquanto a outra repousa sobre sua coxa, próxima da tatuagem. Agora há também outra marcação negra escrita na pele de meu braço, na lateral de meu pulso. Amor fati. Nossas escritas se sobrepõem, como uma história a ser contada.
— Você acha que faria tudo por mim? — Sua pergunta me pega desprevenido, e me vejo apertando o volante do carro instintivamente.
— Por que essa pergunta agora? — retruco com outra interrogação, tentando entender o que está se passando por sua cabeça. O engraçado é que a essa altura do campeonato eu já deveria ter aceitado que ela se parece com um livro escrito em um idioma no qual não fui alfabetizado. Suas vogais e consoantes são rabiscos que não consigo decifrar e colocar em frases coerentes, e não é isso o que me incomoda. O que me incomoda é que não sou capaz de encontrar um dicionário que possa traduzi-la.
Antes de responder, ela trava uma batalha com os botões do rádio até encontrar outra estação, e tenho certeza que ouço as palavras ‘casal’ e ‘foragidos’ quando ela passa por um noticiário, que é logo ignorado. Sua voz só preenche o carro novamente quando seus dedos agitados se dão por vencidos ao encontrarem uma música nova.
— Porque estamos sendo perseguidos. — Sua voz é calmaria em meio aos caos. A primeira coisa que faço quando suas palavras percorrem meus ouvidos é olhar para trás, em busca de outros carros na estrada.
— Não estamos sendo perseguidos. — Me permito relaxar quando percebo que não há ninguém perto de nós. Só o deserto e a maldita areia pegajosa que gruda em minha pele.
— Estamos sendo perseguidos o tempo todo… — Ela espreme os lábios em um biquinho quando termina de falar, e eu acharia adorável se não estivesse confuso com o rumo de nossa conversa. — Perseguidos pela polícia. Perseguidos pelas pessoas que roubamos. Perseguidos pelos parentes das pessoas em quem você atirou. Perseguidos…
— Então essa é a palavra da vez? Perseguidos?
— Eu acho que presos é melhor. — Penso em dizer algo, mas ela resolve concluir sua fala, me roubando a oportunidade. — E você não respondeu minha pergunta. Você acha que faria tudo por mim?
Uso a mão que está repousando em sua coxa para massagear sua pele, e ela abaixa os olhos por atrás dos óculos escuros, para assistir ao gesto.
— Eu tenho certeza de que faria tudo por você. — E não estou mentindo.
— Qualquer coisa que eu pedisse? — insiste, uma de suas mãos repousando sobre a minha, colocando fim no carinho que faço sobre sua tatuagem, como se isso fosse uma distração e que ela precisasse ter certeza de que estou ouvindo suas palavras.
— Eu faria qualquer coisa que você pedisse — afirmo com firmeza e segurança, afastando os olhos da estrada para encará-la. Seu rosto parece vazio e inexpressivo, contudo, basta um pequeno segundo arrastado e perdido no tempo para que seus lábios coloridos de batom se repuxem em um sorriso tímido.
E, quando ela se cala e relaxa contra o banco, meu cérebro grita algo que não quero escutar.
Eu sei que não deveria ter dito isso.

10 de Julho de 2017.

O ruído de tiros sendo disparados continuamente me faz despertar, e perceber que há um espaço vazio ao meu lado na cama faz com que meu coração vá parar na garganta. Suas batidas violentas e rápidas vibram por todo meu corpo. Eu me enrosco nos lençóis brancos e praguejo mentalmente quando tropeço nas roupas espalhadas pelo chão, e corro até a porta do trailer abandonado. O metal sendo aberto de forma brusca produz um barulho que não é alto o suficiente para se sobressair ao som dos tiros, mas me acalmo quando minha visão se ajusta à escuridão e consegue compreender a cena que acontece no meio do campo aberto.
Ainda de camisola preta rendada e cabelos presos sem muito sucesso, eu a vejo segurando uma arma. Uma a uma, as balas vão sendo descarregadas na direção do horizonte, sem que exista alvo algum. Eu resolvo não interromper e espero ela terminar, me sentando no degrau da porta do trailer antigo e apoiando a cabeça na lataria.
Um segundo ou uma eternidade. O tempo é sempre tão relativo.
Quando ela se dá por satisfeita — ou quando seu estoque de munição chega ao final, arruinando seus planos de passar a noite atirando contra o nada —, ela se vira na direção do trailer e seu olhar se choca com o meu. Não há palavra alguma escorregando por sua boca enquanto caminha até mim e também não é palavra alguma quando se senta ao meu lado, ocupando o espaço vago do degrau e tombando sua cabeça em meu ombro. O revólver descarregado continua em suas mãos, o gatilho sendo carinhosamente envolvido pelo indicador.
— Posso fazer uma pergunta? — Minha própria voz é um tiro no horizonte, sem alvo algum, repleta de incerteza e receios. Ela me responde que sim, com um volume de voz tão baixo que é difícil de escutá-la, apesar de estarmos mergulhados no meio do nada. — Qual é a palavra da vez?
Ela suspira pesadamente, de um jeito dramático e digno de uma atriz de cinema. Há uma rachadura em sua essência e, por mais que eu tente entender onde ela começa e onde termina, tudo que eu vejo é o abismo entre nós.
— Saudade.

03 de Agosto de 2017.

— Bom, eu sinto muito se você nunca pediu por essa merda de vida, mas eu não estou vendo nenhuma porra de algema te mantendo presa à ela! — grito a plenos pulmões, me fodendo para quem quer que possa estar ouvindo nossa discussão do lado de fora do hotel barato.
Ela continua caminhando de um lado para o outro do quarto, em passos confusos e atropelados, que a fazem tropeçar nos próprios pés descalços. O robe de seda escuro com estampa floral está jogado sobre a lingerie preta, e eu poderia estar ocupando admirando a obra prima que é o corpo dela, senão estivesse puto da cara, tentando me concentrar em arrumar o dinheiro dentro de uma sacola, de modo que as notas não acabem amassadas.
— Você é um maldito ingrato! — grita de volta, agarrando os próprios cabelos e grunhindo como um animal frustrado. — No segundo em que eu tentar colocar os pés pra longe de você, tenho certeza de que vai fazer de tudo pra arruinar toda minha vida!
Isso me faz rir, porém, não há humor ou graça nenhuma por trás do som quase maníaco.
— Eu achei que você tivesse dito que foi isso que eu fiz! Fodi a sua vida… — Paro de revirar o dinheiro recém-roubado para encará-la.
Há um breve segundo de silêncio no quarto, e então ela está apontando o indicador para mim, a uma distância segura.
— Isso tudo é uma grande brincadeira para você, não é? — Não faço ideia do que ela está falando, entretanto, no instante seguinte ela está avançado em direção ao telefone fixo na cabeceira da cama e discando os três dígitos que me fazem disparar em sua direção, agarrando seu pulso e jogando-a sobre a cama, ainda coberta de dinheiro.
— Que porra você pensa que tá fazendo?! — Ela ameaça se levantar e me jogo sobre ela, tentando segurar suas mãos acima de sua cabeça e imobilizar a parte de baixo de seu corpo com minhas pernas. A garota continua se debatendo, tentando se livrar de mim de forma quase que desesperada e minha visão se torna turva pela intensidade da raiva que sinto.

Por que isso está acontecendo?
O que foi que deu errado?

— Me larga! — grita, finalmente se cansando de sua luta inútil e relaxando abaixo do meu corpo — Me larga, me larga, me larga… — Suas palavras se misturam e seu tom de voz mal passa de um sussurro, que logo se perde entre os soluços desesperados que escapam do fundo de sua garganta. O choro faz seu corpo tremer abaixo do meu, e as lágrimas fazem um rio negro de rímel crescer em seu rosto.
A cena toda me deixa desnorteado. Um bloco de concreto parece desabar sobre meu peito e respirar parece uma missão que exige muita energia. Eu luto para puxar o ar para dentro, sonhando em sentir o perfume de lavanda familiar, mas hoje ela só cheira a cigarros e álcool. E a mistura não é nada agradável. Ela ainda está chorando quando deixo o peso do meu corpo ceder sobre o dela, e afundo o rosto na curva de seu pescoço quente. Que se foda as notas sendo amassadas embaixo de nós. Que se foda todo o dinheiro e o os roubos, tudo.
Os braços delas envolvem minhas costas e ela me abraça com força, as unhas sendo cravadas em minha pele nua. Nosso encaixe ainda parece certo, perfeito, feito para durar… Contudo, a sensação de paz foi substituída por algo que parece me corroer de dentro da fora, como uma bomba nuclear prestes a explodir. E, por mais que eu tente, não consigo entender o que é isso, muito menos colocar em palavras. Porém, a forma como ela me abraça e chora em meu ouvido me faz ter certeza de que ela sabe o que estou sentindo.
— O que é que você quer de mim? — pergunto com a voz embargada, e a questão a faz parar de chorar. — Se não é a vida de merda, o dinheiro roubado, as fugas constantes… O que é que você quer de mim?

Mas ela não me responde.

02 de Setembro de 2017.

Bonnie e Clyde.

Os nomes estão por todos os lados. Há cartazes espalhados pelas cidades mais cheias e também pelas cidades quase fantasmas. Na rádio, as músicas são interrompidas para que notícias recentes sobre o paradeiro do casal do crime possa ser atualizado. Casal do crime. É assim que estão nos chamando. E é claro que há também imagens nos comerciais de TV e nos cinemas a céu aberto. Eu sou o motorista, o assassino, o homem de sorte; ela é a estrela principal. E não há como negar que ela se parece mesmo com uma atriz importante. Em uma das cenas que está circulado por todo país, seu olhar está fixo sobre a câmera que a filma. Ela não fala sobre isso, mas eu sei o que esse olhar significa.
Me pegue.
Me tire daqui.
Me salve.
E é engraçado que eu consiga traduzi-lo tão bem, mas não poderia ser de outra forma, eu sei. Foi esse mesmo olhar que ela lançou em minha direção quando coloquei os pés naquele bar, naquele dia sete de sorte.

05 de Setembro de 2017.

Eu acordo com o ruído alto e perigoso das sirenes.
Mas, dessa vez, eles não fazem parte dos meus sonhos.

06 de Setembro de 2017.

Por que você não estuda engenharia mecânica? Eu acho que você devia pensar nisso.
As palavras do meu pai ecoam em meus ouvidos como a porra de uma piada sem graça.
Você gosta tanto desse carro, seria bom usar essa paixão para algo útil. Você nunca sabe quando vai precisar usar as próprias mãos para concertá-lo.
Bom, é isso pai, espero que o senhor esteja feliz em saber que suas pragas malditas se concretizaram e, agora, eu sou obrigado a ficar parado no meio do nada, porque não faço ideia de como arrumar a merda do carro. Espero que o senhor esteja feliz no inferno.
Abrir e fechar o capô inúmeras vezes realmente não adianta absolutamente nada, e muito menos chutar a lataria. Eu gostaria de dizer que a minha maior preocupação é o motor do carro que não funciona, ou até mesmo a polícia que pode nos encontrar a qualquer segundo. Mas, por pura infelicidade do destino, aquilo que mais me aflige e me deixa caótico é a garota sentada no gramado atrás do carro, com as costas apoiadas no porta-malas. Isso e a mancha vermelha que tinge sua camisa branca.
E, pensando bem, foda-se a faculdade de engenharia mecânica.
Se o universo fosse justo, eu teria estudado algo que me ajudasse a salvá-la agora.
— Para de me olhar assim — resmunga outra vez, ainda pressionando minha camisa contra o ferimento de bala em seu ombro direito. Eu até acharia irônico o fato de ela ter sido atingida no mesmo lugar em que seu primeiro tiro me acertou, mas só consigo pensar que estamos ferrados. Ferrados e presos no meio do nada. Com ela sangrando.
— Assim como? — Eu me agacho em sua frente, afastando sua mão do machucado para ter noção de como ele está.
— Como se eu tivesse estragado todos os seus planos. — Sua voz sai fraca, e ela evita me olhar nos olhos, o que me deixa ainda pior. Uso a mão suja de seu sangue para segurar seu queixo e erguer seu rosto, e ela obedece meu pedido, finalmente me encarando.
— Não é assim que eu estou olhando pra você.
— Então como é? — Não importa se ela acabou de levar um tiro ou se o carro resolveu nos deixar na mão, muito menos se tudo está fora de controle e dando errado… O olhar dela ainda está cheio da selvageria de sempre, escuro e vidrado que algo que está além de mim, que não consigo enxergar.
— Como se eu tivesse estragado todos os seus.

07 de Setembro de 2017.

— Eu vou chamar a polícia — digo por fim, obrigando as palavras a escaparem da minha boca seca. É quase fim de tarde e passamos a madrugada e o dia presos no mesmo lugar, enquanto eu tentava inutilmente pensar em uma solução.
Ela me alertou. Disse que quando se tem algo a perder, não se pode controlar a vida, e é como se o destino estivesse fazendo questão de me provar isso do modo mais amargo possível, porque eu não tenho nada a perder além dela e é exatamente isso que está em risco agora. A minha liberdade se parece com nada diante da possibilidade de uma vida vazia e sem sua companhia, então quando a ideia de chamar a polícia cruza minha mente, eu logo sei que essa é a única saída possível.
No entanto, quando me ajoelho na frente dela e seguro em suas mãos frias, contando minha decisão, ela ri. E faz tantos dias que não ouço o som de seu riso que, por um segundo, o mundo ao meu redor parece feito de papel, prestes a ser rasgado em mil e um pedaços para ser reinventado. Eu tento entender o motivo da graça, mas não encontro sentido algum.
— Você perdeu a cabeça? — questiona, a calma presente em sua voz não se combina com o rumo de nossa conversa.
— Você tentou chamar a polícia antes — retruco, tentando me justificar.
— Sim, e é claro que eu também tinha perdido a cabeça.
— Se eu não ligar para a polícia, você vai morrer… — A palavra parece de mentira. Não é como se ela pudesse realmente morrer. Não é?
— E se você chamar, eu vou presa e você também. — Um tom alaranjado começa a cobrir o céu.
— Parece melhor do que deixar você morrer aqui, no meio do nada. — Começo a discar o número em meu celular e ela se esforça para arrancar o aparelho de minha mão, deixando um gemido sôfrego escorregar por seus lábios tão ressecados quanto os meus. — Ei, meu anjo… Você já perdeu essa discussão.
— Me beija — pede, desviando completamente do assunto e me pegando de surpresa. Eu penso em negar, porém há súplica por trás de seu olhar desesperado, e não consigo puxar em minha memória quando foi que ela me fez um pedido com tanta convicção assim. Fecho os olhos por um breve momento e colo minha boca a dela, e nosso beijo tem gosto de deserto. Seco, árido, sem esperanças. Contudo, no instante em que seus lábios se movem sobre os meus, com saudade e desejo, é como se um oásis ganhasse forma, e as coisas se ajeitam.
A simples distração da boca quente dela se movendo contra a minha e de sua língua tocando o céu de minha boca é o suficiente para que o celular esquecido seja arrancado de minhas mãos, e não é vergonha alguma dizer que caí em seu golpe, porque é isso que venho fazendo mês após mês. Caindo em queda livre em todas suas armações.
— Você não pode fazer isso — protesto, afastando minimamente nossas bocas. Ela escondeu o celular atrás do próprio corpo, em algum lugar entre o carro e a grama alta que nos cerca. — Se eu não pedir ajuda agora, vai dar tudo errado… — Ela ignora e volta a me beijar, de maneira lasciva e ao mesmo tempo serena; um misto de sensações que não consigo explicar.
Só sei que quando ela recua para me olhar nos olhos, com toda seriedade do mundo estampada deles, eu sinto falta do calor de sua boca.
— Então me ajuda você.
— É o que eu estou tentando fazer, anjo. — O apelido carinhoso aparece mais vezes do que o normal, porém chego à conclusão de que só estou tentando soar o mais calmo o possível, temendo que o desespero de vê-la morrer em minha frente me faça perder a cabeça.
— Mas eu não quero a polícia envolvida… Eu não quero ninguém envolvido. — Me sinto confuso de novo, sem entender o que ela quer dizer. — Eu já perdi sangue demais… — Não é uma pergunta. Seu tom seguro me faz tremer de um jeito ruim e um lampejo de raiva cruza meus pensamentos.
— É por isso que preciso que você devolva a merda do meu celular pra eu poder fazer algo! — O volume de minha voz se torna mais alto, alterado. Seguro seu rosto com força nas mãos, entretanto, ela não parece afetada com isso.
— Você acha mesmo que a gente vai durar um dia vivos dentro de uma cadeia? Eles vão matar a gente. Vão matar a gente e jogar o nosso corpo em uma vala qualquer, como dois cadáveres quaisquer. — Sua certeza é tangível, e me deixa perturbado. Foda-se isso. — Vão matar a gente, mas sabe-se lá o que vão fazer antes… — Ela não precisa colocar os pensamentos em palavras, porque tudo que se passa em sua cabeça chega até a minha em um piscar de olhos, me fazendo prender a respiração.
— Vou te levar pra um hospital e depois vamos dar um jeito de fugir antes de pedirem os documentos ou reconhecerem a gente. — É mentira, eu sei que é, todavia, tento me convencer de que sou realmente capaz de fazer isso. Ela me responde com a sombra de um sorriso gentil.
— Você é um péssimo mentiroso, mas agradeço o esforço.
Por que ela está tão calma? Assim que meu olhar vislumbra de canto a mancha de sangue fresco que não para de escorrer, minha pressão parece cair ainda mais.
— Eu vou dar um jeito.
— Eu sei… Você disse que faria qualquer coisa por mim — relembra em um timbre baixo e arrastado. Uma de suas mãos, a do braço bom, avança na direção de seu jeans e seus dedos longos e fracos envolvem o revólver preso ao cinto. — Preciso que me faça um favor — pede, ainda segurado a arma e mantendo a boca próxima da minha.
Não sei o que ela esta prestes a dizer, contudo, sei que não quero ouvir. Sei que iria preferir o som das sirenes da polícia ecoando noite após noite durante toda minha vida a ouvir o que quer que ela esteja tentando me dizer. Talvez seja por isso que tento me afastar, afastar o olhar, desconversar. Porém, ela não deixa. A mão continua segurando o revólver preso em meus jeans e me mantendo próximo de seu corpo. O olhar envolvente e que tem total controle e poder sobre mim me ordena e ficar onde estou, e é exatamente isso que faço. Cedo ao seu pedido silencioso e escuto, com uma atenção que odeio, tudo que ela diz.
— Eu vou morrer de qualquer jeito, né — E, de novo, não é nenhuma interrogação em sua voz fria —, mas eu queria ter algum controle sobre isso.
É como se eu tivesse passado as últimas horas ingerindo álcool atrás de álcool, o chão parece girar embaixo de meus pés e minha visão se torna turva, me sinto embriagado. Embriagado e fodido demais da cabeça para compreender a mensagem por trás de sua fala.
Talvez eu não queira entender.
— O que você quer dizer? — indago, me arrependendo. Não queria ter perguntado. Minhas mãos estão tremendo, e ela consegue perceber isso, tenho certeza.
— É só puxar o gatilho, não é?
Um brilho imprudente reflete em suas íris. Eu espero pelo riso fácil, pelo olhar divertido, mas nada disso surge, então me pego forçando uma risada, alta e engasgada que não passa de um som dolorido e salgado, que machuca minha garganta.
— Me dá o celular — peço outra vez, tentando tatear o chão ao nosso redor sem sucesso.
— O que te faz pensar que prefiro morrer nas mãos deles?! — exclama , parecendo irritada, ferida, pequena.
— E o que te faz pensar que você vai morrer pelas minhas?! — Pelo amor de Deus! Que caralho ela pensa que está me pedindo?
— Você disse que me amava. — E as palavras são como um tiro sendo disparado contra meu próprio peito. A chantagem barata me faz arregalar os olhos, surpreso. O que é que isso tem a ver?
— Você está me pedindo para te m… — tento, entretanto, nem consigo concluir a frase, porque a palavra fica engasgada. A coisa toda fica engasgada e não consigo digerir, amaldiçoando tudo ao meu redor; a porra dos policias que atiraram, a merda do meu carro quebrado, o celular perdido, eu mesmo. Tudo. Só percebo que baixei o rosto em algum momento quando sinto os dedos dela se afastar do revólver e alcançarem meu queixo, me fazendo erguer o olhar.
— Eu só estou pedindo para me ajudar.
— Te ajudar a quê? A morrer? — Porra, porra, porra. Preciso resolver isso. Foda-se, vou ligar para a polícia. Me levanto de modo desajeitado e brusco, começando a olhar embaixo do carro e atrás de seu corpo, e ela resmunga algo que não entendo.
Mato, mato e mais mato.
— Ah! Faça parar de doer… Por favor. — Suas palavras me pegam no meio de um movimento e eu paraliso, a sensação que tenho é a de que estou sendo empurrado penhasco abaixo. Fecho os olhos com força e conto até dez, na esperança de despertar na cama barata de um hotel qualquer, com o cheiro de cigarro. É isso que acontece nos filmes, né? Uma situação absurda e inesperada e, então, num passe da mágica, tudo em ordem de novo. A doce realidade fodida, mas sensata.
— Você quer me arruinar, é isso? — grito, porque estou furioso. Com ela e comigo. Não consigo entender o porquê de um sorriso crescer no seu rosto pálido, só sei que isso me deixa ainda pior — Você acha isso engraçado?
— Você acabou de citar Hemingway… E sim, eu quero arruinar você — ela completa, como se estivesse citando algo também, e decido que também posso amaldiçoar Hemingway. Hemingway e todas as suas malditas frases incoerentes e pessimistas sobre o controle da vida e o amor das pessoas.
— Bom, você está fazendo um trabalho excelente — digo rindo, frustrado, deslizando os dedos pelos fios de cabelo e voltando a me mover. Não presto atenção nela fazendo um esforço para se levantar, e só percebo que isso aconteceu quando ela se coloca em minha frente, respirando fundo e entrecortado. — Você perdeu a cabeça, eu tenho certeza disso.
— Você disse que era só puxar o gatilho — insiste, a voz travada.
— Eu te amo — falo de volta, mas parece um argumento inválido. Uma batalha perdida.
— Então me ajuda. — O pedido vem acompanhado do peso de seu corpo desabando sobre o meu, e ela me envolve com seu braço bom, afundando o rosto em meu peito. O seu sangue está espalhado por minhas mãos e por meu corpo, e eu me sinto indefeso diante de suas palavras.
— Não faz isso…
— Por favor… — Não, não. Não.
— Não vou atirar em você.
— Vai me obrigar a fazer isso sozinha? — Ela me desafia, afastando-se o suficiente para me olhar nos olhos outra vez. — Porque, se você não fizer, eu vou.
— Boa sorte tentando. — E, antes mesmo de terminar a frase, a mão ágil dela está tentando agarrar meu revólver outra vez, mas sua rapidez não é nada comparada a minha, e meus dedos se fecham em torno de seu pulso, apertando sua pele.
— Por que você não quer me ajudar?! Você me deve isso — a mulher que eu amo tenta gritar, contudo, o som é abafado, quase frustrado, assim como sua tentativa de tentar me acertar com a outra mão. Um simples movimento a faz gemer de dor e ela cede, caindo de joelhos em minha frente e soluçado. — Eu só preciso que você aperte a droga do gatilho!
E eu faço isso. Puxo a arma de seu recinto e começo a atirar a esmo, sem direção alguma, determinado a me livrar de toda a munição, porém ela interrompe meu plano. Suas mãos agarram minha camisa e ela me puxa para baixo, me fazendo cair ao seu lado, e o gemido de dor que escapa de sua boca durante todo o movimento machuca meus ouvidos.
— Qual é a droga do seu problema! — Ela tenta roubar a arma, e eu tento impedir que isso aconteça sem precisar machucá-la ainda mais, entretanto, não adianta. Ela luta contra mim e todo meu cuidado é em vão, porque seus movimentos bruscos e agressivos só fazem com que a ferida sangre ainda mais, e sua fraqueza logo é revelada, quando ela se cansa em menos de um minuto e rola exausta sobre o gramado, respirando com dificuldade. — Pelo amor de Deus… Mata-me. Por favor, por favor, por favor. Eu não aguento mais — implora com os olhos fechados. Os raios alaranjados do crepúsculo cobrem seu rosto branco e parece que sou eu quem vai acabar morto até o cair da noite. — Você prometeu… Que faria qualquer coisa que eu pedisse.
Perco a conta de quanto tempo ela passa me pedindo pelo mesmo. Por favor, por favor, por favor. Não consigo encontrar o maldito celular. A voz dela se parece com um disco arranhando tocando sempre o mesmo verso da música. Tudo que enxergo é em tons imundos de vermelho sangue. Não sei se fico cego pelo cansaço, pela frustração ou pela raiva. Mas sei que fico. Exausto, puto e fora de mim. Ela grita comigo em meio a gemidos de dor, e eu grito de volta. tenta me machucar com o resto quase inexistente de forças, enquanto eu imploro para que ela pare. Pare com tudo. Para que ela simplesmente cale a porra da boca e fique em silêncio.
E a garota me diz que vai se calar assim que eu fizer o que ela quer, em uma piada sem graça, um tanto mórbida, que reverbera dentro de mim e me deixa ainda mais irritado, a ponto de querer matá-la mil e uma vezes. E tudo se torna pior quando, por uma fração de segundo, eu me pego considerando a ideia. Eu me pego realmente pensando sobre isso, de um jeito caótico e tão fodido que chega a me dar calafrios.
Não parece certo. Não parece, não parece, não parece.
Ela diz que me odeia. Diz que sou a pior coisa que aconteceu em sua vida e que sou incapaz de ajudá-la até mesmo quando ela mais precisa. Cada palavra dessas me causa um rasgo novo no peito. É um verdadeiro pesadelo, e a profecia em sua pele exposta ri de nós. Gargalha num som alto e sem graça, que me ensurdece. Que maldição é o amor. É só isso que ela me pede e é exatamente isso que não posso fazer. A vida parece fora de controle e tudo que tenho a perder é ela, e é isso que ela quer que eu perca. Ela.
A voz dela continua soando em meu ouvido, o corpo jogado contra a lateria de meu carro, o maldito vestido florido tingido de sangue. Me mata, por favor. Me mata de uma vez. Eu sou um furacão desgovernado prestes a destruir tudo que aparecer em minha frente, e ela é tudo que consigo enxergar. Em caminho em círculos, sem rumo, querendo que meus passos insistentes sejam capazes de criar uma solução para meus problemas. Nada. Nada, nada, nada. Um grande inferno de nadas.
Eu sou a porra de um fodido que vai deixá-la morrer ou vai matá-la, e não consigo enxergar nenhuma outra saída. Nenhuma porta de emergência me indicando um final diferente e seguro para nós dois. E só consigo pensar que o erro foi meu. O erro foi todo meu, porque eu sei, eu sei que me peguei amando ela. E ela me diz que me ama também, e que, por isso, quer morrer pelas minhas mãos, na jura de amor mais fodida de todos os tempos. E estou a um segundo de insanidade de agarrar em sua mão e ir junto com ela, sem pensar de novo. Sem pensar em nada.
Um minuto de silêncio se parece com uma eternidade.
Eu penso que as coisas podem melhorar, por puro hábito.
E então me pego pedindo a um Deus no qual acredito por um milagre.
Mas ele só me envia uma garoa fina, como se estivesse lavando minhas mãos.
Quando penso que a mente dela está voltando a trabalhar da forma correta, ela se arrasta até o porta luvas de meu carro, e não entendo o que está fazendo até enxergar um canivete em suas mãos trêmulas. Uma bomba nuclear em forma de lâmina, prestes a explodir tudo ao meu redor. Ela me olha de um jeito ferido, destroçado e amargo. Me olha como se tivesse a traído do pior jeito possível, e então escolhe uma das lâminas escondidas, e no segundo em que sua mão insegura, pequena e ensanguentada, avança na direção de seu pescoço, eu também me movimento. Meus olhos estão sobre os dela, e só descubro o porquê de minha visão embaçada quando me dou conta de que, depois de quase quinze anos, estou chorando.
Eu sou um garotinho medroso e derrotado com um bolo salgado sufocado na garganta.
Eu sou um homem covarde e derrotado com uma arma em minhas mãos, e a mulher que amo aos meus pés.
Ela nunca vai saber que meu maior arrependimento foi ter sido fiel à minha promessa.
E que meu maior engano foi ter puxado o gatilho.

07 de Outubro de 2017.

O banco do passageiro está vazio.
Já faz um mês e o sangue continua encardindo minhas mãos. Eu sei o que você está pensando. O que foi que aconteceu? Como as coisas saíram do controle? Porém, não é exatamente isso que pensamos quando a vida foge dos eixos e se perde nas linhas paralelas entre aquilo que conseguimos entender e aquilo que não tem explicação? Eu também não sei o que aconteceu, mas talvez o problema todo esteja no meu foco narrativo distorcido, não é? Talvez, se ela estivesse contando essa história, as coisas teriam sido diferentes e os pontos de interrogação pudessem ser substituídos por pontos finais. Talvez ela soubesse exatamente o que aconteceu.
Mas eu avisei.
Eu disse que essa não é uma história bonita, daquela que agrada aos olhos. Ela entrou no meu carro e se alastrou por toda minha rotina, até invadir a minha vida. E eu a deixei ficar. Ela me disse que o amor era a fórmula do fracasso e da separação de duas pessoas, e eu tentei fazê-la acreditar que as palavras de um suicida não podiam determinar o destino de ninguém. E, ah, a ironia. A ironia de ter gravado em minha pele que se deve amar o destino quando o próprio amor se fez fracasso e agora me faz odiar cada segundo de vida.
Eu não sei se devia ter ficado para abraçar o corpo dela sem vida e chorar sobre o sangue escorrendo por suas roupas. Em algumas noites, penso que sim. Eu penso que eu deveria ter ficado e chorando até todo o sangue drenar, até a polícia aparecer e me levar algemado por ser um assassino, me obrigando a me separar dela. Às vezes, penso que foi melhor ter saído sem olhar para trás, depois de arrumar o maldito carro e dirigido sem parar por três dias, até que o silêncio se tornasse barulhento demais. A porra de um covarde. Você puxou o gatilho e foi a porra de um covarde. É disso que meus pesadelos são recheados. De memórias vazias que tem o timbre da voz dela. Eu assisti aos programas de TV e escutei os noticiários nas rádios, na esperança de ver a imagem do rosto dela outra vez, mas ninguém disse nada. Ninguém se deu ao trabalho de informar sobre sua morte, e eu me peguei querendo acreditar que, talvez, ela só tivesse acontecido mesmo dentro da minha cabeça, em um surto alucinatório.
Pensei em voltar naquele lugar esquecido no meio do nada, para me afundar no meio da grama alta e gritar até meus pulmões explodirem, na esperança de que ela pudesse me ouvir de onde quer que estivesse. Mas não consegui encontrar a estrada certa. Eu não consegui encontrar a porra do caminho… E agora... Agora já faz um mês. Um mês desde aquele maldito dia de número sete.
A palavra da vez deveria ser recomeço.
Mas não é “re”, nem começo.
É fim.

27 de Novembro de 2017.

Meu nome é , e essa é minha confissão.
Eu me apaixonei por uma garota de olhos profundos e perdidos, que tinham a tonalidade dos oceanos após uma ressaca. Ela trazia a profecia de nosso destino marcada em sua pele doce, que transpirava o seu perfume de lavanda. O cheiro dela ainda está impregnado em minhas roupas e no banco de meu Maverick 98, que ela queria tanto trocar por uma moto. Eu tentei lavar tudo, mandei para lavanderias e tentei camuflar com perfumes novos, mas ele continua presente… tão teimoso e insistente quanto ela, abraçando tudo que está ao seu encalce. Era uma garota de riso fácil, e eu quis decorar o som de sua risada para reproduzi-lo em minha mente durante toda a vida. Mas agora, tudo de que consigo me lembrar é do som do seu choro.
O marca do tiro que ela mirou em meu ombro sem querer ainda me assombra quando me olho no espelho. É como um fantasma enjaulado dentro de uma garrafa de vidro, sem ter por onde se esgueirar para encontrar escapatória. A garota por quem me apaixonei me fez tocar o céu e caminhar pelo inferno. Por causa dela, acrescentei as palavras adorável, verdadeiro, vazio e suicida em meu dicionário. Acho que ela teria achado essa última atrativa. Durante um tempo, ela me fez acreditar que eu era seu herói, ainda que tudo nela gritasse que não precisava ser salva. Os vestidos floridos eram um disfarce inteligente para esconder a armadura de metal. Na primeira vez que nos conhecemos, ela me pediu por uma vida de aventuras. Na última vez que nos encontramos, me pediu para puxar o gatilho. Foi então que percebi que, no fim das contas, eu era mesmo o vilão.

Enquanto pressiono o cano do revólver contra minha própria testa, ouço meu celular programado para discar para o número dela arriscar outra vez, testando a sorte. A bateria ainda está cheia, então sei que ele ainda vai ficar nessa missão masoquista por mais algumas horas, e é engraçado pensar que, mesmo quando eu já não estiver mais nesse mundo, ainda assim vou procurar por ela. E se ela também ainda estivesse aqui, acharia isso tudo poético e romântico, mas um tanto trágico. Digno de Hemingway, talvez. Ironicamente, enquanto meu dedo enlaça o gatilho, chego à conclusão de que talvez nossa palavra não seja coexistência, instabilidade ou saudade. Talvez ela seja azar…

Azar ter desconfiado das palavras de Hemingway.
Azar ter deixado ela se aproximar.
Azar ter me aproximado também.
Azar. Mas, quando puxo o gatilho, é em reencontro que estou pensando.

“We're sorry your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
“We're sorry your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
“We're sorry your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
“We're sorry your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
“We're sorry your call cannot be completed as dialed. Please check the number and dial again.”
“We're sorry your call cannot be completed as dia-”


— Olá.




Fim...



Nota da autora: Caramba, conseguir concluir essa história foi um verdadeiro sacrifício, sabia? Acho que escrevi a primeira parte, depois fiquei um mês sem conseguir continuar, então tive que escrever o resto num surto de inspiração e cá estamos nós agora. Acho que é a primeira vez que escrevo algo que é narrado por um personagem masculino, portanto não sei muito bem o que pensar sobre tudo isso. Por isso, seria muito bom se vocês que leram pudessem deixar um comentário me dizendo o que acharam! E também porque estou curiosa pra saber se alguém conseguiu pegar todos os shades e referências ao longo do texto hahaha. É isso, espero que tenham gostado, e até a próxima!
Por fim, se quiser acompanhar minhas outras histórias ou conversar comigo, minhas redes sociais estão aqui embaixo:

Curious Cat




Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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