MV: I’ll be your man

Fanfic Finalizada
Music Video: I’ll be your man - BTOB

Capítulo Único

É o fim de mais um culto. As pessoas levantam em seu próprio ritmo e saem da igreja conversando sobre a mensagem. Um homem adulto, null, e uma jovem, null, estão sentados no último banco esperando todos saírem. Seus olhos estão grudados no púlpito, onde o pastor parece meio perdido organizando suas coisas. Dois guardas armados passam por eles como se não os vissem e fecham as portas da igreja. Três homens descem as escadas que levam até o segundo andar da igreja. Eles andam e conversam normalmente. null e null finalmente soltam os braços e respiram pesado, cansados de fingir. null, o primeiro a vê-los, se apressa para cumprimentar o amigo.

— Que isso, irmão, pensamos que tinha sido pego!

— Não pude subir a tempo porque precisei acompanhar essa mocinha a certos lugares.

— E você, quem é? — pergunta null.

null, filha de Callan. — Sua mão fica estendida por alguns segundos até que null aceita o cumprimento. Os outros apenas analisam suas palavras e seu comportamento descaradamente.

— Ela esteve com Erna até agora. Todos os testes confirmam o que ela diz. — A voz de null é firme, visto que seus amigos estão claramente hesitantes com a presença estranha no local.

null se afasta para ir até o púlpito. Ele diz algumas palavras de gratidão pelo culto de hoje, sua mão está apoiada sobre o ombro do mais velho. null não consegue esconder a expressão surpresa quando o segundo cai como se tivesse sido desligado. null tira o fone do comunicador do ouvido do homem e o guarda no bolso.

— Onde você estava quando Callan foi morto? — null joga mais uma pergunta.

— Escondida em um porão recebendo tratamento pra isso. — Ela puxa a gola alta da camisa e mostra o longo corte que vai da nuca até a curva do ombro. A cicatriz ainda é visivelmente recente, por isso a tatuagem de eclipse parece mal feita. — Ele demorou para me encontrar depois que se uniu à resistência, mas me arrancou o identificador assim que conseguiu.

— Beleza, eu tenho todas as provas aqui e vocês podem conversar com Erna depois. Agora precisamos sair desse lugar o quanto antes. O turno dos caras lá fora vai acabar daqui a pouco — null interrompe. null estranha a última afirmação.

— Não é obrigatório ficar pelo resto do dia?

— O turno deles para nos proteger, isso você entende melhor depois. Agora vamos.

Eles se dirigem para os fundos da igreja, onde há outra saída. null deixa os dois irem na frente para perguntar a opinião dos amigos.

— Já marquei o mesmo horário para o próximo culto. Ficou confuso pela falta de ordens, mas nem vai lembrar quando acordar. — A comemoração de null encontra o silêncio.

— Você não acha que deveria ter esperado ela sair pra fazer isso? — null questiona, encarando null, que está entrando na van.

— Não é como se null não tivesse contado tudo a ela previamente. Ele nunca a traria pra cá se não estivesse cem por cento certo. Agora relaxa, vamos ouvir o resto da história — null conclui, dando três tapinhas nos ombros dele. null fica para trancar a porta dos fundos.

***

Há quinze anos, o estado de Lume foi trancado do dia para a noite pelo governo local. Quando a liderança nacional buscou contrariar tal ato, foi descoberto que vários espiões na Casa Verde haviam conseguido documentos que comprovassem a emancipação do estado e sua independência para criar as próprias regras. No dia seguinte, a força militar de Lume assustou o resto do país, que não estava preparado para um conflito tão grande. Com as vias aéreas e terrestres fechadas, era praticamente impossível invadir sem quebrar os acordos de paz — também incluídos nos documentos de emancipação. A nova nação de Lume declarou paz com o mundo inteiro, justificando o isolamento como um experimento que serviria de exemplo para outras nações.

Sem querer iniciar uma guerra nuclear, os países decidiram observar Lume por algum tempo, buscando qualquer comportamento estranho. Dois anos depois, quando as estatísticas começaram a mostrar números de desenvolvimento positivo em diversas áreas, o mundo se convenceu. A mídia nacional parecia sincera e livre para mostrar como a vida das pessoas havia melhorado a partir de oportunidades para todas as classes, destaque para a saúde, acesso a alimentação e política sanitária. A Grande Liderança conseguiu consolidar a ideia de um país unido e bem tratado por seu governo. Passado o tempo, a vigilância já não era tão forte. Lume não estava fazendo mal para seu povo nem para o planeta, então não haviam motivos para quebrar o bom convívio.

O que o mundo não sabia era que uma resistência tentava ganhar espaço. Uma resistência — com ótimas condições para sustento e estrutura graças ao crescimento da economia — que havia descoberto o método tão eficaz que fez a nação decolar. Além de identificadores instalados sob a pele — com o símbolo de Lume, um sol — para evitar falsidade ideológica, dispositivos de controle cerebral estavam sendo colocados nos alimentos essenciais para a população. Um pequeno microchip imperceptível soltava uma substância capaz de tornar as pessoas suscetíveis a ordens. Houveram muitos testes para considerar tipos diferentes de organismos até chegar no melhor resultado: caso o microchip detectasse a substância atuando em um curto período de tempo — ou seja, se fosse ingerido mais de duas vezes —, ele simplesmente não funcionava, se espalhando para outros lugares do corpo sem qualquer efeito. Isso evitava vícios, alergias e suspeitas, pois a substância era indetectável no sistema digestivo e no sangue. Todavia, o consumo frequente desses alimentos era necessário para repor o funcionamento dessa substância, por isso os ingredientes escolhidos foram pedras de sal e açúcar. Não havia lojas de conveniência, refeitórios e cozinhas caseiras que escapassem de ter a substância em suas prateleiras.

As primeiras ordens foram aplicadas nas escolas. Os mais novos foram guiados a atividades que os fariam escolher carreiras específicas no futuro, levando a mesma ideia aos pais. Já com os adolescentes, a proposta foi executada com mais cuidado para que mudassem de ideia de forma “natural” e tivessem conversas mais concretas com seus parentes. Os adultos empregados e desempregados foram guiados pela propaganda direcionada a seguir carreiras que fossem "melhores" para suas personalidades e habilidades. Os argumentos funcionaram. Muitas pessoas se demitiram com essa justificativa, abrindo portas para aqueles considerados ideais para as vagas. Logo, em todas as áreas, da arte à mecânica, pessoas controladas por esse dispositivo permitiam que a nação entrasse em equilíbrio econômico. Era satisfatório estar onde deveria estar.

No entanto, durante os testes, houveram exceções. Aqueles com um organismo que recusasse o dispositivo não seguiam as ordens da nação. Se existisse uma ameaça ao equilíbrio do sistema, ela deveria ser eliminada. Demorou mais um ano até que essas pessoas descobrissem o padrão e se reconhecessem. Cada civil que questionasse ou não seguisse a carreira que lhe foi destinada, era diagnosticado com uma doença letal alguns dias depois. A resistência alcançou uma família a qual apenas um filho reagia à substância. O comportamento do rapaz começou a chamar atenção quando decidiu trocar o vestibular de Jornalismo pelo da Grande Proteção — a nova polícia. Um dos assuntos constantes da casa era a opressão crescente dessa organização e como o novo sistema não fazia sentido. Foi durante uma greve de fome que ele aos poucos voltou ao normal, dizendo que se sentia confuso, estranho: como se estivesse sendo obrigado a decidir certas coisas. Drogas ilegais foram descartadas, pois todas elas tinham sido destruídas há algum tempo. Após a reconciliação, a família tomou café da manhã e enviou o rapaz ao centro de estudos sem saber que ele voltaria como um robô outra vez.

Enquanto todos se arrumavam para ir a uma clínica de neurologia, o irmão mais velho recebeu uma mensagem de um amigo com um vídeo sobre dispositivos que afetam o lobo frontal estarem sendo aplicados nos cidadãos de Lume através da comida. Após assistir até o fim, aprofundou sua busca na rede segura de internet para ler um artigo de estudo e outras postagens sobre a teoria. Ele e seus pais decidiram mudar a alimentação do irmão mais novo e observar sua mudança de comportamento. O rapaz realmente voltou a si após alguns dias sem consumir certos alimentos, permitindo que sua família lhe guiasse para continuar agindo normalmente, porém mais atento aos arredores. O que eles não contavam era com a bagunça iminente nas memórias do rapaz, que não conseguiu passar despercebido pela Grande Proteção. As fraudes da família foram descobertas, assim como o fato de serem exceções. O rapaz foi imediatamente transferido para outra instituição no outro lado do país para receber o tratamento correto e continuar sua jornada sem interrupções.

Durante a noite, os membros da resistência chegaram na casa da família antes da Grande Proteção, mas ainda trocaram alguns tiros na fuga. O pai foi atingido antes de conseguir subir no carro e a mãe levou um tiro pela janela. O filho mais velho teve que seguir sozinho, com sangue nas mãos, num lugar que ele era visto como ameaça. Quando chegou ao porto seguro da resistência, localizado no subterrâneo de uma floresta perto da praia, encontrou razão para pensar que poderia, sim, ser uma ameaça, só não estava mais sozinho.

***

A admiração de null pela resistência é extremamente gratificante para alguns dos líderes, que aceitam com satisfação ensiná-la sobre todas as áreas de ação e como tudo funciona nas semanas seguintes. null havia contado a história e função de cada um até onde achou necessário.

null é médico. Ele geralmente fica na linha de frente, principalmente quando há chances de conflito. — Tem pleno conhecimento do identificador, assim pôde ajudar a modificá-lo sem prejudicar a saúde dos membros.

null é programador, ele cuida das invasões e nos protege de riscos digitais. null e null, os atiradores, são seus amigos há muito tempo, os três chegaram juntos. Esses dois faziam parte da Grande Proteção até serem pegos não obedecendo às ordens da forma certa. — null presenciou os primeiros testes para protetores mais robóticos. Quando percebeu que null, null e duas protetoras sofreriam mais por serem imunes, sabotou os testes e precisou ser dado como morto para que a perseguição parasse um tempo depois. Uma das meninas infelizmente foi capturada no caminho. Nunca mais souberam dela. A outra foi transferida para a base do oeste, por segurança.

null cuida da organização e necessidades da base. null é analista de sistemas; tem o mesmo papel de null, além de supervisionar os membros da segurança virtual. — Os dois se conheceram na rede segura de internet e foram responsáveis pelo recrutamento de fugitivos quando Callan ainda era líder. Eles identificaram a situação de null a tempo de chegar antes da Grande Proteção.

— E você? É o chefe?

— Chefe? Não. — Ele ri. — Sou membro fixo da linha de frente… e dou boas ideias de vez em quando, como a igreja.

— E como funciona?

Líderes como professores, pastores e figuras importantes no geral, são programados para repassar mensagens que mantenham Lume no caminho certo. Respeitar o crescimento e as conquistas da nação, cuidar da alimentação e se manter longe de problemas que afetem o equilíbrio de suas vidas, etc. null apaga a pessoa por alguns minutos — com um pequeno choque — para trocar o fone pelo que receberá a mensagem da resistência. O mesmo acontece com os guardas que estejam fazendo a segurança da rua no momento. No caso deles, ficam apagados durante o culto inteiro. null vigia o perímetro, o qual raramente há movimento preocupante. Um bloqueador de som impede que escutas ou gravadores escondidos funcionem. A partir daí, a resistência cria um recrutamento discreto com ênfase no contexto atual e como os comportamentos são importantes para a convivência disfarçada em sociedade.

— Isso não é conversa para novatos. — Ele pisca um olho e desencosta da árvore.

— Por que igrejas, então? — null insiste, se esticando após uma sessão de tiro ao alvo em movimento no meio da floresta.

— Pelo respeito. Ninguém vai achar que a manipulação de uma igreja está sendo invadida, nem mesmo os chefes da Grande Proteção — null responde, colocando as coisas na bolsa. null balança a cabeça.

— Eu sei que já agradeci outras vezes, mas sinto que preciso fazer isso com frequência. Você não precisava estar me treinando pessoalmente. Obrigada, de verdade.

— É o mínimo que posso fazer pela filha do homem que me acolheu no meu maior momento de vulnerabilidade.

Os dois trilham o caminho de volta mais aleatório possível. É a estratégia da resistência para não deixar marcas que levem diretamente à base, também não há riscos de se perder para quem conhece a técnica. null coloca um pé para dentro da sala de reuniões e sente o estresse quase palpável dos membros. null está sentado na cadeira encostada na parede à direita, sua perna não para de balançar por um segundo. null está terminando de enrolar uma faixa de gaze no braço de null, que controla os gemidos de dor. null tranca a porta da sala e nota o bloqueador de som ativado sobre a mesa.

— A interceptação deu errado? — pergunta ele.

— Quase — responde null, pressionando um pacote de gelo sobre a cabeça. — Um caminhão de açúcar foi roubado e o outro abastecido com as bombas, mas nossa carona de volta foi bloqueada pelo comboio. De alguma forma eles sabiam do plano. Aquele caminhão era pra ser o último a sair da fábrica, o que eles estavam fazendo lá?!

— Tentamos atacar de longe, não funcionou. Que merda de armaduras eram aquelas? — null reclama. — Eu até levei o carro pela parte de trás, mas eles me mandaram voltar porque a contagem já estava acabando. Uma pedra veio voando e quebrou parte da janela do carro, agora tô com essa merda de corte aqui.

— Você arriscou a posição e o transporte de null pra salvar os caras da fábrica? — null repete como se tivesse acabado de ouvir um absurdo.

— Como é?

— Você sabia o tempo da contagem, sabia que se estivesse perto o suficiente teria revelado de onde veio e ainda deixaria null totalmente vulnerável sem ter como voltar. — null se aproxima. A postura calma sem deixar de ser intimidante. — Eu entendo sua intenção, sei que no fundo foi mero ato impulsivo, mas você entende o que isso poderia ter causado para nós?

— Vai me culpar por ter tentado proteger nossa equipe? Tá de brincadeira?

— Tô chamando sua atenção pro que temos aqui agora, dentro desta sala. As pessoas lá fora precisam de nós, o futuro delas depende das nossas decisões. Estou dizendo pra você pensar melhor na próxima vez.

— Já chega de ir a missões juntos. Foi muito arriscado colocar os dois líderes dos atiradores no mesmo campo — null declara. — Comecem a pensar nos membros que gostariam em suas equipes e os treinem pessoalmente.

***

Após a explosão da fábrica de alimentos modificados e o roubo do açúcar puro, todos os membros da resistência combinaram de manter silêncio por vários dias. Estava quieto. Nas ruas, na floresta, na rede segura de internet. Tão quieto que os controlados puderam seguir suas vidas sem estresse ou interrupção. Por outro lado, com a breve pausa na reposição da substância no cérebro, algumas pessoas que visitaram os locais invadidos pela resistência puderam se concentrar em tomar suas próprias decisões a partir do aconselhamento. Na mesma empresa, uma pessoa poderia estar trabalhando felizmente em seu relatório enquanto o colega ao lado ensaiava seu comportamento pelos próximos dias, considerando todas as oportunidades de evitar o consumo da substância e como lidar com isso. Entre as pesquisas excluídas do histórico do navegador estavam os estabelecimentos que vendem pacotes de sal e açúcar puros disfarçados de produtos comuns da Grande Liderança.

Os membros que ainda convivem em sociedade comunicaram aos líderes sobre um grande evento que aconteceria em três dias. Os responsáveis pela engenharia — naturalmente interessados — se uniram aos estrategistas para construir mais acomodações para hospedar os possíveis fugitivos. O evento, aparentemente, foi criado para verificar o desempenho após o intervalo na entrega de ingredientes para os mercados. Inúmeras estruturas foram construídas para entrevistar cada cidadão com a ajuda de máquinas para checar a atividade cerebral. Além disso, claro, um grande banquete seria oferecido para comemorar a resiliência da nação após o ataque. Tal ação pública era uma faca de dois gumes: boa parte da Grande Liderança estaria à vista, porém muitos não estavam prontos para burlar o sistema de detecção de comportamentos.

Pela primeira vez em semanas, null não ficou perto dos líderes. Sua habilidade natural era força e agilidade, então ela passou a maior parte do tempo ajudando os engenheiros e estudando as táticas de fuga da nova estrutura. null não trocava mais do que duas palavras por dia, null e null até dividiram a mesa do almoço por algum tempo, mas a correria dos últimos dias os obrigou a comerem na sala de reuniões desde então. null e null estavam muito ocupados corrigindo os mínimos detalhes e reforçando a barreira de proteção digital junto aos outros técnicos para tentar manter a amizade com ela. Suas habilidades com armas não passaram do básico porque null não tinha muita energia para gastar com uma pessoa só, isso era papel de null, porém este não fazia questão de fingir ter um pouco de simpatia pela garota. Os comentários ácidos pararam, mas algo nela simplesmente não encaixava na cabeça dele.

— Eu respeito muito seu pai, mas nunca fui tão próximo dele, muito menos tenho uma dívida a ser paga. Além disso, eu sou só um atirador, você não precisa da minha amizade — ele conclui, sem tirar a atenção do carregamento de armas que está organizando.

null solta uma risadinha quando null sai da sala batendo a porta com força.

— Você não acha que pega muito pesado?

— Pesado? Eu só não quero ser próximo. Também não gosto de pessoas insistentes.

— Acho que precisa dosar um pouco a sinceridade. Às vezes te pego com o olhar preso nela, isso não é uma atração em negação, é?

— Não, sem chances. Não paro de olhar porque aquela cicatriz não me desce de jeito nenhum.

null entra na sala.

— Qual o assunto? Vi null sair daqui soltando fumaça pelos ouvidos.

— Perguntei se null trata ela mal porque gosta dela como um garoto do fundamental, mas ele tá falando da cicatriz dela. Não sei se acredito.

— Já disse que não a maltrato.

— Qual o problema da cicatriz? — null pergunta.

— Irmão, eu sei que você verificou tudo com Erna, uma pessoa confiável — null inicia. — Mas você não acha que o corte tá muito… exagerado? Não queria contar com a ideia do eclipse estar bem diferente do nosso, é só que tá... diferente… sei lá.

— O próprio Callan trocou o dispositivo dela, algo pode ter dado errado no processo, na correria. Todos os corpos são diferentes, null. Sem falar que null verificou o sistema dela mais de uma vez, tudo bate.

— Talvez eu esteja muito acostumado com os métodos dos nossos cirurgiões, mas aquilo não parece método cirúrgico, e sim tortura. — Ele suspira. — Antes de irmos vou ensinar uma coisa a ela, já que tô vendo vocês me repreendendo com o olhar agora mesmo.

— Você precisa relaxar, irmão. — null dá dois tapinhas nas costas dele. — Terminem logo isso e tragam o relatório pra última reunião antes da partida.

***

— O que você quer que eu faça? — null pergunta.

— Você se enturmou e ajudou bastante o pessoal da engenharia, então fique aqui para receber os fugitivos — diz null, ajustando o colete e verificando os materiais em sua bolsa.

— Não posso ir com a equipe que vai buscá-los? — Ela entra na frente quando ele dá um passo.

— O que te faz pensar que eu te deixaria exposta durante um evento desse nível? — Ele dá uma risada genuína e apoia as mãos nos ombros dela. — Seu pai se revirou na terra com essa ideia.

No fim da tarde, os cidadãos pegos burlando o sistema foram divididos em dois grupos: os que ainda podem receber a reposição comum e os que precisam de tratamento para voltar ao “normal”. Os primeiros estão indo de ônibus para suas devidas residências - que serão revistadas por precaução -, os segundos estão sendo colocados no trem que seguirá para o sul do país, onde se localiza o Isolamento para Tratamento Intensivo de Lume. Como o piloto do trem foi reprogramado um dia antes, o segundo passo é esperar o desembarque na estação no meio do caminho. null e null estão escondidos na floresta ao lado dos trilhos; espalhadas em pequenos grupos estão pelo menos vinte pessoas. null está com seu grupo de atiradores nos pontos mais altos do vale atrás das árvores. De lá, ele consegue ter uma boa visão das primeiras cabines e da entrada e saída da estação.

O som do trem é ouvido de longe à direita. Os freios são ativados com cuidado. null posiciona sua mira na cabine do maquinista, pronto para atirar no homem assim que seu tempo de programação terminar.

— Por que as portas não abrem? — ele questiona.

— Consigo ver algumas pessoas apagadas nos assentos, porém muito menos do que esperávamos — uma atiradora avisa. — Talvez estejam caídas no chão, não é como se eles se importassem.

Um movimento brusco chama a atenção de null. Um dos guardas que estavam imóveis em frente à porta do maquinista levanta de repente e entra na cabine. O outro se joga no chão, em seguida, o maquinista leva um tiro na cabeça e cai apoiado na janela.

— Drone. Drone! — outro atirador sussurra em urgência. null levanta dois dedos para sinalizar espera.

— Armadilha! — null anuncia no microfone que leva aos fones dos que estão lá embaixo. — Um drone acabou de sair do trem, se dispersem com muito cuidado. Fiquem atentos ao primeiro tiro, não terá mais como se esconder.

Tudo acontece muito rápido.

null abate o drone com dois tiros. Antes que o veículo possa chegar ao chão, dezenas de passos são ouvidos de todas as direções ao redor da floresta. A resistência não tem outra opção além de mirar e atirar sem se importar muito com a ordem. Alguns sobem nas árvores e acertam a Grande Proteção de cima, mas logo são descobertos e a estratégia vai por água abaixo. null arrasta null, que está desmaiado, para atrás de uma pedra e procura por machucados graves no corpo dele. Os atiradores tentam ao máximo impedir que outro grupo de soldados se aproxime do conflito, utilizando granadas de som e fumaça para deixá-los vulneráveis.

null foi atingido, eles estão muito perto. Vocês não vão nos achar a tempo. Desordem, agora! — null ordena.

null fecha os olhos, aperta as mãos em punhos e trava a mandíbula. Os outros membros estão divididos entre observar o movimento e esperar a decisão do líder.

— Quais são as condições da fuga?

— Nossa rota não foi comprometida. Ainda.

— Eles virão pela esquerda. Se formos rápidos, conseguimos chegar ao ponto cego sem companhia.

— Movimento, movimento! — null pendura a alça da arma em seu ombro direito e a da mochila no esquerdo. — E cortem essa linha de comunicação. Não é seguro até chegarmos na desordem, por isso não se separem.

null pensa que o peso em seu coração está ligado apenas à captura de null e null, mas na base oficial da resistência o caos é ainda pior.

Enquanto se preparavam para receber os novos fugitivos, os membros não contavam com a aparição repentina e agressiva da Grande Proteção. O detector de drones apitou muito forte nos dispositivos, mas a preocupação foi direcionada aos passos contra a terra acima e o helicóptero que sobrevoava a área da floresta. Os guardas da frente não tiveram agilidade nem força suficiente para lidar com tantos protetores de uma só vez. Nesse meio tempo, null escancarou as portas do arsenal e permitiu que todos pegassem o que fosse melhor além do armamento de defesa pessoal. null ajudou os mais frágeis a fugirem pela porta secreta. null e null se armaram e foram com eles para acessar as duas rotas de fuga e seguir para a outra base quando o movimento diminuísse do lado de fora. Para ter certeza do espaço livre, usaram termômetros infravermelhos.

Muitos tiveram a atitude de combater os protetores e, como previsto, não resistiram. Os que não estavam jogados no chão desmaiados pela dor do choque, foram presos primeiro e levados aos caminhões estacionados na praia. Por outro lado, null conseguiu ativar a porta de ferro que havia sido testada poucas vezes. A equipe de null conseguiu abater os que ficaram dentro da base, aproveitando para pegar os coletes e as armas antes de seguirem para uma das rotas de fuga.

null, que conseguiu acertar um protetor no pescoço, também vestiu o colete para evitar outros ferimentos além da queimação do tiro de choque em sua costela. A sala secreta da rota de fuga já está vazia quando ele entra rolando pelas escadas. Sem saber de onde vem a dor em suas costas, se arrasta até os armários para pegar produtos de primeiros socorros enquanto ainda está ciente de suas ações. Ele pressiona o rosto contra um pacote grande de algodão e dá um berro gutural, descontando toda sua frustração no pobre pacote. Os barulhos, agora abafados pelas camadas de concreto, fazem sua dor aumentar fisicamente e emocionalmente. null simplesmente não consegue tirar a imagem de null golpeando a cabeça de um membro para ajudar um protetor a capturá-lo.

***

null mal pôde conter os soluços em sua crise de choro quando não viu null junto aos outros. A segunda base está localizada no subterrâneo de um galpão abandonado a alguns quilômetros do litoral, então foi agonizante esperar que todos chegassem a pé para se dar conta do estrago. null, null e null precisaram da ajuda dos atiradores para entender o que havia acontecido com a linha de frente. A desorientação tomava conta do ambiente. Pouquíssimos membros da equipe de null e null conseguiram escapar, estes tiveram de se esconder com o máximo de silêncio até os protetores irem embora. null avisou que null havia enviado sinal há duas horas, indicando que ele estava dentro da sala secreta. Demoraram a decidir se deveriam enviar um rádio para confirmar o estado dele. Por fim, ligaram um dos rádios que pegaram da sala de fuga e estalaram os dedos duas vezes. Foi um alívio quando null respondeu da mesma maneira.

Depois de relatar o silêncio e a ausência de calor na superfície acima, null passa a reclamar sobre o abastecimento da sala.

— Quem é o idiota responsável pela supervisão das rotas de fuga? Quase não tem comida e água aqui.

— Irmão… é você. — null prende o riso, feliz de ouvi-lo reclamar.

— Sendo assim, me dê um soco na cara quando vier me buscar. Mas planejem direito, não quero que sejam pegos também.

— Não entendemos como isso aconteceu. Só tem um jeito deles saberem exatamente todas as locações.

— Sim, foi um vazamento. null nos traiu. Eu a vi ajudando um protetor a imobilizar um dos nossos.

— Eu sabia! Eu disse! — null levanta de repente. — É claro que a Grande Proteção fez aquele corte no pescoço dela, não tinha outra opção.

— Certo, guarde essa energia pra mais tarde. Temos muito a resolver. Sabe-se lá o que farão com null e null.

— Você aguenta aí por quanto tempo?

— O suficiente. Mando outro sinal se estiver muito difícil. Agora vão logo.

***

Numa das celas do Isolamento Primário, null ainda sente o cheiro do sangue que derramou durante o interrogatório. O banho gelado que tomou foi suficiente para limpar seu corpo e o shampoo tirou todo sangue que desceu para seu cabelo. É difícil respirar sem sentir as costelas doerem como se agulhas as penetrassem. Seus olhos estão fixados no teto branco. A dor não lhe deixa dormir nem se distrair por muito tempo, mas sua mente insiste em pensar na situação de null, dos membros que foram capturados, naqueles que morreram em combate. Não consegue parar de pensar se a rota de fuga de null deu certo. Se a base inteira foi invadida. Não consegue parar de pensar no olhar que recebeu de null através do vidro da sala durante o interrogatório inteiro.

Ele não entende o que pode tê-la levado a isso. Callan nunca teria criado uma traidora. Como conseguiram fazer o dispositivo perfeito, capaz de driblar todos os sistemas da resistência? É o que gira em sua cabeça. Não demora a pensar em null, que mencionou o corte incomum. Ela claramente foi torturada para se tornar espiã, mas o que a motivou a agir com tanta frieza diante de tantas pessoas inocentes? null geme de dor quando tenta respirar fundo para acalmar os pensamentos. A segunda porta que protege sua cela é aberta. O guarda que fica na entrada cumpre a ordem de se retirar, antes fazendo questão de olhar de forma ameaçadora para null, que deixa um risinho escapar, se arrependendo em seguida.

— Tenho três minutos — diz null.

— Não acha que já ouvi e senti o suficiente?

null procura algo no celular antes de pressioná-lo contra o vidro da janela horizontal ao lado da porta do quarto. null tenta enxergar de longe, sem sucesso. Ele demora um pouco para levantar, tentando ao máximo segurar os gemidos de dor. null desvia o olhar antes que sua postura de raiva se quebre.

O vídeo tem menos de quinze segundos e se repete algumas vezes até que null chegue na janela. É de uma câmera de segurança, gravado no dia do assassinato de Callan. Ele está ajoelhado entre dois protetores, outro homem está em sua frente, andando de um lado para o outro calmamente. Esse homem destrava a pistola e aponta para Callan, que faz um movimento negativo e grita algo. O assassino tira a máscara antes de disparar um tiro bem no meio da testa. Se o choque já é enorme para null, ele piora quando seu rosto aparece no vídeo. Precisamente, é uma prova de que null assassinou Callan.

— Isso não é real.

— Claro que é real. Uma bala na testa não é suficiente pra você?

— Quis dizer que eu não matei Callan. Eu não estava com ele nesse dia, nem nos dias seguintes.

— Você tá de brincadeira? Não tá vendo a merda do vídeo?

— Programas de edição evoluíram muito nos últimos anos. Estou dizendo que não matei Callan e posso provar. — Seus olhos estão grudados aos dela com a mesma firmeza. — Já que você é tão amiga deles, procure imagens desse mesmo dia pelos lados do Norte. Eu estava entre os membros que invadiram o arsenal da Grande Proteção durante o apagão. Estava muito ocupado carregando granadas igual um cavalo pra sequer pensar em matar meu líder. Ele conduziu uma missão sozinho e não voltou à base por dias, aí recebemos a notícia da morte dele.

Os dois se encaram em silêncio. null desvia o olhar para a esquerda, onde uma câmera no teto aponta para ela.

— Foram eles que fizeram isso, né? — null se refere à cicatriz. — Como convenceram Erna a mentir pra mim?

— Não interessa.

— Deveria. Acredito que no momento sou a única pessoa que não tem ódio de você. Imagino que tenha sido muito confuso ser capturada e ter que ver uma cena dessa. — null respira fundo e faz uma careta de dor, tocando a costela direita cheia de hematomas. — Se você sente algum tipo de remorso pelo que causou a nós, irá pelo menos procurar pelo vídeo certo. null está morto?

null continua em silêncio, respirando pesado.

— Responde! — Ele bate a mão aberta no vidro. null sente cada molécula de seu corpo tremer.

— Ele está internado num quarto especial recebendo cuidados. Eles querem deixá-lo estável antes da transferência.

— Eles querem programá-lo? Não vão nos matar?

Os passos do protetor se aproximam e chamam a atenção de null.

— A mulher de cabelo vermelho no mercado ao lado da escola infantil no centro da cidade saberá sobre a página 40, linha 23. Se eles aceitarem te encontrar, fale sobre a página 101, linha 4. Só pra eles. — Os olhos de null imploram para que null acredite. — Espero que mude de ideia.

Os códigos são digitados do lado de fora da porta. null nota que ela aperta o botão de algo parecido com um bloqueador de som e o coloca no bolso antes de sair.

— Você pede demais.

***

É madrugada quando null e null voltam à trilha da rota de fuga da base no litoral. O primeiro fica de guarda dentro de uma caverna camuflada enquanto o segundo cruza a entrada escondida no chão. Apesar de null ter confirmado silêncio e ausência de calor nos arredores há muito tempo, a torcida em comum — além do zelo pela saúde do outro — é que o detector de drones não precise cumprir sua função.

null está apagado quase caindo da cama. Uma caixa de primeiros socorros está ao seu lado, alguns produtos estão espalhados. null sente arrepios por considerar o pior. Quando os chamou, não havia relatado piora em seu estado, então por que sua aparência está tão esquisita e por que há uma mancha vermelha no lençol? Ele levanta o corpo do amigo com cuidado e percebe que o sangue vem de um corte nas costas de null.

— Ele está apagado, mas os batimentos estão normais. Deve ter sangrado muito por um corte nas costas ou engoliu uns calmantes para passar o tempo sem sentir dor — ele avisa pelo microfone.

— Quer que eu traga o carro?

— Não, só precisarei carregá-lo. Devemos ser ainda mais rápidos.

— Tudo bem. Por aqui ainda tá tranquilo, mas é bom se apressar — null alerta.

***

null mal consegue aguentar o calor que toma conta de seu rosto. Se ao menos fosse pelo tecido preto que cobre sua cabeça, mas é apenas vergonha.

Levou um dia e meio para fazer o que null pediu. Durante a madrugada, escondida num ponto cego, conseguiu acesso à sala de câmeras com o cartão de um protetor, que cometeu o erro de sair da sala enquanto seu parceiro tirava um intervalo. Não foi difícil encontrar o arquivo. O acesso do cartão permitia a visualização de eventos reais capturados pelas câmeras. Só foi preciso digitar a data e a área do ocorrido. Amus, líder da Grande Proteção, se aproveitou do fato de ter altura e proporção corporal parecidas com as de null e criou a cena perfeita. null precisou da manhã inteira para se livrar de todas as lágrimas de culpa; ainda assim, seu corpo e pulmões exaustos lhe disseram que nunca teria fim.

Já convencida de que não poderia voltar ao Isolamento Primário, arrumou uma mochila e foi até o mercado. Precisava aproveitar enquanto os guardas ainda fingiam que ela não existia. A mulher de cabelo vermelho demorou a acreditar em null, deduzindo que o código havia sido arrancado do líder através de tortura. Ouvindo a explicação de como atacou um protetor, deixou a garota ficar no porão embaixo da despensa até que chegassem a uma decisão.

— E não faça nenhuma gracinha. Não sou paciente como ele. — Ela ia fechar a porta, mas voltou para avisar: — Eu poderia te deixar descobrir sozinha, mas darei o desconto de alertar que as coisas cobertas estão ligadas à eletricidade. Lembre-se do primeiro conselho.

A noite caiu, todos os estabelecimentos encerraram o expediente. O único movimento era de estudantes e trabalhadores voltando para suas casas. A mulher de cabelo vermelho completou a vistoria com os protetores e fechou o mercado. Com as luzes desligadas, seguiu até a sala sem precisar de lanterna, completamente familiarizada com seu lugar seguro.

— Me dê sua bolsa. Cubra sua cabeça com isso.

A mulher lhe colocou no que parecia a traseira de uma van. Havia uma tábua de madeira sobre seu corpo, null entendeu depois que estava embaixo de um longo banco. Tateou ao redor e sentiu um tecido cobrindo o banco e o espaço à sua esquerda. Controlou a vontade de abrir espaço para sentir um pouco de vento, não queria deixar brecha para caso passassem por outro posto de inspeção. Se contentou com o tecido levantado acima do nariz, sentindo que se descobrisse os olhos por um segundo seria punida.

Após uma hora de viagem desconfortável, null sente o carro ativar os freios aos poucos. Engole em seco, sentindo a tontura bater tão forte quanto ao assistir o vídeo verdadeiro. A mulher ajuda null a levantar e pede que ela alongue o corpo, pois irão andar um pouco. Dois minutos se passam até que ela note a diferença de luz através do tecido.

— Espere até que venham te buscar. — Ela percebe que null está tentando reconhecer o lugar com as mãos, sentindo as paredes ao seu redor. Com um tom humorado, ela diz: — Eu não sairia do canto se fosse você. Tem espelhos e armadilhas por todo lado.

***

Para a infelicidade de null, a primeira pessoa com a qual ela faz contato visual após se adaptar à luz da sala é null. Só leva cinco segundos para ele descruzar os braços, atravessar a sala e segurar o pescoço dela até a outra parede. O rapaz dá um riso nasalado e inclina a cabeça para a esquerda.

— Não acha engraçado? Você na minha frente depois de tudo que aconteceu?

O esforço de null ao redor do punho dele aumenta quando a busca por ar se torna mais urgente. Os tapinhas desesperados não fazem o menor efeito.

null, é suficiente — null alerta. Ele está sentado na cadeira da ponta direita com as pernas sobre a mesa.

— Você já teve a experiência de ver seus amigos sendo cercados como formigas por um bando de robôs armados? Acho que não, já que foi você que ativou cada um deles. — null pronuncia as últimas palavras devagar, porém a solta de uma vez, fazendo null perder o equilíbrio e quase cair no chão. Ele ignora todos os olhares, não querendo confirmar se é alvo de repreensão.

— Não pense que realmente achei suficiente o que ele acabou de fazer — null começa. — Por sua causa, muitos dos nossos foram levados para lugares que não podemos invadir. Sem falar dos que morreram durante a fuga. Mas se você tá aqui, é porque null quis.

null dá um riso de escárnio.

— Não tem como saber se ele quis mesmo.

— Eu tenho uma explicação pra tudo isso. Acho que só vão acreditar quando eu disser o que ele me pediu pra contar somente a vocês. — null encara os cinco com muita coragem. — Ele mandou mencionar a página 101, linha 4.

Os cinco homens ficam inquietos de repente. Não tem como outra pessoa ter enviado esse código, muito menos forçar null a falar sobre ele. O primeiro significa simplesmente “Aceite essa pessoa, ela tem uma mensagem.” na lista de códigos da resistência — que novos recrutas não têm acesso, pois estão sob proteção dos veteranos. No entanto, a versão estendida desta lista se trata de códigos pessoais do grupo que se encontra nesta sala. Adaptaram e adicionaram para manter a confidencialidade após muitas provas de lealdade.

— Vocês acham melhor ela se explicar primeiro ou devemos tirar o identificador o quanto antes? — null pergunta.

— Tirar meu identificador? Eu não quero outra cicatriz!

— Bom, é isso ou te deixamos no meio da rodovia à espera da Grande Proteção quando eles sentirem sua falta e te rastrearem.

— Temos cirurgiões pra isso, não se preocupe — null tenta acalmá-la e gesticula para que ela sente. — Concordo que a melhor opção no momento é te deixar sem sinal até que tudo seja resolvido.

— Não é como se fôssemos te deixar sozinha dessa vez — null declara, o sorriso mínimo não chega aos seus olhos.

— Poderíamos usar ingredientes modificados, assim não tem como ela mentir — null sugere. — Tá com fome, null?

— Não acho necessário usar esse método já que tenho vídeos que provam meu argumento. Mas se está tão interessado em me servir, tô faminta, sim. — null sorri para null, que dá um passo na direção dela e é parado por null. Ela se vira para null e quase o pega rindo da situação. — Posso começar?

null conta sobre quando seu pai a encontrou em um dos resgates para logo perdê-la outra vez por causa da armadilha da Grande Proteção. Diante disso, os Isolamentos mudaram o procedimento de segurança. Quando identificaram a relação parental com Callan, trocaram o identificador por um modelo semelhante e mostraram o vídeo alterado para convencê-la. Enquanto mostra as duas versões, ela conta como entrou na sala das câmeras e como fugiu.

— Sinceramente, foi depois dessa descoberta que me dei conta de que a “estadia” no Isolamento seria só até o dia da transferência de null e null. — null dá um riso sem graça. — Me parabenizaram pela missão e disseram que eu poderia acompanhar o interrogatório de null, se isso me deixasse melhor. E não deixou! Foi por isso que eu pedi privacidade durante nossa conversa, ainda usei o bloqueador de som por garantia. — Ela massageia a testa e continua: — Os ferimentos dele estão sendo tratados corretamente. null está desacordado desde que chegou, mas acreditam na recuperação em até uma semana, no máximo. Presumo que serão transferidos para o Tratamento Intensivo, por isso precisam deles saudáveis.

null deu alguma informação perigosa? — null pergunta.

— Não, por isso ficou tão mal. Ele é bem resistente, não consegui assistir até o final.

Todos estão cooperando de diferentes maneiras com o estresse. Há um longo e intenso silêncio entre eles, que só trocam olhares sem sair do canto.

— Peguem uma rota diferente até os cirurgiões e peçam que sejam discretos. Não quero que os membros fiquem mais esgotados vendo-a aqui — null diz para null e null, que acompanham null para fora da sala depois de cobrir a cabeça dela com o mesmo tecido preto. — Chegaremos lá em breve.

Eles esperam um minuto até retornar o assunto.

— Não podemos correr o risco de perdê-la nessa cirurgia. Quais são as chances deles tentarem matá-la? — null inicia.

— Os cirurgiões estavam com null durante a fuga, existe a chance de haver rancor pelo ataque no geral, o que seria natural — null responde. — Vocês acham que aquela sala de observação é confiável? A ideia principal era só acompanhar o processo, mas precisamos conversar o quanto antes sobre o que acabamos de descobrir.

— É muita coisa pra decidirmos sozinhos. O que null pediu é simplesmente gigante pra ser passado despercebido pela Grande Proteção — null declara, nervoso.

— Vamos anotar os tópicos principais e esperar a cirurgia terminar. Levaremos null pra um quarto protegido e teremos nossa reunião lá. Mesmo que ela acorde e escute alguma coisa, o que é improvável, não vou dar chances de ela fazer algo que nos atrapalhe.

A decisão de null é aceita. Durante o tempo da cirurgia, eles cuidam das obrigações dentro da base e conversam com os membros como se nada tivesse acontecido. null e null acompanham null até o fim da remoção do identificador — a qual, felizmente, foi um sucesso — e contam aos cirurgiões sobre o quarto que escolheram. Os membros, que se acostumam aos poucos com a nova acomodação, pegam no sono após mais um dia de alerta máximo. Além dos líderes, os únicos acordados são os responsáveis pela segurança virtual, das entradas e de salas importantes, como o arsenal.

— Não temos muito tempo até que a falta de desempenho dela seja notada no sistema — null avisa, se jogando no sofá encostado na parede oposta à cama de null. — A menos que aquela conversa de ter passe livre até a transferência seja real.

São duas horas da manhã. Exceto null e null, os membros decidem no pedra-papel-tesoura quem faria a segurança de null até amanhecer. null é péssimo em pedra-papel-tesoura.

— Precisamos encontrar a localização exata de null e null antes que eles encontrem o identificador dela bem longe de onde deveria estar — null sugere. — Alguma novidade?

— Nosso satélite não consegue penetrar o concreto daquele lugar, certeza que é um bloqueador de sinal muito potente. Acho que podemos montar um plano de invasão se null nos apontar o lugar exato, já que os visitou. — null cruza os braços, observando a adormecida.

— Não tem como transportar tanta gente pro oeste sem chamar atenção, mesmo que agora só haja metade de nós — null diz, pensativo. — Se fizermos o que ele pediu, devemos considerar o fato de que estaremos deixando muitos para trás.

— Não é como se fôssemos conseguir atacar os Isolamentos sem ter ainda mais baixas. null estava com a linha de frente, ele não precisa ver a situação da base pra saber que estamos fragilizados — null argumenta, andando de um lado para o outro.

— Vamos entrar em contato com as líderes do oeste pra combinar algo que funcione. Sei que têm espaço por terem menos membros, mas não queremos chamar atenção pra um lugar tão pacífico — diz null. — Devemos redirecionar esse foco. Fazer algo que elimine vários protetores e atraia os que sobrarem.

— Podemos explodir a Casa Dourada.

Todos os olhares vão para null. O silêncio se mantém até que null o quebra:

— Você acha que daria certo?

— Se eu pudesse ter acesso ao sistema de um deles, poderia usá-lo para invadir os outros e criar um curto-circuito nos que fazem a segurança de lá. Não acho que mudaram tanto desde que saí, posso inventar alguma coisa.

null dá uma risada incrédula, seus olhos arregalados.

— Por que esperou tanto pra expor essa ideia genial?!

— Queria aperfeiçoar antes de criar esperança em vocês. Também estava esperando novos recrutas pra fortalecer a segurança virtual. — Ele dá de ombros. — Agora temos uma emergência. Pedirei ajuda das outras regiões, se necessário.

Com uma ideia concreta na manga, os líderes passam mais algumas horas dando outras sugestões para criar cortinas de fumaça tanto na cidade quanto no caminho até a próxima base. Logo o sono se torna forte o suficiente para encerrar a reunião. Seguindo a ideia de que precisam estar despertos para fazer um bom trabalho no resto da semana, eles deixam null sozinho para cumprir seu trabalho de acompanhante. Contudo, depois de verificar a segurança da sala, ele também não dura muito, se rendendo ao sono no sofá do quarto.

null acorda quatro horas depois com diversas vozes do lado de fora. null já está sentada na cama, tentando entender do que se trata o barulho.

— Acho que a fofoca correu rápido — diz ela.

Os membros se reuniram no corredor no lado de fora do quarto bem cedo, pois a primeira notícia do dia foi a volta de null para a nova acomodação. Os sub-líderes tentaram manter o respeito pelos superiores, questionando calmamente o porquê da decisão. Por outro lado, havia pessoas simplesmente indignadas com a possibilidade do retorno de uma traidora. Toda essa comoção chegou ao ponto das vozes se misturarem até ficarem incompreensíveis.

— Todos para o pátio, por favor. Temos um comunicado a fazer — null diz através do megafone. As pessoas, apesar de indignadas, concordam em se acalmar.

null sai da sala e é atualizado por null enquanto os dois se mantêm em frente à porta.

null, null e null sentam numa superfície de concreto bem parecida com um palco baixo, assim conseguem visualizar todos os que estão no chão. Os olhares de confusão e frustração poderiam fazer buracos na parede.

null foi enganada e coagida pela Grande Proteção a se infiltrar na resistência para nos expor. Editaram o vídeo do assassinato de Callan, fazendo parecer que null foi o responsável. — Conhecendo seus companheiros de base, null decide ir direto ao ponto. — Depois de conversar com null em sua cela, null procurou pelo registro daquele dia e viu que o assassino real é Amus, líder da Grande Proteção. Na mesma conversa, null autorizou que aceitássemos null de volta através de um código que boa parte de vocês conhece. Além deste, há outro que se refere a uma ordem para a segurança dos membros desta base. No entanto, só iniciaremos a reunião de planejamento quando todos passarem por uma análise definitiva de seus identificadores.

— Antes que questionem mais uma vez a presença da traidora, peço que lembrem que esses são um pedido e uma ordem de null, que tem sido um líder admirável e trabalhado duro nas missões. Segundo, confirmamos que null e a Grande Liderança jamais chegariam ao código desta segunda ordem — null afirma, mantendo contato visual com várias pessoas. — Ela está impotente, não há chances de uma segunda traição. Terceiro, é justamente por termos sobrevivido a uma traição nesse nível que queremos ter certeza de que não houve uma invasão despercebida entre nossos membros. Fazemos isso para a proteção de vocês, porque precisamos de vocês. Mais alguma objeção?

Os membros trocam olhares e, por fim, balançam a cabeça negativamente.

— Nós iremos supervisionar pessoalmente, o que significa duas salas diferentes — null explica. — Pedimos que se mantenham no pátio até que sejam chamados. O primeiro grupo é dos sub-líderes, sala 1. Começaremos por aqueles que vão nos ajudar nas análises dos membros comuns.

— Prometemos que não será um processo doloroso, então, por favor, conversem com suas crianças e fiquem calmos. Essa situação nos deixou muito frágeis, por isso estamos nos preparando para uma mudança grande. Considerem a história da nossa base e tudo que passamos para chegar até aqui, é fundamental que a confiança de vocês continue firme. Obrigado! — null conclui.

O procedimento leva boa parte do dia para ser concluído; não por ter muita gente, pois a contagem atual não vai muito além de cinquenta membros. Os líderes levam o tempo necessário para buscar aspectos parecidos com os que haviam no identificador de null. O vírus rastreador estava justamente na parte que eles não achavam necessário verificar antigamente. A Grande Liderança continua mostrando seu grande avanço no controle dos cidadãos. null recebeu orientações para liderar uma sala, mas decidiu deixar o trabalho para quem já tinha conhecimento prévio e preciso o suficiente para não deixar passar outro erro.

Os sentinelas do quarto de null continuam sendo null e null, porém o novo combinado é que o primeiro seja o único a manter contato com ela. Por esse motivo, na hora do jantar, é null que entra no quarto para levar a comida para a garota. null repete a mesma ação da hora do almoço: observar e jogar a comida para lá e para cá com o garfo. null suspira e massageia as têmporas, impaciente.

— Imita uma galinha.

— Você sabe que não é assim que funciona.

— E se eu te disser que nossa Grande Liderança salvou o país porque criou um sistema que permite que as pessoas escolham o melhor para si?

— Não foi isso que aconteceu.

— Se seu almoço tivesse sido modificado, não teria discordado de mim agora — diz ele. — Depois do que fez, não queremos te controlar, te queremos fora do caminho.

— Você acredita que eu me arrependo e sinto muito? — null pergunta antes que ele saia.

— É comum tomar péssimas decisões por influência, por emoção. Às vezes é isso que nos ajuda a crescer, a fazer diferente na próxima oportunidade. Só que eu não acho que vai ter essa chance aqui.

Ela mastiga devagar e caminha pensativa pelo quarto. Toda culpa que já lhe pesava nos ombros se une ao trabalho do cérebro para planejar algo com que possa se redimir. Menos de uma hora depois, null escolhe uma posição confortável no travesseiro, tentando não afetar o curativo em sua nuca. O que ela não sabe é que o cansaço repentino não se trata da velocidade de seus pensamentos, muito menos pelo remédio para dor que recebeu depois de comer. null não faz ideia que o “te queremos fora do caminho” de null veio com uma boa dose de sonífero adicionada ao molho que ela tanto gostou de misturar com o arroz.

***

Um pouco depois do jantar, todos são convocados novamente ao pátio para uma reunião.

— Temos satisfação em comunicar que todos passaram na análise, este é um ambiente seguro — null anuncia.

Aplausos enchem o espaço. Um certo alívio preenche os corações, mas a expectativa e a curiosidade são maiores, então muitos pedem que ele continue com o assunto principal.

— O primeiro comunicado é que null e null estão vivos. null foi interrogado e ficou muito ferido, porém null acredita que o plano não é matá-los, e sim transferi-los para o Tratamento Intensivo. Por essa razão, null também está no Isolamento Primário recebendo cuidados em um quarto especial enquanto está desacordado. null disse que calcularam no máximo uma semana para que ele se recupere.

Alguém levanta a mão.

— Sinto muito interromper, mas você pretende responder o que ela está fazendo aqui? São muitas informações dadas de graça.

— Os protetores conseguiram impedir o resgate de vários funcionários durante o ataque surpresa há três meses, null era refém na época. Callan ficou para conseguir tempo para os membros, assim foi capturado. — null explica. — null teve seu identificador alterado com um vírus rastreador muito sutil, além de ter sido influenciada a acreditar que null havia matado Callan.

— Mas desde que ela se juntou a nós não ingeriu comida modificada.

— Sim, mas ela tinha uma prova que não dava espaço para a confusão racional. Mesmo sem estar sob efeito da substância indutiva, ela internalizou aquilo com tanta força… que seu cérebro tomou como verdade. Temos essa prova conosco, peço que as crianças e os sensíveis a imagens fortes mantenham os olhos fechados.

No projetor, null mostra as duas versões do vídeo do assassinato de Callan.

— A ordem de null é migrar para o oeste, onde as coisas estão mais calmas e longe dos holofotes. As líderes da base de lá já concordaram em nos receber e ajudar na segurança no caminho. Elas já provaram lealdade quando fizeram parte da nossa base há cinco anos, alguns de vocês já conheceram pelo menos três delas.

— Como pretendem transportar tanta gente sem chamar atenção? — uma mulher sentada na frente pergunta.

— É aí que chegamos no risco. Alguns de nós terão de se expor — null responde.

Murmúrios de incerteza começam a surgir.

— Só usarão armas e irão para a linha de frente aqueles que têm experiência suficiente para isso. O treinamento de vocês é apenas para sua própria segurança, não iremos colocá-los no meio do fogo, essa é a promessa geral — ele continua. — Precisamos de pessoas dispostas a visitar pontos estratégicos para analisar horários, rotinas e comportamentos dos protetores. Os membros que já alteraram a tatuagem para o eclipse não poderão visitar lugares públicos por causa da fiscalização. Esse trabalho fica para aqueles que ainda conseguem burlar o sistema.

— Vocês sairão na madrugada, usaremos um ônibus para transportar boa parte de uma vez. Alguns atiradores farão a segurança, mas é muito necessário que todos colaborem e se mantenham alertas durante o trajeto. Isso dobra para os membros que tiverem crianças pequenas. — null sorri para um menininho sentado no colo da mãe em sua frente. — Criaremos uma cortina de fumaça para liberar a nossa rota e resgatar null e Hyunsik do Isolamento Primário.

Um homem lá atrás levanta a mão com uma expressão confusa no rosto.

— Calma, isso significa que não vamos levar aqueles que foram capturados na invasão da semana passada? Vamos abandoná-los?

Os líderes trocam olhares e null balança a cabeça.

— Amigo, sendo sincero, vamos... por agora. O que eu preciso que vocês entendam é que null deu essa ordem por ser o mais seguro para toda a base. Não conseguimos acessar a localização deles, tamanha é a segurança do Isolamento. Você realmente acha que vamos conseguir invadir o Tratamento Intensivo estando tão fragilizados? Olhe ao redor. Eu sei que é doloroso, mas seria horrível ter que perder mais uma metade... ou todos.

O homem suspira e acena positivamente, sendo consolado pelas pessoas ao redor.

— No oeste poderemos nos fortalecer e construir um plano melhor, aí sim voltamos para buscá-los. Nosso maior foco agora é quem está aqui e aqueles que ainda têm chance de serem resgatados. Podemos continuar?

***

Três dias depois, na madrugada do quarto dia, a base está cheia de bolsas acumuladas perto das entradas e saídas.

Os membros do eclipse conseguiram cumprir a missão nos lugares sem vigilância frequente. Eles anotaram os horários e as rotas da ronda, as trocas de posto e como reagem a comportamentos incomuns e alarmes falsos. Os membros do sol completo visitaram o Museu da Grande Liderança, onde as conquistas de Lume são registradas a cada ano. Descobriram que os protetores são ainda mais robóticos em lugares com maior segurança, como null desconfiava. As trocas de posto eram menos frequentes e os guardas não se movimentavam muito. Por outro lado, havia um deles em cada esquina.

Na base, null ajudou os líderes a desenhar o mapa do Isolamento Primário a partir do que ela lembrava. Usaram até um polígrafo para verificar se ela estava mentindo. A máquina ficou uma bagunça na primeira tentativa, então quando todos saíram da sala e deixaram apenas null cuidando dela, deu tudo certo. Era apenas nervosismo, null nunca foi uma boa mentirosa.

— É engraçado você dizer isso quando enganou a todos nós.

— Sofri uma influência muito forte pra fugir da realidade, acho que a raiva me transformou em outra pessoa. Sem falar que vocês nunca comentaram sobre a morte do meu pai, então só precisei omitir várias coisas. — Deu de ombros.

— É, sei. Pelo jeito te deixamos confortável demais — disse ele, arrumando as coisas para se retirar.

Um dos pontos estratégicos analisados pelos membros do eclipse foi a rotina do posto de vigilância de uma das rotas para o oeste. Os guardas — que trabalham em dupla — são os mesmos do Isolamento Primário, sendo um humano, responsável pelo registro das passagens na cabine de baixo à direita, e um robô pronto para situações extremas na cabine de cima à esquerda. Apesar da periculosidade do segundo, nem mesmo ele resistiu a um tiro de choque à distância, caindo como um saco vazio. A única câmera de segurança não capturou o ataque, pois estava direcionada para a estrada de saída da cidade, com o propósito de registrar as placas.

null e null esperaram bastante pelo socorro aos guardas, até entenderem que não havia muito interesse naquela rota, muito menos havia denúncia de defeito no funcionamento deles. Os dois simplesmente acordaram algumas horas depois e esperaram pela troca de posto, seguindo para o Isolamento ao meio-dia. A prática se repetiu no dia seguinte, confirmando através de uma câmera que a desativação temporária dos guardas não acionava um alerta no controle da Grande Liderança. Com esta oportunidade, null e null — devidamente camuflados e cautelosos — revistaram as cabines e verificaram o movimento naquela estrada. Nem mesmo drones passavam por ali.

— Só sendo um robô pra aguentar o calor dessa merda. — null sacode as mãos cobertas com luvas do uniforme azul marinho. Ele está na cabine mais alta, onde há a câmera apontada para baixo.

— Sinceramente, no início eu achei a ideia incrível, agora tô começando a achar a pior que a gente já teve. — null ri. Ele está na cabine oposta e inferior à de null. — Mas continua sendo genial, você é genial, irmão. A gente vai conseguir.

— Por que não coloquei você de isca? Você é o atirador!

— Sou o cara que vai chegar quando você precisar, tirando todo mundo do caminho!

Um ônibus se aproxima. A luz do farol pisca duas vezes.

— Tá bom, herói, chegou a hora. Quero ver esse ego distribuído em todas as balas que vai usar pra me proteger.

— Nenhum atirador de respeito desperdiça balas assim.

— Você entendeu o que eu disse!

null sai da cabine e sinaliza para que o ônibus pare. Após pedir os documentos e o termo de permissão para o motorista, ele dá uma volta no veículo, usando uma lanterna para verificar o que há dentro. null carimba o termo com uma marca de sol completo e faz um sinal positivo para null, que libera a passagem da estrada. null consegue ouvir bem baixinho o “Boa sorte, irmão” de null antes de seguir em frente. As pessoas que estavam deitadas e agachadas no chão do ônibus só levantam quando há certeza de que estão longe das câmeras. Quarenta pessoas estão aliviadas com a notícia de que o próximo posto está sob controle da base do oeste, mas o sentimento de alerta nunca vai embora. Seis líderes e alguns membros ainda estão em risco.

A troca de posto aconteceu no horário esperado. Poucas nuvens no céu não conseguiram esconder o sol certeiro do meio-dia. A dupla não perdeu tempo em marcar a saída na máquina, entrar no carro e partir para o Isolamento Primário. Apesar do adesivo bloqueador de sinal no pescoço ter garantia de eficiência, os dois só conseguiram respirar corretamente quando o segundo identificador grudado dentro da roupa foi aprovado na entrada. Um barulhinho de confirmação nunca soou tão satisfatório. O primeiro destino de todos os guardas foi um tipo de refeitório para recuperar as energias do primeiro turno de doze horas. Deduziram que não faria o mesmo efeito pela imunidade de seus organismos, ainda assim aproveitaram a comida da mesma forma. Talvez até mais.

Nas primeiras horas, null e null demoraram um pouco a pegar o ritmo. A cada troca de posto, precisavam mudar para um andar ou um cômodo diferente. Tal rotina permitiu que os dois conhecessem os corredores, as possíveis saídas e a quantidade de protetores no prédio. null deduziu que a troca frequente de guardas pelos andares dificultava a análise de comportamentos pelos prisioneiros. Ele sentiu arrepios intensos quando estava a caminho de seu próximo andar e identificou os quartos da enfermaria. Deu uma olhada ao redor para confirmar se estava sozinho, diminuiu a velocidade dos passos e leu os nomes dos prisioneiros em cada porta. Quando aproximou seu cartão de acesso na fechadura do quarto de null, a porta ao lado se abriu.

— Andar 4? — perguntou o guarda, sua voz não era robótica. null apenas confirmou com a cabeça e entrou onde o outro havia saído, sem olhar para a placa de identificação.

Aproveitando o espaço fechado, null decidiu que faria o mesmo que o prisioneiro no outro lado do vidro: dormir. null conseguiu dar um cochilo na cabine mais alta durante a madrugada, mas ele não conseguiu pregar os olhos, por mais cansado que seu corpo estivesse.

Trinta minutos depois, ele escuta a porta sendo aberta pelo lado de fora. A máscara e o capacete cobrem seu rosto sonolento, que passa despercebido pela enfermeira.

— Vim limpar os ferimentos e trocar os curativos dele. — Aponta para o paciente através do vidro. — Você reparou algum sinal muito grave de dor vindo de lá? — Silêncio. A mulher dá uma risada sem graça. — Talvez não seja importante para você, mas na próxima vez preciso dessas informações.

Ela cruza a porta e tranca novamente.

null engole a sensação de culpa pelo pequeno vacilo que cometeu. A ideia de não se importar com o prisioneiro ao lado fica entalado na garganta quando ele reconhece a cor do cabelo de null. Há hematomas expostos pelas costelas e costas, leves inchamentos pelo rosto e um ferimento coberto na lateral esquerda da barriga. Os gemidos de dor durante a limpeza levam toda agonia para o outro, como se sentissem a mesma coisa. null levanta um pouco o capacete — de uma forma que a câmera no alto não pegue seu rosto — e se vira, ficando de frente para o vidro. O movimento chama a atenção de null, que reconhece o amigo em segundos.

— Você quer outro remédio para dor ou mais um para dormir?

— Para dor é suficiente. Dormir nessa cama é meio desconfortável — ele brinca.

— É uma prisão, afinal.

A enfermeira se retira. null ajusta o capacete e volta para a posição anterior. Ele ativa o bloqueador de som antes de começar.

— Fique onde está e não faça movimentos bruscos, pode fazer sombra na câmera à minha frente.

— Como se eu conseguisse me mexer livremente — responde, procurando uma posição confortável para se encostar. — Não mova muito os lábios ao falar. O que está fazendo aqui? Sei que não veio sozinho.

null também está infiltrado, mas não conversamos desde a entrada.

— Eu só dei duas ordens e nenhuma delas incluía vir nos buscar.

— Como não viríamos? — Sungjae faz um enorme esforço para não se virar. — Olha o seu estado. Esses ferimentos são recentes.

— Acharam que eu estava recuperado o suficiente para mais um interrogatório ontem. Foi muito difícil, a verdade é que eu pensei que null não tinha acreditado em mim. Pensei que vocês nunca viriam, mas jamais deixaria escapar alguma informação. Acho que na próxima falarei sobre uma das bases pra me darem um descanso. Você sabe se estão vazias?

— Só sobrou metade de nós, irmão. E não haverá uma próxima vez. Concluímos a página 101, linha 4. null foi com eles, null e null estarão nos esperando no meio do caminho.

— Só vocês dois vão dar conta disso aqui? Com dois amigos feridos?

— Esse seu remédio pra dor é forte o suficiente pra te ajudar a vestir essa roupa de merda em um minuto daqui a quatro horas?

— Posso me virar, o efeito é instantâneo. A enfermeira vem a cada uma hora e meia verificar os curativos.

— Então tome quando as luzes se apagarem. Como a gente não sabe que tipo de guarda vai estar aqui até lá, continue com a atuação de vegetal. Eu venho te buscar.

— Espero que null esteja se fingindo de vegetal. Você viu se ele ainda está no quarto ao lado?

— Sim, só não posso entrar lá sem permissão. — null suspira quando ouve dois toques na porta seguido de “Andar 2” com uma voz robótica. — Descanse e se alimente o melhor que puder. Vamos cuidar do resto.

null encontra null uma hora depois, quando estão fazendo ronda comum no térreo. Poucas vezes conseguiram ativar o comunicador em seus ouvidos, pois sempre havia um guarda por perto. Além deles, há mais dois perto da entrada a uma distância segura. null dá um jeito de ativar seu microfone discretamente.

— Ponto cego — ordena, quase em um sussurro. null imediatamente procura um lugar seguro longe das portas.

— Líder 1 está ciente do processo. Foi interrogado ontem, tem ferimentos expostos que podem prejudicar a agilidade, mas uma enfermeira tem trocado os curativos a cada uma hora e meia.

— Encontrei o Líder 2 há cinco horas. Ele finge estar em coma pra adiar a transferência, parece que ele é a única razão pela qual os dois ainda estão aqui. Os ferimentos do dia do ataque já estão curados, ele tem recebido vitaminas por soro. Não quis me dizer como conseguiu roubar o sonífero de um enfermeiro nos primeiros dias. — null revira os olhos.

— Dessa forma não tem como denunciar através da atividade cerebral. Ele é impressionante. — null não consegue prender o riso.

— Não sei se você notou que voltamos à ordem inicial dos postos. Caso alguma coisa mude, precisamos dar um jeito de subir o mais rápido possível.

— Acredito que estarei no segundo fazendo ronda comum. Consigo correr até o quarto pela escada de emergência.

— Também vou fazer ronda comum no terceiro. Espero que o disfarce funcione. Prefiro qualquer coisa a morrer neste lugar.

***

null e null estão se fingindo de mortos em suas devidas camas. As luzes se apagam e o guarda no outro lado do vidro cai para o lado, sem reação. Com o gerador reserva danificado, a energia precisa ser manualmente reativada. O único problema é que apenas os protetores das cabines no alto não foram desativados, o que dá no máximo sete minutos para que eles corram até o lugar certo. As portas das celas funcionam com um sistema separado do geral, pensado para evitar a fuga dos prisioneiros. O primeiro levanta o mais rápido que consegue — xingando por causa da dor — e tira a roupa de pijama que está usando. O segundo, na sala ao lado, faz uma sessão de alongamento só de cueca, rindo da lembrança de null reclamando do calor que faz o uniforme.

Assim que as portas se abrem, null e null levam os guardas para dentro do quarto e trocam os uniformes pelos pijamas dos pacientes. A eficiência dos quatro leva menos de cinco minutos. É tempo suficiente para saírem das celas e descerem até o térreo, onde fica o corredor da sala de câmeras.

— Quando a energia voltar, levantem devagar e esperem o anúncio pra correr até a entrada. Alguns guardas virão desse lado, assim vocês serão vistos e até ajudados. Tentem ficar um pouco pra trás, vamos no mesmo carro.

null entra na sala e carrega o guarda até o chão no canto direito, aplicando uma dose de sonífero para mantê-lo apagado. Ele praticamente pula na cadeira que o outro estava, segundos depois, as luzes são ligadas e as câmeras voltam a funcionar lentamente. Ele dá seu melhor na atuação de acordar, pegar o microfone e apertar o botão de transmissão.

— Atenção! Houve um atentado no terraço da Casa Dourada e no Museu da Grande Liderança. Todos os protetores estão convocados imediatamente. Se organizem na entrada!

A mensagem é gravada, colocada em repetição e transmitida para todo o prédio. Os guardas, que se recuperam aos poucos do choque médio, obedecem a ordem sem hesitar. Seus amigos ainda estão do lado de fora esperando uma formação de protetores passar com pressa. Os quatro se juntam ao fim da formação, tentando copiar o modo de andar e segurar as armas.

A entrada do prédio e os portões do muro já estão abertos, os protetores correm em quartetos para os carros que ainda estão vazios no estacionamento. null sente os lábios dormentes de tanto apertá-los para segurar os sons da dor que supera o remédio. Eles correm até o último carro da fileira, assim null finalmente pode dar a última ordem:

— Não falem nada até chegarmos lá. Pode haver alguma escuta bem escondida no carro.

Todos balançam a cabeça e entram, esperando a ordem da fila para sair da vaga.

Onze e quinze da noite. Há pouquíssimo movimento na rua. Os carros da frente aproveitam para aumentar a velocidade, ignorando todos os semáforos. Aqueles que seguem atrás têm certa dificuldade para fazer curvas perfeitas. Com a intenção de cercar e evitar um novo ataque em massa, na saída do Isolamento Primário, cada frota de quatro carros recebeu ordens para seguir por um caminho diferente. null tira um pequeno tablet do bolso do uniforme e abre um GPS.

Numa rua sem câmeras e mal iluminada — trabalho feito manualmente —, a tela de um tablet similar ao de null acende nas mãos de null. Na avenida atrás deles, quatro carros pretos passam como vultos. Previamente clonado, o dispositivo começa a desenhar uma rota azul sozinho, uma bolinha amarela segue a linha em tempo real. Atrás do volante, null dá um suspiro frustrado. O lugar combinado para o encontro está a três ruas antes de onde os carros irão passar. null aproxima a tela para pensar numa nova estratégia. De repente, null liga a van, assustando o outro.

— Vamos pegá-los no meio do caminho. Diga pra null dar um novo choque quando ver o ponto cego.

— Mas e as câmeras? — pergunta null, abrindo o aplicativo de texto mesmo assim.

— Tem uma arma de choque nessa bolsa. Eu cuido disso.

E continua a dirigir como se estivesse a passeio. Chegando em uma rua parecida com a que estavam, null entra pela contramão, fugindo do sentido da câmera de segurança na outra ponta. Ele estaciona a van no beco e verifica suas roupas, boné e máscara antes de sair com os equipamentos.

— Saíram da principal, estarão aqui em um minuto — null avisa.

null faz o possível para mirar na câmera e na lâmpada do poste sem colocar o corpo para fora do beco. Ele se abaixa, apoia o cotovelo no joelho e o punho esquerdo na mão direita. O som dos motores aumenta gradativamente quando ele acerta os dois tiros, escurecendo metade da rua e o beco completamente. O primeiro carro da fileira entra pelo lado iluminado à esquerda, o segundo segue numa distância muito curta. null perde o equilíbrio na volta à van, mas o movimento passa despercebido.

null espera para ativar o choque até que os quatro carros entrem na rua e dois deles façam a curva para sair dela. Como últimos da fileira, null, null e null pulam do carro desacelerado na parte escura. Os dois primeiros carros perdem o controle e começam a desenhar na avenida, o terceiro passa direto e bate na grade do estabelecimento em frente. null, o único a ficar, acelera e bate contra a parede à direita, como se tivesse errado a curva na saída. Um pouco desorientado, leva segundos a mais para sair rastejando pela porta.

— Deveria ter calculado melhor essa batida. Espero que nenhuma câmera tenha me pegado.

— Com esse uniforme ninguém diria que não é apenas um protetor todo ferrado — afirma null, sorrindo enquanto o ajuda a caminhar.

A van sai por onde os carros entraram, seguindo a rota comum com a aceleração normal. null verifica os machucados de null, que pioraram devido às ações recentes. O segundo pega o potinho com um comprimido — que enfiou no bolso do uniforme antes de fugir —, porém null avisa que há morfina na caixa de primeiros socorros perto do banco na lateral. null pega o que é necessário e começa a preparar uma dose. Ele respira fundo para tentar acalmar o tremor nas mãos.

— É bom usar essa agulha enquanto ainda estamos indo devagar, irmão. null vai ter que meter o pé daqui a pouco se quisermos chegar na hora da troca de posto — null avisa, tocando no ombro dele.

— Como foi lá? Quanto tempo temos até que descubram? — null pergunta, fechando a garrafa de água e amassando o papel alumínio que envolvia o sanduíche. Aos poucos se sente melhor.

— O pessoal é muito corajoso. Pensei que o mais difícil fosse ser onde havia guardas parados, mas as meninas têm uma discrição impressionante!

— De quem foi a ideia de adaptar a cor dos dispositivos de acordo com as paredes? — null pergunta.

— Minha — null responde orgulhoso, fazendo um high-five com o amigo. — Ainda no papo de coragem, admiro muito o fato de que a equipe permaneceu unida até o rapaz jogar a bomba de som no lixo da lanchonete. Eles descobriram aquele ponto cego nas bancadas do lado de fora, então não teve erros.

A verdade é que todos gostariam de ter visto a forma como os protetores foram bloqueados pela barreira de choque invisível criada nos corredores. O barulho da bomba foi tão súbito que não tiveram tempo de prestar atenção nos dispositivos camuflados pelas paredes do caminho até a lanchonete. O choque mais forte desligou completamente cada um deles.

— Os que sobraram estarão nos esperando na estrada? — null pergunta.

— Estão lá há uma hora mais ou menos. Fizemos um esconderijo perto da curva já que é um ônibus menor. Todas as crianças e pessoas frágeis foram primeiro. Vai dar certo.

— Posso acelerar? Chegamos lá em dez minutos se eu começar agora.

— E null? O que fizeram com ela? — null pergunta baixinho.

Todos trocam olhares com sentimentos diferentes. null é o mais perdido entre eles. null faz um gesto de “depois te conto”.

— Ela foi primeiro, está sem o identificador. null disse que cuidaria dela.

— Obrigado, irmão.

null aumenta a velocidade quando chega numa área com fiscalização quase nula, ainda assim evitando movimentos bruscos. Não demora muito até que null pegue no sono enquanto recebe o medicamento na veia. Eles começam a atualizar null de tudo que aconteceu desde o ataque. Ele escuta atentamente a cada ponto de vista, elogiando o pressentimento de null sobre a garota. No final, como um bom líder, ele fica responsável por convencer null a tomar a única medida possível sobre null. Finalmente, null finalmente conta sua perspectiva do ocorrido.

— Na floresta, os protetores chegaram por todos os lados tão de repente que eu não soube onde atirar. Quando vi já tinha levado um choque daqueles na costela e na coxa, acabei perdendo o equilíbrio e batendo muito forte com a cabeça. Acordei uns três dias depois, estavam saindo do meu quarto falando sobre não ter condições de transferência enquanto eu não acordasse. Eu tinha esperanças de que vocês fariam alguma coisa, me senti mal de saber que null estava sofrendo no meu lugar, mas achei melhor me fingir de morto pra ganhar tempo e curar os machucados que vieram durante o caos.

— Não que eu desejasse o mal, só que fiquei chocado quando descobri que estavam vivos. Digo, por que não se livrar da gente logo? — null questiona.

— Certeza que querem nos transformar em protetores — null dispara, causando surpresa e confusão. — Pra mim faz sentido que, se o procedimento para nos tornar servos comuns não funciona, seremos punidos sem ter como rebater. Acho que esse é o maior medo de null, por isso ele decidiu arriscar sua confiança em null pela última vez.

— Pensei que sabíamos tudo sobre ele — null murmura.

— Foi apenas uma omissão. Todos já viram aquela cicatriz no braço que ele ganhou depois de uma briga sem armas com um protetor?

— Sim, até hoje não entendo o que ele estava tentando fazer — null confessa.

— Era o irmão dele. Há anos atrás, quando Callan resgatou null, o irmão dele foi levado para o Tratamento Intensivo por punição. Não sei se ainda era humano ou robô durante a briga, ele nunca quis me dizer.

A van é estacionada entre algumas árvores. null e null colocam seus capacetes, ajustam as máscaras e pegam as armas. null abre as portas e ajuda null a carregar null, que continua desacordado. null espera que todos se reúnam para seguir a trilha até onde esconderam o ônibus. Ele usa uma lanterna para sinalizar, piscando três vezes. No entanto, já na primeira vez que a luz ilumina o esconderijo, é possível ver pelo menos quatro armas apontadas em sua direção.

— Bom saber que estão bem treinados — diz ele, sorrindo.

— Tanto silêncio ativou nossa audição ao máximo — respondeu uma atiradora, indo apertar a mão do líder.

Duas pessoas ajudam a levar null até o ônibus, três voltam com null até a van, carregando sacolas com garrafas de spray e adesivos.

— Algum movimento na estrada na última hora? — null pergunta.

— Só um carro passou assim que chegamos.

— Alguma dispersão no grupo?

— Não, estão todos aqui, mas vou verificar outra vez.

— Certo. Como null conhece melhor aquela área, ele fará o choque, null irá dirigir. É essencial que vocês fiquem deitados e imóveis no chão do ônibus até a segunda ordem — null repete as instruções. — Não podemos arriscar que qualquer movimento apareça na câmera, ainda mais sendo um veículo menor. Por garantia, vejam se estão deixando algum rastro por aqui, terão de destruir tudo antes de sair.

null avisa que faltam cinco minutos para a troca de posto. Considerando que a distância andando até as cabines leva um pouco menos que isso, eles podem ir com calma. null e null se aproximam para se despedir por mero hábito, pois agora existe a esperança e a segurança de que falta pouco. Logo irão se ver novamente.

A dupla segue caminho em cada lado da pista. Assim que chegam perto das cabines, os guardas assumem a postura reta.

— Isolamento. Andar 3.

— Isolamento. Andar 2.

Sem sequer questionar a estranheza da chegada a pé, apenas passam o cartão na máquina das cabines e seguem para o carro que está estacionado na beira da estrada e vão embora. Assim que saem da visão da câmera, percebem que mais a frente há um dilacerador de pneus. Os dois protetores descem, um pronto para dar cobertura enquanto o outro vai tirar a corrente do caminho.

Ironicamente, o primeiro a levar o choque é o que está com a arma apontada. O segundo se distrai muito fácil com a corrente e não reage rápido suficiente para saber de onde veio o tiro. Na verdade, sua postura se torna perfeita na mira de null, que o atinge diretamente na nuca. Ele e null saem correndo pela direita até o carro. Com os protetores devidamente apagados no banco de trás, eles recolhem a corrente e colocam na bolsa. null manobra de ré pelo gramado até o lugar onde estava antes, fora do quadro da câmera. O ônibus se aproxima na curva da estrada e pisca o farol duas vezes. null desce as escadas para ajudar a subir o protetor desacordado.

null faz o mesmo procedimento de fiscalização que o ônibus de null. A única diferença é que, ao rodear o veículo, ele ajuda null a levar o protetor até perto da cabine. null carimba o termo e libera a cancela. O motorista avança alguns centímetros e finge ter problemas com a ignição, cobrindo a pequena parte da cabine inferior que ainda aparecia na câmera. O segundo protetor é sentado na cadeira na melhor postura possível, assim os três finalmente correm para a van — agora coberta por um adesivo preto — estacionada no lado direito do ônibus. null é o único que permanece na cabine superior para descer a cancela. Enquanto corre, ele não consegue controlar o riso de alívio misturado a frustração por ser mais uma vez o último a ficar.

— Alguma novidade no rádio? — ele pergunta assim que entra nos fundos da van.

— Estão tentando descobrir o que aconteceu. Ninguém mencionou o ataque dentro do Isolamento ainda. Acho que conseguimos apagar todos que estavam dentro, então os de fora não vão descobrir até analisarem com muito cuidado — null responde, sorrindo. — Sem mencionar que os quartos estão ocupados com novos pacientes, não vão notar tão cedo.

— Acho que nos superamos na discrição. Eles ainda estão lá nos arredores do Museu fazendo ronda. Seria o momento perfeito para os cidadãos aproveitarem a quietude dos bairros — diz null.

— Cuidaremos disso depois. Foi até melhor cancelar as explosões dessa vez, vai ser engraçado pegá-los de surpresa depois da calmaria. — null sorri.

— Ah, mesmo atualizando null a cada meia hora ele não para de perguntar sobre a situação. Tô quase mandando uma foto nossa — diz null no banco da frente, mostrando o aplicativo de mensagens aberto.

— Ele ainda ficaria nervoso por não ver null e null nela — null comenta.

Todo mundo ri sabendo que essa reação é totalmente possível.

— Apesar da dor, espero que esse tempo desacordados ajude os caras a descansar. É totalmente absurdo a forma como os fazem trabalhar incansavelmente — Sungjae bufa. — Vocês acham que vamos demorar muito pra voltar?

— Acho que o foco deve ser no tempo necessário pra nos prepararmos corretamente. Nós invadimos a prisão e roubamos quatro identificadores deles. Imagino quais inovações vêm por aí. Imagino se o medo sobre nós aumentou — responde null, tentando ficar confortável no chão duro da van.

— A prioridade principal deve ser proteger null e null, que agora são fugitivos famosos — null pensa alto, os outros concordam em silêncio. — Cirurgia plástica seria uma boa?

— Passei quase uma semana descansando, quer que eu te coloque pra dormir pelo resto da viagem? — null ameaça. null faz várias reverências, exagerando no pedido de desculpas.

Depois de muita conversa, a maioria revezou os cochilos para não deixar o motorista sozinho no tédio, mesmo que este tenha dito que não era um problema. Levaram duas horas para chegar ao segundo posto, o qual estava assumido por seguranças da resistência. Era mais um ponto improvisado para evitar desencontros. null e null verificaram e tiveram seus identificadores verificados para concluir a passagem.

— Certeza que ninguém seguiu vocês? — o homem questiona.

— Nenhum movimento estranho até aqui, além de que nada foi mencionado no rádio deles — null confirma.

— Bem-vindos ao Oeste. Estamos animados para saber como funciona essa criatividade de vocês para causar problemas. — A mulher inicia os apertos de mãos com um sorriso amigável.

null troca de lugar com os outros quatro e acompanha o motorista da van. Mesmo cansado de dirigir, ele sabe que os amigos estavam muito desconfortáveis na van por tanto tempo. null assume o volante do ônibus, já que só é preciso seguir o carro da frente até o destino final. null está acordado lamentando que não pôde cumprimentar os guardas na fronteira.

— Você pode levar todo crédito pela missão quando formos recebidos pelas líderes — null sugere. — Mesmo que na prática você tenha dormido na maior parte do tempo.

— Podem rir, não quero pesar a consciência de vocês com detalhes das minhas torturas.

Os membros ficam quietos de repente. null tenta rir na medida do possível.

— Tô muito feliz em saber que todos colaboraram. Vocês fizeram um ótimo trabalho.

O cenário na janela muda com o passar do tempo. Uma hora depois, as árvores dão lugar a prédios de diferentes tamanhos. Logo entram numa área residencial em que, aí sim, as cores voltam a se assemelhar com as da capital de Lume. O ônibus vira à direita e lá na frente uma igreja muito grande toma conta da vista. Os membros encaram a estrutura relembrando com muita vivacidade da época de recrutamento e como tudo foi abaixo com a traição de null. Ao virar à esquerda, todos estranham o lugar escolhido para estacionar.

— Não é um lugar muito exposto para receber tanta gente? — null pergunta ao descer.

— Somos excelência na criação de atividades de lazer e recepção de novos moradores. Esse bairro não tem a fiscalização com a qual estão acostumados. Além disso, quem suspeitaria de uma igreja?

Os membros se reúnem e entram aos poucos, observando como a elegância se torna ainda maior na parte de dentro. Na área do púlpito há um grande carpete de tecido grosso sobre o chão, duas pessoas enrolam até que a porta do alçapão apareça.

— Esta é uma das entradas. Elara vai subir em breve caso queiram conhecer o lugar primeiro.

— É uma boa ideia, mas acho que gostaria de me instalar e descansar de verdade antes disso. E vocês? — null pergunta aos outros.

— Adoraria fazer a turnê agora, só não acho que vou muito longe sem uma recuperação real — responde null. Os curativos foram refeitos, mas a falta de estrutura continuou sendo um obstáculo para ele.

— Ótimo, vamos providenciar isso.

null, null e null descem primeiro para dar assistência a null na escada reta. null vai conversando com um guarda no fim da fila. Os corredores com iluminação e paredes verdes no subterrâneo formam um labirinto de portas e cruzamentos com caminhos falsos até a entrada real da base. Os membros conversam uns com os outros sobre não serem idiotas o suficiente para tentar se aventurar por ali — por enquanto. Ao destrancar uma porta marrom como todas as outras, se deparam com uma sala vazia — que claramente não suportaria vinte pessoas — contendo mais três portas.

— Precisam que eu dê algum conselho óbvio? — A mulher pergunta. Um adolescente levanta a mão.

— Qual o nível de consequência de uma possível curiosidade?

— Garanto que não vão querer descobrir sozinhos. — E abre a porta camuflada de verde no lado direito da porta do meio, arrancando sons de surpresa e animação.

Ela dá passagem para null e null irem primeiro pelo pequeno corredor que dá para um espaço muito mais largo. As paredes agora têm um tom azul bebê muito mais calmo e amigável do que o verde sujo do labirinto. As janelas das salas perto da entrada são de vidro fumê para preservar a privacidade. No meio, existe um corredor na esquerda e um na direita, que levam aos depósitos de comida, armas e outras necessidades. Coladas à parede, duas escadas de nível baixo levam à estrutura de um camarote que contorna todo o lugar, onde ficam os quartos. No térreo, colchões, mesas e cadeiras são o bastante para oferecer conforto aos novos membros. null sente seu coração acelerar de tanto alívio por ter dado a ordem certa.

— Tô muito mal-acostumado com a presença de vocês o tempo todo. Nunca mais façam isso! — null declara ao se aproximar com Elara, uma das cinco líderes da resistência do oeste. Ele abraça os amigos como se não os visse há décadas.

— O lugar tá aprovado ou devemos sair correndo agora mesmo? — null pergunta para null enquanto aperta a mão de Elara.

— Ele disse que vai cuidar pessoalmente para que vocês não pisem fora desta base — Elara conta, apontando para null e null. Ambos dão risada.

— Vai ser bom ver ele tentar — null provoca. — Obrigado pelo abrigo e por toda assistência.

No fundo, as vozes se misturam pela euforia do reencontro. São abraços que não acabam e comentários sobre as experiências recentes. É uma cena de aconchego para os corações.

— Mesmo após todos os cuidados e toda interação com nossos membros, seus companheiros nunca deixaram de mencionar o ato de vocês. Estavam realmente preocupados.

— Acho que dá pra fazer um discurso oficial amanhã depois que o corpo desse aqui passar uma noite sem caos. — null se refere a null.

— Claro, por aqui. — Elara abre caminho. — Só ele precisa de cuidados urgentes?

— Eu diria que null precisa de uma revisão na cabeça, mas ele já dirigiu até aqui e fez aquela manobra de ré na estrada… — null responde, dando de ombros.

— Todos vocês vão fazer um check-up por garantia, temos tempo. Enquanto isso, vou pedir que lhes mostrem as camas e os banheiros aqui e lá em cima. A cozinha fica naquele lado. Vocês se acostumam rápido.

— Parece uma ótima estrutura. Certeza que nosso grupo cabe aqui sem problemas? — null pergunta.

— Quem disse que nosso grupo inteiro está aqui? Não estranhou que só eu recebi vocês? — Elara pisca um olho e continua o caminho até a enfermaria. — Tivemos muita liberdade para trabalhar enquanto vocês tiravam o sossego deles no leste.

Os líderes sorriem com a confiança transbordando naquela frase. A animação se torna maior que a preocupação a cada minuto.

No dia seguinte, null leva null e null para visitar null na pequena prisão da base. Não demorou muito para que os três entrassem em acordo sobre o tratamento dela. A única punição, além de viver no cubículo, será a falta de convivência.

— Eu já sei de tudo que aconteceu a partir de seis pontos de vista — null começa. O coração dela não desacelera por um segundo enquanto observa os três homens com muita dor no olhar. — Você não vai ser maltratada de forma alguma, já combinamos isso com os responsáveis e vamos supervisionar para que não fuja do nosso controle. Espero que saiba que é a coisa certa a se fazer. As pessoas lá fora não vão se sentir seguras enquanto a justiça não for feita. Pelo bem geral, até que a maioria se recupere e decida que está pronta para te ter por perto, você ficará aqui.

Pouca coisa está igual ao início. A principal delas é a vontade de virar o jogo, que continua acesa no fundo do coração de todos os presentes. Enquanto a Grande Proteção tenta limpar a bagunça e encontrar os culpados, seus protetores estarão cumprindo seus horários de trabalho cegamente, como num dia normal. Quando tudo indicar que a resistência do leste de Lume sumiu sem deixar rastros, as bases pelo país estarão se fortalecendo. A partir de agora, a Grande Liderança poderá promover muitas inovações para aperfeiçoar o controle do sistema, mas Lume jamais estará preparada para o eclipse solar total que está a caminho.


FIM



Nota da autora: Oi, gente! Todo mundo pronto pra receber a tatuagem de eclipse na nuca? slkdhgds. Aviso que vou agradecer muito nesta nota. Em primeiro lugar, obrigada por ler até o final. É muito importante que vocês deixem suas opiniões nos comentários! Esse é o primeiro projeto que terminei tão rápido (um mês, socorro), até meu primeiro roteiro, que é bem mais curto, levou três meses pra ficar pronto. No geral, tô muito orgulhosa; eu sempre quis criar uma ficção de distopia, então desde já agradeço ao BtoB pela obra-prima que é "I'll be your man". Como estudante de cinema e fã de cenas de ação e suspense, espero ter entregado uma ótima (será?) experiência. O que acharam da nossa protagonista "vilã"? Também é minha primeira vez escrevendo pelo ponto de vista de personagens masculinos por tanto tempo. O universo de Inopino tem muito a oferecer, acho que isso é o que me deixa mais animada: todas as possibilidades mesmo após o final.
Agradeço à minha alma gêmea Aurora por ter me apresentado e convencido a participar deste projeto, por estar ao meu lado e apoiar todas as minhas loucuras. Digo, tranquilamente, que esse plano de resgate dos líderes é o mínimo que eu faria pra te salvar de qualquer situação. Amo você, pra sempre. Obrigada também à minha beta Mary por ter sido fofa e paciente na troca de e-mails! <3

Farei meu melhor pra aparecer nesse site com mais frequência. Obrigada pelo carinho, até a próxima!





Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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