Capítulo Único
E lá vamos nós, outro dia no meu inferno particular. Parei na ponte, no meio do caminho até a escola e fiquei olhando pro lago por um minuto. Eu não sou o que se pode chamar de garota popular do colégio, na verdade, muito pelo contrário, eu sou a piada, a garota estranha e atrapalhada, por isso lá se tornou meu inferno pessoal, não consigo me lembrar de nem uma única vez em que eu tenha me sentido bem naquele lugar, na verdade, eu acho que todos lá estariam melhor sem mim, qual é o meu papel naquele lugar? Claro, além de ser motivo de risos? Mas de que adianta ficar aqui me lamentando? Não é como se eu pudesse sair da escola, ou sequer pedir transferência, minha mãe nunca aceitaria que eu fosse “fraca” a esse ponto, que desistisse só porque é difícil, não adianta nada me lamentar por isso.
Suspirei e comecei o resto do caminho até o colégio. Quando cheguei, fui direto pra sala, não tinha muito o que eu pudesse fazer nos corredores ou no refeitório, a não ser me tornar alvo de piadas. Me sentei na frente, como sempre, me sentar no fundo nunca é uma boa ideia, não com os garotos do time de futebol pra tentar me fazer de idiota. O professor entrou na sala e logo a aula começou, o assunto era uma revisão da matéria da semana passada, o que, na minha opinião, era completamente desnecessário, fazia tão pouco tempo que ele tinha passado, como alguém poderia já ter se esquecido?
Como eu já sabia aquela matéria de olhos fechados, resolvi fazer alguma coisa pra me distrair, resolvi terminar um desenho que eu tinha começado ontem à tarde, era de uma estátua de dois anjinhos que ficava na frente da igreja. Sempre tive jeito pra desenho e adorava passar minha tarde lá desenhando as estátuas, pelo menos elas não falavam, assim não podem me ofender nem rir de mim. Peguei meu caderno de desenhos, um lápis no estojo e comecei a fazer os retoques de sombra que faltavam pra finalizar o desenho. Sempre que começo a desenhar, me desligo do que está acontecendo ao meu redor, por isso tomei um susto quando o professor bateu com um bastão na minha mesa. Pra variar, todos ao redor riram de mim:
— Minha aula não está interessante o suficiente pra você, senhorita ? — perguntou ele.
— Ãhn, não, quer dizer... Eu já sabia a matéria. — falei meio sem graça, a sala inteira ficou quieta e olhou pra mim, eu senti vontade de me enfiar embaixo da mesa.
— Ah, então você é a sabichona? Então qual é a composição da água? — perguntou.
— Dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. — respondi na hora.
— E do gás carbônico?
— Dois átomos de oxigênio e um de carbono. — respondi a outra pergunta, ele ficou me encarando por um momento.
— Já que é tão esperta, você deveria compartilhar sua esperteza com o diretor. — disse. Eu o olhei indignada, o que eu fiz de errado? Já provei que sabia a matéria! — Depois da aula, você pode vir comigo até a sala dele. Agora, o restante dos alunos, os que não tem o QI do Einstein, vamos voltar à aula. — disse, se virando outra vez pra lousa e recomeçando a aula. Ouvi sussurros pelo resto da aula, por mais que eu tentasse ser invisível, nem pra isso eu servia.
Senti algo me acertando, quando me virei pra ver o que era, vi uma bolinha de papel do meu lado, olhei em volta, procurando quem tinha jogado. Um menino no canto da sala começou a apontar pra bolinha enquanto sussurrava “pega”. Sem entender muito, eu me abaixei e a peguei, a desdobrando no colo pra que o professor não visse, a caligrafia do bilhete não era muito caprichada, de fato letra de menino.
Olhei de volta pro menino e vi ele juntando as mãos em súplica, eu ri:
— Senhorita e senhor , algum problema com a matéria? — perguntou o professor, olhando de mim pro garoto. Será possível que hoje esse professor resolveu pegar no meu pé?
— Nenhum, senhor Clarke, eu só estava aqui comentando como você é um excelente professor e como sua aula é meu momento favorito do dia. — disse ele com um sorriso encantador, o senhor Clarke estufou o peito:
— Muito obrigado, mas vocês poderiam voltar a prestar atenção na aula por favor? — perguntou o professor.
— É pra já. — disse e voltou a atenção pra explicação da matéria. Eu resolvi ficar quieta pelo resto da aula, não queria levar mais uma bronca. Quando a aula finalmente acabou, todo mundo se apressou pra sair da sala, eu comecei a arrumar minhas coisas.
— Você fica, senhorita . — disse. Eu suspirei, todos saíram praticamente correndo, com exceção do garoto da bolinha de papel — O que está esperando, senhor ? A aula já acabou. — disse o professor, fechando alguns livros:
— Hum? Nem percebi, eu estava aqui admirando as fórmulas na lousa, são tão... Intrigantes. — disse ele.
— Você pode admirar na próxima aula, quero ter uma conversa com a senhorita . — disse o professor, cruzando os braços.
— Não posso ficar? Eu vou ficar bem quietinho. — disse ele.
— Tchau, senhor .
— Ok, ok, depois você diz que ninguém dá atenção pra sua matéria, eu aqui e o senhor me expulsando, que absurdo. — disse e arrumou as coisas dele. Quando passou por mim, ele sussurrou um “depois conversamos” e depois saiu da sala. O professor encostou na mesa:
— O que a sua mãe faria se recebesse mais uma convocação por sua causa, senhorita ? — perguntou.
— Eu não fiz nada de errado. — falei, ele me olhou incrédulo.
— E desenhar no meio da minha aula é certo? Vou pedir pro diretor ligar pra sua mãe, talvez eles precisem ter uma conversa, pode sair. — disse. Eu assenti e guardei minhas coisas na mochila, peguei meus desenhos e saí da sala.
Tudo o que eu queria era que a minha vida não fosse uma merda, não conseguia nem pensar no que minha mãe iria fazer ao saber que levei mais uma bronca por estar desenhando. Ela nunca deu a mínima pros meus desenhos, na verdade, acha eles perda de tempo, não importa o quanto eu tente explicar que eu amava desenhar, que me faz sentir melhor, ela nunca escutava.
Não tinha mais cabeça pra assistir o resto das aulas, então decidi cabular, apressei o passo no corredor e fui até as escadas. Quando eu estava nos últimos degraus, uma garota da minha aula de história bateu o ombro em mim, me fazendo desequilibrar e cair, minhas coisas ficaram espalhadas no chão, eu respirei fundo e recolhi tudo o mais rápido que pude, correndo pra fora depois. Eu já sabia que atrás das árvores, atrás do prédio, tinha um buraco no muro, corri pra lá e passei por ele.
Assim que me vi fora do colégio, dei um suspiro aliviado. Me sinto muito melhor longe daquele lugar. Arrumei a mochila no ombro e fui em direção à igreja, eu não podia voltar pra casa, não antes do fim das aulas, talvez eu pudesse achar alguma outra estátua pra desenhar no pátio. Assim que cheguei, logo achei uma muito bonita, coloquei minhas coisas no chão, perto de um muro, e me sentei encostada nele, começando o desenho. Demorou horas até que ele ficasse como eu queria, mas até que tinha ficado bom, eu já estava finalizando o efeito de sombra quando senti uma mão no meu ombro, dei um pulo de susto:
— Calma garota QI, não sou um serial killer, não vou matar você. — disse o garoto da bolinha de papel, rindo. Ele se sentou do meu lado e começou a analisar meu desenho.
— Não achei que você fosse me matar, e meu nome não é garota QI. — falei, tentando tirar o desenho da vista dele:
— Uau, já vi que você é do tipo problema, até enfrentou o professor mais cedo. — disse, rindo.
— Detesto problemas e eu não enfrentei o professor, só respondi o que ele tinha me perguntado. — falei, dando de ombros.
— E é por isso que você é a garota QI, ninguém sabia aquelas respostas.
— Saberiam se prestassem atenção na aula. — falei, ele riu.
— Você tem um ponto. Mas você tem razão, você não parece do tipo que gosta de problemas, na verdade, você me parece do tipo tímida. — disse, me analisando, eu ri:
— Vai ficar me rotulando agora?
— Arranquei uma risada sua! Eu sou incrível, mas tudo bem, garota QI, qual é seu nome? — perguntou.
— .
— Muito prazer, , meu nome é , mas não vamos fugir do assunto.
— Assunto?
— Sim, aquilo no bilhete na sala, é sério, tô com o pé na cova com o senhor Clarke, se ninguém me ajudar com a matéria, tenho certeza que ele vai mover céu e terra pra me reprovar.
— Ele pareceu gostar de você. — falei, voltando a atenção pro meu desenho e voltando a retocá-lo:
— Ele gosta de qualquer um que puxe o saco dele, fato. — disse, dando de ombros — Você vai me ajudar?
— Eu não sou muito boa em química, só sabia as respostas hoje porque prestei atenção na aula passada. — falei.
— O que já é um começo, por favor, garota QI, preciso da sua ajuda. — disse, fazendo biquinho e sinal de súplica com as mãos:
— Tudo bem, mas outro dia. — falei.
— Como quiser. — disse, olhando a estátua que eu estava desenhando — Esse é o desenho que você estava fazendo na sala?
— Não, comecei esse depois de sair da primeira aula. — falei, ele me olhou como se não acreditasse.
— Você fez esse desenho em três horas? Eu levaria no mínimo uma semana, tá incrível! — disse, olhando por cima do meu ombro — Você é uma artista, sabia disso?
— Não é como se isso importasse muito. — falei, fechando o caderno.
— Como não importa? Eu sempre vejo você desenhando, você gosta, não é? — perguntou. Eu terminei de guardar minhas coisas e me levantei, ele se levantou em seguida:
— Sim, mas, enfim, eu preciso ir agora. — falei, arrumando a mochila no ombro:
— Claro, posso te acompanhar até em casa? — perguntou com um sorriso simpático.
— Ãhn... Acho melhor não, acho que minha mãe não ia gostar muito. — falei, o sorriso se desfez.
— Claro, claro, então nos vemos amanhã? Você ainda tá me devendo umas aulas de química. — disse, eu assenti — Então até amanhã.
— Até amanhã. — falei e fui pra casa. A pergunta sem resposta do dia é por que ele resolveu falar comigo assim, do nada?
...
— , será que dá pra me explicar por que eu recebi outra ligação do colégio hoje? — perguntou minha mãe durante o jantar, eu respirei fundo:
— Não sei, mãe.
— Como não sabe? Você estava desenhando na aula de novo! Quantas vezes vou ter que te explicar que isso não é um comportamento decente? Se você continuar enchendo o seu histórico escolar de reclamações, nunca vai conseguir entrar pra faculdade, nunca vai fazer direito, isso seria uma decepção, não é mesmo? — perguntou ela.
— Claro, mamãe, é claro que seria. — ela quer muito que eu faça direito, seguindo os passos dela, mas ela simplesmente não consegue compreender que eu não tenho talento pra isso, não consigo me imaginar diante de um júri tentando defender ou acusar alguém, eu não consigo defender nem a mim mesma de ser a chacota do colégio, quanto mais defender algum condenado! Mas, mesmo assim, ela nunca entende, há muito tempo eu desisti de tentar conversar sobre isso, assim evito brigas.
— Não quero mais isso, quando eu tinha a sua idade, seus avós nunca receberam sequer uma reclamação minha, então espero não receber mais nenhuma sua, estamos entendidas?
— Sim, mãe.
— Você precisa de amigos! Se tivesse mais amigos, passaria menos tempo enfurnada naquele quarto desenhando e mais tempo fazendo coisas normais. — disse, resolvi ignorar o fato de ela não achar que desenhar seja uma coisa normal.
— Todo mundo me acha uma piada, a estranha, por isso não tenho amigos. — falei, brincando com uma fatia de tomate no prato:
— Se você passasse mais tempo conversando, tentando se enturmar, tenho certeza de que eles não teriam essa opinião a seu respeito. — disse. Eu resolvi ficar quieta, não adiantava eu tentar explicar, ela nunca iria entender. Na minha idade, ela era popular, líder de torcida, nunca iria entender como é estar do outro lado da moeda, o lado dos esquecidos.
...
Tive que suspirar de alívio quando o professor deu a aula por encerrada, não aguentava mais aquela aula de biologia, não sei em que momento os professores resolveram que era uma boa ideia dar aulas sobre sexo pros alunos, era constrangedor, essa aula só servia pra dar início à rodada de piadinhas e, claro, eu estava no meio, bem no meio:
— Você nunca transou não é, ? — perguntou Peter, um dos garotos do time de futebol. Dei azar de chegar atrasada na aula, então tive que me contentar em sentar no fundo, perto deles.
— Claro que não, a garota é a versão real da Carrie, a Estranha. — disse outro, rindo.
— Se você prometer não colocar fogo em todo mundo no baile de formatura, eu te deixo chupar meu pau. — disse Peter bem perto de mim. Nessa hora, finalmente o sinal bateu e eu saí praticamente correndo da sala.
— Hey! Garota QI! Espera! — ouvi a voz do , mas não parei de andar. Ele deu uma corridinha e começou a andar ao meu lado — Eu vi tudo, não liga pra eles, eles são uns babacas, um hamster deve ter mais QI que todos eles juntos. — disse.
— Deixa pra lá, é indiferente.
— Você não me parece indiferente a isso. — disse — Já vi que você quer ficar sozinha, se quiser pode ir me procurar na sala de música, vou estar lá durante o almoço inteiro. — disse. Eu assenti e ele saiu de perto de mim, me deixando sozinha.
Eu suspirei e saí do colégio, indo até o refeitório na parte da frente, onde era uma área aberta. Vi um grupo de garotas conversando em uma das mesas, talvez minha mãe estivesse certa, talvez, se eu tentasse me enturmar, eu não seria mais a piada da vez. Respirei fundo, me aproximei e tentei meu melhor sorriso simpático, mas, assim que eu me sentei, todas elas levantaram e foram embora. Eu fiquei lá, como uma tonta, sozinha na mesa. Olhei ao redor, era como se o mundo funcionasse sem mim, como se ninguém nem notasse que eu estava ali, como se eu fosse... Invisível. Que diferença eu fazia no mundo, afinal? Ninguém se importava, ninguém se importava se eu estava bem, ou se eu ia às aulas, por que eu deveria me importar? Por que eu deveria assistir às aulas?
Me levantei e corri pra dentro do colégio, eu tinha que atravessar o prédio pra ir até o buraco no muro atrás dele, por onde eu podia sair. No meio do caminho, eu passei na frente da sala de música, vi o lá dentro tocando violão. Assim que me viu, ele deixou o violão e saiu da sala, vindo atrás de mim:
— Garota QI, onde você tá indo? — perguntou, ajeitando a mochila no ombro.
— Embora. — falei, assim apressando o passo, ele apressou junto comigo.
— Embora? Mas ainda tem duas aulas. — disse, confuso.
— Eu cansei desse lugar, cansei das pessoas daqui, não quero mais saber nada disso. — falei. Finalmente cheguei até o muro e passei pelo buraco, pra minha surpresa, veio comigo — Por que você não volta pra aula? Não precisa vir comigo.
— É claro que eu preciso, quando uma pessoa fica assim, não é bom ficar sozinha. — disse ele. Eu parei de andar e olhei pra ele:
— Assim como, ? Eu só tô... Cansada, cansada de tudo isso, desse lugar... Eu me cansei. — falei e comecei a correr em direção à minha casa, eu não morava muito longe do colégio, se eu corresse, eu podia chegar logo:
— , espera! — pediu ele, correndo atrás de mim, não dei ouvidos. Quando finalmente cheguei à minha casa, vi que ele ainda não tinha parado de me seguir.
— Para! O que você ainda tá fazendo aqui? Eu quero ficar sozinha! — gritei com ele, ele não pareceu se abalar nem um pouco:
— Eu sei como você tá se sentindo, eu...
— Você o quê? Você não sabe como eu tô me sentindo, porque eu não tô sentindo nada e, se você não for embora daqui, eu vou chamar a polícia. — falei de maneira firme e entrei em casa, olhei pela janela e vi que ele ficou um tempo no quintal, mas logo foi embora. Eu fui até a sala e vi que minha mãe estava na sala vendo um livro — Cheguei, mãe. — falei.
— Ótimo, tem lasanha na geladeira. — disse sem nem me dar atenção, nem ela se importava.
Eu subi pro meu quarto e vesti alguma coisa confortável, eu precisava pintar alguma coisa, precisava fugir dessa realidade de merda, precisava... Colocar tudo isso pra fora.
Depois de me trocar, eu me sentei no chão no meio do quarto com um caderno nas mãos. Olhei pros meus braços, estavam cheio de pequenas marcas, eu prometi pra mim mesma que nunca mais me cortaria, mas nunca senti tanta vontade como naquele momento, por mais estranho que isso pudesse parecer, os cortes sempre me fizeram me sentir melhor, era como se a dor física pudesse... Curar a dor que eu sentia por dentro. Mas eu não ia fazer isso, da última vez que viu meu braço cortado, minha mãe disse que eu era fraca, não iria deixar ela me chamar de fraca outra vez.
Peguei uma tela em branco e coloquei no suporte, pegando minhas tintas em seguida, precisava extravasar de outro jeito. Prendi meu cabelo e peguei um pincel, e então fechei os olhos, eu só precisava... Sentir. Molhei o pincel na tinta e a atirei na tela, então fiz mais uma vez, e mais uma. Quando dei por mim, eu já estava gritando enquanto atirava tinta loucamente na tela, coloquei a mão no rosto, eu estava chorando.
— ! O que é isso? Que bagunça é essa?! — disse minha mãe aparecendo na porta e olhando assustada pra bagunça de tinta — Você ficou maluca?!
— Eu não quero ser você. — sussurrei.
— O quê?
— Eu não quero ser você! — gritei — Eu tô cansada! Você não percebe que está me sufocando?! Tentando me transformar em você! Eu quero ser o que eu sou! Não o que você é! Eu sou uma artista! Não uma advogada! Você tem tanto medo que eu não seja o que você quer, mas eu não sou! A garota que você pensou que eu pudesse ser não existe! Eu não aguento mais isso! É como se cada passo que eu desse fosse um erro pra você! Cada minuto, cada minuto que eu passo tentando te agradar, é mais um minuto que eu perco pra agradar a mim mesma! — quando dei por mim, eu tinha gritado na cara dela tudo o que eu sempre quis dizer, mas nunca tive coragem. Eu estava sem fôlego, então me apoiei na escrivaninha e esperei ela dizer alguma coisa.
— Do que você está falando? — perguntou ela em tom de voz controlado.
— Você fracassou, mamãe, você não é feliz, eu sei que posso acabar fracassando também, mas eu não quero ser como você, eu sei que, quando você tinha a minha idade, o vovô e a vovó controlavam você, eu sei que eles te desapontaram, mas eu não mereço pagar por isso. — falei, ela me olhou com lágrimas nos olhos.
— Já chega, .
— Não, mãe, eu tô cansada de ser o que você quer que eu seja. Nunca mais, nunca mais eu vou fazer alguma coisa só pra agradar você. — falei.
— Chega! — gritou ela, transtornada.
— O papai teria me apoiado. — falei. Por um momento, eu vi um vazio nos olhos dela, papai tinha morrido há dois anos, desde então ela nunca mais foi a mesma.
— Sai daqui, . — disse, se recompondo e limpando as lágrimas.
— Mãe...
— Sai daqui! E só volta quando voltar a ser minha menininha! — gritou e saiu do meu quarto, indo pro dela e batendo a porta. Eu senti as lágrimas escorrendo, eu me sentia melhor por ter colocado tudo pra fora, mas não podia deixar de me sentir mal por ter deixado minha mãe nesse estado.
Eu me troquei de novo e saí de casa, pra onde as pessoas vão quando se sentem assim? Eu não tinha amigos, não podia ir até a casa de ninguém e chorar no ombro dessa pessoa, pra onde eu deveria ir? A igreja, eu vou pra igreja. Eu corri o caminho todo, tudo o que eu queria era me sentir melhor. Entrei na igreja correndo, eu precisava desabafar com alguém, talvez um padre, mas logo constatei que o lugar estava vazio, eu desabei de joelhos no chão e me permiti chorar, o vazio que eu estava sentindo não tinha tamanho, era imenso. Ouvi passos atrás de mim e me levantei assustada, era o .
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei, limpando as lágrimas.
— Eu vi quando você saiu correndo de casa, fiquei com medo de que fizesse alguma besteira. — disse, se aproximando de mim com as mãos nos bolsos.
— Você estava me vigiando? — perguntei sem acreditar, ele riu:
— Talvez você nunca tenha reparado, mas eu moro três casas depois de você, eu ouvi seus gritos, e depois sua discussão com a sua mãe. — disse, dando de ombros.
— E resolveu me seguir? — perguntei.
— , eu...
— Qual é o seu problema? — o interrompi, ele me olhou confuso:
— O quê?
— Qual é o seu problema? Por que do nada você quer bancar o meu amigo? O que tem de errado com você? — perguntei, ele me olhou como se não acreditasse:
— O que tem de errado comigo? O que tem de errado com você?! Eu vim até aqui porque estava preocupado e você tá me dizendo que eu tenho um problema?!
— E por que você se preocupa? Você nem me conhece! — falei, ele sorriu:
— Se enganou, eu te conheço muito bem.
— O quê?
— Eu sei que você gosta de sentar no canto e desenhar na hora do almoço, e que nunca senta no fundo, porque não suporta as piadinhas sem noção dos garotos do time, e também sei que você é inteligente, mas não gosta de admitir. — disse, dando um passo na minha direção, eu dei um pra trás.
— Desde quando você tá me observando? — perguntei, assustada.
— Eu não estava observando você, eu só estava esperando o momento certo pra me aproximar. — disse.
— Se aproximar? Mas por quê? A maioria das pessoas quer distância de mim.
— Justamente por isso, porque você não tem ninguém. — disse. Aquilo foi como um tapa na cara:
— Você tem pena de mim? — perguntei.
— Pena? Não! Será que você não percebeu ainda? Eu acho você incrível! — disse como se fosse óbvio.
— Incrível? Eu? A maioria das pessoas me acha fraca, fraca porque eu nunca revido, porque eu prefiro ficar sozinha à enfrentar as pessoas.
— É justamente por isso, você é tão... Forte, você aguenta tudo, as pessoas rindo de você, os garotos te zoando, você prefere os seus desenhos às pessoas, eu admiro isso. — disse, eu o olhei sem acreditar.
— Você admira isso?
— Claro, a maioria das pessoas não merece atenção, você podia ser insegura, implorar atenção pras pessoas, mas escolheu não dar a mínima pra elas, isso é um grande feito. — disse, dando alguns passos na minha direção. Dessa vez, eu fiquei quieta.
— O que você tá querendo dizer com isso?
— Você ainda não entendeu? Eu te disse que estou te observando faz tempo, que te acho incrível, e você ainda não chegou a nenhuma conclusão? — perguntou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha, eu segui a mão dele com os olhos.
— Que conclusão? — perguntei sem entender. Ele riu e deu mais um passo, parando a centímetros de mim:
— Poxa, garota QI, achei que você fosse mais esperta, eu tô apaixonado por você, simples. — disse, como se fosse a coisa mais normal do mundo:
— Apaixonado? — perguntei, ele riu:
— Sera que da pra parar de transformar o que eu disse em perguntas e me beijar logo? — perguntou, acariciando minha bochecha. Eu não sabia o que fazer, então apenas fechei os olhos, ele tomou isso como convite e me puxou, juntando os lábios nos meus. Quando nos separamos, ele encostou a testa na minha — Quer ser minha garota QI? — perguntou, eu pude jurar que ele estava sorrindo só pela voz dele. Eu não acredito, alguém se importa, alguém gosta de mim.
— Quero. — sussurrei. Ele riu e me beijou de novo.
Talvez o mundo ainda não esteja completamente perdido, se houverem mais pessoas como o por aí, talvez ele ainda possa ser salvo.