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Finalizada em: 25/12/2015


Se eu podia acordar em um lugar diferente em uma hora diferente, será que eu podia acordar como uma pessoa diferente? — Clube da Luta.

Parte II — The Silence of the Lambs

Capítulo 17 — Hurricane

Do you really want? Do you really want me? Do you really want me dead or alive, to torture for my sins?

Desde jovem, na casa dos Durden, nunca se sentira uma peça fundamental. Talvez, se um dia viesse a partir, as pessoas perceberiam. Por algum tipo de educação, sentiriam falta. Logo a esqueceriam.
Aquilo não seria seguir em frente, caso ela partisse. Aquilo seria fingir se importar por um breve tempo.
Esse sentimento voltou com toda força naquela noite.
Dispensável. De certo modo, indiferente. Não para si, para uma situação como um todo, como uma pequena estrela ao lado da mais brilhante, um grão de areia próximo a um grande rochedo.
Seus demônios internos cortavam sua pele, tentando escapar. Uma rota de fuga.
Era sua própria rota de fuga.
Não poderia culpar a ninguém. A culpa era sua, sempre sua, inevitavelmente sua. Era drama.
Nunca sabiam o que se passava dentro de sua mente. As guerras, as mortes, o sangue, a derrota.
Era sempre algo que passava.
Nunca passava. Apenas era abafado, ou até esquecido.
Nunca resolvido.
Aquilo não seria fechar os espaços vazios. Não seria responder as perguntas.
Aquilo era preencher com pedras o buraco, aparentar fechá-lo. Era apenas cortar as interrogações.
A maneira com que Ramona colocara o assunto a fez não se importar com sua decisão. Apenas a faria. A controlaria, pois era assim que deveria ser.
Tudo nos eixos.
Eu sou um fantasma, eu fujo do medo.
E, realmente, não parecia se importar com aquilo.
A entrada da casa de era o muro alto, marrom claro. Assim que se passava pelo portão, era preciso atravessar um pequeno gramado, em uma passarela de pedras, para chegar à frente da casa. A fachada tinha dois andares, era cinza, um grande bloco de concreto. Feio, na verdade. E incrivelmente apropriado para .
Rústico e impassível.
Uma parede repleta de tijolos, sem espaços abertos.
— Você não deveria estar aqui — ele murmurou.
— Não é o melhor jeito de me receber, retrucou, com um sorriso sarcástico.
— Eu estou falando sério.
— Quando eu também não estou?
abriu a porta da mansão, o que deixou boquiaberta, parada na porta do lugar. Era uma grande sala de jantar com uma pequena saleta de entrada, clara, bem iluminada e mobiliada com tamanha elegância, que parecia pertencer a um milionário. Mais adiante, um lavabo, uma escada que levava ao segundo andar, e uma cozinha americana unificada a uma sala de estar.
O incrível era o que ia além disso. As paredes da cozinha e da sala de jantar, todas de vidro, permitiam ver o lado de fora. O quintal era com piso, tinha algumas cadeiras em volta de uma mesa, e uma piscina infinita que se estendia até o final do terreno. Bem, quase isso. Como a rua de era um morro, a casa ainda tinha uma escada lateral que ia para um andar abaixo da piscina.
Aquela foi a primeira vez que piscinas com cromoterapias adiantaram alguma coisa.
— Você não tem limites? — ele perguntou, com a mala de na mão — O mundo caindo, e você na rua. Que merda aconteceu?
Estou sempre ultrapassando meus limites.
A voz mansa de Jeff Buckley ecoava pela casa, entoando versos baixos de Hallelujah em caixas de som por toda estrutura em que estavam.
sentou-se no degrau no chão que subia levemente para a sala de estar, perto do vidro, com as pernas cruzadas e as mãos no colo.
— Você não pode ficar aqui, e sabe disso.
— Você me deixou entrar.
— Também posso te deixar sair.
Ela suspirou.
— Não precisa ser tão rude.
— Eu só não acho uma boa ideia você ficar aqui.
— Por quê? — cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas, desafiando a respondê-la convincentemente — Vai dizer que estou te assediando, como o fez?
parou atrás do balcão da cozinha. A boca ficou entreaberta, e ele balbuciou um pouco.
— Ele fez o quê?
‘Tá falando merda, .
— Ele fez uma denúncia de assédio. Eu posso perder minha licença por isso.
— E é por isso que você saiu da casa dele? — foi a vez de cruzar os braços. Vestia uma camiseta cinza, que marcava bem seu corpo. Seus bíceps definiram-se, delineados no meio-escuro do cômodo, ainda assim perceptíveis.
Houve poucos momentos que realmente ficou sem palavras. Também houve poucos em que ela se distraiu. Quando olhou para , ela ficou das duas maneiras ao mesmo tempo.
— Claro que foi.
— Você nunca foi boa em mentir, .
— Você sempre acreditou em mim — ela levantou-se e fez bico.
apoiou as mãos na bancada da cozinha, olhando para com um canto dos lábios erguido.
— Só posso deixar você ficar até depois do jantar.
— Então vamos jantar? Nunca imaginei que você fosse um bom cozinheiro, — ela falou, se aproximando da bancada.
— Eu não sou. Mal cozinho arroz. Vou pedir uma pizza.
— Como é? — ela fez uma careta com o cenho franzido — Pizza? Uma casa dessas, e você come pizza? Não tem nada mais fino?
— Eu ia tentar fazer um salmão essa semana...
— Então, se me permite, vou fazer... — ela fez uma curta pausa — Vou fazer um salmão ao molho de anchovas que você não vai querer comer mais nada na sua vida.
Ela direcionou-se para a cozinha, e apenas comentou:
— Você nunca precisou da minha permissão para nada.
— Você está pegando o jeito com a coisa — ela disse, olhando para trás e piscando um olho.

Dentro do lavabo e trocando de roupa, se lembrou de uma das únicas coisas que a maioria das mulheres da delegacia concordava: era o tipo de homem que, ou se joga em uma cama, ou em um precipício.
Versos da música de Jeff Buckley confundiam . Agora, a música que ecoava pela casa era Hey You, do Pink Floyd.
Olhou-se no espelho mais uma vez. Havia algo diferente em seu olhar. Suas íris estavam mais opacas, impenetráveis.
Era como . Ambos eram impassíveis.
Os pensamentos confundiam-na. Sua própria mente brigava com ela, como se fossem duas pessoas. Um lado um pouco mais ousado era o que mandava.
Tocou sua blusa, larga, e colocou as mãos no short que usava. Não era indecente. Mas parecia até que andar com um edredom enrolado no corpo, naquela ocasião, remeteria aos piores pensamentos. Quer dizer, piores, mas certamente os mais agradáveis.
A mansão . era o único herdeiro de uma família composta basicamente por empresários e médicos.
A música tocava do lado de fora do banheiro, preparando-a para sua saída em um ar póstumo.
Não, póstumo não. Era estimulante.
O telefone tocou dentro da bolsa, com o nome de piscando na tela. Talvez, uma breve conversa com a amiga pudesse relaxá-la. Indicar-lhe a direção certa.
Suas direções estavam muito erradas, entretanto, preferia seguir pela direção errada pelo menos naquele momento.
? — perguntou, atendendo a chamada e com a mão na testa, olhando-se no espelho — Tudo bem?
— Tudo, . E você? — tinha a voz um pouco mais aliviada ao que parecia, comparando com as outras vezes que tinham falado ao telefone — Eu tentei ligar para sua casa, atendeu a disse que você saiu.
— É. E provavelmente você não vai me encontrar lá de novo.
ficou em silêncio por alguns segundos.
— Eu consigo ouvir uma música tocando no fundo. Onde você está?
Baixos sons de interferência, ruídos surdos, foram ouvidos na ligação.
O caos.
— Eu não estou em casa.
— Eu sei que não. Por isso perguntei onde você está.
engoliu em seco.
— Eu... Estou na casa do .
soltou o ar sonoramente. Parecia ter algo a dizer, procurar as palavras, e desistir por alguns segundos.
— E por que você saiu da casa do e do ?
— Porque...
Porque eu não tenho mais motivos para ficar lá.
Sua casa estava pronta para sua volta. até tinha feito um seguro.
— Porque aconteceu um pequeno acidente.
— Que tipo de acidente? Alguém se machucou?
— Não, não esse tipo de acidente...
ficou em silêncio novamente.
— Acho que entendi. Quem fez a merda?
— O novato e a .
quase engasgou.
— A ? Eu sempre desconfiei daquela vagabunda! — ela se manifestou, o que fez dar uma risadinha — São esses tipos de coisas que acontecem quando eu não estou perto.
— Por isso eu acho que você deveria voltar.
Porque eu sinto sua falta.
ficou alguns segundos em silêncio de novo, suspirando.
— Eu vou voltar daqui a um tempo, . Quando... Quando você estiver bem.
Eu ia voltar, se você não tivesse tido problemas com o .
— Eu estou bem, .
— Não está não. Talvez fique, mas não está, não agora.
— E você acha que aqui eu vou ficar um pouco melhor?
voltou a procurar as palavras.
— Eu acho que você tem que evitar ficar desacompanhada.
— É uma boa ideia. De qualquer jeito, é melhor eu ir...
, só me diga uma coisa — pediu, antes de desligar — Você andou encontrando a Ramona ultimamente?
— Ramona?
Por que estaria preocupada com Ramona? Tudo bem, ela sabe que ela pode ser perigosa, só que...
Um pequeno sentimento brotou dentro de .
Ramona esteve aqui... Ramona e ... Quando você não esteve.
— Não, faz tempo que não encontro com ela.
— Ainda bem. Se acontecer alguma coisa, me deixe sabendo, ok?
— Ok.
Desligou sem querer ouvir o que teria a dizer. Por mais que odiasse Ramona, e a odiava por vários motivos, pelo menos, ela parecia ser a última de pé, quando todos viraram as costas.
Jogou o celular dentro da bolsa, e viu um pequeno quadrado, com um papel branco escrito em volta dele como se o embrulhasse.
‘Divirta-se’ era o que dizia.
desembrulhou-o e viu o isqueiro de Ramona. O que começara o fogo que destruiu sua casa. E agora... Reerguia toda uma mulher.

Jogou o celular dentro da bolsa, saiu do lavabo e foi para a cozinha. Encontrou abaixado sob a pia, procurando alguma coisa.
— Marla ou aí atrás, ?
— Você queria que fosse você, — ele disse, retrucando algo que já tinha ouvido há algumas semanas, durante a festa de Halloween.
Para , aquilo ficava entre o excitante e o perturbador.
Quem ela deveria ser?
O muro.
— Eu falei com o — ele comentou, como se fosse a coisa mais normal de todo o universo.
— Falou? O que ele disse? — perguntou , andando até atrás da bancada. Tentava se concentrar o suficiente para esquecer-se de que estava ali sozinha com . Tentou parecer não se importar.
Agir com naturalidade e até um pouco de indiferença.
— Sobre o motivo de verdade de você ter saído.
Aquilo não daria certo.
trocou um olhar tenso com . Ela estava de pé na cozinha, de frente para uma tábua com o salmão. Na mão esquerda, uma faca como a que Jacqueline tinha usado no dia do ‘incidente’. a observava apoiado de lado contra o vidro, os braços cruzados e uma sobrancelha erguida. Debochado.
Rindo torto.
Superior.
Estou te observando. Cada detalhe seu. Cada movimento. Cada respiração, cada batimento cardíaco. Não como se eu fosse seu protetor... Como se eu fosse quem seu protetor deve te defender.
voltou a olhar para o salmão em cima da tábua, e para o facão em sua mão. Trêmula.
Sua força não era a mesma.
O que está acontecendo comigo?
Cortou o primeiro pedaço de salmão. Por pouco, não perdeu um dedo. deu uma risada bem sonora e saiu de perto do vidro, andando até .
— Não deve ter dito nada importante — ela disse.
Concentre-se. Ele está blefando.
— Você já fez esse salmão antes?
— Já. E ficou ótimo.
A voz de soou na mente dela: ‘ele não perguntou se ficou bom, mas você quis frisar’.
— Vai ficar uma merda se você continuar tremendo assim. Toda nervosa.
— Eu não estou tremendo. Nem estou nervosa.
— Não aja como uma criança, . Eu conheço-a bem o suficiente para saber que, sim, está nervosa.
ficou ereta quando sentiu, nas costas, o leve toque da blusa de com a sua. O quadril dele ficou exatamente atrás dela, como se fosse sua base, comandando seus movimentos. Com sua própria mão esquerda, segurou a mão esquerda de , envolvendo-a e fazendo a moça segurar a faca com mais firmeza. A mão direita envolveu a direita da mulher, que, por sua vez, serviu para segurar a carne do salmão. Cortaram o primeiro pedaço de carne, com o queixo de tocando seu ombro.
— Sempre que está nervosa, insiste não estar. Quando está nervosa, fica até mais firme. Acerta tiros, pensa mais nitidamente... Mas hoje, parece perturbada. Tensa.
sentiu o suor frio percorrer todo seu corpo. Ele colocou os lábios perto da orelha de , e sussurrou:
— O que aconteceu?
— Nada, .
— Você é fraca.
segurou a faca com mais força.
— Não me chame de fraca — ela disse, entre dentes.
— Mas você é. Quer dizer, você não é. Você está.
Segurando a mão esquerda de , movimentou-a de modo que a deixou sem poder reagir. Torceu a mão direita, tocando-a em sua própria cintura, e levou a mão esquerda até o pescoço de , com a lâmina da faca quase tocando sua pele.
Ele rendeu-a. Não podia reagir.
Um arrepio percorreu seu corpo.
Troca de papéis.
Confusão.
— Seus reflexos estão uma merda.
Ela segurou a mão de com a mão direita, apertou-a entre os tendões e o fez soltá-la. A mão esquerda girou a faca rapidamente, já longe de sua pele, fazendo o gume virar-se para trás. Virou um pouco o rosto, virando para ele.
Se quisesse, podia ter feito um estrago ali.
— Você quer falar de reflexos?
Ele ergueu as mãos na altura do rosto, rendendo-se e se afastando de .
Troca de papéis.
Confusão.
— Essas brincadeiras podem machucar alguém, . Não é coisa de criança.
— Estamos longe de fazer brincadeiras de criança, . Aliás — ele continuou, sentando-se no banco do lado de fora da bancada, na sala de jantar — Parece que é basicamente assim que se constituem todas as nossas conversas.
terminou de cortar o salmão e chegou alguns centímetros para o lado, para que pudesse começar a preparar seu molho.
— Você sabe que não pode prever nenhum ato meu.
— Eu não previ — ele disse, roubando um pouco de tempero, para prová-lo, e recebeu um tapa na mão de — Seus reflexos melhoraram um pouco.
riu do comentário, enquanto terminava de fazer o tempero rapidamente.
— Eu só tinha me distraído.
— O que te distraiu?
— Pare de se achar, .
— Eu não disse nada, foi você quem concluiu — ele defendeu-se, erguendo mais uma vez as mãos na altura do rosto.
Os dois riram baixo.
— Eu bem que queria que fosse sempre assim — ele disse — A gente conversando que nem gente, não como se tivéssemos uma arma apontada um para o outro.
— É sério? Eu amo tanto te odiar. Por que me trata tão inalterável, quando nos falamos?
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Eu apenas agi como você. Usando esse escudo. Um mecanismo de autodefesa do insulto, que você sempre usa. Faz justiça com as próprias mãos, sujando-as de vez em quando. Mas não suporta quando fazemos isso com você.
— Em que livro de Freud você leu isso?
— Viu? Não precisa considerar isso algum tipo de insulto, disse, parecendo mais dócil — Só quero saber o que houve. Para recorrer a mim, convenhamos que você deve estar realmente muito mal.
Ela suspirou e deu um sorriso fraco.
— Eu não tive a chance de te agradecer. Por ter me salvado. Você, o novato e .
Ele deu uma risadinha.
— É meu trabalho. Ajudar as pessoas.
Silêncio.
— Considere isso um pedido de desculpas pelo Manson — ele continuou, não realmente fazendo o pedido — Eu fiz um esforço inacreditável para te suportar desde que você voltou, então estamos progredindo.
sorriu torto.
— Que agradável de sua parte, , me pedir desculpas. Acho que foi a coisa mais doce que você já me disse.
— Eu não sou um monstro — defendeu-se — Você provou que o caso Durden foi mal solucionado. Vamos ter que retomá-lo, daí...
— Eu vou pegá-lo dessa vez — interrompeu-o.
Eles trocaram um olhar. parecia levemente surpreso, impressionado até, e retrucou com um sorriso torto e sarcástico.
— Até onde eu sei, você não assumiu por causa de todo seu passado com a família Durden. O caso Justin...
Ela tornou-se o muro novamente. Levantando os ombros e sem olhar para , interrompeu-o novamente:
— Eu não tenho mais nenhum assunto interminado com eles. O caso era meu, desde o começo, não era? Eu vou assumi-lo dessa vez. E vou colocar o culpado em um lugar bem pior do que o Manson.
— Está fazendo de novo, .
— O quê?
— Agindo como se fosse melhor do que todos.
— Eu nunca disse que era. É algo que vocês concluem. Se simplesmente me consideram tão boa, eu fico boa. É um ciclo, já devia ter aprendido isso, .
colocou o salmão cortado na travessa, com o rosto sério.
— E voltamos ao zero — ele comentou, baixo, e perguntou-a em tom de desafio — Vai mesmo assumir o caso Durden? Eu não quero perder isso por nada.
abaixou-se e colocou o salmão dentro do forno.
— Só perderia se quisesse, .
Quando levantou, estava atrás dela, impossibilitando qualquer tentativa de fuga. Cruzou os braços.
— O novato te acusou de assédio?
Hora da execução. Hora de executar.
— Não sei se foi ele.
— Mas te acusaram? Foi por isso que você veio até mim? Porque eu sou seu porto-seguro?
apoiou um braço de um lado do forno, e colocou o outro no bolso. podia sair dali, entretanto, sabia que ela não o faria. Se tinha algo que sabia sobre , era que se ela pagava para não entrar numa discussão, pagava o dobro para não sair dela.
— Me acusaram. Eu vim até você. Mas não acho que você seja meu porto-seguro, . Você me jogou no Manson.
— Te tirei de lá também — ele ergueu as sobrancelhas, inexpressivo.
— Nossa, muito obrigada — ela deu a volta em e foi para a sala de estar, como se esquecesse o forno.
— Ok, vamos contar — falou , com os dedos esticados, tocando-os e abaixando-os a cada nome que dizia — , , , Marla, Julie... Ei, espera — ele disse com sarcasmo e uma careta surpresa, andando atrás de ? É a ? Onde ela está?
— Cala a boca, — ela retrucou, de costas para ele.
— Chama o para me fazer calar — ele disse, parando no meio da sala e esperando a reação de .
Hora da execução. Hora de executar.
virou o corpo até ficar de frente para , andando lentamente é com os passos largos até chegar à frente dele.
— Eu vim aqui não porque você foi o que me restou. Foi porque ninguém mais abriria a porta para mim, ou sequer me deixaria entrar. Por mais que você me odeie, como diz odiar, você fez tudo isso. não fez isso quando eu fiquei sem-teto, quando minha casa pegou fogo. fez, mas fez merda hoje, depois de eu ter colocado tanta confiança nele, ele ter me traído com todos os sentidos da palavra. Ele é o pior filho da puta. Porque observou tudo acontecer. E não parou.
estava sem palavras.
— Eu não te amo e não te odeio, . Mas eu confio em você. Tenho confiança em você. Porque você pode ser um babaca, estúpido, mas nunca seria tão... Tão... Mau.
engoliu em seco.
— Foi isso que aconteceu?
Ela ergueu o canto do lábio e deu uma risadinha.
— Viu? Eu também caio. A diferença é que, depois de um tempo, aprendi a levantar mais rápido.
— Quem diria, somos dois.
— Eu duvido.
— Você não me conhece.
deu mais um passo em direção a . Podiam ouvir os sons das respirações de cada um. A tensão, o cheiro de frio.
O cheiro de frio.
Ela e eram iguais, só que demoraram muito a perceber isso.
A máscara de estava tão fixa que, quando retirou-a e pôde ver seu interior, aquilo rasgou sua pele.
A máscara de sempre iria pender.
— Você já se sentiu invisível? Talvez não invisível... Mas simplesmente inexistente? Vazio?
— Bem-vindo à minha vida.
— Você me deixaria conhecê-la?
O timer do salmão disparou.
foi até o forno sem dizer mais nada.

conhecia a maneira com que a olhava. Ele costumava fazer aquilo, algumas vezes, o que a incomodava; e ele sabia. Achava que era uma mania dele, algo que ele fazia estreitamente para irritá-la. Chegava a ser angustiante.
Naquela noite, não foi.
— Olha, não considere isso um encontro ou algo do tipo — disse, colocando o prato e os talheres sujos em cima da pia — Mas foi o melhor jantar que eu já tive.
Ela olhou-o com um sorriso fraco, enquanto ele voltava para a sala de entrada. Estava sentada na poltrona próxima à mesinha central, ao som da pior tempestade que Longview já tinha passado em alguns anos.
A hora parecia apenas adequada para ser preenchida com o vazio.
e eram a mesma peça de um quebra-cabeça.
estava sentada na poltrona com as pernas cruzadas como chinês, com um isqueiro na mão. No colo, estava sua câmera tão amada. Tinha medo de excluir alguma fotografia importante, ao mesmo tempo em que queria excluir toda memória.
virou para trás, olhando-a por cima do ombro. esperava o pior. Uma expulsão. Uma briga.
Uma simples pergunta.
O trovão soou alto do lado de fora.
— Você fica lá em cima. Meu quarto é do outro lado do corredor, caso precise de algo — foi o máximo que ele falou.
Todas as luzes se apagaram de repente.
Muros e armaduras caindo.
Ruínas.
Quantas vezes pode se reconstruir a partir de uma estrutura já tão fragmentada?
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
— Obrigada — disse, baixo, acendendo o isqueiro em sua mão.
Uma remota lembrança de um anjo... Que se fez de um monstro.
abriu o armário da sala de estar e tirou um pratinho com três velas em cima dele, presas por suas próprias ceras. Colocou-o na mesa de centro da saleta, e sentou-se em outra poltrona, do outro lado. inclinou o corpo e esticou a mão, para acender as velas com o isqueiro. observava-a através das luzes amareladas, com um meio sorriso fraco.
costumava dar aquele sorriso quando estava entristecida, e encontrava a felicidade em fagulhas das pequenas coisas.
Além da própria chuva, não havia outro ruído sequer.
Cada ex-esposa de espalhava-se pela cidade de Longview. O ex-noivo de também estava em algum lugar lá fora. Aquilo os afligiria em outra ocasião, entretanto, naquela noite, a mansão de fechava-os em outro universo.
Crises.
Caos.
colocou a câmera em cima da mesa de centro. tirou um cigarro de seu maço, e ia esticar o corpo para que pudesse acendê-lo em uma das velas. protestou, arrastando um pouco a poltrona para aproximar-se dele, e acendeu seu tabaco com o isqueiro. A menos de trinta centímetros de distância um do outro, começou a tragar. Mesmo não sendo fumante, não fez qualquer tipo de subjeção, pois não se importava com esses tipos de vício. Aliás, em sua profissão, isso era bastante comum. Não considerava o cigarro um vício entre policiais; aquilo era quase como uma maneira de extravazar. Era como se libertar. Era encontrar a liberdade, respirar inspiração.
Algo do estilo de licença poética, de certo modo.
A pergunta soava no ambiente, dando pequenos beliscões na pele de , incomodando-a. era educado demais para dizer o que queria. A própria mente de a perturbava.
— Eu não assediei ninguém — ela disse, defendendo-se, abraçando o próprio corpo, agora coberto com um suéter cor de creme.
— Eu acreditava que não — ele foi inexpressivo — Também não acho que o fosse capaz de fazer algo daquele tipo. Quer dizer, você acabou de sair de uma licença nada agradável — tragou mais uma vez e colocou as cinzas no cinzeiro — Ele não colocaria você de volta lá.
Tomou alguns segundos para pensar no assunto com mais concentração. A raiva por ter visto com tomou-a de tal modo, que ela não conseguia conceber outra opção.
E se...
— Você acha que pode ter sido da ? A denúncia? — perguntou.
— Não sei. Acho que é algo sério demais para dizer assim, com tamanha convicção. De onde qualquer um poderia ter tirado provas, de qualquer jeito? Digo, vocês não estavam juntos.
olhou-o de lado, com quem dizia ‘não tenha tanta certeza’.
— O que foi que ela fez, afinal? — pareceu querer trocar de assunto.
A moça suspirou e fez uma pausa.
— Quando eu cheguei na casa do e do , eu a vi com o . Não sei se você soube, mas já fazia algum tempo que ela estava com o . Isso foi duplamente pior. deve ter ficado bem chateado.
— Chateado? Ele deve ter ficado puto — disse — Totalmente emputecido. Eu ficaria, pelo menos.
— Já viveu situação semelhante?
Ele tragou mais uma vez, soltando a fumaça logo.
— Uma das minhas esposas me traiu com um amigo. Na noite de núpcias. Quer dizer, já estava traindo antes, mas foi durante o dia de núpcias que descobri.
— Nossa — foi o máximo que ela conseguiu dizer, totalmente sem palavras — Deve ter sido... Difícil.
Difícil? Você tem um vocabulário melhor que esse, .
— Não foi a coisa mais fácil. Por outro lado, até que estou feliz por eles. Casaram-se, e hoje têm um filho. Mesmo assim, desejar que ele crie um chifre tão grande que a cabeça comece a cair seria muita maldade?
Deu mais uma tragada enquanto ria.
— Não. Pessoalmente, não acho.
Ele soltou a fumaça em auréolas que se suspenderam no ar por alguns segundos, até se desfazerem.
— E você deseja algo assim para o ou a ?
deu de ombros.
— Não. Acho que para ele, não. Até porque nem era algo demais. Digo... Não era algo que eu poderia culpá-lo. Já a ... Bem, ela foi bem pior. Sei lá. Não faço ideia. É como se minha cabeça fosse explodir, de tanta informação.
Ela fez um movimento com a mão como se representasse uma explosão.
— Explique melhor, . Faz tempo que tento ler sua mente.
molhou os lábios e ergueu uma sobrancelha ao olhar de lado para , encolhida de frio.
— Ela estava sem blusa, apenas com seu sutiã cobrindo seu tórax, e beijava-o na minha frente e do . Eu sempre gostei da ... Todos achavam que ela não valia nada. Eu era uma das únicas que jurava veemente que era melhor do que muitas que eu conhecia.
Fez uma pausa.
era bondosa. Acreditava que todos possuem algum tipo de capacidade de fazer o bem. Para mim, ela era de um jeito. Na frente de cada um, se modelava, agradando a cada um que lhe passava. Agradou a mim, por muito tempo. E usou-me para conhecer e poder agradar pessoas mais influentes, como você, o , que é o jornalista que tem todo o poder e autoridade da palavra contra nós, a Julie...
— Você realmente gostava assim dela? Então, por que ela fez isso com você?
parecia não compreender. Era para ter sido diferente, não era? Então, por que não tinha sido?
Parecia tão simples perguntar isso. Tão ingênuo.
Mais uma tragada.
— Porque eu me deixei enganar.
Olhou para a fumaça que deixou subir pelo cômodo. Pelas velas e os relâmpagos, o conjunto de gases e veneno pareceu tomar uma coloração diferente. Como se estivesse livrando-se do mal por um pequeno filtro.
Filtrando-se.
Hora de executar. Hora da execução.
— Não se culpe por isso, . Todo mundo erra.
— Eu não posso errar, . Eu já errei demais.
— Você cometeu um erro no trabalho. Foi tudo, não foi? — ele perguntou, enterrando o cigarro no cinzeiro — Permita-se errar fora dele, .
— Não, . Eu não posso me permitir errar... Tudo foi um erro até agora.
Ele encostou as costas na poltrona, parecendo disposto a ouvir o resto. olhou para a janela.
Raios. Incontroláveis.
Era ela quem brilhava lá fora. Estrelas eram muito distantes... Ela descia a terra.
Cruzou os braços do suéter creme, maior que ela, e agora com grande parte de suas pernas expostas. Estava cabisbaixa, encolhendo-se indefesa.
— A sabia de algo que ela não podia saber. E tenho uma grande impressão que ela falou algo para o . Algo que ela não podia. E o pior é que não consigo odiá-la completamente, porque por mais que ela tenha feito isso, não consigo me esquecer de todas as vezes que ela já me fez esquecer tudo que me afugentava.
ficou calado por alguns segundos. Eles se olharam por alguns breves momentos, enquanto ele próprio parecia curioso, e, ao mesmo tempo, acanhado.
Em outras palavras, queria saber de uma vez o que era o tão segredo que contara.
— Ela contou a ele sobre o aborto, eu acho.
— Aborto? Que aborto?
— O de Joe Durden.
— Espera — ele gesticulou para que ela falasse mais calmamente do que já estava falando — Samantha Fox abortou um filho do Joe?
Eu abortei um filho do Joe.
deixou a boca entreabrir-se um pouco, tentando disfarçar e fechá-la de uma vez.
— Muita informação para um dia só, não foi? — deu um sorriso pequeno.
— Espera. Deixa eu me organizar — ele falou, claramente confuso, com o olhar vago para o chão, como se não mirasse nada além de sua própria mente — Você estava envolvida com o . estava com o . Aí, a traiu você e o com o . Daí... Ela contou ao novato que você ia ter um filho com o Durden?
engoliu em seco. Aos olhos de , ela parecia calma demais para uma notícia daquelas. Ela tinha superado aquilo, que agora voltara com toda força.
— Desde quando sabe disso? — foi o que ele perguntou.
— Alguns dias. Quando Joe morreu, durante as investigações sobre sua morte, eu descobri que estava grávida. Eu ia acabar tudo com . Ia até Joe, avisar sobre a criança. Ele não reagiu nem um pouco bem, e já nisso pensei em abortar. Quando ele sumiu... Tive certeza de que era a melhor coisa a se fazer.
— E como você foi até lá sem ninguém saber? Abortar, quer dizer — ele perguntou, ainda em choque. Sua voz estava até estridente. Aquela palavra parecia apenas não se encaixar em todo contexto...
Era uma palavra perturbadora demais.
— Julie foi comigo. Lembra-se de dois dias em que eu fiquei distante, nessa época? Julie me deu cobertura, e eu fui.
... Tem noção de o quão sério isso é? Você deu uma criança para o além, por um homem tão... Tão... Sujo. Impuro.
Ela tocou sua própria barriga de leve.
— Eu não tinha opções, . Joe...
— Você não teria ido para o Manson se estivesse grávida.
— Não fala mais desse lugar, — tornou-se rígida — Por favor.
! — ele gritou, em protesto, assim que um trovão soou, e ficou de pé rapidamente — Por que não para um segundo para pensar no que você fez?
— Cala a boca, , você está fazendo de novo! — ela retrucou, também ficando de pé.
— Fazendo o quê?
— Agindo como se fosse o senhor da verdade.
Pausa. Ele suspirou, extravazando sua raiva. Desviou o olhar de , e comprimiu os lábios.
— Você podia ter falado para mim, para a Marla...
— Para vocês? Ah, pois sim! — continuou com o volume elevado de sua voz — Para quê eu faria isso? Como se vocês pudessem ser assim tão úteis! Ou melhor... Prestativos.
— Nós te apoiaríamos.
— Meu caralho que você ia! — ela pausou e respirou fundo — Eu contei isso para , com alguma esperança que ela não contasse a ninguém. Espero que, pelo menos em você, eu possa confiar.
molhou os lábios.
— Claro que pode, .
— Mais uma coisa. Pare de chamar o de ou novato.
— Achei que estivesse com raiva dele.
— Estou. Mas não vou faltar com o respeito. Ele odeia ser chamado assim.
assentiu com a cabeça, derrotado.
— Desculpe.
— Eu também. Porra! — ela xingou alto a brisa que soprava, e riu — A gente não pode ficar quinze minutos sem discutir?
— A gente ter ficado cinco já foi quase um recorde. Mas quanto mais discutimos, mais ficamos próximos. Acho que compensa.
Ela deu uma risadinha. Trocaram um rápido olhar, ambos de pé, em silêncio.
— Você... Tem algum plano? Para quando for sair daqui?
— Eu vou custar a sair daqui?
— Fale sério, . Eu quero ver cada um desses seus surtos.
— Só perde porque quer, .
Ela engoliu em seco.
— É melhor você ir subindo — disse, desviando seus olhos dos de , e indo até a mesa de jantar, sentindo suas pernas tremerem antes de subir as escadas.
Os raios.
Imprevisíveis.
O toque quente de tocou-lhe a mão. De costas, ela podia sentir sua respiração na nuca. Não protestou. Queria que tocasse cada centímetro de sua pele, explorasse cada mínimo detalhe de seu corpo.
Suas pernas mal sustentavam o peso de seu corpo. Seu tronco estava inclinado para frente, as mãos segurando a beira da mesa, arranhando de leve a superfície de vidro. Ele estava com os lábios na altura de seu ouvido, os lábios roçando contra sua cartilagem.
— Acredite, não é porque eu quero.
O queixo dele tocou-lhe o ombro, sutil. fechou as pálpebras, entregue aos próprios instintos primitivos.
— Você não sabia, eu estou aqui para ficar.
Com essa promessa, a mão de contornou o dorso e o pescoço de , virando-a lentamente para seu rosto. De início, não tocaram nada além dos narizes e de leve os lábios um do outro. Um óbvio sinal de negação.
Logo, mordeu o lábio superior de , puxando-o de leve para si, dando-lhe total permissão.
Ali, ele soube.
É hora do show.

Cada toque bruto de lhe dava a certeza de o quão longe ela tinha chegado. Desde ser presa, até acabar com sua casa em chamas, ir para a casa de um desconhecido e agora estar ali.
A loucura tomava conta da mente de . Dava-lhe a energia que precisava para prosseguir.
O quão maior sua mente pode ser, em relação a tudo que você ainda tem?
A mão grande de a puxava pelo quadril, toda para ele, não querendo dar chances para que fugisse. A outra ainda estava no pescoço fino da moça, a abraçando pelo mesmo.
Tão forte, com pouco carinho.
Ele era urgente. Precisava daquilo há tanto tempo, que podia considerar-se um viciado finalmente tendo sua chance de cair em tentação. Beijava devagar, com sua língua passando lenta pela boca da moça, sendo retribuído com toda fúria de uma mulher como .
Forte. Firme. Indomável.
Ela tinha a mão em seu peito, com as unhas roçando sua camisa, e a outra em seu braço, repousada. tinha todo o poder sobre ela, algo que ele nunca percebera que poderia ter.
nunca se deixava submeter, menos quando se tratava de satisfação própria. estava no controle porque aquilo a satisfaria.
Cruel, de certo modo. Incrivelmente sexy.
Estavam quase perdendo o ar. Seus fôlegos escapavam em forma de furacão.
Ele sugou seu lábio, de modo que ela abriu os olhos lentamente ao ter seu beijo partido. Queria bem mais do que apenas um beijo tão feroz, e que deixava tanto a desejar depois dele.
— É melhor eu subir — ele disse, concordando com a afirmativa de .
Ela ainda estava cambaleante. Não por ter sido algo incrivelmente intenso, mas por ter sido inesperado da parte de .
Não o deixou ir. Sua cabeça estava levemente abaixada, mas ergueu o olhar.
— Você é um idiota.
Cravou suas unhas no ombro dele, e sussurrou perto de sua orelha.
— Sempre sou eu quem tem que fazer o trabalho duro.
Outro raio soou.
Um furacão.
Essa mulher é um verdadeiro furacão.
levantou-a pelas coxas quase nuas, com os pelos eriçados. Sua carne era quente e macia, e seu toque a deixava cada vez um pouco mais obediente a ele. Estava branda. Limpa.
Corrompa-a.
Agora.
Estava erguida em seus braços. apertou o músculo traseiro dela, que se contraiu apertando mais as pernas da moça em seus quadris.
Sentou-a em cima da mesa de vidro. Assim que estava firme novamente, ela tornou a levantar a cabeça, procurando a boca de para que lhe desse um beijo com os lábios encaixados, um sinal certo de que não sabia o que estava fazendo. Era algo além dela que tinha o controle.
Ou não tinha.
Uma mão de subiu pelo quadril dela, e alcançando o cós de seu short, passou pelas coxas dela até alcançar o botão do jeans. O beijo voltou com todo fogo que tinha antes, ansioso.
Abriu o botão do short e puxou-o, arrastando o jeans pelas coxas voluptuosas de . Logo, ela deixou-se relaxar, enquanto ele tirava sua peça de roupa e jogava-a no chão da sala.
Aqui? Agora?
Certamente que não. Ele não entregaria o ouro tão fácil.
Seus busto e ventre ainda estavam protegidos pela larga blusa preta, mas suas pernas estavam nuas, com sua roupa íntima. Fechou os olhos por instinto, enquanto o beijo de tornou-se mais lento. As línguas dos dois tocavam-se dentro de suas bocas, mas foram separadas quando ele passou beijar seu dorso.
A blusa desceu até o começo de seus seios, mas não pareceu focar isso. Uma de suas mãos alisava a coxa de , enquanto a outra ia lentamente encaminhando-se para a virilha da moça. As pernas ainda estavam abertas, por ainda estar entre elas, não apertadas contra ele.
Um som abafado fugiu dos lábios de quando ele ameaçou tirar sua calcinha. Um murmúrio vazio. Os olhos fechados, o corpo relaxado.
A mão de tocou sua virilha. Ele não tirou sua calcinha; apenas abaixou-a.
Sua outra mão foi até o dorso de . Ela capturou um pouco de ar que lhe restava.
Resista.
Você está passando dos limites.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
Espere a escuridão te invadir, assim poderá diferenciá-la da luminosidade.
Os dedos de chegaram até seu clitóris, tocando-a com delicadeza, como um anjo estimulando-a aos poucos. Suas veias corriam o sangue mais rápido, e seu coração pareceu relaxar por um seguindo.
Nirvana.
Um gemido baixo escapou-lhe. tinha uma boa mão para fazer muitas coisas, mas, definitivamente, nada jamais poderia se comparar àquilo.
Os beijos tinham cessado enquanto ele a deixava cada vez mais excitada para o que viria. Ele não chegou a penetrá-la com seus dedos, não, ele nunca faria aquilo.
Queria a tortura. A maldade.
O furacão.
O toque a eletrizava. Nunca animara tanto uma mulher antes.
Tudo que ele tinha... Apenas a deixava mais ansiosa.
— Ótimo — ela murmurou.
Em outras palavras, aquilo era para que ele avançasse.
O corpo de era forte. Se ele quisesse, podia ter quebrado-a ao meio há muito tempo. Aquilo só a deixou cada vez mais animada.
Você sabe as escolhas que faz. Sabe como aquilo vai acabar.
Sabe exatamente dividir o que quer, do que precisa.
Excesso de luz pode te cegar tanto quando o excesso de escuridão.
Dos ombros do homem, as mãos de caíram lentamente por todo seu peito e barriga, delineando um caminho sem volta.
A queda.
Enquanto ele terminava de passar sua calcinha por suas coxas, totalmente extasiada, deitou lentamente o corpo na mesa. O vidro estava gelado, mas suas pernas nuas estavam praticamente inteiras para fora da mesa.
Choque.
As costas de estavam erguidas, fazendo seu corpo subir e seus ombros e quadris ficarem com maior contato com a mesa. Suas mãos bagunçavam o próprio cabelo; uma maneira de segurar qualquer "murmúrio" demasiado alto. costumava dizer que o que mais o excitava era como ela gemia tão alto que qualquer um na cidade seria capaz de saber como ele a deixava fora de sua mente.
Se era capaz de deixá-la daquele jeito, a faria tornar-se uma perfeita louca.
Com os olhos fechados. Instintos.
Ouviu o som plástico.
— Me deixe saber se eu te machucar — ele disse.
— Não se preocupe com isso — ela disse quase em lamento.
— Você não entendeu.
pôde senti-lo segurar seus quadris totalmente nus com força, incisivo.
— Eu quero que você sinta a dor que eu senti todo esse tempo... Sob sua sombra... É só você dizer que sim.
— Sim... Sim... — ela murmurou lentamente.
A primeira investida foi a pior. A surpresa — surpresa? — do ato chegou a deixá-la em alerta. O gemido foi tão alto que talvez tivesse ultrapassado os raios.
Então, as trevas.
Ah, as trevas.
Ergueu as costas e segurou forte seu cabelo.
Foi a melhor coisa que já sentiu. Sem dor. Só o paraíso.
— Eu quero que você implore. Implore por mim. Como você implorou para que eu partisse. É só você dizer que sim.
— Sim!... Sim!...
Segurava seus cabelos espalhando-os pela mesa. Bagunçava-os.
Mais uma vez, ele invadiu-a por inteiro.
Fundiu-a.
Corrompeu-a.
— Me odeie, mas nunca se esqueça disso...
Fez uma pausa ao sair de seu corpo.
— É só você dizer que sim...
— Faça. Faça quantas vezes quiser...
passou as mãos pelas coxas de , delineando cada centímetro de seu caminho.
— Eu quero você. Agora.
Com um sorriso, investiu contra o corpo dela novamente.
E cada segundo parecia eterno.
Segurando suas coxas, ele investia múltiplas vezes.
Estava nu no meio da sala, enquanto só restava em sua blusa, a essa altura toda suada, levantada com seu ventre à mostra.
Seu vai e vem fazia o corpo de levantar-se como se ele estivesse em cima dela. Dançava a cada batida de seu movimento.
Tão boa para aquilo.
Corrompida.
Abuso.
Quando não aguentou mais, liberou-se. Sentiu-se livre sobre aquilo.
O trabalho sujo. Tinha pagado todas suas dívidas.
em cima de sua mesa de jantar, deitada seminua. Maravilhada. Não acreditava que tinha realmente feito aquilo.
Era outro universo.
Quando terminou, achou que aquilo seria o fim. Que tinha acabado com o que precisava. Tirou a proteção e levantou a cueca que jazia no meio de suas pernas, na altura de seu joelho. E deu um suspiro aliviado.
Pobre garoto.
reergueu-se devagar. Os cabelos no rosto, um sorriso torto nos lábios. A blusa caindo por seus ombros.
— Minha vez — ela murmurou, ficando de pé e fazendo a mesa agitar-se ao seu movimento.
Os cabelos davam-lhe uma aparência selvagem. O corpo magro, porém, farto, lhe proporcionava uma hipnose sobre a população masculina.
fixou seu olhar naquela cintura fina, em seus quadris largos e coxas grossas, em seu busto maior do que a maioria das mulheres da cidade.
Ficando novamente na frente de , ela levantou a cabeça e direcionou o rosto para a orelha de , sugando seu lóbulo enquanto sua mão estava do lado de sua cueca.
Os dedos agarraram-se à gola de sua camisa e puxaram para que a seguisse até o sofá. Era espaçoso o suficiente para que ele coubesse perfeitamente nele, deitado.
Quando os dois alcançaram o móvel, jogou o corpo de contra as almofadas. Ela caiu com uma risada. Ele envolveu-a com suas pernas e deitou-se em cima de seu corpo, puxando a blusa dela por cima de sua cabeça. O sutiã de , branco, revelou-se, com rendas.
O anjo.
afundou o rosto em sua branda carne. Primeiro, dando leves chupões em seu pescoço, de modo que não deixaria qualquer marca. Ela virava o rosto com um sorriso nos lábios, e mordendo o inferior quando abaixou a cabeça passando por seu dorso. Espalhou beijos por todo ele, até que alcançou a renda branca.
Mantinha a moça em suas mãos ao segurá-la pela cintura. Deixou-a ter a chance de escapar quando as direcionou até a abertura do sutiã branco, que quando se soltou, revelou os seios tão luxuriantes de .
deu beijos mais demorados no seio de , até chegar em sua extremidade e beijá-la ainda mais longamente ainda.
Quando terminou, direcionou o rosto para o caminho entre os seios de . Desceu o rosto por toda sua barriga. Uma de suas mãos massageou um dos seios dela.
Acreditava que estava entregue.
— Minha vez — ela repetiu.
Ergueu o corpo e girou-se, fazendo com que também girasse, ficando por baixo. Ainda um pouco atônito, ela agarrou a barra de sua blusa e tirou-a, passando-a por cima de sua cabeça.
Em meio à falta de luz, na precária luminosidade de velas, ela enxergou tatuagens na pele de . Não conseguiu reconhecer o desenho, mas aquilo a excitou ainda mais. Amava tatuagens, e adoraria ter a coragem de fazer sua própria.
O corpo dele era o símbolo perfeito do pecado.
arranhou seu peito e músculos do tronco, enquanto tinha seu corpo deitado sobre o dele. Seus seios em contato direto com a pele nua de eram algo difícil de acreditar.
Era real.
Levantou o corpo quando alcançou a barra da cueca de . Colocou os polegares dentro dela, atrás do corpo. Fez uma corrida com os polegares passando por todo quadril de , e chegando à frente, começou a abaixá-la lentamente.
Ele já estava demasiadamente animado. envolveu-o e deu a ele o gosto de sua própria maneira de animar, com seu toque quente em algo que já estava fervendo.
— Eu... Eu preciso me vestir... — ele disse, com os olhos semicerrados.
— Onde está?
indicou uma caixinha de madeira em cima da mesa de centro. Esticando a mão até ela, abriu-a e pegou um pacotinho plástico guardado na mesma. Abriu-o com os dentes e vestiu .
— Diga... O que você quer?
Ela ficou exatamente em cima do quadril dele, sustentando todo seu próprio peso nas pernas dobradas que o envolviam. Não o tocava.
— Eu... Eu quero... Eu quero tudo.
Abaixou o corpo lentamente. Dessa vez, estava no comando.
Mas era que agradecia por isso.
Ela controlava os movimentos. Por mais que ele a guiasse, segurando suas pernas, sabia que não adiantava.
Ela era a líder. Ela quem mandava, dava qualquer ordem.
— Você realmente me quer? — perguntou .
Ele não conseguia responder. O rosto parecia totalmente alheio ao mundo.
Nirvana.
— Você realmente me quer? — repetiu.
— Eu quero. Agora.
Guiou-o pelo mesmo caminho que ele havia a guiado. Seus movimentos eram repetitivos, e segurava a barriga com os músculos contraídos de para que tivesse apoio.
Ela era afável. Totalmente o inverso dele.
Ela o queria saciado.
O fim estava próximo. Ele soltou-se de novo, em um sonoro gemido.
Deixe ir.
deixou seu corpo cair sobre o dele. A queda sem fim, até chegar à paz.
O corpo de estava em total deleite. , por outro lado, parecia mais exausta.
O furacão.
E, enfim, a paz.

O som dos raios já tinha parado quando acordou. A chuva continuava caindo, como uma trilha sonora baixa para sua noite.
dormia sobre ele, usando a blusa cinza que ele usava durante o jantar. Serena, não fazia nenhum som enquanto estava adormecida.
Com cuidado, virou o corpo dela para que deitasse no sofá, e ele próprio levantou-se. Estava com suas calças, sem as cuecas.
Depois de ter atingido o ápice na noite anterior, e ele trocaram algumas poucas palavras, até que os dois dormissem em cima do sofá.
Acendeu um cigarro enquanto andava a caminho da escada, subindo-a e deixando a fumaça para trás. Foi até seu quarto, abriu a porta e adentrou o cômodo. Tragou enquanto pegava o telefone sem fio no criado-mudo, e andou até a varanda. Sentou-se na cadeira e admirou a rua por alguns segundos.
A fumaça que saía do cigarro não parecia tão cinzenta. Talvez fosse porque não enxergava mais tudo tão escuro.
Tinha um compromisso.
Por seu peito, e na parte da frente de seu ombro, pássaros voavam rumo ao infinito.
Para fugirem em uma decadente névoa de cigarro.
Soltou a fumaça pela boca e puxou-a novamente pelo nariz, fazendo uma pequena cortina de fumaça entre essas duas regiões de sua face. Discou o número e colocou o telefone no ouvido.
Um toque.
Tudo de cabeça para baixo.
Dois toques.
foi capaz de fazer uma burrada daquelas?
Três toques.
Não. Provavelmente, armaram para ele.
Quatro toques.
. era a fonte do problema...
Cinco toques.
Alguém tinha que dar um jeito nela.
Seis toques.
Atenda.
— Alô? — perguntou a voz feminina, que expelia óbvia fadiga, e mesmo estando do outro lado da cidade, conseguia senti-la.
— Bom dia, Bronx.
Tragou mais uma vez enquanto Marla murmurava algo com pouca animação.
— Sabe que horas são? — ela perguntou.
— Cinco. Você ia acordar daqui a meia hora mesmo, para irmos todos espalhar alegria nos escritórios de homicídio da delegacia.
— Você me acordando cinco da manhã, pode ter certeza de que a coisa que eu menos vou espalhar vai ser alegria — ela disse, parecendo ter um pequeno sorriso moldado em seus lábios — Por que me chamas?
Ele suspirou, soltando a fumaça de qualquer jeito.
— Ela está aqui. Porra, Marla, estou morrendo de vontade de dizer.
Marla parou tudo que estava fazendo. Mediu bem suas palavras para dizer:
— Não pode dizer. Não enquanto não tivermos certeza sobre ela. Se não disse até agora, não vamos dizer nada.
— E quando teremos?
Marla demorou alguns segundos para responder.
— Quando um de nós vir.
— Sabe o que eu acho? Que isso é uma idiotice. Julie pode estar errada.
— Sabe que ela não está.
Você pode estar, Marla.
Bronx riu.
— Eu, menos ainda.
— Eu só sinto que é muita injustiça.
— Você nunca se importou tanto com a .
Ele calou-se por um segundo. Em um sonho, ele era . Um homem responsável, totalmente impassível. Não se importava com opiniões alheias, e, de vez em quando, emoções. Era bem-sucedido, e mulheres lhe direcionavam o rosto quando ele passava.
Alguém sonhava aquilo.
— Ela nunca precisou tanto de um ombro amigo.
Era o sonho de outro alguém...

This hurricane chasing us all underground…


Capítulo 18 — The sharpest lives

You're the one that I need, I'm the one that you loathe...

Em 1960, Edward Lorenz, um meteorologista norte-americano, fez uma grande descoberta enquanto calculava mudanças decimais e suas consequências em massas de ar. Ele observou que essas pequenas diferenças eram capazes de causar uma seguinte cadeia de acontecimentos bem diferentes. A partir disso, Lorenz formulou equações que mostravam o ‘efeito borboleta’ — pois, segundo ele, o bater de asas de uma borboleta no Brasil causaria, tempos depois, um tornado no Texas.
É a teoria do caos, segundo a qual pequenos fatores aparentemente insignificantes podem mudar totalmente o futuro.
É simples.
É eficaz.
É infinito.
É incrivelmente verdadeira.
Imagine que uma pessoa, aos dezoito anos, pode ir para duas faculdades diferentes. Dependendo de sua escolha, ela pode conhecer o amor de sua vida, encontrar a felicidade, e acabar tendo dificuldades financeiras no futuro. Ou, talvez, poderá ser incrivelmente bem sucedido, tendo amizades frágeis e nunca alcançar a plena felicidade.
Pequenos fatos causam uma cadeira incalculável de acontecimentos, alterando toda uma trajetória de vida.
O caos está na essência de tudo que nos cerca.
Foi aquela noite que desencadeou uma série de devastações nos dias seguintes. E o mais apropriado será observar o dia que raiou de todos os pontos da história.

Acorde.
O sol ainda não morreu.
O quarto era avermelhado. Talvez fosse pela coloração das paredes, ou a luminária do lugar que desse essa impressão.
Ela não podia saber. Não sentia seu corpo.
Era como um sonho ruim.
A porta foi aberta. Foi quando percebeu que estava deitada na cama.
Ele veio andando devagar, depois de fechar a porta com o pé. Cambaleava.
Soube quem era.
— Joe... — murmurou.
— Shh... Vai ser mais fácil de esquecer se não falar nada.
— Joey... — ela continuou, com os olhos quase virando.
Ele posicionou-se em cima dela. Deixou-a sem saída quando passou as pernas por volta da moça, e colocou cada mão do lado de sua cabeça.
— É minha primeira vez — ele disse — Não como você imagina que eu queira dizer.
Ele abaixou o rosto, e deu beijos pequenos no pescoço de . Ela tentava resistir, levantar, saber o que estava acontecendo, mas seu rosto simplesmente caiu. Ela não tinha forças.
Algo a dizia que era para ela estar dormindo.
Ele levantou o tronco e ficou de joelhos, abrindo o zíper da calça e o cinto.
— Joe... — ela murmurou, sem forças.
— Cala a boca — ele retrucou.
Os movimentos começaram. De início doeram quase insuportavelmente, entretanto, depois da quinta investida, ela já estava anestesiada de novo.
‘Você não confia em mim?’
Era como ser parte de um jogo.
‘Acredite, isso dói mais em mim do que em você.’
Joe controlava-a. era seu avatar.
‘Eu sei que você quer, e seria melhor se você parasse de tentar resistir.’
Estava totalmente à sombra de seus controles.
‘Você está gostando?’
Ele a invadia. Aquilo doía por outro motivo.
‘Você pedia. Sabe disso. Você sabe que provocava.’
A visão mudou-se.
era uma mulher de vinte e cinco anos. Estava de pé no canto do quarto. De onde estava, podia ver a câmera. Via Joseph Durden estuprando-a.
Parou para pensar um segundo.
Ela o amava. Ela certamente faria aquilo com ele, em outras circunstâncias.
Aquilo era violação interna. Apenas.
Queria parar aquilo... Não podia. Estava presa em si própria.
Colocou as mãos na frente da boca e chorou.
Ele a feria. E ria disso.
Ela o amava tanto...
Era divertido, Joe? Era tão bom assim?
Valeu tanto à pena perdê-la por isso?
Você podia ter aquilo se quisesse, Joe. Podia tê-la.
Se tivesse dito as palavras certas, tudo estaria bem. E ela seria dele...
Ele parou por um segundo. A adulta ficou em silêncio.
Joe olhou para ela de lado.
— Isso vai ficar sempre com você, não vai?
Ela não respondeu.
— Você sempre será a vadia corrompida.
Vadia.
Corrompida...
— De pouco a pouco... Posso entrar em seus sonhos.
Saia.
Emergência.
Aperte os cintos, estamos fazendo um pouso forçado.
Queda. Queda.
Ejetar.
Ejetar!

Quando acordou na manhã seguinte, em fuga de um terrível pesadelo, teve dificuldade de processar tudo que havia acontecido a ela.
Apertou os olhos, e abriu-os rapidamente. Não fez qualquer outro movimento a não ser indicar suas pupilas por todo seu campo de visão. A luz do sol tomava conta de todo ambiente, causando uma pequena e breve irritação em seus olhos, que custaram um pouco a se adaptarem.
Percebeu que não vestia nada além de suas roupas íntimas e a blusa de .
Vazia.
A sala estava vazia.
Ouviu o som de algo sendo fritado na cozinha.
O céu parecia ensolarado, ou, pelo menos, sem nuvens de chuva que poderiam tornar o dia mais escuro. O frio não era mais tão forte; apenas dava uma brisa um pouco gélida, que deixava o tempo mais fresco.
Um arrepio tomou conta de seu corpo quando ela se levantou e foi em direção ao segundo andar, para onde provavelmente tinha deixado sua mala. Quando chegou até o quarto de hóspedes, abaixou o corpo e abriu um zíper, para pegar uma caixinha azul.
Ao abrir a caixa, encontrou várias pílulas brancas e de mesmo tamanho, pequenas o suficiente para que não precisasse bebê-las com água. Pegou a caixa, uma calça moletom e uma bolsinha com sua escova de dente, e foi até o banheiro.
Colocou a pílula em cima da língua e abriu a torneira, fazendo um formato de concha com as mãos, para inundá-las de água para que pudesse tomar o remédio.
era uma das poucas pessoas que ficava na lista branca mental de .
Ergueu a cabeça e olhou para seu reflexo, passando de leve a mão por sua pele.
Sem rugas.
Sem olheiras.
Sem cansaço.
Pelo menos, era o que ela via. Claro que as olheiras não tinham sumido de uma hora para a outra, e ela sabia disso.
A visão que tinha de si mesma era outra. Estava mais jovem.
Escovou os dentes, jogou o cabelo para o lado, sem penteá-lo, e vestiu as calças. Quando saiu do banheiro, desceu as escadas, pegou a câmera, que estava desligada, provavelmente sem bateria, e foi para a cozinha.
estava à bancada, comendo ovos com bacon.
— Bom dia — ela cumprimentou-o.
— Bom dia, Bela Adormecida — ele retrucou, ficando de pé — Eu já ia conferir se você estava viva. Vai querer comer o quê?
— Um sanduíche já me deixaria com energia, obrigada — ela sentou-se na cadeira e ficou de frente para a bancada — Perdi a hora. Gosto de acordar com despertador.
— Eu podia te gritar quando desse a hora.
— Não, não podia — ela brincou, pegando uma maça na fruteira e dando uma mordida.
Dando uma rápida olhada nela, perguntou:
— Por que está parecendo que alguém levantou o sofá e te jogou dele?
— Aquele lindo e maravilhoso anjo da noite chamado ‘insônia’.
— Você dormia que nem uma pedra mais cedo.
— Custei a dormir de madrugada. Só consegui de manhã.
abriu a geladeira e pegou os frios, e foi em direção ao armário.
Sua memória era seu pior inimigo.
— Quer café? — ele perguntou.
— Sim, o mais puro possível — ela disse, em breves devaneios enquanto ele a servia o líquido em uma caneca da mesma cor que a própria bebida.
Olhava fixamente para um jornal dobrado no canto da bancada.
Now Longview.
— Por que não contou a ninguém sobre suas tatuagens? — perguntou ela, tentando desviar o olhar dos papéis dobrados e ignorados.
O ‘o quê?’ de foi tão surpreso que algumas coisas do armário caíram em uma cascata. aguentou uma risadinha, enquanto ele reunia as coisas do chão e perguntava:
— Por que você quer saber disso?
— Curiosidade.
— Achei que não tivesse conseguido vê-las ontem.
Ela tomou mais um gole, quando tudo para que seu sanduíche fosse feito já estava em cima da mesa.
— Vi de relance. Mas o que essa sua tatuagem tem de mais? Quer dizer, são pássaros. Andorinhas. Voando. É até meio gay, se você parar para pensar.
— Depois de ontem você ainda ousa me chamar de gay? — perguntou, olhando para ela pelo canto do olho.
Envergonhada, não falou nada e tomou mais dois goles de café.
— Cada andorinha é uma ex-mulher minha.
Ela quase cuspiu o café que estava prestes a descer por sua garganta.
— Desculpe? Espera, espera... Me explica — ela pediu, pegando finalmente os pães e os frios, para formar seu sanduíche.
— A andorinha é o pássaro que simboliza o amor. Cada vez que me divorciei, fiz uma andorinha.
— Devia ter mais duas aí.
— Boatos, são apenas boatos. Só não fala para ninguém, pode ser? — ele disse, com um pequeno sorriso em sua defesa — Mas e você? Vai se tatuar um dia?
— Não sei. Quer dizer, eu até quero, mas não faço ideia do desenho. Queria algo que eu nunca vou enjoar, sabe? Algo que me represente.
— Uma... Serpente?
— Que criativo, — ela tomou mais um gole de café.
Os dois comeram alguns pedaços de suas comidas, evitando os olhares um do outro.
— Sabe, eu prefiro quando a gente briga — comentou, limpando a boca com um guardanapo — Pelo menos nessas horas a gente tem assunto.
deu a língua para antes de terminar de tomar seu café. O silêncio prevaleceu mais uma vez, e, dessa vez, bem mais cheio.
— Acha que aquilo da é verdade? — perguntou, cruzando os braços.
— Do quê? — fez pouco caso.
— Do aborto. Acha que ela falou para o ? Será que não pode ter sido um mal-entendido?
O jornal.
— Tipo o quê? — ela pareceu se irritar um pouco — Como pode ter sido um mal-entendido?
— Você podia dar um desconto para o garoto. Ele só caiu em uma isca.
ia levantar da cadeira, quando surpreendeu-o com uma pergunta:
— Você cairia?
Ele quase caiu no chão. A cadeira escorregou, produzindo um som estridente e irritante.
— Como é?
— Você cairia? Na isca da , ou de qualquer mulher como ela?
A matéria.
— Ainda não consegui entender.
— Conseguiu sim. Só não quer responder, então está enrolando e pedindo para eu repetir.
— Ok, ok. Não, provavelmente não. Porque eu sei me controlar. Me controlei há três anos, com você.
— Está chamando o de fraco?
— Não. Quero dizer que ele não te conhece bem, nem conhece a . Ele não faz ideia de como é aquela delegacia. Ele é peixe fresco, não conhece a região, nadou muito perto da margem...
— Que poético, .
— Tenho meus momentos. Vamos nos preparar logo, daqui a pouco vamos nos atrasar. Vou deixar você na delegacia. Preciso resolver uns problemas.
O telefone de começou a tocar, em cima da bancada. Ela pegou-o, olhou o número e negou a ligação.
A matéria atrasada.
— Quem era? — pegou os pratos vazios e colocou-os dentro da lavadora de louças.
.
O fim.

— Ninguém importante — ela não olhou em seus olhos.
Voltou a observar o jornal.
pegou-o enquanto ela não conseguia desviar os olhos do papel.
— Quer ler a matéria do ? — ele perguntou.
— Meu nome está nela. Pretendo ler.
, eu não acho...
— Me dá o papel, — ela exigiu, sem fazer a voz muito firme, e sem se levantar.
— Não é melhor você...
. O jornal.
...
— Por que você não pode simplesmente...? — ela perguntou, levantando rápido e indo até , ficando na ponta dos pés para conseguir alcançar as mãos dele, que tinham erguido o jornal para o alto, para que não pudesse pegá-lo. Quando ela estava praticamente escalando-o para agarrar um simples pedaço de papel, ele desistiu e deu-o a ela.
— Vou tomar banho — ele informou, com as mãos erguidas como se estivesse se rendendo, enquanto tinha dado as costas para ele para poder folhear o jornal em paz — Se quiser tomar também, vou ser rápido.
Página quatro. O quadro principal.
Vivendo com o inimigo’.
Ejetar.
Franziu o cenho.
— Eu vou. Não tenha pressa — disse, enquanto lia os parágrafos que seguiam.
Ele seguiu pelo corredor, olhando para trás por um momento, para .
Tão frágil.
Um furacão.
Um furacão em ira.
foi tão idiota a ponto de publicar uma coisa daquelas?

Talvez algumas pessoas não possam reconhecer, mas há um filme que conta a história de uma jornalista que faz três dias de recolhimento de informações com um homicida acusado também de estupro. No filme, a série de fatos é confirmada, porém, outra perspectiva da história é suficiente para inocentar nosso herói. Portanto, a verdade prevalece.
Tal filme, chamado A Vida de David Gale, é quase um retrato do que vivi nos últimos dias. Com algumas exceções, certamente.
Convivi com oficiais brilhantes, como , Julie Stoner, Marla Bronx e a tão conhecida . A última, infelizmente, foi a que mais nutriu minhas expectativas, e a que menos as correspondeu. Durante o tempo em que trabalhei na delegacia, presenciei dois assassinatos e um suicídio. Em nenhum deles assumiu os casos ou sequer participou de sua investigação. As pessoas que tiveram mais significativo trabalho e mais merecem mérito em cada caso foram os três membros da polícia citados. foi a principal mente pensante do grupo, enquanto Marla preocupava-se com as provas e Julie comandava. Além disso, houve ainda a ajuda de , química que fez uma significativa descoberta no primeiro assassinato — de Samantha Fox. A presença de deixou a desejar, e após a confissão de Jacqueline Durden como autora do crime, de modo tão melodramático e, de certo modo, planejado, o caso foi encerrado. Resta a nós a pergunta: ela ainda pode ser chamada de Serpente Vigilante, ou esse será o nome que representará apenas o ápice de sua carreira, que ficará esquecido no tempo como soldados de uma guerra perdida?


teve vontade de jogar o telefone do outro lado do quarto.
tinha ignorado-a?
Acalme-se, . Ficar nervosa pode ser perigoso. Pode piorar as coisas.
Claro que ela não ignorou. Ela nunca faria isso.
Ela só... Não podia atender na hora.
É, foi isso.
Deve estar brigando com o . Se for isso, vai poder voltar para casa, e tudo vai voltar a ser como era antes.
Estava tudo bem.
Ou quase isso.
Não, não estava tudo bem.
Pegou o telefone e procurou os contatos relacionados a . O máximo que conseguiu achar foi , Julie Stoner, e .
Precisava de outro número.
Só tinha uma pessoa capaz de fazer o que ela precisava.
Confiança.
Mandou uma mensagem de texto para Julie. Pediu o contato, e logo recebeu sua resposta.
Discou e esperou que fosse atendida.
— Alô?
— Bom dia. Aqui é a , amiga da .
A voz pareceu travar.
— Sim?
— Eu preciso te falar uma coisa.
Um breve silêncio de Marla.
— Sou toda ouvidos.
.

A sala estava clara. O único móvel era um sofá.
Ramona estava sentada em cima dele. Olhava para a janela, e tragava um cigarro.
Aquilo deixaria menos culpada. Teoricamente.
Cena.
O cigarro pendia entre seus lábios. Vestia uma blusa branca, de alças, que delineava bem seus seios, e um short jeans azul, e também um cardigã cinza.
Levantou e apoiou os cotovelos no parapeito da janela, o corpo inclinado. Pegou o cigarro com o indicador e o dedo do meio, soltando a fumaça para fora da janela. estava no andar de cima quando a porta da casa foi aberta.
tinha recebido uma mensagem de um número desconhecido, pedindo para que ele fosse para casa.
Adentrou o lugar sem saber que Ramona estava ali. Os cabelos dela estavam presos, em um coque sem jeito que deixava alguns de seus fios loiros escaparem.
— Oh. Desculpe — ele disse, quando a viu tragando seu cigarro — Quem é você?
— Por nada. Meu nome é Ramona.
— Não perguntei seu nome. Perguntei quem é você.
A fumaça escapou-lhe os lábios novamente.
— Sou uma amiga de . Quer um cigarro?
— Não, obrigado. Não fumo. Ela sabe que você está aqui?
Ramona tirou as cinzas do cigarro em um pequeno cinzeiro.
— Sabe. Você, quem é?
— Sou ex-noivo da . .
— Eu sei disso. me encontrou aqui ontem à noite, e parece não ter se importado com minha presença.
— O que está fazendo no nosso apartamento?
— Não seja dramático, . Quando souber a verdade, vai me agradecer.
— E o que está fazendo?
— Provavelmente, sexo.
quase caiu. Apoiou uma mão na parede, quando sentiu suas pernas fraquejarem.
— Com quem?
— Bem, com quem ela quiser. Na verdade, é provável que esteja com o . Mas não posso ter toda certeza.
— Ramona, não é?
Ela assentiu.
— Me dê um cigarro.
— Achei que não fumasse — ela disse, estendendo um cigarro para ele.
— Nunca é tarde para um novo vício.
Ela inclinou seu cigarro aceso para acender o de . Nesse momento, houve uma intensa troca de olhares entre os dois. E um par de lábios com o canto erguido.
— Você quem mandou a mensagem? — ele perguntou, dando a primeira tragada de sua vida. A fumaça escapou por seus lábios em uma névoa confusa, bem diferente da de Ramona, que parecia seguir um caminho pelo ar em que viajava.
— Fui eu, sim — ela respondeu — Aliás, mais tarde, vou querer falar com vocês três.
— Que três?
— Você, e .
— Sabe onde está a ?
Ramona fez que não, tragando mais uma vez, e completando após liberar a fumaça pelo canto da boca:
— Preciso descobrir. Mas, por enquanto, não.
Ele assentiu, compreendendo, e tragou mais uma vez, enquanto virava o corpo para janela e apoiava os cotovelos no parapeito, ficando exatamente na mesma posição que Ramona estava quando ele chegou.
— Vai deixar bater em largada antes de você?
Praticamente não soltou fumaça. Engoliu-a.
— Não. Definitivamente, não.
Ramona virou-se para a janela de novo, inclinando o corpo e apoiando os cotovelos no parapeito, enquanto não parecia prestar atenção alguma.
Em um último segundo, ele virou o rosto para ela.
Ela virou o rosto para ele.
E ela piscou um olho.

A maquiagem parecia ter sido absorvida por sua pele. Uma tatuagem que dera errado.
Passou as mãos pelas faces, não olhando para seus próprios olhos em seu reflexo.
Tinha vergonha de si mesma.
Nos planos, tudo parecia tão certo...
De longe, poderia se arrepender.
Se sentir errada.
O rímel e o lápis preto se acumulavam em correntezas que desciam até seu queixo. Queimava sua pele.
Pegou o celular em cima da mesa.
— Heey — disse a outra voz — Como foi?
— Isso não era para ficar assim.
— Assim como?
— Não finja que não me entendeu.
— Está tudo dando certo. Por que você está assim?
engoliu em seco.
— Você não...? — perguntou a voz.
— Isso não é da sua conta. Eu já cansei.
— Você é idiota? Está tudo perfeito.
— Eu sei que está. Agora, ele me odeia. E ela também. Você tentou prever tudo, arquitetar todo um teatro, mas coisas fugiram do seu controle.
respirou fundo.
— Achei que você e eu podíamos montar uma cena — ela continuou — Que fosse fácil controlar aquelas pessoas, e realmente foi. Mas elas reagiram. Elas não são as porras de uns bonecos! Não estamos tratando-as como humanos, elas têm sentimentos!
— Pare de reclamar — a voz foi inexpressiva — Eu te dei o que você queria. Não finja que conhece a mais do que eu.
— Você não é Joe Durden.
O telefone poderia ter sido esmagado, de tanta força que foi feita contra ele depois da lembrança de .
— Você fez o que devia ter feito — disse para , tentando conter a raiva — Conseguiu o que queria.
— Não era isso que eu queria...
— Foi o melhor que você conseguiu arranjar, sua piranha. Não pode conseguir nada melhor do que isso.
— Eu...
As palavras de perderam-se. Estava tudo perdido.
Aquilo era uma declaração.
— Eu posso reverter as coisas.
— Você o quê...?
— Posso trocar isso. Tudo virá para o meu lado. Terão pena de mim. E você... Você cairá.
— Você não faria isso, .
— Eu já fiz coisas piores. Não sabe o que fiz ontem mesmo?
Respirou fundo.
... Se fizer isso...
— O quê? O que vai fazer comigo? — a voz dela se tornou firme, pois sim, ela tinha o controle — Me matar? Você me mataria por isso?
— Eu te mataria por muito menos, sua vagabunda. Não brinque comigo.
— Não estou brincando. Você quem brincou demais comigo.
, estou avisando...
Ela desligou o telefone.
O sangue de ambos borbulhava.
O sangue de ambos era igual.
Suas almas eram iguais.
Idênticas. Banhadas em vingança. Em arrependimento. Tristeza. Medos.
O erro dela tinha sido o mesmo.
Porque se odiava. Odiava-se por ter feito uma pessoa que confiava nela, se sentir idiota, exatamente por tal ato. Odiava-se por ter criado tal cena, por ter prejudicado tanta gente.
Implorou aos deuses para que tivesse pena dela. Para que a perdoasse, que se esquecesse, que tudo parecesse apenas uma fantasia. Na verdade, que estivessem bem antes do caso Durden, onde não havia problemas. Não havia coisas ruins.
Culpava-se por não ter parado. Por ter sido uma peça fundamental.
Mais um peão.
E se odiava ainda mais por estar, em meio a tudo aquilo, apaixonada por .

Aquela matéria foi a gota d’água suficiente para fazer tudo transbordar. Uma mistura de todos os sentimentos negativos acumulados em .
Vingança. Arrependimento. Tristeza. Medo.
Arrancou a parte da página com a matéria — cerca de um quarto do papel. Amassou e colocou o papel na boca, mordendo, raivosa. Sua saliva umedecia as letras e as tornava fracas.
Vocês nunca me venceram. Palavras nunca me derrubaram.
Não vai ser hoje que vou sucumbir a uma merda dessas.

Andou até a lixeira da cozinha e cuspiu o papel pegajoso, que formava uma massa disforme e pastosa.
Matéria de bosta. Como o foi tão imbecil de escrever algo daquele tipo? Eu mesma devo ter escrito coisas mais bem estruturadas!
Bufou.
Aquilo estava super mal escrito.
Um lixo para toda indústria do jornalismo.
Aquilo... Estava bem longe de se adequar ao padrão de um repórter investigativo. Era quase como uma crítica a um filme.
O som da água do chuveiro começou a soar, exatamente acima da cozinha. olhou para suas roupas. Não usava sutiã, vestia a blusa de e uma calça moletom.
Analisou-se.
A água parecia cair diretamente em cima de mais concentração desta, como se estivesse em uma banheira. Deu a volta na bancada e foi em direção à escada.
Passo a passo, ela podia sentir seu sangue ferver mais, seus músculos se contraírem.
Acorde.
Acorde.
tinha sido sua esperança. Em tempos de tormenta, era ele o ponto final. A estrada que seguia.
Em mão dupla.
Contrários.
Acorde.
Subiu os degraus com os punhos cerrados.
Tempos de tormenta.
Acorde.
Não precisava de confiança. Não queria amor. Amor era a pior coisa que acontecera em sua vida.
Queria prazer.
Não era . Não. Era a Serpente Vigilante.

A água caía contra a banheira, enchendo-a. olhava para sua imagem no espelho embaçado.
Estava surpreso.
Achava que teria partido. Naquele momento, poderia ouvir a porta bater.
A qualquer momento.
A porta baterá.
Foi só uma noite.
Agradeceu por isso. Sinceramente.
Se pelo menos cogitasse ter com ele os sentimentos que ela tinha com , mesmo desconhecendo-os, ela não os teria.
Passou a mão por seu rosto. Esqueça-a. só queria uma onda de prazer, e você ofereceu. Só queria seu sexo. E você também, .
Ah, admita. Você só queria na sua frente, deitada, e você penetrando-a o mais forte que conseguisse. Fazendo-a implorar por você.
Tirou as cuecas, únicas peças que cobriam seu corpo, e entrou na banheira, ficando de pé, com a água no nível de seus tornozelos.
Desviado.
Desavisado.
Entregue.
Esses eram adjetivos para . Como invejava-o. Ele tinha a inocência e a ingenuidade.
Peixe fresco. Nadou muito perto da margem.
Ninguém conseguiria controlar .
Mecânica.

Eu posso mandar na minha vida.
Eu sou a líder do meu império.
A guardiã do meu caminho.
A jogadora.
É tudo um jogo.
Lembre-se, é tudo um jogo... Um jogo.

Chegou ao topo da escada. Punhos cerrados de puro ódio de .
Eu não preciso dele.
Eu estou no controle.
Hoje... Eu estarei no controle.

Andou até o quarto de .
Podia sentir sua presença.
Antes, era um modo de fugir.
tinha dado a ela um ponto de esquecimento.
Um buraco negro.
Era a hora de devolver o favor.
Pois eu estou no controle.
Antes, ele queria dar a ela prazer.
tinha feito-a se sentir inteira.
Completa.
Era hora de o fazer se sentir vazio.
Mecânico.

Queda. Queda.
A água morna caía contra a pele de . Aquecia-o.
Um ponto de impacto. Era o que tudo representava.
Fora da rota.
Fechou os olhos e levantou a cabeça, deixando a água molhar seus cabelos. Passou a mão por eles, suspirando.
Um segundo para sua mente. O quão perigoso isso pode soar?
Parou por alguns instantes para pensar. Como todo banho que se preze, há um momento em que se para e pensa sobre qualquer coisa. Naquela manhã, refletiu o conceito de subconsciente.
Sua mente no controle.
Você não tem poder sobre nada.
Instinto. Era esse o nome mais apropriado?
Imagine seu subconsciente controlando-o por um segundo. É como um zumbi.
Se seu próprio subconsciente fosse cuidar de você por alguns segundos, , você não sabe o que poderia acontecer.
Esse é o conceito de subconsciente.
Desconhecido.
O lado escuro da lua.
A porta do banheiro foi aberta. Com a cortina fechada, olhou na direção da porta, vendo um vulto mover-se lentamente. Passou sua blusa pela cabeça, tirou-a e jogou no chão do banheiro. Não parecia sentir o chão frio.
Era o instinto.
Seus desejos mais obscuros finalmente revelados.
colocou as mãos nos quadris, e abaixou até os tornozelos, com a roupa íntima deslizando e sendo deixada no frio azulejo do banheiro.
Tocou de leve a mão em um lado da cortina, fazendo-a deslizar sem fazer força. Estava totalmente nua quando colocou o primeiro pé na água da banheira. acompanhou-a com o olhar.
colocou o segundo pé dentro d’água. A essa altura, toda água já estava na altura do meio das pernas dela.
tinha virado o corpo um pouco para trás, mantendo os pés ainda no sentido da parede, olhando para por cima do ombro. A água começou a cair nela, com gotas escorrendo por seu dorso e descendo por todo seu corpo.
— Continue. Não pare porque estou aqui — ela disse, quase como um pedido, pegando o sabão na saboneteira.
Ele virou-se para frente de novo. Respirou fundo e suspirou, tentando ignorar a presença de ali.
Fechou os olhos.
Entregue à escuridão.
Mecânico.
Sem sentimentos. Sem arrependimentos. Sem temer.
Ela tocou seus ombros, com as mãos ensaboadas, a espuma alisando sua pele e fazendo-a deslizar sobre a dele. Beijou sua nuca de leve.
Uma onda de relaxamento correu pelo corpo de .
As mãos de escorregaram pelos braços de .
— Eu sabia que não deveria ter lido aquela matéria — ele comentou, pegando o sabonete que tinha sido colocado de volta na saboneteira.
Ela passou a tocá-lo nas costas, passando o dedo pela leve vala de sua coluna.
Séria. Sua concentração estava em outro ponto.
A todo vapor.
Jacqueline assumiu a culpa por dois assassinatos. De Samantha Fox e do Halloween.
— Isso não está fazendo bem à sua mente — prosseguiu.
Ela não tinha nada a perder. Tinha alguma certeza de que mataria a mim e ao Tyler? Não. Matar Tyler seria sua vingança pessoal, mas não eu.
Ela não me mataria.
Porque eu precisava ver aquilo. Ouvir.
Eu precisava ouvi-la assumir os assassinatos.

Faíscas.
Eu continuo no plano de Jacqueline Durden.
Se uma mulher com nada a perder, prestes a dar sua última jogada, assume um crime, e depois comete suicídio...

— Já me considero danificada suficiente.
Meu dano apenas me torna maior.
Mais valioso do que viver por uma causa é apenas morrer por ela.
Jacqueline morreu por isso. Pois ela não tinha nada melhor para morrer por.

... — ela continuou, envolvendo a cintura de com os braços, tocando de leve sua barriga, os seios contra a pele molhada do oficial, a boca próxima da orelha dele — Você acha que acabou?
— Que acabou o quê?
Ela não quis parecer presunçosa. Muito menos insegura.
Apesar de todas as coisas que tivesse feito ultimamente e julgasse, desaprovasse, um detalhe que nunca se deixava esquecer era que nunca deveria compartilhar suas teorias.
Os tempos mudam, não estavam mais na idade das pedras. Ainda continuamos precisando lutar para sobreviver, entretanto. Sabe aquela história que conta que só o mais forte sobrevive?
Já ouviram falar da história de que apenas o mais inteligente ri da cara da morte?
— Isso tudo. Os Durden, o Halloween... Eu. Terei de voltar para o Manson.
fechou a torneira. A água já tinha enchido a banheira quando ele virou o rosto para cima do ombro.
, eu não sei. Os testes de DNA do Joe estão sendo feitos, mas você sabe que a chance de não ser ele é baixa. Se Jacqueline assumiu os crimes, damos o caso como terminado. São as regras.
— Mas isso está errado — ela protestou, com a voz fraca, as mãos soltando o tronco de — Se aquelas pessoas estão mortas, por que não podem saber pelo menos quem as matou?
— Elas sabem, . Foi a Jacqueline. E mesmo que não tenha sido, que diferença irá fazer?
Ele resistia.
queria sua válvula de escape novamente. Sua rota de fuga.
Só mais uma vez.
— Só não acho justo a pessoa ser esquecida depois da morte. Lembram-se dela por obrigação. Logo, ela é só mais um monte de lembranças, que viram sonhos distantes. Bem longe da realidade.
... — ele tentou dizer, mas ela não iria se convencer. Tocava a pele de , as mãos macias tocando-o devagar.
Os lábios dela se aproximaram de sua orelha.
— Você me odeia por isso, não é? — ela perguntou — Eu te questiono. Tenho pensamentos distintos dos seus. Tenho segredos, você tem os seus, e nunca entramos em consenso. Você nega saber muito.
— Você insiste em saber muito.
As mãos dela passaram pelo dorso de , por seu pescoço. Os bicos dos seios da moça tocavam suas costas, suas coxas roçavam-se.
As unhas arranharam a pele dele.
— Você não vai comentar com ninguém sobre as tatuagens, vai? — ele perguntou.
— Não tenho motivos para isso. E você não vai falar do aborto.
Ele assentiu apressado.
— Eu... Eu queria ser como você — ela disse, baixo, com a voz levemente trêmula, como se estivesse falando algo que sempre quisera dizer, mas nunca tivera coragem suficiente — Satisfeito com o que já sabe. Autossuficiente.
— Por que quer ser como eu?
— Porque...
Ele virou-se para ela, finalmente. Os cabelos estavam parcialmente molhados; apenas as pontas estavam coladas em sua pele. A pele molhada, bem menos molhada do que a dele, e uma leve camada de neblina que tornava sua imagem mais turva.
A mesma rua que . Mas a de seguia contrário a ela.
Decrescente.
— Porque eu não quero sentir nada.
As mãos dela apoiavam-se no peito de , a cabeça estava levemente abaixada. Ele a segurava pela cintura, as unhas fincadas na pele dela.
Agora era pior. Bem mais carnal.
Pura.
Mecânica.
Ela procurou os lábios de devagar. Encaixou-os com os dela, e, com um beijo lento, uniu ainda mais seus corpos.
Ensine-me a mentir. Quero ser inabalável como você.
Quero ser fria, frígida.
Não quero sentir mais nada.
Transforme-me em um monstro.
Não podem me corromper.

— Isso não está certo, partiu o beijo. Ainda de olhos fechados, as testas se tocando, ela retrucou:
— Eu não quero nada certo. Eu não quero absolutamente nada.

A manhã seguinte foi uma pequena esperança. O novo dia parecia dar alguma chance do dia anterior ter sido uma ilusão, um sonho ruim.
Nunca era assim.
levantou e foi direto para a cozinha. Na noite anterior, não tinha trocado muitas palavras com depois de e terem partido.
Não tinham o que falar. Nada.
Estava bebericando seu café quando apareceu na cozinha. Usava uma blusa social azul-clara, e a calça jeans inteira — pois a maioria das calças de parecia que tinham um buraco de bala de canhão —, os tênis pretos menos perceptíveis.
— Bom dia — ele falou, indo até a cafeteira.
‘Bom dia’? Não, frio demais.
Só um sorrisinho? Porra, você é um adulto, .
‘Dormiu bem?’? Espera, isso é um cumprimento ou uma cantada?

— E aí? — disse, enfim.
Puta que pariu. Tudo isso, para no final soltar uma poesia dessas. Ponto para você, jumento.
apenas acenou com a cabeça, em resposta. Terminou de encher sua caneca e virou-se apoiando o corpo na bancada, bebendo pequenos goles, parecendo pensar.
Disse, com um sorrisinho malicioso:
— Estou me perguntando como elas devem estar nesse momento.
e ?
— Não. A minha avó e a sua. Claro que são a e a .
— Devem estar em casa. Isso se a não tiver jogado a da escada do prédio no caminho — também bebericou seu café.
deu uma risada.
— Olha, a deve estar caída na cama de um cara, do jeito que eu sei que ela é. A ... Bem, novato, você tem alguma dúvida de como ela está?
engoliu em seco, como olhar baixo, enquanto colocava a caneca em cima da mesa em sua frente.
— Deve estar em casa, sozinha... Precisando de alguém.
deu uma risada tão sonora que franziu o cenho.
— Qual é a graça, cara? — perguntou, não gostando nem um pouco da reação de .
? Em casa, sozinha? Amigo, a corre atrás de homens. Mas homens correm atrás da . Não duvido nada que ela pise naquela delegacia hoje com um sorriso radiante que não dá há muito tempo, depois de se divertir às alturas noite passada.
, você é psicólogo, não vidente. Não inventa, mãe Diná.
— O quê? Eu sei que ela gosta de sair um pouco... — torceu o canto do lábio e olhou para , não acreditando muito no que o amigo dizia e esperando um complemento — Ok, claro que o Facebook me deu uma ajudinha. Eu vi uma foto ou outra dela e da , antigas, em festas, parecendo que a vida é um paraíso. Alguma dúvida de que ela já está melhor do que nós três juntos?
balançou as mãos e falou "nahs" repetidos, para que calasse a boca. Alguns segundos depois, insatisfeito, o psicólogo continuou:
— Aliás, se fosse empurrar alguém, esse alguém seria o senhor.
— Já viu Bambi, ? Lembra que a mãe do coelho diz que, se não tiver nada bom para falar, simplesmente não fale? Pense nisso — terminou seu café e levantou da cadeira.
— ‘Tá, irritadinho. Entendi. Só me explica uma coisinha? ‘Pro seu bro.
apoiou o quadril na pia, cruzando os braços, e esperou dizer o que queria que fosse explicado.
— Eu ouvi umas conversinhas na sala antes da desgraça acontecer. A te falou alguma coisa? Alguma coisa que eu deva saber?
O aborto.
— Agora ouve coisas, ? Você está mais estranho do que nunca. Qualquer dia coloca uma capa e pula pela janela.
— Vai custar um pouco até eu te deixar quieto, disse, rindo e dando um soquinho no braço de .
Os dois riram e, alguns segundos depois, ele voltou a dizer:
— Porra, , eu não consigo te odiar. Seu filho de uma égua. Hoje à noite, eu e você, em um pub aqui perto. Meta da noite, pode ser?
, eu sou bicho do mato. Nem sei chegar em uma mulher.
— Conseguiu por um tempo, moleque. Isso é quase um troféu.
E ainda a deixei escapar. Outro troféu.
— Quer que eu te deixe no hospital? Preciso passar na delegacia, ver com a Julie se vou continuar por lá, cobrindo outros detalhes.
— Ah, claro. Só vou pegar meu casaco.
Quando foi para a porta com as chaves na mão, o telefone começou a tocar. reclamou e foi atendê-lo.
— Se tem uma coisa que eu odeio é gente que liga de manhã ou de noite. Alô? — disse, ao tocar o telefone no ouvido — Não, ela não está. Quer deixar recado?
— Quem é? — perguntou, mas levantou a mão com a palma virada para ele, um certo sinal para que ele calasse a boca. Pegou um papel na mesinha do telefone e a caneta, anotando os dados que fora instruído para escrever.
— Ok, ok, vou avisar. Mais alguma coisa? — alguns segundos se passaram — A senhora pode... Não? Ok, tudo bem, obrigada. Vou avisar a ela. Tenha um bom dia.
Colocou o telefone no gancho e ficou petrificado por alguns segundos.
— Cruzes. Viu um fantasma, ? — perguntou, assustado com a reação do amigo.
— Não, por enquanto, pelo menos. Era uma secretária da delegacia, querendo falar com a . A emissora de televisão da cidade quer chamá-la para uma entrevista, mas não conseguiram falar com ela pelo celular.
— E por isso você ficou mais branco que albino?
— Não, seu idiota. O outro recado era que os exames de DNA do Durden ficaram prontos.
perdeu a fala. Tudo se perdeu.
— Os exames de corpo de Joe...?
— Do próprio. Perguntei se eles podiam me falar, mas era só para avisar a . Se nem eles conseguiram falar com ela, que dirá nós. Mas vamos logo, vamos nos atrasar.
Ainda sem falar nada, apenas digerindo as informações, abriu a porta. pegou seu celular e mandou uma mensagem para :
“Te vejo mais tarde lá no consultório?”.
Quando estava dentro do carro, ao lado de , recebeu a resposta.
“Te vejo lá.”.
não conseguia nem pensar direito.
Joe Durden... Pode estar vivo.
O quão pior isso tudo pode ficar, se isso for verdade?
Uma assombração... Que retorna do mundo dos mortos.


So you can leave like the sane abandoned me...


Capítulo 19 — Losing my religion

Oh no, I've said too much, I haven't said enough...

Muitas pessoas apelidam alguns fatos não comprovados como "senso comum". Não tem base científica, mas todos sabem que acontece, portanto, é real. O nome mais apropriado para tal conceito é "verdade universal". No dia a dia, muitas verdades universais são observadas.
Muitas mesmo.
A primeira verdade universal é que o julgamento mais duro, preciso e cruel vem sempre de nós mesmos.
O fracasso rondava cada vez mais . Talvez não o fracasso em si, mas o que ele representava.
Achava que estava perdendo seu método.
Desconstruindo-se lentamente.
Sua essência se perdia.
Desfiando-se, ela tirou a máquina fotográfica do carregador na casa de . E foi em direção à saída da casa.
Sentia como se estivesse sendo julgada.
Observada.
Os espelhos de julgamento se multiplicavam. tinha uma teoria que apelidava de teoria dos espelhos.
Cada vez que fazia algum autojulgamento mental, um espelho era instalado em sua mente. Quando fazia outro, outro espelho brotava, refletindo o pensamento anterior, e assim sucessivamente, até que todos os espelhos forçassem a sempre voltar a julgar certo ato.
Reflexão. Física pura. A ciência não mente.
Em um desses espelhos, estava escrito o nome de . Em outro, estava prestes a ser escrito o de .
Com a câmera em mãos, abriu a porta da casa e viu fumando seu cigarro de lado para a porta. No exato momento em que esta foi aberta, ele soltava a fumaça pela boca, para o alto. não tardou a capturar a imagem.
surpreendeu-se e chegou a deixar o cigarro no chão da pequena varanda.
— Por que fez isso? — ele tinha feições firmes e irritadas ao fazer a pergunta.
— Só quis tirar uma foto sua, — ela justificou-se, franzindo o cenho, sem compreender o motivo de tanta irritação de .
Ele tomou a câmera de sua mão.
— Você sai por aí tirando fotos dos outros?
— Eu saio por aí investigando a vida dos outros, . Que nem você.
Ele não soube o que falar. Apenas engoliu em seco e começou a mexer na máquina.
— Cuidado com a sutileza. Acabei de comprá-la — avisou, cruzando os braços e dando um sinal claro de que não estava feliz com a reação de .
— Apague essa foto. Da próxima vez, me avise antes de tirar uma.
— Ok, ok, não precisa ficar nervoso.
deu as costas para , comprimindo os lábios e parecendo não querer mais falar do assunto.
— Ei! ! — chamou, seguindo-o — Por que ficou irritado? Eu não fiz nada.
— Eu só não gosto de exposição.
— Mas eu sou sua amiga, . Não tem problema algum termos uma foto daquelas.
olhou para ela por cima do ombro, abrindo o portão da garagem e dando passagem para . Enquanto ela passava por ele, em direção ao carro, trocaram um olhar firme.
Ela sem compreender.
Ele explicando.
Pois bem, a segunda verdade universal é que o silêncio é um texto fácil de ser lido errado.
achou que ela tinha compreendido. Todos precisam de privacidade. Ele não queria ser visto com ela, caso aquela foto vazasse.
achou que ele estava incrivelmente equivocado. Ela não mostraria aquela foto, mas ele parecia ter vergonha de tal registro. Acreditava que ele não queria ser visto com ela, caso aquela foto vazasse.
Entraram no carro ainda em silêncio. guardou a câmera na bolsa e colocou aos seus pés, colocando o cinto e olhando para frente, enquanto o portão da garagem era aberto por .
— Que roupa é essa? — ele perguntou, assim que entrou no carro — Achei que tivesse parado de se vestir assim.
olhou para seu jeans azul com alguns rasgos, o tecido desfiado, sem buracos grandes. A blusa era do Guns N' Roses, cor de marfim, de mangas que iam até um porco depois de seus cotovelos. Usava também um casaco de couro preto, e botas marrons claras.
— Eu gosto de me vestir assim.
— Por quê?
— Prestam atenção em mim. Distraio os outros. Você nem deu a partida no carro ainda, por exemplo.
Levemente transtornado, colocou a chave na ignição e deu partida. Assim que o fez, e o carro pareceu ganhar vida, seu celular começou a tocar.
— Quer que eu atenda? — perguntou, pegando o celular que tinha sido quase jogado no porta-luvas.
não respondeu. Foi mais rápido e alcançou o celular, atendendo-o logo.
— Alô?
franziu um pouco o cenho. Sem dizer qualquer coisa, apenas mexendo os lábios, ela pôde ler nos lábios dele algo como "estava esperando essa ligação".
— Sim. Eu... Eu posso tentar avisá-la. Sem problemas. Ok. Até.
Desligou.
— Esse tipo de conversa costumamos ter com nossas mães. Era a Sra. ?
mexeu na marcha.
— Era a Julie.
ergueu uma sobrancelha.
— A Julie?
— Ela quer te encontrar. Não conseguiu falar com você, parece que seu celular está desligado.
— Eu desliguei e esqueci. O que a Julie queria?
— Te encontrar. Não me deu mais detalhes. Disse que ia te buscar e te levar até ela, para encontrá-la.
— Pode me deixar em casa. Eu vou a pé, tenho que encontrar alguém.
Assim que o carro saiu do terreno , finalmente tomou coragem para fazer uma pergunta.
Posicionou os músculos faciais. Não queria mostrar que se incomodava com a pergunta.
Cruzou os braços. Não queria parecer se importar com a resposta.
Olhou para . Não queria parecer estar resistindo para não fazê-lo.
— Você disse a Julie que eu estava aqui?
— Não — ele prontamente respondeu, virando e seguindo a rua. Não parecia se importar nem com a pergunta, nem com a resposta. Muito menos com a falta de contato visual.
— E por que não?
Ele demorou um pouco a responder.
— Porque eu achei melhor não dizer. Quer mesmo que eu te deixe em casa?
Ela respirou fundo.
— Pode deixar. Eu consigo ir a algum lugar sozinha.
Resistiu ao pensamento. Mantenha a positividade.
Está tudo dando certo. Não arruíne tudo, Cabeça da .
Dessa vez, pelo menos, não arruíne tudo.

A terceira lei universal é que devemos tomar sempre cuidado com os inimigos, mas devemos tomar mais cuidado ainda com os amigos.
Quando Julie despertou naquela manhã, o dia já começava péssimo. Simplesmente por ser segunda-feira.
Quando ouviu o telefone tocar no outro lado do apartamento, teve vontade de fingir voz de doente ao atendê-lo. Faria qualquer coisa para não ir ao trabalho naquele dia. A fadiga queimava sua pele como ácido, colocando-a para baixo como poucas vezes já estivera.
Não ia adiantar reclamar do celular. Ele iria continuar tocando, tocando, gritando até que alguém lhe desse atenção.
O livro que estava lendo estava em seu colo, aberto enquanto ela dormira. De pijamas, a única coisa que sua noite requeria era uma boa leitura. No caso, era o pouco convidativo ‘Carrie’, de Stephen King. Uma clássica história de terror.
Como queria não estar sozinha naquele dia...
Aquela sequência ainda a marcava.
Cena um. Corta para o parque.
Julie entra no parque de diversões. A aliança não está mais em seu dedo anelar. Ela segura a mão da criança, uma criancinha com rosto sorridente. Ela está feliz. Porque está com sua mãe em um parque de diversões no centro da cidade, que foi anunciado em todas as rádios locais. Tinha contado os dias para sua visita ao parque. Ela ri para sua mãe. Julie retribui o sorriso.
Cena dois. Corta para quando elas já estão há algum tempo no parque. O céu está ensolarado, o lugar está tão lotado que, por vezes, é inevitável esbarrar em outras pessoas. A criança está rindo e pedindo para sua mãe para que vão para a roda gigante. Julie está com três bichos de pelúcia no braço, lutando para segurá-los e dar a mão à criança ao mesmo tempo. Ela anda até a roda gigante, e olha para o brinquedo. Percebe que precisa pagar dois dólares por pessoa, para que possa entrar.
Cena três. Zoom nas mãos das personagens. Julie solta a mão da criança.
Confiar.
Um.
Dois.
Três.
Ela pega os quatro dólares e entrega ao homem do brinquedo.
Confiar.
Quatro.
Cinco.
Seis.
Ela não acha a mão.
Tateia o ar. Não há nenhuma mãozinha, que cabe perfeitamente dentro da sua, de modo que se Julie a envolvesse... Era perfeita a sensação de proteção.
Não mais. Seu desleixo é maior do que sua sensação de maternidade.
Não acha a mãozinha macia e delicada da criança.
Não acha o símbolo de sua paz. Não acha a ingenuidade que ainda a salvava.
Não acha mais nada.
O mundo isola-se. O cenário se fecha em volta de Julie.
E, assim, Julie percebe que está sozinha de novo.
A criança não está mais perto de sua mãe.
— Mamãe?
Ela gira lentamente. Procura com seus pequenos olhinhos, a única imagem capaz de reconhecer onde quer que esteja.
— Mamãe? Onde está você?
Não acha.
— Mamãe! Eu não quero mais brincar disso! Eu estou com medo!
Confiar.
Confiar.
Confiar.
Julie não responde.
Está longe demais.
Corte.
Corte, por favor.
O telefone tocou novamente.
— Alô? — Julie perguntou, colocando o livro em cima da bancada com a página marcada pela aba.
— Julie? Espero não ter acordado você — disse Marla — Acordei?
— Não, eu já estava me preparando para ir para a delegacia. Por que ligou?
— Você fala como se eu só falasse com você por interesse.
— Não se finja de certinha, Marla. Eu te conheço bem. Você aproveita as entrelinhas.
A detetive não pareceu se envergonhar.
— Você sabe onde está a ?
Julie franziu o cenho.
— Como eu vou saber? E por que a pergunta?
— Só sou curiosa. É por isso que virei detetive.
— Não sei onde ela está. Provavelmente em casa.
— Sabe se ela andou encontrando o irmão dela?
Julie enfureceu-se um pouco. Já não gostava quando a acordavam, e ficava mais irritada ainda quando falavam muito logo depois que ela acordasse.
— Não acho que isso seja da sua conta.
A ruiva tentou conter-se.
— Eu só estou preocupada com ela — disse finalmente.
— Duas mentiras em uma só frase.
— Está irritada?
— Você me irrita.
— Só perguntei se você sabe de uma coisa.
— Por que não liga para a e pergunta?
— Por que sempre a chama pelo apelido?
— E por que você só chama pelo sobrenome?
— Porque eu não gosto dela a ponto de chamá-la pelo apelido.
— Viu? Se não gosta dela, por que quer saber algo sobre ela?
As duas ficaram em silêncio por alguns segundos.
— Não vou te dizer qualquer coisa, Marla. Vou ser a última a te falar qualquer coisa relevante sobre a .
— Cuidado, Julie. Talvez eu já saiba tudo relevante sobre ela. E talvez, sobre outras pessoas.
— O que quer dizer com isso?
Marla não disse nada por alguns segundos.
— Tenha um bom dia, Julie. Espero que não perca nada por aí.
E desligou.
Corte.
Discou o número do telefone de . E esperou.
Corte, por favor.
Fim de cena.

Um dia que começasse sem tocar piano era um dia perdido para Ramona.
Sentou-se ao piano na sala do prédio de . Três andares, e apenas os de cima sofreram algum tipo de estrago. Os bombeiros chegaram rápido suficiente para que o primeiro ficasse praticamente intacto.
Levantou a caixa do piano e tocou notas de Dance of the Sugar-Plum Fairy. Quando estava no meio da música, a porta foi aberta.
saiu do carro de .
— Quer me ligar quando Julie chegar? — ele perguntou, hesitante — Para eu saber que está tudo bem.
— Não precisa.
— Mas você vai ficar sozinha até ela chegar.
— Não vou estar sozinha. Além disso, não seria a primeira vez.
Fechou a porta e foi até o prédio.
O quão estranho aquilo seria?
Pegou a chave e abriu a entrada, adentrando no ambiente ainda escuro e fechando a porta atrás dela. Suspirou e olhou para dentro da casa, tomando um susto ao deparar-se com uma mulher loira, usando apenas calcinha e sutiã, sentada ao piano, com uma trança que caía por seu ombro. Esta sorriu, cumprimentando-a, sem parar de tocar as notas mais agudas da canção.
— Bom dia, raio de sol.
A chave de caiu no chão. Ela comprimiu os lábios de olhos fechados, e falou com calma e entre dentes, abaixando-se para pegá-las:
— O que ainda está fazendo aqui?
Depois de errar uma das últimas notas, Ramona bateu com os dedos contra o piano, e grunhiu baixo.
— Eu estava tocando piano — respondeu, com um rosto sarcástico.
— Acho que percebi isso. O piano do . O piano que ele não deixa ninguém nem encostar.
Ramona repousou as mãos em cima das teclas e voltou a tocar a canção clássica, desde o começo.
— Ramona, vou pedir civilizadamente para você sair. Não sei como você conseguiu entrar aqui ontem, nem hoje, mas se você não sair agora, eu não vou ser a única autoridade nesse lugar.
— Eu seria mais agradecida. Daqui a algumas horas, vão chegar homens para instalar seu alarme de incêndio, e acho que alguém deve estar aqui para recebê-los.
franziu o cenho e andou até Ramona, enquanto a loira nem tirava os olhos do piano.
— Você ligou para alguém?
— Sim. Tomei a iniciativa de algo que já estava incluído no seguro de casa que o fez.
— Como você sabe do seguro?
Ramona virou os olhos, enquanto adentrava a casa, indo até a cozinha, onde estava sentado à mesa bebericando um café.
? — ela perguntou, colocando a bolsa em cima da mesa. Estava surpresa pelo fato de ter permitido Ramona em casa.
! Quer um café?
— Pode ser... — ela respondeu, ainda atônita.
— Você vai ter que fazer. A cafeteira está ali — apontou para cima da pia.
foi até a cafeteira, com os olhos semicerrados.
— O que aconteceu quando eu saí? — ela perguntou.
engoliu o final de seu café.
— Assim que você foi embora, eu subi, mas ouvi chegando em casa. Acho que ele e Ramona conversaram um pouco. Fui dormir, e até pouco tempo, nem sabia que ela estava aqui de novo.
— Surpresa, ela está seminua na sala.
ergueu uma sobrancelha e entortou um pouco o corpo, querendo olhar para a sala do outro lado do corredor.
, você tem uma noiva!
— Olhar não tira pedaço! Se tirasse, aposto que pessoas como a Scarlett Johansson não existiam mais.
— Tem certeza de que você não viu Ramona entrando? — voltou a perguntar.
— Na verdade, ela não chegou a sair — disse uma voz atrás dela.
Quando virou-se, ali estava , parado, com calças jeans folgadas e descalço. Seu tronco estava exposto, e ele parecia apreensivo, como se a frase proferida por ele fosse fruto de uma enorme concentração de coragem. Segurava uma blusa polo.
— Oi, — ele cumprimentou-a.
— Oi, ... — ela respondeu, deixando as palavras escaparem por seus lábios — Aconteceu o que eu acho que aconteceu...?
Ramona surgiu na cozinha atrás de , agora vestida com uma enorme blusa cinza de um time de futebol qualquer.
Ela sorria pequeno, os lábios rosa formando uma breve curva.
comprimiu os lábios, o coração acelerado.
respirava rapidamente. Querendo que aquilo tudo fosse fruto de sua mente e não, não tivesse dormido com Ramona.
Quando a cafeteira emitiu um pequeno ruído que quebrou o silêncio, praticamente explodiu:
— MAS QUE PORRA ACONTECEU ONTEM?
, se acalme, não precisa ficar assim! — ergueu as mãos e falou em tom calmo, para tentar deixar mais tranquila. A maneira com que ela gesticulava e mudava a expressão facial chegava a ser engraçada.
— É, , se acalme — concordou Ramona, contornando-a e indo até a mesa onde estava — Não é uma grande coisa.
— GRANDE COISA? A GENTE ROMPE E VOCÊ COME A PRIMEIRA GAROTA QUE TE APARECE? — ela gritava.
! — ele tapou a boca dela, que começava a dizer palavras demasiado inapropriadas para aquela hora da manhã.
— ‘Primeira garota’? — Ramona reclamou, com uma careta desgostosa — Agora você realmente me ofendeu.
— Eu esperava um rompimento um pouco mais maduro do que isso, . Quer dizer, você é psicólogo. De mente, você entende — ironizou, com o rosto mais sarcástico que conseguiu fazer, assim que soltou-a. Seu tom de voz tinha sido reduzido, porém, continuava alto.
— Espera, como você esperava que eu reagisse? — ele defendeu-se com os olhos semicerrados — Luto? Não sou canalha, mas também não sou trouxa. Afinal, onde você passou a noite?
Todos na cozinha olharam para , que colocou as mãos na cintura e continuou com sua postura, só que sem qualquer palavra sair por seus lábios. Seu rosto tomava forma de caretas que iam de indignação até surpresa, até que ela finalmente disse:
— Eu não te devo explicações.
— Ei, espera — Ramona disse, rindo — Você fez sexo. Você fez sexo ontem!
— Eu o quê, Ramona? — tentou fazer-se de desentendida.
— Você fez sexo. Transou. Fez amor. Trepou. Copulou. Deu — ela preferiu usar os termos mais fáceis.
— Ramona, para. Isso é nojento.
— Nojento é você ter ‘dado’, nos termos que você usou, para o primeiro cara que te aparece! — se defendeu — Quem foi o dito cujo? Aposto que foi o jornalista, aquele cara nunca me convenceu.
— Não foi ele, .
— Quem foi, então?
— O oficial gostoso! — disse Ramona.
olhou para a loira, atrás de , esta mordendo o lábio forte.
— O ? — perguntou, lentamente.
A tensão na cozinha pareceu fazer o espaço diminuir. Era pressão.
Sufoco.
— Você não sabe a metade, . Eu não ia para a .
— Eu não falei para você ir para lugar nenhum — o resto dele fechou-se em uma face séria, demonstrando como ele definitivamente não estava para conversas com rodeios — Só quero saber onde você foi. Foi para o ?
— Fui — ela respondeu, tentando manter-se firme.
— E vocês dois transaram?
Ela engoliu em seco.
...
— Responde, . Se mentir, sabe que eu vou perceber.
Ela mordeu o canto do lábio.
— Sim. Eu transei com o — ela disse, e dando uma sonora risada depois — E quer saber? Eu não me arrependo. Afinal, eu passei tempo demais com um homem só, que me jogou na sarjeta pouco depois de uma das piores épocas da minha vida. Eu precisava de uma diversãozinha.
— Então... Foi coisa de uma noite só? — ele perguntou, querendo não parecer curioso ou nervoso, desviando o olhar.
ergueu as sobrancelhas e os cantos dos lábios, olhando em volta. Sua resposta foi breve, porém, deu informação suficiente:
— Está vendo alguma roupa minha nessa casa?
Ela deu as costas para e serviu-se do café, que, a este ponto, estava quase frio. Bebericou a única caneca que restara na prateleira.
— E o que você veio fazer aqui? — perguntou , enquanto continuava parado em total choque.
— Julie deve estar vindo. Ela quer me levar a algum lugar.
— Por que não pediu para o te deixar no lugar marcado?
— Julie insistiu em me buscar aqui.
— Quando você sair, nós vamos também — falou , indo para o lado de , e acrescentando baixo — Fez certo, na minha opinião.
— Obrigada.
— Não estou falando sobre ter dormido com o . É sobre confrontar o . Minha menina independente.
Ela riu e bebericou mais o café.
— E o que você acha que ela pode estar querendo falar com você? — perguntou Ramona.
— Não sei. Não acho que seja sobre um caso.
— Não deve ser sobre o Tyler?
bebeu mais o café e não falou nada, ficando apenas encarando seus pés.
— O que tem o Tyler? — perguntou , parecendo ter voltado finalmente à vida.
— Eu... Não sei se quero ver o Tyler. A última vez que nos vimos não resultou em boa coisa.
— O que o fazedor de problemas fez dessa vez? — perguntou .
— A gente teve uma discussãozinha. Nada demais. Só não acho que seja uma boa ideia eu encontrar com ele agora.
— Grande ideia — Ramona intrometeu-se — Se você não quer aceitar o problema, se você não quer mudar o problema, você foge do problema. Ponto para você.
— Ramona, menos — disse.
— Não, ela está certa — disse, depois de refletir por um segundo — Eu preciso encontrar o Tyler. Não adianta evitá-lo. Vou ter que saber o que aconteceu, em algum momento.
— Agora sim, você está pensando direito.
O telefone começou a tocar na bolsa de , que ela tinha deixado em cima da mesa. Ela atendeu-o e colocou a caneca em cima da pia.
— Julie? Já está aqui?
— Estou quase chegando. Se estiver pronta, já pode sair do apartamento. Até logo.
Não deu maiores detalhes. Parecia estar com pressa. olhou para a tela do celular com o cenho franzido e colocou-o no bolso da calça.
— Acho que já vou.
— Vamos todos — disse , colocando a blusa polo em suas mãos.
— Eu fico. Vou esperar os caras do anti-incêndio — disse Ramona — Mas acompanho você até a porta, .
fingiu não ouvi-la. Andou até a porta, deixando e na cozinha. Ramona andou mais rápido até ficar ao lado dela.
— Eu acho que você deve ter feito assim como o . Sabe, aproveitar. Afinal, eu conheci o ontem, e você conhece o há mais tempo. Você ainda tem moral.
— Obrigada — ela foi curta e grossa, com a cara fechada.
— Ei, finalmente você ouviu a voz da razão, hein. Vai se livrar do seu problema e ainda dormiu com um dos caras mais gostosos da cidade.
— Cala a boca, Ramona. Eu não quero ouvir mais nada dentro dessa casa.
Abriu a porta e as duas saíram. Do lado de fora, continuava ignorando Ramona, de braços cruzados, até que a loira murmurou:
— Você parou de ser uma otária. Finalmente.
Em um rápido movimento, levantou o cotovelo na altura do pescoço de Ramona e prendeu-a contra a parede. Sem reação, a única coisa que Ramona fez foi dar um pequeno sorriso.
Quase orgulhoso.
— Olha aqui, cala a boca, sua vadiazinha. Não é porque você fez um favor ao meu ex-noivo que eu vou um pouco mais com a sua cara. Eu não ligo se você me ajudou ou ajudou Tyler. Porque uma coisa que não esqueço — ela apertou mais o pescoço de Ramona — É como você ‘previu’ o fim do meu noivado e esteve envolvida no sequestro que matou Jacqueline Durden. Então, não é só porque você me deu uma boa dica, qualquer que seja, que eu vou gostar de você. Eu ainda não confio em você. Não force uma amizade, seu pedaço de merda.
— Você não pode negar que eu te fiz bem.
— Não importa. Eu ainda quero saber, Ramona. Quero saber como você consegue fazer isso tudo que você faz, saber de tudo, estar onde precisa, quando precisa. Eu quero respostas, Ramona — apertou mais o pescoço dela, fazendo-a soltar um pequeno gemido — Eu quero respostas!
— Você nem sabe as perguntas, por Deus!
Largou o pescoço de Ramona. A loira apoiou-se em seus joelhos e começou a respirar fundo.
— Não vou mentir. Isso sim me impressionou. E continuo dizendo para você continuar assim.
— Estou quase como você — admitiu, com cara de nojo.
— E você ainda considera isso ruim?
O carro de Julie virou a esquina.
— Ainda tenho assuntos a tratar com você.
deu as costas para ela e começou a andar em direção ao carro.
Ramona tossiu mais algumas vezes, e olhou de lado para ela. Percebendo que não estava sendo observada por , ela reergueu-se rapidamente com um sorriso torto.
— Pode apostar que você ainda vai ter muito tempo para isso.

Julie segurava o volante com força. As unhas fincadas. a observava bem.
— Aconteceu alguma coisa?
— Só um sonho ruim.
Olhou de lado para os pés de , cobertos pelas botas.
— Não está com sua tornozeleira?
— Não. Não consigo usá-la com as botas. Além do mais, parei de usar desde... Bem, desde Jacqueline.
— E não viu mais Tyler desde então?
— Não — parecia envergonhada com as perguntas — Ele me evitou por um tempo. É minha vez de evitá-lo.
— Sei.
— Julie, se não se importar, eu não queria falar sobre o Tyler.
Ela estacionou o carro alguns quarteirões do hospital de . O hospital que ela se tratava. O hospital cuja ala psiquiátrica abrigava Tyler há mais de duas semanas.
— Desculpe. Mas agora você vai falar com o Tyler.

Quando eram crianças, Tyler costumava dizer que tinha superpoderes. Não como o Super-Homem, ou o Homem-Aranha, muito menos o Batman. Ele era o Tyler, o mesmo Tyler de sempre, só que tinha superpoderes que ninguém podia vê-lo fazendo. Como a diferença entre os irmãos era de quatro anos, quando ele dizia isso, só podia dizer acreditar. Um dia, ela simplesmente percebeu que acreditava mesmo. Não como se ela pudesse vê-lo usando algum de seus poderes, ou qualquer outra coisa semelhante... Parecia simplesmente ser uma parte da personalidade dele. Ser um super-herói.
Ele parecia ter passado para o lado negro da força, naquele dia. Ou, talvez, tivesse se aposentado.
A quarta verdade universal é que é mais fácil entender uma situação por fora. Simplesmente porque, por fora, a opinião é dada pura. Não se conhece as histórias que antecedem.
Isso não significa que seja mais justo.
entrou no hospital ao lado de Julie, com a bolsa junta ao corpo. Seu cérebro emitia sinais de alerta vermelho.
Não, Tyler não.
Aliás, sempre que o encontrava, o mesmo alerta vermelho era acionado.
Ramona tinha razão. Era melhor tentar resolver logo a situação, antes que fosse tarde demais. Antes que ambos fingissem que nada aconteceu, e que nem se conheciam. O que é, em algum ponto da vida, algo que costuma acontecer. Mas entre irmãos, merece um mínimo de observação, exatamente para não acontecer.
A única diferença era que era a única que tentava manter uma relação com o irmão. Ela sempre quem procurava, ligava, mandava presentes de feliz aniversário.
Tyler costumava mudar de endereço uma vez por ano, devido ao que sobrou de sua bolsa de atleta de faculdade e as competições que ele ainda ia. Casa própria ele não tinha. Só dividia apartamento com colegas de boxe. O cigarro que ele andava fumando demais estava indicando o fim dessa carreira. Toda fumaça, as coisas ruins de sua vida, acumuladas em seu pulmão.
até entendia todas as manias de exclusão de Tyler. Ele sempre ficou na sombra da irmã mais velha. Os Durden também não ofereciam tal liberdade a ele. Tyler sempre foi criado como uma criança imatura, incapaz de cuidar de seu próprio nariz. O cigarro acumulava nos pulmões de todo desgosto que já tinha passado. Em , essas coisas se acumulavam no canto escuro de sua mente.
A recepcionista do hospital estava com a cabeça abaixada, não parecendo se importar com as pessoas que entravam. A própria indicou à Julie a direção até a ala psiquiátrica, onde se consultara com . Julie parecia não estar com interesse em falar com Tyler; apenas interessada em fazer os irmãos se falarem.
As duas entraram em um elevador e, enquanto a porta deslizava, nada foi falado. O rosto de Julie aparentava certo nível de desconforto, e ela abraçava os próprios braços.
— Julie... Por que estamos aqui?
A pergunta não quis demonstrar qualquer tipo de intimidação. Foi simples. A resposta, todavia, não era.
Era impossível dizer.
— Eu... Eu não posso te falar.
— Por que não?
Ela pareceu relaxar. Não podia estar daquele jeito. Simplesmente porque não poderia vê-la daquele jeito. Porque era a melhor detetive da cidade. E encontraria um furo.
Quer dizer, ela era. Será que estava perdendo a mão?
Não parecia a mesma .
— Nós... Nós estamos tentando direcionar o caso de Jacqueline para outro fim.
— ‘Nós’?
— Na verdade, eu estou tentando. Estive tentando juntar provas, por menores que sejam, para tentar retomar o caso. E, para isso, preciso de você e do seu irmão.
— O que você quer que eu faça?
Ela hesitou por alguns segundos, até que a porta do elevador se abriu.
— Vocês precisam ter confiança um no outro.
Deixou para trás, andando pelo lado direito do corredor, conforme uma placa em frente ao elevador indicara. Uma pequena recepção estava no caminho, causando um pequeno impasse.
— Confiança? — perguntou.
— Podemos falar com Tyler ? — perguntou Julie, para a recepcionista. A parte do hospital onde era atendida por era para o lado esquerdo do corredor. A parte direita era desconhecida por ela.
Todas as paredes eram azuis claras. As portas, brancas, uma em frente à outra. O piso era milimetricamente alinhado, de modo que nenhum ladrilho fora cortado para desenhá-lo.
E, mesmo assim, tudo parecia desmoronar diante dela, em um grande buraco negro.
— Que tipo de confiança? — ela repetiu a palavra-chave, já com a voz mais firme.
Julie virou-se para , sutilmente impaciente.
— Uma parceria. Nunca conseguiremos progredir se vocês não se ajudarem.
— Eu consigo descobrir o que quer que você queira saber, Julie. Sabe disso.
— Eu sei. Mas Tyler viu coisas que você não viu. Ele estava onde você não estava. Ele pode ajudar.
— Não, não pode. Tyler é um egoísta. Ele não se dava nem o trabalho de falar comigo, que dirá de ajudar nisso.
Julie olhou-a, um pouco impressionada pelo que dissera. Ainda mais por sua falta de expressão. Como se sempre dissesse aquilo quando falava sobre o irmão.
Então, percebeu. Tyler e não eram mais irmãos. Não desde Justin Durden.
Julie andou até o fim do corredor, e foi seguida por . Tinha raiva. Pessoas como nunca entenderia o que era perder um familiar.
Claro, você odeia sua família. Seu pai é ausente, sua mãe se preocupa demais, seu irmão gosta de ficar sozinho. Que merda, por que você não se mata de uma vez?
Já parou para pensar em pessoas como Julie?
E se você perdesse uma criança que saiu de você, que tem em si, uma parte sua?
Só que Julie não sabia a história inteira. Não sabia que passou por coisas terríveis sem seus pais. Sem eles.
Se era uma pessoa odiosa ou não, ela foi formada sozinha, por um mundo rude.
— Tem dez minutos. Talvez menos, mas não mais — a delegada avisou.
— Tudo bem — aceitou.
— E pergunte sobre a caixa.
— Que caixa?
Era tarde demais. A porta foi aberta por dentro, e, se demorasse a entrar, não entraria mais.
É sempre mais fácil olhar para só sua parte da história.

Eram dois mundos colidindo. Toda falsa liberdade de Tyler, e a amarga verdade de .
Passos pesados e arrastados do outro lado da sala indicavam que o fazedor de problemas se aproximava.
A sala branca tinha apenas uma mesa no meio. em uma ponta, e Tyler ia vagarosamente sentar na cadeira na outra. Tinha entrado por outra porta, diferente da de sua irmã.

Como se os mundos entrassem em colapso naquela sala. As portas eram a única maneira de unir os dois em um universo.
Reagindo. Atrito.
Tyler usava uma camiseta branca. Seu braço forte parecia ainda mais exaltado. Os músculos saltavam. O rosto tinha algumas cicatrizes, além de poucas que colecionava do boxe. Seus olhos verdes perderam o brilho, e os cabelos quase loiros estavam bagunçados. Não como antes, quando ele próprio já os organizava para ficarem assim.
Tyler realmente não se importava mais.
A maneira com que andava deixava isso claro. As mãos livres, com um cigarro entre seus dedos. O bolso de sua camiseta tinha uma caixinha de fósforos, e por alguns segundos, sentiu-se no lado escuro de Um Estranho No Ninho.
— Se importa que eu fume? — perguntou Tyler, levando o cigarro aos lábios, sem olhar para ela, e pegando os fósforos no bolso.
— Totalmente — ela respondeu, rapidamente.
Ele desviou seus olhos verdes do palito e olhou para ela. estava séria, impassível.
— Eu só estava sendo educado — retrucou.
— Eu não.
Por fim, Tyler riu, guardando os fósforos de volta no bolso, e tirando o cigarro da boca, apoiando-o atrás da orelha.
— Ficou com saudades? — ele perguntou, ainda sorrindo.
Isso é tão ridículo.
— Claro que não. Não fui bem recebida quando cheguei, lembra?
Tyler virou um pouco a cabeça e indicou uma cicatriz perto da orelha, bem maior do que a dela.
— Desculpe. Por aqui, é assim que recebemos os visitantes. Mas diga, irmãzinha — ele continuou, olhando para ela de novo, com um sorriso sarcástico — O que deve ter acontecido para você estar aqui?
— Não seja mal-agradecido. Eu sempre te procurei. Sempre cuidei de você.
— Eu não precisava de nenhuma babá.
— É. Por isso que foi levado por Jacqueline.
— E você não tem muita moral para falar de qualquer Durden, tem, ?
As unhas dela fincaram-se na madeira da mesa. Mordeu o lábio tão forte que achou que tivesse o cortado.
— Eu só quero saber o que aconteceu naquele dia.
— Que dia? — ele perguntou.
— O do incidente. Tudo que aconteceu.
Tyler deu de ombros, deixando as costas caírem na cadeira e sua coluna ficar torta.
— Eu não lembro bem. Estava dopado.
— James te dopou?
— Não. Eu fiquei dois dias com pouca comida e dormindo pouco, e mal. Me impressiona um unicórnio não ter passado por lá e me cumprimentado.
— Tyler. Estou falando sério aqui.
— Eu também estou. Não sei se você sabe, mas eu falo sério quase sempre. Só tenho meu modo de fazer isso.
— Eu sei que você não é uma criança, Tyler — ela falou entre dentes.
— Então pare de me tratar como uma, sua mesquinha! — ele falou, um pouco mais alto.
— Então pare de agir como uma criança egoísta! — ela gritou, ficando de pé — Eu vivi uma vida por você, e você me chutou quando eu precisava de você. Eu me virei por muito tempo, querendo proteger você, seu projeto de gente. Então não venha falar sobre ser mesquinha. Porque se eu não cuidar de mim, eu te garanto que ninguém vai cuidar — ela finalizou, apontando para Tyler e não se importando caso achassem que quem precisava de apoio psicológico era ela.
Ficaram em silêncio, enquanto ela se sentava. Respiraram fundo.
— O que você quer falar comigo? — ele perguntou.
— Eu queria saber sobre a caixa.
Ele franziu o cenho.
— Caixa?
não queria parecer suar frio, como, de fato, estava.
— É. A caixa, Tyler.
Olhou para os lados, como se estivesse com medo de alguém do hospital estar ouvindo-os.
Ele fez uma careta que mostrou que não, Tyler não estava entendendo.
— Você está enlouquecendo, .
Nessa hora, deslizou os olhos até os antebraços do irmão. As linhas horizontais não se cruzavam. Já tinham sarado.
— Não sei se entende esse tipo de sentimento. Como se fosse realmente indesejado. Se só trouxesse problemas para quem gosta. Um peso de papel, cuja única solução é desaparecer.
Abaixou as mãos para baixo da mesa.
— Eu não sei da caixa, . Acho que sumiu. Só sei da chave.
— Tem alguém nos ouvindo? — ela perguntou.
Ele fez que não, e apontou para a própria boca. entendeu que deveriam falar mais baixo. Inclinou-se para cima da mesa, assim como ele.
— Eu posso te dar a chave assim que você achar a caixa.
— Quem te mostrou? A caixa, quer dizer.
Tyler deitou um pouco a cabeça para o lado, franzindo o cenho.
— Você não sabe?
— Não. Quer dizer, sei da caixa, claro. Só não faço ideia de com quem ou onde ela possa estar.
Tyler ficou em silêncio, em seguida deu uma sonora risada que ecoou por toda sala.
— Você não sabe nem o que é a caixa.
— Sei sim.
— Não, não sabe — ele apontou para a porta pela qual entrara — Quem está lá fora? O ? O ? Deixe-me saber o que não estou perto suficiente para ouvir dizer.
— A Julie.
— E ?
— Nós... Não estamos muito bem.
— Entendo. E o ? O seu psicólogo? Sempre me perguntam se vou me atender com ele, e digo que não. Não quero o mesmo cara sabendo sobre os meus problemas, e da minha irmã.
— Ele está bem. Só não estou mais próxima ao e a ele como eu era.
Tyler pareceu não entender.
— Sério?
— Nada importante. Para o , eu me limitava a uma matéria de jornal. Uma forma de estudo e pesquisa.
— Sei. E por que a Julie te trouxe?
O tom de sua pergunta era óbvio. Ele queria captar um deslize.
— Ela sabe da caixa? — ele continuou.
— Acho que sim.
Tyler riu mais uma vez, dessa vez, baixo. sentia-se como uma idiota, servindo de piada.
— Ei. Me leve minimamente a sério.
— Estou tentando, . Mas não tem como — ele parecia se aguentar para não rir mais.
— É? Por que não? Sou engraçada? Meu trabalho é engraçado?
— Não, você não é, nem seu trabalho. É o que você aparenta — ele disse, contendo o riso — Você está entregue, . Não consegue perceber? Se vendeu totalmente. Faz toda sua pose de durona, mas, na verdade, entregou-se totalmente ao sistema. Você só acha que está contribuindo para sua própria causa. Coitada. Te enganaram direitinho.
— Fale a minha língua.
— Te instruíram bem o suficiente para fazer você vir falar comigo, achando que é uma visita de irmãos, quando estamos em um interrogatório policial.
Ela relaxou os músculos. Era a mais pura verdade. Julie controlou-a. Fez ir até o hospital, colher informações, porque a própria Julie não conseguiria falar com Tyler. Ele não diria nada à delegada.
Mas diria alguma coisa à irmã.
— Você não sabe a metade, Tyler.
— Ainda bem. Assim, entendo melhor ainda o que está havendo. Há algo que está te transformando. Você não era assim. Nunca me deixaria tão de lado. Diga-me... Que monstro te mordeu?
Ela engoliu em seco.
— Cala a boca, Tyler. Não aja como se sempre estivesse aqui. Só me diga sobre a tal caixa.
Ele levantou as mãos.
— Não posso dizer nada sobre o que você não sabe nem o que é. A caixa está em segurança, assim como a chave que a abre. Posso te dar a chave, mas não logo. Até lá, procure saber um pouco mais sobre o que você fala.
— Estou só fazendo meu trabalho. De vez em quando, tenho que fazer algo imoral. Sabe? Acho que não. Você é vagabundo demais para entender algo assim.
— Minha vida é bem mais estável que a sua.
— Deve ser. Faça uma reverência, irmãozinho. Você realmente conseguiu. Eu queria te tirar daqui, e você parece não querer contribuir. Parabéns. Você finalmente venceu — ela tirou do bolso da calça algo que nunca conseguia viver sem, e jogou para o outro lado da mesa.
Tyler pegou a tornozeleira quando já tinha levantado e dado as costas para ele. Estava presa passando por dentro do mesmo anel que ele perdeu na casa de Jacqueline.
— Eu não quero sair daqui. Estou melhor aqui. Todos me vigiam. Estou em segurança.
Preso.
Livre em minha própria gaiola.

Tyler olhou para os dois símbolos.
— ele chamou, se levantando, e andando até a irmã.
— O que foi? — ela perguntou.
Ficou de pé, apoiado na parede, com os olhos semicerrados.
— Você não lembra?
— De quê?
— Do dia do sequestro. De James. Jacqueline.
— O que tem?
— Tinha mais alguém. Não podia ser só os dois contra nós. Alguém muito bom, importante.
Ela franziu o cenho dessa vez.
— Eu sei exatamente o que você é — Tyler disse, apontando para ela e se aproximando ainda mais.
— Uma pessoa confusa?
Ele fez uma careta e fez que ‘não’ com a cabeça.
! — gritou — Você não consegue lembrar?
— Tyler...
— Aquele monstro, ! Aquela assassina! — ele gritava, segurando-a pelos ombros.
— Tyler! Você está enlouquecendo!
Ele deu um tapa forte na cara dela, que fez cair no chão e permanecer lá.
Ramona.
Ele estava tendo alucinações.
— Não me chame de louco! Você é louca, eles são loucos! — ele apontava para a irmã caída no chão e para a porta, com o rosto torcendo-se em lágrimas — Mas eu não sou louco! Eu sou perfeitamente normal, e você sabe disso!
— Tyler! — ela gritou de novo, querendo que ele parasse.
— É mais fácil assim, não? É mais fácil dizer que sou louco. Porque eu estou contra. Eu sei de tudo. Mas ninguém acredita no fazedor de problemas.
Ele abaixou o corpo bruscamente até ficar da altura da irmã.
— Me dê um soco na barriga.
— O quê?
— Um soco. No estômago. Eu vou te mostrar algo.
— Socorro! — ela gritou, para a porta, quando Tyler deu outro tapa em seu rosto.
— Sua louca! Você quem é louca! Você devia estar no meu lugar, sofrendo o que eu sofro aqui! Merece estar onde estou, no portão do inferno!
Jogada para o lado, caída no chão, ela pensou um pouco.
Levantou-se devagar, e olhou para Tyler com as sobrancelhas encurvadas em puro ódio.
— Eu fui treinada onde você diz não suportar — ela disse, e partiu para cima dele.
Seus socos iam direto ao rosto de Tyler, e em seus braços. A porta foi aberta e precisaram de dois homens para erguer .
Tome. Tome. Tome.
Você merece isso, não merece, Tyler? Uma surra. Para fazer você voltar ao normal. Para te segurar à sanidade. Te manter inteiro.
Quais são as coisas que te prendem à sanidade?
!
Depois do grito de Julie, o que se estendeu foi o silêncio de uma gritaria.

— Tudo bem? — Julie perguntou.
A última imagem que tinha tido fora do rosto de Tyler. Estava ensanguentado, e o contorno de um olho estava roxo. O lábio possuía um corte que se estendia por debaixo de sua boca, que formaria uma cicatriz, quando sarasse.
Dentro de si, o corte nunca sararia.
Bem? Não, ela não estava bem. Mexia nos pulsos, lembrando-se dos cortes que vira nos do irmão. Apesar de Tyler ter dito que não queria sair dali, aquilo não podia ser verdade. Ele tornou-se escravo de seu medo. Convenceu-se de que o ruim era bom, por puro senso de proteção.
A cabeça baixa, o quadril apoiado na parede e apenas ele, pois os pés estavam distantes desta, assim como seu tronco.
Bem, não. Mas logo ficaria.
— Eu vou melhorar.
Seu pulso parecia deslocado. Nada muito grave, porém, doía incomodamente.
Durma.
Acorde.
Booom.
— Vamos para a emergência, vão cuidar de você — disse Julie, colocando a mão no ombro de .
A jovem apenas ergueu o olhar, séria. A última pessoa no mundo que pensaria em ser grossa com era Julie Stoner. Precisava do apoio dela. Era a única pessoa, até então, em quem podia contar. Julie tinha dado a ela um emprego, e sempre a ajudava quando precisava de alguma autorização ou documento.
Por outro lado, tinha que lutar internamente, contra as forças de seu instinto. Julie usou-a como intermédio para Tyler.
Você sabe que está certa.
Não gostava de cooperar, mas a mulher em sua frente era uma exceção.
Você sabe que está certa.
— Tyler não sabia da caixa. Não fazia ideia de onde estava. Mas sabia mais do que eu.
Julie soltou um suspiro cansado.
— Eu não vou tentar te convencer, . Eu só estou fazendo o que é certo.
— Você está seguindo sozinha em uma investigação. Isso é contra a lei.
— E o que você vai fazer? Me prender? — Julie perguntou, erguendo o olhar com firmeza, assim como sua voz, que se tornou menos suave e mais clara. Letra por letra.
fechou o punho.
— Isso soou como uma ameaça — a delegada disse, quase como um comentário, em defesa. O eterno mecanismo de defesa.
— Eu sei como se sente. Eu senti isso também. Sei que não é nada agradável — tocou a mão no ombro de Julie, que olhou para a região, e depois, voltou a olhar para com uma sobrancelha erguida.
Alerta.
Alerta.
Alerta.
— Julie, você sabe que pode confiar em mim.
Em um rápido movimento, Julie desviou o ombro da mão de , de modo que a detetive recuou. ‘você pode confiar em mim’ é algo. Mas ‘você sabe que pode confiar em mim’ é uma coisa totalmente diferente.
A quinta verdade universal é que, para manter as aparências de harmonia, humanos são capazes de fingir, interpretar, e mentir para chegar ao fim.
Matar ou ser morto.
A lei do universo.
Lembra-se da segunda verdade universal?
Pois bem, Julie já era uma mulher vivida. Rugas não poderia ser o único ônus de todos seus quase cinquenta anos. Ela sabia entender o ser humano. A criatura asquerosa que ele é.
Quando se é jovem, todos são amigos. A idade vem, e tudo se transforma em um grande reality show onde só pode haver um vencedor.
Um grande roteiro. Siga seu personagem, se quiser ter seu nome nos créditos.
— Consigo prosseguir por conta própria — ela informou.
— Eu sei que pode. Você é delegada por algum motivo, não é? — ergueu um canto do lábio — A questão é... Você vai conseguir aguentar tudo sozinha?
As duas sustentaram seus olhares por alguns instantes. Os olhos verde-oliva de Julie não eram mais brilhantes como três anos atrás. Eram cansados, entediados. Os de , por outro lado, eram incisivos. Podia ver seu reflexo nas íris dela, julgando, analisando metodicamente. Como toda detetive deve ser. De maneira fria e calculista.
Perfeita.
Mecânica.
Uma bomba-relógio.
— Quer que eu lhe dê uma carona? — perguntou Julie, enfim.
Com a expressão facial murchada, como se toda tensão tivesse sido esquecida, ou transformada em puramente tédio, fez que não com a cabeça.
— Posso ir andando. Preciso fazer exercícios.
— Te vejo daqui a quanto tempo? Uns quinze minutos?
— Se nada nos impedir, sim. Quinze. Na delegacia.
Acenou para Julie e andou até a saída do hospital. O pulso não doía mais. Não muito.
Ansiava por algo. Sabia que algo potencialmente ruim iria acontecer. Não de fato ruim... Algum obstáculo.
A sexta verdade universal é a lei de Murphy: se algo tiver a mínima possibilidade de dar errado... Bem, dará.

Se uma pessoa poderia saber o que era a sensação de ser indesejada, essa pessoa era estava na Lover’s Lane naquela manhã de segunda-feira.
Uma hora você tem tudo, você é tudo. Você constrói uma vida de reputação. Em um minuto, você perde isso tudo.
A queda. Os tijolos estavam perfeitos. A base foi o que cedeu.
Usava um gorro no alto da cabeça, com os fios caindo pelos ombros, os lábios gélidos formando uma leve rachadura nos mesmos. Estavam frisados, as mãos segurando uma caneca de café e levando-a aos lábios, bebericando-a.
A rua do lado de fora era cinza. Não, não era. Ela simplesmente cheirava a cinza. Exalava o gelo, mesmo não estando tão frio assim.
Olhava para a janela, ao lado da mesma. A camada fina de vidro não a separava do tempo úmido. A separava de todo resto.
Livre em minha própria gaiola.
Não se privava do mundo. O mundo se privava dela.
Por que outra pessoa tão odiosa no planeta?
Olhou para o outro lado da Lover’s Lane, que estava começando a encher.
Um espelho.
não queria desaparecer. Queria mostrar que estava ali. Uma prova. Testemunha.
Mais um dia.
Zoe queria se esconder. Permanecer oculta, no lado escuro da lua. Cara a cara com o muro.
Mais um dia.
Estavam no lugar perfeito, na hora perfeita.
conseguia imaginar. Olhava para Zoe com os olhos fixos, os lábios retos, julgando-a. Desafiava Zoe a fazer qualquer movimento brusco. O rosto erguido, superior. Pelo menos, contra Zoe, era superior.
Vá em frente. Eu consigo superar você.
Zoe levantaria, com uma arma em punho, já atirando enquanto joga a caneca no chão. Com o barulho, todos na Lover’s Lane se abaixam. Não é para ferir mais ninguém. É um duelo contra e Zoe. Enquanto se esconde atrás do banco acolchoado, todo restaurante segue em silêncio. Há uma faca na sua frente, a qual segura junto ao corpo com força, com a lâmina virada para baixo. Zoe anda lentamente até ela, tomando cuidado, e mesmo assim, seus sapatos a entregam. Com um movimento rápido, vira o corpo e enfia a faca na perna de Zoe, que cai, e atira para o teto, fazendo um pouco da estrutura cair em cima de si. contorna o banco e corre da Lover’s Lane, gritando por socorro.
Heroína.
O anjo.
Zoe a encarava de volta. Tinha a testa franzida, com certo tom de curiosidade. Queria saber o próximo passo de . Se iria arriscar, e lutar. Olhava-a com desprezo. Uma marionete. Para Zoe, eram todas peças.
Vá em frente. Eu consigo vencer você.
vira a mesa e ergue uma arma, já começando a atirar, mal dando tempo de todos na Lover’s Lane se abaixarem. Zoe se esconde debaixo da mesa, agachada. quer o terror. Sempre era considerada uma coadjuvante. Ali, poderia ter seu ato principal. Finalmente, sua chance de brilhar. assovia uma música que Zoe consegue reconhecer como de um filme dos anos 2000. Quando observa os pés de se aproximando da mesa, Zoe rapidamente vira o móvel em direção à mulher, e corre até a saída.
Fugitiva.
O demônio.
Nada disso realmente acontece. As duas apenas continuaram se encarando.
Zoe franziu o cenho e olhou para o balcão, no centro da Lover’s Lane, onde um único homem atendia todos os clientes, rápido como uma bala. A menina levantou-se, foi até o balcão e deixou algumas moedas ali. Não podia abusar de sua situação financeira, mas alguma gorjeta ela poderia dar. As calças folgadas e rasgadas, documentando todo tipo de coisa que já passara nas ruas, a blusa vermelha e de modelo masculino. Andou até a porta da Lover’s Lane e olhou de lado para , antes de sair.
Eu venço você.
Virou uma esquina, e foi engolida pelo cinza.

Quando andava por aquelas ruas, ela esperava encontrar qualquer pessoa no mundo. . Marla. . Até o Morgan Freeman não a surpreenderia — até porque o Morgan Freeman está em todo lugar. O Darth Vader. O que fosse. Mas não aquela garotinha loira. Não aquela jovem loira, de cabelos quase cacheados, olhos tão verdes como o mais perfeito cenário da natureza provavelmente era.
E pior era a maneira com que ela se encontrava.
Zoe estava um maltrapilho, sentada na sarjeta perto da Lover’s Lane, em uma esquina. As sobrancelhas erguidas transmitiam a informação de que ela não tinha rumo. Olhava em volta, com dúvida, sem saber aonde ir. Brincava com um canivete de barra vermelha.
O canivete de barra vermelha.
Tinha aquela garota. Uma garota tão jovem, engolida pelo mundo e cuspida por ele.
parou por um instante. A garota não parecia estar pronta para atacá-la, mas, mesmo assim, ela tinha uma arma na mão.
A rua silenciosa parecia fechar-se perto delas. Aproximando-as e tomando seu ar.
A prisão.
A mesma prisão.
Silêncio.
Um ruído soou progressivamente pela rua, algo semelhante a uma sirene de polícia que tinha acabado de ser avisada sobre um indivíduo suspeito que se encontrava submisso em uma sarjeta na frente da Lover's Lane.
Uma sarjeta? Sério, Zoe? O máximo que você alcançou foi uma sarjeta? De uma origem tão nobre quanto a sua, e em uma sarjeta foi onde você acabou?
Uma viatura policial se aproximava da rua, e, quando Zoe percebeu, ergueu-se rapidamente. Colocou as mãos no chão e tentou se levantar, escorrendo os tênis nas poças d'água devido à chuva na noite anterior. A queda era eminente.
— Ei!
Quando caiu, ergueu-se, porém, não conseguiu fugir. Dois policiais já tinham saído da viatura.
— Ei, vocês!
observava a cena através do vidro da Lover's Lane.
Eu gostaria de fazer uma denúncia anônima. Uma suspeita de sequestro está nesse instante saindo do restaurante Lover's Lane. Sim, ela é uma criminosa em potencial. Sim, tenho provas. Pode, por favor, parar de fazer perguntas idiotas e mandar logo alguma viatura?
Ok, eu que agradeço.

— Ei, parem!
Quando dois homens saíram do carro, Vega e Landa, Zoe tentou correr, colocando o canivete no bolso do casaco. Os tênis desamarrados eram sua sentença. Alguns segundos depois, Landa conseguiu alcançar a garota. Derrubou-a, fazendo o rosto de Zoe bater contra o asfalto, e um grito de dor escapar de seus lábios, por sua pele arranhada. Vega uniu as mãos de Zoe atrás das costas da menina, deixando-a imobilizada.
permanecia longe da cena, o cenho franzido em completo terror. Era assim que a polícia reagia a um suspeito? Atacando-o, enquanto ele não tinha como reagir? Nem sequer sabiam se Zoe tinha feito alguma coisa! Jogaram-na no chão como um animal, feriram-na, e prenderam-na como se não valesse nada.
— Qual foi a parte do "parem" que vocês não entenderam? — gritou, com a voz mais firme e grave. Estava irritada, claramente incomodada com a situação. Aproximou-se dos três, que já erguiam Zoe pelos braços fracos. Seus olhos estavam fundos como se ela não tivesse dormido na noite anterior. Nem em nenhuma outra noite.
— Nós temos ordens para a apreensão dessa menor suspeita, senhorita.
— Suspeita de quê? — colocou as mãos nos quadris, erguendo as sobrancelhas em desafio. Zoe só assistia a cena com o rosto demonstrando surpresa e um pouco de apreensão.
Vega deu uma risada, apertando mais o braço de Zoe e fazendo a garota morder o lábio.
— Perdoe-nos, dona. É confidencial — trocou breves olhares com Landa — Questão de autoridade.
— A qual vocês não podem se gabar nesse momento — pegou na bolsa, bem no fecho exterior, seu distintivo. .
Landa e Vega se olharam, quase apavorados.
— Sra. , nós...
— Quem deu ordens a vocês? — ela perguntou, parecendo estar perdendo a paciência, a voz mais alta e os braços se cruzando.
— Nós... Recebemos uma denúncia...
— De quem? — cortou-os mais uma vez.
— Anônima, senhora...
— Ah, agora eu sou "senhora"? Até uns minutos, achei que fosse "dona" — ela parecia estar muito irritada, quando se aproximou dos dois e puxou Zoe dos braços de Landa, que resistiu.
— Sra. , nós... — Landa tentou defender-se.
— Não precisam explicar.
— Mas, senhora...
— Querem mesmo continuar me fazendo perder meu tempo? Querem que eu deixe Julie sabendo sobre isso?
Vega tentou assumir uma postura firme.
— Não, senhora.
— É bom mesmo.
— Com todo respeito, recebemos uma denúncia anônima nos mandando vir para cá. Não tinha nada a ver com a senhora.
Puxando mais uma vez Zoe de Landa, e obtendo sucesso, levou alguns segundos para responder, já com a voz mais calma, porém, ainda bem firme e superior.
— Eu já estava com a suspeita em minhas mãos. Vocês atrapalharam tudo. Eu ia prendê-la, e vou. E não quero mais perturbações.
— Mas a senhora...
— Se não foi ordem de Julie, é a minha palavra que prevalece.
Isso. No topo. De novo.
Como sempre teve que ser.
Landa e Vega abaixaram a cabeça, em aceitação.
— Sim, senhora. Quer uma carona?
— Não preciso — apertou mais o braço de Zoe, fazendo-a morder o lábio — Tenho meu próprio carro.
Assentindo, eles nem sequer se despediram antes de entrar na viatura e ir embora, com não parando de olhá-los por um segundo sequer. Quando a viatura não podia mais ser vista, deixou de apertar o braço de Zoe, não soltando.
estava saindo da Lover's Lane.
O que estava acontecendo?
Não pôde ficar muito tempo ali. Não poderia ser vista olhando para elas, para e Zoe, principalmente Zoe.
Não, não Zoe.
Não Zoe.
— Nossa. Achei que não iam embora nunca. Eu estava quase sentando no chão, de tanto que eles me cansaram — olhava para a viatura, mas voltou a olhar para a garota, que estava séria, medindo . Não podia ser bondade de graça.
ainda segurava Zoe.
— Você está bem?
Zoe não se moveu.
— Eu salvei você. Se não fosse por mim, você estaria nesse momento batendo a cabeça no teto de um carro policial. Você sabe disso.
Zoe ainda não fez qualquer movimento.
— Qual seu nome? É uma boa ideia me responder, garota. Só me diga seu nome.
— Zoe — disse, baixo — É Zoe.
— Zoe de quê?
— Você pediu para eu dizer meu nome.
ergueu o canto dos lábios em um sorrisinho, mordendo o lábio.
— Inteligente. Deve ser mesmo, para fazer aquilo com o meu colega.
— Seu colega? — Zoe franziu o cenho, falando baixo.
— É. Aquele que seus inimigos, servos, soldados clones, sei lá, atacaram. Foi inteligente de sua parte atacá-lo, para me deixar perplexa e querer saber quem você era. Agora, aqui estou eu. Atrás de você. Porque quero saber quem você é, Zoe. E por que está atrás de mim.
Silêncio. A risada de Zoe a seguir foi tão alta que ecoou por toda rua. sentiu-se debochada, ao ver aquilo. Ofendida.
— Você andou vendo muitos filmes ultimamente, .
— Eu não sei seu sobrenome, mas você sabe o meu?
Zoe deu de ombros, agora vestindo um leve sorriso sarcástico que deixava louca da vida.
— Você acha que eu fiz tudo isso por sua causa? Isso não é nada modesto da sua parte.
— Para quem não estava falando nada, você até que está falando muita merda.
Zoe tentou torcer o braço de , para que pudesse fugir. torceu o dela e conseguiu ouvir um curto gemido de dor da garota, enquanto empurrava seu corpo contra uma parede.
— Não gosto de violência gratuita, mas você não está ajudando — a detetive murmurou, no ouvido de Zoe.
A garota não falou mais nada.
— Olha aqui, você não me vale de nada. Mas você sabe de coisas que quero saber. Vai poder me ajudar?
Silêncio.
— Nunca mais cruzo seu caminho, se você me ajudar — propôs .
— Você ia preferir que eu não cruzasse o seu — disse Zoe.
— Não tenho tempo para isso, Zoe. Vai me ajudar ou não?
Zoe se torceu e conseguiu escapar de , que, por sua vez, não se opôs e nem tentou segurá-la novamente.
— Aquele seu amiguinho, quem quer que seja, foi uma confusão. Achei que fosse seu irmão — ficou em silêncio alguns segundos, olhando para seus próprios braços, franzindo o cenho como se não compreendesse.
— Pode ir, Zoe. Você já fez o que eu queria. Eu não ia te prender — ela disse, andando de costas para longe da garota, a voz mole e mansa.
Que merda a está fazendo?
Não posso ir até lá. Ela não pode me ver.

— Não — Zoe repetiu, quase como se quisesse se convencer.
— Não. De nada, aliás. E obrigada. Eu realmente estou grata.
Zoe continuou com o cenho franzido, e o rosto impassível. Deu as costas para e pôs-se a correr para longe, a touca escorregando por seus cabelos. Quando já estava bem longe, parou de acompanhá-la, e seguiu seu caminho para a delegacia.
Que porra acabou de acontecer?
saiu da Lover’s Lane e seguiu em direção a uma rua paralela à que estava.
Zoe parou para respirar, depois de correr por alguns segundos. Apoiou-se em seus joelhos e respirou fundo, sentindo pouco peso em seu casaco. Enfiou a mão ali dentro, e só encontrou um cartãozinho de psicóloga, de uma tal Holly Capote, com alguns escritos na parte de trás.

Desculpe, você me obrigou a fazer isso. Não quis cooperar.
Se quiser vê-lo de novo, esteja na frente da delegacia hoje, às sete em ponto. Aposto que isso deve ser especial suficiente para você, para não querer que isso vá para a fila dos testes de DNA.
Não é nada pessoal. Talvez vire, mas ainda não é.
Não me entenda mal. Estou só devolvendo uma gentileza.

Enquanto isso, guardava um canivete vermelho em sua bolsa.
A sétima verdade universal é que, no mundo, temos duas opções: matar ou morrer. E temos que fazer o máximo para não termos que escolher de que lado vamos ficar.

I thought that I heard you laughing... I thought that I heard you sing... I think, I thought, I saw you try...


Capítulo 20 — Heart-shaped box

She eyes me like a Pisces when I am weak… I've been locked inside your heart-shaped box for weeks…

O mundo é movido por uma força superior. Esse poder é público, porém, poucos o controlam. Alguns sabem usá-lo, são capazes de manipulá-lo e fazer pessoas sujeitas e ele. Outros simplesmente são sujeitos a ele. É o maior poder do planeta, capaz de construir e destruir. Esse poder atingiu mais uma vez, um dos únicos que a Serpente Vigilante não sabia controlar. E esse poder era a fofoca.

Quando tinha chegado à delegacia, ela estava praticamente vazia. Os três policiais que tinham chegado estavam reunidos tomando um café, olhando o jornal. Entrou na delegacia passando direto por eles, fingindo que nenhum deles estava ali.
Só que eles tinham visto . E como queriam que ele estivesse ali.
! — chamou um deles, o que chamava de O Nariz de Batata — Viu o que o novato publicou?
— Vi sim — ele respondeu, sem nem olhar para eles, indo direto para sua sala.
— A deve estar bem chateada — murmurou o narigudo.
— Chateada? Ela deve estar é puta. Louca da vida. O cara não está morando com ela? — falou outro dos policiais, o Cabelo de Miojo.
— Eu matava o cara, se fosse ela. Se bem que ela já deve ter tido essa ideia — disse outro, Testa de Pista de Pouso, rindo depois da última frase.
A maçaneta da porta de quase se quebrou. Ele torceu-a tão forte que fez um barulho, como se tivesse quebrado. Todos os policiais pararam de falar e olharam para com o canto do olho.
Filhos da puta.
era assim. Incorrigível. Era totalmente carrancudo. Quase sempre de mal humor. Ou melhor, péssimo humor. Mas falar algo sobre alguém minimamente importante para era brincar com fogo.
— Se ele não aparecer hoje, já sabemos o que aconteceu — finalizou Testa de Pista de Pouso.
— Tudo bem aí, ? — perguntou um.
apenas assentiu com a cabeça e deu um sorriso forçado. Estava com muita raiva.
— Tudo. Caras, vocês sabem o que estão falando? — voltou para onde os policiais estavam bebericando seus copos descartáveis do Starbucks. Claro. Seguindo a ordem.
— Cara, não tem o que falar. ‘Tá escrito. O novato escreveu — Cabelos de Miojo disse.
— Vocês devem estar cansados de saber que editores alteram coisas todos os dias. Isso vende mais que água.
— Ok, mudar uma coisa ou outra, ok, mas deixar o texto assim? O não tinha as melhores intenções quando escreveu isso. Ele e a devem ter tido problemas — falou Nariz de Batata, o menos pior deles.
— Eles deviam estar juntos. Sabe? Dormindo. Ela deve ter negado fazer algo por ele. Foi a maneira de ele descontar, sei lá — Cabelos de Miojo opinou.
— Cara, eu fiquei analisando o texto dele. Ele tentou ser o mais impessoal possível, mas devia estar com raiva. Pelo jeito, eles discutiram feio, e tentaram ser o mais discretos possíveis com isso. Ainda assim, querem se vingar um do outro.
Parabéns, Testa de Pista de Pouso. Quando você fez faculdade de jornalismo?
— Se ela viu isso, já deve ter saído da casa do cara. Ela ‘tava por lá mesmo? — perguntou Nariz de Batata.
assentiu com a cabeça. Todos olharam para ele, mas rapidamente desviaram o olhar, coisa que desagradou um pouco.
— Eu faria qualquer coisa para descobrir o que aconteceu. Cara, como eu faria! — disse Cabelo de Miojo, torcendo o rosto como se estivesse imaginando o cenário dos sonhos — Imagina só. A , a , bem na sua frente. Que cara não amaria isso?
— A não andou estando em seus melhores dias. Disso a gente sabe. Mas falar aquilo dela já foi demais, não acham? — perguntou Nariz de Batata, tentando ser o menos tendencioso possível — Digo, por mais que eles talvez tivessem um mínimo de intimidade, acho que ele abusou.
— E que intimidade, hein — comentou Testa de Pista de Pouso.
— O bem que podia ajudar a garota — falou Nariz de Batata, porém, não tão baixo a ponto de não ter conseguido ouvir — Quer dizer, apoiando minimamente. Ele a conhece há muito mais tempo que o .
Há muito mais tempo, mas aposto que bem menos.
— Todos nós podíamos. Sabe o que a gente poderia fazer? — continuou ele — Arrumar alguma festinha para ela, ou dar algum presente. Todo mundo juntando dinheiro, sabe? Acho que ela ia gostar.
— Ih, qual é, Tim, está a fim da agora? — perguntou Cabelo de Miojo.
Tim. Tim era o nome do Nariz de Batata.
— Só acho que, já que ninguém parece estar disposto a ajudá-la, nem o , uma pequena ação não ia machucar ninguém.
Nem o .
Nem o .
— Tim, chega aqui — chamou, saindo de perto do grupo e indo para sua própria sala.
Tim, que além de um nariz anormalmente grande, possuía cabelos castanhos e bem lisos, divididos milimetricamente na lateral da cabeça. Andava curvado, e os olhos baixos.
— Senhor?
— Quer ajudar a ?
Ele olhou para os lados.
— Isso é uma brincadeira?
— Não. Você quer ajudar a ?
— Sim, senhor, quero sim, senhor.
olhou para os lados.
— Então faça exatamente o que eu disser, tudo bem?
— Sim, senhor.
— Preciso que você confira os últimos registros de antes de ir para o Manson. Principalmente exames de sangue e urina. Está ouvindo, Tim?
— Sim, senhor — Tim estava escrevendo ‘sangue’, ‘urina’ e ‘’ na palma da mão, com uma caneta — Permite eu perguntar o motivo?
— Não.
E fechou a porta, deixando Tim do lado de fora.
Se só havia um jeito de descobrir a veracidade daquela e de outras informações, ele não mediria esforços para alcançá-la.

A delegacia estava praticamente vazia quando chegou nela, já mais de nove da manhã. Estavam todos em um silêncio perturbador.
sabia onde deveria ficar.
O fatídico dia de e parecia tão distante... Nem parecia algo de poucos dias antes. Algo tão recente, e já enterrado por ela.
Um pesadelo.
Teria que ficar na sala da . Claro que teria. Se continuasse na delegacia, a sala dele não ficaria desocupada. E Marla também continuaria em sua sala, que, um dia, já pertencera a .
A única opção era a sala de .
Ele estava de pé do lado da cafeteira, envolto de alguns policiais. Um deles tinha o nariz anormalmente grande. Quando ela chegou, parou ao lado de .
— Olá — ela disse, ficando na ponta dos pés para dar um beijo em seu rosto. Ele desviou, bebericando seu café.
— Bom dia, .
Ela mordeu o interior da boca, envergonhada e dando um pequeno sorriso para Tim, o policial narigudo.
— Preciso falar uma coisa com você.
— Fala — ele disse, sem parecer se importar muito, ainda bebericando o café.
— Em particular.
Eles se entreolharam brevemente, ela com um olhar firme, ele parecendo acabar de perceber que se tratava de algo minimamente sério.
Ambos pediram licença aos policiais e foram até a sala de . Assim que ele fechou a porta, ela foi até a mesa dele e apoiou-se nesta, os quadris na tábua.
— O que é, ?
Ela deu um pequeno sorriso antes de falar, com a voz mansa:
, você sabe o que aconteceu com a ... E com o .
— Sei — ele confirmou, sentando-se à mesa.
— Eu gostaria de saber se você poderia... Bem, dividir sua sala comigo por um tempinho.
Ele olhou-a pela primeira vez, para o alto, já que ele estava sentado, e ela, de pé.
— Dividir a sala?
— Foi o que eu falei.
comprimiu os lábios e coçou a nuca.
— Você nem tem casos, — ele contradisse, com a voz baixa e pouco firme.
— Eu tenho o do suicida. Lembra? O monóxido de carbono. Podemos provar que não foi suicídio. Se eu fizer isso, vou voltar desfilando com salto 15 cm e vestido Chanel ao meu sucesso — ela brincou, rindo. não a acompanhou.
, você não pode fazer isso aqui, na frente de todos. Ninguém acha que você vai chegar a algum lugar, e você sabe disso — o sorriso de murchou — Se vai assumir a investigação desse caso, não prefere fazer isso em casa, sozinha? Não acha melhor?
— Mas, ...
— Não acha melhor? — ele repetiu.
Dessa vez, comprimiu os lábios.
— Deve ser. — ela continuou, querendo fugir do assunto — O que você acha que é preciso para um caso como o de Samantha Fox voltar à tona?
Ele começou a juntar os papéis em cima da mesa, falando sem olhar para ela.
— Não sei, na verdade. Quer dizer, o caso do ‘suicida’ foi retomado, ou quase isso, depois da conclusão da . Ainda precisam investigar melhor. Julie vai dar a palavra final, e vamos decidir quem assumirá o caso.
— Por que você está assim?
Ele olhou para ela e suspirou.
— Assim como?
— Me tratando como se nada tivesse acontecido.
, aqui não é lugar.
Ela inclinou o corpo, se aproximando de e invadindo seu espaço, beijando-o ferozmente, segurando-o por sua nuca e massageando sua pele. Sua língua invadiu a boca de , e ele ergueu as sobrancelhas, surpreso.
parou o beijo e mordeu o lábio de , puxando-o um pouco mais para si, e deixando-o com mais vontade de continuar.
— Se você disser que isso não significou nada, você estará mentindo.
Ele precisou respirar fundo para voltar a si, depois daquilo.
, você sabe como eu sou. Não gosto de exposição.
— Não estou falando para sairmos com um cartaz. Só estou falando para não escondermos.
— Onde que eu escondi?
— Lá na cafeteira. Eram policiais normais, ! Não era como se nossos rostos fossem ficar expostos na primeira página de um jornal.
— O seu rosto já está nela.
Ela cruzou os braços. Jogada errada.
— Ok, ok. Desculpe. Eu não quis dizer isso.
— Tudo bem. Você falou sem pensar.
— Falei — ele concordou — Só tente entender meu lado. Sobre o beijo, ok? É sobre a exposição. Eu... Só não gosto.
— Tudo bem. Já entendi.
Parabéns, . O nome disso é vergonha.
Duas batidas na porta se seguiram.
— Com licença, ... ? — perguntou Julie, apenas com sua cabeça aparecendo na porta entreaberta — O que está fazendo aqui?
— Nada, Julie. Eu... — ela e se entreolharam — Só precisava falar uma coisa com ele.
— Estou fazendo uma reunião de emergência. Só vou começar quando estiverem todos lá.
Aquilo foi um claro sinal para que os dois tomassem seus caminhos para a reunião.
e já chegaram? — perguntou .
— Estão na sala.
Engolindo em seco, assentiu com a cabeça e deu uma última olhada para , antes de perguntar:
— Qual o motivo da reunião?
— Os exames de Joe estão prontos.
Sem perguntarem mais nada, e seguiram Julie.

Julie na ponta.
ao seu lado direito.
ao esquerdo.
ao lado de .
ao lado de .
E Marla ao lado de .
dava contínuos cliques em uma caneta. estava com os braços cruzados, as costas apoiadas na cadeira, sem qualquer postura. Ela olhava, pelo canto do olho, para . Ele, por sua vez, procurava desviar sua atenção, os olhos repousados na mesa.
Parecia simples, mas era muito mais do que um exame que estava em jogo ali.
— Você está fazendo de novo — ela murmurou. Chegou o corpo para frente e colocou os braços em cima da mesa, brincando com os próprios dedos.
Perdido, voltou a prestar atenção no mundo que o rodeava.
— Fazendo o quê?
— O que você faz quando pensa. Quando se concentra, quer dizer.
— O que eu faço?
Ela coçou a nuca. Droga.
Queria muito odiar . Ah, queria odiá-lo mais do que nunca odiou qualquer pessoa.
Mas não conseguia. Queria protegê-lo. Precisava.
Cada mínimo detalhe dele estava impresso em sua mente. Não como algo importante. Mas algo tão natural, que ela não conseguia se esquecer.
— Está coçando a palma de sua mão.
Quando olhou para a mão que segurava a caneta, viu pequenas linhas vermelhas, de leves arranhões.
— Estava olhando para isso há muito tempo? — ele perguntou, o canto do lábio erguido, a voz saindo quase sem que ele quisesse.
— Você está do meu lado — foi o máximo que ela respondeu — Não pareceu perceber que eu estava aqui.
— Eu percebi. Está batendo as unhas na mesa do jeito que você bate quando está ansiosa.
— Você nunca me viu ansiosa.
— Nunca pareceu perceber que eu estava lá.
As luzes se apagaram.
Mordendo o lábio, apoiou as costas na cadeira novamente.
Uma fotografia de Joe Durden apareceu na tela branca atrás de Julie. Ela estava imóvel, as mãos em cima da mesa, os olhos fixos em frente, sem olhar para ninguém específico. Na imagem, Joe andava pela rua, usando óculos escuros e com os cabelos castanho-claros.
A respiração de cessou por um instante. Só cogitar que aquele homem poderia estar vivo representava um terror eminente. Ao mesmo tempo em que queria, como nunca quis, ele vivo, ela o queria longe.
Joe, meu porto seguro que foi tomado por uma tempestade.
Se havia algo sobre si mesma que odiava, era como não podia desligar seu cérebro por um segundo.
Durma.
Durma.
— Joseph William Durden...
Cada vez que aquele nome era pronunciado, os nervos de pareciam se romper.
Presa dentro de uma caixa.
As respirações em volta pareciam pesadas demais. Quando engoliam em seco, parecia forte demais.
Apertou os olhos.
Resista.
Resista.
Resista.
É uma ordem, idiota.
— ... foi encontrado na manhã do dia 16 de junho deste ano, totalmente carbonizado. Os exames de DNA foram feitos a partir de cabelo de Joseph. A queima do corpo tinha ocorrido bem longe do lugar em que ele tinha sido depositado, em um lixão fora da cidade. O assassino tinha tomado o trabalho de transportar um corpo totalmente queimado por cerca de uma hora. Tal descoberta só foi possível depois de um morador de rua ter visto a queima, enquanto estava sob o efeito de drogas.
A voz de Julie não parecia normal. Estava alterada, como um narrador de filme, que sabe o final da história, mas só quer deixar os espectadores - e, por que não, expectadores - mais curiosos.
O suspense vende, não é? sabia disso.
mordia sua mão em punho fechado.
— Nos últimos dias, ficamos a par de provas que poderiam dar um rumo diferente a essa história. Os testes eram vagos. A grande ligação entre Samantha Fox, ligada à família Durden, seu assassinato e sua assassina fizeram o caso de Joe voltar à tona.
Uma fera. O rugido ressoando por toda sua mente.
Caos.
Caos.
Caos.
Se Joe estivesse vivo, ela mesma o mataria, por tê-la feito passar por tantas coisas desde sua ‘morte’.
— Resolvemos refazer os testes, repetidas vezes e com várias impressões e provas diferentes. O resultado ficou pronto esta manhã.
ficou de pé, sem sorrir, como costumava fazer. Estava séria, como se chamasse a próxima vítima da cadeira elétrica.
. tinha a cabeça apoiada em uma das suas mãos, e olhava-a não com desprezo, ou tristeza. A observava, apenas. Todo movimento dela era julgado. Julgado como nunca fora. Como provavelmente sempre julgara .
Um ato daqueles não é decidido no momento, ou da noite para o dia.
Melancolia? Não. Apenas rancor.
Devia ter percebido bem antes, que enquanto caçava ratazanas, a serpente venenosa estava ao seu lado.
Tinha um envelope branco em suas mãos finas, os olhos fixos nele. Como se não soubesse o que estava ali dentro. Ela passou o indicador pela aba, abrindo-o com um pequeno ruído de papel.
— O teste, feito por todos os químicos do laboratório, chegou ao seguinte resultado sobre as amostras da cena do crime e os registros de Joseph William Durden... — disse, a voz fraca, como se odiasse aquele resultado. Como se estivesse prestes a rasgar o papel, em vez de abri-lo.
odiará isso.
precisa do outro resultado. Ela precisa da falsa verdade.
Perdoe-me.

Tirou o papel branco, repleto de letrinhas com diagnósticos, que apenas cientistas como ela poderiam entender. Passou o papel para Julie. Ainda com as luzes apagadas, pois não era necessário acendê-las, leu as letras grandes e jogou o papel em cima da mesa.
— Então? — perguntou , já irritado com tanto suspense.
— Positivo. O corpo era de Joe Durden.

agarrou o papel ficando de pé, enquanto ele ainda voava em queda.
— Positivo? Como, ‘positivo’?
Ela ainda voava em queda.
Queda.
— Não consigo nem entender por que refazer os testes. Nada comprovava que ele estivesse vivo — opinou Marla.
— Eu precisava ver esse papel com meus próprios olhos — justificou-se, a voz firme — Se Joe está realmente morto...
— Como sempre esteve — Marla interrompeu, ressaltando.
Como sempre esteve repetiu, agradecendo internamente por Marla ter frisado tal frase —, e tenho provas de minha inocência...
, não diga isso... — foi a vez de interrompê-la, enquanto ouviam murmúrios em toda sala, menos de , Julie, e Marla.
— Temos o caso Durden aberto novamente.
O silêncio tomou conta. Todos se encararam, como se o assassino de Joe estivesse naquela sala.
queria provar que não.
— E, assim, voltamos à estaca zero — disse Marla, deixando o corpo relaxar na cadeira, quase como um murmúrio.
— Estaca zero? Não fale merda, Marla — retrucou — Não temos um suspeito, mas me inocentei. Agora, precisamos refazer o caso.
— ‘Precisamos’? Quem vai assumir? — perguntou, a voz mansa, com receio de interromper uma tão irritada — Quer dizer, se eu e Marla não conseguimos chegar ao verdadeiro culpado uma vez, não acredito que consigamos fazer isso agora. Não temos mais nenhuma prova.
Todos na sala olharam para , com olhares que mesclavam curiosidade e expectativa.
— Eu posso assumir o caso — ela disse, como se tivesse custado a chegar naquela conclusão.
, achei que houvesse um motivo para você tê-lo negado em um primeiro momento — Julie disse, erguendo as sobrancelhas, contradizendo-a como se sussurrasse ‘tem certeza?’ em algum lugar de sua mente.
— Eu neguei sim. Mas agora que estou totalmente fora de suspeita, acho que tenho coração suficiente para aguentar o Joe.
— Sabe, sempre achei que você tinha intimidade demais com o Durden, — falou Marla.
— Isso não é da sua conta, Marla.
— Ok, já chega! — gritou Julie, levantando as mãos e cessando a discussão — Tem coisa demais na minha cabeça, eu mal consigo pensar! — ela colocou as pontas dos dedos tocando suas têmporas, e seus olhos estavam fechados — Vou analisar as fichas dos nossos melhores detetives; o caso Durden está bem longe de ser fácil. Só em ser uma pessoa reconhecida, já nos dificulta. Eu quem vou decidir o detetive responsável por ele.
As luzes se acenderam.
— Dispensados. E eu preciso de um comprimido.

— Ouch! — Marla murmurou, passando pelo corredor e batendo com .
— Marla, desculpe, eu... Eu não percebi — disse, abaixando e pegando os papéis de Marla que tinham caído no chão.
— Estava pensando em outra coisa — ela completou.
— Eu... Preciso te dizer uma coisa — ele disse, levantando e entregando os papéis a ela.
— O quê? — Marla pareceu surpresa, fazendo seus grandes olhos verdes se tornarem brilhantes.
— Shhh. Entre aqui.
a empurrou para sua sala, e fechou a porta. Marla, atordoada, ficou no meio, sem saber o que fazer.
— Eu... — procurava as palavras — Descobri que abortou um filho de Joe.
A perplexidade de Marla foi tamanha que ela não soube o que dizer.
— Ela abortou?
— Não tive como comprovar. Mas já mandei um policial novo procurar os registros de , antes de ela ir para o Manson.
— O que você espera encontrar?
— Exames de sangue e de urina. Foi de rotina, ninguém olhou aquilo com cuidado. Ali deve ter alguma coisa.
— E se a coisa se espalhar, ? O que vamos fazer? — perguntou Marla.
— Não vai se espalhar. O garoto nem sabe por que está procurando os registros. Não vai sair daqui, não se preocupe.
Do lado de fora, um policial, o Cabelo de Miojo, tinha ouvido as palavras ‘ e abortou’. Tinha parado para ouvir o resto.

Já se aproximava da hora do almoço quando toda delegacia seguia em total silêncio. Pura ansiedade.
Julie Stoner daria a resposta.
Quem seria o novo amaldiçoado pelo caso de Joe Durden?
tentava relacionar algumas moléculas encontradas em uma mistura envolvendo elementos tóxicos. Mas sabia que não conseguiria.
O par de olhos de a perseguiam. A julgavam.
Tinha que admitir. Nunca fora uma amiga 100% boa. Quando as duas saíam, ela sempre fazia comentários pouco bondosos sobre .
A é legal, sabe? Mas que garota pra ser estranha. Vive com roupas horrorosas. Nem parece que é minha amiga.
Não que eu não goste dela, ela é muito minha amiga. Mas, tipo, não gosto de ficar andando muito com ela por aí.
? Ela adora ler livros de Alan Poe. Coisa bem mórbida mesmo.
Qualquer dia desses vai acabar matando alguém.
Bendita boca, . Bendita língua.
Agora, não sabia o que achar de .
Tinha raiva de todo jeito dela de se achar a dona da verdade. Sempre dizendo que conseguiria. Que seria capaz.
Que, sobretudo, sabia ficar sozinha.
sempre alegava que, se não se achasse certa, que sua verdade era a verdade, quem acharia?
Por mais que isso é mais várias outras coisas irritassem ... Ela era sua amiga. a considerou sua amiga.
Ela ficou à espreita por todos esses anos, apenas para atacar no pior momento.
Deu rosas para que se ferisse com seus espinhos.
Levantou de sua cadeira quando ouviu um ruído de algo batendo em uma parede.
Tum. Tum. Tum. Quase um batimento cardíaco.
As coisas de ainda estavam em sua sala. Pegou uma caixa de papelão entulhada de papéis e esvaziou-a, empilhando os papéis no chão mesmo. Encheu a caixa com coisas de . Até a boca. O som continuava, irritante, incessante.
segurou a caixa com facilidade, já que nem estava pesada, e foi até a sala de . Empurrou a porta com o pé. Perguntou, entrando na sala:
, você viu a...
Quando percebeu, estava sentada no chão, os cotovelos apoiados nos joelhos dobrados, as costas contra a parede. Agarrou no ar uma bolinha de borracha, que voltava para ela depois de ter sido ricocheteada do armário na frente de , do outro lado da sala. Ela moveu a cabeça para o rosto ficar direcionado para , mas não fez qualquer expressão além de erguer pouco as sobrancelhas, como se dissesse "quem diria".
?
Não respondeu, e voltou a jogar sua bolinha.
— Suas coisas ficaram na minha sala.
Ainda sem resposta.
Tum.
— Vou deixá-las aqui. Depois, veja o que vai fazer com elas.
Tum.
— Pode me responder? — perguntou, colocando a mão na cintura. Se havia algo que a irritava, era quando parecia estar falando com as paredes.
— Você não perguntou nada — respondeu sem olhá-la.
Tum.
cruzou os braços. Continuou encarando .
agarrou a bolinha e olhou para .
— Perdeu a vergonha na minha cara, foi?
podia jurar que tinha ouvido alguma artéria sua explodir.
Tum.
— Eu só entreguei o que eu devia. Agora, se me permite, vou voltar pro meu trabalho. A senhora dona do mundo poderia não fazer barulho? Você não é a única do prédio. Estou com dificuldade na identificação de uma molécula, e isso definitivamente é uma situação paradoxal...
— Qual é? — interrompeu.
quase se engasgou.
— O quê? — saiu mais alto do que ela esperava.
Tum.
A raiva.
— A molécula. A situação. Qual é? — ainda não olhava para um segundo sequer; apenas para a bolinha.
, você realmente...
— Diz logo qual é. Vou estar ajudando.
— Mas você nem sabe química!
— Diz a molécula de uma vez — falou franzindo o cenho.
— Ok, ok. Uma mistura de compostos tóxicos foi encontrada no corpo de uma vítima, mas não conseguimos descobrir o resto da mistura. O assassino parecia querer envenená-la de uma maneira tão discreta, que não conseguimos identificar. A quantidade de mercúrio e do outro composto é quase proporcional, o que indica que foi ingerido várias vezes, o que é estranho. Tem alguns cristais de...
— Açúcar?
Tum.
— Como? — engoliu em seco antes de dizer, com o cenho franzido.
— Açúcar. Sacarose. Carbono doze, hidrogênio vinte e dois, oxigênio onze.
— Acho que...
— Elementos tóxicos misturados com açúcar, em balas. Seria difícil de identificar, mas fácil de usar para matar. Injeta o mercúrio em doces, como jujubas, e os dá às vítimas. Os pontos de ebulição são bem distintos, tente separá-los fervendo a mistura no laboratório. Aposto que um dos suspeitos tem um saco de jujubas em casa, não tem?
Tum.
deitou a cabeça no ombro. Sorriu pequeno, sarcasticamente.
— Posso não ter passado de ano em química, mas, por favor, me pergunte algo que eu não consiga responder. Está ficando chato.
fechou a porta atrás de si, rapidamente e com raiva. Tinha que fechar logo a porta, pra delegacia inteira não vê-la socando a cara de .
— Ok, . Vamos conversar como adultas.
— Fale o que quiser me falar — disse, segurando a bolinha na palma de sua mão, com a voz calma.
tentava se conter. O tom de deboche de a deixava louca.
Parou. O que quisesse lhe falar? Não queria lhe falar.
, eu... Eu não quero ficar contra você. Mas sabe que é a minha única opção. Eu não tenho como...
— Não coloque como se a culpa fosse minha.
Queria lhe ouvir.
— Não, espera, eu não falei de culpa. Aquilo que aconteceu, você precisa entender, , que...
, não tem o que você explicar. Aconteceu. Foi aquilo, não foi? Está feito.
— Mas, ...
Jogou a bolinha mais uma vez.
— Para de jogar essa merda de bola e me ouve!
Tum.
— Eu já ouvi você demais! — gritou , virando para e com a bolinha em sua mão. Ficou de pé — Eu ouvia você sempre, sempre comentando, fazendo brincadeirinhas nada engraçadas sobre mim. Me deixando no canto. No caso Durden, você nem queria saber de mim. Quando eu voltei? Bem, eu precisava de um teto, e você não hesitou em me negar. Amiga só nas horas boas, não?
— Você quer sinceridade, ? — interrompeu , o tom de voz mais alto — Nem nas horas boas. Ah, como eu perdi um peso nas minhas costas! — ela gritou, olhando para cima e com um sorriso — Eu não sou o tipo de pessoa que fica elogiando garotas mimadas, que tem o ego maior do que o corpo.
Perfeito. Exatamente assim.
Puro ódio.
nunca entenderia... Era uma mulher genial. Totalmente brilhante.
Mas aquele sentimento era algo muito além de seus conhecimentos.
Os dentes de quase rangiam de raiva. Ela ficou de pé, pronta para reagir.
— Você sempre foi assim, . Eu nunca percebi. Fechei meus olhos, não com alguma esperança que durasse, mas que não terminasse assim. Você mexeu em um lugar que ardeu mais que os outros. Você abriu as feridas saradas. Não por causa do , não apenas isso. Você me traiu. Você.
Eu não vou aguentar isso.
Frente a frente.
Isso é demais para mim.
— Você não consegue entender, ? Eu tive motivos! — gritou.
— Ok, você teve? — perguntou , com ironia, e pegou a cadeira, girando-a e se sentando, de frente para , os braços cruzados na frente do peito — Então, se essa conversa é para dizer algumas verdades, pode dizer. Eu estou louca— a palavra foi dita lentamente, com mais ênfase — Para ouvir você dizer tudo.
O rosto de se contorcia em feições chorosas.
— Eu... Eu... — não conseguiu dizer nada. Não diria a .
— Estou esperando. Deus, como quero saber como você vai se justificar! — ela disse com a voz carregada de ironia, cruzando as pernas — Quero saber como você vai se fazer de vítima, de santa, como sempre se fez. Como vai me fazer soar como louca, como a vilã, afinal, você é o anjinho.
— Você é tão egoísta! — gritou , se segurando para não avançar no pescoço de .
— E você é um monstro, ! — gritou de volta, descruzando os braços e quase levantando, mas domou-se a tempo — Você é um ser odioso. Se aproveitando dos outros, como uma sanguessuga!
Seus gritos não podiam ser ouvidos do lado de fora, e davam a impressão de que enchiam a sala cada vez mais, sufocando as duas.
— Você me escalou para ter seu nome conhecido, antes do caso Durden. Você me usou como ponte para alcançar o . Você sempre me tratou como uma medalha que você carrega. Eu devo ser grata por te ter como amiga, não devo? A tão perfeita . Quem todos desejam e invejam. Não é assim?
Levantou-se e andou lentamente até . Colocou as mãos nos bolsos e deixou de ser irônica. Era ameaçadora. A loucura refletida em seus olhos, que pareciam flamejar. podia ver através deles. Podia lê-los, enxergar que precisava dizer aquilo. Estava cheia.
Cheia de .
Cheia de mim.
Eu sou um monstro.

— Ninguém vê o que você faz no escuro. Ninguém consegue enxergar uma garotinha que tinha dislexia, que era a mais feia de sua turma. Que sempre usa maquiagem para esconder todas as marcas de espinha. Que hoje tem o corpo perfeito, porque já foi tão gorda que usava roupas dois números maiores que os para sua idade. E hoje está próxima dos homens porque antes te olhavam com nojo.
Eu fiz outro monstro.
— Você não é um ser humano, . É desumano ser assim tão frio.
— Você é uma vadia, murmurou entre dentes, os olhos fixos em , alguns centímetros dos seus, a respiração entrecortada pelo choro — Você não vê que é uma vadia. Você é uma safada, uma vagabunda, uma grande vadia. Uma grande filha da puta. Você é um ser nojento. Eu te odeio.
— Eu sou uma safada, eu sou uma vagabunda, mas eu não sou uma vadia. Porque eu sou tudo isso... — um pequeno sorriso se abriu — Mas eu fodo com um só, . Não com dois ao mesmo tempo.
As palavras de atingiram com uma força de uma bomba atômica. Não as palavras em si, mas todas as coisas que vieram além delas.
tomou um tom mais calmo. Derrotado.
Desistência.
— Eu preciso ficar aqui ouvindo você falar assim? — procurou o pequeno buraco na parede, pelo qual poderia fugir.
tocou suas costelas, fazendo todos os músculos de se contraírem em um ato reflexo. Ela só tinha alcançado a maçaneta, atrás da química.
— Não. Saia. Eu não preciso de você. Eu nunca precisei.
A porta foi aberta e foi empurrada como ar para fora. Era nocivo. Tóxico.
Era . E ela era um monstro. Mas tinha criado espaço para outro monstro ser criado.
E esse, sim, tinha total poder de destruição.

entornava o café nos lábios quando alguns policiais estavam começando a se juntar.
— Onde vocês estão indo? — perguntou.
— Já é quase hora do almoço, cara — disse um deles, que tinha o cabelo ondulado e estranhamente loiro, como um miojo — Ah, e falando nisso, a sua matéria estava muito boa.
— Obrigado... — ele murmurou, se esquecendo de olhar a aparência de sua matéria na primeira página. O costume de ter seu nome escrito tão pequeno, em uma das últimas páginas, embaixo da palavra ‘obituário’, não fez qualquer tipo de nota mental para que ele se lembrasse de ler a matéria nova.
— Mas aí, você acha que isso é verdade? — perguntou um outro policial, este com uma testa incrivelmente longa.
O com cabelo de miojo deu de ombros.
— Pode ser, pode não ser. Sabe o que dizem por aí sobre a e o Durden. Os dois eram unha e carne, segundo alguns. Por isso dizem que ela não assumiu o caso dele. Só pode ser por isso!
— Mas isso já é demais. Você ouviu mesmo?
— Desculpem — disse, girando os tornozelos e ficando de frente para eles —, mas sobre o que estão falando?
— Ele — apontou o com a testa gigante, para o amigo — Disse que ouviu uma conversa entre o e a Bronx, em que eles disseram que a tinha engravidado do Durden.
— Não só isso — o loiro levantou o indicador — Como tinha abortado. Essa é a única explicação para ela não ter querido assumir o caso dele. Só pode ser isso.
— Me cheira a teoria de conspiração.
se mantinha em silêncio, no máximo bebendo seu café e erguendo as sobrancelhas.
— Vocês ouviram isso?
Como sabe?
— Eu ouvi. Mas, olha, não espalha. Eu contei só pra uns dois caras. Acho que ela não queria que ninguém ficasse sabendo.
— Acho que não quer mesmo — concordou.
Chegando em sua sala, pegou o jornal em cima de sua mesa. A foto de estava na primeira página. Marla ao seu lado, com as mãos atrás do corpo, provavelmente algemadas.
A primeira matéria dedicada a desde sua volta do Manson.
Como eu odeio te ver assim...
O texto vinha a seguir.

A ida ao almoço seguiu em silêncio. A maioria almoçava na própria delegacia, como o caso de .
Ela não esperava ninguém indo até sua sala, por isso, foi até a entrada.
— Eu realmente não espero muito desse filme. Desde que o Zac Efron continue tirando a camisa, fico feliz — foi a única frase que conseguiu ouvir.
Ramona estava com os cotovelos apoiados na mesa, as costas fazendo seu quadril ficar empinado. Os cabelos estavam em um coque desajeitado, ficando lindo em Ramona de um jeito que nunca conseguiria fazer nos seus. Usava uma saia preta, justa e que ia de sua cintura até o meio de suas coxas. Meias-calças cor de pele e um salto preto, uma bota sem cano. A blusa era branca, com alguns babados, e lisa, com uma jaqueta preta por cima. Ela brincava com uma caneta, girando-a em seus dedos. Também tinha um cachecol em volta de seu pescoço.
não conseguia entender como Ramona parecia ser imune ao frio.
— Ah, você chegou! — falou Ramona, virando para ela — Quer fazer alguma coisa?
quase marchou até ela, e empurrou-a pelas costas até o lado de fora da delegacia, dando um sorriso sem graça para a moça que ficava na mesa.
— Ai! Que grosseria, a sua! Ela estava me ouvindo, e adora o corpinho do Zac Efron! — Ramona se soltou e virou para .
— Ramona, quem deixou você vir ao meu trabalho? — perguntou, com o cenho franzido — Não sabe que o pessoal te caça mais que barata?
— Eu? Desde quando?
não queria dar detalhes. Não queria dizer que tinha sido ela quem tinha mandado procurarem Ramona.
— De qualquer jeito, quer fazer alguma coisa? — perguntou Ramona.
— Tipo almoçar?
— É, pode ser — a loira procurou um cigarro no bolso de sua jaqueta, e colocou-o nos lábios.
, menos. Eu mal consigo respirar — reclamou, balançando a mão para mandar a fumaça para longe, depois que Ramona acendeu.
? Quem é ? — perguntou.
mordeu o lábio.
— Ninguém relevante. Vai estar lá em casa mais tarde?
— Você não vai se livrar de mim com facilidade, .
Na verdade, o que eu mais tentei foi não me livrar de pessoas ultimamente.

Todos costumavam voltar do almoço uma e meia. Era frequente a chegada de várias pessoas ao mesmo tempo.
Era a hora perfeita.
Quando voltou para delegacia, enfrentou vários olhares de julgamento. Não conseguia entender por quê, mas tinha um leve palpite.
Dispensável.
Incrivelmente, não se arrependia. Aliás, até apreciava.
Subiu as escadas, olhando com o canto do olho para uma mulher. Esta a olhava com curiosidade, com certo receio de dizer algo. Quase como uma admiradora, ao encontrar o ídolo em um local público.
Falar ou não falar? Eis a questão.
A resposta é não falar, claro. Mas a mente humana é burra e ousada demais para isso.
— Senhorita ? — perguntou a mulher. Tinha cabelos castanhos, ralos, curtos. Os olhos eram bem escuros, quase opacos, e a pele era rosada. Os lábios eram finos, o nariz também. Não era bonita, tampouco feia. O tipo de mulher que passa despercebida.
virou-se para ela, com as mãos nos bolsos.
— Sim?
— É verdade o que dizem?
franziu o cenho.
— Como se chama?
— Dayse.
— Dayse, o que dizem?
O sorriso de era simpático, totalmente oposto ao de Ramona, superior.
— Você não ouviu ainda?
— Já ouvi tanta coisa sobre mim que nem sei mais o que eu fiz — sorriu.
O sorriso de foi o suficiente para que Dayse dissesse.
— Dizem por aí... Que você e o senhor Durden... Iam ter um filho.
Dayse pareceu ter vergonha. Achava que poderia se irritar, e começar a gritar. ‘O quê? Que loucura é essa? Claro que não’ ou algo assim. Poderia começar a chorar. ‘Por favor, não me lembre disso, era um segredo, eu e Joe...’.
O máximo que fez foi erguer o canto do lábio.
— Quem disse isso?
— Não sei quem começou, mas quem me contou foi a Lucy, da parte de homicídios.
— Nem sei quem é Lucy de homicídios.
— É. Para você ver aonde isso chegou.
cruzou os braços.
— Quem sabe disso?
— Acho que praticamente todo mundo. Só o jornalista que eu acho que não. O novato, qual o nome dele mesmo...?
.
— Esse aí.
comprimiu os lábios e assentiu com a cabeça.
— Bem, Dayse, isso é algo pessoal. Você acha que é verdade?
— Não. Sinceramente, não. Mas não sei o que pensar. Dizem que foi por isso que você não assumiu o caso dele. Eu não acredito que você se envolveria com ele, senhorita , sinceramente. Mas... Não sei.
— Se você acha que não é verdade, acho que deveria acreditar nisso.
Piscou um olho para Dayse.
Aquela mulher morena era uma das poucas que sabia a verdade.

Todas as luzes da delegacia se apagaram, no exato instante em que as lágrimas de começaram a correr.
Estava saindo de sua sala. Queria sair e não pretendia voltar para a delegacia. Estava cansada, mentalmente.
Queria fugir o mais rápido possível. Sabia que não iria conseguir.
Tudo se fechava em volta dela, fechando o muro, completando sua cela.
Uma caixa que não deveria isolá-la do mundo, mas sim, isolar o mundo dela.
As luzes se apagaram como uma ilusão. Para , seria difícil saber se tinha sido impressão dela, algum tipo de salvação. Ocultá-la como ela nunca quis.
Deixe-me ser invisível novamente...
Todos estavam dentro da delegacia, quase aglomerados.
As caixas de som do primeiro andar produziam ruídos. Irritantes. Não piores do que estava para vir.
Julgamento.
‘Você acha que confia em . E acha que ela confia em você.’
A voz de , com um pequeno gemido, ecoou por toda delegacia.
Todos se olharam. Alguns reconheceram a voz de imediato. Alguns, não.
Não restaria duvida que a voz pertencesse a .
‘Na verdade, não faz nenhum dos dois.’
Não.
Aquilo não.
Tudo menos aquilo.
Um monstro.
‘Você não conhece nem a mim, nem a ela.’
Era a voz mansa de , porém, ela estava afiada como uma lâmina.
‘Eu conheço tão bem quanto Joe Durden.’
A pronúncia do nome de Joe fez todos estremecerem.
A imagem surgiu em uma parede branca. A estática era tão clara, que quase não era possível ver o que estava sendo mostrado.
Duas pessoas daquela sala nem queriam ver.
Uma queria mais do que tudo.
‘Ninguém a conhece tão bem quanto Joe Durden conhecia.’
abaixou a cabeça. Que vergonha.
Lá estava , tapando seus olhos, atrás dele, que estava sentado no sofá.
teria gravado aquilo? Ela não poderia.
Não. A próxima frase não.
lhe contou que abortou o filho de Joe Durden?’
queria que o chão abrisse sob seus pés. O abismo seria melhor do que aquilo.
?
Talvez não. Mas era grande a possibilidade que fosse.
Abortou.
A imagem congelou por alguns instantes. tinha o rosto afundado no pescoço de .
Ele estava atônito. Tanto o do vídeo, quando o ao vivo.
Abortou.
A palavra já estava no conhecimento geral. Mas, ainda assim, soava tão perversa como se o próprio Joe dissesse.
‘O quê?’
sorriu satisfeita, na imagem.
‘E foi depois que ele morreu. Pouco antes do Manson.’
... Engravidou?’
‘Ela não poderia ter aquele filho. Era mais um para a herança amaldiçoada dos Durden.’
Santo Deus.
‘Não pode ser verdade.’
— Parem! Parem! — gritou , com a voz carregada de choro. Ninguém pareceu ouvi-la.
Invisível.
O vídeo foi cortado, e a voz de soou em seguida, novamente:
‘Você quer me confundir.’
ajoelhou-se no chão, de frente para ele.
‘Eu estou apenas sendo mais sincera do que ela foi.’
‘Não está sendo sincera com .’
. Meu Deus, .
Ela apoiou uma mão ao lado de cada perna de , e inclinou o corpo para frente, olhando vacilante dos olhos dele para seus lábios.
‘Ele foi só o caminho, . Você é o prêmio final.’
O prêmio final.
lançou seus lábios contra os de , feroz, terminando de desabotoar a blusa. Não custou a colocar sua língua na boca dele, a segurar sua nuca e sentar em seu colo com as pernas abertas.
Eu sei como é se sentir dispensável.
A blusa de foi jogada no chão.
Totalmente dispensável.
A imagem congelou em , seminua, os seios tapados apenas por um sutiã. Alguns homens na delegacia estavam quase babando, hipnotizados. A verdadeira sentiu nojo daquilo. Tanto de como eles os viam, como a imagem que tinha.
Deveria ter ouvido quando teve tempo.
O próximo som foi o de algo se quebrando, e a imagem se movimentou pela parede até sumir. As luzes se acenderam pouco depois. Julie estava ao lado do interruptor, com um pequeno projetor aos seus pés. Quebrado.
— Sua vaca. Sua filha da mãe! — gritou . Os dentes estavam cerrados, seus caninos apareciam. Ela perdera a cabeça.
...
— Eu vou te matar! — gritou, avançando contra .
e Marla seguraram-na pelos braços.
recuou. Teve medo. Tinha medo de .
— Você não pensou no quando fez isso. Quando mostrou isso. Agora todos sabem, ! Todos sabem da sua verdadeira parte. Você e Joe! — deu uma risada — Você e Joe iam ter um filho!
O sorriso de era de uma pessoa pouco sã. Ninguém se admirava. Ela tinha todo direito de enlouquecer.
Acabara de parecer uma vadia na frente de todos seus colegas e chefes no trabalho.
— Eu e Joe... — murmurou, parecendo refletir.
— Mas o Joe era infértil — Julie murmurou.
Assim, o imenso iceberg quebrou-se e afundou.

— Joe era infértil? — perguntou .
— Ele não podia ter filhos. Quando era jovem, sofreu uma lesão que o impossibilitou de ter espermatozoides resistentes. Ele não conseguiria germinar uma mulher, a não ser por inseminação artificial. Ainda assim, as chances de virar um zigoto eram pequenas — Julie explicou.
Todos os policiais já tinham sido expulsos por Julie. Com expulsos, deve-se entender ‘convidados a se retirar’. Aquilo era um assunto totalmente particular. Que envolvia, lógico, , , , e Julie.
— Como pode saber? — perguntou , levemente irritado.
— Eu tratei de procurar saber sobre possíveis demais herdeiros dos Durden, quando Joe faleceu. Não custei a descobrir isso. Joe era o único infértil, e procurei sobre os outros irmãos. A geração Durden parou neles, mas não esqueci mais sobre a infertilidade.
— Mas então, por que você me contou sobre isso, ? — perguntou .
Todos se entreolharam, menos . Julie fez um sinal para que os dois homens na sala saíssem.
Assim que a porta foi fechada, a química murmurou:
— Você armou para mim, seu verme. Você fez isso tudo, você queria mostrar para todos.
— Eu não armei nada — disse, com os olhos fechados, sem ter o rosto direcionado para ela.
— Por que você me contou aquilo, então?
— Eu precisava testar você.
Julie e olharam para , que olhou apenas para .
— Eu precisava testar. Precisava saber se você espalharia. Se você contaria aquilo a alguém. E você contou. Eu não poderia confiar em você, . Você estava indo tão bem...
— O não contaria a ninguém.
— Você ainda considera isso a pior parte do que aconteceu?
Silêncio.
— Você estava indo tão bem, até o aparecer. O que aconteceu?
— Eu estava tentando te salvar. E você retribui assim! — gritou a química — Eu estava tentando te salvar!
— Então me salve! — retrucou — Onde você estava quando tudo estava desmoronando? Por que você fez aquilo? Faz parte do seu salvamento?
— Você não iria entender. É muito difícil para você.
— Eu sou mais inteligente que você, sacarose.
quase pulou no pescoço de novamente.
— O que aconteceu, hein? Quando o apareceu?
— Eu...
— Você se apaixonou por ele?
olhou para ela. A paralisia de foi instantânea. Foi desarmada. Seu rosto murchou-se em uma feição surpresa, tentando não parecer tão atônita. — Você se apaixonou por ele — falou com mais calma. Santo Deus. O que eu fiz? — Isso não é da sua conta. Cale a boca.
Sim, . Continue assim. Por favor.
Se algo acontecer, você precisará saber se reerguer sozinha.
Não haverá bases. Todos te deixarão.
É triste. Mas é a verdade.

— Você podia ter me dito.
— Não ia adiantar. Você é a tão incrível . Que chances eu tenho contra você?
— Por favor, .
— Estou falando sério — sua voz se tornou solene — Você pode não achar, mas quando homens vão até mim, em poucos minutos, eles se vão. Quando vão até você... É para sempre.
engoliu em seco.
— Você é tão melhor do que eu que tenho medo disso. Eu custei a perceber isso, e odiava.
— Você podia ter deixado as coisas mais claras.
levantou e empurrou a cadeira, que caiu com um forte som de madeira batendo contra o chão. Saiu da sala batendo a porta.
foi atrás dela.
! , volte! — gritou.
Agora, tinha curiosidade.
Puxou-a pelo braço, no meio da sala de entrada da delegacia. Ainda haviam alguns curiosos ali.
O rosto de estava molhado.
Por que você demorou tanto para me achar?
— Filha da puta! Eu te odeio.
Empurrou contra o chão. As duas caíram, enquanto tentava se proteger e desviar dos ataques de contra seu rosto. Arranhava sua face, as bochechas estavam vermelhas e, em uma região, sangrando um pouco.
Pegou a gola de e trouxe-a para perto de seu rosto, ficando a poucos centímetros dele. Sentia o hálito de , quente, queimando sua pele. O demônio que escapou. Parecia quase que uma personificação do que sempre imaginava como interior de . Seus olhos não davam brecha e confundiam entre a loucura e ódio.
Algo não fazia temer mais nada.
— Achei que você tivesse morrido sozinha, no Manson — disse, lentamente — Desejei que você tivesse morrido sozinha.
! — disse , enquanto tirava de perto de . ajudou a detetive a se levantar.
— Preferiria morrer sozinha a estar envolvida por pessoas que me fazem sentir como merda!
— Sua vaca! Verme! — gritava a química, ignorando o que lhe retrucara.
— Se ela é vaca, eu digo já o bicho que você é, ... — disse — Piranha!
Outro golpe.
— Vocês acham que conhecem a . Mas não fazem ideia.
olhou para com surpresa. Não esperava que ele dissesse algo daquele estilo.
— Eu esperei todo esse tempo... Por uma maldita chance de ser grande... E de ser maior que você... E quando eu finalmente consigo, todos se viram contra mim. Estive todo tempo sentada ao lado do telefone, tudo que eu precisava era uma ligação que nunca foi feita.
— Você sabe que tudo poderia ter tomado um rumo diferente, ...
— Não poderia, .
Soltou-se de e foi até a porta, saindo.
Nunca mais voltaria.
Achei que você tivesse morrido sozinha.

A noite não custou a cair. tinha ficado na sala de durante toda tarde, e não tinha feito absolutamente nada.
Lido. Escrito. Pensado.
Assim, as sete horas tinham chegado.
Antes de sair da delegacia, com , passou no laboratório. Não para qualquer coisa relacionada a .
— Dayse? — perguntou, ao ver a mulher se preparando para sair da sala.
— Ah, senhorita . Precisa de alguma coisa?
— Por favor, me chame de . Pode me ajudar em uma coisa? — perguntou, colocando a mão dentro de sua bolsa.
— Claro, sem problemas.
Tirou um canivete vermelho, e entregou-o a Dayse.
— Se importa de fazer algum exame para procurar digitais nesse canivete?
— É alguma prova de algum crime?
fez que não.
— É só para saber se pertenceu a um amigo.
— Você sabe sobre esse amigo? A pesquisa pode ser feita até agora. Vai nos custar nem meia hora.
As duas se sentaram em frente ao computador.
— Qual seria o dono da digital?
— Joseph William Durden.
Dayse hesitou antes de apertar a primeira tecla. Por fim, acabou digitando o nome. Poucos minutos depois, o resultado foi feito.
— Obrigada, Dayse. Foi de grande ajuda.
... Vou ter que responder alguma coisa à Julie? Sabe, sobre essa pesquisa.
Antes de sair, balançou a cabeça negativamente.
— Eu arco com as consequências, mas lhe asseguro que não haverá nenhuma.

desceu as escadas quase saltitando, quando avistou uma garota loira, com tranças em seus cabelos, esperando próxima a um poste. Tinha um cigarro entre seu dedo indicador e o do meio.
tirou o cigarro de sua mão antes que ela começasse a tragar.
— Isso vai acabar com o seu pulmão antes que você possa terminar o primeiro maço.
— Cadê meu canivete?
apagou o cigarro, contra o poste.
— Onde você o conseguiu?
— Você disse que iria devolver meu canivete, se eu estivesse aqui às sete.
— Eu vou devolver. Só me diga como o canivete do Joe foi parar com uma garota de rua como você.
— Eu não sou garota de rua. Eu tenho uma casa.
— E o que aconteceu com ela?
— Está mal-assombrada.
pegou o canivete dentro do bolso.
— Me explique o que aconteceu naquele dia, em que meu colega foi atacado.
— Ele parecia mais que um colega — uma das sobrancelhas de Zoe se ergueu, e seus olhos verdes cintilaram na luz do poste.
— Não é da sua conta.
— Nem por que eu mandei meus amigos atacarem justamente ele.
franziu o cenho.
— Amigos?
— Ah, o que foi? Achou que eles me chantageavam, ou abusavam de mim? Por favor.
— Por que atacaram o ?
? É esse o nome dele? É de ? Putz, que confusão eu fiz, então.
Tirou o canivete da mão de .
— Eu queria que fosse Tyler .
E deu as costas para .
Para nunca mais voltar.

Quando estava chegando no carro, já esperava próxima ao automóvel.
— Eu preciso conversar com você, .
Ah, agora você quer conversar.
— Sem problemas.
— Sobre o que houve hoje. O dia todo.
Eu podia ter espalhado sobre nós, em vez de você ou os outros espalharem sobre mim e o Joe.
— Tudo bem. Em casa. Estou com a cabeça um pouco cheia.
Eles entraram no carro, e ele deu a partida.
Alguns minutos de silêncio depois, eles chegaram à casa de . Enquanto logo se direcionou para a sala, ele pegou-a pela mão.
— Por que você falou para mim sobre a gravidez, hein? — perguntou, a voz mansa próxima ao ouvido dela.
Não soava ameaçador, mas a mente de interpretava como tal.
— Eu... Eu só queria saber. Por nada. Uma experiência própria. Um teste.
Ele beijou seu pescoço.
— Você é muito estranha — disse, com um risinho.
Ela mordeu o lábio.
— Acho que me contaram isso. Uma vez ou duas.
distribuía alguns beijos pelo pescoço de . Ela virou-se e colocou o indicador nos lábios de , que ficou com um rosto até engraçado.
— Não acho que tenha sido nada legal aquilo mais cedo, .
— Nem eu acho que tenha sido legal você me testar. Me senti com o orgulho ferido.
— Nossa. Cheguei assim tão fundo?
Ele sorriu. Putz, ele sorriu.
— Não precisa ficar sentida assim, . Nós já vamos poder começar a contar. Não a contar, mas a não esconder. Se você quiser.
A última frase foi dita com mais ênfase.
Decorou bem o roteiro, .
Suas mãos estavam na cintura de .
— Ok — foi o máximo que respondeu. Virou-se de costas e foi até a cozinha, fugindo de .
Sua cabeça doía. Argh, precisava de um dos calmantes de .
— Tudo bem? — perguntou, indo até onde ela estava.
— Estou bem. Preciso comer. Preciso tomar um remédio.
— Cuidado com isso, . Não andou tomando muitos remédios ultimamente?
Ela tinha pegado em uma faca, mas deixou-a cair quando ele chamou-a pelo apelido. O som foi estridente.
Queda.
Solta.
, vamos pedir uma pizza. Você não está em condições para cozinhar. Vamos subir.
— Não quero subir, podemos ficar aqui embaixo.
Surpreendendo-a, segurou-a pelas costas e ergueu-a pelas pernas, levando-a em seus braços em direção à escada, os dois rindo. Chegando ao quarto, jogou-a na cama. As risadas foram diminuindo até sumirem.
olhou para os lados.
— O seu quarto?
deu de ombros.
— Na casinha do cachorro que você não iria ficar.
esticou as mãos para tirar sua bota, mas protestou e foi primeiro.
— Eu cuido disso.
Descalçando-a, percebeu que continuava com o olhar vazio, pensativa.
— Algo em sua mente, criança?
. Aquele show que ela deu. Sobre o vídeo.
— Achei que você quem tivesse gravado. E colocado para reproduzir.
— Não fui eu. Minha câmera nem estava ligada na hora que aquilo aconteceu. Eu nem tinha ouvido o diálogo.
— Você viu o que aconteceu, não viu?
— Vi. Cheguei a tempo de ver o final.
deu aquele show porque ela é ela. Adora ser o centro das atenções.
— Não, não pode ser — continuava pensando — Ela não é assim. Eu a conheço melhor do que você, sei que ela não é desse tipo de chilique.
— Sinceramente? Graças a Deus que não conheço. Não estou perdendo nada.
De um modo que não entendeu, aquilo a feriu.
, você seria capaz daquilo?
— De quê, especificamente, ?
— Do que fez.
deixou as botas de caírem no chão.
— Honestamente, eu não sei. Não sei os motivos dela. Ela pode ter tido motivos para isso.
— Ela parece estar apaixonada pelo .
— Fazendo o que fez não seria o melhor modo de conquistá-lo.
foi obrigada a concordar.
— Confesso que estou incomodada com isso. Sinto como se estivesse afastando as pessoas de mim. Inclusive com você, mais cedo.
— Comigo?
— É. O jeito que você negou qualquer demonstração.
aproximou-se de e beijou-a. O beijo foi igual ao dela mais cedo, feroz, urgente. deitou na cama, e ele ficou por cima dela.
— Só te deixou ansiosa pelo resto.
Suas mãos estavam na barra de sua blusa que, convenhamos, ficaria bem melhor no chão do quarto do que nela.
... — ela murmurou, partindo o beijo e empurrando-o pelo peito.
Pausa.
— O que foi? — sua voz já tinha um pouco de impaciência. Tinha sido doce, cavalheiro, até levara-a no colo até sua cama! O que mais ela poderia exigir?
— Não acho que seja uma boa hora.
franziu o cenho, saindo de cima de . Sentou-se ao lado dela, na cama. ergueu seu corpo, se sentando.
Ele permanecia atônito. Não conseguiu entender. Teve quase vergonha.
Ela teve quase vergonha. Não queria dizer, não queria soar tão evasiva.
— Preciso de um banho urgente — foi o que disse.
Perfeito.
Ela soou totalmente evasiva.
Tinha, com total excelência, se tornado tão fria quanto . Imune aos tiros, e livre de opiniões.
Para se assegurar do que dirão sobre você, seja honesta 100% do tempo.
E, agora, não sabia como interpretá-lo.
Frio na delegacia. Frio ao falar com ela de manhã. Era o jeito dele. O mesmo oficial .
Doce ao levá-la escada acima. Doce ao perguntar sobre ela, sobre querer saber o que aconteceu. O outro jeito dele. O .
Uma fera ao lutar por território, mas um cavalheiro nas horas escuras.
não conseguia compreender no que errara. Tinha raiva. Por Deus! Não faltou nada.
Ora, , você não queria ser, e era, impassível?
Por que se tornara tão sensível, frágil?
Porque se cai ao insistir andar de pés feridos.
... Eu falei algo de errado? — ele perguntou, segurando-a pela mão antes que ela entrasse no banheiro.
Quando se voltou para , não conseguiu interpretá-lo novamente. Suas feições eram uma mescla sutil de surpresa e leve irritação.
— Não. Eu só não estou no clima — foi rápida e prática em sua justificação.
Não gostava daquela postura. Estava fraco. Submetendo-se.
Sua mão caiu na cama, e deu-lhe as costas, indo para o banheiro.
E sua cabeça não parecia explodir daquela maneira há um tempo.
Fechar a porta daquele banheiro não era colocar pontos finais. Era simplesmente colocar reticências. Deixar em aberto.
Ligou a água do chuveiro, mas deixou o ralo da torneira destampado. Ficou satisfeita com uma ducha.
Tirou toda sua roupa, e entrou no chuveiro. já tinha deixado separada uma toalha para ela, e sua mala também estava ali.
A água batia em sua pele, afastando toda sensação de sujeira. Não como sujeita física. Sentia-se contaminada pelo ódio de , por curiosidade em entendê-la, em saber seus motivos. Sentia-se ferida por Tyler, e protegida contra Zoe. Passou o sabão por sua derme, a espuma branca se acumulando em montes.
Fechou os olhos. Sentia algo crescer em si. Toda a insegurança do dia anterior tornou-se a sensação de confiança. Esta, por sua vez, virou o medo de ser deixada. Mas com ... Tornou-se dona de seu próprio mundo.
Teve a impressão de que era exatamente essa a intenção de .
Conseguiu atingi-la como nunca conseguiria. Caiu, e caiu também, e as duas discutiam ao solo. Tudo bem, fora cruel, a feriu. Mas nunca teria coragem de falar daquele jeito com . Além disso, incitou sua curiosidade, em manter oculto o motivo de seu surto.
Parecia algo proposital.
E .
estava deitado na cama, o rosto voltado para o teto, as mãos na cabeça. Que garota complicada. Costumava não ter paciência com pessoas que demoravam a tomar alguma decisão, ou que, de última hora, mudavam de ideia. É como entregar um roteiro de 200 páginas e alguém dizer ‘reescreva tudo desde a 62’.
Compreende? A insegurança, a hesitação.
‘Eu só não estou no clima’.
Até onde se lembrava, eles tinham combinado de não contar a ninguém sobre os dois. Tudo bem, não pareceu feliz com o acordo. E, tudo bem, eram poucos policiais, era só um selinho, no máximo um beijo na bochecha, e ele desviou.
Mas estava certo, não estava? Custou a chegar na posição de oficial. Custou a manter sua aparência. Não poderia deixar-se levar agora.
Além do mais, ainda estava sob uma imensa lupa. Só não sabia disso.
enxaguou seu corpo. parecia não querer torná-los públicos. julgou-se ao perceber que agira do mesmo modo com , e, agora, culpava por seus atos. Com era diferente... Ele era um jornalista, novo na delegacia, e os dois se conheciam há pouco mais de duas semanas. Com , era outra coisa... Eles se conheciam há três anos, e dividiam o mesmo trabalho ao mesmo tempo. E não se suportavam até pouco antes.
Ok, nesse ponto, ela não tinha como argumentar.
Mas mesmo assim. ainda era algo mais fácil de aguentar. Principalmente depois da matéria de , não restava muita brecha para os dois. As pessoas estranhariam e , porém...
Odiava se sentir como uma adolescente em dúvida entre dois garotos. O mais gato do colégio, que todas suspiram, ou o amigo, o companheiro.

A sensação de um muro separando duas pessoas é terrível. De um lado, , com toda sua inteligência, coragem, e todo o risco que ele tomara para proteger . Do outro, , o companheiro, que sempre tentou ajudá-la, mesmo que isso beirasse o duvidoso. Ambos eram fiéis e infiéis a ela. E se encontrava exatamente em cima do muro. O que não era de todo ruim: estava sob tudo que a rodeava, e não presa em qualquer um dos lados do muro. Fosse qual fosse, ela estava livre enquanto estivesse em cima do muro.
Não gostava de admitir aquilo. Era a parte podre de si. O lado que ninguém gosta de ver.
A pessoa que odeia desperdiçar cada centavo, mas não gosta de ser chamada de avarenta.
A pessoa que quase atinge seu objetivo e chora por seu ‘fracasso’, mas não gosta de ser chamada de exagerada.
A pessoa que ignora os sentimentos, para desfrutar-se apenas da situação, e não gosta de ser chamado de aproveitador.
Vergonha. Essa era a palavra suprema.
Eu sou uma criança. Não sei o que quero.
tinha aflição por si próprio. Odiou-se por aqueles pensamentos.
Era sua natureza humana. Conviva consigo mesmo.
Aceite.
tinha aflição por si própria. Odiou-se por aqueles pensamentos.
Era sua natureza humana. Conviva consigo mesma.
Mude.
Saiu do chuveiro. Enrolou-se na toalha, depois de se secar. Passou a mão no espelho, tirando o vapor, e tornando seu rosto visível.
Espelhos. Malditos espelhos. Não se pode mentir para eles.
Foi até sua mala. Revirou-a, mas não encontrou seus pijamas. Surpreendentemente, nem sua calcinha. Nem seu sutiã.
Acreditando que já tinha saído do quarto, escancarou a porta e olhou para o interior da suíte. Ele estava deitado na cama, de olhos fechados, a luz fraca no ambiente.
— ela murmurou — !
Sem resposta.
... Minhas roupas. Onde estão as minhas roupas?
Ainda sem resposta. Dando-se por vencida, ela apagou a luz do banheiro e entrou no quarto, pé ante pé, até perto da cama. Viu suas roupas próximas a uma das mãos de . Aproximou sua mão da dele, com calma e cautela.
Ele agarrou sua mão, assustando-a e fazendo-a recuar. Pareceu ter despertado de um sono leve, porém, conturbado. Um pesadelo, ou talvez não exatamente isso. Apenas uma realidade ruim.
Inquietante.
— O que foi? — ele perguntou, não parecendo entender que tinha caído no sono, ou que ainda estivesse em seu sonho.
Vista um sorriso. Convence mais que uma placa.
— Eu... Minhas roupas.
olhou para sua própria mão, e estendeu a roupa para , sentando na cama. Estranhando, ela voltou para o banheiro.
Depois de poucos passos, a toalha de escapou de seu corpo, deslizando sobre sua derme, esta tão macia quanto aquela. Agarrou-a quando estava no meio de suas costas, e como estava de costas para , ele não viu nada além do final de suas costas nuas. Seus seios tinham ficado à mostra também, porém, fora da visão dele.
, pare — ela disse, firme.
— Foi só uma brincadeira, — ele retrucou, rindo.
Ela foi ao banheiro sem rir. Abriu a porta e deixou-a encostada. Olhava-se no espelho, ainda enrolada na toalha, enquanto pegava sua roupa.
entrou no banheiro atrás dela, as luzes apagadas. Tocou sua barriga, puxando-a levemente para seu corpo, e a outra mão em seu pescoço.
— Confesse que você gostou... — murmurou no pé de seu ouvido. Beijou seu ombro, a falta de luz no cômodo impedia de observar seu rosto. Dava beijos por seu ombro, subindo para o pescoço, até alcançar atrás de sua orelha. A mão que antes estava no pescoço subiu para os cabelos dela, segurando-os com força.
...
— Shh...
... Não, por favor... — ela pediu.
Ele agarrou seus cabelos e deitou a cabeça dela em seu próprio ombro. A leve dor incomodou-a, enquanto ele a segurava pelo quadril, se aproximando cada vez mais de sua virilha.
— Cale a boca, , você fala demais... — ele disse, rindo.
Chupou um pouco a pele de seu pescoço, sugando para si. Era delicioso o gosto do comando.
— Pare, ... — ela murmurou.
Ele tocou sua virilha. Os músculos de se contraíram em alerta.
— Eu sei que você quer. Confesse que você gostou.
Sentiu seu corpo desligar-se. Queda livre. Deitou a cabeça no ombro de e se entregou.
Ele beijou seus lábios mordiscando-a. Pôs a mão em sua virilha, pressionando-a e fazendo ficar na ponta dos pés. Ela não fazia nada. girou-a e ergueu-a no colo, beijando agora seu dorso, enquanto os olhos de continuavam vidrados. Olhava para o vazio.
Retrocedendo.
Ele levou-a até a cama, e jogou-a em cima dos lençóis. Sua toalha fugiu de seu corpo, deixando o lado de seu quadril e um de seus seios à mostra, com a vulnerabilidade que tanto sentia prazer.
— Farei você acreditar que não precisa contar isso a ninguém. Pois ninguém precisa saber.
Ele abaixou a cabeça. E não sentia nada. Vazia como um fantasma. Morta por dentro.
Ele separou suas pernas, e ela não o interrompeu. Segurou as coxas de , fazendo a moça se arrepiar, seus pelos se eriçando, e foi diretamente para o centro delas. Quando a tocou, sentiu uma onda mover todo seu corpo. Não o sentia. Toda sua concentração foi para uma única região, estimulada com vigor.
Concentração de tortura.
Fechou-se para o exterior.
O mais leve toque dele a confundia cada vez mais. Odiava. Era mais uma máscara que se erguia.
Anestesiada.
Extasiada.
Corrompida.
Invasão.
Saia.
Emergência.
Aperte os cintos, estamos fazendo um pouso forçado.
Queda.
Queda.
Ejetar.
Ejetar!

colocou a chave na fechadura. Ergueu a mão ao rosto e secou a lágrima que escorreu por último. Assim que a porta se abriu, uma onda de fumaça invadiu o corredor, forçando-a a apertar os olhos. Entrou e fechou a porta atrás de si. Era fumaça de algo queimado.
— Branco! — ela chamou seu gato. Não era incêndio; se fosse, sua casa já estaria incinerada. Seus olhos estavam semicerrados, ardendo por conta do vapor.
Era isso. Era água fervendo.
— Branco! — chamou o gato novamente.
Foi correndo até a cozinha. Podia ver a fumaça escapando, e sentir o cheiro de algo sendo queimado.
Havia algo errado.
Por quê?
Estava monótono demais.
Era um ambiente seguro.
O celular vibrou.
Quando o pegou, abriu a tampa da única panela no fogão. Lembrava-se que tinha deixado algumas panelas no fogão, mas nenhuma chama tinha sido acesa antes que saísse.
‘Aviso’.
A tampa foi tirada.
O grito de horror de ecoou por todo prédio, assim como o som da tampa da panela ao cair contra o chão. Esperou que ela quebrasse o piso, e tudo abaixo dele, para que fosse em contínua queda, rumo ao abismo que achava que merecia ficar.
Pior do que isso seria se a mandassem para onde julgassem que ela merecia ficar.
Ficou sentada no chão e tapou a boca, para abafar o grito. As lágrimas começaram a jorrar, sua boca não suportaria os gritos, se jogou contra o chão. A agonia não saía de seu corpo. Corria por suas veias, estava no ar, o medo corroeu sua pele como uma doença a qual ela não poderia se curar.
Sabia seu destino. Sabia que ele se aproximava.
O aviso.
‘Você sabe o que fazer com traidores’.
O corpo sem vida de Branco estava encolhido dentro da panela, a pele em carne viva, como se ele ainda respirasse. Seu rosto mostrava um terror nunca visto por , nunca compreendido. Parecia querer resistir. De certo modo, fugir. O cerco totalmente fechado.
Não há saída.
Branco aceitara sua morte como deveria aceitar a dela.
E ela sabia que, para isso, não seriam tão piedosos quanto foram com Branco.
Ficou de pé, pegou o celular com a mão trêmula, e soube. Precisava fazer algo. Seu recado tinha sido dado.
Um assunto não finalizado.
Saiu de casa novamente, depois de desligar o fogo. Não tocou em mais nada no interior do apartamento.
‘Salve-me’.
Não recebeu resposta.

bateu a porta de casa.
— O que houve, cara? Nunca te vi tão irritado — disse , franzindo o cenho, enquanto tomava um sorvete, sentado no sofá e assistindo mais um episodio de Sherlock. Mais um em séculos sem episódios novos.
estava com uma carranca que pouco usava. Comprimia os lábios, tinha as mãos passando pelos cabelos, e andava com firmeza e raiva. A angústia não cabia em seu corpo. Fugia por sua pele.
Bufou, sentando no sofá e abaixando a cabeça, passando as mãos pela cabeça e puxando todos os cabelos para trás.
— Irritado? Eu ‘tô é puto.
— O que aconteceu?
levantou rápido, com raiva, e jogou o jornal que estava em cima da mesa de centro longe. Os papéis bateram na parede e caíram, espalhando-se pelo chão. A foto de , na capa, continuou aparecendo. O nome de continuou aparecendo.
— Esse jornal. Essa porra não foi minha. Não são as minhas palavras!

Hey, wait, I got a new complaint, forever in debt to your priceless advice…


Capítulo 21 — Disenchanted

I hate the ending myself, but it started with an alright scene…

Um corte na veia femoral é capaz de fazer jorrar cerca de 0,3 litros de sangue por minuto. Em um indivíduo de 5 ou 6 litros de sangue, a morte é evidente em quinze ou vinte minutos, se o sangue não for estancado. Todavia, um corte na femoral costuma atingir cerca de oito centímetros de profundidade, tornando o estancamento difícil ou, às vezes, insuficiente. A veia femoral é responsável pelo transporte de cerca de um litro de sangue por minuto, o que faz dela uma das principais veias do corpo humano.
A varfarina é um medicamento anticoagulante, usado para combater a trombose, prevenir embolias em arritmia cardíaca, e prevenir recidivas de embolia pulmonar. Composta por dezenove átomos de carbono, dezesseis de hidrogênio e quatro de oxigênio, pode ser usado por via oral (sais de sódio) ou intravenosa. Demora cerca de 12 horas até se estabelecerem os seus efeitos. É usada também em altas doses como veneno para roedores.
Em doses excessivas, ou desnecessárias, causa hemorragias.

Quando chegou à delegacia naquela manhã de terça, era como se tivesse retrocedido cerca de um mês, e revivido o dia que voltara do Manson. A diferença era que não estava acompanhada. tinha chegado mais cedo. perdera a hora e só chegou ao trabalho às nove.
Acordou em pânico total, depois de uma mensagem de Julie pedindo para ela chegar à delegacia o mais rápido possível. Reunião de emergência.
perguntara o motivo.
Julie retrucara que já estava na reunião.
saiu da casa de desesperada por um táxi. O tempo que ele demorou seria possível ouvir todos os discos do Pink Floyd.
E, bem, deveria ter desistido de pegar um táxi. Deveria ter simplesmente voltado, dormido a manhã inteira. Deveria ter descansado, ter esperado com um café na mão, ter esquecido toda desconfiança por seu comportamento.
Mas ela era .
Vestia uma calça jeans comprida, e com alguns rasgos. Não rasgos de fábrica, mas que a própria tinha feito nas quedas de sua vida (literalmente). Para acompanhar, uma blusa de mangas compridas do filme Pulp Fiction, e seu casaco preto pesado. Andou correndo para a delegacia, espalhando "bons-dias" pelos corredores, recebendo olhares pesados e estudiosos em si.
Assim como quando voltou do Manson.
Quando chegou à sala de reuniões, o projetor tinha imagens de Samantha Fox e das cenas do crime de Halloween e do suicida.
Todos olharam para ela nesse momento. Alguns viraram os olhos, bufando em desaprovação. deu um sorrisinho sem graça e procurou sua cadeira. A única desocupada da sala.
Sentou-se próxima ao projetor, do outro lado da sala, longe de Julie e da tela de projeção.
Espera.
Meu lugar não era aqui.
Julie, de pé, pareceu frustrada por ter sido interrompida, mas logo retornou, à medida que todos os olhares se voltaram para ela. Esfregou as mãos. Chegara a hora.
— Depois de algumas horas de pesquisa, eu acabei decidindo o detetive responsável pelo caso do suicida e de Joe Durden. Ambos devem ser dados a um detetive responsável...
Acorde.
Acorde.
— ... Que saiba agir sob pressão...
Resista.
Resista.
— ... Que consiga pensar além do ordinário...
Você consegue.
Você vai vencer.
Você vai ser superior a essa força.
— ... Que não se abale nos momentos de frustração e dificuldade...
Não caia. Não se deixe cair.
— ... E que, acima de tudo, seja totalmente inquebrável.
Não consigo. Vou sucumbir.
prestava total atenção. Esperava pacientemente seu nome. Sabia que seria o seu nome. E sonhava com isso.
Sonhava.
Sonhava.
E sonhava...
— Er... ? — perguntou Julie, apoiando as mãos na mesa e franzindo o cenho, com a voz vacilante. Aquilo nunca acontecera antes.
tinha os braços nos lados da cadeira, o corpo jogado contra esta e sua cabeça caída para o lado. Os olhos fechados, e não produzia nenhum ruído.
Na verdade, estava dormindo como um bebê.
? — Julie chamou com um pouco mais de firmeza na voz.
Nada.
As risadinhas começaram a soar, baixas.
! — Julie chamou mais alto.
Com um salto, fazendo a cadeira arrastar no chão e quase a fazendo cair, despertou soltando um baixo e confuso "eles são a mesma pessoa". Maldita Psicose. Pesadelos o tempo todo.
— Você estava... — a delegada começou, e sentiu seu rosto ficar cada vez mais vermelho.
— Cansada. Só um pouco. Dormi mal. Estou com sono. Só um pouco.
Repete mais uma vez, . Dá mais credibilidade.
Esfregou os olhos, borrando um pouco a maquiagem. Depois arrumaria aquilo. Todos ainda olhavam para ela, dessa vez com em sentimento de desaprovação, exceto Julie. Parecia achar um pouco de graça, até. Não uma graça cruel. Uma graça inocente.
Ter praticamente tirado um cochilo na mesa de reuniões não era a melhor coisa a se fazer depois do que acontecera no dia anterior.
— Então, acho que... podemos continuar — prosseguiu Julie.
Com cuidado, pegou uma caixinha azul no bolso do casaco, abriu com um click quase impossível de ouvir e pegou um remédio. Quando a luz se apagou de novo (luzes apagadas: não podiam culpá-la por um cochilo; o ambiente era propício), um flash com a foto de surgiu na tela.
O susto com sua imagem foi inesperado. Não poderia jamais dizer que estava surpresa em ver seu próprio rosto daquele modo, assustado, e com certo grau de insegurança. Era sendo levada, carregada, arrastada, para o Manson. Seu rosto estava sério, tentando ser inexpressivo, sem sucesso.
Agora, sua dona conseguiu interpretá-lo. Conseguiu entender por que a tratavam como uma doente, uma criança, quando ela voltou. Pararam por um motivo.
Porque o ódio nas pupilas de era até perigoso. Naquelas imagens, sentiu medo de si. Não estavam direcionados para a câmera, e, se estivessem, a sensação seria bem pior. Era o total silêncio naquelas imagens. O tipo de silêncio que se sabe que há palavras inseridas. A escuridão que abriga um monstro, e não há outra escolha a não ser esperá-lo e rezar por perdão.
Tratavam-na com cuidado, porque sabiam que ela estava com um ódio mortal de ter ido para o Manson.
— O caso Durden e o do suicida devem ficar com um único detetive. Sem duplas. Uma pessoa que saiba agir independentemente e que não tenha medo de errar, de se arrepender e de consertar seu erro.
— E o Fox e do Halloween? — perguntou , com as palmas das mãos viradas para cima, o cenho franzido. Parecia uma pergunta pertinente para ela, mas simples para todas as outras pessoas.
Todos olharam para ela.
— Continuam como sendo cometidos por Jacqueline Durden — respondeu Julie calmamente, como se fosse, na verdade, algo fácil de ser compreendido — Não podemos fazer muito em relação a isso. Não temos provas concretas.
Nem tinham para me levar para o Manson. Não foi por isso que eu escapei.
Olhou para a foto de si mesma. As duas pareciam pensar a mesma coisa. Não parecia haver qualquer tipo de diferença entre as fotos... Ambas tinham a mesma ideia. A parceria.
Queriam provar algo que era óbvio que era verdade, mas pessoas pareciam se esforçar para não verem.
— Assumo que senti um pouco de receio ao tomar essa decisão — disse Julie, olhando para o chão, e sentando-se, com as mãos fechadas em punho e em cima da mesa — O último grande caso dessa pessoa não fora totalmente bem-sucedido. Mas talvez, fosse porque a decisão final, errônea, não fora cometida pelo detetive em questão. E sim, pela outra metade de sua dupla.
— Por que tenho a impressão de que isso é pura desculpa? — sussurrou , com o corpo inclinado para o ouvido de Marla. Ela pareceu concordar.
não sabia se desejava que o caso fosse para ela. Lidar com o caso de Joe não era problema por si só, por ser Joe. Aliás, ela queria mesmo era descobrir o que tinha acontecido, e por que tudo apontava para ela. O caso do suicida também. Mas a incomodava ver que o caso de Samantha e do de Halloween tinham sido arquivados.
E não teria tempo nem cabeça para tentar solucionar os quatro sem ajuda.
Julie virou o rosto para .
— Oficial , os casos são seus.

— Desculpe? — perguntou , baixo. Estava estarrecida. ? O cara que tinha participado de sua ida ao Manson?
Julie tinha acabado de falar que a palavra final tinha sido dada por Marla. Marla Bronx tinha sido a pessoa que a fizera ir para o Manson. apenas foi parte da investigação.
Aparentemente, partes importantes.
Marla tinha dado a sugestão para ser mandada para o Manson? Afastada? Punida?
— Meus? — perguntou, os olhos brilhando sob a pouca luz da sala. Deu um pequeno sorriso, parecendo lisonjeado por ter sido escolhido para os dois casos mais difíceis dos últimos tempos. Fazia algum tempo que não tinham casos tão fascinantes na cidade.
Julie pegou as fichas dentro das pastas amarelas, e estendeu-as para . Quando ele segurou-as, virou os olhos em zombaria. Ainda estava incomodada por ter insistido para não contar a ninguém sobre os dois.
— Não sei o que dizer — ele disse, com um sorriso amarelo, o canto dos lábios erguido sem graça.
— Bem, não precisa dizer nada. Aliás, quanto menos disser, melhor — retrucou Julie, sem soar grosseira, mas conselheira — Mantenha relatórios diários e me entregue. Diários.
Ele abriu a primeira pasta. Estava uma imagem de Joe Durden, os olhos fundos, grandes olheiras. O cabelo tinha uma franja que cobria um pouco as íris verdes, e estava loiro na época. O cigarro pendia entre seus lábios, como se Joe não tivesse forças para segurá-lo na boca, mas ainda precisasse dele para sobreviver. Sugava toda sua energia, quando, na verdade, o cigarro quem sugava a dele.
Foi tomado por uma onda de prazer que não era capaz de explicar, muito menos expor. Que falsa modéstia, . Tinha vergonha de admitir que adorava aquilo. A maneira com que o olhavam com surpresa, com hesitação, com uma corrente de certeza de que não seria capaz de resolver aqueles casos. Afinal, sua reputação estava em queda desde a volta de . A raiva que sentiu, a revolta ao trazê-la de volta, era por isso, por sua imagem de êxito sendo desfiada pela volta da extraordinária e conhecida detetive. Mas a decisão de levá-la ao Manson tinha sido de Marla, e disso ele poderia escapar. O peso na consciência por isso era ignorado por ele, sendo relembrado apenas pela própria .
Receber aqueles casos era a representação de toda sua supremacia. Era a prova viva de que ele era bem melhor que . Levá-la era o desenho de uma parábola em queda, mas trazê-la, entregar-lhe um teto... Era uma obra do quanto precisava dele. Ele deu-lhe prazer, fez sentir-se satisfeita, e assumir que precisava dele. E precisa. Ela não tem opção.
Ele é tão grandioso, tão superior a ela...
Julie viajou os olhos para , que afundou na cadeira, de vergonha.
— Além disso... Recebi um comunicado de Jameson. Acho que sabe quem é ele, .
— Tenho o prazer.
Além disso, temos uns probleminhas de edição para tratar.
— Jameson comunicou-me que temos uma promoção em nosso ambiente. O mais novo membro de nossa equipe. E, bem, novato... — ela deu um pequeno sorriso maternal na direção de — Acho que teremos que arrumar um novo apelido para você.
Novato.
Julie ergueu as mãos na altura do peito e começou a bater palmas. estava desnorteado. Logo, várias outras pessoas da sala estavam aplaudindo junto. Ele passou os olhos por todos, e foi de encontro ao indivíduo mais animado dali. Alguns apenas aplaudiam, outros também sorriam. Mas aquela pessoa em especial parecia realizada.
dava um sorriso pequeno, enquanto se levantava com um sorriso amarelo para agradecer.
Ele não conseguiu entender o que aquilo significava. Ironia? Possivelmente. Mas não era certo. O fato de ter sido escolhido para investigar o caso Durden novamente pode ter causado uma descarga de sarcasmo absurdo em . O sorriso dela poderia significar isso. Talvez significasse apenas orgulho disfarçado. Uma tentativa de ocultar um sorriso maior, devido às circunstâncias. Algo como ‘você conseguiu. Eu gostaria de poder levantar e abraçá-lo agora, mas não posso’.
Ou simplesmente educação.
— Pode deixar todos seus pertences na sua sala, . Hoje mesmo, você terá seu nome na porta de vidro — disse Julie.
Novato, nunca mais.
E com um sorriso, ainda de pé, diante de todos, ele foi dispensado da sala, saindo na frente do resto. Todos foram dispensados, mas ele foi o primeiro a sair.
O primeiro.
Jamais seria apenas mais um. Não era mais o novato.
Agora era o repórter investigativo .

Quando ia sair da sala, sentiu a mão de Julie tocando seu ombro. Sentia orgulho de , por sua conquista, mas não sabia se tinha coragem de ir parabenizá-lo. Isso significaria contato físico, como um abraço.
Seria estranho demais. Um abraço, um aperto de mãos, quando as bocas já se conheciam.
, precisamos conversar.
Muitas coisas trágicas acontecem quando alguém diz ‘precisamos conversar’. Um filme de toda sua vida começou a correr na cabeça de , e uma lista das possíveis coisas erradas que ela fizera contra Julie formou-se em sua mente.
— Sim? — ela tentou parecer tranquila.
Julie indicou a cadeira.
Alarme.
Mau sinal.
— O que houve ali, hein? Você apagou do nada.
— Aquele anjo da escuridão chamado insônia — respondeu com os cantos dos lábios erguidos, em um sorriso infantil e conformado. Não desarmou Julie.
As duas se sentaram uma em frente da outra.
— Sobre ontem... Nós tivemos uma pequena conversa sobre o que aconteceu entre você e .
— ‘Nós’ quem?
Julie comprimiu os lábios.
Alarme.
— Eu e mais alguns oficiais de polícia da cidade. Pessoas que eu deveria dar ouvidos. Eles vieram hoje cedo, se encarregou de deixá-los à vontade. Eles se acalmaram um pouco quando vieram até mim.
engoliu em seco.
— O que vocês falaram?
Calma.
Julie cruzou os dedos das mãos e colocou-as na frente da boca. Queria parar suas palavras.
— Tivemos que falar sobre vocês duas. Não tinha como fugir do assunto.
— Você quem os contatou?
— Não. O fato causou um burburinho meio forte. Superiores ficaram sabendo. Eu não teria como negar que foi algo relevante.
— Foi só uma discussãozinha, Julie — deu um sorrisinho nervoso, rodeando.
Julie pegou um papel em cima da mesa que estava virado para baixo, e mostrou a imagem da câmera de segurança, de deitada no chão, e em cima dela, segurando a gola de sua blusa. comprimiu os lábios, respirou fundo e suspirou.
— Diminutivos não se aplicam a essa situação, — Julie disse, colocando o papel na mesa. esticou a mão e virou a imagem para baixo novamente — O que vocês duas causaram foi algo bem extremo.
— Por que você não chama a atenção de também?
— Ela não veio hoje. Não percebeu?
Ah, sim. Por isso não estava em seu lugar. Como não fora, e ela se atrasara, os lugares tinham mudado ligeiramente.
— Além disso — a delegada continuou, sentando na cadeira em frente à de —, pare de agir na defensiva.
Seu tom era completamente solene. Um pouco assustador, até. E, de modo extraordinário, alarmante. Era um aviso claro.
Fuja.
— O que disseram?
— Não foi só pela briga, . Você não aceitou o caso Fox. Você sofreu sérios problemas ultimamente, tanto físicos quanto psicológicos. Você andou confundindo trabalho com vida pessoal, vem tratando muitos problemas nos nossos corredores. E, acima de tudo, não saiu nem um pouco bem na matéria de , e houve uma acusação de assédio de sua parte.
Ela engoliu em seco.
— Você sabe exatamente o que isso significa, não sabe, ?
A mesma história. Toda de novo.
— Acho que sei — respondeu com um pequeno ar melancólico. Queria soar revoltada, em negação. Mas não tinha forças.
Forças?
Paciência.
Estava tomada por uma total ira. A cólera consumia sua carne, fazia seus dedos dobrarem em nós esbranquiçados, as unhas clarearem ao serem pressionadas contra as palmas das mãos de com força. Os dentes trincaram, os olhos pararam de piscar por vários segundos.
— Você sabe o que você deve fazer agora? — perguntou Julie, mantendo total calma e serenidade.
— Sei.
— Então faça.
Lentamente, se levantou, apoiando as mãos nos joelhos. Girou e virou-se para a porta, andando um passo de cada vez, devagar, e saindo da sala de reuniões.
Foda-se. Foda-se, foda-se, foda-se. Escritas em portas estão tão fora de moda...

Quando saiu do corredor, e foi para a sala de , não sabia que caminho deveria tomar depois. Pensou em simplesmente ignorar o aviso — ou melhor, a sugestão — de Julie e ficar ali até o fim do dia. Pensou em ir para a casa de , dormir até o apocalipse e acordar só pra ir ao banheiro e comer. Pensou em perguntar a sobre os casos, perguntar a opinião dele, perguntar se ele tinha algum palpite. Pensou em virar toda aquela sala do avesso, jogar mesas no chão, papéis para o alto, e sair correndo rumo a lugar nenhum como se não houvesse amanhã.
Em vez disso, ela só foi para a sala de mesmo.
Seu caminho fora assistido por alguns policiais que pareciam cientes da conversa anterior. Não dela em si, mas do que ela transmitira. Mais problemas, ? Já não chega?
De algum modo, eles pareciam saber de algo que ela não sabia.
Entrou na sala de quando ele estava de costas para a porta, olhando superficialmente algumas folhas das pastas. entrou em silêncio, posicionou-se em frente à porta e, com o pé, fechou-a com um estrondo que fez jogar para cima algumas folhas em suas mãos.
— Filha de uma égua — ele xingou, baixo.
deu um sorriso cínico. Ele olhou para ela por trás do ombro, enquanto unia os papéis que tinham caído.
— O que foi? Por que essa cara?
deu de ombros. Sentia-se uma nômade. Passando de mão em mão.
— Vou ter que sair.
— Ah. Cedo assim? Você mal chegou.
— A Julie quem achou melhor — colocou as mãos nos lados da cabeça e apertou os olhos, como se estivesse começando a sentir dor de cabeça e não quisesse mais falar.
— Vai lá ‘pra casa? — perguntou .
— Não, acho que não. Acho que vou tomar um café.
— Sozinha?
— É provável.
Deu as costas, temendo não poder entrar naquela sala por mais três meses.
— chamou , fazendo-a olhar para trás com um nível um pouco excedente de rapidez — Aconteceu alguma coisa?
Ela comprimiu os lábios, e depois os separou com os dentes trincados, puxando um pouco de ar para dentro de sua boca, com o olhar vacilante.
— É sobre o Joe? — o oficial voltou a perguntar.
— Não, pela primeira vez. Meio que é sobre a .
— O que aconteceu?
balançou a cabeça levemente. Sentiu-se levemente reconfortada por ele estar preocupado com isso, e perguntando sobre o assunto.
— Mais tarde eu te digo.
— Se não é tão importante, por que você está levando todas as suas coisas?
Os dois abaixaram o olhar para a caixa de papelão que segurava. Pegou a caixa pelos lados, e, por alguns instantes, poderia jurar que ela se despedaçaria como em filmes, fazendo todo seu conteúdo cair no chão.
— A deixou isso ontem aqui. Achei que você quisesse que dividíssemos a sala.
mordeu o lábio. Não poderia dizer. Não queria dizer a que, depois de tanto trabalho que ele tivera para tirá-la do Manson, para deixá-la ficar em sua casa, ela tinha sido afastada de novo, informalmente. Ao mesmo tempo, não queria que ele se surpreendesse quando fosse um convite para afastamento oficial. Não queria que ele demorasse a saber de algo sobre ela, muito menos que ele ouvisse aquilo pelos lábios dos outros. se incomodava quando não conseguia controlar o que falavam dela, e achou que, talvez, também fosse assim.
Ao mesmo tempo em que queria dizer tudo, sentia que era melhor ficar em silêncio.
— Com licença? — ouviram uma voz vinda da porta.
O que parecia ser um gongo, na verdade, era pior do que já estava.

apareceu no vão da porta, parecendo levemente constrangido por estar ali em hora errada.
— É uma má hora? — ele perguntou, novamente.
e se olharam por um instante.
— Não, . Pode falar — precipitou-se, quando se preparava para dizer alguma coisa — Quer saber algo sobre o caso Durden?
— Não, eu...
— Porque você sabe que posso te dar alguma informação — interrompeu o oficial, cruzando os braços.
— Eu queria falar um negócio, rápido.
— Então fale.
— Com a .
olhou para baixo enquanto olhou-a de lado.
— Ok. Bem, estarei ali fora.
Caso algum de vocês queira matar o outro.
abriu a porta e entrou na sala um pouco embaraçado, para o oficial sair e ele ficar sozinho com uma detetive que segurava uma caixa com papéis e algumas tralhas.
— Isso é seu? — ele perguntou, apontando para a caixa.
— É sim — ela retrucou, firmemente e olhando para a caixa.
— Você está de saída?
Ela engoliu em seco.
— É. Por um tempinho.
— Você... precisa de uma sala? É isso? — ele colocou uma mão no bolso, e coçou a nuca com a outra — Você pode... ficar na...
— Não — ela interrompeu — Não, obrigada. Eu preciso... — pense, pense, pense — Arrumar isso aqui.
Ok, foi a melhor desculpa esfarrapada que eu já dei. Sério.
A caixa estava tão bagunçada que podia sair um ser mitológico dali de dentro.
— Ah. ‘Tá. Está tão desarrumada quanto o seu quarto?
— Fala sério, — ela disse, séria, e depois vestiu um pequeno sorriso — Você sabe que nada é tão desarrumado quanto o meu quarto.
Ambos compartilharam uma risada incrivelmente desconfortável nesse momento. Era uma risada gostosa, sincera, não chegando a ser uma gargalhada. Era uma das risadas mais agradáveis que os dois já tiveram, e a pior delas.
Mais desagradável mesmo era o que veio depois. O silêncio.
— Eu já entendi o que isso significa — ele apontou com uma pitada de melancolia — E foi por causa da minha matéria, não foi?
— Não, , não foi a sua matéria — ela tentou soar o mais gentil possível, ao mesmo tempo em que desejou que ele desistisse.
— Mas a matéria também teve a ver, não teve?
, não teve nada a ver com a sua matéria, ok? — ela franziu o cenho, diante da preocupação que ele parecia demonstrar, ainda fazendo algum esforço para não soar grosseira — Por que você diz isso?
Era a hora. A verdade. Finalmente.
Alguns segundos depois da hesitação, ele finalmente disse a verdade, falando rápido e com um pouco de desespero:
— Aquilo do jornal não é meu, . Eu precisava te dizer isso. Quando eu li, não pareceu o que eu tinha escrito, eu nunca teria escrito aquilo.
, olha...
— Aquilo foi terrível, sério, nem se eu tivesse me limpado com o papel do jornal sairia uma mer... Putz, eu não falei isso, desculpa, não queria dizer isso, mas realmente, alguém que escreve daquele jeito não tem um diploma de jornalismo. O que estava escrito lá era muito errado em termos jornalísticos, era ofensivo, parecia uma crítica de filme, não algo que se publica na primeira página...
.
Ele parou de falar e olhou diretamente nos olhos dela. Percebeu que podia ter resumido toda aquela conversa em apenas uma frase.
— Não fui eu. Só queria te dizer isso. Sei que não vai fazer qualquer diferença.
...
. Pare de repetir meu nome — ele olhou bem fundo nos olhos dela, inclinando a cabeça sutilmente para frente.
Ela suspirou.
— Eu realmente não queria falar disso, ainda mais agora... Essa é a sua palavra, . Contra a de quem? Quem escreveu aquilo, então?
— Quem você acha? A !
franziu o cenho.
— A ?
— Claro! Quem mais seria? — ele erguia as sobrancelhas, como se dissesse a coisa mais óbvia do mundo — Eu a vi duas vezes perto da minha matéria. Na primeira, achei que tivesse perdido-a e ela me entregou. Foi o momento que ela teve para olhar o envelope e o que estava escrito nele. E, depois, quando eu levei a matéria para o jornal, ela estava lá, e tinha entregado a matéria antes de mim!
— De onde você tirou isso? — fez uma careta de quem sentia desgosto por aquela acusação. podia ser uma vadia, mas não faria aquilo.
Se bem que também nunca achou que ela faria tudo aquilo que fez.
— Da verdade — retrucou, arqueando as sobrancelhas de novo — Aquela vagabunda fez isso. Ela armou para mim. Ela armou para mim duas vezes, , e você viu isso ontem.
, você tem ideia do que está falando? — ela parecia ter raiva.
— Você quem não parece fazer nenhuma ideia — ele segurou-a pelos ombros, fazendo-a soltar a caixa, que caiu entre os dois, e alguns poucos papéis voaram para o chão — Por que você não pode entender que eu não fiz nada? Que eu sou inocente?
Ele estava desesperado para que ela compreendesse. E ela o olhava séria, totalmente indiferente. Sua respiração era ofegante.
— Está feliz agora? — ela perguntou, baixo — Pela sua linda matéria, pela sua bela reação à ‘vagabunda’? Agora que você tem finalmente sua notícia, seu emprego, sua promoção, pode ir embora. Não era o que você queria? Você não veio até mim por causa da sua carreira? Eu realmente o parabenizo. Você sempre quis isso. Seja honesto, garoto, é tudo por isso. A mídia, a imagem que fazem de mim. Eu sei que você só se aproximou de mim por isso, inicialmente. Eu realmente acreditava que, depois, tinha mudado, mas parecia que não. Eu entendo isso, na verdade. Vivi com os Durdens tempo suficiente para saber como a pressão funciona e pode ser cruel. Só vamos deixar isso quieto, ok? Eu não me importo mais. Parabéns pela sua promoção. Eu vou continuar fazendo o que eu fazia, e não dar merda nenhuma para qualquer outra coisa além do meu emprego, e vou tentar recuperá-lo mais uma vez. Porque é tudo que eu sei fazer. Tiram-me minhas coisas, e eu reconquisto. Foi assim que cheguei ao topo. Sem inventar, dramatizar coisas sobre qualquer um. Não foi tirando vantagem de ninguém.
As mãos de caíram. Os olhos de estavam marejados, e ele não sabia o que dizer.
Era verdade. Tudo. Era pura mídia.
Era só para uma promoção.
Mas não acabou sendo isso.
— Talvez fosse, no começo. Eu só queria uma promoção. Eu era o novato, o garoto dos obituários. Mas eu comecei a ser o amigo de . Cheguei a algo além disso. E queria reconquistar pelo menos o posto de amigo, se você me permitir.
Ela colocou as mãos no rosto.
— Não complique as coisas.
— Estou tentando facilitar.
— Não está não.
...
— O que mais você quer?! — ela gritou, tirando as mãos do rosto e com os olhos fechados.
Ela sentiu algo tocar a palma de sua mão. fechou-a em volta de um pedaço de papel.
— Te procuraram querendo te entrevistar. Pode deixar. Eu vou sumir da sua vida.
Quando abriu os olhos, ele não estava mais ali. Só havia um papel com alguns dígitos de telefone.
Apenas um vestígio, uma névoa, do que um dia fora tudo, e agora não passava de uma lembrança ruim.
Você é apenas uma canção triste, com nada a dizer.
E se eu estiver errado... Isso nunca significou nada para você.


Saber dirigir era uma das coisas que precisava aprender.
Quando saiu da delegacia, precisava chamar um táxi. Não sabia para onde ir. Ir até a casa de , com todas suas tralhas, parecia ser abuso. Lentamente, ela estaria se mudando para lá, e não estando em uma breve estadia. Sua casa tinha Ramona, e , e não estava no melhor clima para vê-los. A única pessoa que realmente queria ver era .
Sua vontade mesmo era dormir.
Ouviu alguém se aproximar dela, por trás. Virou-se e avistou Dayse, a mulher franzina, de cabelos castanhos bem lisos, e rosto bem magro. Acenou timidamente e se aproximou, cumprimentando .
Dayse perguntou sobre a caixa nas mãos de , e ela mentiu mais uma vez em sua resposta. Depois, a pergunta seguinte da policial foi sobre a veracidade do boato que correu a delegacia no início daquela manhã. Sobre .
Uma pequena esperança cresceu no coração de . Normalmente, sentia aquilo quando estava apaixonada, e as únicas vezes que isso pareceu acontecer foram com Joe Durden e . Mas apaixonada por ? Ele assumira os dois, finalmente. E sem vergonha, pelo jeito, para até Dayse, que ela mal conhecia até pouco tempo, saber.
O porto-seguro.
Seria aquilo, finalmente, as mesmas borboletas no estômago?
perguntou que boato, e se arrependeu quando ouviu a resposta.
Não. Novamente, deveria ser apenas uma dor de barriga.
Presa.
Respiração.
Faca.
Peixe.
Mesa.
Implorar?
A verdade distorcida.
Como sempre.
A verdade, a mentira, e tudo que há entre esses dois extremos.
Porque todos sabiam a verdade de duas pessoas, a qual uma delas não teria como se defender.
Já fazia algum tempo que não tinha palavra contra ninguém.
Dayse perguntou se ela queria uma carona.
ergueu o rosto e suspirou. Disse que não precisava, pegaria um táxi, iria para casa. Sua cabeça ia explodir.
Dayse perguntou que casa, e disse que era sua própria. Finalmente. Ela nunca perdera o controle.

A questão principal é, e sempre foi, saber se é ou não melhor ficar sozinho.
Isolamento é a resposta. Construa um muro ao seu redor. Ninguém entra. Ninguém sai. É a paz.
Assim que o táxi chegou ao número 537 da Singer Street, ela saiu do carro com a chave em mãos. Colocou-a na fechadura e girou. O som do silêncio foi tão revigorante que trancou-se no vácuo. Deixou a caixa cair no chão e foi até o sofá, deitando nele com um som morto. Olhou para o teto e pegou no bolso o papel de , jogando-o na mesa com os números virados para cima.
Fechou os olhos e tentou imaginar . Ele tinha sido seu confidente por dois dias, e já fizera aquilo. Por quê? Por que ele tivera aquela vontade de tratar como se fosse uma mulher que implorasse por ele? O que ele ganhava com aquilo? Por que aquela vontade toda de fazê-la inferior?
E, mais ainda, esconder isso dela? Não precisava ter espalhado. Ter saído contando. Era só não esconder.
Que raiva sentia de si mesma. Era como uma adolescente apaixonada. Uma hora quer uma coisa, outra hora, outra.
Com , queria manter aquilo oculto. Porque ele era o novato. Porque seria um grande peso os dois começarem a sair depois de se conhecerem três semanas antes, ainda mais depois dela ter rompido com , seu noivo.
Com , não queria essa escuridão acerca disso. Porque eles já se conheciam há algum tempo. Porque não haveria problema em ele contar...
Entendeu perfeitamente o motivo.
Abriu os olhos e voltou a encarar o teto. Desejou com todas suas forças que alguém estivesse ali para ajudá-la. O isolamento a fazia encarar todos os seus problemas sozinha. Queria alguém ali para poder dar um ombro amigo.
Pegou o celular e tentou falar com . Ocupado.
Mandou uma mensagem para . Sem resposta.
Soube exatamente do melhor amigo que precisava.
Era quase meio-dia. Saiu de casa e foi para um restaurante não muito longe de sua casa. Era uma diner, mais uma lanchonete do que um restaurante. Bom, barato e um pouco bonito. Tinha o tema dos anos 50, e estava quase vazio.
Uma mulher loira, de grandes íris azuis, entrou no lugar, que definitivamente não fora feito para ela. Olhou estranhando para os poucos a sua volta, até achar sentada em uma mesa.
— Eu esperava mais de uma das melhores detetives da cidade — disse, sentando na frente dela e pegando seu cigarro, para fumar com ele voltado para a janela.
— Cala a boca. Eu não tenho dinheiro como tinha antes.
— Deve ser muito importante para você ter me procurado. Por que não está trabalhando? — perguntou, tragando.
tinha os olhos cansados e um hálito leve de álcool.
— Me tiraram de lá de novo.
A fumaça saiu janela afora, sendo levada para o vento. tossiu, mas Ramona continuou a fumar.
A loira inclinou-se e fungou a detetive.
— Você está fedendo. Eu esperava bem mais de você, .
— Ah, não me culpe! — respondeu, rabugenta — Eu estava sozinha, envergonhada, minha melhor opção era ficar bêbada.
— Ainda bem que eu cheguei cedo o suficiente para evitar essa tragédia.
— Vá para o inferno.
Ramona ergueu os cantos dos lábios em um sorriso infantil.
Uma garçonete loira se aproximou da mesa das duas, e perguntou se queria fazer algum pedido.
pegou o cardápio em cima da mesa, ao lado de seu copo com bebida, e passou os olhos rapidamente. Ramona fez o mesmo, depois de colocar o cigarro em um cinzeiro próximo da janela.
— Ovos fritos com carne bem passada. E um copo do que tiver mais álcool e for mais barato que você tiver.
! — falou Ramona, abaixando o cardápio de em sua frente, podendo ver seus olhos — Falando sério. Você não vai ser patética ao ponto de se entupir de bebida, feder que nem um gambá, antes do almoço. Peça algo que te deixe com mais energia. Não algo que te deixe querendo dormir!
virou os olhos.
— Ok, um café.
— Eu terei o mesmo que ela, obrigada — Ramona disse, com um sorriso educado e fechando o cardápio — Ou melhor, eu comerei um pouco do dela.
ergueu uma sobrancelha, olhando para Ramona.
— O que foi? Preciso manter meu corpinho escultural. E não estou com fome.
A garçonete saiu e deixou as duas sozinhas. suspirou.
— Quer me dizer o que aconteceu?
— Tive um problema ontem. Com a .
— A vagabunda?
— Tipo isso. A matéria do que saiu ontem ajudou. A Julie, delegada, pediu para eu ficar um tempo fora.
— Ela te demitiu disfarçadamente.
— Por que você coloca dessa maneira?
— Quer que eu minta para você? — perguntou Ramona, com as sobrancelhas erguidas — Essa Julie apenas quer te proteger, mandando você ir embora. Ah, faça-me o favor. Ela só quer tirar o dela da reta. Não vai mais responder pelos seus atos, ou melhor, por qualquer coisa que façam com você.
— Você é cruel — fez uma careta de desgosto.
— Eu sou realista. É bem diferente. Até parece que você não me conhece minimamente. Para me chamar até aqui, era o mínimo que você podia ouvir.
— Eu tranquei a porta da minha própria cela, e perdi a chave... — murmurou, colocando as mãos nos cabelos e levando-os para trás. Ramona inclinou-se e deu um tapinha em uma das têmporas de — Ouch! Por que você fez isso?
— Sai desse filme do Woody Allen, mulher. Que drama.
— Você poderia dar conselhos melhores do que esse.
— Se quer conselhos melhores, liga em canal de criança. Você podia ter falado com qualquer um, mas veio falar comigo. Sabe, às vezes é melhor ficar sozinha do que estar rodeada por pessoas que te fazem sentir como merda, mas eu não sou assim. Não sou que nem esses seus ‘amigos’. Eu não te deixei antes, e não vou te deixar agora.
— Você está me devendo algumas respostas, Ramona.
— Eu vou te responder assim que puder. Juro. Primeiro, faça o que você acha que deve fazer.
Comprimindo os lábios, pegou no bolso da calça o papel com o número de telefone que tinha dado. Encarou o papel por alguns segundos, até que seu almoço chegou e deixou o papel ao lado do prato, quase não tirando os olhos dele. Os talheres já estavam na mesa antes do prato chegar, então Ramona pegou os seus e tirou um pedaço pequeno da carne de .
— E então?
— Não sei. Você quer falar por mim?
Ela fez que não com a cabeça.
— ‘Tá louca? O pessoal da sua delegacia continua me caçando que nem barata. Vai você. Além disso, tenho coisas pra tratar. Isso é coisa sua.
As duas continuaram comendo em silêncio. Quando terminaram, limpou os lábios com o guardanapo e murmurou.
— Obrigada. Por ter vindo até aqui. Eu precisava de alguém.
— Sem problemas. Vai para sua casa depois disso? Ou ‘pro ?
deu de ombros.
— Para o . Minhas roupas estão lá. Tenho alguns assuntos para resolver como ele.
— Acho que vou passar na sua casa também. Depois do que eu tiver que resolver.
— Pode ir comigo até o ? Não dentro da casa, você sabe. Só ficar me esperando ou sei lá — disse, depois de um tempo pensando, com um pouco de vergonha em sua voz.
Ramona deu um sorriso torto e reconfortante.
— Claro. Fico feliz em ver que você está começando a entender meu lado.
pegou o celular e o papel de .
— Eu sei que não preciso me preocupar com você — disse, justificando sua falta de importância aos problemas de Ramona — Você sabe se levantar.
— Exato. E você?
colocou o telefone no ouvido e piscou um olho para a loira.
— Eu? Eu nem caio.

Um cubo mágico, ou cubo de Rubik, tem 43.252.003.274.489.856.000 possibilidades de solução. não sabia nenhuma. Naquele dia, naquela terça de começo de dezembro, um dia menos frio que o normal ultimamente, ele não tinha nada muito mais importante para se ocupar no momento. Tentar resolver cubos mágicos era sua maior diversão quando estava com a cabeça cheia, e queria se ocupar.
Mas a conversa com , que acabara de ter, ainda estava ali.
Ao que lhe parecia, ela estava saindo da delegacia. Saindo? De novo? Por quê? Eram perguntas que rodavam sua mente, batiam nas paredes de sua cabeça, e rebatiam, como espelhos. Com certeza sua matéria tivera uma parcela de culpa. Sua? Não. E tinha que arrumar um jeito de provar isso.
Mas antes... Uma pausa para perceber quem seria seu novo parceiro de trabalho.
Há algumas semanas, , uma detetive que acabara de sair de uma instituição por ser acusada de assassinato, que perdeu a casa e pessoas que amava ao longo de sua vida, que foi sequestrada e ainda assim resolveu com ele um dos maiores mistérios do caso de Samantha Fox: sua gravidez. Não vira fazer muito sobre outros casos desde então. E ela não precisava. Pensava sozinha, trabalhava sozinha.
E agora...
— Novato — chamou o oficial , aparecendo na porta.
girou na cadeira e ficou de frente para ele, com o cubo mágico ainda em mãos. Ah, a eterna terapia para mentes pensantes, que ninguém além dele praticava.
— Ah, oi, — foi o máximo que disse, voltando para seu cubo. entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Parecia esperar dizer alguma coisa, como se tivesse chamado-o até lá. Cruzou os braços de modo não impaciente, e sim com algo próximo à ansiedade. Tal como uma criança esperando finalmente a autorização para brincar com seu brinquedo novo.
— Então... — resolveu dizer, após ficar levemente incomodado com o silêncio — Feliz com os casos?
Aquela pareceu a pergunta que esperava. Ele agiu com descaso, sentado na outra cadeira da sala, que seria futuramente usada para algum entrevistado de algum dia.
— ‘Feliz’ talvez não seja a palavra exata — ele disse, com o sorriso pequeno e majestoso de — Eu até que estou satisfeito.
— Achei que você preferisse passar esses casos para a .
franziu o cenho sutilmente, como se não compreendesse a observação de .
Podia sentir a luz dos holofotes em seu rosto. A câmera a alguns metros, direcionada para seu rosto. Sorria de um modo perturbador, para .
Duas pessoas morreram. Foram assassinadas. E você ainda sorri para isso?
— Tem um motivo para Julie ter passado-os para mim. Acho que eu talvez vá encará-los diferente dela.
Eu odeio como algumas pessoas encaram e aceitam certas coisas como se elas fossem normais para caralho, quando são tão perturbadoras.
— Tem alguma ideia de como começar o caso?
— Bem, vou olhar os registros. De repente, tiro de lá algo que não tiraram.
ergueu as sobrancelhas e voltou a olhar para seu cubo mágico. Era puro desdém em suas íris. Aquilo deixou um pouco indignado.
— O que foi?
me disse uma vez que não vale a pena focar em registros procurando brechas. Se houvessem brechas nesses casos, já teriam aparecido há tempos.
achou uma brecha ao fazer o exame e descobrir que o suicida na verdade foi assassinado.
é química. O trabalho dela é fazer todo tipo de teste, procurar bala em corpo sem buracos. O seu é investigar.
franziu a testa.
— O que houve, hein, novato? Para dar esse ataquezinho?
— Cara, não me chama de novato, ok? — disse — é o meu nome.
— Ok, , mas você está exa...
. Eu não sou seu amigo — disse, com um sorriso cínico.
encarou-o por alguns segundos, sem reação.
sustentou o olhar.
Então, começou a rir.
— Foi a , não foi? Claro que foi. Você fez a merda e continua todo arrependido. Cresça, garoto!
— Eu não sou garoto. Sou um profissional como você. E não me chame mais de novato. Além disso, eu não fiz merda com a ...
Parou.
— É, "" — disse com as aspas e a voz carregada de sarcasmo —, sua amada detetive me contou. Nem comer a você comeu. É um covarde mesmo.
— Quando que o ponto da conversa virou você me ofender?
— Não virou. Só estou expressando minha opinião. Não foi exatamente isso que você fez naquele seu artigo que deixou a acabada?
comprimiu os lábios. Que facada.
— É, . Posso não ser a pessoa mais honesta do mundo ou a mais divertida. Mas não sou de trair a pessoa que me ama. Muito menos de mentir sobre a pessoa responsável por me tornar tudo que eu sou hoje.
Então, explodiu em uma risada.
— Você? Fiel? Que não trai nem mente? Por favor, . Eu li sobre o primeiro caso da . Além disso... Trair não é nem a metade do que você está fazendo.
engoliu em seco.
— Explanar alguém é algo que não se faz nem a inimigos, disse — Nem a ninguém, na verdade. Você não está tratando como ela merece. Ela não é seu prêmio final. Não é sua submissa, alguém que implora por você. É alguém que se merece. E você não está sendo mais honesto do que eu com ela.
— Que merda você está falando? — quase suava frio.
— Ah, , por favor — ele respondeu, com uma careta de desdém novamente — Até eu já sei. No começo não vi quem espalhou. Mas hoje de manhã, eu e meio mundo ouviu você. Você e o pessoal da diretoria, da Julie. Se enturmando? Falando como estava desesperada por você. De como ela implorou por você — seu rosto estava agora tomado por ira total, as palavras escapando por seus lábios como se ele tivesse nojo delas como tinha de — Como ela quis ir para a sua casa, procurar um refúgio, como você foi bondoso para caralho em deixá-la ficar lá. Como ela quis beijá-lo em frente a todos, como ela queria tanto aquilo, ela não aguentava mais. Ela o queria tanto, mas tanto, que precisava mostrar a todos.
A verdade distorcida.
Como sempre.
— Cala a boca — murmurou.
— Ela tinha uma queda por você há muito tempo, não? Foi para a sua casa implorando para ficar lá?
...
— E o sexo? — estava totalmente possuído pelo ódio — Ela queria. Ela queria que você a comesse. Que você a tomasse, ela queria isso tudo. Era a vadia. Ela o forçou. E você? Você é uma vítima. Você foi bonzinho suficiente para atendê-la. Foi um favor o que você fez. Na cozinha, na mesa da cozinha, na mesa da sala, no teto, no armário, embaixo da cama... Em todo lugar possível.
.
— Você só ama essa atenção. Ama deixar por baixo. Qual é o problema, hein? O que ela te fez? Ela te deu um fora? Ou você simplesmente não consegue encarar que ela é e sempre foi inegavelmente melhor que você?
pulou da cadeira e avançou em , derrubando-o. Em confusão, foi imobilizado pelo oficial, com os joelhos ralando no chão, os braços de em volta de seu pescoço, e os seus próprios, fracos, tentando se defender.
— Eu vou te socar tanto que você nem vai se lembrar de como você era antes — murmurou .
O orgulho. O maldito orgulho.
Não suportava o fato de que uma mulher, e que tinha chegado bem mais cedo no ambiente policial, tinha tanto reconhecimento, e ele não. Odiava isso. Como era linda, brilhante, adorada, idolatrada. Ele era seu coadjuvante.
E quando tinha a chance de ser maior que ela, um merdinha daqueles, um novato, chegou e tomou seu lugar.
se aproximou de de um jeito que sempre quis. Excluindo a forte atração entre eles. Ele queria seu reconhecimento ao lado dela. Queria ser o oficial , que trabalhava com .
Não era parceiro dela. Eles simplesmente se ajudavam.
Soltou . era forte e grande demais, tanto física quanto ideologicamente, para lutar com um jornalista.
— Não é a primeira vez que você fala uma merda, . Controle-se — ele disse, levantando e dando as costas para o jornalista ainda no chão.
— Eu digo o mesmo — retrucou , olhando para o chão e tentando voltar a respirar normalmente.
— E você devia ser mais agradecido — voltou a falar, da porta.
— Eu salvei a vida da no dia do incidente Durden.
— Eu quem descobri que tinha sido Jacqueline.
— Qualquer um podia descobrir aquilo, pelo amor de Deus — disse, rindo, menosprezando — Você não é melhor.
segurou sua garganta. Limpou-a e disse, baixo, enquanto se apoiava para levantar:
— Você só não consegue aceitar o fato de que a me contou mais coisas sobre ela em três semanas do que ela te contou em três anos.
estava de costas e parou, sentindo seu rosto ficar rubro. Ele não se lembrava de ter sentido tanta raiva em sua vida.
Saiu da sala convencendo-se de que era bem melhor que . Deveria convencer-se disso. Afinal, se ele próprio não tentasse pensar assim, quem pensaria assim por ele?

Quando eram cinco horas da tarde, foi liberado para voltar para casa. Sua desculpa fora que precisava de tempo e tranquilidade para começar a trabalhar em seus novos casos. A verdade, entretanto, era que estava em total êxtase. A felicidade por tudo que acontecera no dia era algo inacreditável. Quando foi para casa, colocou as chaves na fechadura, e colocou o pé dentro da sala, sorria. Esse sorriso sumiu quando ele viu uma mulher sentada em seu sofá.
? Que susto — ele colocou a mão no peito depois de um pulinho para trás.
Ela deu um sorrisinho cínico, mexendo o café na caneca em suas mãos com uma colherzinha. Estava sentada com as pernas de chinês, agora de short.
— Como esteve? Tudo bem desde que você teve que sair? — ele perguntou, andando pelo corredor.
foi até a cozinha, e viu uma pilha de xícaras uma sobre a outra, na pia. Só lado, copos, e até pires. Tudo manchado de café.
— Você acabou com o café daqui de casa? — ele perguntou, falando bem alto, da cozinha, com o cenho franzido.
— Devo ter acabado com o café da cidade inteira — ela respondeu, alto, com calma — Mas não se preocupa, deixei mais sacos aí.
Ele abriu um armário e viu uma dúzia de sacos de café.
Depois disso, ela vai ficar uns dois dias sem dormir.
Ou umas duas semanas.

voltou para a sala.
já tinha terminado seu último café, e a caneca já estava em cima da mesa. Ele sentou-se ao lado dela. Tentou beijar seu pescoço, mas ela foi evasiva e moveu-o para o lado.
— O que foi? — ele perguntou, tocando o rosto de de leve, tentando fazê-la virar-se para ele novamente.
— Para quem não queria me ver nem coberta por ouro, você evoluiu rápido — ela disse, com uma sobrancelha erguida — Não pode falar comigo sem querer me beijar?
Ele estranhou. Estava quase sem graça.
— Ãhn... Você quer conversar?
— Sim.
— Sobre o quê?
Ela torceu os lábios, pensativa. não entendia nada. Estava estranhamente alarmado. Aquele comportamento de podia ser inusitado, mas conseguia ser estranhamente incomum.
Em vez de agir com indignação, ela parecia tão normal que chegava a assustar.
Seus olhos estavam vazios, vagos. Pareciam de uma criança com déficit de atenção. E seu corpo não se aproximava nem um pouco do da sensual e hipnotizaste das noites anteriores.
— Quer jogar um jogo?
se animou.
— Que tipo de jogo? — voltou a tentar beijar o pescoço de , que cedeu. Ele não abusou, e dava beijos leves, com longas pausas entre eles.
— Um jogo bobo. Eu te pergunto alguma coisa, e você deve responder com sinceridade.
— Ei, por que eu não posso perguntar também? Que injustiça — ele disse, com a voz brincalhona.
Ela sorriu abertamente.
— Por que a evasiva, tem algo a esconder?
Ele franziu o cenho, ofendido. Se estava planejando algo com aquelas frases, estava definitivamente fazendo-o de bobo.
— Não. Nada.
Ela riu, e virou o corpo. Esticou as pernas nuas por cima do colo de , e sorriu, colocando as mãos atrás da cabeça e deixando o corpo cair sobre as almofadas. Total e incrivelmente confortável.
— Tudo bem. Vamos lá. Humm... — ela pareceu se esforçar para pensar em algo, enquanto olhava para o teto, e massageava a pele de suas pernas — Você já traiu alguma de suas esposas?
Ele quase riu, mas limitou-se a um sorriso.
— Trair uma esposa? Não.
— Nenhuma das três?
— Que três?! — ele surpreendeu-se, dando uma risada enquanto perguntava.
deu de ombros, erguendo sutilmente as sobrancelhas como se não se importasse.
— Foram duas. Uma eu casei com dezoito anos, besteira de criança. Separei depois de uns seis meses. Depois foi quando eu tinha 21, casei com uma namorada de colégio, mas duramos um ano. Sempre colocam ponto a mais na história, distorcem as coisas, você sabe.
Ela quis rir.
— É. Deve ser — perguntou — Quer fazer uma pergunta?
Ele continuou massageando suas pernas, pensando.
— O novato... Ele... — procurou as palavras, molhando os lábios — Ele te deixou desse jeito?
Puta? Não. Ele me deixou triste. Eu sou capaz de voar no seu pescoço a qualquer momento.
Mas vou brincar um pouco antes.

— Desse jeito como?
— Ontem. Depois de...
— Não — ela cortou-o — não chegou a tanto.
— Tanto o quê? Vocês não transaram?
— Uma pergunta, .
— Ok — ele riu — Sua vez.
Ela mexeu o cabelo e sentiu as mãos de chegando até seu joelho.
— Você seria capaz de fazer o que pelo seu trabalho?
— Como assim?
— Ah, você sabe. Virar a noite trabalhando. Sabotagem. Inventar histórias.
— Olha... — ele pensou um pouco — Talvez inventar alguma coisa. Mas nada que fosse muito longe. No sentido que a mentira fugisse do meu controle, quer dizer.
— Você manteria tudo sob seu controle, então?
— Sim, faria o máximo para que sim.
— Entendi. Tentaria controlar os outros?
Ele olhou para ela, evasivo, com o canto do olho.
— Talvez. É cruel falar assim. Depende muito das circunstâncias.
— Sei. O que quero dizer é... Se você pudesse ter a chance de ter o controle, mesmo sobre pessoas, você teria?
Em uma situação diferente, pareceria uma psicopata. Sob outros olhos, era uma louca.
Era sobre esses olhos que todos a viam.
— Controle sobre pessoas?
— Exato — ela sorriu.
parou por um segundo.
Ninguém tem o superpoder de colocar as coisas de um jeito irônico mais que . perdeu 20 anos. De repente, ele era um menininho de seis anos. Assustado. Com medo.
Que acabara de perceber que era o jogador de um jogo, mas virou o jogo de um jogador.
Ele tentou manter a calma. Não queria mostrar que estava andando sob o gelo fino. Abaixo de si, havia a água fria. A sensação de que voltaria a uma realidade que odiava, que não pertencia. Em cima do gelo, estava acima, mas frágil.
— Depende muito das circunstâncias — ele repetiu, reconstruindo seu sorrisinho.
Ela deu de ombros.
— Mais alguma pergunta?
— Bem, pode ser a última... Preparado? — ela fez um sutil silêncio de suspense, erguendo o corpo e ficando sentada, ainda com as pernas no colo de , e cruzando os braços — Desde quando nós fizemos sexo em cima da mesa da cozinha? Você sabe que eu tenho nojo dessas coisas.
Evasivo.
— ele começou, com um sorriso leve, aquele sorriso destruidor que ele tinha —, você não está ex...
. Eu não sou sua amiga.

engoliu em seco. Situações delicadas como essa, apesar de durarem mais ou menos cinco segundos, parecem durar bem mais. Tecnicamente, no terceiro segundo, mas na terceira hora para a mente nervosa de , foi a primeira a dizer algo:
— Quer café?
Levantou-se e foi até a cozinha, com um sorriso morto nos lábios. Um sorriso de boneca de criança. Totalmente frio.
Ele perdeu as palavras.
, eu não sei o que dizer.
— Então cale a boca. Você fica bem mais bonito de boca calada — ela disse, indo até a cafeteira e servindo-se.
Ele engoliu em seco, e colocou as mãos nos bolsos, na entrada da cozinha. virou-se para ele, bebericando o café, e voltou até o sofá.
— Como você sabe disso?
— Que eu dei para você na cozinha? Ouvi dizer.
— Responda com sinceridade.
— Tanto quanto você me respondeu?
Ele estava começando a se irritar.
... Quem te falou?
— Não é da sua conta. Pelo que sei, pode ser qualquer um. Todos já sabem.
— Não foi isso que eu falei, inicialmente.
se sentou no sofá e explodiu em uma risada, que irritou mais ainda.
— Você foca isso? Não era nem para você ter falado alguma coisa, para começar. Depois, você sabe como notícias correm. Vamos precisar vazar um vídeo seu também, como fizeram com a ?
Ele semicerrou os olhos. Ergueu o indicador e, com um sorriso torto, apontou para .
— Foi você?
Ela se engasgou.
— Claro que não. Nem sei de onde aquele vídeo saiu. O ponto não é esse.
— Não, o ponto é você. Sempre.
— Não tente me colocar contra mim mesma, — ela riu, virando os olhos — Você já fez isso há quatro meses, e os resultados não foram os melhores.
— Foi o ? Quem te contou?
— Isso não interessa. O problema não é esse.
— Sabe, , eu não te entendo — ele disse, com uma risada sarcástica e andando pela cozinha com as mãos nos bolsos — Um momento, quer me beijar na frente de todos, contar a todos sobre nós. No outro, quando todos sabem, você não gosta. Eu não tenho bola de cristal para prever o que você quer.
— Eu te garanto que nenhuma garota gosta de ser explanada — ela disse, entre dentes, com ira em sua voz.
— Mas na hora de aparecer na casa de um colega de trabalho e transar com ele na mesa de jantar, ela gosta.
teve quatro instantes de reação. No primeiro, viu fazer um movimento brusco. Em seguida, já via a caneca no meio do caminho, entre os dois, e ficou alarmado. No terceiro, ouviu o choque da porcelana contra a parede, e já estava abaixado e com as mãos protegendo a cabeça. No último, olhava para ela com olhos surpresos e arregalados.
— Você é doente?! — ele gritou.
— Você é um monstro — ela murmurou entre dentes, os olhos um pouco marejados.
— Não confunda as coisas, . Você quis, e sabe disso. Não se envergonhe.
— Não, . Você pode até ter um sex appeal — ela disse com ironia —, mas não foi só isso. Eu precisava de um lugar para ficar.
— E transar comigo foi sua solução?
— O ponto não é o sexo. É você ter espalhado ele para todos da delegacia, num péssimo momento para mim. O jeito com que você falou.
— Sabe o que é engraçado? — ele deu uma risada bem irônica — Como você sempre pensa só em si mesma. Julga atos únicos de outras pessoas, e não as ações como um todo. Eu te dei um teto quando você não tinha onde ficar.
— Você julga o que o fez, mas conseguiu fazer algo tão ruim quanto ele.
— Bem lembrado. Na verdade, você parece ser tão vadia quanto a disse que você era.
subiu na mesinha de centro, passando por cima desta. Nada, nem um muro, poderia ser um obstáculo entre ela e . Atacou-o com ódio, mas ele desviou e segurou-a pelos punhos.
— Eu te odeio! Você podia ter feito isso funcionar, ! Estaria tudo bem, mas você insistiu em fazer merda!
— Eu? Eu salvei você! Eu te trouxe de volta, eu fiz tudo por você!
— Seu merda!
— Vá se foder! — ele retrucou.
— Não, vá você se foder! — ela retrucou, bem perto de seu rosto — Você quem desistiu de mim!
Ele jogou-a contra o sofá, soltando seus pulsos. Quando ela caiu, não soube reagir.
— Eu quem deveria ser o melhor detetive da cidade — ele murmurou, tentando ser inexpressivo, mas com evidente tristeza e melancolia no olhar — Você sabe disso. Eu sempre quis ser como você. Eu te dei prazer. Eu que te construí, e você nunca me ajudou.
...
— Cala a boca! — ele gritou, e continuou, baixo — Você não faz ideia de como é ser uma mísera sombra. Uma pessoa que chamam como segunda opção. Eu fui a sua segunda opção. E, agora, eu sou tudo que eu queria. Você já teve a sensação de que queria, e teve a oportunidade, de ser seu próprio Deus? Seu próprio ídolo? Seu próprio herói? Eu pude ter isso hoje — apontou para si mesmo — Eu não quero seu mal, . Só quero o meu bem primeiro. Todos temos demônios, eu só fui melhor em esconder os meus por mais tempo. Agora, finalmente tenho meu prêmio. Você poderia ter contribuído. Eu posso te ajudar, eu sei que você foi demitida de novo. Posso fazer o que você quiser, coloco sua reputação no topo. É só você me pedir.
Ela demorou um pouco a responder, bem baixo:
— De fato, eu não perdi nada quando perdi você.
Aquilo o cortou por dentro, abrindo uma ferida e liberando o que havia dentro dela. Tristeza? Não. Compaixão? Não.
A total e mais pura fúria. De seu modo mais primitivo.
— É exatamente isso. Você quer que eu te peça. Que eu seja alheia a você. Que eu seja menor. Você quer... Você sempre quis... ser melhor do que eu. Você só quer... Você quer ter a sensação de que é melhor do que eu — fez uma pausa, comprimindo os lábios e tentando evitar as lágrimas — Isso é incrivelmente patético.
Ele também foi pego de surpresa pelas palavras.
— Você me trata como merda, como sua puta. Mas, na verdade, você é minha puta. Eu te mando limpar o chão, você lambe.
Ela riu. Ficou de pé, olhou bem nos olhos de e ergueu as sobrancelhas.
— Até quando tenta ser melhor do que eu, você consegue me colocar acima. Porque até você sabe que sou melhor.
... Pare.
— Você me trata como merda na delegacia, porque me endeusa. Você quer ser como eu. Quer... quer que eu desça, para que você suba — ela parecia pensar em voz alta — Você é uma versão minha que deu errado.
— Cala a boca! Cala a porra da boca! — ele tapou os próprios ouvidos.
— Você percebe que a porta pela qual você podia ter fugido há muito tempo está trancada com um cadeado que você mesmo forneceu. Não foi, , essa rua sem saída que você encontrou? Você... você percebeu que me tratando mal, você me trataria bem?
— O QUE VOCÊ QUERIA QUE EU FIZESSE? — ele gritou.
— SÓ NÃO ME TRATE COMO A PORRA DE UMA DOENÇA — ela retrucou, com as veias pulsando em seu pescoço — NÃO ME TRATE COMO ALGO QUE VOCÊ DESPREZA. EU PODERIA TE AJUDAR, MAS VOCÊ NÃO ACEITA ESSA AJUDA, PORQUE VOCÊ É O GRANDE . NÃO PRECISA DE MIM, NEM DE NINGUÉM. SAIBA AGORA, OFICIAL, QUE VOCÊ ESTÁ SOZINHO.
Deu a volta e pegou suas coisas. Foi até a porta.
— E espero que siga assim no seu caminho ao inferno.
Fechou a porta.
pegou uma almofada e jogou-a longe. Quis gritar. Não amava , claro que não, isso era claro. Mas não queria que fosse aquilo. Queria ajudá-la, sim.
Enganava-se constantemente. Não sabia se era sincero seu sentimento de compaixão, ou se ele simplesmente ocultava como uma máscara o sentimento de inveja. Uma máscara tão bem colocada que, ao ser arrancada, o arrancou a pele.
A única coisa que restara foi o forte cheiro de café no chão e na parede da sala. Poderia ser facilmente limpo, mas de um jeito estranho, ele não quis limpar. Queria ter uma lembrança.
Era disso que era feito. Lembranças. Erros constantes.
Mais um para a coleção.

Well, if you think that I'm wrong, this never meant nothing to you, at all…


Capítulo 22 — The man who sold the world

I thought you died alone, a long, long time ago…

Dayse foi a primeira a chegar à delegacia.
Havia cerca de uma dúzia de pessoas por lá. Em Longview, duas delegacias revezavam os turnos. A delegacia de Julie Stoner fechava às dez da noite, para boletins de ocorrência. A partir dessa hora, poucos policiais continuavam lá. A delegacia reabria às seis.
Quando Dayse subiu as escadas, notou que havia algo estranho.
Estava monótono demais.
— Alguém pode subir comigo? — ela perguntou para um grupo de policiais próximos à escada.
— O que houve, Dayse? — perguntou o Testa de Pista de Pouso.
— Nada. Só acho que vi alguma coisa ali em cima. Se importa de ir comigo?
Testa conferiu a pistola em sua cintura.
— Vou para o terraço.
Dayse subiu as escadas e olhou para os lados do corredor, achando que vira alguma sombra. Todas as portas de todas as salas estavam fechadas, menos uma. Lentamente, pôs a cabeça para dentro da sala.
Vazia. A janela estava aberta, havia ficheiros, a mesa estava arrumada... Nada de anormal.
Saiu da sala. Foi em direção às escadas.
— Eu acho que está tudo...
Foi interrompida por uma forte pressão que a levou a se chocar contra a parede.
— Bomba! — ela tinha ouvido milésimos de segundo antes. Era a voz de Testa de Pista de Pouso.
Temeu que essa fosse a última vez que fosse ouvir sua voz.

— Como foi, garota? — perguntou Ramona, quando entrou na sala de , de manhã. Não tinha dormido lá. Quando chegara, na noite anterior, só e estavam em casa. E todos foram dormir cedo.
A detetive, que tinha aberto a porta, ainda usava seus pijamas, apesar de ser cinco e meia da manhã. Não tinha dormido.
Café demais no dia anterior.
Ramona foi até o sofá e se sentou.
— Foi... tenso.
— O que você fez?
foi até o sofá e sentou-se com as pernas de chinês, parecendo constrangida.
— Nunca mais quero vê-lo. E duvido que ele queira me ver.
— Graças a Deus. Pelo que você me fala, não está perdendo nada.
— Não, Ramona, não é isso... — as frases de eram quase reflexivas — Eu... só pensei que fosse diferente.
— Que tipo de diferença?
— Não sei. Não sei como definir. Não que eu achava que isso fosse acabar bem, só não achava que acabaria assim tão mal.
Ramona tinha acabado de acender seu cigarro, e o segurava com os dentes, olhando para a ponta acesa. tossiu fortemente, como uma indireta, mas Ramona ou não percebeu, ou não se abalou. A segunda opção era mais provável.
— Ele tem pinto?
— Ramona... — seu tom foi de desaprovação.
— Então ele não era diferente. Você percebeu isso com o jornalista — tragou.
— Foram situações diferentes. O , aparentemente, foi armado pela . Ainda assim, ele fez a matéria e cedeu a ela. O ... — coçou a própria nuca — Ele parecia diferente.
Ramona pareceu prestar mais atenção a partir dessa frase.
— Pareceu que ele me viu diferente. Me tratou diferente. Ele era... Ele estava diferente.
Ramona tragou mais uma vez, e disse com calma, também parecendo refletir sobre seu próprio passado:
— Estar é diferente de ser. Pessoas não mudam. Elas simplesmente nunca foram o que nós pensávamos que elas eram.
olhou para ela pelo canto do olho. Ramona olhava para a ponta do cigarro, que ficou mais acesa quando ela inspirou grande quantidade de seu interior. Continuou:
— Isso não é normal. Pessoas normais não saem por aí tratando os outros como lixo. O problema não pode ser seu... É delas. Sempre.
Um silêncio enquanto a loira tragava mais uma vez, fitando o vazio.
— Eu não consegui agradecer pelo que você falou. Obrigada.
Ramona tentou um sorriso.
— Bem, alguém precisava romper a bolha — continuou , também tentando sorrir, e conseguindo soar reconfortante — Você está bem?
— Estou — Ramona coçou a própria testa, parecendo aflita — É que isso me deixa irritada. Mas continuando — voltou a tragar — E a entrevista?
— Marcada para hoje. Às sete da manhã.
— Sete? — colocou o cigarro no cinzeiro em cima da mesa — Onde? É daqui a pouco!
— Em um estúdio a mais ou menos meia hora daqui.
Silêncio. olhava para Ramona. A loira estava de sobrancelhas erguidas como se esperasse mais alguma coisa.
— Quer me acompanhar?
— Ah! — Ramona exclamou, sorrindo abertamente e quase batendo palmas — Claro que sim! Vou contigo. Eu vou arrumar uma roupa para você. Vai ficar linda. Acho que faço uma maquiagem que preste em meia hora.
— Ramona, eu não...
— Shh, fica quieta — Ramona colocou o indicador na frente dos próprios lábios, com o cenho franzido, levantando do sofá — Se você tivesse seguido a sua intuição, estava na casa daquele babaca. Se eu disser que posso te maquiar lindamente em meia hora, eu posso te maquiar lindamente em meia hora.
— Por que isso? Toda essa preparação?
Ramona tragou uma última vez e apagou o cigarro. Riu e disse, olhando para com o canto do olho:
— Se você vai pisar nas pessoas, que seja de salto.

tinha acordado incomodado. faltara a consulta no dia anterior, e ele sabia o quanto aquela consulta era importante para ela.
De certo modo, dava falta dela. Tinha saudades do tempo que ela ficava na casa, e os dois e ficavam vendo filmes, juntos, tomando café da manhã...
Levantou da cama e foi para a sala.
Estava sem cuecas.
Quer dizer sem tudo, inclusive as cuecas.
Ok, essa era uma das coisas que apreciava na ausência de .
Sua "liberdade", se é que dá para entender.
Quando chegou à sala, não estava lá. Normalmente, sempre acordava mais cedo, e deixava o café pronto para os dois. Naquela manhã, a caneca de estava em cima da pia, suja de café, mas suja. Outra anormalidade. era louco com limpeza de louças, odiava deixar acumular.
Quando viu a cadeira que costumava sentar, na ponta da mesa, distante da mesma, percebeu que algo muito sério estava acontecendo.
Aproximou-se da mesa. Viu um papel branco, com a caligrafia de alongada, com pressa:

Hey, . Desculpe por não ter esperado você para sair. Tive que ir mais cedo, estou com o carro. Desculpe. Estou com pressa. Tive a "bomba" que tanto esperava, essa manhã, na delegacia.
Nossa, eu acabei de fazer piada com isso. Que horrível.
Desculpe de novo. Até mais,


Bomba?
Santo Deus.

— Esse vestido aqui? Que tal? — perguntou Ramona, segurando um vestido verde-esmeralda. Partira das coisas de , que ficaram quase intactas do fogo. Quando partira, deixara algumas roupas que não costumava usar.
— Muito verde — respondeu , com uma careta.
Ramona jogou o vestido na cama e pegou outro no armário, azul-turquesa.
— E esse?
— Muito azul.
Bufando, Ramona jogou-o em cima do verde. E de mais três embaixo deste.
— Que cor não seria "muito cor" para você?
— Sei lá. Você que entende dessas coisas. Eu sou menino, pego uma roupa confortável e é isso mesmo.
— É, mas você não vai a uma entrevista nacional de moletom.
Ramona olhou fixamente para um dos vestidos dobrados na gaveta. era muito vaidosa, tinha vários vestidos. Estranhamente, não levara nenhum em sua viagem.
Fazia muito tempo que não dava notícias, aliás, mas esquecera esse detalhe.
— Veste esse aqui. De olhos vendados.
— O quê?!
— Fecha os olhos e veste! Eu te ajudo. Só abra os olhos quando eu disser que pode abrir.
— Ramona...
— Caramba, você deve amar meu nome. Fala ele o tempo todo.
fechou os olhos. Tateou o vestido, e foi até o banheiro do quarto para vesti-lo. Conseguiu sem muita dificuldade. Quando abriu a porta, ouviu Ramona bater palmas.
— Está perfeito! Agora, maquiagem. Mas antes, sem estragar a surpresa...
Cobriu o corpo de , do pescoço para baixo, com uma toalha do banheiro. abriu os olhos e sentou-se na cadeira em frente à penteadeira de . De costas para o espelho, viu Ramona manusear a maquiagem com mãos celestiais. O toque dos pincéis contra a pele de era o mais suave que jamais poderia experimentar. Quando terminou, poucos minutos depois, ouviu Ramona suspirar.
— Acho que fiz minha obra-prima.
Quando girou a cadeira e olhou-se no espelho, não conseguiu acreditar.
Era a mulher mais bonita que já vira.

Zoe tentava se aquecer, e segurava o canivete dentro do bolso. Nunca usaria aquilo como arma; tinha um valor sentimental inestimável. Brincava com ele por entre seus dedos.
Estava andando perto de uma lanchonete quando ouviu o telejornal anunciando:
Não percam. Dentro de meia hora, faremos uma entrevista exclusiva com a detetive .
Zoe deu uma sonora risada. Não perderia aquilo por nada. Entrou na lanchonete e pediu o que tinha de mais barato.
E esperou, como sempre.

— Quem falou com você ontem? — perguntou Ramona, quando entrou no táxi ao lado de . A detetive usava um pesado casaco, para o que Ramona chamou de ‘efeito surpresa’. Sua roupa só seria vista no momento da entrevista.
— Um dos secretários. Enquanto eu estiver falando com o jornalista, cuida da minha bolsa?
— Cuido. Você não quer falar com ninguém antes da entrevista?
— Por exemplo?
Ramona pegou um cigarro na bolsa e acendeu-o.
— Moça, não pode fumar aqui dentro — avisou o taxista. Ramona fez uma careta e abriu o vidro, colocando o cigarro para fora.
— Sei lá. Julie. Você gosta tanto dela.
olhou torto para a loira. Aquele sarcasmo ácido a irritava.
— Não. Todos vão ser surpreendidos. Esse é o canal em que quase todas as televisões da cidade estão ligadas, a essa hora da manhã. Se alguém da delegacia não estiver vendo, vão dizer para ligarem no canal.
— Você está fazendo isso para te verem na TV? — Ramona deu uma baforada e encarou .
Numa rua sem saída, a detetive hesitou, e acabou não respondendo.
— Você está fazendo isso para te verem na TV — disse a loira, comprimindo os lábios ao terminar a frase.
— Não, eu só... — balbuciou um pouco — Eu vou dizer o que aconteceu comigo. Já estão me procurando para uma entrevista, eu só vou conceder um convite.
, não inventa. Você está irritada por ter que sair da delegacia. Esse vai ser seu jeito de desabafar.
— Desabafar? Você quer dizer que eu vou sair xingando no meio da entrevista?
— Claro que não. Quero dizer que você vai mandar indireta.
— Não, isso é coisa de criança.
— Até porque testar um boato como você ter abortado foi super coisa de adulto.
franziu o cenho, olhando para Ramona com o canto do olho.
— Você soube?
— Eu bati um papo com uma secretária, lembra? Você criou um boato. Como não ia querer que soubessem?
— Você não entende. Criei aquele boato para a . Ela contou para o . O não contou. O também contou, e o boato cresceu.
— Então, se eles perguntarem sobre a ou algo assim, o que você vai responder?
¬— Vou responder que não é da conta de ninguém.
Ramona ergueu uma sobrancelha, e abaixou um pouco o rosto.
— Ok, ok — desistiu, erguendo as mãos — Vou dizer que não me sinto à vontade para responder essa pergunta. Melhor?
— Mais sincero. Mas você está pronta para essa entrevista?
deu de ombros.
— O que você define como ‘estar pronta’?
Ramona colocou a mão na própria testa.
— Vou começar a te cobrar a cada coisa que te ensino. Estou praticamente te ensinando a viver.
— Sem enrolação.
Ramona tragou para fora da janela.
— Eles te farão perguntas com um propósito. Não querem saber sua cor preferida, ou com que ator de Hollywood você teria um caso. Querem tudo ou nada. Então, vou te fazer perguntas de você ter vontade de parar por cinco minutos para pensar, antes de responder.
— E o que você sugere?
— Não hesite. Mas também não dê respostas muito rápido. E dê respostas que circulem a pergunta: não respondem totalmente, mas também não deixam de responder. Entendeu?
— Parei no ‘circulem’.
— Quer que eu dê a entrevista por você? — Ramona falou, sarcástica.
— Seria um alívio. Agora, você me deixou nervosa.
— Ainda bem. Você trabalha melhor quando está com medo. Agora, me diga por que está indo para essa entrevista.
suspirou. Murmurou quase para si mesma:
— Vai ser um tiro no escuro, mas acho que estou com poucas balas.

Quando chegou à delegacia, teve a impressão de que todos os guardas do estado estavam ali.
Oficialmente, era seu primeiro dia.
Subiu até o terraço e passou por baixo da faixa amarela. A bomba era pequena, não chegou a ferir gravemente o único policial que estava próximo a ela no momento da explosão. Havia muitas pessoas fazendo perguntas, e ninguém percebeu o jornalista ao se aproximar.
Quando passou pela faixa, um policial parou-o, mas foi apenas mostrar seu crachá e ele foi liberado.
A área em volta do local da explosão estava escuro, repleto de resíduos de vidro, provavelmente vindos do recipiente onde a bomba estava guardada. Uma pequena área continha estilhaços, um pouco de papelão e rolos de papel toalha. Até plástico colorido tinha.
— Bom dia — ele cumprimentou Marla, a única detetive que ele conhecia que estava próxima ao local do acidente. A ruiva tinha fundas olheiras, e um olhar tão cansado, que tinha sérias dúvidas se ela estava realmente acordada.
— Bom dia — ela respondeu, em voz baixa. Não parecia estar em seu melhor humor.
— Câmeras de segurança? — ele perguntou, tirando uma foto do local.
— As de dentro não pegaram nada de anormal. A última pessoa a vir ao terraço não viu nada de estranho ontem à noite. As câmeras externas também não. Era uma bomba caseira, brincadeira de criança. Provocação.
— Na verdade, é uma bomba-relógio caseira. Um rolo de papel higiênico, pólvora, umas garrafas de vidro... Não é difícil.
Ela olhou-o com uma sobrancelha erguida.
— Eu sou filho único. Vivia no ócio quando criança. Tinha que arrumar um jeito de me ocupar — tirou mais uma foto.
Marla suspirou.
— E a pessoa provavelmente escalou a parede — declarou.
franziu o cenho e deu uma risadinha.
— Foi o Homem-Aranha?
Marla olhou-o com o canto dos olhos.
— Como?
— Você realmente acha que escalaram? Não passa pela sua mente alguma entrada alternativa, como uma janela? Uma sabotagem de computador? Ou uma pessoa de dentro?
— Ideias de quem possa ser? — ela cortou-o — De que janela a pessoa entrou? E como conseguiu sabotar o computador? — perguntou, virando-se para ele e com uma sobrancelha erguida.
hesitou. Marla estava sem paciência nenhuma, e provavelmente passara a noite em claro. Não seria uma boa ideia irritá-la.
— Não. Nenhuma.
— Então ficamos com a minha teoria, viu, bonitinho? — ela fez uma careta sarcástica.
— Falou isso para o há uns quatro meses? — retrucou, irônico.
O rosto de Marla ficou tão vermelho quanto seus cabelos. Ela deu as costas para , e tomou seu caminho para o segundo andar da delegacia. O sol subia pelo céu, lentamente, fazendo um esforço para alcançar pontos mais altos. A luz não estava tão intensa. Até estava frio.
— Seu sarcasmo me admira, . Tão maduro — ela pareceu desabafar, ao colocar as mãos nos bolsos.
— A única maneira de enfrentar as pessoas com quem trabalho é sendo sarcástico. Digamos que eu seja bom nisso — ele seguiu-a, saindo de perto da bomba.
— Não vou me preocupar com isso agora — Marla cortou novamente o assunto, descendo as escadas — Tenho algo mais importante com o que me importar. Outro detetive vai cuidar dessa bomba.
— Por que você não vai cuidar do caso?
— Por que você quer saber? Vá cuidar da sua vida.
— Foi por isso que virei jornalista. Essa é minha função — ele disse, irônico novamente — Perguntar. Há muito mais coisas interessantes na vida dos outros. O que você esperava?
Ela virou-se para ele mais uma vez. Empurrou o corpo de contra a parede. Segurou-o pela gola da blusa e aproximou-se de seu ouvido.
— O policial que viu a bomba disse ter visto uma inscrição no vidro. Ele não lembra exatamente. Pergunte-o, já que você ama perguntar. Vai te interessar e te manter entretido, enquanto pessoas realmente importantes fazem seus trabalhos.
Silêncio. engoliu em seco. É, estava um pouco assustado.
— Se quer saber, não aprovo sua vinda definitiva para cá. É só para ocupar lugar.
— Você sabe de algo que eu deveria saber? — perguntou, juntando toda coragem do mundo, e toda ignorância em relação ao comentário anterior.
Ela soltou a gola da blusa dele. Até alisou-a.
— Por enquanto, não. Possivelmente, saberei. Só não me faça mais perguntas. Pelo menos, sobre isso.
O comportamento de Marla parecia cada vez mais recluso. não se convencera.
— Sobre o que eu deveria fazer? — ele perguntou, com o canto dos lábios levemente erguido. Ela mediu totalmente suas palavras... Não queria que ninguém ouvisse o que iria dizer.
— ‘Onde está , e por que ninguém consegue contatá-la?’?

já estava cansada daquele lugar. Uma pequena cidade a duas horas de Longview, tão monótona quanto esta. Não trabalhara desde sua partida por motivos óbvios. Não tinha condições para tal.
Ligou a televisão. Canal dois.
Pegou sua caneca de chocolate quente. Suspirou, aproximando os lábios um do outro e soprando o vapor da bebida para longe. Tentava manter-se relaxada.
A entrevistadora era uma mulher com mais de sessenta anos, que gostada de fingir que tinha menos de cinquenta. Todavia, não era feia. Tinha cabelos loiros, curtos, e olhos bem verdes, miúdos, com bochechas rosadas. Sua pele era bem cuidada, clara, e tinha o nariz e os lábios finos. Estava sentada em uma poltrona nude, com outra poltrona, vazia, à sua frente.
Aplausos soaram no estúdio enquanto ela sorria, a câmera se aproximando cada vez mais de seu rosto, prestes a anunciar o convidado do dia.
Era um bom programa. Descontraído, na maioria das vezes. Quando a entrevistadora, chamada Jordanna, resolvia chamar uma personagem importante do cenário atual, aí sim, podiam se preparar. Perguntas afiadas, humor negro, ruas sem saída e chá gelado era o que chovia nesses tipos de entrevista.
— Hoje, falaremos com uma das últimas sensações da cidade de Longview, no litoral do estado — seu rosto tornou-se sério, não chegando a ser frio — Primeira página de jornais há algumas semanas, isso tudo começou há quatro meses, com fatos incrivelmente surreais, dignos de livros. E hoje, ela nos esclarecerá tudo.
Fez uma pausa enquanto engolia o chocolate.
.
sentiu um refluxo.
Como é?
Não podia ser verdade.
Deixou a caneca na mesa de centro e, sem tirar os olhos da televisão, pegou o telefone mais próximo. Discando, correu até a janela, e fechou a cortina. Conferiu a tranca da porta. E cogitou fugir.
— Ligue a TV. Talvez a veja no canal 2.
A ligação foi encerrada. Não era preciso dizer mais nada.

Luz.
— Pronta? — perguntou Ramona.
— Estou com um medo do caralho.
Câmera.
— Perfeito.
desfez-se do casaco e entregou-o a Ramona. A loira olhava-a confiante, com um sorrisinho, que a abraçava simbolicamente.
— Tem certeza de que vai dar certo?
— Tenho certeza de que não vai dar errado.
suspirou. Andando pelos bastidores, a correria fora tanta que mal conseguia imaginar.
Chegar. Identificar-se. Crachá. Correr. Jordanna?
Eu sou a mulher que vendeu o mundo.
As luzes se acendem em seu rosto.
Sou o centro dos holofotes. Agora, de verdade.
Ação.
Faça isso valer à pena.
Faça.
Aplausos calorosos e falsos foram interrompidos por suspiros de surpresa. Era aquela mulher a detetive? ? Impossível. Não podia ser.
Todos boquiabertos. A plateia encantada.
A serpente em sua dança.
Uma mulher de seus vinte e cinco anos, com as pernas, grossas nas coxas, finas no calcanhar, cobertas por uma fina meia-calça preta, os pés, por um par de botas de saltos pequenos, e canos curtos. O vestido, ah, o vestido. Um tomara que caia branco. Curto, ia até um pouco mais que o meio de suas coxas. Rendado com algo que parecia ser feito de asas de anjos. Na cintura, entretanto, crescia uma renda negra, subindo por seus seios, descendo por seu ventre, tão bela como a própria imagem da escuridão. Tomando-a, o negro mesclava sua imagem, causando uma estranha estupefação.
Quem seria aquele belo anjo, aquela imagem da perfeição, da inocência, tomado pelas trevas?
O anjo caminhava, porque tinham cortado suas asas.
Admirados, pasmos, surpresos, perplexos. Algumas das palavras para definir os espectadores ao verem aquela mulher. Sem dúvida, todos estavam maravilhados.
Quero ouvir essa mulher. Quero ouvi-la, quero poder abraçá-la, poder defendê-la, tocá-la, senti-la e tê-la só para mim. Quero poder possuí-la, ouvir seus problemas, dar-lhe soluções.
Queremos .

sentou-se com um pequeno sorriso que pendia entre o simpático e o tímido. Encantou a plateia.
Isso mesmo, garota. Controle-os.
Jordanna olhou para a plateia, em seguida, para . Parecia estranhamente impressionada com a reação.
— Você parece fazer sucesso, .
O máximo que fez como resposta foi dar de ombros.
— Não sei se isso é bom ou ruim.
Superior.
— Ah, isso é bom. Isso é fantástico — Jordanna disse, a malícia em sua voz começando a pingar, como um tigre que mostra seus dentes — Você não é jovem demais para ser detetive? Digo, com o reconhecimento que tem?
Ok, um passo de cada vez.
— Bem, isso é relativo. Comecei cedo. Meu primeiro caso teve muita cobertura da mídia. A fama veio antes do talento propriamente.
Podia ouvir Ramona bater na própria testa. Precisava terminar daquele jeito? Daquele jeito metido? Não, não era para soar assim, era para ser uma brincadeira!
A pílula de estava presa em sua garganta. Queimava-a. Não a pílula... A situação.
— Ah, claro. Todos lembramos do caso do Manicômio de Suffragette.
franziu o cenho.
— Sim. O Manicômio de Suffragette. Lembram desse caso?
— Como esquecer? Você enlouqueceu com ele, se é que podemos dizer isso.
Engoliu em seco. Jordanna ria.
— É. Acho que sim.
A entrevistadora começou a olhar papéis em seu colo.
— Consta que você foi internada no Manicômio de Suffragette, e saiu de lá quando o caso foi solucionado. Isso é verdade?
Uma rua sem saída.
— Sim, é verdade.
A plateia observava-a como se ela fosse um bebê decidindo se iria ou não andar sobre carvão em brasa.
Protegendo-a. Hipnotizados.
— Então, começando de onde você começou, como você reagiu ao caso do Manicômio de Suffragette? Ele refletiu em seus outros casos? No Durden, especificamente?
Whoa.
— Suffragette foi um episódio. Dele, só tirei coisas boas. Aprendi a trabalhar melhor, com pessoas maduras.
— Ah, sim. Mas o modo com que o Manicômio a tratava... Isso mexeu com você? Foi... Como posso dizer?... O começo do Manson, para você?
Não. Ela não disse isso.
— O Manson...? — perguntou, baixo. Estava entrando em área restrita.
Trancando sua própria cela e perdendo a chave.
— Sim. Temos os registros de sua passagem pelo instituto Manson — no telão, atrás das duas, apareceram os documentos de quando ela chegara ao Manson, e a foto da delegacia — São bem diferentes, claro, Suffragette e Manson. Mas, para você, um se relacionou ao outro?
Engoliu em seco.
— Ambos tiveram a mesma paciente — ela respondeu, baixo, com um pequeno sorriso.
A plateia riu. Jordanna deu um pequeno sorriso também, como quem dissesse ‘boa jogada, mas o jogo não acabou’.
— O Suffragette não foi nada para mim. Para me formar. Já o Manson, não vou negar... Ele foi algo importante na minha vida. Me incomodou. Nunca esquecerei aquele lugar. Ele me feria em lugares que nunca irão sarar.
A plateia seguiu em um suspiro de compaixão. Conquistando as massas. Será isso mais importante do que conquistar os mais poderosos?
Não estava longe disso também.
— Pode definir isso melhor? — pediu Jordanna, colocando o punho fechado embaixo de seu queixo. conseguia imaginar alguém da produção levando um balde de pipocas para ela a qualquer instante.
— Passei três meses no Manson. Foi o modo com que consegui evitar a prisão. Não poderia ser mandada para lá, por falta de provas. O Manson foi a melhor opção, por incrível que pareça.
— Quem a enviou para o Manson, senhorita ?
O momento perfeito. Poderia dizer nomes. Poderia livrar-se do fardo, contar a verdade. E ser julgada como eterna relatora.
— Não sei, por inacreditável que pareça. E, por favor, me chame de .
A plateia amoleceu-se. Jordanna desarmou-se.
— Sim, posso ver que essa história toda parece bem inacreditável — disse ela.
Opa. Ela não está acreditando. Vai usar suas maiores armas.
Agora sim, o jogo vai começar.
— Mesmo assim, o caso Durden foi significativo para você. Até mais que o de Suffragette. Estou certa?
apenas assentiu.
— Sua relação com o morto era próxima?
Não era possível.
— Digamos que sim.
Havia alguém por trás daquilo.
, querida, as maiores respostas da humanidade jamais são respondidas com ‘digamos’ — ela julgou-a com o olhar, dando um sorriso curto e quase irônico.
— Sim, eu conhecia Joe. Éramos próximos. Não muito — ajeitou o cabelo.
— Fotos não mentem, — Jordanna deu uma risada parecendo reconfortante.
Fotos dela e de Joe, arquivos confidenciais, apareceram no telão. Fotos do dia da morte dele.
Pagaram essa mulher para me foder, só pode.
— Ah, éramos próximos. Saímos algumas vezes para conversar. Essas fotos são pessoais.
— Conversar? Talvez algo além disso?
— Nada que meio país precise saber.
piscou um olho. A bola estava em seus pés novamente. Jordanna contornou.
— Como foi o caso, do ponto de vista pessoal?
— Foi um pouco perturbador — ela respondeu, olhando para os sapatos e ajeitando o cabelo mais uma vez — Não imaginava ser designada para solucionar o assassinato de um colega. Não é o tipo de coisa que você imagina que irá acontecer.
— Mas quem leva uma vida dessas, dupla e perigosa, pode ter esse tipo de revés, não? Morte de familiares e amigos.
— Acontece todo dia. Mortes. Olhamos para ela de um jeito técnico e profissional. Não frio. Sabemos o peso de uma morte. Temos milhares delas em nossos arquivos.
— Mas estão em arquivos.
— Mas estão lá. Solucionadas.
Todas, menos uma.
Jordanna sustentou o olhar sereno de . Era como se ela estivesse com suas armas erguidas, enquanto tivesse um tanque de guerra.
— E como anda sua recente volta ao trabalho?
A pergunta final. Fim do primeiro tempo.
— Boa, na medida do possível. Boa quando seu trabalho é estar em um livro da Agatha Christie, sem poder ler o final.
— Quando você quem escreve o final — completou Jordanna.
— É, exatamente isso.
— Agora, uma pequena pausa para os comerciais. Na volta, atenderemos ligações de telespectadores, com perguntas para nossa entrevista exclusiva com a detetive .
Alguns segundos depois de aplausos da plateia, uma luz vermelha acendeu-se fora do alcance da câmera. sentiu como se estivesse confinada em uma caixa, mas uma pequena fresta acabara de ser aberta.
Jordanna olhou para . Tocou as costas de sua mão e segurou-a entre suas duas próprias. Acolhendo-a com um sorrisinho.
— Você está no fundo do poço. Todos e tudo estão contra você. Eu gosto de pessoas assim.
Fez uma pausa, na qual sorriu, em dúvida se aquilo era um elogio ou um aviso.
— Eu gosto dos detestáveis.

O ar solto por quando a logo do programa apareceu tinha a intensidade de um furacão. Estava sentado em sua cama, apenas de pijamas, olhando boquiaberto para a tela.
realmente fizera aquilo.
Trancado em sua própria cela.
Não queria levantar da cama. Queria ficar ali o resto do dia. Trabalhar em casa. Não tinha coragem de ir até a delegacia, pelo menos, não enquanto a entrevista acontecia. Se dissesse algo sobre ele, a pressão seria absurda.
Pelo menos em seu lar, poderia observar a entrevista de milésimo a milésimo.
Pois estava fora do controle. De novo.

— Como está se sentido? — perguntou Ramona, estendendo para um copo d’água, atrás do cenário.
— Como se tivessem mil câmeras em cima de mim.
— Mas tem mil câmeras em cima de você.
comprimiu os lábios e acenou positivamente com a cabeça, rápida. Devolveu o copo a Ramona e respirou fundo.
— Não é a melhor sensação do mundo. Como ela sabe dos detalhes de Suffragette?
— Nem eu sabia daquilo! — estranhamente, se assustou ainda mais, já que Ramona parecia saber algumas coisas sobre ela — Você se internou lá por conta própria mesmo?
— Não foi bem assim. Ela contextualizou. Ela mudou tudo para me ferrar, a infeliz!
Ramona torceu a boca, parecendo pensar. esperava alguma ideia.
— Você foi bem. Não percebi uma única pessoa daquela plateia que não tivesse os olhos focados em você, praticamente hipnotizados. Conquistou os leões mansos. Eles vão te defender se ela falar alguma besteira, pode ter certeza. Com vaias.
— Eu também preciso saber contra-atacar. Não de um jeito defensivo. Preciso...
Então, calou-se.
O final do livro.
— No que você está pensando? — perguntou Ramona, ao ver sorrir pequeno, com sutis gotas de malícia.
— Você vai ver. Vai ter orgulho de mim.
Alguém gritou que o show estava prestes a continuar.
— Claro. Você aprendeu comigo.

Se Julie pudesse, colava uma fita na boca de , naquele instante. Ela não fazia ideia do que aquilo poderia representar.
A exposição total de tudo. Jordanna era um demônio, quando queria. E estava sendo. sabia contornar, mas não com total sucesso. O caso de Suffragette, e o envolvimento de nele, estava agora totalmente público.
A segurança de e das pessoas que ela amava estava totalmente em risco.
Sentada sozinha na sala, ela roía as unhas. Na delegacia, havia uma aura. Uma aura de explosão. Efetuada de manhã. A bolha crescia.
E precisava encontrar o culpado pela explosão.
E que raios tinha acontecido com .

— Estamos de volta com , detetive de Longview — disse Jordanna, sorrindo e com as maos no joelho cruzado, não fazendo qualquer contato com ; parecendo até querer manter a distância da moça — Que também atende sob a alcunha de Serpente Vigilante.
A câmera foi para . Ela estava levemente rosada, com a maquiagem retocada pelas firmes mãos de Ramona, e sorrindo pequeno. A sobrancelha direita um pouco erguida, formando um arco de ironia em volta dela.
Não tinha medo de seus passos. Sabia que os carvões estavam esfriando, e a brasa já não mais ardia.
A mulher que vendeu o mundo.
— Aliás, — disse Jordanna, olhando para ela enquanto colocava o cabelo loiro para trás — Vamos falar agora de seu apelido, a ‘Serpente Vigilante’. Você que se autodenominou?
— Não. Foi um nome que veio durante minha temporada em Suffragette.
Jordanna recuou um pouco.
— Isso significaria algo próximo a uma vigília conotativa? Como se você observasse demais? O que não deve?
franziu o cenho e quase riu, como se dissesse ‘que ideia estúpida’. Interpretando isso, Jordanna não pôde reagir. Se fosse uma interpretação errônea, seria uma gafe absurda. Mas tinha praticamente certeza de que estava fazendo piada dela.
— Jamais. Eu obtive sucesso com o Suffragette, meu primeiro caso, quase sem apoio aberto. Quem me ajudou fez isso quase escondido. O que eu mais fazia era observar. Não pude pesquisar muito, entrevistar, ver cenas de crimes, porque isso não estava sob meu poder. Ser vigilante foi o que me salvou e me caracterizou. Aliás, até hoje, com um recente caso em que eu percebi algo que ninguém pareceu perceber.
— E a serpente? De onde vem? Uma víbora, um ser perigoso? — falou como se falasse a sinopse de um filme, com os olho semicerrados, gestos.
— Um ser esguio. Como eu já disse, tive poucos privilégios em meu primeiro caso. A serpente é um animal que se camufla, age de repente, e sim, admito, é perigoso. Mas, bem, no meu ramo, matamos ou morremos.
— Isso não é um pouco desumano?
— Isso é totalmente humano, na verdade. De um jeito ruim, mas é. Ninguém chega ao topo sem pisar nos degraus mais íngrimes e dolorosos. A Serpente Vigilante foi um apelido que eu não pedi, e, na verdade, tive que aceitar. Mas não nego que gostei dele. Me define perfeitamente.
O silêncio reinou. Não havia o que ser dito a partir daquilo.
— Ótimo — foi o que Jordanna conseguiu falar — Agora, vamos para as ligações de nossos espectadores.
Alguns segundos se passaram até ouvirem um ‘alô?’.
— Bom dia, você é o primeiro a participar de uma entrevista exclusiva com . Quem fala?
A voz não respondeu. Mas tinha a impressão de que conhecia.
— Sou um colega de .
Jordanna olhou para , que se limitou a dar uma risadinha.
, o que você está fazendo?
— Então, temo que você não tenha nada para perguntar — disse Jordanna, rindo.
— Na verdade, tenho uma pergunta. — ele falou, diretamente para ela — Você poderia listar seus amigos?
Uma pergunta tão simples... Tão infantil... E que parecia pior que todas que Jordanna fizera. Listar seus amigos?
— Poderia o quê? — ela perguntou, com o cenho franzido novamente.
— Listar seus amigos. As pessoas que te ajudaram desde que você saiu do Manson.
Ela engoliu em seco.
— Bem... Você, , de certo modo. Julie Stoner, a delegada. Um jornalista, , ... Com algumas controvérsias, na verdade.
Um jornalista. Não o jornalista.
Nesse instante, dentro da sala da delegacia, sentiu-se minúsculo. Ou melhor, sentiu-se gigante. E branco. Vazio. Imenso, sem conteúdo.
Do que adianta ser tudo para muitos, e não ser nada para quem é mais importante?
— Só eles? — perguntou .
Ela não dissera ou Ramona.
— Ramona. Sim, Ramona também foi importante.
— Mais alguém?
soltou o ar.
A negação de se sentir finalmente fora da vida de era um ponto no fundo dele. Não alcançava, não conseguia tirar dali. Se fosse erro dele, ele deveria aceitar.
Mas não fora. não teve culpa de nada.
deu de ombros.
— Não.
— Temos aqui mais uma ligação... — continuou Jordanna.
— Espe...! — tentou protestar, porém, já era tarde. não estava mais lá.
— Alô? — uma voz rouca surgiu segundos depois.
— Bom dia, tem alguma pergunta para ? — Jordanna disse, olhando para o vazio com o canto dos lábios erguidos. começou a se perguntar se aquele sorriso constante era fruto de constantes plásticas, ou se Jordanna dormia com um cabide na boca.
— Tenho duas — a voz prosseguiu — Queria saber sobre o sequestro dela que foi noticiado há uns quinze dias. E se ela conhece o endereço Angel Boulevard, número 342.
O telefone desligou-se. Jordanna deu um pequeno pulo na poltrona, com o cenho franzido, surpresa pela rapidez da pergunta feita.
— Bem, você conhece esse endereço? — perguntou à .
Angel Boulevard? Não me é estranho.
— Não. Não, não conheço — ela olhava para o vazio. Costumava agir assim quando se deparava com uma situação que não sabia como reagir, e fora pegar de surpresa.
— E sobre o sequestro? O que tem a nos dizer?
não tirava da cabeça aquele endereço.
Angel Boulevard, 342.
— Há duas semanas, eu e meu irmão fomos pegos de surpresa por dois loucos. Eu e eles nos conhecíamos, eles eram fissurados por nós. Tudo acabou bem, enfim. Meu irmão teve que ficar em uma ala psiquiátrica, pelo trauma. Eu tive que fazer duas cirurgias.
— E como foi o sequestro? Os fatos.
deu de ombros.
— Evito lembrar dele. Foi algo que me fez mal em uma época em que eu estava frágil.
Aquela falta de objetividade incomodava Jordanna absurdamente.
— E o meio?
— Foque no final. Estou inteira, não estou?
O final da história.
E, assim, ela encontrou a fórmula. Um círculo perfeito.

A caixa se abriu. A entrevista acabou.
agradeceu e foi aplaudida. Então, acabou a magia.
A plateia continuou aplaudindo até depois da luz de ‘no ar’ ter se apagado. Levemente envergonhada, agradeceu e foi para os bastidores.
— Brilhante. Sinceramente, brilhante — disse Ramona — Quem te ensinou? Aquela esperteza.
— Você me ensinou — respondeu, a testa franzida.
Ramona riu e fez um gesto com a mão como se dissesse ‘ah, por favor’.
— Tem razão. Eu sou brilhante. E aí? O que quer fazer? Sabe que aquela delegacia toda quer te matar agora, não sabe?
— Tenho uma ideia — pegou o casaco preto e vestiu-se.
— O sangue escorria pela sua boca, sua naja. Quer lanchar? Agora vou chutar o balde, quero um hambúrguer pingando óleo.
— Pode ser. Você sabe o que tem no 342 da... — tirou o cabelo de baixo do casaco, e continuou com o rosto de quem não parava de pensar na mesma coisa.
— Angel Boulevard? — Ramona completou — Não faço ideia. Você não está pensando em passar lá, está?
fez um bico e ergueu as sobrancelhas.
— Eu sou uma policial. Não vou para lá com a roupa que visto.
— Vai usar uma pistola? Se ela for de longo alcance, 100% de precisão, e mágica, aí sim eu não acho loucura.
— Não é como se eu precisasse de um bando de policial atrás de mim.
— Não precisa. Não foi um bando de policial que te salvou da Jacqueline Durden. Se você for mesmo, só tome cuidado, ok? Tenho uns assuntos para resolver.
— Vamos almoçar?
Ramona pegou a bolsa de e entregou a ela.
— Pelo amor de Deus, eu comeria até cascalho.

17h30min. Não havia nada para fazer.
estava em casa. Singer Street, janelas fechadas, deitada no sofá.
O teto parece muito interessante quando se está no ócio, não?
Tinha dormido a tarde inteira. O café estragara seu relógio biológico.
Quando acordou, bebeu duas canecas. Talvez cinco.
Angel Boulevard.
Ramona estava fora.
Não queria sair de casa. Não tinha se arrependido da entrevista, mas sabia os efeitos que ela poderia causar.
Foi para o banheiro, e tomou um banho quente. Quando saiu, vestiu uma calça jeans e uma camiseta de uma atriz que admirava. E saiu, com a bolsa no ombro, um chapéu preto, óculos escuros e um casaco pesado.
O tempo fechara. A chuva vinha aos poucos.
Estendeu a mão para a rua e, segundos depois, o primeiro táxi parou.
— Angel Boulevard, 342. Por favor.
— Angel? Senhorita, esse pedaço da rua é bem perigoso quando começa a escurecer. Está bem nublado. Quer mesmo ir?
Ela estendeu algumas muitas notas de dez dólares ao motorista.
— O senhor estava dizendo?

O táxi não tardou a deixar a rua, assim que saltara. Realmente, a Angel Boulevard era uma das maiores ruas da cidade, mas quando estava escuro, ela era bem sinistra. Os prédios faziam sombras uns sobre os outros, e nem todas as luzes de postes funcionavam. A umidade estava tão alta que sentia que estava dando um banho em seus pulmões. A Angel Boulevard fedia a suor.
Uma de suas botas fora certeira para uma poça no chão, mais funda do que parecia, encharcando o calçado. A água não entrara, mas sujara tudo.
342, 342, 342...
Esperava um prédio, ou uma casa. Quanto mais se aproximava, mais percebera que estava errada.
Era uma antiga academia de boxe.
Conferindo a pistola totalmente carregado em sua cintura, pegou uma lanterna na bolsa.
Tijolos avermelhados eram parte da estrutura da academia, sobrepostos como uma fortaleza, e uma pequena porta de vidro era o único modo de adentrar. As janelas, o que cogitou por algum tempo, estavam com os vidros quebrados. A academia era o retrato de uma rua esquecida e maltratada por uma classe média. Era claro que os vidros quebrados vinham de crianças e suas brincadeiras de rua. Os tijolos na parede estavam feridos por buracos de bala, filhos de brigas de gangues de drogas que agora dominavam a construção. O vento gélido uivava por entre janelas, e temeu encontrar um grupo de drogados armados. Era boa o suficiente para conseguir dar conta de um ou dois, mas, a partir disso, já era arriscado.
Podia ouvir as gotas caindo de canos, dentro do lugar. Tinha dois andares.
Não entre.
A porta da frente tinha fitas amarelas proibindo a passagem, o vidro quebrado fazia quinas afiadas e cortantes. Com cuidado, esticou a mão para tocar a fita.
Passinhos foram ouvidos, e ela sentiu algo tocar sua perna. Recuou a mão, em susto, até perceber que eram ratos. Respirou fundo, e tocou as fitas, puxando-as para baixo, podendo entrar no lugar em seguida.
Não entre.
Uma voz no interior de , sua tão ignorada consciência, agora parecia trabalhar a seu favor. Dizia para ela entrar.
Preciso saber de algo que está aqui dentro.
Era como se entrasse dentro de um lugar perigoso, que conhecesse muito bem.
A estrutura antiga, machucada, e ainda assim, de pé.
Um lugar estranhamente aconchegante. Os demônios voavam livres, mas não feriam ninguém.
O mundo.
Vendido.
Os passos ecoavam pelo lugar, o concreto agindo contra ela. Aparentemente, não havia mais ninguém ali, pelo menos, ninguém que não devesse estar.
Incrivelmente, sentia-se apertada entre muitas pessoas.
Seus passos avançavam pelo primeiro corredor, a lanterna acesa apontada para a última entrada, um portal que equivaleria a duas portas grandes. A cada som de duas botas, ela não sabia se estava ansiosa para descobrir o que tinha lá, ou para pode ir logo embora dali.
Era uma atmosfera tão conhecida, que se tornava nociva. Como se soubesse tanto sobre , que ela temia por isso.
Os batimentos cardíacos eram a trilha sonora.
Quando chegou ao portal, e olhou para o que havia dentro dele, se espantou.
Não havia nada. Nada além de um ringue de boxe destruído, alguns pôsteres. Nada além disso.
Nada.
colocou a mão no peito, e respirou aliviada. Fechou os olhos. Tropeçou.
Ouviu o estrondo de toda estrutura acima do ringue se quebrando, e chegou para trás, batendo na parede do corredor, com os braços na frente do rosto. Com os olhos abertos e tentando enxergar através de seus dedos, ela viu alguns tijolos caírem no centro do ringue, e um pesado pedaço de madeira acompanhar. Ouviu o som de choque contra o ringue e de tijolos indo contra o solo.
Depois que tudo se estabilizou novamente, tirou os braços de frente do rosto e parou por alguns instantes. Reforços? Não, não era necessário. E se fosse, precisava mesmo pedir ajuda, para policiais descobrirem que ela estava em um lugar que não deveria?
Andou lentamente até o ringue, tomando cuidado para qualquer tipo de bote. Colocou a mão na pistola, e tomou bastante fôlego.
O cheiro de podridão era perturbador.
Quando mais andava em direção ao ringue, mais percebia que não era madeira. Estava longe de ser. Estava seguro ao teto, por cordas nos membros superiores, a parte mais alta caída para frente. Era pálido, e tinha traços. Mais perto, mais perto...
Era um corpo.
Quando alcançou o ringue, e subiu as escadas ali próximas... Percebeu.
Levou as mãos à boca.
Era assustador. Era como ver o próprio anjo da escuridão ali.
Era o anjo, movido à escuridão.
Erguido por cima, como um demônio ao descer ao inferno, mas que continuava preso à imagem do paraíso.
Olhamos para ela de um jeito técnico e profissional. Não frio. Sabemos o peso de uma morte.
Frio era o que restava do corpo de . Os cabelos estavam soltos, perfeitamente penteados. As mãos, antes macias como algodão, estavam agora ásperas. O rosto estava oculto por seus cabelos. As cordas a seguravam pelos pulsos, e os pés estavam soltos, balançando, por baixo de um belo vestido branco.
Agora, tão branco quanto a cor que sua pele tinha. Pois não havia sangue em seu corpo. Nem uma única gota.
As cordas se romperam, e o corpo pesado de caiu contra o ringue bem em frente à , que gritou de horror. Agora, podia ver seu rosto, vazio. Pedia por socorro. A maquiagem continuara em sua face, o cordão que sempre usava. Tudo continuava ali. O vestido era dela; já usara, certa vez. Era o retrato comum de .
Sem vida. Apenas coadjuvante.
Santo Deus.
morrera sozinha.
O mundo vendido, agora começava a desmoronar, começando pelos alicerces.

Who knows? Not me, we never lost control…


Capítulo 23 — Under pressure

It's the terror of knowing what this world is about, watching some good friends screaming 'let me out'…

Uma queimadura química dói mais que uma queimadura de cigarro na mesma área. A queimadura química pode vir desde substâncias compostas, como NaOH (soda cáustica) reagindo com água ou HNO3 (ácido nítrico), ou substâncias simples, como o nitrogênio líquido (N). Por isso, produtos químicos devem ser manejados apenas por profissionais especializados em seu uso.
Todavia, algumas dessas substâncias ainda podem ser obtidas por métodos mais civis.

Quando a entrevista acabou, não hesitou em desligar a televisão e se livrar daquela imagem de uma vez.
Suffragette. Lembrava-se como se fosse ontem.
Colocou as mãos no rosto. Se aproximava das nove da manhã.
Alguns minutos depois, levantou-se e foi até o banheiro, para tomar um banho de mais de meia hora. Fazia todo tipo de esforço para se atrasar para o trabalho. No final da entrevista, comentara sobre ele. Não falou mal, mas também não falou bem.
Não podia negar que, mal mesmo, estava . O cara deveria estar acabado.
A água viajava contra sua pele, e ele se sentia cravado por balas contínuas.
Saiu, se enxugou e trocou de roupa.
Pegou o telefone e ligou para Marla Bronx imediatamente.
— Você não pode me ligar agora — foi a primeira coisa que ela disse.
— Um grande bom dia para você também.
Ela bufou.
— Viu a entrevista? — ela perguntou.
— Quem não viu?
— Não acho que seja bom você vir para cá. Direi que está doente. Assim que eu puder, falarei com você.
está aí?
Ela demorou um pouco a responder.
— Não. Aconteceram muitas coisas hoje. Posso falar com você depois. Tome cuidado.
— Tudo bem.
Desligou e suspirou. Deitou em sua cama e, novamente, dormiu.
Quando acordou, já passava do meio dia. Não comeu nada. Foi para o escritório, no segundo andar, e começou a folhear dados dos casos do suicida e de Joe Durden. Seu método de investigação era simples: anotava em post-it o que precisasse, e mantinha um caderninho na mão para possíveis ideias, pistas ou entrevistas. As pastas estariam sempre em sua mesa, ao seu alcance e vista.
Ouviu um som de destravamento, vindo do andar de baixo. Olhou para trás por um instante.
Vazio.
Voltou a olhar para os papéis.
Outro som reproduziu-se. Dessa vez, era um clique. levantou-se da cadeira e foi até a porta.
— Tem alguém aí? — perguntou , saindo do escritório. Pegou a primeira coisa que tinha para se defender, o que, no caso, era um canivete em seu bolso. Não ouvia passos, ou qualquer outro som.
Foi até as escadas. Desceu-as com cuidado e lentamente, prestando muita atenção em seu caminho. Não poderiam atacá-lo por trás, afinal, ele não viu ninguém subir as escadas, viu? Além do mais, aquilo devia ser coisa de sua imaginação.
Tudo parecia ser. Na verdade, ele esperava que tudo fosse.
Assim que chegou ao primeiro andar, olhou para a direção do corredor que levava para a cozinha. Vazio. Alcançou a porta e conferiu-a, verificando que estava realmente trancada. Suspirou, aliviado. Levou a mão à pequena caixinha na parede, com 10 botões, numerados. Segurança. O alarme não disparara, mas tivera a impressão de que ele fora desarmado.
Estranho. Não se lembrava de ninguém que soubesse sua senha.
Digitiu a senha de seis dígitos. Negada.
Digitou mais uma vez. Negada.
Negada.
Negada.
Fuja!
Trancara a porta de sua própria cela, e perdera a chave.
Trancado em sua segurança.
Levou um golpe tão forte na nuca que, por alguns instantes, achou que morreria.
A morte seria melhor do que estar nas mãos daquela mulher.

Quando abriu os olhos, quis poder abri-los mais uma vez. Pois tudo seguia na mais completa escuridão. Sua boca estava seca, e não conseguia sentir sua língua muito bem. Inclusive, a língua não era a única coisa que não podia sentir.
Sentia tontura. Sua cabeça estava em total confusão, não conseguindo diferenciar se estava deitado ou de pé. Certamente, não estaria de pé; não sentia seus pés. Deitado era pior ainda... Era como se estivesse nu.
A qualquer momento, podia ser atacado.
Fuja.
— Incrível, não? — uma voz feminina tomou conta de seus ouvidos — O nome é Chirocaine. Parece mágica, essa belezinha.
Ouviu como se a mulher desse pequenos petelecos em uma seringa. A voz era doce, e incrivelmente mansa. Ela se aproximou, o que fez o que sentia de seu corpo, se contrair. Ouviu também os joelhos dela encontrando o solo, ficando bem perto de seu rosto.
— Eu não queria ter que te amordaçar nem nada assim. Não sou perigosa para você, sabe? Estou longe disso. Se estou aqui, é porque você mereceu.
engoliu em seco.
Chirocaine.
Chirocaine.
Chirocaine...
Fuja!
— Ah, não me diga que você não sabe nada sobre Chirocaine — sua voz soou decepcionada, e tinha a impressão de que ela fizera um biquinho — Podia jurar que estávamos no mesmo pé de igualdade. Mas não tem problema — tornou-se conformada — Chirocaine é um medicamento usado para anestesias locais. Em você, apliquei a versão 0,5%. Por isso, não se surpreenda caso se sinta tonto, com a língua dormente ou cansado. Ah! — ela pareceu lembrar-se — Perdão. Você deve estar bem perdido. São duas e dez da tarde. Do mesmo dia. Sabe o que quero dizer com isso, não?
não respondeu. A moça suspirou, soando entristecida e derrotada. Resumiu:
— Não se preocupe, você não vai morrer por Chirocaine. Só deixou você meio dormente.
— Quem é você? — ele perguntou, a língua ainda mole para fazer a frase soar como ‘em é ecê?’
Ela deu uma risada gostosa.
Fuja...
— Ah, sim, como eu pude esquecer? Você me conhece, . Quer dizer, conhecer, não conhece. Mas desconfio que saiba da minha existência.
Ele temeu saber exatamente quem era.
— Onde estamos? — ‘ode esâmos?’.
Não sentia qualquer brisa. Aliás, sentia sua pele ir queimando aos poucos.
— No seu sótão.
— Por que está aqui? — ‘or que esá aqui?’
Ela suspirou.
— Sabe, , você andou sendo meio babaca ultimamente. Eu, sinceramente, achei que você tivesse jeito — ela disse, da maneira mais natural do mundo, como se estivesse falando no telefone com alguma amiga — Mas acho que isso é meio que sua natureza. Usar e descartar. Não dá para mudar isso. Mas sabe o que mais? Eu tenho uma teoria que, quando odiamos uma pessoa, e depois deixamos de odiar, ou a tal pessoa mudou radicalmente, ou você não conhecia essa pessoa bem. Então, me diga, desses dois, como você era com a ?
Ele não sabia responder.
— Eu... Eu não...
— É engraçado. Você não a odiava, e a conhecia bem. Então o que era?
Não houve resposta.
— Eu imaginava. Você quer saber por que estou aqui? — tornou-se firme — Vim retribuir um favor. Você fica contando essas histórias, só para fazer a se sentir mal. Mas quer saber? Você não é engraçado. É apenas um egoísta merdinha, um filho da puta inseguro, uma mulherzinha, patético, que quer colocar os outros à sua volta no fundo do poço, fazendo-os sentir como merda, para aí você se sentir melhor.
— Eu não...
— Cala a boca, eu não terminei. Pare com isso. Não é legal, não é engraçado, e faz você parecer um imbecil.
— Mas...
Ao mesmo tempo em que um som estridente e alto soou, ele sentiu o lado de seu rosto arder por alguns segundos. Tinha recebido um forte tapa do lado esquerdo da face.
— Cacete, homem. Seus pais não te avisaram para não foder com gente maluca? Você é bonitinho, mas, sinceramente, é só uma imagem bonita. Um livro em branco com uma bela capa. A me contou algumas coisas sobre vocês e, santo Deus, eu não queria ter que fazer isso.
Ele sentiu uma dor dentro de seu corpo, escondida. Que ele não conhecia há muito tempo.
— Chirocaine foi o meu melhor jeito de me assegurar que você não sairia do lugar. Logo, logo, você estará forte como um touro novamente — ela explicou, e sentiu seu ombro levantar, como se a mulher o pegasse na mão — Eu não queria ter que vir até aqui. Me deu um trabalho da porra. está dormindo, e nem passa pela cabeça dela que estou aqui. Nem quero que passe. Sabe por quê? Porque não é como uma vingança nem nada do tipo. Apesar de você merecer. Entenda isso mais como... Como um prêmio. Pelo que você faz, você recebe.
Ficou alguns segundos em silêncio, quase que refletindo.
— Caralho! vai me matar se souber que estive aqui. Vamos fazer um trato: você não fala, eu pego mais leve com você?
Ele ficou sem reação. A boca permanecia entreaberta.
— Ah, , vamos lá. E, sobre o que vai acontecer, eu sei que você não se arrepende disso. Quer dizer, agora se arrepende. Porque teme o que não pode prever. Não se arrependeu quando fez, e não se arrependerá mais tarde. Mas agora? Agora você teme pela própria vida. E, ah, isso é tão satisfatório para mim.
Ela murmurou um ‘oh’, e pareceu ter levado as mãos à boca.
— Meu Deus. Eu esqueci. Você não pode me ver, certo? Veja bem, temos um problema. Ao mesmo tempo que não quero que você perca um detalhe, eu não quero que você enxergue qualquer coisa. É como a música, entende? Eu amo música. É mágica. Eu amo o jeito como, quando a banda ou o cantor é realmente bom, você não precisa vê-los tocar para sentir a música. Você pode simplesmente fechar seus olhos, e deixar a música fluir por você. Eu quero fazer você se sentir assim, olhos bem fechados, sentindo tudo com o resto do seu corpo. E não se preocupe. Eu não vou deixar você perder um detalhe sequer.
Sua pele do rosto parecia sentir, cada vez mais perto, a respiração daquela mulher. O hálito dela batia contra sua pele. parou de respirar, temendo pelo que fosse acontecer. Quando chegou perto demais, ele surpreendeu-se.
O toque dos lábios dela foi leve, nos seus. Ela tinha o total movimento. Segurava-o pela nuca, e tinha total controle. O beijo era leve, mas tão sincronizado que o assustou. Sua língua sabia exatamente em que ponto chegar, e a que direção ir. Ela o conduzia em um beijo perfeito, lento.
Isso o aterrorizou como o próprio demônio.
Então, ele soube.
É verdade, então.
Ela separou-se dele, deixando-o ofegante. Ainda desnorteado em todos os sentidos, sentiu-a perto de sua orelha, apenas para sussurrar:
— Este é o lado escuro da lua.
Uma dor latente e ardida começou a nascer em sua testa. Ele gritava, desesperado, e tentava ao máximo se mexer.
— Fique quieto. Se eu errar, será pior para você.
Ela segurava-o pelos cabelos no alto da cabeça, puxando-os para baixo, e tinha o braço em seu rosto, a mão apoiada na testa que cortava com uma precisão quase cirúrgica.
Espere.
São letras.
Ele ainda reclamava de dor, mas já não gritava.
— Bom menino. Gritos não me afugentam. Parecem palavras soltas. Sussurros seriam mais eficazes.
Ela parou por alguns segundos, quando terminou.
— Parecem lamúrias de um menininho chamando por sua mãe... Ou de um homem encarando Deus — fez uma pausa — Você pode ver Deus, ?
Ele queria chorar. Não aguentava mais aquilo.
Por favor... Me tire daqui.
— Você está vendo Deus te julgar agora? Agora você se arrepende? Você acha que Deus terá pena de sua alma?
Me tire daqui.
— Ou você não pode ver Deus, ? Você espera realmente por perdão? Ou, para você, é indiferente?
Ela deu uma sonora risada.
— Você sabe que já está fodido mesmo, não sabe, ?
Foi quando tudo se desfez.
Em questão de segundos, ele podia sentir seu corpo corroer-se, começando pela face. Era como se houvesse fogo nela — tinha a certeza de que esse não era o caso por seus cabelos, e pela faixa em seus olhos, que não ficaram em chamas. Escorria, passando por seu pescoço, libertando do pior de si.
Liberte-se.
Purifique-se.
Não era fogo, mais queimava até mais que ele.
Sua pele corroía e deixava seu corpo.
Deixava-o.
Então, ele estava nu.
Vulnerável.
A máscara lhe fora arrancada com tanta força que, agora, doía.
Tudo que ele se importava, agora, escorria.
não era mais um homem. Agora, o monstro saía.
E ele não fugia.
Fugiriam dele.
Então, sentiu uma onda atingi-lo. A ardência sumiu. A queimadura. A dor.
E ele partira junto a tudo isso.
— Caralho, não finja que morreu, por favor — disse a mulher, tocando-o na face não tão doída — Se você tiver morrido, vão me matar.
Ele soltou um murmúrio.
Ela bufou, satisfeita. Chutou sua perna de leve, e como ele não reagira, percebeu que ainda estava dormente.
— Vou chamar o 911 — ela disse — Vão te levar para o hospital. Você sobreviverá.
Sua voz se aproximou do rosto dele novamente, e o som dos joelhos contra o chão foi ouvido novamente.
— Não fiz isso pela dor. Não fiz isso pela sensação. Foi pela sequela. O que você mais valoriza acaba de ser tirado de você.
Ela levantou-se e saiu do sótão. Sozinho, tinha seus pensamentos.
Seu corpo não respondia. Apenas as lágrimas jorravam, contra sua vontade. A boca se retorcia enquanto ele soluçava.
Estou desfeito.
Deformado.
Arruinado.

Ela conseguira atingi-lo em seu ponto mais doloroso e sensível. Não pessoas que amava.
Si próprio.
Seu ego.
Sua aparência.
Toda primeira impressão.
A mulher o transformou em um ser parcialmente desforme. Em um animal nojento, um garoto implorando por piedade. Envergonhou-o.
Ela não era um monstro insano. Era pior: um monstro incrivelmente calculista.
Transformou-o em monstro? Não, ela apenas mostrou ao mundo o monstro que ele realmente era.
E chorava por isso. Por ela ter descoberto exatamente seu ponto fraco. E atingido-o tão perfeitamente, que ele não desejava mostrar-se ao mundo.
A morte seria melhor do que estar nas mãos de Ramona.

As estruturas tinham perdido totalmente sua base. Não estava claro, sequer visível enxergar algo a mais de três metros de distância. Desejou que aquilo, sobre tudo que estava acontecendo, não fosse real.
Finalmente, as coisas pareciam começar a tomar eixos.
, levanta — murmurou, a voz de choro saindo apenas pela boca, pois já mal conseguia respirar — Levanta, vai, eu te perdoo.
Caiu de joelhos. Engatinhou, fraca, até o lado de . A mão trêmula finalmente tocou na dela, gélida. Seus olhos estava perdidos, focando o teto. Era como se ela ainda estivesse ali. Adormecida.
... Vai, levanta, eu já entendi.
Em sua mão direita, usava um anel preto, grosso. reconhecia aquele anel.
nunca entenderia. Era uma mulher genial, totalmente brilhante... Mas aquele sentimento estava além de sua compreensão.
Guarda.
Proteção.
O anel preto. O símbolo de ‘não me deixe’. Parecia tão distante...
Promete nunca me deixar para trás?
Se você ficasse para trás, eu voltaria para te carregar nas costas.
Do que isso vale agora?

Colocou as mãos no rosto, e fechou forte os olhos. Tinha a esperança de que, ao abri-los, estaria sentada, de joelhos, tocando suas mãos e dizendo que estava tudo bem.
Acalme-se.
— Por favor, , não me deixe para trás.
Não obteve resposta.
Do que vale a perda, se você nunca terá a chance de recuperar?
Tirou o anel de sua mão. Colocou-o em sua própria. E desejou não, nunca, jamais, ter que desfazer-se dele.
— Eu fui uma idiota, deveria ter te ouvido.
Também se sentiria uma idiota, mais tarde. Sabia disso. Por favor! Depois de tanta superioridade, agora agia como uma otária. Correndo atrás de .
Corendo atrás da única coisa que ainda sentia conhecer.
Ganhara uma rosa, pelo prazer de procurar espinhos.
Um pedaço em seu interior parecia compreender.
Ela... Ela estava se despedindo de mim.
, me leve para casa... — balançava o ombro sem vida da química — Diga que não é verdade. Me perdoe, por favor.
Sem resposta.
Jamais.
— balançava pelos dois ombros, sacudindo-a com força — ! Eu não quero ir embora sem você! Me responda! — gritava, pedindo aos céus por piedade — !
A única que ainda sentia conhecer.
Corrompida.
Ergueu o corpo sem vida da amiga e o abraçou. Não estava quente, não tinha ar, nem cor. Mas ainda tinha um vestígio de vida.
Morrera de olhos vivos, alertas.
Temendo por ataque.
Morrera temendo.
Você sabe o que fazer.
... Ela tinha se despedido.
Me mostre o caminho, e eu irei com você.
Me indique o caminho. Eu seguirei por você.

Soltou seu corpo e deu as costas para ele. Não suportava mais não poder mudar aquilo. Não ter algum tipo de controle sobre as coisas. Puxava os cabelos para trás.
Devia ter calado a boca.
Quando ela podia ouvir.
Quando podia falar.
Não produzia um som sequer. Arranhava os braços e quase rasgava sua própria roupa.
Gritou como um animal. Uma fera que acreditava estar livre, e percebeu as grades.
E não sentiu mais nada além de uma onda de alívio.
Pegou o telefone. Ligou para a polícia. Deu o endereço.
E esperou, de costas, chorando.
Seu próprio corpo, sem vida, arrastava-se através dos dias. Acreditava estar vivo. Na verdade, só estava apegado.
Não imaginava ser designada para solucionar o assassinato de um colega. Não é o tipo de coisa que você imagina que irá acontecer.
E o anjo viajou ao reino dos céus.
Acontece todo dia. Mortes. Olhamos para ela de um jeito técnico e profissional. Não frio. Sabemos o peso de uma morte. Temos milhares delas em nossos arquivos.
Mas estão em arquivos.
Mas estão lá. Solucionadas.
começou a sentir que alguém olhava por ela em algum lugar. tinha seus defeitos. errara. Mas ainda podia ver suas qualidades. Agora não estava mais cega pelo ódio.
Uma maneira bondosa de ver as pessoas, bem-humorada de encarar tudo... Até certo ponto.
Corrompida.
Não queria odiá-la. Agora, faria o que precisasse para poder ouvir sua resposta.
Abraçando-a, e perguntando, baixinho:
‘O que você queria me dizer?’
Podia sentir ali.
Enquanto não descobrisse quem fizera aquilo, ela continuaria ali.
incitara minha curiosidade.
Ela queria me levar a algum lugar.
Ela está me levando a algum lugar.
Me mostre o caminho, e irei aonde você for.

Pode ouvir meus gritos?
abraçava seu próprio corpo. O casaco não se tornava quente o suficiente. Ela podia sentir o vento abraçá-la. As lágrimas já não escorriam mais, e algo bloqueava sua mente de qualquer outra informação.
Tudo voltava para .
Havia um grupo de policiais, inicialmente. Depois de verem o corpo da química, apareceram mais. Logo, a academia estava cheia de homens e mulheres uniformizados, com lanternas, e havia um corpo ensacado no meio do ringue.
Você ainda pode me ouvir?
! — chamou Julie, passando por baixo da faixa amarela no corredor.
se recusava em sair da academia. Não queria deixar o corpo de como se fosse de uma pessoa qualquer.
Julie correu até com os braços estendidos, para abraçá-la. Quando se aproximou, no entanto, abaixou-os. já se abraçava, sozinha, não querendo mais nada. Queria ter seu espaço respeitado.
A delegada pensou em fazer alguma pergunta, mas como as únicas que ela pensava eram ‘tudo bem?’ e ‘você poderia descrever o estado do cadáver?’, ela fez a maior virtude do ser humano, que poucas vezes é respeitada: calou a boca.
As duas estavam posicionadas lado a lado, com a delegada com as mãos nos bolsos, quando resolveu falar:
— Você viu que me trouxeram aqui?
Julie olhou-a de lado, curiosa.
— Como assim?
— Na entrevista. Mais cedo. Falaram um endereço. Eu apenas o segui.
— Você seguiu um endereço que te deram em um programa de TV?
Julie parecia quase rir. irritou-se com isso. Sabia que parecia idiota.
— Você não viu? Alguém ligou para o programa e perguntou se eu conhecia esse lugar. Eu disse que não.
— E resolveu conferir sozinha se tinha falado a verdade?
— Queria que eu chamasse a polícia? Ela não vem sido muito confiável para mim.
O sorriso de Julie murchou.
, com todo respeito, você não pode... Falar assim.
— Mas é a verdade. Me trouxeram aqui. Fui a primeira a ver o corpo. É um sinal, olhem como estava o corpo!
Não parecia irritada, como costumava parecer. Agora, sua voz era carregada, querendo chorar.
... Preciso que venha comigo.
— Julie, por Deus. Não é um caso comum. É a . Ela era uma de nós.
— Você já viu o suficiente. Venha comigo, preciso que você vá para a delegacia.
Segurou pelo braço, quase puxando-a. desviou, incrédula.
— Você está louca? Julie, eu vi a morta aos meus pés! O que eu menos quero é ir à delegacia. Estou exausta. Quero chegar em casa, tomar um chá e dormir.
O rosto de Julie tornou-se firme e impassível. A voz engrossou para dizer, formal:
— Eu entendi. Poderia, Sra. , me acompanhar para a delegacia?
franziu o cenho. Estranhou, mas preferiu não dizer nada que talvez viesse a se arrepender.
— Sim, senhora.
E acompanhou Julie, em silêncio, até o carro da viatura. Estava vazio. As duas entraram, Julie dirigindo, e , no banco de trás.
Certamente, a burocracia falava mais alto, e tão alto, que ambas sentiam-se como surdas.

sabia de cor o discurso das cinco observações. A primeira era seu direito de permanecer em silêncio. Ela faria muito uso deste.
Quando chegou à delegacia, estava tudo desligado. Nenhuma luz, além da dos postes na rua, estava acesa. Não havia um único vestígio de vida, assim como na academia.
— Venha comigo — chamou Julie, nem um pouco convidativa, desligando o carro e abrindo a porta para que pudesse sair.
Olhando pela janela, algo lá no interior de gritou para que ela fugisse enquanto ainda tinha tempo.
A mão de Julie surgiu na escuridão, convidando-a a sair do carro.
colocou a perna para fora, e, abraçando uma manta que tinha sido deixada em cima do banco traseiro, saiu do carro em direção à delegacia.
Não havia ninguém no prédio, além das duas.
Conferiu o relógio.
Seis e meia da noite.
Os anjos se escondiam atrás das paredes.
Enquanto Julie caminhava pelos corredores, ia com calma, mas com uma estranha dose de autoridade. Era como se Julie tivesse excluído os anos de amizade entre elas, e, para ela, se tornara uma pessoa comum.
Quando indicou uma pesada porta cinza à , a detetive percebeu que estava pisando em cima de campos minados.
A porta que conhecia por entrar pelo outro lado.
A sala de interrogação.
Não era uma vítima. Era uma testemunha.
Fez uma nota mental de que tudo que ela pudesse dizer provavelmente seria usado contra ela. Aliás, essa era a segunda observação de .
Observação? Era o que diziam nas delegacias e centrais de polícia. Procuravam não afugentar testemunhas, tentando ter suas interrogações respondidas com sorrisos no rosto. Era fácil parecer estar num lugar de amigos, quando se quer alguma coisa. Uma das coisas que odiava em seu trabalho, e eram poucas, era exatamente isso.
Policiais procuram prender psicopatas, mas, para achá-los, usa meios bem pouco diferentes dos deles.
A sala de interrogação era pequena, cinza, com uma única fonte de luz, em cima da mesa. Eram quatro lâmpadas fluorescentes colocadas lado a lado, e que juntas, pareciam produzir mais luz que o próprio sol. Esse era outro dos meios usados nas interrogações: a luz forte deixava os interrogados cansados e loucos para saírem dali.
Discretamente, todos os interrogados eram colocados em uma peça ensaiada, na qual apenas eles não sabiam o roteiro.
Isso era estranhamente doentio.
nunca reparara, ou se importara com isso, até o dia em que ela estava do outro lado da mesa.
Lembrou-se de quando subiu na mesa, e quase atacou James Durden. Parecia tão distante...
Quando ela ainda estava no topo do mundo.
andou até a cadeira com os pés arrastando, fazendo o único som da sala. Olhava para baixo, e o único lugar que prestava atenção era no espelho falso.
Queria tentar policiar-se para não ser pega de surpresa com perguntas, procurando manter uma imagem semelhante à da entrevistada no começo do dia.
Não conseguia. impedia isso. Estava perturbada demais para pensar em outra coisa.
Entendeu como as testemunhas se sentiam. Ela os tratava com carisma, tentando deixá-los à vontade. Mas outros policiais eram frios e duros... Quase arrancando palavras dos coitados. Como se já não estivessem sentidos o suficiente pela morte ou sumiço de um ente querido, ainda tinham que ser tratados como um simples objeto de busca.
Sentou-se à mesa, os cotovelos cruzados em cima do metal, e esperou. Imaginou que seus cabelos deviam estar despenteados, e suas roupas, sujas. Mas não se importava. Não era o importante naquela situação.
De repente, a outra porta foi aberta. sabia que ela vinha da sala por detrás do espelho. Era Julie, ainda impassível. Seu rosto sereno e carismático estava agora sério e estranhamente profissional. Vestia um terninho verde escuro, que combinava perfeitamente com seus olhos cinzentos. Os cabelos loiros estavam presos em um rabo de cavalo um pouco bagunçado, e a maquiagem estava borrada. Trazia em sua mão um blazer cinza. Estendeu-o a , que o segurou hesitante.
— Vista. Esta manta deve estar fedendo a mofo.
tirou a manta e colocou o blazer por cima de seus ombros, sem colocar as mãos nas mangas.
— De quem é? — perguntou.
— Um colega seu.
Percebendo que aquilo não deveria, e não podia girar em torno de um blazer, preferiu não dizer mais nada.
Julie sentou-se e colocou os braços cruzados em cima da mesa.
Forçou um sorriso que fez recuar.
— E então? — perguntou.
, lentamente e hesitante, olhou para os lados.
— Então o quê? — franziu o cenho ao responder.
Julie esticou a mão na mesa como se quisesse tocar a da detetive. Para tal, faltavam cerca de dez centímetros, que poderiam ser facilmente anulados caso esticasse sua mão. Entretanto, o que ela fez foi recuar e olhar para a mão magra de Julie com desconfiança.
— Relaxe, . Isso é pura burocracia. Odeio ter que entrar nessa sala. Mas a única pessoa que pode entrar aqui, além de mim, que está presente, não é a pessoa que você mais ama.
— O que quer de mim, Julie?
A delegada franziu o cenho com um sorriso.
— Ah, , aquela formalidade toda foi teatro. Aqui, somos só eu é você.
Na sala de interrogatório? Duvido.
— Você quer saber o que sobre hoje? Sobre a entrevista?
Julie suspirou. Disse com simpatia:
— Não, na verdade, a sua entrevista não tem nada a ver comigo. Aliás, está longe de ter. Mas já que você está assim, quer falar algo sobre a ?
engoliu em seco.
‘Assim’?
Uma voz no interior dela, que ela poderia jurar que pertencia à Ramona, disse:
Não responda perguntas que você acredita que já saibam a resposta.
— Que tipo de "algo"?
Não responda perguntas pouco formuladas. Você não saberá onde ou quando parar de respondê-las.
Julie deu de ombros.
O relógio continuava tiquetaqueando.
— Como você chegou à academia?
— Eu já te disse, Julie. Na entrevista, hoje de manhã, perguntaram se eu conhecia esse endereço. Eu disse que não. Quis ir até ele, para conferir.
— Conferir o quê?
— Imaginei que houvesse alguém ou algo lá me esperando.
— E tinha.
tirou os braços de cima da mesa.
Apertou os olhos.
— De fato.
Julie mexeu no cabelo. sabia que aquele era o gesto para indicar que ela pensava na próxima pergunta.
Outra observação era que tinha o direito de falar com um advogado antes de ser interrogada. Mas não havia tempo.
Olhava para os lados. As paredes vinham ao seu encontro.
Close.
Out.
— Você viu alguém lá quando chegou? Alguma indicação de movimento? Um vulto?
Ela pensou um pouco.
Close.
— Não. Nada. Quando eu cheguei, aparentemente, o lugar estava vazio.
— Por que diz "aparentemente"? — perguntou logo a delegada.
deu de ombros.
— Porque era o que parecia. Não ouvi nada além da estrutura quebrando. Foi quando o corpo caiu.
— Você viu quando o corpo caiu?
— É realmente necessário que você diga "corpo"?
— Posso dizer "cadáver".
engoliu em seco. Mais cínico do que o rosto de Julie, que sorria com ironia, só o rosto de Ramona.
Out.
— Posso trocar de interrogador?
Out.
Se não pudesse pagar um advogado, poderia ter um para atendê-la, designado pela polícia. O problema era que estava tarde e todos pareciam ter pressa.
Incrível como todas as opções de pareciam se esgotar rapidamente.
— Quer mesmo trocar? — Julie perguntou.
manteve-se firme. Concordou com a cabeça.
— Ok. Não poderá destrocar.
Se quisesse responder as perguntas naquele momento, sem a presença de um advogado, teria o direito de parar quando quisesse. Mais um direito negado.
— Não poderei — repetiu .
Julie levantou-se e foi até a porta sem falar mais nada.
Alguns segundos prosseguiram-se em silêncio. suspirou de cansaço, colocando as mãos no rosto e puxando a pele para baixo.
Como queria dormir. Sentia-se exausta.
A porta foi novamente aberta. A voz foi mais rápida que a cabeça de ao se levantar, para ver quem se aproximava.
Realmente, era melhor ter ficado com Julie.
— Boa noite, — disse a firme voz de Marla Bronx.
A coluna de ficou reta e seu rosto transformou-se em uma face séria.
— Boa noite.
Marla tinha os cabelos ruivos soltos, despenteados como os de . Usava uma blusa social branca e uma calça preta, com saltos que faziam ruídos no chão. Seus olhos estavam estranhamente brilhantes.
— Sabe por que está aqui? — perguntou ela. Ergueu um bloco de papel e colocou-o em cima da mesa, dando um clique com a caneta que estava em sua outra mão.
— Porque eu estava na cena do crime da .
Marla assentiu.
— Exatamente. Queremos sua colaboração, apenas. E estava sozinha na cena?
estremeceu.
— Sim.
— Havia algo de incomum?
— Era uma academia abandonada. É incomum por si mesma.
— Quero dizer se ouviu ou viu algo que chamou sua atenção.
deu de ombros.
— O teto estava frágil, onde caiu. Não parecia frágil em qualquer outro lugar.
— O que quer dizer com isso? — Marla anotou o que dizia, sem olhar para ela.
— Que o corpo foi posicionado para estar ali. Eu tropecei antes de ele cair. Foi uma armadilha.
— Diz que foi armado para você vê-lo?
— Sim.
Marla continuou anotando. Parou. Deixou a caneta em cima do bloco, cruzou os braços e olhou para com o olhar fixo.
— Alguma ideia da hora do crime? Ela contactou você em algum momento?
— A última vez que vi foi na mesma vez que vocês viram.
— Onde e quando foi isso?
franziu o cenho rapidamente, mas logo voltou à sua feição anterior.
— Aqui na delegacia mesmo. Há dois dias. Ela foi embora.
— Ela deixou algum tipo de bilhete para você ou algo assim?
Ela hesitou. Tal ato pareceu, felizmente, que ela estava pensando.
— Não que eu tenha visto.
— A última vez que a viu foi depois de sua discussão?
assentiu. Marla pôs-se a pensar, com a mão no queixo e o olhar no vazio.
— A carreira dela aqui na delegacia estava indo pelo ralo.
— Estava — concordou, desconfiada com onde Marla queria chegar com aquele raciocínio, e completou — Eu estaria muito irritada, se fosse ela.
— Eu estaria triste.
recuou. Riu.
Pausa.
— Você não está insinuando que...
— Temos sempre que considerar.
— Suicídio? Por Deus, Marla. Como alguém conseguiria destilar totalmente o sangue do próprio corpo?
— Consegue pensar em alguma maneira?
— Algum remédio anti-coagulante, um corte, congelamento, sei lá. Mas a não se mataria. Não por isso, não assim.
— Como pode saber? Ela estava mal. Perdera a confiança de muitas pessoas. Estava mal para muita gente. Estava no limite.
— Marla! — quase gritou, interrompendo-a, considerando aquela possibilidade um insulto — Pessoas se matam com tiro na boca, ingestão de veneno, se enforcando... Não drenando totalmente seu sangue e se posicionando em cima de uma academia! Como você explica o endereço dado para mim mais cedo?
— Que endereço? — Marla pareceu flexível, com a testa franzida.
— Angel Street. 342. O endereço da academia foi dado a mim hoje cedo, quando eu estava na entrevista. Foi dado por um espectador.
— Acha que ele pode ser o assassino?
— Pode ser uma gravação. Não sei. Não deve ser fácil de rastrear a origem da ligação, também. Não seria idiota. O método dele foi eficaz: não teremos quase nenhuma digital.
Fez uma pausa.
— O sangue drenado, apenas um corte grande aparente no corpo. Sem série de cortes. Ele ou ela quis fazer sofrer, vendo seu próprio sangue jorrar para fora de seu corpo. É uma pessoa que a odeia.
— Que a odeia? Temos uma lista. Alguma que a odeie mais?
— Eu só consigo me lembrar do e do . Mas nenhum deles fez isso.
— Você tocou no corpo?
teve sua linha de raciocínio interrompida por total indignação.
— Claro que toquei no corpo. Ela era uma das minhas maiores amigas.
— Você sabe que uma regra principal do trabalho é nunca tocar nos corpos.
— Não consegui. Ela deve estar cheia de marcas de digitais minhas, a essa altura. Eu não imaginava que ela pudesse estar...
Marla suspirou.
— Você não deveria ter tocado no corpo...
— Porra! — falou mais alto, em tom de reclamação — Eu a abracei. Nunca mais veria . A última vez que a vi, queria matá-la. Agora, faria qualquer coisa para tê-la de volta. Então, não fale que eu não deveria ter tocado no corpo.
Sua voz tornou-se levemente chorosa. Marla murmurou:
— Me desculpe.
— Vá se foder — respondeu, as lágrimas escorrendo de novo, escapando.
Mais alguns segundos se passaram até Marla fazer outra pergunta:
— Você soube da bomba?
— Que jeito sutil de chamar um assassinato.
— Não isso. A bomba de verdade.
apoiou o corpo em cima da mesa.
— O que houve?
— Uma bomba explodiu aqui, hoje cedo. Buscávamos nesse momento, sem alarde. Quando a bomba explodiu, achamos que era uma brincadeira de criança, uma bomba caseira como qualquer outra. Mas percebemos que o assassino de pode ter instalado-a para nos distrair. Te ligou e deu o endereço. Tudo conspirou a favor dele.
Marla olhava fixamente para , a ponto de assustá-la, com o corpo também quase em cima da mesa.
Close final.
— Tem alguma coisa que você saiba, e acha que devêssemos saber?
O anel.
Recuou.
— Não.
E toca o sino. Liberados.
Marla também recuou. Suspirou.
— Quer um café?
Não.
— Não.
— Ok. Já volto.
Levantou da cadeira com pressa. Saiu da sala.
A calma reinou.
Teve um leve ataque de claustrofobia. Queria deixar a sala o mais cedo possível.
Era sua grande chance. Poderia sair.
apoiou as mãos na mesa, e preparou-se para desdobrar os joelhos. Ouviu o som da maçaneta da porta, um ruído irritante de destravamento. Sentou-se novamente. Marla estava de volta.
Não, não Marla.
Não de volta.
— Só vou pegar meu casaco — avisou a voz, rindo, para o lado de fora da sala.
Quando o corpo adentrou a sala de interrogatório, ficou preferindo que fosse Marla. Não estava com clima para qualquer tipo de conversa com .
— Hey — ela disse, com os cantos dos lábios erguidos, a boca fechada, um sorriso sem graça.
Quando ele fechou a porta e postou-se atrás dela, o que seu rosto menos transmitia era simpatia.
Parecia em pânico. Rápido.
Emergência.
— Você precisa sair daqui. Agora.
foi a passos longos até a cadeira em frente à . Puxou-a e colocou-a ao lado da detetive, sentando-se nela de lado, com pressa. Os olhos corriam procurando algo no cenário, como um pequeno aparelho de microfone.
— O quê? — ela perguntou, o rosto deixando clara sua confusão.
Ele olhou para a porta, conferindo se ela estava trancada. Disse com a voz baixa e rápida:
— Julie e Marla são as únicas na delegacia. Todos estão na cena do crime da , ou rastreando a ligação que fizeram ao estúdio do Canal 2 hoje de manhã. Ou tentando descobrir quem fez aquela bomba que explodiu hoje de manhã.
— E por que eu devo fugir?
— Porque acham que você quem fez essas três coisas.

ficou sem palavras. Toda vez que tentava falar, não tinha a capacidade de dizer palavra alguma. Então, repetiu as duas que tinha dito momentos antes.
— O quê?
— ele se aproximou ainda mais dela para sussurrar, os olhos cheios de preocupação, fazendo-a recuar um pouco — Você e quase se mataram no último dia que todos a viram. Você saiu daqui ontem, e uma bomba explodiu hoje de manhã. E foi a única da cena do crime da , e primeira a vê-la morta. Não precisam de mais provas.
— Eu não matei ninguém — ela retrucou, em sussurros, como ele — Eu nunca mataria !
— Faz alguns minutos de você colocou o verbo "matar" e a palavra "" na mesma frase.
Lembrou-se do que dissera para Marla.
Merda.
— Acham que eu fiz a bomba?
— Seria o jeito de nos distrair para sua entrevista. Muitas pessoas não a assistiram para investigar sobre a bomba. Era caseira. Qualquer um poderia fazer.
— Exato! Por que suspeitam de mim?
— Por que não suspeitariam? Você fez uma entrevista nacional hoje cedo. Falou de sua carreira. Você se ouviu com as perguntas de Julie e Marla? Não parecia sequer que driblou as de Jordanna.
— O que quer dizer com isso?
pegou no bolso o bloco de Marla. olhou para a bloco com o cenho levante franzido.
— Eu disse a ela que iria lê-lo profissionalmente — justificou-se , de um jeito sem-graça e abaixando o rosto, que ficava avermelhado — "Anticoagulante. Corte. Gravação." Você deu as palavras chaves a elas. Você hesitou. Tocou no corpo e disse que ele está repleto de digitais suas. Se você a tivesse matado, sua afirmação de que tocou no corpo quando ela morreu perderia o valor. Seria um jeito de você disfarçar digitais que não viu ao limpar o corpo quando a matou.
— Eu não matei a — ela disse, séria, os olhos começando a marejar e entre dentes — Eu não a matei.
— Eu sei disso, mas os outros não. Você é a suspeita número um. e eu seremos interrogados. tem álibis no hospital. Você não tem álibi algum.
— Se descobrirem a hora da morte... Se for de ontem... Eu consigo me livrar.
— Depende. Precisamos de alguém que confirme que você foi vista durante a hora da morte. Você estava aonde? Com quem?
— Ontem à noite eu estive no ... E depois fui para casa.
, que ia dizer alguma coisa, calou-se. A palavra que o tinha feito perder a fala fora "". não iria, nem poderia mentir. Estava mesmo na casa de , até certa hora.
— No ? — ele perguntou, como se quisesse confirmar.
Ela apenas assentiu com a cabeça. Aquilo atingiria de um jeito que ela não imaginava.
Trocado.
Mas não era hora de drama.
— Ok — ele disse, logo, voltando a falar rápido — E depois? Em casa, alguém te viu lá?
— Ramona. Ramona esteve comigo desde hoje de manhã, até o almoço. Depois, fui para casa, ela saiu e eu dormi. Não sei onde ela possa ter ido. Nem onde ela possivelmente está.
apoiou o queixo com a mão, e ficou olhando para o bloco, pensando.
— Você não tem um álibi forte. Nem Ramona. Na melhor das hipóteses, podemos fazê-la se tornar uma suspeita potencial, e te livramos por um tempo. O que precisamos fazer agora, no entanto, é te tirar daqui.
Levantou-se da cadeira com pressa. Segurou a mão de e a fez levantar. foi levada por por dois passos, até que ela se soltou.
— Ei! Espere. Por que está fazendo isso? — ela perguntou — Achei que estivesse querendo tirar o seu da reta. Isso vai te prejudicar, se me ajudar a sair. Por que está fazendo isso? Por que se importa com isso?
O mundo parou por um instante. O rosto de ilustrava sua confusão, sua urgência por respostas. Não sabia mais de muitas coisas. As horas pareciam correr mais rápido na caixa preta que era a sala de interrogatórios. , por outro lado, pareceu surpreender-se levemente com sua própria resposta. Por isso, disse a , baixo:
— Porque me importo com você.
O som de passos foi ouvido, assustando os dois, que imediatamente olharam para uma das portas da sala. Não tinha vindo dali. Ainda estava longe, no corredor.
— Vamos logo. Julie ou Marla deve estar vindo.
— O que você vai fazer?
Ele segurou a maçaneta com uma mão, olhando para trás, para , parada no meio da sala.
— Vou te tirar daqui.
Saiu e fechou a porta.

estava sentado na mesa de braços cruzados. Usava uma camisa preta, um casaco de moletom e calças jeans. Estava cansado, mas não com sono. Tinha passado o dia inteiro fora, no trabalho. Descobrira por intermédio de sobre a entrevista de .
Quando chegou à delegacia, só havia Julie e . Suspeitou que estivesse lá também.
— Boa noite — cumprimentou Julie.
murmurou a mesma coisa, com o nariz empinado de quem sabia a cura da AIDS. Ele costumava agir assim quando estava de mal humor. Torvava-se metido como nunca era, impaciente, quando achava que estava perdendo tempo.
Definitivamente, aquilo seria uma perda de tempo.
Talvez, a vantagem seria que, ao sair dali, ele e poderiam ir a um bar ver o jogo de basquete. E comer. E beber. E comer mais. E comer mais ainda.
Talvez pizza. Quem sabe umas asas de frango. Cebolas fritas. Ou então...
? — perguntou Julie.
Ele acordou de seus devaneios levemente com mais fome.
— Hmm? Perdão, Sra. Stoner. Pode repetir?
Julie deu um sorrisinho.
— Por favor, apenas Julie, e eu o chamo apenas de .
Wow. Nossa.
arqueou as sobrancelhas.
Ela está flertando comigo?
— Tudo bem — ele respondeu, dando de ombros.
— Perguntei quando tinha sido a última vez que vira .
Ele pensou um pouco, descruzando os braços e colocando os cotovelos em cima da mesa, as mãos com os dedos entrelaçados e na frente da boca.
— Faz algum tempo. Uns dias... Foi domingo, o último dia.
— O dia que você a expulsou de sua casa e de ?
Ele assentiu.
— Lembra das exatas palavras que disse ao expulsá-la?
Ele fez que não. Julie reproduziu um gravador em cima da mesa. Material colhido do vídeo reproduzido na delegacia.
A voz de soou primeiro:
— "Sua filha da puta. Sua vagabunda, vadia, piranha!"
A de soou depois, parecendo agora incrivelmente fantasmagórica:
— ", eu..."
falou mais uma vez:
— "Se eu tocar em você, vai ser para te dar uma surra tão grande que você não vai se lembrar de como seu rosto era antes. Saia da minha frente, sua cachorra. E nunca mais apareça." — fez uma pausa — "Você vai do jeito que está. A rua inteira vai ver a verdadeira você. Que nenhum de nós jamais tinha visto."
franzia o cenho ao ouvir a gravação. Julie procurava um blefe em seu rosto, mas não conseguia encontrar. Ele parecia estar se recordando.
— ", por favor..."
— "Eu não estou brincando."
A gravação parou aí.
— Você soou ameaçador.
— Ela tinha me traído com o meu melhor amigo. E fez meu melhor amigo trair a garota que eu percebia que estava mudando a vida dele. Como eu não soaria ameaçador?
— Você disse que iria socá-la até ela não se lembrar de como seu rosto era antes.
— Iria. Estava quase fazendo aquilo assim que a vi com o .
— Você a humilhou no meio da rua.
deu de ombros.
— Eu faria bem mais, se pudesse. Mas esperava nunca mais vê-la em toda minha vida.
— Onde você estava, hoje, o dia inteiro?
— No hospital. Só saí para almoçar.
— O hospital confirmou que você chegou tarde.
pegou nosso carro e eu precisei esperar um táxi.
— Podemos confirmar isso?
— Acredito que não.
— Como espera que eu acredite em você?
suspirou, olhando para o chão. Levantou o rosto e apertou os olhos.
— Você é cristã, Julie?
— O quê?
Ele chegou o corpo para frente.
— Perguntei se é cristã.
Julie franziu o cenho.
— Sou.
— Deus existe?
— Claro! — ela sentiu-se ofendida.
— Podemos confirmar isso?
Julie calou-se.
Esqueci que estava falando com um psicólogo.
, você teve motivos, e ainda averiguaremos se teve tempo. Estamos realizando uma autópsia no corpo, e descobriremos a causa da morte. Se não tiver um álibi, você e serão os maiores suspeitos.
Aproximou-se de .
— Você matou a ?
Ele respondeu firmemente:
— Quis matar . Ela me deixou irado de um jeito que poucos conseguiram. Quis matá-la tanto quanto 70% dos americanos queriam matar George Bush. Eu quis, eu tive motivos, e cheguei a ter chances... Mas jamais teria conseguido.
Julie perdeu a firmeza e recuou na cadeira.
— Eu não teria conseguido matá-la. Se tivesse uma arma em minhas mãos, e ela estivesse ajoelhada na minha frente, eu não teria conseguido atirar. Estaria satisfeito com a cena, não com seu desfecho. Eu não matei . Queria muito, e não vou mentir e dizer que sua morte me entristeceu. Mas não a matei.
Não havia nada mais para ser dito.
Não havia palavra que coubesse ali.
— Faz ideia de quem possa ter feito isso, então?
comprimiu os lábios e olhou para baixo. Pensando, ele ficou em silêncio enquanto Julie se enchia de expectativa.
— Pensando rápido assim, não. não falou de qualquer ex ciumento ou nada do tipo. Ela logo cortava relações assim que acabava um relacionamento, pelo menos foi o que eu reparei. O nunca faria algo assim, apesar de ele ter o motivo mais concreto. O cara não mata nem barata, quando uma resolve aparecer lá em casa. E a ... Bem, ela parecia estar progredindo. Não acho que possa ser ela, também — parou um instante para refletir — Não acham que ela pode ter morrido por acidente?
— Duvido que uma pessoa que tenha todo seu sangue drenado por um único corte muito profundo possa ter morrido por acidente.
Só a hipótese totalmente descartada de suicídio já tirou de si.
— Isso faz da a maior suspeita de vocês?
Julie não custou a assentir. Tinha ressentimentos, afinal, não havia modo de tratar como uma estranha. Mas era seu trabalho.
Manter um assassino em potencial solto é um risco grande demais para ser tomado.
E tudo parecia correr mais rápido quando se parece uma pessoa de dentro.
— Eu a conheci rápido. Posso estar errado em relação a ela, mas li sua mente de maneira impessoal. Como uma paciente, e, depois, como uma amiga. Tenho uma impressão bem concreta sobre como ela pensa.
— E você está do nosso lado? Ou do dela?
— Não acredito que se tratem de lados diferentes, Julie.
coçava os dedos indicador e anelar da mão esquerda. Parecia agoniado. Assim que Julie percebeu, ele parou e colocou a mão no colo, embaixo da mesa.
— A mente de é um grande pátio escuro, cheio de surpresas boas e ruins. Tenho a lanterna, mas não a chave do portão.
— Pode forçar a fechadura?
não falou mais nada, e se levantou para que fosse embora.

Marla não viu Julie quando saiu da cafeteria. Passou por , que, com um aceno, se despediu. Ele foi para a sala de entrada e, logo depois, ouviu-se a porta de vidro se fechando.
Marla suspirou em frente à porta da sala de interrogações. Colocou a mão na maçaneta, mas não foi capaz de abri-la tão cedo.
Sentia um pouco de remorso. Era crueldade estar fazendo aquilo. Manipular uma colega de trabalho, querendo arrancar dela informações.
Mas era trabalho.
Marla não conseguiria, jamais, colocar amizades ou qualquer tipo de relação antes do seu trabalho.
Era uma filosofia simples: pessoas podem decepcionar, mas meu trabalho sou eu quem faço.
Simples.
Não é egoísmo.
É cuidado.
Não tinha namorado. Mas se tivesse, colocaria o trabalho por cima dele. E faria qualquer coisa para proteger seu trabalho.
Se precisasse passar por cima de alguém... Sem qualquer dificuldade.
Se precisasse trair um colega... Sem pensar duas vezes.
Porque seu trabalho jamais a trairia.
Meu trabalho sou eu quem cuido.
Depende apenas de mim. Não da boa vontade de terceiros.
Quase sempre.
Abriu a maçaneta, depois da reflexão. A sala estava em silêncio. A mesa, vazia. A cadeira ao lado dela, também.
Por isso, não devemos contar com a ajuda de terceiros.
— Filha da puta — murmurou Marla. Como conseguira sair? Não era possível! passou sozinho pelo corre...
.
Havia um pequeno basculante no alto da parede. Uma janelinha. Uma das cadeiras estava perto da parede, de frente para a janela.
Ela não podia ter simplesmente evaporado através das paredes. Ela não era um fantasma... Não era uma assombração.
Era apenas o terror de sua vida. Fora de controle.
Boquiaberta, Marla foi até a cadeira, lentamente. Colocou um pé em cima dela, e ficou na altura da janela. Mal cabiam os ombros de uma pessoa de porte normal. Não havia ninguém do lado de fora.
.
Filho da puta.
— Não é possível...
Filhos da puta. Os dois.
Queria proteger um, e o outro estava corrompendo.
— Aqui não passa nem...
A cadeira foi tirada do lugar, e com um barulho surdo, o corpo de Marla caiu contra o chão.
Houve o pequeno clique de metal.
— Eu falei, eu que mando nessa porra, eu sou a dona dessa porra — murmurou, quando a visão de Marla voltava a se adaptar à realidade, percebendo que a assombração de sua vida não apenas estava ali, mas a estava algemando à mesa.

Quando Marla abriu a porta, rezou com todas as suas forças para que ela não vasculhasse toda sala. Especificamente, para que não olhasse atrás da porta, ou ouvisse a respiração de . Assim que Marla começou a andar até a janela, não havia segunda chance. Não tinha como tentar de novo.
Anos de pegadinha com os coleguinhas de escola lhe prepararam para aquele momento.
Quando puxou a cadeira, e o corpo de Marla veio ao chão, era para ser rápida de um jeito como nunca imaginou.
Não tinha sua pistola, mas não deixava de usar seus documentos, nem qualquer objeto para defesa.
Depois que algemou os dois pulsos de Marla Bronx ao pé da mesa, enquanto ela continuava sutilmente desnorteada, por um instante, não soube o que fazer.
Aquilo estava longe de ser de seu feitio.
Levantou olhando para Marla com terror.
Sem pensar duas vezes, correu pelo corredor da delegacia, quase tropeçando no caminho, guiando-se pela escuridão até chegar à sala de recepção.
Não havia mais ninguém ali além de e Bronx.
Quando abriu a porta de vidro, desceu as escadas e parou no meio da rua. Respirou fundo.
Livre, por enquanto.
Não parou para pensar a respeito.
Um lugar que ela tratava como seu império estava agora caçando-a.
E sua conselheira era sua maior caçadora.
Um som de pneu arrastando no asfalto foi ouvido no final da rua. Com um susto, recuou.
Até perceber que era o carro de e .
— ‘Bora, minha garota, não temos o dia inteiro — chamou , abrindo o vidro do motorista.
A porta de trás foi aberta. quase pulou para dentro.
— Julie quer minha carcaça — ela disse, quando a porta se fechou e voltou a dar a partida.
Estava ofegante.
estava ao seu lado. Procurou as palavras para dizer:
— Não é bem isso. Ela só quer ficar de olho em você.
— Não quer que eu saia da linha — murmurou quase para si mesma.
suspirou aliviada e olhou para trás. A delegacia ficava cada vez mais distante.
Era possivelmente a última vez que sairia de lá há meses. Fugindo.
Quando voltara, era como uma suspeita de um crime.
De novo.
— Você trancou Marla lá dentro? — perguntou.
Ela não respondeu, mas deu um sorrisinho de sucesso. E aquilo seria sua confirmação.
— Tentei do jeito difícil. Fiz do jeito fácil, e menos honesto, mas bem mais rápido.
— Ela não vai conseguir sair até amanhã? — perguntou , olhando pelo retrovisor.
— Claro que consegue. Talvez demore, só isso. Ela é espertinha. Me colocou lá dentro, sabe como sair de lá.
abraçou as pernas, e olhou para trás. A delegacia agora era um ponto distante no fim da rua.
ergueu o olhar, parecendo ofendido.
— Eu sou o motorista? — perguntou, reclamando.
— Cala a boca e dirige — retrucou, prontamente, em ordem.
e olharam para ele, que riu pequeno.
— Sempre quis dizer isso.
Os três riram e suspiraram, cansados, depois. Demorou alguns segundos para ela perguntar:
— Vocês dois também estavam na delegacia, enquanto eu fui interrogada?
— Eu estava. Também fui interrogado. Mas não acho que eu seja um suspeito em potencial. Você passou a bola para quem?
— Passar a bola? — perguntou ela, estranhando — Como assim?
— Você não se culpou, certo?
tossiu.
— Mais ou menos... — ela murmurou.
— Cacete, . Como espera que te defendemos depois disso?
— Eu sou inocente. Alguma hora, alguém vai achar esse culpado.
— Alguém quem? — perguntou.
Ela engoliu em seco.
Você? — ele continuou.
— É nessas horas, , que os coleguinhas mandam os coleguinhas calarem a boca, e os coleguinhas calam! — cortou.
comprimiu os lábios, e começou a olhar para os próprios joelhos, dobrados em cima do banco. Estava de lado. apoiou o cotovelo no banco e ficou de lado, de frente para ela.
— Você está bem?
Ela tremia. Ele pegou seu casaco e a entregou.
— Déjà vu. De novo — ela murmurou.
— Isso não é lugar para você — ele retrucou.
, eu achei que você era macho — interrompeu.
— Cala a boca, .
Ela riu. Aquilo a deixou mais tranquila.
— Tem alguém te esperando em casa? — perguntou, comprimindo os lábios — Pode ir para a nossa...
— Não — ela cortou — Estou bem, obrigada. Não tenho planos para sair de casa tão cedo.
— Nem acho que deva — completou — Até onde eu sei, você está procurada até os ossos.
— Acham que eu coloquei uma bomba na delegacia, que eu matei e que fui responsável por uma ligação que me deu um álibi.
— Legalmente, se você não for indiciada, não é obrigada a sair de casa se não quiser — esclareceu — Podemos levar para você o que você precisa para ficar lá por um período.
— Pode me levar canetas de quadro escolar?
e franziram o cenho.
— Canetas...
— Não pergunta — cortou, fazendo dar um sorrisinho — Amanhã de manhã, você terá um estojo de canetas de quadro escolar na sua porta.
— Obrigada — respondeu — Alguma ideia de quem a matou? — ela perguntou.
— Se eu estivesse num seriado policial, apostaria todo meu dinheiro no — disse .
— Você nem o conhece — disse .
— Exatamente. Sempre suspeitem dos insuspeitáveis.
Todos riram um pouco.
— Viu? Eu não sou inútil, faço vocês rirem. Além disso, , não evite ver qualquer pessoa da delegacia.
— Preciso de alguma desculpa para ficar em casa. Consegue isso para mim, ?
— Contato Julie e digo que você foi submetida a um tratamento que fragilizou seu humor.
— Parece que eu enlouqueci.
olhou-a de novo pelo retrovisor.
— Desculpe, . É o que posso fazer.
— Não foi uma reclamação. Obrigada, . Muito obrigada mesmo.
comprimiu os lábios e ergueu as sobrancelhas.
Ei, eu ainda estou aqui.
— Além do mais, senhorita , acho bom você aparecer amanhã no consultório. Andou tomando o remédio?
— Todas as manhãs, doutor. Foi o que andou me mantendo de pé.
Ficaram em silêncio enquanto fazia uma curva.
Vamos lá, não é tão difícil.
— Obrigada, — ela murmurou — Obrigada por ter me ajudado.
Ele olhou para ela, prestando atenção em cada sílaba, mas não deixando isso transparecer. Vendo isso, ela prosseguiu:
— Quando você foi embora, e eu saí e não te vi, achei que tivesse realmente partido.
— Eu nunca teria te deixado para trás — ele disse incisivo, se sentindo imensamente ofendido com a observação — Não deixei antes, não deixaria agora.
— Não precisa se alterar. Só fiz uma observação.
— Só porque você perdeu a confiança no , não precisa generalizar isso para mim também — ele continuava sério — Eu não sou que nem ele. Eu nunca deixaria um parceiro para trás.
não...
— Ele te deixou. Te afundou, subiu à superfície afogando quem estava ao lado.
— Não fale assim — ela respondeu igualmente dura e firme — Ele fez coisas boas e ruins. Não esqueci as boas.
— Pare de defendê-lo! — falou mais alto — Não pode perceber que ele é um idiota?
— Pare de falar de e dê uma olhada em você! Olhe para si mesmo antes de apontar o erro dele!
calou-se. Pensou um pouco antes de retrucar:
— Ele te tratava como prêmio dele.
— Não fale de , . Você não está muito melhor do que ele.
! — ele parecia pedir desesperado por piedade — Quando você vai entender que foi um péssimo mal entendido?
Você tenta tanto ser boa, que pessoas se aproveitam disso.
— Quando você vai entender que, não importa o tamanho disso, da sua explicação, o final foi o mesmo?
Houve um breve momento de silêncio.
Eu odeio o final, mas começou com uma cena boa.
— Quando você vai entender que a grande diferença entre mim e é que, para ele, você significa um prêmio, e, para mim, o prêmio significa você?
Que via em você uma ponte, e eu vejo em você o meu castelo?
ficou totalmente sem reação.
— Cala a boca, . Não faça isso pior.
— Quando você vai entender que cada dia que eu acordava e via você já era um dia bem aproveitado? — ele continuava falando alto, mas isso era estranhamente adorável, como se aquela fosse sua tentativa de fazê-la entender — Que, meu Deus, trabalhar ao seu lado era um desafio, porque era simplesmente impossível eu me concentrar? Que eu me aproximei de você por curiosidade, e hoje não consigo passar um dia sem lembrar de como você me deixa sem dormir? Que, puta que pariu, , eu simplesmente não consigo mais imaginar um único dia da minha vida que eu não faça o possível e o impossível para que eu veja um pequeno sorriso seu?
Silêncio.
— Não acho que seja grande coisa — ele prosseguiu, mais calmo, parecendo acordar de um transe — Mas acho que eu gosto muito de você.
— Eu também achava — foi o máximo que ela conseguiu responder — Você disse dois palavrões, mas acho que couberam bem.
Ele riu baixo.
— Couberam — ele concordou.
Silêncio. Três silêncios em um diálogo era algo perigoso.
— Desculpe, . Mas ainda estou confusa demais. Parece que estou em um livro, onde tudo toma outro rumo no meio da história.
...
— Chega, você já falou demais — ela colocou os indicadores nas têmporas — Não fale mais nada.
— Aquilo não significou nada para você? — ele perguntou — Aquelas semanas em casa, onde o universo parecia trabalhar ao nosso favor?
...
Ele segurou-a pelo antebraço e puxou-a contra si. Seus corpos se juntaram, mas seus rostos ainda estavam um pouco distantes. Uma distância insignificante de dois centímetros separava seus lábios.
não conseguia respirar direito. Ele surpreendeu-a de modo que seus olhos estavam grandes, suas pupilas, dilatadas, e sua respiração, entrecortada.
, por outro lado, parecia estar totalmente no controle de si mesmo. Seus olhos continuavam fixos nos de , sua respiração tocava os lábios da moça, e sua pele fervia. Seu rosto estava erguido. Não parecia determinado em fechar o espaço entre os lábios dos dois.
Aquele seria um trabalho de .
— Se aquilo não foi nada, recue e vá para casa — ele falou, baixo — Se foi, faça o que você quer fazer. Preencha os espaços vazios.
Feche o muro.
A respiração entrecortada tornava-se calma. Os olhos de relaxaram, quase se fechando.
O carro parou na Singer Street.
Os olhos de a fitavam, aguardando. Não eram impacientes.
Esperariam a eternidade.
— Até mais — ela se despediu, abrindo a porta às pressas e indo para casa.
Abriu a porta e sentou no chão, tentando assimilar tudo.
Fugir é mais fácil que encarar, não?
Eu bem que tento te odiar...
Entrou em casa, nem sequer acenando.
E deu graças a Deus, por um segundo. Tinha as anotações de Marla consigo.
Pelo menos isso, uma conquista no dia.
. A única pessoa no mundo capaz de deixar sem chão.
E, depois, devolvê-lo a ela.

— Você é muito bonzinho — disse — Adoro você, adoro ela, mas odeio vocês juntos. Um faz o outro de otário, você faz o impossível para ajudá-la, e é isso o que recebe em troca... Se eu não parasse vocês, besteira feita. De novo. Você não toma jeito, ?
suspirou.
— Só dirige.
— Eu tenho a cura perfeita para isso.
— Um remédio?
— Não. Álcool.
grunhiu.
— Eu quero é dormir. Por favor, me arrume algo para me trancar na cela dos sonhos. E jogue a chave fora.
— Você quem sabe. Eu quem vou ter que ouvir a falando de você, de novo, amanhã, não vou?
— Ela fala sobre mim com você? — não tardou a perguntar.
— De vez em quando.
Alguns segundos depois, completou:
— Cara, ela te odeia.
desistiu de uma conversa e continuou calado, enquanto emendava assuntos de comida.

Quando levantou a cabeça, já deviam ter se passado dez minutos desde que e tinham deixado-a em casa. Foi assim que viu, na cozinha, uma mulher loira preparando café.
Era ali. Agora.
Levantou-se séria, com os olhos fixos em Ramona, como um leão fitando sua presa.
— Ah, você chegou — falou Ramona, sem emoção, deixando a cafeteira pronta.
jogou seu corpo contra o dela, segurando-a pelos pulsos e virando-a de costas, jogando seu rosto contra a parede.
Não acreditou em sua força. Estava realmente muito irritada.
— Que porra é essa? — gritou Ramona, antes de sentir seu lindo rosto esmagado contra o ladrilho, e seus belos pulsos torcidos.
— Se você não me disser agora mesmo quem é você e de onde você veio, eu vou tirar cada um de seus belos cílios com uma pinça — falou com firmeza, sem brechas.
— Você está blefando — Ramona retrucou, rindo.
segurou seus cabelos loiros com a outra mão, bem embaixo, e bateu seu rosto contra a parede de novo. Sentiu que poderia ter quebrado seu nariz.
— Ai! — gritou Ramona — Jesus Cristo, o que fizeram com você?
Mais uma batida contra a parede, mais um grito de dor.
— Não estou de brincadeira, Ramona — retrucou, com ira em sua voz entre dentes — Eu estou com tanta raiva e tão confusa que você deveria agradecer a Deus por eu não ter mais minha arma.
— Ei, se você está putinha, boneca de papel, não desconte em mim!
aliviou a mão. Virou Ramona para si, e viu o nariz dela escorrer sangue. Ramona comprimiu os lábios e evitou o olhar, parecendo perceber que falara algo que não devia.
— Do que você me chamou?
— Eu te ajudei esse tempo todo — pausou para pigarrear —, abri a sua mágica e misteriosa bolha e é assim que você me agradece?
— Ramona — gritou, fechando os olhos com força, e depois voltando à sua serena voz — Do que você me chamou?
Ramona passou as costas da mão no nariz, tirando o filete de sangue.
— Acho que você já pode saber a verdade.

Marla odiava a sensação de estar trancada ali. Suava frio, tremia, mal conseguia ficar de pé. Tinha que dar um jeito de sair dali.
não queria deixá-la presa. Só queria conseguir tempo.
O jeito era sair dali o mais rápido que pudesse.
Ficou ajoelhada e tentou alcançar o telefone no bolso. Discou para o número de , e colocou no viva-voz.
Um toque. Dois toques. Três toques.
— Alô? — ele perguntou, baixo, parecendo ocupado.
? Você precisa me ajudar. Você não vai acreditar no que a e o amiguinho dela fizeram comigo.
Ele pigarreou.
estava chorando?
— Prefiro não acreditar no que eles fizeram comigo.
... O que houve?
— Não resta dúvidas. Precisamos exterminar Ramona o mais rápido possível.

Insanity laughs, under pressure, we're cracking…


Continua...

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Nota da autora: Sem nota.



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