— J. D. Salinger
Prólogo
Quando se espanca uma cabeça humana, a aparência é semelhante a um bolo de carne estourado. Uma pessoa costuma ter cinco a seis litros de sangue, então dá para se imaginar a pintura. É algo especialmente diferente de espancar uma cabeça de um boi ou cachorro. Os miolos jogados no chão, rosados, por causa do sangue, o osso do crânio estilhaçado e a carne afundada na massa disforme que há alguns segundos foi uma cabeça. Um narizinho tão bonitinho, fino, apontado para cima, quase inexistente. Os olhos perdidos, olhando para lugar nenhum — um deles nem sequer estava ali mais. E o cabelo castanho, tão bem cuidado, tão delicado e macio, ensopado de sangue vermelho-escuro.
E o cheiro de carne.
Esse tipo de detalhe normalmente não é contado: o cheiro. Quando se conta uma história de assassinato, ou uma perseguição, tudo é morbidamente detalhado, mas o cheiro fica de fora. O cheiro é a parte mais significante. Nenhum cheiro é igual.
Em específico, não havia cheiro de pólvora. Era só o cheiro de carne, o cheiro de carne crua e ensopada, como se fica a carne quando é comprada. É o mesmo cheiro, cheiro de comida, cheiro de gosto, o cheiro que se consegue sentir com a língua. A cabeça caída na terra de um campo fechado, com um delicioso cheiro de carne crua, completamente deformada, com a massa facial na periferia do rosto, o centro da obra destroçado.
Jogou a marreta na bolsa. O corpo pequeno, anormalmente pequeno, estava em relativo bom estado: as mãos caídas ao lado, as pernas em uma pose engraçada, como se tivesse tropeçado. Não tinha rosto. O plástico em que estava deitado era transparente, o que facilitava a percepção de possíveis gotas fora da área de trabalho. Mas era grande; com certeza não falhou, assim como nunca falhara. Enrolou o corpo no plástico e jogou-o na vala. Pôs cal em cima, e terra. As roupas que acompanhavam sua obra eram sugestivas — se o achassem, algum dia, achariam que se tratava de uma prostituta. Teve cuidado de raspar a ponta de cada dedo para dificultar mais a identificação. No entanto, sabia, com um pequeno nível de arrogância, que era pura precaução.
Não achariam o corpo. Nunca acharam.
Os casos notórios — Jack, Gilles de Rais, John Adams — eram sensacionalismo da mídia. Sabia isso pelo motivo mais óbvio: era necessário transmitir segurança. Noticiar um caso perdido? Burrice. Não valia a pena, nem sequer para os jornais, divulgar um assassino em série cuja identificação é praticamente impossível. Isso causaria caos público, histeria. Casos assim normalmente eram vazados. O jeito é bem mais simples: coloque um boi de piranha. O público adora um bom sangue, uma história com pessoas estripadas, principalmente quando se sabe que o responsável está sendo punido. Isso faz o público, o grande idiota, achar que agora o perigo se foi.
Os melhores nunca são descobertos. Percebeu isso há pouco tempo, já na décima terceira vítima.
Enterrou a moça. Ela tinha um cheiro floral que bloqueava seu potencial cheiro de natureza. Achou que ela tinha dito que tinha vinte anos, mas ela provavelmente tinha mentido. Queria sexo. O seu sexo, e ele ofereceu isso a ela — sem, certamente, deixar vestígios. Seu sexo era calmo, no começo, e tomava forma com o tempo, acordando. Comia, comia, e comia até se saciar. E então, jogava fora.
Não era essa sua intenção. Não a comeu porque queria comer — isso era um bônus. A ideia de que, quando se quer saciar sua vontade, basta escolher alguém na rua, é falsa, tão falsa que o incomodava. Isso envolvia trabalho, pesquisa. Escolheu aquela moça a dedo, como se escolhe o melhor prato de um cardápio, com nenhum outro interesse a não ser em sua cabeça estourada.
E comeu-a, então, enterrou-a. Acabou sua história ali. Não se lembrava do nome dela, e mesmo que se lembrasse, havia grandes chances de ser um nome falso. Isso não interessava mais, pois sua história já havia acabado. Ela não podia sequer ser vista.
Guardou suas coisas e foi embora.
Gostava do cheiro de carne, e isso era a melhor parte de fazer aquilo. Particularmente, era o que o fazia repetir. O cheiro, que é inexistente na história falada e impossível de ser sentido em uma folha de papel.
E o cheiro de carne.
Esse tipo de detalhe normalmente não é contado: o cheiro. Quando se conta uma história de assassinato, ou uma perseguição, tudo é morbidamente detalhado, mas o cheiro fica de fora. O cheiro é a parte mais significante. Nenhum cheiro é igual.
Em específico, não havia cheiro de pólvora. Era só o cheiro de carne, o cheiro de carne crua e ensopada, como se fica a carne quando é comprada. É o mesmo cheiro, cheiro de comida, cheiro de gosto, o cheiro que se consegue sentir com a língua. A cabeça caída na terra de um campo fechado, com um delicioso cheiro de carne crua, completamente deformada, com a massa facial na periferia do rosto, o centro da obra destroçado.
Jogou a marreta na bolsa. O corpo pequeno, anormalmente pequeno, estava em relativo bom estado: as mãos caídas ao lado, as pernas em uma pose engraçada, como se tivesse tropeçado. Não tinha rosto. O plástico em que estava deitado era transparente, o que facilitava a percepção de possíveis gotas fora da área de trabalho. Mas era grande; com certeza não falhou, assim como nunca falhara. Enrolou o corpo no plástico e jogou-o na vala. Pôs cal em cima, e terra. As roupas que acompanhavam sua obra eram sugestivas — se o achassem, algum dia, achariam que se tratava de uma prostituta. Teve cuidado de raspar a ponta de cada dedo para dificultar mais a identificação. No entanto, sabia, com um pequeno nível de arrogância, que era pura precaução.
Não achariam o corpo. Nunca acharam.
Os casos notórios — Jack, Gilles de Rais, John Adams — eram sensacionalismo da mídia. Sabia isso pelo motivo mais óbvio: era necessário transmitir segurança. Noticiar um caso perdido? Burrice. Não valia a pena, nem sequer para os jornais, divulgar um assassino em série cuja identificação é praticamente impossível. Isso causaria caos público, histeria. Casos assim normalmente eram vazados. O jeito é bem mais simples: coloque um boi de piranha. O público adora um bom sangue, uma história com pessoas estripadas, principalmente quando se sabe que o responsável está sendo punido. Isso faz o público, o grande idiota, achar que agora o perigo se foi.
Os melhores nunca são descobertos. Percebeu isso há pouco tempo, já na décima terceira vítima.
Enterrou a moça. Ela tinha um cheiro floral que bloqueava seu potencial cheiro de natureza. Achou que ela tinha dito que tinha vinte anos, mas ela provavelmente tinha mentido. Queria sexo. O seu sexo, e ele ofereceu isso a ela — sem, certamente, deixar vestígios. Seu sexo era calmo, no começo, e tomava forma com o tempo, acordando. Comia, comia, e comia até se saciar. E então, jogava fora.
Não era essa sua intenção. Não a comeu porque queria comer — isso era um bônus. A ideia de que, quando se quer saciar sua vontade, basta escolher alguém na rua, é falsa, tão falsa que o incomodava. Isso envolvia trabalho, pesquisa. Escolheu aquela moça a dedo, como se escolhe o melhor prato de um cardápio, com nenhum outro interesse a não ser em sua cabeça estourada.
E comeu-a, então, enterrou-a. Acabou sua história ali. Não se lembrava do nome dela, e mesmo que se lembrasse, havia grandes chances de ser um nome falso. Isso não interessava mais, pois sua história já havia acabado. Ela não podia sequer ser vista.
Guardou suas coisas e foi embora.
Gostava do cheiro de carne, e isso era a melhor parte de fazer aquilo. Particularmente, era o que o fazia repetir. O cheiro, que é inexistente na história falada e impossível de ser sentido em uma folha de papel.
Parte I
Era aquoso? Sim, definitivamente. Nem um pouco acinzentado. Só água. Bem, talvez um pouco acinzentado. Estava escuro e não tinha acendido a luz. Mas sabia que era só água.
Xingou baixo. Costumava passar mal toda noite, desde que se mudou. Fazia algum esforço para não vomitar. Na verdade, costumava ser apenas uma náusea, o que deixava com uma incômoda felicidade. A única noite que teve que correr para o banheiro foi quando todos tinham ido embora.
Ajoelhada no vaso sanitário minúsculo do lavabo do primeiro andar, tentou imaginar como era a figura de quem a via de fora. Uma mulher feita, encolhida, com o rosto fino e delicado enfiado com o nariz a poucos centímetros da água mais imunda da casa. Só essa pose já a deixava mais enjoada. Recuou o corpo e se sentou no chão, ao lado da louça. Respirou fundo, olhando para baixo, e ficou de pé de frente para a pia. A barriga doía muito; mais do que doía há meses, tamanha a força de seus órgãos para expulsar alguns mililitros de saliva e água.
Do lado de fora, pelo basculante do banheiro, não ouvia nada. A casa mais próxima ficava a cerca de meio quilômetro dali. O que mais a desesperava nesse cenário era como poderia ter a ouvido do andar de cima, embrulhada com a boca na privada, vomitando saliva. Uma cena tão nojenta que a envergonhava. Lavou a boca na pia, aproveitando para beber um pouco de água. Saiu do banheiro com cuidado e em silêncio.
As luzes do solar estavam, em sua maioria, apagadas. Apenas uma ou outra lâmpada iluminava pontos estratégicos, como os cantos da sala e as extremidades do corredor. A maioria dos móveis já estavam em seus lugares, com as poucas caixas empilhadas, o que ainda a incomodava um pouco, não o suficiente para perturbá-la durante o dia. ajeitou o roupão e os cabelos enquanto ia até a cozinha para pegar algo para comer.
Sabia que estava na sala imediatamente acima, tomando um chá enquanto lia. A sala de estar do solar tinha uma grande janela, mas procuravam mantê-la fechada na maior parte do tempo. Mesmo que não tivessem vizinhos, a ideia de pessoas andando na rua e olhando para o interior da casa não era agradável. Era uma cidade muito pequena, e conhecia esse tipo de gente: boateiros, carentes de algo para falar. Bem, talvez fosse uma conclusão precipitada; viveu na capital do estado durante boa parte de sua vida. Mas ela sabia que a maioria das pessoas desses lugares simplesmente viviam entediadas, trancadas em suas casas e olhando pelas janelas.
Tinham recebido visitas de amigos de naquele dia, poucas semanas depois da mudança. Ouviu elogios por todo o dia, em relação à decoração e às cores de cada cômodo: a cozinha era toda verde-clara; a sala de estar tinha tons quentes, a sala de jantar ia para tons de azul. Toda a casa seguia esse padrão, com exceção do escritório de , restrito aos convidados. Quer dizer, o piano ficava na sala de estar, mas era o único instrumento isolado.
A verdade era que não se importava muito com o piano, mas evitava expor isso. dissera certa vez que isso soava arrogante. Preferia os instrumentos que estavam no andar de cima, principalmente seu violino, e nunca fizera questão de esconder isso. Como era de praxe em reuniões de amigos, entretanto, pedia para tocar algo no piano. Ela não se opunha. Era especialmente fácil dedicar cinco minutos de seu dia para tocar alguma música pop, ou uma polca que conseguisse se lembrar, quando tinha que dedicar seus treinos a algo mais refinado e complexo, que algumas pessoas resumiriam como “clássico”. Pessoas que não estudam música sempre gostam de polca no piano. Arriscava até mesmo uma versão no piano de Strauss, nessas ocasiões. Não é como se ela fosse anunciar que tocaria Strauss: tocaria e eles nem sequer perceberiam, já que continuariam conversando e bebendo seus drinques.
O piano tinha sido deixado no primeiro andar por um acidente na mudança, mas preferiram deixar assim. Era mais fácil fazer suas pequenas apresentações com ele lá do que levar o violino para baixo. E, como bem lembrava, o violino não costumava soar bem enquanto instrumento isolado. Apenas em harmonia com outros instrumentos conseguia reproduzir algo que não soasse como um rato sendo atacado.
E assim que as visitas se despediram, limpou a piscina e o quintal e arrumou o interior da casa. Notou que ele ficava mais à vontade do lado de fora, no jardim. Pedira, antes da mudança, para pavimentarem parte da grama e colocarem uma mesa para piquenique. Depois de sua limpeza, escolheu um livro para ler ali, com os pés no concreto cinza e entre roseiras. o observou por alguns instantes, do lado de dentro, pelo vidro. acariciou uma das rosas enquanto atravessou o jardim para chegar até a mesa. Era uma imagem minimamente encantadora: um homem alto, com cabelos , branco como cera e ombros largos, vestindo um short de piscina vermelho e óculos escuros quadrados.
E, pouco antes de dormir, foi correndo para o banheiro e vomitou pela primeira vez desde que chegaram.
Estava guardando esse momento. Subiu as escadas e se ajoelhou por dois minutos na frente de uma cruz na parede, pedindo a Deus que aquele vômito só tivesse saliva. Dormiu pesadamente, mas muito mal. Sua barriga ainda doía bem na cicatriz.
Quando acordou, já tinha saído para trabalhar. Ela tinha dito a ele que deveriam ter deixado o churrasco para outro dia, não no domingo. insistira: precisavam confraternizar antes de seu período de férias acabar. Ela, principalmente, já que ele conhecia boa parte de seus colegas de trabalho pela transferência, mas não conhecia ninguém na cidade. E ela ainda tinha o agravante de trabalhar em casa, e ficar fadada ao encasulamento naquela construção no mínimo gargular.
Não entendia bem a repulsa de pelo solar. Gostava do tom poético do exterior da casa ser tão feio, bruto, como se fosse um pedregulho a ser esculpido. Do lado de dentro, era a escultura pronta.
Suspirou enquanto mordia uma maçã, apoiada na bancada da cozinha, esperando a água ferver no fogão. Pela cozinha, podia olhar tanto a sala de jantar, quanto a piscina do lado de fora. Deram sorte de terem achado um lugar como aquele. Na verdade, procurou uma casa com cuidado o suficiente para filtrar todas as opções. não lidava bem com esse tipo de coisa: seus números não se aplicavam a arquitetura. teve um prazer natural de escolher a casa sozinha.
Assim que terminou de tomar o café da manhã, conferiu as horas. Tinha tempo de ir à igreja, mas deveria ser rápida. Precisaria voltar logo para preparar o almoço.
Mas antes, um pouco de Mozart.
Subiu de novo para o escritório. Ao contrário do de , que possuía uma única janela (que permanecia fechada durante todo o dia, naturalmente), o de tinha toda uma parede feita de vidro. Era quase como uma vitrine para seus bebês. Em suas prateleiras, os livros e partituras, e em uma parede, todos os instrumentos enfileirados. Trouxe o violino, seu preferido, para o meio da sala e o empunhou entre a bochecha esquerda e o ombro. Seus cabelos estavam presos, o natural de toda manhã, mas escapavam por seus ombros e nuca, lhe dando cócegas que mais pareciam carícias. Ergueu o arco e começou a arranhar a crina nas cordas.
O som estridente que tanto reclamava ressoou pelo cômodo, mas voltava para ela. Tocava com pressa, os olhos bem abertos, lendo cada movimento. Talvez fosse justamente o que fazia do violino seu instrumento preferido, sua característica de produzir um som tão alto em seu tamanho tão pequeno. Tocar Mozart em um violino não era algo especialmente difícil, mas, de fato, diminuía a potência da música. A sonata em questão era toda no piano, o que exigia certo esforço de para acompanhá-la no violino. O rearranjo era especialmente complicado, mas a ideia era gravar várias versões da canção, cada uma com um instrumento dedicado a uma sequência específica.
Gostava de tocar de pé. O centro de seu escritório tinha um tapete confortável, acima do qual se posicionava descalça e usando seu vestido verde com bolinhas brancas. Olhava para a posição de seus dedos, correndo e tremendo ao fixar-se a uma nota em específico, sem jamais deixarem de ser firmes. Nenhuma nota escorregava, eram todas claras e ondulares. Os músculos de seu rosto estavam rígidos em uma careta que poderia soar repulsiva.
acreditava que as pessoas que tocavam de olhos fechados o faziam por charme, o que ela desprezava um pouco. Música não foi feita para ser charmosa ou causar uma impressão sobre quem a performa. Não é uma apresentação de teatro, e era isso que a música tinha virado: uma grande peça, onde a canção em si, as notas e a harmonia já não eram tão importantes quanto as vozes genéricas que as seguiam.
Musicistas agora acompanhavam os cantores, algo que seria considerado um absurdo algumas gerações antes.
O muro do solar não era alto. Do lado de dentro, de seu escritório, poderia ver quem estivesse se aproximando da casa, quem atravessava a rua com seus cachorros e dirigia seus carros de modelos ultrapassados. Quando terminou de gravar o movimento no violino, o deixou em seu lugar e foi até o violoncelo para levá-lo para o centro da sala.
No caminho, observou a rua do lado de fora. Podia ver um borrão colorido do outro lado da calçada, caminhando com a calma de quem tem o mundo trabalhando para si. Era rica, isso não tinha como contestar. Jovem, mais ou menos da idade de . E com um bebê no carrinho! Nem sequer devia ter um emprego. Só perambulava o dia inteiro com aquele bebê gorducho no carrinho. Provavelmente, não se dava o trabalho de alimentá-lo com algo menos calórico que leite processado. Conservava um corpo modelado por um vestido amarelo, sem qualquer cicatriz de um parto doloroso.
Enquanto isso, apertava a própria cicatriz. Sentia ela doer, como se fosse um telefone chamando por sua atenção. Seus olhos estavam bem abertos, tal como ficavam ao tocar, mas apontados para aquela mulher do outro lado da rua. Lá fora, invadia a visão do escritório com seu saltitar de sapatos pretos de salto baixo.
Volte, . Seu violoncelo está te esperando.
Só um instante. Ela está lá fora, ela está passando pela frente do solar porque ela quer que todos vejam seu lindo bebê dormindo amassado entre roupas e mantas bordadas à mão. Ela quer que todos vejam como ela é mãe, ela é uma mulher de verdade, ela tinha um ovo dentro de seu corpo com um ser humano novo e feito por ela dentro de si, e entregou-o ao mundo em um ato de completa solidariedade. E lá está ela, desfilando com seu vestido amarelo e seu sorriso de orelha a orelha, na frente do solar como se isso fosse algo inocente.
Ah, droga. ouviu o som rompente e já sabia o que tinha acontecido. Uma das cordas do violoncelo se rompeu quando tentou apertar as cravelhas. Sem problemas, já estavam antigas e precisavam ser trocadas. Não tinha prometido a si mesma que as trocaria assim que terminasse a mudança?
Conferiu o relógio em cima da porta. Não teria tempo de trocar a corda e afiná-lo, para só então tocar o que precisava para continuar o arranjo. Teria que deixá-lo aleijado em seu canto.
A igreja estava com poucos fiéis, talvez uma dúzia ou um pouco mais. Chegou a tempo de fazer todas suas orações. Pediu ao Pai que os próximos meses seguissem como aquele mês havia seguido. Então voltou para casa e preparou um pouco de massa para o almoço com .
A refeição seguiu como normalmente seguia. comeu rápido, terminou antes dela, e perguntou como tinha sido a manhã. disse que tocou Mozart no violino. Ele perguntou por que tocou Mozart de novo. Ela disse que estava cansada de repetir as mesmas canções nos mesmos instrumentos, que precisava praticar arranjos diferentes. perguntou por que ela não tentou compor algo para apresentar para a companhia. Ela disse que não conseguiu compor nada desde que chegou. Então pegou um doce na geladeira para a sobremesa, enquanto foi até o piano. Começou a tocar uma peça de Chopin que gostava de ouvir depois de almoçar. Sentou-se ao piano, na sala, e começou a tocar as notas isoladas.
— Querida, por favor! — gritou, do lado de fora da casa, sentado à mesa no quintal. — Não faça isso enquanto estou trabalhando. Consigo ouvir você daqui.
— Desculpe, amor — ela gritou, em resposta. Fechou o piano e voltou para cima, para o violoncelo.
Fazer o trecho do violoncelo na música de Mozart era uma tarefa simples, mesmo que requeresse atenção. Então, mesmo que olhasse para o movimento de seus dedos, poderia transferir sua atenção a qualquer elemento externo. Tinha o grande violoncelo entre suas pernas, ambas abertas, a madeira a poucos centímetros de sua virilha. Tocava olhando para si, para seus dedos e para a velocidade que os movia, para a precisão milimétrica com que atendia às demandas das próximas notas. Não acreditava que o ato de tocar uma canção como aquela fosse mecânico; esse adjetivo era próprio de músicas populares. só tinha a consciência de que ela era alheia aos instrumentos e à partitura. Não tinha nenhum poder por cima destes, apenas obedecia a sua ordem natural de seguir. Há uma ilusão de que a música é uma arte que sempre trará novidades, que toda nota será diferente da anterior. Basta estudar música por um mês para saber que isso é o primeiro mito da música: toda nota prevê a nota posterior.
Não há nada de novo na música, e nunca houve, e por isso não precisava pensar ao tocar Mozart. Algo acima dela mandava que ela seguisse daquela forma, e ela seguia. Mas gostava de prestar atenção nos seus dedos porque aquele era seu toque especial na música. Ao ser mais firme ou menos firme ao pressionar a corda em certa posição, podia dar a impressão que queria. Acabava que o modo com que tocava naquele dia era um resumo do que pensava, sem que isso fosse proposital.
Por isso gostava tanto de Mozart.
estava certo. Precisava tomar um dia para tentar compor algo novo. A última vez que conseguiu compor algo tinha sido três meses antes de se mudar. Desde que houve a expulsão. Precisava criar uma boa atmosfera para conseguir compor algo. Antes de se mudar, usava seu piano para compor praticamente todas suas canções e trilhas. Quando já tinha voltado para o trabalho, desceu as escadas olhou para o piano no canto da sala de estar.
Andou lentamente até o piano. Seus pés tentavam não fazer qualquer som, o que causava uma pressão em seus ouvidos. alcançou o piano e se sentou de frente para as teclas. Deitou os dedos por cima das teclas e tentou deixar algo sair de si. Naturalmente, o que começou a tocar não era original: era o primeiro movimento de uma canção famosa de Chopin. Olhava para seus dedos, com os lábios comprimidos, e para frente, para a parede. Era laranja. Era uma cor bonita, mas não combinava com aquele piano preto. Olhou para o teto, branco. E de novo para as mãos. Ainda tocava Chopin.
Empurrou o banco para trás e ficou de pé. Foi até a cozinha e bebeu um copo d’água. Sabia que o piano não devia ter ficado no andar de baixo, no canto de uma sala, de castigo, enclausurado. Subiu novamente para o escritório e voltou a gravar seu violino exatamente da mesma forma que naquela mesma manhã fizera. Na hora que voltou, já tinha terminado o rearranjo.
perguntou-a o que tinha feito à tarde. respondeu que terminou a canção que estava estudando, mesmo que já tivesse estudado aquela sonata muito antes, e que tinha gravado uma versão com quarteto de cordas para mandar para uma companhia musical da região. Poderia dar aulas de piano, como tanto gostava, retrucou . Lidar com crianças.
tinha posto a carne no forno quando ouviram alguém buzinar do lado de fora da casa. franziu o cenho e, ainda com as roupas de trabalho, se levantou para conferir quem era. Saiu da casa com a porta encostada atrás de si e foi até o portão do muro. ficou na porta, do lado de dentro, observando o marido. Vestia um vestido vermelho-claro e tinha os cabelos soltos.
Havia um carro verde-claro parado com a frente embicada no portão de sua propriedade. apertou os olhos para tentar enxergar o motorista, mas a falta de luz atrapalhava qualquer reconhecimento. Só conseguia ver a luz forte dos faróis incidindo contra o corpo largo de , que caminhava lento até o portão. Atravessou a portinhola lateral e inclinou o corpo contra o vidro do motorista. Por um instante, assistiu um terrível acidente. Mas sua visão foi quebrada quando viu dar uma risada e apontar para a porta de casa, do outro lado do portão, para sua esposa. Ela recuou e pensou em fechar a porta, mas não o fez. Apenas assistiu abrir o portão para o carro, que entrou com demora na propriedade.
tinha o cenho franzido para analisar a figura que saía daquele modelo moderno de carro. Tratava-se de um homem um pouco maior que , vestido com calças pretas e camisa social branca. Não usava gravata, mas tinha um paletó no braço, apoiado. Tinha o rosto quadrado, ao contrário de , que era oval, e olhos . Estes, sim, idênticos aos de na cor. Compartilhavam também o mesmo formato do sorriso. No entanto, aquele homem tinha lábios um pouco mais grossos. Já saiu do carro sorrindo, acompanhando em uma risada que não entendia aonde começou. Ele ergueu os olhos para ela e parou de rir. Tinham os cantos apertados, as íris refletindo a luz do interior da casa. Sondou-a dos pés à cabeça, parando em seus olhos. Seus lábios pareciam segurar um sorriso.
— , esse é meu irmão — falou, olhando para ela e com uma das mãos nas costas do homem. — , minha esposa .
olhava novamente para o chão, os lábios arqueados em um sorriso preso, quando ergueu os olhos para ela. Tinha visto rápido demais: seus olhos não se assemelhavam nem um pouco aos de . Eram fundos, como se ele passasse noites acordado.
— Temo que essa não tenha sido a melhor forma de conhecer seu cunhado — ele disse, estendendo a mão livre do paletó. — Devo ter assustado vocês.
Seus cabelos estavam penteados para trás, mas fugiam ao gel. A voz era baixa, mansa, não muito grossa. Sim, decerto era mais fina que a de , e seu corpo era bem mais esguio.
Ele esperava algo dela. Ah, sim, o aperto de mãos.
estendeu sua mão e apertou a de . A outra mão escondia-se por dentro do bolso do roupão. Tentou sorrir ao cumprimentá-lo, mas não tinha certeza se soara franca.
— Não foi nada. Ainda não jantamos.
— Junte-se a nós no jantar, — chamou , um sorriso largo nos lábios, empurrando-os para o interior do solar. — preparou um bife ao molho madeira.
Fechou a porta atrás de si. A iluminação da casa era, como na noite anterior, limitada a poucos pontos de luz nos cantos de cada cômodo. foi a passos largos até a cozinha e se abaixou para conferir a carne no forno. O molho no fogo estava quente, mas os bifes ainda não estavam prontos. A mesa já estava posta, tinha sido colocada pela própria pouco antes da buzina.
— Mais alguns minutos — ela anunciou, com um pequeno sorriso, enquanto olhava para seu marido. — Ainda não está no ponto.
No caminho até a cozinha, tinha deixado seus olhos repousarem no piano por algum tempo, mas não fez qualquer comentário. Os irmãos andaram vagarosamente até a cozinha, de frente para a sala de jantar.
— Está servido de vinho tinto? — perguntou , abaixando-se para abrir o armário.
— Só um pouco. Meia taça me servirá.
— Pegue uma taça para ele, .
estava apoiada na bancada com as mãos abaixadas e precisou girar o corpo para pegar as taças.
— Também gostaria de um pouco, já que vai abrir a garrafa — ela avisou. , com a garrafa na mão, fez uma careta de desdenho, que logo transformou-se no mesmo rosto sorridente de quando reconheceu o irmão no carro. Ela mantinha o rosto em um pequeno sorriso, seus olhos mais abertos para acompanhar as pupilas dilatadas. Estendeu uma taça para , que segurou-a pela haste e murmurou um agradecimento. serviu-os, mas não bebeu. imaginou que ele estivesse esperando algum brinde, então sinalizou que não haveria nenhum ao beber um gole do vinho enquanto olhava para . Conforme imaginou, bebericou o vinho logo depois dela.
— Sente-se, irmão. Vamos colocar mais um prato — lembrou , apontando para o armário. Ela assentiu e murmurou “ah, sim”.
— Estou bem, se não for atrapalhá-los. Sentarei quando vocês também forem.
— Você é o convidado, — retrucou, rindo. — Vamos preparar o ambiente. vai colocar alguma música, vamos colocar a mesa. Fique à vontade.
pareceu querer conferir a afirmação de , pois olhou para de lado.
— Só porque ela — apontou para com a cabeça — disse que não vai demorar. Com licença.
Balançou a cabeça em afirmativo, com um sorriso. Deixou a cozinha e puxou uma cadeira remanescente com a mão, se sentando em seguida. Deixou a taça à sua frente e apoiou ambos os cotovelos na mesa, com as mãos na frente da boca. Desligou-se por um momento que tirou para analisar o cômodo.
De costas para a mesa, esticou o corpo para pegar mais um prato. deu uma cotovelada em seu braço e sussurrou:
— Ele não sabe.
Ela abaixou o olhar. pegou o prato de suas mãos e o levou até a mesa. ouviu-o anunciar:
— Aqui está.
Enquanto o marido colocava a mesa, foi até o aparelho de som e escolheu um disco. O bom de manter os discos de perto do aparelho era a certeza de que pegaria álbuns de músicas populares, como Berry e Presley. Escolheu um dos álbuns deste e o colocou para reproduzir. O som ficava na sala de estar, mas ecoava por todo o primeiro andar e quintal. Voltou para a cozinha.
parecia segurar uma risada novamente, o que deixou mais desconfortável e, agora, com um pouco de raiva. Pareciam compartilhar de alguma brincadeira que ela desconhecia, ou que fosse direcionada a ela própria. Tentou ignorar os pensamentos com mais um gole do vinho. Foi para a pia e lavou as mãos.
— Então... — começou , com uma pausa. — O que está fazendo na região, ?
Ele deu de ombros.
— Estava dirigindo por perto. A estrada para a costa passa pela cidade...
— O que você faz?
Ambos olharam para , que completou antes de beber mais um gole do vinho:
— Se não se importa com a pergunta.
— Nem um pouco — começou, a olhando com os olhos um pouco apertados, como que tentando enxergá-la na meia luz. — Sou vendedor. Cruzei o meio oeste mais vezes que você pode imaginar.
— Um avião não seria uma opção melhor? — questionou , com o cenho franzido e a cabeça inclinada para a direita.
— tem medo de altura — cortou a tentativa de responder e continuou com uma risada. — Não confia na maior invenção da humanidade.
olhou para e, em seguida, para . Sustentaram seus olhares por alguns segundos. Tinha certeza de que os olhos de carregavam um deboche por nem sequer ter precisado abrir a boca para derrubá-la. Ele ter sorrido ao concordar com o irmão só a deixou mais incomodada.
— Sim. A companhia até já sugeriu que eu usasse aviões, mas ainda vejo aquilo como uma caixa de metal. Não confio em algo que me aprisiona por horas, com a justificativa de que será melhor para mim.
o observava de lado. sabia que ela o analisava, mas preferiu prestar atenção em outros detalhes do ambiente, como o jardim do outro lado do vidro. As rosas de , perfeitas, desabrochadas, e a piscina limpa com pequenas ondas. Suas mãos eram grandes e seus ombros eram largos, mesmo não tendo o físico de .
Abaixou e conferiu a carne mais uma vez. Apagou o forno e vestiu a luva para tirar a travessa.
— Cuidado, está quente!
Deixou a travessa com os bifes no centro da mesa, entre uma tigela com o molho e uma tigela com macarrão na manteiga. Quando chegou à mesa, retraiu os cotovelos e agradeceu em silêncio, apenas com um sorriso pequeno. já tinha sentado-se à mesa ao lado de . sentou-se em frente ao seu marido.
— Desculpe ter vindo sem avisar — murmurou , enquanto colocava o guardanapo no colo. — Estava com pressa.
— Como você tinha nosso endereço, ? — perguntou, sem sequer desviar o olhar da comida enquanto servia-se. — Pegou com a nossa mãe?
assentiu com a cabeça, os olhos apontados para baixo. notou certa hesitação, mas sabia que tinha sido apenas impressão. Sua declaração sobre a “caixa de metal” ainda parecia pertinente.
— Sim. Eu estava passando pela região e lembrei que você tinha se transferido para cá.
— Pegue um bife, — falou , apontando para a travessa.
Nesse momento, ergueu os olhos fundos e arqueou o canto do lábio. Durou apenas um segundo. Com o pegador, se serviu de um bife grosso, com molho escorrendo por suas laterais e tamanho suficiente para alimentar duas pessoas famintas. Colocou o bife no centro do prato, junto a um pouco de macarrão que também estava em cima da mesa. soube que o macarrão era para efeitos puramente estéticos. O prato de era organizado, com o macarrão tomando cerca de um quarto do volume, o bife tomando lugar do resto. O molho invadia o espaço da massa com lentidão, quase obsceno. ergueu os olhos para ela por um instante, em um dúbio de ratificação e presunção.
não conseguia desviar seus olhos do prato de . Ele, por sua vez, parecia estar no ponto cego perfeito para exibir para ela sua pequena obra sem que notasse. Havia um pequeno espetáculo acontecendo ali, bem baixo.
Está vendo isso? Eu quero que você assista.
— Por que estava na região, ? — perguntou novamente, sua atenção infantil totalmente voltada para o prato de comida. olhou-o de lado, com um pouco de desdenho. Não admirava a comida, não apreciava o molho que preparara com tanto cuidado. Apenas enfiava tudo na boca, nem fome devia estar sentindo. Quem tem fome sabe tomar o tempo de saborear o que está comendo, a não ser, naturalmente, que a comida esteja ruim. Não era o caso. não precisava comer para saber, de olho, que era deliciosa. As curvas na carne, suas nervuras camufladas pela camada que a cobria. Parecia lisa, mas o mais delicioso seria notar, em sua própria boca, as falhas na textura. E as falhas, justamente a parte mais saborosa, só eram perceptíveis no contato com a língua.
Eu quero que você me assista.
Salivava apenas com a imagem. Pegou a faca e a serrou repetidas vezes por cima da peça, o molho espalhando-se e escorrendo para o spaghetti nu ao lado. As luzes amarelas pareciam tornar a cena ainda mais lenta. A carne, de início, parecia querer resistir. Finalmente, a faca já havia a massageado tanto que cedia, se dividindo com calma, caindo na louça como se fosse flutuar.
temeu que sua imagem estivesse ridícula, assistindo cortar um pedaço do bife. Retomou seu jantar, desviando o olhar por um momento, mas não resistiu. tinha a esperado voltar a olhar. Tinha pausado sua performance para que pudesse assisti-lo, enquanto , aquela besta pré-histórica, comia como se o boi fosse fugir do prato.
Espetou uma tira da carne com o garfo. Tratava-se apenas do instrumento que facilitava a aproximação de sua boca com a carne. Não, na verdade não: era mais uma peça da cena, não um instrumento, mas uma peça fundamental para compor a imagem. segurava o garfo como uma arma que soubesse empunhar desde jovem. Não era letal, não tinha a pose de ataque, mas de um objeto que manuseava sem consciência e era parte de sua figura naquele momento crucial. Levou o filete de carne à boca, o molho escorrendo pelo canto dos lábios em uma atitude indecente, desrespeitosa. , entretanto, não protestou: levou o guardanapo à boca e levou o molho de volta aos lábios, e quando abaixou-o, a língua já limpou-o da insolência. Seus lábios grossos estavam avermelhados pela temperatura da carne, mas seus olhos permaneciam inexpressivos, apontados para o prato.
Comia de boca fechada, mas não conseguiu evitar que sua testa se franzisse involuntariamente ao assistir tamanha ferocidade das mordidas ao tentar rasgar a carne. O bife era grosso o suficiente para que devesse parti-lo mais uma vez. Não o fez, então sua mandíbula precisava ter trabalho dobrado.
Apertava com força a carne, pois era tarde e ela queria fugir. Tinha notado onde estava e quis fugir. Mordia com a velocidade que tinha até então: pouca, quase nenhuma, mas uma força brusca, repentina. Movia a mandíbula um pouco para os lados em cada mordida, nada que fosse sujar a simetria da imagem. Ao contrário de , não tinha pressa, mas era tão animalesco quanto o irmão. A comida de não tinha motivos para fugir.
Não comia para suprir sua fome, até porque não tinha. Todo o ambiente já o nutria. Os movimentos flutuantes, o silêncio, a avidez. A violência era parte de sua apresentação. Era cru igual a e a , com exceção de que considerava seus movimentos uma coreografia. Era natural e não era ao mesmo tempo.
se perguntou se comia daquela mesma forma quando estava sozinho. Teve seus devaneios interrompidos por , que tossiu ao engolir uma fatia do bife. Notou que já devia ter ficado parada por pelo menos trinta segundos, algo especialmente assustador.
desviou o olhar para o próprio irmão e respondeu depois de engolir:
— Precisarei estar na costa em alguns dias. Estava indo de carro, a estrada é aqui perto. Resolvi passar para ver como estão.
tentou lembrar-se de em seu casamento e teve certeza de que ele não estava presente. Se estivesse, ela sabia, não esqueceria seu rosto tão facilmente. Mesmo tendo traços menos harmônicos que , suas expressões captavam a atenção de qualquer interlocutor que ele estivesse interessado em atrair. Lembraria de um homem como esse em seu casamento. Tentou lembrar-se, então, de uma menção de sobre a ausência de seu irmão mais novo. Pelo que se lembrava, não tinha irmãos. Talvez tivesse se enganado. De fato, nascera em um estado no meio oeste, e se conheceram em um estado perto da fronteira. Mal via sua família, e talvez tivesse ficado incomodado em mencionar um irmão pelo qual tinha muito carinho, mas pouco contato. A felicidade infantil ao ver poderia ser a prova de sua suposição.
Sim, soava claro, mas ainda não era algo além de um estrangeiro.
já estava na metade de seu prato quando fez uma pausa para limpar os lábios imundos e beber um gole do vinho. Deu um suspiro baixo e comentou:
— Poderíamos ter feito um jantar melhor. Tem onde se hospedar?
desmanchou o sorriso. Hesitou e sua voz parecia prestes a vacilar. prosseguiu:
— A casa é grande. Acabamos de nos mudar — sorriu, olhando para sua esposa. — E somos muito pequenos para um lugar desses.
fez uma careta de desconfiança. Todo seu estado de alerta foi substituído por uma imediata irritação. tentou sorrir novamente, desta vez ciente de que atuava como um mediador. Ainda assim, ela notou que havia certa malícia em sua voz, como se procurasse atiçar .
— Não acho que seja necessário, . Posso procurar um quarto na cidade.
— Deixe disso. Eu não negaria um quarto ao meu irmão caçula. Essa casa tem tantos quartos sobrando que chegamos a fazer dois escritórios.
sabia que aquilo não era verdade, mas preferiu não discutir com o marido. oscilava seu olhar entre os dois: , com um sorriso convidativo e olhos brilhando, e , o queixo apoiado em uma das mãos e as sobrancelhas levemente erguidas com um sorriso pequeno, como se estivesse gostando de ver seu marido tão feliz.
, por fim, olhou para enquanto reproduzia o mesmo sorriso que ele.
— Não posso negar um convite do meu irmão mais velho. Desde que isso não os atrapalhe.
— Relaxe — respondeu, com o rosto de descrença. — Eu trabalho fora o dia todo. Sua presença só nos agregará. Vai ser uma boa companhia para .
Ela ergueu as sobrancelhas em resposta, junto a um sorriso amarelo e a atenção na comida, que a essa altura estava fria. a observava com o rosto apontado para baixo. Sabia que notava sua atenção, mas soube que ela preferiu deixar-se observar. Isso foi ainda mais tentador ao seu olhar, focado nos movimentos calmos e coreografados de . Parecia seguir um ritmo em sua cabeça, as mãos em uma dança e os talheres como objetos de cena. Ela olhava para as próprias mãos como se quisesse decorar os próprios movimentos, sem que entendesse o porquê.
Notou que seus próprios lábios não estavam fechados e ansiavam por comida. Levou mais um pedaço de carne à boca, dessa vez comendo rapidamente. Não havia motivo para se demorar.
— Em que você trabalha, ? — perguntou, olhando para ela.
levantou os olhos. Parecia cansada daquela conversa, mas deixou-se responder:
— Sou musicista.
— Explicado o piano. nunca teve qualquer talento para música.
deu uma risada que soou debochada. Virou os olhos. acompanhou-o ao rir, mas, ao olhar para , ela permanecia séria, o encarando como se esperasse seu próximo movimento. Tinha dado um pequeno sorriso educado, nada além disso. Olhou para os talheres em suas mãos, que agora pareciam armados.
— toca violino, violoncelo, piano e mais algumas coisas. Terá bastante tempo de ouvi-la tocar.
Novamente, sustentaram um olhar. Ela parecia assustada, alerta, mas tentava soar firme, aceitando a proposta que lhe foi jogada. sorriu, se servindo de mais um pedaço de carne. Notou que ela liberava um perfume cítrico. Curioso, pois era seu cheiro artificial preferido.
Fechou a porta do quarto com um som surdo. Foi para o banheiro da suíte com seus pijamas e sem falar nada, mas pôde ouvir rezar enquanto estava no chuveiro. Quando saiu do banho, já estava deitada na cama, lendo um livro com a luz do abajur. Notou que, de perfil, ela não era tão bonita. Quando estava prestando atenção em algo, seu rosto ficava insosso e desinteressante. Preferia sua esposa em situações sociais, em que toda sua atenção estava na tentativa de permanecer em conversas ou parecer atraente. Por mais que não gostasse da ideia de sua esposa estar, talvez, atraindo olhares mal-intencionados de outros homens, gostava de vê-la no ápice de sua voluptuosidade. E não poderia negar que isso o excitava um pouco.
De repente, fechou o livro e o colocou no criado-mudo. Olhou para ele, o pijama marcando seu corpo pequeno e excessivamente magro.
— Você podia ter convidado seu irmão depois de falar comigo.
bufou. Sabia que aquela conversa teria que acontecer, cedo ou tarde.
— Eu sei, . Mas não vejo há anos. Desde que comecei a trabalhar, ele vivia viajando. Não queria que houvesse a chance de ele ir embora depois de um jantar curto como aquele.
Ela comprimiu os lábios, desapontada.
— Você não fica na casa. Eu passo o dia aqui, sozinha. E não conheço seu irmão.
— Ele será uma boa companhia. gosta de música, assim como você.
— Quanto tempo ele vai passar aqui?
— Ele disse que seriam só quatro noites. Você nem notará que ele está aqui se ficar no escritório o dia inteiro.
Falou a última frase com um pouco de irritação. Puxou os lençóis e se deitou.
— Irei para a missa amanhã de manhã. Na volta, farei o almoço para nós três.
— Ótimo. Temos carnes o suficiente para todos.
suspirou e se ajeitou por debaixo das cobertas. olhou-a de lado e se girou para apoiar o cotovelo na cama.
— Você andou tomando seus remédios? — ele perguntou, baixo.
— Não.
sorriu, acariciando seu rosto.
— Obrigada, .
Inclinou o rosto para beijá-la. Lembrava um pouco Marilyn Monroe, pelo menos na sua perspectiva. não era diretamente semelhante à atriz, com exceção de seu corpo. Os cabelos de eram , com leves cachos nas pontas. Tinha o rosto magro e o nariz fino, e mesmo tendo curvas por todo seu corpo, a magreza sugeria uma fragilidade que pareceria querer negar. Mas sabia que isso tudo era imagem. Ela precisava dele tanto quanto ele imaginava que precisava, mesmo que ela não gostasse de admitir.
beijou-o em retorno, tentando subir em seu corpo. a impediu, a empurrando para o lado e ele próprio subindo em seu corpo. Tentaram não fazer barulho, mas sabia que, se quisesse, poderia ouvi-los. Não conseguia criar uma razão para pensar assim, mas deixou-a em constante estado de vigilância.
Xingou baixo. Costumava passar mal toda noite, desde que se mudou. Fazia algum esforço para não vomitar. Na verdade, costumava ser apenas uma náusea, o que deixava com uma incômoda felicidade. A única noite que teve que correr para o banheiro foi quando todos tinham ido embora.
Ajoelhada no vaso sanitário minúsculo do lavabo do primeiro andar, tentou imaginar como era a figura de quem a via de fora. Uma mulher feita, encolhida, com o rosto fino e delicado enfiado com o nariz a poucos centímetros da água mais imunda da casa. Só essa pose já a deixava mais enjoada. Recuou o corpo e se sentou no chão, ao lado da louça. Respirou fundo, olhando para baixo, e ficou de pé de frente para a pia. A barriga doía muito; mais do que doía há meses, tamanha a força de seus órgãos para expulsar alguns mililitros de saliva e água.
Do lado de fora, pelo basculante do banheiro, não ouvia nada. A casa mais próxima ficava a cerca de meio quilômetro dali. O que mais a desesperava nesse cenário era como poderia ter a ouvido do andar de cima, embrulhada com a boca na privada, vomitando saliva. Uma cena tão nojenta que a envergonhava. Lavou a boca na pia, aproveitando para beber um pouco de água. Saiu do banheiro com cuidado e em silêncio.
As luzes do solar estavam, em sua maioria, apagadas. Apenas uma ou outra lâmpada iluminava pontos estratégicos, como os cantos da sala e as extremidades do corredor. A maioria dos móveis já estavam em seus lugares, com as poucas caixas empilhadas, o que ainda a incomodava um pouco, não o suficiente para perturbá-la durante o dia. ajeitou o roupão e os cabelos enquanto ia até a cozinha para pegar algo para comer.
Sabia que estava na sala imediatamente acima, tomando um chá enquanto lia. A sala de estar do solar tinha uma grande janela, mas procuravam mantê-la fechada na maior parte do tempo. Mesmo que não tivessem vizinhos, a ideia de pessoas andando na rua e olhando para o interior da casa não era agradável. Era uma cidade muito pequena, e conhecia esse tipo de gente: boateiros, carentes de algo para falar. Bem, talvez fosse uma conclusão precipitada; viveu na capital do estado durante boa parte de sua vida. Mas ela sabia que a maioria das pessoas desses lugares simplesmente viviam entediadas, trancadas em suas casas e olhando pelas janelas.
Tinham recebido visitas de amigos de naquele dia, poucas semanas depois da mudança. Ouviu elogios por todo o dia, em relação à decoração e às cores de cada cômodo: a cozinha era toda verde-clara; a sala de estar tinha tons quentes, a sala de jantar ia para tons de azul. Toda a casa seguia esse padrão, com exceção do escritório de , restrito aos convidados. Quer dizer, o piano ficava na sala de estar, mas era o único instrumento isolado.
A verdade era que não se importava muito com o piano, mas evitava expor isso. dissera certa vez que isso soava arrogante. Preferia os instrumentos que estavam no andar de cima, principalmente seu violino, e nunca fizera questão de esconder isso. Como era de praxe em reuniões de amigos, entretanto, pedia para tocar algo no piano. Ela não se opunha. Era especialmente fácil dedicar cinco minutos de seu dia para tocar alguma música pop, ou uma polca que conseguisse se lembrar, quando tinha que dedicar seus treinos a algo mais refinado e complexo, que algumas pessoas resumiriam como “clássico”. Pessoas que não estudam música sempre gostam de polca no piano. Arriscava até mesmo uma versão no piano de Strauss, nessas ocasiões. Não é como se ela fosse anunciar que tocaria Strauss: tocaria e eles nem sequer perceberiam, já que continuariam conversando e bebendo seus drinques.
O piano tinha sido deixado no primeiro andar por um acidente na mudança, mas preferiram deixar assim. Era mais fácil fazer suas pequenas apresentações com ele lá do que levar o violino para baixo. E, como bem lembrava, o violino não costumava soar bem enquanto instrumento isolado. Apenas em harmonia com outros instrumentos conseguia reproduzir algo que não soasse como um rato sendo atacado.
E assim que as visitas se despediram, limpou a piscina e o quintal e arrumou o interior da casa. Notou que ele ficava mais à vontade do lado de fora, no jardim. Pedira, antes da mudança, para pavimentarem parte da grama e colocarem uma mesa para piquenique. Depois de sua limpeza, escolheu um livro para ler ali, com os pés no concreto cinza e entre roseiras. o observou por alguns instantes, do lado de dentro, pelo vidro. acariciou uma das rosas enquanto atravessou o jardim para chegar até a mesa. Era uma imagem minimamente encantadora: um homem alto, com cabelos , branco como cera e ombros largos, vestindo um short de piscina vermelho e óculos escuros quadrados.
E, pouco antes de dormir, foi correndo para o banheiro e vomitou pela primeira vez desde que chegaram.
Estava guardando esse momento. Subiu as escadas e se ajoelhou por dois minutos na frente de uma cruz na parede, pedindo a Deus que aquele vômito só tivesse saliva. Dormiu pesadamente, mas muito mal. Sua barriga ainda doía bem na cicatriz.
Quando acordou, já tinha saído para trabalhar. Ela tinha dito a ele que deveriam ter deixado o churrasco para outro dia, não no domingo. insistira: precisavam confraternizar antes de seu período de férias acabar. Ela, principalmente, já que ele conhecia boa parte de seus colegas de trabalho pela transferência, mas não conhecia ninguém na cidade. E ela ainda tinha o agravante de trabalhar em casa, e ficar fadada ao encasulamento naquela construção no mínimo gargular.
Não entendia bem a repulsa de pelo solar. Gostava do tom poético do exterior da casa ser tão feio, bruto, como se fosse um pedregulho a ser esculpido. Do lado de dentro, era a escultura pronta.
Suspirou enquanto mordia uma maçã, apoiada na bancada da cozinha, esperando a água ferver no fogão. Pela cozinha, podia olhar tanto a sala de jantar, quanto a piscina do lado de fora. Deram sorte de terem achado um lugar como aquele. Na verdade, procurou uma casa com cuidado o suficiente para filtrar todas as opções. não lidava bem com esse tipo de coisa: seus números não se aplicavam a arquitetura. teve um prazer natural de escolher a casa sozinha.
Assim que terminou de tomar o café da manhã, conferiu as horas. Tinha tempo de ir à igreja, mas deveria ser rápida. Precisaria voltar logo para preparar o almoço.
Mas antes, um pouco de Mozart.
Subiu de novo para o escritório. Ao contrário do de , que possuía uma única janela (que permanecia fechada durante todo o dia, naturalmente), o de tinha toda uma parede feita de vidro. Era quase como uma vitrine para seus bebês. Em suas prateleiras, os livros e partituras, e em uma parede, todos os instrumentos enfileirados. Trouxe o violino, seu preferido, para o meio da sala e o empunhou entre a bochecha esquerda e o ombro. Seus cabelos estavam presos, o natural de toda manhã, mas escapavam por seus ombros e nuca, lhe dando cócegas que mais pareciam carícias. Ergueu o arco e começou a arranhar a crina nas cordas.
O som estridente que tanto reclamava ressoou pelo cômodo, mas voltava para ela. Tocava com pressa, os olhos bem abertos, lendo cada movimento. Talvez fosse justamente o que fazia do violino seu instrumento preferido, sua característica de produzir um som tão alto em seu tamanho tão pequeno. Tocar Mozart em um violino não era algo especialmente difícil, mas, de fato, diminuía a potência da música. A sonata em questão era toda no piano, o que exigia certo esforço de para acompanhá-la no violino. O rearranjo era especialmente complicado, mas a ideia era gravar várias versões da canção, cada uma com um instrumento dedicado a uma sequência específica.
Gostava de tocar de pé. O centro de seu escritório tinha um tapete confortável, acima do qual se posicionava descalça e usando seu vestido verde com bolinhas brancas. Olhava para a posição de seus dedos, correndo e tremendo ao fixar-se a uma nota em específico, sem jamais deixarem de ser firmes. Nenhuma nota escorregava, eram todas claras e ondulares. Os músculos de seu rosto estavam rígidos em uma careta que poderia soar repulsiva.
acreditava que as pessoas que tocavam de olhos fechados o faziam por charme, o que ela desprezava um pouco. Música não foi feita para ser charmosa ou causar uma impressão sobre quem a performa. Não é uma apresentação de teatro, e era isso que a música tinha virado: uma grande peça, onde a canção em si, as notas e a harmonia já não eram tão importantes quanto as vozes genéricas que as seguiam.
Musicistas agora acompanhavam os cantores, algo que seria considerado um absurdo algumas gerações antes.
O muro do solar não era alto. Do lado de dentro, de seu escritório, poderia ver quem estivesse se aproximando da casa, quem atravessava a rua com seus cachorros e dirigia seus carros de modelos ultrapassados. Quando terminou de gravar o movimento no violino, o deixou em seu lugar e foi até o violoncelo para levá-lo para o centro da sala.
No caminho, observou a rua do lado de fora. Podia ver um borrão colorido do outro lado da calçada, caminhando com a calma de quem tem o mundo trabalhando para si. Era rica, isso não tinha como contestar. Jovem, mais ou menos da idade de . E com um bebê no carrinho! Nem sequer devia ter um emprego. Só perambulava o dia inteiro com aquele bebê gorducho no carrinho. Provavelmente, não se dava o trabalho de alimentá-lo com algo menos calórico que leite processado. Conservava um corpo modelado por um vestido amarelo, sem qualquer cicatriz de um parto doloroso.
Enquanto isso, apertava a própria cicatriz. Sentia ela doer, como se fosse um telefone chamando por sua atenção. Seus olhos estavam bem abertos, tal como ficavam ao tocar, mas apontados para aquela mulher do outro lado da rua. Lá fora, invadia a visão do escritório com seu saltitar de sapatos pretos de salto baixo.
Volte, . Seu violoncelo está te esperando.
Só um instante. Ela está lá fora, ela está passando pela frente do solar porque ela quer que todos vejam seu lindo bebê dormindo amassado entre roupas e mantas bordadas à mão. Ela quer que todos vejam como ela é mãe, ela é uma mulher de verdade, ela tinha um ovo dentro de seu corpo com um ser humano novo e feito por ela dentro de si, e entregou-o ao mundo em um ato de completa solidariedade. E lá está ela, desfilando com seu vestido amarelo e seu sorriso de orelha a orelha, na frente do solar como se isso fosse algo inocente.
Ah, droga. ouviu o som rompente e já sabia o que tinha acontecido. Uma das cordas do violoncelo se rompeu quando tentou apertar as cravelhas. Sem problemas, já estavam antigas e precisavam ser trocadas. Não tinha prometido a si mesma que as trocaria assim que terminasse a mudança?
Conferiu o relógio em cima da porta. Não teria tempo de trocar a corda e afiná-lo, para só então tocar o que precisava para continuar o arranjo. Teria que deixá-lo aleijado em seu canto.
A igreja estava com poucos fiéis, talvez uma dúzia ou um pouco mais. Chegou a tempo de fazer todas suas orações. Pediu ao Pai que os próximos meses seguissem como aquele mês havia seguido. Então voltou para casa e preparou um pouco de massa para o almoço com .
A refeição seguiu como normalmente seguia. comeu rápido, terminou antes dela, e perguntou como tinha sido a manhã. disse que tocou Mozart no violino. Ele perguntou por que tocou Mozart de novo. Ela disse que estava cansada de repetir as mesmas canções nos mesmos instrumentos, que precisava praticar arranjos diferentes. perguntou por que ela não tentou compor algo para apresentar para a companhia. Ela disse que não conseguiu compor nada desde que chegou. Então pegou um doce na geladeira para a sobremesa, enquanto foi até o piano. Começou a tocar uma peça de Chopin que gostava de ouvir depois de almoçar. Sentou-se ao piano, na sala, e começou a tocar as notas isoladas.
— Querida, por favor! — gritou, do lado de fora da casa, sentado à mesa no quintal. — Não faça isso enquanto estou trabalhando. Consigo ouvir você daqui.
— Desculpe, amor — ela gritou, em resposta. Fechou o piano e voltou para cima, para o violoncelo.
Fazer o trecho do violoncelo na música de Mozart era uma tarefa simples, mesmo que requeresse atenção. Então, mesmo que olhasse para o movimento de seus dedos, poderia transferir sua atenção a qualquer elemento externo. Tinha o grande violoncelo entre suas pernas, ambas abertas, a madeira a poucos centímetros de sua virilha. Tocava olhando para si, para seus dedos e para a velocidade que os movia, para a precisão milimétrica com que atendia às demandas das próximas notas. Não acreditava que o ato de tocar uma canção como aquela fosse mecânico; esse adjetivo era próprio de músicas populares. só tinha a consciência de que ela era alheia aos instrumentos e à partitura. Não tinha nenhum poder por cima destes, apenas obedecia a sua ordem natural de seguir. Há uma ilusão de que a música é uma arte que sempre trará novidades, que toda nota será diferente da anterior. Basta estudar música por um mês para saber que isso é o primeiro mito da música: toda nota prevê a nota posterior.
Não há nada de novo na música, e nunca houve, e por isso não precisava pensar ao tocar Mozart. Algo acima dela mandava que ela seguisse daquela forma, e ela seguia. Mas gostava de prestar atenção nos seus dedos porque aquele era seu toque especial na música. Ao ser mais firme ou menos firme ao pressionar a corda em certa posição, podia dar a impressão que queria. Acabava que o modo com que tocava naquele dia era um resumo do que pensava, sem que isso fosse proposital.
Por isso gostava tanto de Mozart.
estava certo. Precisava tomar um dia para tentar compor algo novo. A última vez que conseguiu compor algo tinha sido três meses antes de se mudar. Desde que houve a expulsão. Precisava criar uma boa atmosfera para conseguir compor algo. Antes de se mudar, usava seu piano para compor praticamente todas suas canções e trilhas. Quando já tinha voltado para o trabalho, desceu as escadas olhou para o piano no canto da sala de estar.
Andou lentamente até o piano. Seus pés tentavam não fazer qualquer som, o que causava uma pressão em seus ouvidos. alcançou o piano e se sentou de frente para as teclas. Deitou os dedos por cima das teclas e tentou deixar algo sair de si. Naturalmente, o que começou a tocar não era original: era o primeiro movimento de uma canção famosa de Chopin. Olhava para seus dedos, com os lábios comprimidos, e para frente, para a parede. Era laranja. Era uma cor bonita, mas não combinava com aquele piano preto. Olhou para o teto, branco. E de novo para as mãos. Ainda tocava Chopin.
Empurrou o banco para trás e ficou de pé. Foi até a cozinha e bebeu um copo d’água. Sabia que o piano não devia ter ficado no andar de baixo, no canto de uma sala, de castigo, enclausurado. Subiu novamente para o escritório e voltou a gravar seu violino exatamente da mesma forma que naquela mesma manhã fizera. Na hora que voltou, já tinha terminado o rearranjo.
perguntou-a o que tinha feito à tarde. respondeu que terminou a canção que estava estudando, mesmo que já tivesse estudado aquela sonata muito antes, e que tinha gravado uma versão com quarteto de cordas para mandar para uma companhia musical da região. Poderia dar aulas de piano, como tanto gostava, retrucou . Lidar com crianças.
tinha posto a carne no forno quando ouviram alguém buzinar do lado de fora da casa. franziu o cenho e, ainda com as roupas de trabalho, se levantou para conferir quem era. Saiu da casa com a porta encostada atrás de si e foi até o portão do muro. ficou na porta, do lado de dentro, observando o marido. Vestia um vestido vermelho-claro e tinha os cabelos soltos.
Havia um carro verde-claro parado com a frente embicada no portão de sua propriedade. apertou os olhos para tentar enxergar o motorista, mas a falta de luz atrapalhava qualquer reconhecimento. Só conseguia ver a luz forte dos faróis incidindo contra o corpo largo de , que caminhava lento até o portão. Atravessou a portinhola lateral e inclinou o corpo contra o vidro do motorista. Por um instante, assistiu um terrível acidente. Mas sua visão foi quebrada quando viu dar uma risada e apontar para a porta de casa, do outro lado do portão, para sua esposa. Ela recuou e pensou em fechar a porta, mas não o fez. Apenas assistiu abrir o portão para o carro, que entrou com demora na propriedade.
tinha o cenho franzido para analisar a figura que saía daquele modelo moderno de carro. Tratava-se de um homem um pouco maior que , vestido com calças pretas e camisa social branca. Não usava gravata, mas tinha um paletó no braço, apoiado. Tinha o rosto quadrado, ao contrário de , que era oval, e olhos . Estes, sim, idênticos aos de na cor. Compartilhavam também o mesmo formato do sorriso. No entanto, aquele homem tinha lábios um pouco mais grossos. Já saiu do carro sorrindo, acompanhando em uma risada que não entendia aonde começou. Ele ergueu os olhos para ela e parou de rir. Tinham os cantos apertados, as íris refletindo a luz do interior da casa. Sondou-a dos pés à cabeça, parando em seus olhos. Seus lábios pareciam segurar um sorriso.
— , esse é meu irmão — falou, olhando para ela e com uma das mãos nas costas do homem. — , minha esposa .
olhava novamente para o chão, os lábios arqueados em um sorriso preso, quando ergueu os olhos para ela. Tinha visto rápido demais: seus olhos não se assemelhavam nem um pouco aos de . Eram fundos, como se ele passasse noites acordado.
— Temo que essa não tenha sido a melhor forma de conhecer seu cunhado — ele disse, estendendo a mão livre do paletó. — Devo ter assustado vocês.
Seus cabelos estavam penteados para trás, mas fugiam ao gel. A voz era baixa, mansa, não muito grossa. Sim, decerto era mais fina que a de , e seu corpo era bem mais esguio.
Ele esperava algo dela. Ah, sim, o aperto de mãos.
estendeu sua mão e apertou a de . A outra mão escondia-se por dentro do bolso do roupão. Tentou sorrir ao cumprimentá-lo, mas não tinha certeza se soara franca.
— Não foi nada. Ainda não jantamos.
— Junte-se a nós no jantar, — chamou , um sorriso largo nos lábios, empurrando-os para o interior do solar. — preparou um bife ao molho madeira.
Fechou a porta atrás de si. A iluminação da casa era, como na noite anterior, limitada a poucos pontos de luz nos cantos de cada cômodo. foi a passos largos até a cozinha e se abaixou para conferir a carne no forno. O molho no fogo estava quente, mas os bifes ainda não estavam prontos. A mesa já estava posta, tinha sido colocada pela própria pouco antes da buzina.
— Mais alguns minutos — ela anunciou, com um pequeno sorriso, enquanto olhava para seu marido. — Ainda não está no ponto.
No caminho até a cozinha, tinha deixado seus olhos repousarem no piano por algum tempo, mas não fez qualquer comentário. Os irmãos andaram vagarosamente até a cozinha, de frente para a sala de jantar.
— Está servido de vinho tinto? — perguntou , abaixando-se para abrir o armário.
— Só um pouco. Meia taça me servirá.
— Pegue uma taça para ele, .
estava apoiada na bancada com as mãos abaixadas e precisou girar o corpo para pegar as taças.
— Também gostaria de um pouco, já que vai abrir a garrafa — ela avisou. , com a garrafa na mão, fez uma careta de desdenho, que logo transformou-se no mesmo rosto sorridente de quando reconheceu o irmão no carro. Ela mantinha o rosto em um pequeno sorriso, seus olhos mais abertos para acompanhar as pupilas dilatadas. Estendeu uma taça para , que segurou-a pela haste e murmurou um agradecimento. serviu-os, mas não bebeu. imaginou que ele estivesse esperando algum brinde, então sinalizou que não haveria nenhum ao beber um gole do vinho enquanto olhava para . Conforme imaginou, bebericou o vinho logo depois dela.
— Sente-se, irmão. Vamos colocar mais um prato — lembrou , apontando para o armário. Ela assentiu e murmurou “ah, sim”.
— Estou bem, se não for atrapalhá-los. Sentarei quando vocês também forem.
— Você é o convidado, — retrucou, rindo. — Vamos preparar o ambiente. vai colocar alguma música, vamos colocar a mesa. Fique à vontade.
pareceu querer conferir a afirmação de , pois olhou para de lado.
— Só porque ela — apontou para com a cabeça — disse que não vai demorar. Com licença.
Balançou a cabeça em afirmativo, com um sorriso. Deixou a cozinha e puxou uma cadeira remanescente com a mão, se sentando em seguida. Deixou a taça à sua frente e apoiou ambos os cotovelos na mesa, com as mãos na frente da boca. Desligou-se por um momento que tirou para analisar o cômodo.
De costas para a mesa, esticou o corpo para pegar mais um prato. deu uma cotovelada em seu braço e sussurrou:
— Ele não sabe.
Ela abaixou o olhar. pegou o prato de suas mãos e o levou até a mesa. ouviu-o anunciar:
— Aqui está.
Enquanto o marido colocava a mesa, foi até o aparelho de som e escolheu um disco. O bom de manter os discos de perto do aparelho era a certeza de que pegaria álbuns de músicas populares, como Berry e Presley. Escolheu um dos álbuns deste e o colocou para reproduzir. O som ficava na sala de estar, mas ecoava por todo o primeiro andar e quintal. Voltou para a cozinha.
parecia segurar uma risada novamente, o que deixou mais desconfortável e, agora, com um pouco de raiva. Pareciam compartilhar de alguma brincadeira que ela desconhecia, ou que fosse direcionada a ela própria. Tentou ignorar os pensamentos com mais um gole do vinho. Foi para a pia e lavou as mãos.
— Então... — começou , com uma pausa. — O que está fazendo na região, ?
Ele deu de ombros.
— Estava dirigindo por perto. A estrada para a costa passa pela cidade...
— O que você faz?
Ambos olharam para , que completou antes de beber mais um gole do vinho:
— Se não se importa com a pergunta.
— Nem um pouco — começou, a olhando com os olhos um pouco apertados, como que tentando enxergá-la na meia luz. — Sou vendedor. Cruzei o meio oeste mais vezes que você pode imaginar.
— Um avião não seria uma opção melhor? — questionou , com o cenho franzido e a cabeça inclinada para a direita.
— tem medo de altura — cortou a tentativa de responder e continuou com uma risada. — Não confia na maior invenção da humanidade.
olhou para e, em seguida, para . Sustentaram seus olhares por alguns segundos. Tinha certeza de que os olhos de carregavam um deboche por nem sequer ter precisado abrir a boca para derrubá-la. Ele ter sorrido ao concordar com o irmão só a deixou mais incomodada.
— Sim. A companhia até já sugeriu que eu usasse aviões, mas ainda vejo aquilo como uma caixa de metal. Não confio em algo que me aprisiona por horas, com a justificativa de que será melhor para mim.
o observava de lado. sabia que ela o analisava, mas preferiu prestar atenção em outros detalhes do ambiente, como o jardim do outro lado do vidro. As rosas de , perfeitas, desabrochadas, e a piscina limpa com pequenas ondas. Suas mãos eram grandes e seus ombros eram largos, mesmo não tendo o físico de .
Abaixou e conferiu a carne mais uma vez. Apagou o forno e vestiu a luva para tirar a travessa.
— Cuidado, está quente!
Deixou a travessa com os bifes no centro da mesa, entre uma tigela com o molho e uma tigela com macarrão na manteiga. Quando chegou à mesa, retraiu os cotovelos e agradeceu em silêncio, apenas com um sorriso pequeno. já tinha sentado-se à mesa ao lado de . sentou-se em frente ao seu marido.
— Desculpe ter vindo sem avisar — murmurou , enquanto colocava o guardanapo no colo. — Estava com pressa.
— Como você tinha nosso endereço, ? — perguntou, sem sequer desviar o olhar da comida enquanto servia-se. — Pegou com a nossa mãe?
assentiu com a cabeça, os olhos apontados para baixo. notou certa hesitação, mas sabia que tinha sido apenas impressão. Sua declaração sobre a “caixa de metal” ainda parecia pertinente.
— Sim. Eu estava passando pela região e lembrei que você tinha se transferido para cá.
— Pegue um bife, — falou , apontando para a travessa.
Nesse momento, ergueu os olhos fundos e arqueou o canto do lábio. Durou apenas um segundo. Com o pegador, se serviu de um bife grosso, com molho escorrendo por suas laterais e tamanho suficiente para alimentar duas pessoas famintas. Colocou o bife no centro do prato, junto a um pouco de macarrão que também estava em cima da mesa. soube que o macarrão era para efeitos puramente estéticos. O prato de era organizado, com o macarrão tomando cerca de um quarto do volume, o bife tomando lugar do resto. O molho invadia o espaço da massa com lentidão, quase obsceno. ergueu os olhos para ela por um instante, em um dúbio de ratificação e presunção.
não conseguia desviar seus olhos do prato de . Ele, por sua vez, parecia estar no ponto cego perfeito para exibir para ela sua pequena obra sem que notasse. Havia um pequeno espetáculo acontecendo ali, bem baixo.
Está vendo isso? Eu quero que você assista.
— Por que estava na região, ? — perguntou novamente, sua atenção infantil totalmente voltada para o prato de comida. olhou-o de lado, com um pouco de desdenho. Não admirava a comida, não apreciava o molho que preparara com tanto cuidado. Apenas enfiava tudo na boca, nem fome devia estar sentindo. Quem tem fome sabe tomar o tempo de saborear o que está comendo, a não ser, naturalmente, que a comida esteja ruim. Não era o caso. não precisava comer para saber, de olho, que era deliciosa. As curvas na carne, suas nervuras camufladas pela camada que a cobria. Parecia lisa, mas o mais delicioso seria notar, em sua própria boca, as falhas na textura. E as falhas, justamente a parte mais saborosa, só eram perceptíveis no contato com a língua.
Eu quero que você me assista.
Salivava apenas com a imagem. Pegou a faca e a serrou repetidas vezes por cima da peça, o molho espalhando-se e escorrendo para o spaghetti nu ao lado. As luzes amarelas pareciam tornar a cena ainda mais lenta. A carne, de início, parecia querer resistir. Finalmente, a faca já havia a massageado tanto que cedia, se dividindo com calma, caindo na louça como se fosse flutuar.
temeu que sua imagem estivesse ridícula, assistindo cortar um pedaço do bife. Retomou seu jantar, desviando o olhar por um momento, mas não resistiu. tinha a esperado voltar a olhar. Tinha pausado sua performance para que pudesse assisti-lo, enquanto , aquela besta pré-histórica, comia como se o boi fosse fugir do prato.
Espetou uma tira da carne com o garfo. Tratava-se apenas do instrumento que facilitava a aproximação de sua boca com a carne. Não, na verdade não: era mais uma peça da cena, não um instrumento, mas uma peça fundamental para compor a imagem. segurava o garfo como uma arma que soubesse empunhar desde jovem. Não era letal, não tinha a pose de ataque, mas de um objeto que manuseava sem consciência e era parte de sua figura naquele momento crucial. Levou o filete de carne à boca, o molho escorrendo pelo canto dos lábios em uma atitude indecente, desrespeitosa. , entretanto, não protestou: levou o guardanapo à boca e levou o molho de volta aos lábios, e quando abaixou-o, a língua já limpou-o da insolência. Seus lábios grossos estavam avermelhados pela temperatura da carne, mas seus olhos permaneciam inexpressivos, apontados para o prato.
Comia de boca fechada, mas não conseguiu evitar que sua testa se franzisse involuntariamente ao assistir tamanha ferocidade das mordidas ao tentar rasgar a carne. O bife era grosso o suficiente para que devesse parti-lo mais uma vez. Não o fez, então sua mandíbula precisava ter trabalho dobrado.
Apertava com força a carne, pois era tarde e ela queria fugir. Tinha notado onde estava e quis fugir. Mordia com a velocidade que tinha até então: pouca, quase nenhuma, mas uma força brusca, repentina. Movia a mandíbula um pouco para os lados em cada mordida, nada que fosse sujar a simetria da imagem. Ao contrário de , não tinha pressa, mas era tão animalesco quanto o irmão. A comida de não tinha motivos para fugir.
Não comia para suprir sua fome, até porque não tinha. Todo o ambiente já o nutria. Os movimentos flutuantes, o silêncio, a avidez. A violência era parte de sua apresentação. Era cru igual a e a , com exceção de que considerava seus movimentos uma coreografia. Era natural e não era ao mesmo tempo.
se perguntou se comia daquela mesma forma quando estava sozinho. Teve seus devaneios interrompidos por , que tossiu ao engolir uma fatia do bife. Notou que já devia ter ficado parada por pelo menos trinta segundos, algo especialmente assustador.
desviou o olhar para o próprio irmão e respondeu depois de engolir:
— Precisarei estar na costa em alguns dias. Estava indo de carro, a estrada é aqui perto. Resolvi passar para ver como estão.
tentou lembrar-se de em seu casamento e teve certeza de que ele não estava presente. Se estivesse, ela sabia, não esqueceria seu rosto tão facilmente. Mesmo tendo traços menos harmônicos que , suas expressões captavam a atenção de qualquer interlocutor que ele estivesse interessado em atrair. Lembraria de um homem como esse em seu casamento. Tentou lembrar-se, então, de uma menção de sobre a ausência de seu irmão mais novo. Pelo que se lembrava, não tinha irmãos. Talvez tivesse se enganado. De fato, nascera em um estado no meio oeste, e se conheceram em um estado perto da fronteira. Mal via sua família, e talvez tivesse ficado incomodado em mencionar um irmão pelo qual tinha muito carinho, mas pouco contato. A felicidade infantil ao ver poderia ser a prova de sua suposição.
Sim, soava claro, mas ainda não era algo além de um estrangeiro.
já estava na metade de seu prato quando fez uma pausa para limpar os lábios imundos e beber um gole do vinho. Deu um suspiro baixo e comentou:
— Poderíamos ter feito um jantar melhor. Tem onde se hospedar?
desmanchou o sorriso. Hesitou e sua voz parecia prestes a vacilar. prosseguiu:
— A casa é grande. Acabamos de nos mudar — sorriu, olhando para sua esposa. — E somos muito pequenos para um lugar desses.
fez uma careta de desconfiança. Todo seu estado de alerta foi substituído por uma imediata irritação. tentou sorrir novamente, desta vez ciente de que atuava como um mediador. Ainda assim, ela notou que havia certa malícia em sua voz, como se procurasse atiçar .
— Não acho que seja necessário, . Posso procurar um quarto na cidade.
— Deixe disso. Eu não negaria um quarto ao meu irmão caçula. Essa casa tem tantos quartos sobrando que chegamos a fazer dois escritórios.
sabia que aquilo não era verdade, mas preferiu não discutir com o marido. oscilava seu olhar entre os dois: , com um sorriso convidativo e olhos brilhando, e , o queixo apoiado em uma das mãos e as sobrancelhas levemente erguidas com um sorriso pequeno, como se estivesse gostando de ver seu marido tão feliz.
, por fim, olhou para enquanto reproduzia o mesmo sorriso que ele.
— Não posso negar um convite do meu irmão mais velho. Desde que isso não os atrapalhe.
— Relaxe — respondeu, com o rosto de descrença. — Eu trabalho fora o dia todo. Sua presença só nos agregará. Vai ser uma boa companhia para .
Ela ergueu as sobrancelhas em resposta, junto a um sorriso amarelo e a atenção na comida, que a essa altura estava fria. a observava com o rosto apontado para baixo. Sabia que notava sua atenção, mas soube que ela preferiu deixar-se observar. Isso foi ainda mais tentador ao seu olhar, focado nos movimentos calmos e coreografados de . Parecia seguir um ritmo em sua cabeça, as mãos em uma dança e os talheres como objetos de cena. Ela olhava para as próprias mãos como se quisesse decorar os próprios movimentos, sem que entendesse o porquê.
Notou que seus próprios lábios não estavam fechados e ansiavam por comida. Levou mais um pedaço de carne à boca, dessa vez comendo rapidamente. Não havia motivo para se demorar.
— Em que você trabalha, ? — perguntou, olhando para ela.
levantou os olhos. Parecia cansada daquela conversa, mas deixou-se responder:
— Sou musicista.
— Explicado o piano. nunca teve qualquer talento para música.
deu uma risada que soou debochada. Virou os olhos. acompanhou-o ao rir, mas, ao olhar para , ela permanecia séria, o encarando como se esperasse seu próximo movimento. Tinha dado um pequeno sorriso educado, nada além disso. Olhou para os talheres em suas mãos, que agora pareciam armados.
— toca violino, violoncelo, piano e mais algumas coisas. Terá bastante tempo de ouvi-la tocar.
Novamente, sustentaram um olhar. Ela parecia assustada, alerta, mas tentava soar firme, aceitando a proposta que lhe foi jogada. sorriu, se servindo de mais um pedaço de carne. Notou que ela liberava um perfume cítrico. Curioso, pois era seu cheiro artificial preferido.
Fechou a porta do quarto com um som surdo. Foi para o banheiro da suíte com seus pijamas e sem falar nada, mas pôde ouvir rezar enquanto estava no chuveiro. Quando saiu do banho, já estava deitada na cama, lendo um livro com a luz do abajur. Notou que, de perfil, ela não era tão bonita. Quando estava prestando atenção em algo, seu rosto ficava insosso e desinteressante. Preferia sua esposa em situações sociais, em que toda sua atenção estava na tentativa de permanecer em conversas ou parecer atraente. Por mais que não gostasse da ideia de sua esposa estar, talvez, atraindo olhares mal-intencionados de outros homens, gostava de vê-la no ápice de sua voluptuosidade. E não poderia negar que isso o excitava um pouco.
De repente, fechou o livro e o colocou no criado-mudo. Olhou para ele, o pijama marcando seu corpo pequeno e excessivamente magro.
— Você podia ter convidado seu irmão depois de falar comigo.
bufou. Sabia que aquela conversa teria que acontecer, cedo ou tarde.
— Eu sei, . Mas não vejo há anos. Desde que comecei a trabalhar, ele vivia viajando. Não queria que houvesse a chance de ele ir embora depois de um jantar curto como aquele.
Ela comprimiu os lábios, desapontada.
— Você não fica na casa. Eu passo o dia aqui, sozinha. E não conheço seu irmão.
— Ele será uma boa companhia. gosta de música, assim como você.
— Quanto tempo ele vai passar aqui?
— Ele disse que seriam só quatro noites. Você nem notará que ele está aqui se ficar no escritório o dia inteiro.
Falou a última frase com um pouco de irritação. Puxou os lençóis e se deitou.
— Irei para a missa amanhã de manhã. Na volta, farei o almoço para nós três.
— Ótimo. Temos carnes o suficiente para todos.
suspirou e se ajeitou por debaixo das cobertas. olhou-a de lado e se girou para apoiar o cotovelo na cama.
— Você andou tomando seus remédios? — ele perguntou, baixo.
— Não.
sorriu, acariciando seu rosto.
— Obrigada, .
Inclinou o rosto para beijá-la. Lembrava um pouco Marilyn Monroe, pelo menos na sua perspectiva. não era diretamente semelhante à atriz, com exceção de seu corpo. Os cabelos de eram , com leves cachos nas pontas. Tinha o rosto magro e o nariz fino, e mesmo tendo curvas por todo seu corpo, a magreza sugeria uma fragilidade que pareceria querer negar. Mas sabia que isso tudo era imagem. Ela precisava dele tanto quanto ele imaginava que precisava, mesmo que ela não gostasse de admitir.
beijou-o em retorno, tentando subir em seu corpo. a impediu, a empurrando para o lado e ele próprio subindo em seu corpo. Tentaram não fazer barulho, mas sabia que, se quisesse, poderia ouvi-los. Não conseguia criar uma razão para pensar assim, mas deixou-a em constante estado de vigilância.
Parte II
Na manhã seguinte, programou-se para acordar ao mesmo tempo que . Vestiram-se e desceram juntos para o café, com um vestido azul e com as mesmas cores do dia anterior. Ela surpreendeu-se ao ver na mesa do jardim, os olhos presos na leitura de um dos romances que deixava em seu escritório. Enrijeceu os músculos com a possibilidade de ter desbravado o solar enquanto eles ainda dormiam e ele ter entrado em seu escritório. Esperava que tivesse a mesma preferência de pelo quintal. Se suas tentativas de compor algo já estavam frustradas, imaginou como seria compor algo na companhia de .
— Bom-dia! — gritou . ergueu os olhos com calma e acenou enquanto se levantava. , da cozinha, observou-o se aproximar. Vestia uma camiseta cinza e calças jeans, como Brando fizera naquele filme um pouco antes. Tinha gostado do filme, mas lembrava-se bem do personagem que Brando interpretava.
— Bom-dia — retrucou, quando entrou na sala de jantar pela porta de vidro.
— Não dormiu bem? — perguntou, indo até a geladeira para pegar os queijos do café. ocupava-se em preparar as torradas e os cafés.
— Durmo pouco — respondeu, dando de ombros — Acordei faz uma hora e preferi esperá-los para comermos juntos. Este livro — estendeu o livro para o irmão e riu — é uma merda, .
Olhou para , que pareceu ter segurado uma baixa risada.
— Você tem o mesmo gosto para livros que tem para mulheres. Não me culpe por isso.
— Pelo contrário, irmão. Tenho ótimo gosto para mulheres, e temo que isso tenha sido genético, o que me assusta com a possibilidade de que seu mal gosto para música e literatura tenham vindo como bônus.
sentiu o corpo estremecer. Começou a arfar, baixo, e a sentir as pernas cederem.
Serviu seis torradas em três pratos e prestou atenção enquanto os irmãos conversavam sobre o tempo que teria se mantido incomunicável. Passou os últimos cinco anos em inúmeras cidades, às vezes por menos de um dia, às vezes por semanas inteiras. Era um emprego que, segundo ele, atendia suas necessidades e proporcionava conhecer mulheres que nunca poderia conhecer na pequena cidade em que nasceram.
perguntou o que estava vendendo e ele respondeu que, em sua maioria, eram ferramentas de uso pesado, como marretas, machados e serras. Trabalhava por demanda, mas às vezes chegava a carregar mais de cem dessas ferramentas em seu carro. Completou, com uma risada, que a polícia nunca o parou.
pôde ouvir um estalo. Pegou os pratos e os levou à mesa, para que depois pudesse entregar a cada um sua xícara de café.
— Quais os planos para hoje? — perguntou , assim que se aproximou. Pareceu cortar o assunto que estava tendo com .
— Irei à igreja logo. Na volta, prepararei o almoço.
— Temo não ser hábil o suficiente para ajudá-la na cozinha — declarou , olhando-a com o nariz sutilmente erguido.
retrucou prontamente:
— Não há problema, desde que me acompanhe na igreja.
franziu o cenho com o canto do lábio erguido. Tinha que admitir que não esperava por aquela reação. Nunca lidou com uma mulher que parecesse resistir tanto, ao mesmo tempo que o chamava para um desafio.
— Não sou cristão, . Na verdade, a igreja não parece me receber bem.
— Não? — ela perguntou, engolindo em seco e encostando as costas na cadeira.
comprimiu os lábios, desviando o olhar.
— Acho que sou uma presença pesada demais para eles. Não me entenda mal. Mas não fico confortável ao lembrar que estou sendo vigiado.
— Ele está vigiando você a cada momento, — ela declarou, com uma pausa para beber mais um gole do café. — Prefere ficar em casa sozinho?
deu de ombros.
— Posso acompanhá-la, se for deixá-la mais confortável. Mas, novamente, não sou cristão. Espero que isso não a incomode.
— De modo algum.
Toda a conversa tinha seguido enquanto comiam seu café. Assim que terminou, empurrou a cadeira para trás e se levantou rapidamente, conferindo o relógio em seu pulso.
— Devo ir agora, senão, me atraso. Me ligue se precisar de algo da rua, . Você também, .
Talvez estivesse acostumado com projetar-se como um tipo de zelador da casa, mas não ficava confortável com essa posição. Afinal, era justamente ela que passava a maior parte do dia em contato com o solar.
— Até logo — se despediu.
— Até o almoço, amor — murmurou , dando um beijo curto nos lábios de .
Vestiu o paletó enquanto ia até a saída. Para isso, deveria atravessar a sala de estar e a antessala. acompanhou-o e lhe deu mais um beijo antes de fechar a porta do solar. E, quando passou a chave, estremeceu.
Voltou andando lentamente até a cozinha. Tentava manter o rosto apontado para frente, talvez um pouco erguido até, mas sabia que percebia seus pequenos sinais de vacilação. Quando chegou à sala de jantar, ainda bebia seu café, entretido com o jardim do lado de fora.
— Você cuida do jardim? — perguntou, sem olhá-la. tentou formular uma resposta que soasse natural e, ao mesmo tempo, cortasse a conversa.
— cuida de tudo que não está dentro do solar.
— Surpreendente. nunca foi bom com as mãos. Sempre parecia destruir tudo que tocava. Não consigo imaginá-lo cuidando de um jardim.
Engoliu em seco, enquanto limpava os pratos do café no lixo. Precisou pensar mais rápido ainda, pois sabia que não poderia deixar aquele assunto lhe escapar:
— Você não foi ao nosso casamento.
— Estava trabalhando. não se casou na nossa cidade, o que faria a rota mais difícil para mim. — Fez uma pausa e soube que ele estava sorrindo novamente. — Desculpe se isso a ofendeu. Em minha defesa, sei que poucos parentes meus foram convidados.
Parou por um momento.
— Minha mãe não foi, nem meus tios. Só dois primos, os mais próximos de nós. Confesso que fiquei curioso para saber o porquê.
Não respondeu. Posicionou os pratos e xícaras na máquina de lavar louça. Por fim, suspirou como se estivesse cansada da tarefa e falou:
— Nos conhecemos há um ano, quando toquei em um evento da empresa de . Dois meses depois, resolvemos nos casar, já que só assim poderíamos morar juntos. Algumas pessoas acharam tudo muito rápido.
— Não posso negar que foi rápido. Mas não tenho posição para criticar.
desfez-se do avental e o pendurou na entrada da cozinha. continuava sentado na mesa, o corpo de lado, observando-a andar em direção à sala de estar. Seus olhos passaram por todo o corpo de , parando em seus pés, protegidos por sapatos de saltos baixos.
— Com licença. Preciso praticar.
— Não se incomode com a minha presença.
falara com educação, mas parecia fugir de um tipo de sufocamento. Vagarosamente, ficou de pé. A cadeira mal produziu ruídos, como todo o resto de seus movimentos. Não fazia barulho ao andar, sua voz era baixa e mansa, sempre no mesmo tom, de modo que e precisavam inclinar-se para frente um pouco para ouvi-lo, além de ficar em total silêncio. Era, e ela sabia, sem dúvidas, uma forma de exercer poder. E ela não conseguiria ficar naquele ambiente com por muito tempo, por isso precisou fugir para a sala de estar.
— Fique à vontade. Pode ficar no quintal, se quiser.
sorriu novamente. Levou o polegar ao lábio, limpando uma migalha de pão que permanecera em seu rosto de barba feita.
— Não há por que sair dessa casa — comentou, a seguindo. — O jardim só tem as flores, algo que, honestamente, desprezo. Não é uma arte de verdade, a jardinagem.
— Então gosta de arte.
As palavras pareciam sair com despretensão, mas notou algum interesse. Ao ver sentada de frente para o piano, passou direto por ela e se sentou no sofá, a poucos metros. Não ficaria próximo o suficiente para que ela notasse sua presença, mas ainda poderia ouvi-la.
— Devo dizer que conheço pouco. Não gosto tanto de dança ou pintura como gosto de arquitetura e música. Mas, decerto, conheço bem menos que uma compositora.
A palavra incomodou-a de imediato, e percebeu que havia acertado mais uma vez.
Ergueu a tampa do piano e posicionou os dedos em cima das teclas. Pressionou-as com pouca força, assim como sabia que elas deveriam ser tocadas. Não precisava da partitura, e imersa na observação de seus movimentos, não notou que fazia o mesmo.
— Conhece? — ela perguntou.
demorou um pouco a responder. Por Deus, daria qualquer coisa para olhá-lo e ver sua expressão, ver se ele ainda sorria. O sorriso cínico que também tinha, mas que soava muito mais harmonioso no rosto de .
— Sonata ao luar. Frequento salas de reuniões o bastante.
parou abruptamente. Segundos depois, começou a tocar outra coisa, os dedos batendo com violência contra as teclas. Cada batida na tecla completava o próprio som de cada uma, como um soco surdo, abafado pelas notas. Notou que havia sido um elemento fundamental adicionado por ela própria, e não um reflexo de raiva ou frustração. Não havia nada em seu corpo que sinalizasse mudança de humor em relação à sonata de Beethoven, além dos baques surdos nas teclas. Ainda assim, reconhecia o padrão e poderia tentar adivinhar o compositor, mas sabia que preferiria explicar.
— Essa não conheço — ele comentou.
— É normal não conhecer. Não toca em comerciais de sopa de macarrão. Chama-se Sinfonia número 25, tocada em sol menor. É uma das sinfonias do Mozart, mas é para orquestra, naturalmente.
As mãos de eram rápidas, mas não movimentava a cabeça, o que fez notar que ela não analisava as próprias mãos para que seguisse as notas ou estudar seus próprios movimentos. Apertou os olhos enquanto se levantava e se aproximava do piano. parecia imersa demais na canção para se incomodar. Seu rosto permanecia inexpressivo, sem caretas de concentração ou esforço. Não tinha qualquer trabalho em recordar-se, fosse mecanicamente ou não, da partitura da canção.
— É minha sinfonia preferida. Ele escreveu quando era dez anos mais novo que eu.
ficou de pé, com as mãos nos bolsos, ao lado de . Todo o desconforto que ela parecia sentir de sua presença esvaiu-se quando se sentou ao piano. Ainda assim, quando ele se aproximou demais, ela desviou o olhar para o lado, para os pés de , sem deixar de tocar. Ele recuou, permanecendo na distância que ela considerou aceitável.
— Demorei dois anos até conseguir tocá-la sem erros.
— Não usa partituras?
— Decorei a maioria dos sonetos e sinfonias que gosto. — Deu uma risada baixa, quase irônica. — Passo todos os dias tocando.
— Também compõe?
Pareceu ignorar a pergunta de , pois continuou tocando até o final do movimento. Assim que terminou, as mãos repousaram em seu colo.
— Minhas partituras estão no escritório. E estou quase atrasada para a igreja.
Ficou de pé sem arrastar o banco e foi em direção às escadas.
— Se quiser, não precisa me acompanhar à igreja, se o ambiente não for agradá-lo.
Já estava subindo as escadas quando respondeu, algo que ela imaginou ter sido calculado por ele para que ela não visse sua expressão.
— Não tenho problemas. Como disse, não sou cristão, mas não me incomodo com igrejas. Espero que isso não incomode você.
Estremeceu. com certeza tinha notado que preferia não o deixar sozinho no solar. Não poderia saber que tipo de coisa ele faria enquanto ela estivesse longe. Não, de modo algum; precisava ficar próxima da casa. E, se precisasse ir embora, ele teria que acompanhá-la.
Seu escritório ficava no caminho de seu quarto. Com cuidado para não fazer barulho, fechou a porta e a trancou com a chave que mantinha do lado de dentro da fechadura. Não era seu costume trancar o escritório, mas não sabia disso. Por enquanto, não custava nada remediar.
Pegou um casaco em seu cabideiro, mesmo sabendo que tinha um na antessala. Voltou depressa para as escadas e diminuiu a velocidade ao descê-las.
— Estou pronta — anunciou. Olhou para , sentado no piano. Seu coração apertou-se por um instante, mas relaxou logo. Não era como se seu piano estivesse imaculado desde o princípio. Desde que aceitou deixá-lo na sala, já que seria mais simples do que arrastá-lo escada acima, havia compactuado com a ideia de deixá-lo exposto.
estava sentado no banco, as mãos nas laterais do corpo, como se estudasse o que preferiria experimentar primeiro. Olhava para as teclas, para as cordas, como uma criança querendo escolher o que bater primeiro, embora houvesse certo zelar de curiosidade em seu rosto. Calculava a tecla mais apropriada, o que fez acreditar, por um instante, que também soubesse tocar piano. Mas sua crença foi derrubada quando suas grandes mãos se ergueram e, com os dedos encurvados para o ataque, caíram em cima das pequenas notas brancas. O ruído foi doloroso e violento. Era bruto, sem técnica alguma, mesmo que saísse algo melódico daquelas repetidas surras ao teclado. Ele sabia que assistia, tanto que começara a tentar tocar apenas quando ela tinha chegado ao primeiro andar. A agressão parecia crescer com o ritmo da própria canção e não conseguia reagir. Soava errado tentar interrompê-lo pois, mais uma vez, se lembrava de que não precisaria viver aquilo se tivesse insistido em subir com o piano. O chão próximo ao piano rangeu no momento em que ergueu as mãos e parou de tocar. Suspirou com satisfação e cansaço, como se a tarefa tivesse exigido enorme esforço, mas, enfim, o recompensou com o deleite de cumprir um desafio.
— Bach, invenção número 8. Realmente preciso voltar a praticar.
andou em direção à antessala em silêncio. Sentia-se como se tivesse acabado de assistir uma violação. A barriga voltou a doer como nunca doía e precisou correr em direção ao lavabo mais próximo.
— ! — gritou. Já tinha alcançado o vaso e se ajoelhou rapidamente. Quase não teve tempo de levantar a tampa quando o vômito jorrou de sua boca. Tossiu com força para expulsar o que sobrou dos resíduos e sentiu os olhos marejados pela força.
— , você está bem?
— Só um instante!
Apertou a descarga com força, a barriga doendo. A cada vez, doía mais. Imaginou que, eventualmente, a mesma dor de algumas semanas antes se repetiria. A lembrança de toda a aflição fez seu corpo apertar-se mais, angustiado pela possibilidade de tudo se repetir. Tentou não pensar nisso.
— , responda qualquer coisa! — gritava.
— Já vou sair!
Ficou de pé com pressa. Passou as costas das mãos nos olhos e abriu a torneira da pia. Com as mãos em concha, bebeu um pouco de água. Dessa vez, temeu que o remédio tivesse ido para o esgoto junto do pão e café.
Abriu a porta do lavabo ainda tonta. estava postado em frente a ela, o rosto tão inexpressivo quanto estava quando viu-o sentado à mesa do quintal. Nada passava por ele e causava alguma emoção, e estremeceu. Tinha certeza de que conhecia as feições daquele homem.
— Como você está se sentindo? — ele perguntou. Sua voz não se alterava.
— Estou bem. Vamos indo, ou vou perder a hora da confissão.
Ajoelhou-se de frente para uma pequena janela coberta. A voz do padre era como a de um médico; ainda não tinha se acostumado com o padre da cidade. Tentava ignorar a dor na barriga, que, a essa altura, se assemelhava aos pontos arrebentando e a carne abrindo-se, exposta.
— Padre Portinari.
— Sim, minha filha.
não estava por perto durante a confissão, evidentemente. Preferiu ficar próximo à porta, ansiando pela hora de ir embora dali. Desde que pisou na igreja, notara que o mesmo sorriso da noite anterior voltara.
— Há algo ruim em mim, padre. Sinto uma aura pesada, algo me dói e sinto um mal-estar frequente.
— Acredita que seja uma presença corpórea, minha filha? Alguém cuja aura esteja lhe fazendo mal?
sentiu vontade de responder o nome de , mas forçou-se a permanecer calada. Afinal, desde antes de sua chegada, tinha enjoos frequentes.
— Não sei, padre. Rezo todas as noites para que Jesus Cristo possa me livrar disso, mas, a cada dia, pareço pior.
— Anda pecando, minha filha?
A barriga pareceu chutar-lhe por dentro.
— Não, padre.
— Então — ele concluiu, com a voz um pouco mais animada — não há o que temer. Reze dez pai-nossos e dez ave-marias e se mantenha em sua vida fiel. Nada poderá atingir-lhe, minha filha. O diabo só ataca os que permitem seu ataque, os que traem Deus e o procuram. Lembre-se, minha filha, a presença do Diabo não pode ser sentida no Inferno, apenas no reino de Deus. Amém.
— Amém. Obrigada, padre. Fique com Deus.
Deixou o confessionário xingando mentalmente. Quando encontrou na porta, seu sorriso evoluíra para o deboche. Voltou com em silêncio para o solar 137.
Durante o almoço, e conversaram sobre o trabalho, algo que realmente não se importava. Tinham optado por almoçar no jardim, mas, assim que terminou seu prato, ela pediu licença e subiu para o andar superior.
Fechou a porta e correu até o violino. Posicionou-o e correu o arco por todas as cordas, as notas trocadas rapidamente, quase sem que terminassem de soar. Assim que uma começava, outra já se apressava, e seguiam-se. A última, no entanto, foi prolongada até o fim do arco, que se retrocedeu e emendou com outra nota de mesma duração. Mesmo lentas, as notas ainda tinham seu tom de desespero. Assim que terminou, uma lenta melodia ressoou pelas paredes do escritório, adormecendo todo o redor após um susto inicial. No entanto, a calma deu lugar a um crescente melódico, cada vez mais alto. As notas voltaram a se embaralhar e um solo decrescente cortou a canção repentinamente. A melodia foi cantada novamente, agora mais rápida, tentando acompanhar o crescente. Cada vez mais rápido, tentava exaustivamente impedir o caos que, por vezes, arranhava em uma das notas. Por fim, o caos e a melodia rápida uniram-se um notas tão altas que o vidro da janela se tremia. Cada voz voltava para e ela tocava-a novamente, só para lançá-la de novo ao vidro. Curiosamente, desde que começara a tocar aquela peça terrível, não olhou para suas mãos. Eventualmente, as paredes do escritório sincronizaram-se com as notas sujas e perdidas. A melodia já se sobrepunha, mesmo com a escala rápida e confusa ao fundo. Enfim, algo pareceu se casar. E, com uma interrupção abrupta da harmonia, a melodia voltou a ser a única, em corridas lentas das cerdas, extensas, quase preguiçosas. A voz esticava-se e a alteração de notas era ínfima.
E, no final, três notas rápidas lhe fugiram. Mesmo que aceitassem estar atrás, não poderiam deixar de lembrar que estavam ali. Afinal, nada teria nascido se não fossem elas.
Só isso. Em um único suspiro, sem pensar, foi invadida pelos deuses que permitiram que ela criasse algo tão perfeito.
abaixou o violino com um suspiro de alívio. Suava em seu pescoço e o violino parecia acompanhar sua pulsação. Precisava de oxigênio, então abrir as janelas ou a porta seria o mais adequado. No entanto, preferiu apenas sentar-se no pequeno divã que tinha apoiado na parede. O papel de parede do escritório era rosa. Deitou-se contra ele e deixou que acompanhasse seus batimentos. Quando finalmente voltou a respirar com calma, sorriu.
Talvez algo de bom viera daquele estrangeiro odioso. Até ficou feliz em não ter gravado aquela peça; os conservatórios e companhias não costumavam gostar de peças tão primitivas. Mas seu conceito era muito bom para ser desperdiçado, então procurou alguma partitura vazia e anotou algumas palavras-chave. Talvez servisse bem com um quarteto de cordas, mas o piano poderia abrir e fechar a canção.
Poderia ter uma peça até o final da semana. E, assim que fosse embora, enviaria ela para alguma companhia. Só esperou que conseguiria receber a inspiração que precisasse, mesmo que fosse necessário ficar mais tempo na presença de .
— Bom-dia! — gritou . ergueu os olhos com calma e acenou enquanto se levantava. , da cozinha, observou-o se aproximar. Vestia uma camiseta cinza e calças jeans, como Brando fizera naquele filme um pouco antes. Tinha gostado do filme, mas lembrava-se bem do personagem que Brando interpretava.
— Bom-dia — retrucou, quando entrou na sala de jantar pela porta de vidro.
— Não dormiu bem? — perguntou, indo até a geladeira para pegar os queijos do café. ocupava-se em preparar as torradas e os cafés.
— Durmo pouco — respondeu, dando de ombros — Acordei faz uma hora e preferi esperá-los para comermos juntos. Este livro — estendeu o livro para o irmão e riu — é uma merda, .
Olhou para , que pareceu ter segurado uma baixa risada.
— Você tem o mesmo gosto para livros que tem para mulheres. Não me culpe por isso.
— Pelo contrário, irmão. Tenho ótimo gosto para mulheres, e temo que isso tenha sido genético, o que me assusta com a possibilidade de que seu mal gosto para música e literatura tenham vindo como bônus.
sentiu o corpo estremecer. Começou a arfar, baixo, e a sentir as pernas cederem.
Serviu seis torradas em três pratos e prestou atenção enquanto os irmãos conversavam sobre o tempo que teria se mantido incomunicável. Passou os últimos cinco anos em inúmeras cidades, às vezes por menos de um dia, às vezes por semanas inteiras. Era um emprego que, segundo ele, atendia suas necessidades e proporcionava conhecer mulheres que nunca poderia conhecer na pequena cidade em que nasceram.
perguntou o que estava vendendo e ele respondeu que, em sua maioria, eram ferramentas de uso pesado, como marretas, machados e serras. Trabalhava por demanda, mas às vezes chegava a carregar mais de cem dessas ferramentas em seu carro. Completou, com uma risada, que a polícia nunca o parou.
pôde ouvir um estalo. Pegou os pratos e os levou à mesa, para que depois pudesse entregar a cada um sua xícara de café.
— Quais os planos para hoje? — perguntou , assim que se aproximou. Pareceu cortar o assunto que estava tendo com .
— Irei à igreja logo. Na volta, prepararei o almoço.
— Temo não ser hábil o suficiente para ajudá-la na cozinha — declarou , olhando-a com o nariz sutilmente erguido.
retrucou prontamente:
— Não há problema, desde que me acompanhe na igreja.
franziu o cenho com o canto do lábio erguido. Tinha que admitir que não esperava por aquela reação. Nunca lidou com uma mulher que parecesse resistir tanto, ao mesmo tempo que o chamava para um desafio.
— Não sou cristão, . Na verdade, a igreja não parece me receber bem.
— Não? — ela perguntou, engolindo em seco e encostando as costas na cadeira.
comprimiu os lábios, desviando o olhar.
— Acho que sou uma presença pesada demais para eles. Não me entenda mal. Mas não fico confortável ao lembrar que estou sendo vigiado.
— Ele está vigiando você a cada momento, — ela declarou, com uma pausa para beber mais um gole do café. — Prefere ficar em casa sozinho?
deu de ombros.
— Posso acompanhá-la, se for deixá-la mais confortável. Mas, novamente, não sou cristão. Espero que isso não a incomode.
— De modo algum.
Toda a conversa tinha seguido enquanto comiam seu café. Assim que terminou, empurrou a cadeira para trás e se levantou rapidamente, conferindo o relógio em seu pulso.
— Devo ir agora, senão, me atraso. Me ligue se precisar de algo da rua, . Você também, .
Talvez estivesse acostumado com projetar-se como um tipo de zelador da casa, mas não ficava confortável com essa posição. Afinal, era justamente ela que passava a maior parte do dia em contato com o solar.
— Até logo — se despediu.
— Até o almoço, amor — murmurou , dando um beijo curto nos lábios de .
Vestiu o paletó enquanto ia até a saída. Para isso, deveria atravessar a sala de estar e a antessala. acompanhou-o e lhe deu mais um beijo antes de fechar a porta do solar. E, quando passou a chave, estremeceu.
Voltou andando lentamente até a cozinha. Tentava manter o rosto apontado para frente, talvez um pouco erguido até, mas sabia que percebia seus pequenos sinais de vacilação. Quando chegou à sala de jantar, ainda bebia seu café, entretido com o jardim do lado de fora.
— Você cuida do jardim? — perguntou, sem olhá-la. tentou formular uma resposta que soasse natural e, ao mesmo tempo, cortasse a conversa.
— cuida de tudo que não está dentro do solar.
— Surpreendente. nunca foi bom com as mãos. Sempre parecia destruir tudo que tocava. Não consigo imaginá-lo cuidando de um jardim.
Engoliu em seco, enquanto limpava os pratos do café no lixo. Precisou pensar mais rápido ainda, pois sabia que não poderia deixar aquele assunto lhe escapar:
— Você não foi ao nosso casamento.
— Estava trabalhando. não se casou na nossa cidade, o que faria a rota mais difícil para mim. — Fez uma pausa e soube que ele estava sorrindo novamente. — Desculpe se isso a ofendeu. Em minha defesa, sei que poucos parentes meus foram convidados.
Parou por um momento.
— Minha mãe não foi, nem meus tios. Só dois primos, os mais próximos de nós. Confesso que fiquei curioso para saber o porquê.
Não respondeu. Posicionou os pratos e xícaras na máquina de lavar louça. Por fim, suspirou como se estivesse cansada da tarefa e falou:
— Nos conhecemos há um ano, quando toquei em um evento da empresa de . Dois meses depois, resolvemos nos casar, já que só assim poderíamos morar juntos. Algumas pessoas acharam tudo muito rápido.
— Não posso negar que foi rápido. Mas não tenho posição para criticar.
desfez-se do avental e o pendurou na entrada da cozinha. continuava sentado na mesa, o corpo de lado, observando-a andar em direção à sala de estar. Seus olhos passaram por todo o corpo de , parando em seus pés, protegidos por sapatos de saltos baixos.
— Com licença. Preciso praticar.
— Não se incomode com a minha presença.
falara com educação, mas parecia fugir de um tipo de sufocamento. Vagarosamente, ficou de pé. A cadeira mal produziu ruídos, como todo o resto de seus movimentos. Não fazia barulho ao andar, sua voz era baixa e mansa, sempre no mesmo tom, de modo que e precisavam inclinar-se para frente um pouco para ouvi-lo, além de ficar em total silêncio. Era, e ela sabia, sem dúvidas, uma forma de exercer poder. E ela não conseguiria ficar naquele ambiente com por muito tempo, por isso precisou fugir para a sala de estar.
— Fique à vontade. Pode ficar no quintal, se quiser.
sorriu novamente. Levou o polegar ao lábio, limpando uma migalha de pão que permanecera em seu rosto de barba feita.
— Não há por que sair dessa casa — comentou, a seguindo. — O jardim só tem as flores, algo que, honestamente, desprezo. Não é uma arte de verdade, a jardinagem.
— Então gosta de arte.
As palavras pareciam sair com despretensão, mas notou algum interesse. Ao ver sentada de frente para o piano, passou direto por ela e se sentou no sofá, a poucos metros. Não ficaria próximo o suficiente para que ela notasse sua presença, mas ainda poderia ouvi-la.
— Devo dizer que conheço pouco. Não gosto tanto de dança ou pintura como gosto de arquitetura e música. Mas, decerto, conheço bem menos que uma compositora.
A palavra incomodou-a de imediato, e percebeu que havia acertado mais uma vez.
Ergueu a tampa do piano e posicionou os dedos em cima das teclas. Pressionou-as com pouca força, assim como sabia que elas deveriam ser tocadas. Não precisava da partitura, e imersa na observação de seus movimentos, não notou que fazia o mesmo.
— Conhece? — ela perguntou.
demorou um pouco a responder. Por Deus, daria qualquer coisa para olhá-lo e ver sua expressão, ver se ele ainda sorria. O sorriso cínico que também tinha, mas que soava muito mais harmonioso no rosto de .
— Sonata ao luar. Frequento salas de reuniões o bastante.
parou abruptamente. Segundos depois, começou a tocar outra coisa, os dedos batendo com violência contra as teclas. Cada batida na tecla completava o próprio som de cada uma, como um soco surdo, abafado pelas notas. Notou que havia sido um elemento fundamental adicionado por ela própria, e não um reflexo de raiva ou frustração. Não havia nada em seu corpo que sinalizasse mudança de humor em relação à sonata de Beethoven, além dos baques surdos nas teclas. Ainda assim, reconhecia o padrão e poderia tentar adivinhar o compositor, mas sabia que preferiria explicar.
— Essa não conheço — ele comentou.
— É normal não conhecer. Não toca em comerciais de sopa de macarrão. Chama-se Sinfonia número 25, tocada em sol menor. É uma das sinfonias do Mozart, mas é para orquestra, naturalmente.
As mãos de eram rápidas, mas não movimentava a cabeça, o que fez notar que ela não analisava as próprias mãos para que seguisse as notas ou estudar seus próprios movimentos. Apertou os olhos enquanto se levantava e se aproximava do piano. parecia imersa demais na canção para se incomodar. Seu rosto permanecia inexpressivo, sem caretas de concentração ou esforço. Não tinha qualquer trabalho em recordar-se, fosse mecanicamente ou não, da partitura da canção.
— É minha sinfonia preferida. Ele escreveu quando era dez anos mais novo que eu.
ficou de pé, com as mãos nos bolsos, ao lado de . Todo o desconforto que ela parecia sentir de sua presença esvaiu-se quando se sentou ao piano. Ainda assim, quando ele se aproximou demais, ela desviou o olhar para o lado, para os pés de , sem deixar de tocar. Ele recuou, permanecendo na distância que ela considerou aceitável.
— Demorei dois anos até conseguir tocá-la sem erros.
— Não usa partituras?
— Decorei a maioria dos sonetos e sinfonias que gosto. — Deu uma risada baixa, quase irônica. — Passo todos os dias tocando.
— Também compõe?
Pareceu ignorar a pergunta de , pois continuou tocando até o final do movimento. Assim que terminou, as mãos repousaram em seu colo.
— Minhas partituras estão no escritório. E estou quase atrasada para a igreja.
Ficou de pé sem arrastar o banco e foi em direção às escadas.
— Se quiser, não precisa me acompanhar à igreja, se o ambiente não for agradá-lo.
Já estava subindo as escadas quando respondeu, algo que ela imaginou ter sido calculado por ele para que ela não visse sua expressão.
— Não tenho problemas. Como disse, não sou cristão, mas não me incomodo com igrejas. Espero que isso não incomode você.
Estremeceu. com certeza tinha notado que preferia não o deixar sozinho no solar. Não poderia saber que tipo de coisa ele faria enquanto ela estivesse longe. Não, de modo algum; precisava ficar próxima da casa. E, se precisasse ir embora, ele teria que acompanhá-la.
Seu escritório ficava no caminho de seu quarto. Com cuidado para não fazer barulho, fechou a porta e a trancou com a chave que mantinha do lado de dentro da fechadura. Não era seu costume trancar o escritório, mas não sabia disso. Por enquanto, não custava nada remediar.
Pegou um casaco em seu cabideiro, mesmo sabendo que tinha um na antessala. Voltou depressa para as escadas e diminuiu a velocidade ao descê-las.
— Estou pronta — anunciou. Olhou para , sentado no piano. Seu coração apertou-se por um instante, mas relaxou logo. Não era como se seu piano estivesse imaculado desde o princípio. Desde que aceitou deixá-lo na sala, já que seria mais simples do que arrastá-lo escada acima, havia compactuado com a ideia de deixá-lo exposto.
estava sentado no banco, as mãos nas laterais do corpo, como se estudasse o que preferiria experimentar primeiro. Olhava para as teclas, para as cordas, como uma criança querendo escolher o que bater primeiro, embora houvesse certo zelar de curiosidade em seu rosto. Calculava a tecla mais apropriada, o que fez acreditar, por um instante, que também soubesse tocar piano. Mas sua crença foi derrubada quando suas grandes mãos se ergueram e, com os dedos encurvados para o ataque, caíram em cima das pequenas notas brancas. O ruído foi doloroso e violento. Era bruto, sem técnica alguma, mesmo que saísse algo melódico daquelas repetidas surras ao teclado. Ele sabia que assistia, tanto que começara a tentar tocar apenas quando ela tinha chegado ao primeiro andar. A agressão parecia crescer com o ritmo da própria canção e não conseguia reagir. Soava errado tentar interrompê-lo pois, mais uma vez, se lembrava de que não precisaria viver aquilo se tivesse insistido em subir com o piano. O chão próximo ao piano rangeu no momento em que ergueu as mãos e parou de tocar. Suspirou com satisfação e cansaço, como se a tarefa tivesse exigido enorme esforço, mas, enfim, o recompensou com o deleite de cumprir um desafio.
— Bach, invenção número 8. Realmente preciso voltar a praticar.
andou em direção à antessala em silêncio. Sentia-se como se tivesse acabado de assistir uma violação. A barriga voltou a doer como nunca doía e precisou correr em direção ao lavabo mais próximo.
— ! — gritou. Já tinha alcançado o vaso e se ajoelhou rapidamente. Quase não teve tempo de levantar a tampa quando o vômito jorrou de sua boca. Tossiu com força para expulsar o que sobrou dos resíduos e sentiu os olhos marejados pela força.
— , você está bem?
— Só um instante!
Apertou a descarga com força, a barriga doendo. A cada vez, doía mais. Imaginou que, eventualmente, a mesma dor de algumas semanas antes se repetiria. A lembrança de toda a aflição fez seu corpo apertar-se mais, angustiado pela possibilidade de tudo se repetir. Tentou não pensar nisso.
— , responda qualquer coisa! — gritava.
— Já vou sair!
Ficou de pé com pressa. Passou as costas das mãos nos olhos e abriu a torneira da pia. Com as mãos em concha, bebeu um pouco de água. Dessa vez, temeu que o remédio tivesse ido para o esgoto junto do pão e café.
Abriu a porta do lavabo ainda tonta. estava postado em frente a ela, o rosto tão inexpressivo quanto estava quando viu-o sentado à mesa do quintal. Nada passava por ele e causava alguma emoção, e estremeceu. Tinha certeza de que conhecia as feições daquele homem.
— Como você está se sentindo? — ele perguntou. Sua voz não se alterava.
— Estou bem. Vamos indo, ou vou perder a hora da confissão.
Ajoelhou-se de frente para uma pequena janela coberta. A voz do padre era como a de um médico; ainda não tinha se acostumado com o padre da cidade. Tentava ignorar a dor na barriga, que, a essa altura, se assemelhava aos pontos arrebentando e a carne abrindo-se, exposta.
— Padre Portinari.
— Sim, minha filha.
não estava por perto durante a confissão, evidentemente. Preferiu ficar próximo à porta, ansiando pela hora de ir embora dali. Desde que pisou na igreja, notara que o mesmo sorriso da noite anterior voltara.
— Há algo ruim em mim, padre. Sinto uma aura pesada, algo me dói e sinto um mal-estar frequente.
— Acredita que seja uma presença corpórea, minha filha? Alguém cuja aura esteja lhe fazendo mal?
sentiu vontade de responder o nome de , mas forçou-se a permanecer calada. Afinal, desde antes de sua chegada, tinha enjoos frequentes.
— Não sei, padre. Rezo todas as noites para que Jesus Cristo possa me livrar disso, mas, a cada dia, pareço pior.
— Anda pecando, minha filha?
A barriga pareceu chutar-lhe por dentro.
— Não, padre.
— Então — ele concluiu, com a voz um pouco mais animada — não há o que temer. Reze dez pai-nossos e dez ave-marias e se mantenha em sua vida fiel. Nada poderá atingir-lhe, minha filha. O diabo só ataca os que permitem seu ataque, os que traem Deus e o procuram. Lembre-se, minha filha, a presença do Diabo não pode ser sentida no Inferno, apenas no reino de Deus. Amém.
— Amém. Obrigada, padre. Fique com Deus.
Deixou o confessionário xingando mentalmente. Quando encontrou na porta, seu sorriso evoluíra para o deboche. Voltou com em silêncio para o solar 137.
Durante o almoço, e conversaram sobre o trabalho, algo que realmente não se importava. Tinham optado por almoçar no jardim, mas, assim que terminou seu prato, ela pediu licença e subiu para o andar superior.
Fechou a porta e correu até o violino. Posicionou-o e correu o arco por todas as cordas, as notas trocadas rapidamente, quase sem que terminassem de soar. Assim que uma começava, outra já se apressava, e seguiam-se. A última, no entanto, foi prolongada até o fim do arco, que se retrocedeu e emendou com outra nota de mesma duração. Mesmo lentas, as notas ainda tinham seu tom de desespero. Assim que terminou, uma lenta melodia ressoou pelas paredes do escritório, adormecendo todo o redor após um susto inicial. No entanto, a calma deu lugar a um crescente melódico, cada vez mais alto. As notas voltaram a se embaralhar e um solo decrescente cortou a canção repentinamente. A melodia foi cantada novamente, agora mais rápida, tentando acompanhar o crescente. Cada vez mais rápido, tentava exaustivamente impedir o caos que, por vezes, arranhava em uma das notas. Por fim, o caos e a melodia rápida uniram-se um notas tão altas que o vidro da janela se tremia. Cada voz voltava para e ela tocava-a novamente, só para lançá-la de novo ao vidro. Curiosamente, desde que começara a tocar aquela peça terrível, não olhou para suas mãos. Eventualmente, as paredes do escritório sincronizaram-se com as notas sujas e perdidas. A melodia já se sobrepunha, mesmo com a escala rápida e confusa ao fundo. Enfim, algo pareceu se casar. E, com uma interrupção abrupta da harmonia, a melodia voltou a ser a única, em corridas lentas das cerdas, extensas, quase preguiçosas. A voz esticava-se e a alteração de notas era ínfima.
E, no final, três notas rápidas lhe fugiram. Mesmo que aceitassem estar atrás, não poderiam deixar de lembrar que estavam ali. Afinal, nada teria nascido se não fossem elas.
Só isso. Em um único suspiro, sem pensar, foi invadida pelos deuses que permitiram que ela criasse algo tão perfeito.
abaixou o violino com um suspiro de alívio. Suava em seu pescoço e o violino parecia acompanhar sua pulsação. Precisava de oxigênio, então abrir as janelas ou a porta seria o mais adequado. No entanto, preferiu apenas sentar-se no pequeno divã que tinha apoiado na parede. O papel de parede do escritório era rosa. Deitou-se contra ele e deixou que acompanhasse seus batimentos. Quando finalmente voltou a respirar com calma, sorriu.
Talvez algo de bom viera daquele estrangeiro odioso. Até ficou feliz em não ter gravado aquela peça; os conservatórios e companhias não costumavam gostar de peças tão primitivas. Mas seu conceito era muito bom para ser desperdiçado, então procurou alguma partitura vazia e anotou algumas palavras-chave. Talvez servisse bem com um quarteto de cordas, mas o piano poderia abrir e fechar a canção.
Poderia ter uma peça até o final da semana. E, assim que fosse embora, enviaria ela para alguma companhia. Só esperou que conseguiria receber a inspiração que precisasse, mesmo que fosse necessário ficar mais tempo na presença de .
Parte III
Quando já se aproximava da hora do jantar, desceu as escadas pé ante pé. Já estava escurecendo, então a luz alaranjada que passava pela janela da sala de estar era insuficiente para iluminar tudo de forma satisfatória. Precisou acender a luz de uma das luminárias, como costumava fazer.
Olhou de lado, esperando ser discreta, para o jardim. Podia ver, do portal da sala de estar, a cozinha, parte da sala de jantar e todo o quintal. estava deitado no chão, ao lado da piscina, com apenas seus shorts de banho e óculos escuros. A camiseta cinza estava ao seu lado, no concreto, mas ele parecia estar muito preso à sua leitura para perceber que o olhava. Seus cabelos já estavam desalinhados e tinha as sobrancelhas franzidas pela atenção.
O piano estava no mesmo lugar de sempre. Conferiu mais uma vez se estava prestando atenção no livro, ainda que isso fosse inútil.
Venha, .
Antes que saísse novamente para o trabalho, chegou a falar com ele que estava com um novo projeto. Ele perguntou a temática e ela disse que era a perda. se animou, mas disse que ela deveria completar a peça primeiro, para que ele a ouvisse já completa.
Então, desceu as escadas e encontrou seu piano no canto da sala. Sentou-se em silêncio e esperou algum som que indicasse que se aproximava. Sabia que ele logo apareceria, mas se pelo menos já tivesse começado a tocar, seria mais fácil. Ergueu a tampa e tentou reproduzir o que tinha tocado no escritório.
As primeiras notas saíram tão rápidas quanto antes, mas certamente eram mais soantes. A escala parecia um pouco mais ordenada. Não interrompeu a canção e se apressou para a parte em que as notas se prolongavam. Neste momento, então, estava horrível: a nota não era longa o suficiente e precisava do som arranhado do violino. Decidiu que seria melhor usar o piano apenas mais adiante. Seguiu até o meio da canção, enquanto olhava para um quadro na parede.
Tinha um quadrinho de na parede, ao lado de uma ilustração de uma borboleta.
Não se lembrava da existência daquele quadrinho. Muito menos da borboleta. E ela estava bem mais alta do que uma harmonia visual permitiria.
Tentou olhar para suas próprias mãos. O caminho até o trecho em que o piano se encaixava era longo e não podia pular nada. Conhecia musicistas (na verdade, aspirantes) que insistiam em deixar buracos em suas partituras para que voltassem a eles depois. Besteira. O trecho que falta nunca vai ser do tamanho que você constrói. A obra toda se desfaz.
A peça deve ser do tamanho da fissura.
A barriga doía. Fez uma careta enquanto mantinha os olhos apontados para suas mãos. Mas aquele quadrinho acima de sua cabeça estava tão errado que precisava ser olhado.
. Um vestido rosa. Contra a luz da janela, atrás da bancada da cozinha, a sombra do monstro se projetando como se fosse engolir o chão, a pia, a comida ainda crua.
Olhe para baixo.
A sombra invadia a luz como se esta fosse a invasora. Mandava que saísse, expulsava-a com um pedido singelo e a voz macia. Apertava e se agarrava às paredes vermelhas, arrancando-lhe o sangue.
Não, por favor, me deixe ficar. Eu juro que serei bonzinho.
Apertou os olhos, ainda olhando para a fotografia. As sombras do anoitecer subiam pelas paredes.
Não me tire daqui. É a minha casa.
Apertou os olhos e notou que socava as teclas.
Saia. Saia. Você é um corpo estranho, um vírus.
É a minha casa!
Sabia que estava na sala. Sabia que ele a ouvia bater nas teclas em uma melodia tão bela que só ouviu antes nos seus momentos de maior deleite.
Você não é o pedregulho, .
A barriga voltou a doer. Mas sentia que ela se apertava em sintonia com o piano.
A agressão tornava-se mais lenta. Seus dedos calejados pulsavam, a respiração ofegava, descompassada com o coração que se apertava.
Havia sangue, muito sangue, e isso era estranhamente prazeroso.
Terminou a canção. estava atrás dela. Podia sentir ele respirar contra seu couro cabeludo, ouvir seu coração bater com calma e sua pele tremer. Abaixou a cabeça em total exaustão.
Retraiu-se por um segundo. A respiração foi cortada, e tinha certeza de que seu coração explodiria.
— Está tensa. O que a aflige?
Sua voz era extremamente diferente da de . Por algum motivo que não conseguiria precisar, a voz de parecia ser propositalmente amaciada, enquanto a de era crua. Talvez tão crua como sua forma de comer.
Respirou fundo. O estrangeiro, o invasor, o vírus.
— Estou compondo.
— E não compõe faz tempo.
Sua voz a massageava com tanto afeto que não conseguia evitar respondê-lo.
— Desde que me mudei. Essa vai ser minha obra-prima. Minha sinfonia 25.
— Como você vai chamá-la?
Suspirou.
— Trisífone.
— Toque novamente. Para mim.
Abriu os olhos em susto e fechou a tampa rapidamente. Ele recuou e apoiou o corpo contra a parede. Ela ficou de pé e esticou o vestido assim que virou o corpo de frente para .
— Não deveria ter tocado — murmurou, o rosto avermelhado.
sorriu. Cambaleava entre o simpático e o provocador.
— É uma bela música.
— Não devo tocá-la enquanto ela está incompleta.
Ele deu de ombros e deixou a sala a passos largos. puxou fortemente o ar e pôs a mão contra o tórax. Olhou para o quadrinho e desistiu de tirá-lo dali.
Trisífone. Correu para o banheiro e começou a chorar. Rezou para Deus que, se ele estivesse ouvindo-a, e estava, livrasse seu corpo e mente de toda aquela sujeira. Tanto a sujeira a qual tinha se proposto a fazer, quanto a que acabara de causar.
Nunca tinha deixado ninguém a ouvir tocar algo incompleto. Era um processo tão íntimo que não poderia expor.
Ainda assim, você sabia que ele estava ouvindo, e que ele estava na sala. Você sabia que não precisava tocar o piano, que poderia continuar com o violino e o violoncelo.
Apertou os olhos e deixou-se chorar. Você permitiu isso. Permitiu essa invasão. Da última vez, expulsou seu estrangeiro, mas e agora?
Não, agora você não quer expulsá-lo. Porque ele a ouviu tocar.
Não era exatamente isso o que você queria?
Quando chegou, e não trocaram um único olhar. E, pouco antes de dormir, ajoelhou-se perante Jesus sob tortura para que Ele expulsasse novamente aquela coisa que insistia em invadir. Levantou-se e respirou fundo para dizer:
— , precisamos conversar.
Estava de pé ao lado da cama. Ele provavelmente abriria um sorriso pela frase, mas o tom da voz dela o deixou apreensivo e até um pouco irritado.
— Tem algo estranho nele, .
— Em ? — ele perguntou com pouco interesse.
— Ele parece estar sempre me observando, observando a casa. Sempre parece estar procurando algum tipo de detalhe, uma ranhura ou uma fresta. Como se quisesse memorizar cada parte da casa. E ri!
deu uma risada alta.
— Você está enlouquecendo, . Todos nossos amigos fizeram o mesmo quando vieram na semana passada. só está curioso por conta do tamanho do solar. E porque você o decorou muito bem.
Tentou tocar sua cintura. Ela desviou o corpo de sua mão e passou por para chegar até o banheiro.
— Aquela foto. Em cima do piano. Você quem colocou lá?
— Que foto, ?
Soava impaciente o suficiente para que se retraísse.
— A minha foto em cima do piano, ao lado de um maldito quadrinho de borboleta. Uma foto minha.
suspirou. Sentou-se na cama. imaginou que ele esperava que ela fosse se aproximar para afagá-lo. Era comum dele: fazia algo de errado como se esperasse a reação dela para confirmar se era de fato errado. E como frequentemente era, encolhia-se na cama aguardando seu perdão. cruzou os braços.
— Desculpe. Eu gosto tanto daquela foto...
Percebeu que ele chorava. Resistiu em se aproximar e abraçá-lo.
— Suma com aquela foto.
— O dia que você acordou... Que você foi ao banheiro e começou a gritar, porque tinha sangue, muito sangue...
— , suma com aquela foto.
— E no hospital, você não chorava mais. Estava em silêncio, perfeito silêncio. Porque eu sabia que você precisava guardar suas lágrimas. Você é uma mulher tão forte, .
Ergueu os braços. Relutante, enfiou-se entre eles. Mesmo que não fosse uma mulher pequena, era grande o suficiente para que a envolvesse por completo. Encolheu-se, a cabeça abaixada com o queixo tocando seu tórax, os braços dobrados na frente do peito. suspirou e acariciou-a nas costas. podia ouvir seu coração, que batia bem mais forte que o dela.
— não vai ficar aqui por muito tempo, . Por favor, compreenda isso.
Engoliu em seco e assentiu em silêncio. Deitou-se e custou a dormir.
Lembrava-se de como a tratava enquanto ela carregava. Os meses em que ela ficava em casa sozinha pareciam inexistentes, já que ele ficava bem mais tempo em casa. Tirava fotos posadas, ajudava-a na cozinha. tocava sua barriga e algo a tocava de volta, como uma resposta de que sim, estava tudo bem. Tudo sob controle, pode continuar.
Então, os chutes ficaram cada vez mais frequentes, ao ponto de atingir o insuportável. dizia que aquilo era comum, que faltava pouco para eles verem o rosto daquela menininha. Cerca de três meses.
tocava a própria barriga, mas não sentia nada além dos pés daquela coisa.
Comia, mas nada entrava além do que iria nutrir aquela coisa.
Ela rejeitava o violino, o violoncelo, o piano, a harpa e o violão.
Olhava-se no espelho e via uma mulher de verdade. E sentia a barriga doer. Doía como agora, mas, naquele dia, era uma dor prazerosa. Sentia-se expurgada.
— Livre-se daquela foto, .
Na manhã seguinte, deu-se ao luxo de acordar um pouco mais tarde. Faltavam dois dias para partir. Ainda que desprezasse sua presença, tinha a incômoda impressão de que só conseguiria compor sua peça na presença dele.
Desceu as escadas para pegar um pouco de café, mas subiu logo depois. Foi até seu escritório e quase derrubou a caneca ao ver seu violino em cima do divã, fora do apoio. Correu até ele e o segurou nos braços, passando as mãos por toda sua caixa. Nada além de poucos arranhões, nada grave. Sentiu o sangue esquentar ao constatar que não havia quebrado.
Voltou para o primeiro andar com o violino e o arco nas mãos, marchando para o quintal. ainda lia o mesmo livro, deitado na borda da piscina. Um de seus pés tinha a canela toda mergulhada na água.
— Você entrou no meu escritório? — ela gritou, erguendo o violino, de dentro da cozinha.
olhou para o lado com os olhos apertados.
— O quê?
— Você entrou no meu escritório?
— Não, não entrei — respondeu com confusão.
— Meu violino não estava na base dele.
suspirou. Levantou o corpo e vestiu a camiseta ao seu lado.
— Não se dê o trabalho. Vou subir. Só quero saber se você entrou no meu escritório.
Todo o medo e tensão que sentia ao se aproximar de desapareceram junto da foto em cima do piano.
— Seu violino estava caído no chão quando eu passei pelo escritório — gritou com desinteresse. — Coloquei ele no divã e conferi se não estava quebrado.
Pensou um pouco. Como o violino poderia ter caído da base, pregado à parede? E por que colocá-lo no divã e não de volta na base?
— Não entre no meu escritório, por favor. — Tentou amansar a voz. — Vou trabalhar.
Subiu as escadas novamente e tentou repassar a canção no violino. O rearranjo não era em si tão complicado, ao menos não tanto quanto se concentrar. Tinha certeza de que estava ali, do lado de fora da porta, parado no corredor, tentando ouvi-la. Imaginava-o com uma camiseta branca, no estilo de Marlon Brando, apoiado na parede do corredor e com a mesma careta sarcástica. Se fosse até o corredor e o flagrasse ali, provavelmente ele nem se daria ao trabalho de justificar-se com uma desculpa.
Tentou reproduzir algo semelhante ao que fizera no piano, no dia anterior. Nada parecia corresponder. Deveria soar um pouco mais regulado do que sua experimentação no dia anterior, já que a música deveria ser compreensível a qualquer ouvinte, não apenas ela própria, mas o conceito já pedia certa perturbação. Não conseguia atingir o balanço perfeito entre essas duas extremidades, e sabia que era por conta da presença de do outro lado da parede.
Com o violino posicionado para trabalhar, as notas mais rápidas escapavam quando deveria trocá-las, produzindo um ruído de escorregão quase primitivo. As cerdas escorregaram em um pigarro de asco quando desistiu e foi até a porta. Girou a chave e deixou aberta com uma fresta de um palmo de distância. Voltou para o centro do escritório com o rosto erguido, em resposta às perturbações de .
Devolveu o violino ao ombro. Não sabia dizer exatamente o que tinha em que a deixava alerta, mas devia ser algo em sua vulgaridade primitiva junto a um extremo de elegância, que nem parecia conseguir se igualar. Enquanto — e a própria — passavam horas esforçando-se para manter a postura na frente das pessoas, para apenas relaxar entre quatro paredes, parecia fazer o contrário. Não parecia ter qualquer problema em preservar uma imagem mesmo quando exposto. Seu estado natural de relaxamento era a exposição.
era um homem para ser posto em uma vitrine. começou a correr as cerdas pelas cordas do violino com avidez, os olhos fechados. As paredes do escritório pareciam mais próximas, pois podia sentir elas vibrando em sua nuca, braços e até em seus pés. A porta aberta era um desafio para finalmente se mostrar. Quando finalmente terminou de gravar a canção, caminhou em silêncio até a porta e a abriu subitamente. Colocou a cabeça para fora e se decepcionou ao ver o corredor vazio.
Ainda com o violino nas mãos, foi para um dos quartos do segundo andar cuja janela apontava para a piscina e o jardim. Tomou cuidado para que não a visse dali, caso ele ainda estivesse ao lado da piscina. Em silêncio e devagar, deixou o rosto aparecer pela janela ao procurá-lo. já tinha se levantado da borda da piscina, mas não tinha ido longe: estava no jardim, vestido como previra, analisando as flores. Estava de pé e de perfil em relação à janela, o corpo ereto enquanto uma de suas mãos passava pelas flores. Quase não as tocava. apertou os olhos para tentar observar com mais detalhes o que tanto o prendia naquelas flores.
escolheu uma orquídea lilás como objeto de atenção. Seu rosto não se alterava do completo desinteresse, mesmo que sua mão dissesse o contrário. Inclinou o rosto para perto da flor e passou o nariz por suas pétalas. O cheiro devia ser extasiante, já que tomou alguns segundos imóvel para admirá-lo. Afastou o rosto da flor, mas ainda a observava quando seu polegar e indicador massagearam uma de suas pétalas. Parecia querer alguma reação. , instintivamente, inclinou o corpo para frente. Os dedos de esfregavam as pétalas da flor com força, ameaçando puxá-las, mas sempre retornando ao zelo inicial. Ela conhecia bem a forma com que tocava nas flores: mal as acariciava, passava as mãos por elas como se fosse o vento que, por vezes, as incomodava. Seu interesse era exclusivo em sua aparência. preferia, evidentemente, sua textura e seu perfume. Seus dedos eram mais lentos e violentos ao chegar ao miolo da flor e inclinou-se novamente para cheirá-la. Ao recuar, a mão parou. A flor estava tão destruída que concordou quando ele a arrancou do jardim. De fato, uma flor degradada e gasta quebrava a imagem de outras flores tão pueris.
tomou mais alguns instantes imóvel, ereto. Pareceu respirar fundo, como se tivesse acabado de passar por um momento de extrema satisfação, e voltou a andar até a piscina. Tinha as mãos nos bolsos e a cabeça apontada levemente para baixo. Pegou o livro no chão e se deitou, exatamente como estava antes, o livro em uma das mãos, aberto, e a outra mão embaixo de sua cabeça. Olhou para a janela em que estava e acenou.
Ela assentiu em resposta. Entendeu que não poderia contar a ninguém o que tinha visto. Era algo íntimo, uma resposta pelo que ele teria presenciado no dia anterior. Estremeceu e teve vontade de chorar. Voltou para o escritório e, com a porta trancada à chave por dentro, tocou uma música no violino. Era lenta, as notas estendiam-se até o fim do arco. Com poucas variações, sua sinfonia baixa não escapava pelos vãos da porta. Sequer parecia escapar do violino. Quando terminou, escreveu-a em uma partitura e jogou em um canto da escrivaninha.
Foi para seu quarto em silêncio. Novamente trancou a porta e se ajoelhou diante da cruz.
— Meu Deus — murmurou, entre pigarros. — Meu Deus, por favor.
Tossiu baixo, as mãos unidas e olhando para a cruz.
— Por favor, não me permita essa invasão. Me dê forças para expulsar essa coisa, me dê energias para resistir à fraqueza, à ansiedade, me dê Sua benção para que eu acredite ser maior que tudo que me mandam para testar minha fé no Senhor. Por favor, não me abandone, meu Deus. Me proteja e me guie com juízo, meu Deus.
Fez o sinal da cruz.
— Amém.
Recompôs-se no banheiro e desceu para a cozinha. Precisava preparar o almoço, já iria chegar.
Olhou de lado, esperando ser discreta, para o jardim. Podia ver, do portal da sala de estar, a cozinha, parte da sala de jantar e todo o quintal. estava deitado no chão, ao lado da piscina, com apenas seus shorts de banho e óculos escuros. A camiseta cinza estava ao seu lado, no concreto, mas ele parecia estar muito preso à sua leitura para perceber que o olhava. Seus cabelos já estavam desalinhados e tinha as sobrancelhas franzidas pela atenção.
O piano estava no mesmo lugar de sempre. Conferiu mais uma vez se estava prestando atenção no livro, ainda que isso fosse inútil.
Venha, .
Antes que saísse novamente para o trabalho, chegou a falar com ele que estava com um novo projeto. Ele perguntou a temática e ela disse que era a perda. se animou, mas disse que ela deveria completar a peça primeiro, para que ele a ouvisse já completa.
Então, desceu as escadas e encontrou seu piano no canto da sala. Sentou-se em silêncio e esperou algum som que indicasse que se aproximava. Sabia que ele logo apareceria, mas se pelo menos já tivesse começado a tocar, seria mais fácil. Ergueu a tampa e tentou reproduzir o que tinha tocado no escritório.
As primeiras notas saíram tão rápidas quanto antes, mas certamente eram mais soantes. A escala parecia um pouco mais ordenada. Não interrompeu a canção e se apressou para a parte em que as notas se prolongavam. Neste momento, então, estava horrível: a nota não era longa o suficiente e precisava do som arranhado do violino. Decidiu que seria melhor usar o piano apenas mais adiante. Seguiu até o meio da canção, enquanto olhava para um quadro na parede.
Tinha um quadrinho de na parede, ao lado de uma ilustração de uma borboleta.
Não se lembrava da existência daquele quadrinho. Muito menos da borboleta. E ela estava bem mais alta do que uma harmonia visual permitiria.
Tentou olhar para suas próprias mãos. O caminho até o trecho em que o piano se encaixava era longo e não podia pular nada. Conhecia musicistas (na verdade, aspirantes) que insistiam em deixar buracos em suas partituras para que voltassem a eles depois. Besteira. O trecho que falta nunca vai ser do tamanho que você constrói. A obra toda se desfaz.
A peça deve ser do tamanho da fissura.
A barriga doía. Fez uma careta enquanto mantinha os olhos apontados para suas mãos. Mas aquele quadrinho acima de sua cabeça estava tão errado que precisava ser olhado.
. Um vestido rosa. Contra a luz da janela, atrás da bancada da cozinha, a sombra do monstro se projetando como se fosse engolir o chão, a pia, a comida ainda crua.
Olhe para baixo.
A sombra invadia a luz como se esta fosse a invasora. Mandava que saísse, expulsava-a com um pedido singelo e a voz macia. Apertava e se agarrava às paredes vermelhas, arrancando-lhe o sangue.
Não, por favor, me deixe ficar. Eu juro que serei bonzinho.
Apertou os olhos, ainda olhando para a fotografia. As sombras do anoitecer subiam pelas paredes.
Não me tire daqui. É a minha casa.
Apertou os olhos e notou que socava as teclas.
Saia. Saia. Você é um corpo estranho, um vírus.
É a minha casa!
Sabia que estava na sala. Sabia que ele a ouvia bater nas teclas em uma melodia tão bela que só ouviu antes nos seus momentos de maior deleite.
Você não é o pedregulho, .
A barriga voltou a doer. Mas sentia que ela se apertava em sintonia com o piano.
A agressão tornava-se mais lenta. Seus dedos calejados pulsavam, a respiração ofegava, descompassada com o coração que se apertava.
Havia sangue, muito sangue, e isso era estranhamente prazeroso.
Terminou a canção. estava atrás dela. Podia sentir ele respirar contra seu couro cabeludo, ouvir seu coração bater com calma e sua pele tremer. Abaixou a cabeça em total exaustão.
Retraiu-se por um segundo. A respiração foi cortada, e tinha certeza de que seu coração explodiria.
— Está tensa. O que a aflige?
Sua voz era extremamente diferente da de . Por algum motivo que não conseguiria precisar, a voz de parecia ser propositalmente amaciada, enquanto a de era crua. Talvez tão crua como sua forma de comer.
Respirou fundo. O estrangeiro, o invasor, o vírus.
— Estou compondo.
— E não compõe faz tempo.
Sua voz a massageava com tanto afeto que não conseguia evitar respondê-lo.
— Desde que me mudei. Essa vai ser minha obra-prima. Minha sinfonia 25.
— Como você vai chamá-la?
Suspirou.
— Trisífone.
— Toque novamente. Para mim.
Abriu os olhos em susto e fechou a tampa rapidamente. Ele recuou e apoiou o corpo contra a parede. Ela ficou de pé e esticou o vestido assim que virou o corpo de frente para .
— Não deveria ter tocado — murmurou, o rosto avermelhado.
sorriu. Cambaleava entre o simpático e o provocador.
— É uma bela música.
— Não devo tocá-la enquanto ela está incompleta.
Ele deu de ombros e deixou a sala a passos largos. puxou fortemente o ar e pôs a mão contra o tórax. Olhou para o quadrinho e desistiu de tirá-lo dali.
Trisífone. Correu para o banheiro e começou a chorar. Rezou para Deus que, se ele estivesse ouvindo-a, e estava, livrasse seu corpo e mente de toda aquela sujeira. Tanto a sujeira a qual tinha se proposto a fazer, quanto a que acabara de causar.
Nunca tinha deixado ninguém a ouvir tocar algo incompleto. Era um processo tão íntimo que não poderia expor.
Ainda assim, você sabia que ele estava ouvindo, e que ele estava na sala. Você sabia que não precisava tocar o piano, que poderia continuar com o violino e o violoncelo.
Apertou os olhos e deixou-se chorar. Você permitiu isso. Permitiu essa invasão. Da última vez, expulsou seu estrangeiro, mas e agora?
Não, agora você não quer expulsá-lo. Porque ele a ouviu tocar.
Não era exatamente isso o que você queria?
Quando chegou, e não trocaram um único olhar. E, pouco antes de dormir, ajoelhou-se perante Jesus sob tortura para que Ele expulsasse novamente aquela coisa que insistia em invadir. Levantou-se e respirou fundo para dizer:
— , precisamos conversar.
Estava de pé ao lado da cama. Ele provavelmente abriria um sorriso pela frase, mas o tom da voz dela o deixou apreensivo e até um pouco irritado.
— Tem algo estranho nele, .
— Em ? — ele perguntou com pouco interesse.
— Ele parece estar sempre me observando, observando a casa. Sempre parece estar procurando algum tipo de detalhe, uma ranhura ou uma fresta. Como se quisesse memorizar cada parte da casa. E ri!
deu uma risada alta.
— Você está enlouquecendo, . Todos nossos amigos fizeram o mesmo quando vieram na semana passada. só está curioso por conta do tamanho do solar. E porque você o decorou muito bem.
Tentou tocar sua cintura. Ela desviou o corpo de sua mão e passou por para chegar até o banheiro.
— Aquela foto. Em cima do piano. Você quem colocou lá?
— Que foto, ?
Soava impaciente o suficiente para que se retraísse.
— A minha foto em cima do piano, ao lado de um maldito quadrinho de borboleta. Uma foto minha.
suspirou. Sentou-se na cama. imaginou que ele esperava que ela fosse se aproximar para afagá-lo. Era comum dele: fazia algo de errado como se esperasse a reação dela para confirmar se era de fato errado. E como frequentemente era, encolhia-se na cama aguardando seu perdão. cruzou os braços.
— Desculpe. Eu gosto tanto daquela foto...
Percebeu que ele chorava. Resistiu em se aproximar e abraçá-lo.
— Suma com aquela foto.
— O dia que você acordou... Que você foi ao banheiro e começou a gritar, porque tinha sangue, muito sangue...
— , suma com aquela foto.
— E no hospital, você não chorava mais. Estava em silêncio, perfeito silêncio. Porque eu sabia que você precisava guardar suas lágrimas. Você é uma mulher tão forte, .
Ergueu os braços. Relutante, enfiou-se entre eles. Mesmo que não fosse uma mulher pequena, era grande o suficiente para que a envolvesse por completo. Encolheu-se, a cabeça abaixada com o queixo tocando seu tórax, os braços dobrados na frente do peito. suspirou e acariciou-a nas costas. podia ouvir seu coração, que batia bem mais forte que o dela.
— não vai ficar aqui por muito tempo, . Por favor, compreenda isso.
Engoliu em seco e assentiu em silêncio. Deitou-se e custou a dormir.
Lembrava-se de como a tratava enquanto ela carregava. Os meses em que ela ficava em casa sozinha pareciam inexistentes, já que ele ficava bem mais tempo em casa. Tirava fotos posadas, ajudava-a na cozinha. tocava sua barriga e algo a tocava de volta, como uma resposta de que sim, estava tudo bem. Tudo sob controle, pode continuar.
Então, os chutes ficaram cada vez mais frequentes, ao ponto de atingir o insuportável. dizia que aquilo era comum, que faltava pouco para eles verem o rosto daquela menininha. Cerca de três meses.
tocava a própria barriga, mas não sentia nada além dos pés daquela coisa.
Comia, mas nada entrava além do que iria nutrir aquela coisa.
Ela rejeitava o violino, o violoncelo, o piano, a harpa e o violão.
Olhava-se no espelho e via uma mulher de verdade. E sentia a barriga doer. Doía como agora, mas, naquele dia, era uma dor prazerosa. Sentia-se expurgada.
— Livre-se daquela foto, .
Na manhã seguinte, deu-se ao luxo de acordar um pouco mais tarde. Faltavam dois dias para partir. Ainda que desprezasse sua presença, tinha a incômoda impressão de que só conseguiria compor sua peça na presença dele.
Desceu as escadas para pegar um pouco de café, mas subiu logo depois. Foi até seu escritório e quase derrubou a caneca ao ver seu violino em cima do divã, fora do apoio. Correu até ele e o segurou nos braços, passando as mãos por toda sua caixa. Nada além de poucos arranhões, nada grave. Sentiu o sangue esquentar ao constatar que não havia quebrado.
Voltou para o primeiro andar com o violino e o arco nas mãos, marchando para o quintal. ainda lia o mesmo livro, deitado na borda da piscina. Um de seus pés tinha a canela toda mergulhada na água.
— Você entrou no meu escritório? — ela gritou, erguendo o violino, de dentro da cozinha.
olhou para o lado com os olhos apertados.
— O quê?
— Você entrou no meu escritório?
— Não, não entrei — respondeu com confusão.
— Meu violino não estava na base dele.
suspirou. Levantou o corpo e vestiu a camiseta ao seu lado.
— Não se dê o trabalho. Vou subir. Só quero saber se você entrou no meu escritório.
Todo o medo e tensão que sentia ao se aproximar de desapareceram junto da foto em cima do piano.
— Seu violino estava caído no chão quando eu passei pelo escritório — gritou com desinteresse. — Coloquei ele no divã e conferi se não estava quebrado.
Pensou um pouco. Como o violino poderia ter caído da base, pregado à parede? E por que colocá-lo no divã e não de volta na base?
— Não entre no meu escritório, por favor. — Tentou amansar a voz. — Vou trabalhar.
Subiu as escadas novamente e tentou repassar a canção no violino. O rearranjo não era em si tão complicado, ao menos não tanto quanto se concentrar. Tinha certeza de que estava ali, do lado de fora da porta, parado no corredor, tentando ouvi-la. Imaginava-o com uma camiseta branca, no estilo de Marlon Brando, apoiado na parede do corredor e com a mesma careta sarcástica. Se fosse até o corredor e o flagrasse ali, provavelmente ele nem se daria ao trabalho de justificar-se com uma desculpa.
Tentou reproduzir algo semelhante ao que fizera no piano, no dia anterior. Nada parecia corresponder. Deveria soar um pouco mais regulado do que sua experimentação no dia anterior, já que a música deveria ser compreensível a qualquer ouvinte, não apenas ela própria, mas o conceito já pedia certa perturbação. Não conseguia atingir o balanço perfeito entre essas duas extremidades, e sabia que era por conta da presença de do outro lado da parede.
Com o violino posicionado para trabalhar, as notas mais rápidas escapavam quando deveria trocá-las, produzindo um ruído de escorregão quase primitivo. As cerdas escorregaram em um pigarro de asco quando desistiu e foi até a porta. Girou a chave e deixou aberta com uma fresta de um palmo de distância. Voltou para o centro do escritório com o rosto erguido, em resposta às perturbações de .
Devolveu o violino ao ombro. Não sabia dizer exatamente o que tinha em que a deixava alerta, mas devia ser algo em sua vulgaridade primitiva junto a um extremo de elegância, que nem parecia conseguir se igualar. Enquanto — e a própria — passavam horas esforçando-se para manter a postura na frente das pessoas, para apenas relaxar entre quatro paredes, parecia fazer o contrário. Não parecia ter qualquer problema em preservar uma imagem mesmo quando exposto. Seu estado natural de relaxamento era a exposição.
era um homem para ser posto em uma vitrine. começou a correr as cerdas pelas cordas do violino com avidez, os olhos fechados. As paredes do escritório pareciam mais próximas, pois podia sentir elas vibrando em sua nuca, braços e até em seus pés. A porta aberta era um desafio para finalmente se mostrar. Quando finalmente terminou de gravar a canção, caminhou em silêncio até a porta e a abriu subitamente. Colocou a cabeça para fora e se decepcionou ao ver o corredor vazio.
Ainda com o violino nas mãos, foi para um dos quartos do segundo andar cuja janela apontava para a piscina e o jardim. Tomou cuidado para que não a visse dali, caso ele ainda estivesse ao lado da piscina. Em silêncio e devagar, deixou o rosto aparecer pela janela ao procurá-lo. já tinha se levantado da borda da piscina, mas não tinha ido longe: estava no jardim, vestido como previra, analisando as flores. Estava de pé e de perfil em relação à janela, o corpo ereto enquanto uma de suas mãos passava pelas flores. Quase não as tocava. apertou os olhos para tentar observar com mais detalhes o que tanto o prendia naquelas flores.
escolheu uma orquídea lilás como objeto de atenção. Seu rosto não se alterava do completo desinteresse, mesmo que sua mão dissesse o contrário. Inclinou o rosto para perto da flor e passou o nariz por suas pétalas. O cheiro devia ser extasiante, já que tomou alguns segundos imóvel para admirá-lo. Afastou o rosto da flor, mas ainda a observava quando seu polegar e indicador massagearam uma de suas pétalas. Parecia querer alguma reação. , instintivamente, inclinou o corpo para frente. Os dedos de esfregavam as pétalas da flor com força, ameaçando puxá-las, mas sempre retornando ao zelo inicial. Ela conhecia bem a forma com que tocava nas flores: mal as acariciava, passava as mãos por elas como se fosse o vento que, por vezes, as incomodava. Seu interesse era exclusivo em sua aparência. preferia, evidentemente, sua textura e seu perfume. Seus dedos eram mais lentos e violentos ao chegar ao miolo da flor e inclinou-se novamente para cheirá-la. Ao recuar, a mão parou. A flor estava tão destruída que concordou quando ele a arrancou do jardim. De fato, uma flor degradada e gasta quebrava a imagem de outras flores tão pueris.
tomou mais alguns instantes imóvel, ereto. Pareceu respirar fundo, como se tivesse acabado de passar por um momento de extrema satisfação, e voltou a andar até a piscina. Tinha as mãos nos bolsos e a cabeça apontada levemente para baixo. Pegou o livro no chão e se deitou, exatamente como estava antes, o livro em uma das mãos, aberto, e a outra mão embaixo de sua cabeça. Olhou para a janela em que estava e acenou.
Ela assentiu em resposta. Entendeu que não poderia contar a ninguém o que tinha visto. Era algo íntimo, uma resposta pelo que ele teria presenciado no dia anterior. Estremeceu e teve vontade de chorar. Voltou para o escritório e, com a porta trancada à chave por dentro, tocou uma música no violino. Era lenta, as notas estendiam-se até o fim do arco. Com poucas variações, sua sinfonia baixa não escapava pelos vãos da porta. Sequer parecia escapar do violino. Quando terminou, escreveu-a em uma partitura e jogou em um canto da escrivaninha.
Foi para seu quarto em silêncio. Novamente trancou a porta e se ajoelhou diante da cruz.
— Meu Deus — murmurou, entre pigarros. — Meu Deus, por favor.
Tossiu baixo, as mãos unidas e olhando para a cruz.
— Por favor, não me permita essa invasão. Me dê forças para expulsar essa coisa, me dê energias para resistir à fraqueza, à ansiedade, me dê Sua benção para que eu acredite ser maior que tudo que me mandam para testar minha fé no Senhor. Por favor, não me abandone, meu Deus. Me proteja e me guie com juízo, meu Deus.
Fez o sinal da cruz.
— Amém.
Recompôs-se no banheiro e desceu para a cozinha. Precisava preparar o almoço, já iria chegar.
Parte IV
O almoço seguiu exatamente como no dia anterior, o que sugeriu, ainda bem, uma atmosfera de rotina. Assim que terminou de comer, deixou as louças para lavar e acompanhou até a porta, para que pudesse subir logo depois, sem cruzar com . Encostou a porta do escritório e foi até seu violoncelo. Arrastou-o para o centro do cômodo e se sentou em uma cadeira pequena para posicioná-lo entre suas pernas. Seus tornozelos estavam próximos, mas seus joelhos apontavam para lados opostos.
O violoncelo tinha o corpo largo, mas os joelhos de encaixavam-se perfeitamente em seus vãos. A mão esquerda abraçava-o, seu corpo de madeira deitado contra seu peito. Ergueu o arco e o posicionou, com o braço do violoncelo ao lado de seu rosto. Tocou uma única nota, longa, para se preparar. Seu som era suave, mas grave e baixo, como se fizesse algo que não era permitido. Com firmeza, o dedo de pressionou a corda e passou as cerdas. Talvez soasse uma das melodias mais bonitas que já teria composto.
Aproximou mais o corpo do violoncelo. Seu seio tocou a parte de trás do corpo, roçando nele de leve, e sua bochecha tocava no braço. Deitou a cabeça para o lado e trocou a nota, os olhos fechados e as cerdas cantando vagarosa e longamente. Apertou os joelhos para manter o corpo próximo ao seu, quase prendendo-o. Sua mão começou a correr mais rápida no arco, em notas pouco variantes. Sua mão procurava o ponto perfeito, a pressão perfeita. Tremeu-a para soar com um pouco mais de distorção, uma forma quase ideal para introduzir um novo verso. Com o arco acelerando, deixou seus lábios se abrirem para admirar o som grave. Seu corpo relaxava-se nas variações de notas, com seus dedos arrastando de baixo para o topo do braço. Acariciava cada nota com cuidado, por vezes tomando o cuidado de fazê-la soar por mais tempo ao tremer o dedo.
A mão direita começou a passar pelas cordas com mais rapidez. O som passou a sair mais alto, mesmo que contido. Escapava pela fresta aberta da porta, mas a maior parte ressoava nas paredes do escritório. A própria suspirava enquanto seus dedos aumentavam a velocidade para acompanhar o arco. Trabalhavam em funções e tempos diferentes, sincronizados apenas ao se encontrarem. Os dedos corriam tanto no braço que já sabia que não os controlava. Trabalhavam sozinhos, por ordem de seu instinto auditivo. Nem sequer sentia o toque, apenas focava no som grave que aumentava de volume a cada nota.
deitou a cabeça para trás quando alcançou o trecho mais rápido da música. Suas mãos não trabalhavam para si, mesmo que pudesse senti-las cansadas. Parar era inconcebível. Aquilo estava bom demais para uma pausa abrupta. Não, deveria seguir.
Então, o ápice. A nota mais alta, mais aguda, os músculos tão rígidos que sabia que sentiria eles doendo por alguns minutos. Seus joelhos recusavam-se a ceder: abraçavam o corpo e o proibiam de fugir com a ajuda dos tornozelos. Ele deveria ficar ali até o fim. A nota soou por muitos segundos, da ponta do arco até sua base.
E, ao fim, parou. Soaria, talvez, que tivesse sido interrompida. Mas acabara ali, no máximo que sua força era capaz de alcançar. E sabia que estava perfeita. Arfava de cansaço.
Olhou para a porta. Notou algum movimento do lado de fora, mas demorou-se para conferir. Deixou suas pernas se recuperarem e devolveu o violoncelo à sua base antes de sair do escritório. estava de pé, de frente para sua cama, em frente ao escritório de . Inicialmente, pensou que ele fumava, mas notou que não havia nada em sua boca ou mãos.
— É uma ótima música — comentou, olhando para ela. — Obrigado por ter me deixado ouvir.
olhou para o que ele tinha em mãos. parecia tentar medir o peso de uma marreta, jogando-a para cima a poucos centímetros, para que caísse novamente em suas mãos. O cabo era de madeira gasta, comum em lojas de todo o país, mesmo que o bloco de metal em forma hexagonal em sua extremidade parecesse especialmente pesado. Ele passava o polegar no metal enquanto o analisava.
Estremeceu. Era uma marreta grande, e ela mesma duvidava que seria capaz de erguer algo tão pesado. Incomodou-se com o conforto de ao erguer uma arma como aquela, mesmo que soubesse que isso vinha do fato de precisar fazer demonstrações com seu produto.
— Tente — ele falou, estendendo a ferramenta.
negou com a cabeça.
— Não gosto de usar armas.
Ele riu.
— Não é uma arma, .
Jogou a marreta na mala. Com as mãos na cintura, analisou o que ainda restava em cima da cama. Todas suas roupas já estavam dentro da mala, com poucos de seus pertences esperando para serem guardados.
— Você não vai à igreja hoje? — perguntou, enquanto sentava-se ao lado da mala com os joelhos separados. A posição era semelhante a de enquanto tocava o violoncelo.
— Não. Só no domingo.
riu enquanto pegava um livro em seu criado-mudo. Era o livro que lia desde de manhã, e que não reparou que se tratava de um livro sobre crenças e cultos. Surpreendeu-se com a curiosa escolha de ; ele próprio dissera que não era religioso.
— Não terei o prazer de acompanhá-la novamente, então — comentou ele.
— Vendo que você se interessa pela palavra de Deus, estou começando a acreditar que minha companhia não tenha sido tão prazerosa.
ergueu o livro com as sobrancelhas erguidas.
— Não é sobre a palavra, mas sobre algumas crenças de alguns cultos menos conhecidos. E — acrescentou com um sorriso — sua companhia é sempre um prazer, .
— Na igreja, prefiro ficar em silêncio, .
— Você nunca está em silêncio, .
Ela franziu o cenho e cruzou os braços.
— O que quer dizer?
— Sempre está batendo em alguma mesa, dedilhando a própria perna, ou cantarolando baixo. Já notei que não parece reparar nisso, mas seu silêncio é um dos mais interessantes que conheci. É um prazer estar acompanhando-a em seu silêncio.
Sentiu o rosto ficar vermelho. desviou o olhar e jogou o livro dentro da mala.
— Como eu disse, nunca soube apreciar a melhor música.
— é suficiente em vários outros aspectos.
riu. Sua cabeça estava abaixada, mas quando ergueu-a, notou que seus olhos fundos estavam opacos. O sorriso se desfez e os olhos apertaram-se em curiosidade.
— Posso perguntar uma coisa, ?
— À vontade.
— Quantas vezes a ouve compor?
Ela deu de ombros. Seus olhos não desviavam da marreta dentro da mala. Por mais que tentasse relaxar, mantinha o corpo ereto e rígido, para qualquer ameaça de perigo eminente.
— Ele sempre as ouve.
— Não me referi às peças finalizadas. Quero saber quantas vezes ele ouviu você tocar sozinha, durante a composição.
Ela franziu o cenho e pensou um pouco na resposta.
— Eu não gosto que haja pessoas perto de mim enquanto eu componho. Atrapalha meu processo criativo. Sinto como se fossem um filtro para as coisas que penso em escrever sobre, o que me limita. Qualquer arte deve ser feita sozinho.
— Ou você só se convenceu de que ele de fato não se interessa no processo, mas no produto.
Ouviu um som de batida.
— Ele tem outras coisas para se preocupar.
— Mas você espera que ele insista em ouvi-la tocar.
Tentou retrucar algo, mas a resposta não veio tão rápido. ficou de pé e andou vagarosamente até onde ela estava.
— Você quer que ele peça para te ouvir. Não quer ter que pedir para ele. Quer que ele só abra a porta do seu escritório e fique ali, ouvindo, em silêncio.
comprimiu os lábios. estava perto demais. Era bem mais alto que ela, com as mãos nos bolsos e os olhos semicerrados observando-a de cima.
— Obrigado por ter deixado a porta aberta para mim, . Agora sei que poderei entrar sempre.
— Conte-me sobre as crenças.
recuou e deu as costas para . Pegou o livro e entregou em sua mão.
— Pode ficar. Li algumas vezes, consigo outro exemplar com facilidade.
estava tomando banho. O pequeno altar com a cruz do salvador estava um pouco acima da cabeça de , de modo que, ajoelhada, ela deveria observá-la de baixo. Trata-se de um respeito mínimo à figura de Deus.
Sua barriga já não doía mais. Tinha as mãos unidas e o rosto abaixado quando começou a murmurar, com a voz chorosa.
— Senhor, rogo-lhe mais uma vez para que me guie. Suas medidas não estão sendo suficientes, e o mau ainda permeia esta casa como permeia o mundo viril em que insere a mim e aos meus irmãos. Por favor, Senhor, não desista de sua filha. Acredito que não tenha seguido sua Palavra como deveria, mas arrependo-me de meu ato e peço orientação ao Senhor.
Silêncio. esperou, mas nada veio dessa vez. Sem a sensação de limpeza, castidade, pureza que costumava vir de uma oração. Voltou:
— Meu Deus, encontro-me imersa em uma aura maldita, desprovida da palavra do Senhor. Por favor, ajuda-me a encontrar a luz da Palavra, a livrar-me do que quer que tente me corromper ao seu mal. Por favor, meu Deus, eu lhe peço orientação.
Silêncio. Bateu as mãos abertas no chão de madeira, que produziu um som surdo. Ouvia a água bater no banheiro, mas nada além disso.
Ainda de joelhos, abaixou a cabeça para o chão com violência. Bateu a testa no chão, mas não se machucou; apenas soltou um som baixo. Seus punhos cerraram-se. Os olhos estavam fechados, mas apontados para frente. Grunhiu baixo.
— Se sou como me fez, usarei sua força para erguer-me contra o que acredito ser errado. Não me negarei novamente. Se me escolheu, acredito em sua vontade. Usarei de sua bênção para cumprir o que minha alma e meu espírito pedem para que seja cumprido. Eu acredito no senhor. Eu sou filha do senhor.
Bateu a mão no chão com força. Sentiu algo em suas costas, como um abraço. A outra mão tocou na parede, no papel de parede branco.
— Me dê a sua força, pois ainda estou fraca. Me dê seu guia, pois ainda estou perdida. Por favor, meu senhor, me dê a convicção que preciso.
E sentiu sua respiração cortar-se. Ergueu a cabeça para a cruz, com o rosto manchado pelas lágrimas. Não sentiu nada que costumava sentir, mas se ergueu com satisfação. Não precisava de nada daquilo; já os tinha em quantidade suficiente.
Um passo na escuridão. Esse era o preço da perfeição.
O violoncelo tinha o corpo largo, mas os joelhos de encaixavam-se perfeitamente em seus vãos. A mão esquerda abraçava-o, seu corpo de madeira deitado contra seu peito. Ergueu o arco e o posicionou, com o braço do violoncelo ao lado de seu rosto. Tocou uma única nota, longa, para se preparar. Seu som era suave, mas grave e baixo, como se fizesse algo que não era permitido. Com firmeza, o dedo de pressionou a corda e passou as cerdas. Talvez soasse uma das melodias mais bonitas que já teria composto.
Aproximou mais o corpo do violoncelo. Seu seio tocou a parte de trás do corpo, roçando nele de leve, e sua bochecha tocava no braço. Deitou a cabeça para o lado e trocou a nota, os olhos fechados e as cerdas cantando vagarosa e longamente. Apertou os joelhos para manter o corpo próximo ao seu, quase prendendo-o. Sua mão começou a correr mais rápida no arco, em notas pouco variantes. Sua mão procurava o ponto perfeito, a pressão perfeita. Tremeu-a para soar com um pouco mais de distorção, uma forma quase ideal para introduzir um novo verso. Com o arco acelerando, deixou seus lábios se abrirem para admirar o som grave. Seu corpo relaxava-se nas variações de notas, com seus dedos arrastando de baixo para o topo do braço. Acariciava cada nota com cuidado, por vezes tomando o cuidado de fazê-la soar por mais tempo ao tremer o dedo.
A mão direita começou a passar pelas cordas com mais rapidez. O som passou a sair mais alto, mesmo que contido. Escapava pela fresta aberta da porta, mas a maior parte ressoava nas paredes do escritório. A própria suspirava enquanto seus dedos aumentavam a velocidade para acompanhar o arco. Trabalhavam em funções e tempos diferentes, sincronizados apenas ao se encontrarem. Os dedos corriam tanto no braço que já sabia que não os controlava. Trabalhavam sozinhos, por ordem de seu instinto auditivo. Nem sequer sentia o toque, apenas focava no som grave que aumentava de volume a cada nota.
deitou a cabeça para trás quando alcançou o trecho mais rápido da música. Suas mãos não trabalhavam para si, mesmo que pudesse senti-las cansadas. Parar era inconcebível. Aquilo estava bom demais para uma pausa abrupta. Não, deveria seguir.
Então, o ápice. A nota mais alta, mais aguda, os músculos tão rígidos que sabia que sentiria eles doendo por alguns minutos. Seus joelhos recusavam-se a ceder: abraçavam o corpo e o proibiam de fugir com a ajuda dos tornozelos. Ele deveria ficar ali até o fim. A nota soou por muitos segundos, da ponta do arco até sua base.
E, ao fim, parou. Soaria, talvez, que tivesse sido interrompida. Mas acabara ali, no máximo que sua força era capaz de alcançar. E sabia que estava perfeita. Arfava de cansaço.
Olhou para a porta. Notou algum movimento do lado de fora, mas demorou-se para conferir. Deixou suas pernas se recuperarem e devolveu o violoncelo à sua base antes de sair do escritório. estava de pé, de frente para sua cama, em frente ao escritório de . Inicialmente, pensou que ele fumava, mas notou que não havia nada em sua boca ou mãos.
— É uma ótima música — comentou, olhando para ela. — Obrigado por ter me deixado ouvir.
olhou para o que ele tinha em mãos. parecia tentar medir o peso de uma marreta, jogando-a para cima a poucos centímetros, para que caísse novamente em suas mãos. O cabo era de madeira gasta, comum em lojas de todo o país, mesmo que o bloco de metal em forma hexagonal em sua extremidade parecesse especialmente pesado. Ele passava o polegar no metal enquanto o analisava.
Estremeceu. Era uma marreta grande, e ela mesma duvidava que seria capaz de erguer algo tão pesado. Incomodou-se com o conforto de ao erguer uma arma como aquela, mesmo que soubesse que isso vinha do fato de precisar fazer demonstrações com seu produto.
— Tente — ele falou, estendendo a ferramenta.
negou com a cabeça.
— Não gosto de usar armas.
Ele riu.
— Não é uma arma, .
Jogou a marreta na mala. Com as mãos na cintura, analisou o que ainda restava em cima da cama. Todas suas roupas já estavam dentro da mala, com poucos de seus pertences esperando para serem guardados.
— Você não vai à igreja hoje? — perguntou, enquanto sentava-se ao lado da mala com os joelhos separados. A posição era semelhante a de enquanto tocava o violoncelo.
— Não. Só no domingo.
riu enquanto pegava um livro em seu criado-mudo. Era o livro que lia desde de manhã, e que não reparou que se tratava de um livro sobre crenças e cultos. Surpreendeu-se com a curiosa escolha de ; ele próprio dissera que não era religioso.
— Não terei o prazer de acompanhá-la novamente, então — comentou ele.
— Vendo que você se interessa pela palavra de Deus, estou começando a acreditar que minha companhia não tenha sido tão prazerosa.
ergueu o livro com as sobrancelhas erguidas.
— Não é sobre a palavra, mas sobre algumas crenças de alguns cultos menos conhecidos. E — acrescentou com um sorriso — sua companhia é sempre um prazer, .
— Na igreja, prefiro ficar em silêncio, .
— Você nunca está em silêncio, .
Ela franziu o cenho e cruzou os braços.
— O que quer dizer?
— Sempre está batendo em alguma mesa, dedilhando a própria perna, ou cantarolando baixo. Já notei que não parece reparar nisso, mas seu silêncio é um dos mais interessantes que conheci. É um prazer estar acompanhando-a em seu silêncio.
Sentiu o rosto ficar vermelho. desviou o olhar e jogou o livro dentro da mala.
— Como eu disse, nunca soube apreciar a melhor música.
— é suficiente em vários outros aspectos.
riu. Sua cabeça estava abaixada, mas quando ergueu-a, notou que seus olhos fundos estavam opacos. O sorriso se desfez e os olhos apertaram-se em curiosidade.
— Posso perguntar uma coisa, ?
— À vontade.
— Quantas vezes a ouve compor?
Ela deu de ombros. Seus olhos não desviavam da marreta dentro da mala. Por mais que tentasse relaxar, mantinha o corpo ereto e rígido, para qualquer ameaça de perigo eminente.
— Ele sempre as ouve.
— Não me referi às peças finalizadas. Quero saber quantas vezes ele ouviu você tocar sozinha, durante a composição.
Ela franziu o cenho e pensou um pouco na resposta.
— Eu não gosto que haja pessoas perto de mim enquanto eu componho. Atrapalha meu processo criativo. Sinto como se fossem um filtro para as coisas que penso em escrever sobre, o que me limita. Qualquer arte deve ser feita sozinho.
— Ou você só se convenceu de que ele de fato não se interessa no processo, mas no produto.
Ouviu um som de batida.
— Ele tem outras coisas para se preocupar.
— Mas você espera que ele insista em ouvi-la tocar.
Tentou retrucar algo, mas a resposta não veio tão rápido. ficou de pé e andou vagarosamente até onde ela estava.
— Você quer que ele peça para te ouvir. Não quer ter que pedir para ele. Quer que ele só abra a porta do seu escritório e fique ali, ouvindo, em silêncio.
comprimiu os lábios. estava perto demais. Era bem mais alto que ela, com as mãos nos bolsos e os olhos semicerrados observando-a de cima.
— Obrigado por ter deixado a porta aberta para mim, . Agora sei que poderei entrar sempre.
— Conte-me sobre as crenças.
recuou e deu as costas para . Pegou o livro e entregou em sua mão.
— Pode ficar. Li algumas vezes, consigo outro exemplar com facilidade.
estava tomando banho. O pequeno altar com a cruz do salvador estava um pouco acima da cabeça de , de modo que, ajoelhada, ela deveria observá-la de baixo. Trata-se de um respeito mínimo à figura de Deus.
Sua barriga já não doía mais. Tinha as mãos unidas e o rosto abaixado quando começou a murmurar, com a voz chorosa.
— Senhor, rogo-lhe mais uma vez para que me guie. Suas medidas não estão sendo suficientes, e o mau ainda permeia esta casa como permeia o mundo viril em que insere a mim e aos meus irmãos. Por favor, Senhor, não desista de sua filha. Acredito que não tenha seguido sua Palavra como deveria, mas arrependo-me de meu ato e peço orientação ao Senhor.
Silêncio. esperou, mas nada veio dessa vez. Sem a sensação de limpeza, castidade, pureza que costumava vir de uma oração. Voltou:
— Meu Deus, encontro-me imersa em uma aura maldita, desprovida da palavra do Senhor. Por favor, ajuda-me a encontrar a luz da Palavra, a livrar-me do que quer que tente me corromper ao seu mal. Por favor, meu Deus, eu lhe peço orientação.
Silêncio. Bateu as mãos abertas no chão de madeira, que produziu um som surdo. Ouvia a água bater no banheiro, mas nada além disso.
Ainda de joelhos, abaixou a cabeça para o chão com violência. Bateu a testa no chão, mas não se machucou; apenas soltou um som baixo. Seus punhos cerraram-se. Os olhos estavam fechados, mas apontados para frente. Grunhiu baixo.
— Se sou como me fez, usarei sua força para erguer-me contra o que acredito ser errado. Não me negarei novamente. Se me escolheu, acredito em sua vontade. Usarei de sua bênção para cumprir o que minha alma e meu espírito pedem para que seja cumprido. Eu acredito no senhor. Eu sou filha do senhor.
Bateu a mão no chão com força. Sentiu algo em suas costas, como um abraço. A outra mão tocou na parede, no papel de parede branco.
— Me dê a sua força, pois ainda estou fraca. Me dê seu guia, pois ainda estou perdida. Por favor, meu senhor, me dê a convicção que preciso.
E sentiu sua respiração cortar-se. Ergueu a cabeça para a cruz, com o rosto manchado pelas lágrimas. Não sentiu nada que costumava sentir, mas se ergueu com satisfação. Não precisava de nada daquilo; já os tinha em quantidade suficiente.
Um passo na escuridão. Esse era o preço da perfeição.
Parte V
Na manhã seguinte, não estava lendo no quintal. Em vez disso, estava apenas deitado no chão ao lado da piscina, na pedra, com a luz do sol contra seu corpo seminu. Olhava para o céu, com uma das mãos nos cabelos e a outra na água, brincando com as ondas.
desceu as escadas com o violino nas mãos. seguiu os passos de com os olhos. Assim que ela chegou à mesa de no quintal, entre as flores, sentou-se no banco. Posicionou o violino e começou a tocá-lo. logo reparou que música tocava para ele. Deitou a cabeça para o lado e a assistiu.
tinha um jeito especial de tocar. A maioria dos músicos que via na televisão tocavam com os olhos fechados ou semicerrados, a cabeça balançando e o corpo dançando como se não fossem os músicos, mas os dançarinos. Em vez disso, olhava para a própria mão enquanto tocava, como se estivesse se monitorando para que não fugisse da canção original. sabia que, caso ela não olhasse para os próprios dedos finos ao dedilhar, fugiria para uma improvisação livre, e era isso que ela abominava. Era um território muito desagradável para ela. Seus olhos pequenos estavam focados, mal piscavam e nunca desviavam. Seu corpo permanecia rígido, como todas as vezes em que eles dividiam o ambiente, diferente de quando ela tocou o piano sem que se importasse com sua presença. E seu som era tão mais bonito nesse momento, quando estava de costas para e suas mãos trabalhavam no piano sem intenção; quando esvaía-se em um violoncelo rústico. Não apenas seu som, mas suas feições, que assumiam uma aparência viril de total atenção, exatamente como enquanto comia. Bem diferente de , aquele ogro.
tocava um violino como se não houvesse nada no mundo, divino ou não, com mais poder do que ela. E isso era tão atraente que temia estar transparecendo demais. Quando terminou, suspirou e deixou o violino no colo.
— Toque alguma sua — ele pediu.
Posicionou novamente o violino e passou a tocá-lo devagar. As notas eram graves, em tom baixo. Por um instante, imaginou que fosse, na verdade, uma peça de Chopin. Mas não: a canção seguiu sua estrutura melancólica e lenta. Achava, em alguns momentos, que fosse aumentar a velocidade e o tom, tocar mais rápido, como costumava fazer quando estava sozinha. Trancada em seu escritório, a ouvia tocar o violino esganiçado, em escalas erradas, e o violoncelo desafinar com as notas escorregadas. Só que era impagável ouvi-la tocar tão rápido, ansiosa pela próxima nota, como se sua verdadeira intenção fosse não deixar que a música acabasse. Quando tocou o piano na sala, as sonatas, sabia que ela tentava se conter. Mas ela ter conseguido tocar alguma música própria consciente da presença dele era... Quase uma autorização. Um tipo de acordo mútuo de permissão.
Ainda assim, não era suficiente. precisava de sua autorização formal, direta. E aquela canção melancólica era exatamente isso. Era o máximo de sua intimidade, era o ponto mais alto de sua exposição. Poucas variações, as notas mais simples, básicas, o próprio esqueleto da música. Tão insossas quanto conseguiam ser.
Quando terminou, ficou de pé e voltou a andar de volta ao solar. ergueu o corpo e tirou os óculos escuros, observando-a andar.
— Estarei no meu escritório, caso precise de mim.
— Hoje quero ajudá-la a fazer o almoço.
olhou-o por cima do ombro.
— Então venha. Hoje quero preparar carne.
Ela tinha deixado a carne em cima da bancada. , dentro da cozinha, estudou a peça por alguns segundos. Ao seu lado, tentava ser discreta, sem sucesso, ao observá-lo. vestia novamente a camiseta cinza, além de calças jeans e tinha os cabelos jogados para trás, desalinhados. Com a mão esquerda, segurou a carne e, com a direita, empunhou uma das facas para começar a cortá-la em bifes. assistia-o sem conseguir prestar atenção em outra coisa. Provavelmente, ele também vendia facas. Cortava a carne como se fizesse uma demonstração de como usar a faca, os cortes rápidos e retos. Parecia trabalhar em uma pintura.
E, céus, o cheiro era maravilhoso.
— Onde você mora, ? — perguntou, voltando a prestar atenção no tempero no fogão.
Ele não se moveu para olhar para ela. Ainda assim, sabia que ele estava sorrindo.
— Passo mais tempo na Califórnia, na sede da empresa.
— Acredito que sua esposa deva ver isso com maus olhos.
— Por isso não tenho esposa.
olhou-o de lado, com uma sobrancelha erguida.
— Prefere trabalhar a se casar?
— Prefiro relacionamentos breves.
— O trabalho de vendedor deve recompensar esse sacrifício.
riu, dando de ombros.
— Acredite, . Não é um sacrifício. Inclusive, viajar com frequência me faz conhecer lugares e pessoas em momentos mais inusitados.
Ergueu a faca e analisou seu fio. parou de preparar o molho, o corpo rígido ao olhar, de lado, para . Seus olhos claros estavam próximos demais da lâmina. Ele girou o corpo para ficar de frente para , enquanto ela permanecia de frente para o fogão. Segurava o cabo da faca com força, sem deixar as pontas de seus dedos ficarem brancas. Parecia apenas uma extensão de seu corpo, como o violino era para . Em um movimento rápido, que ela não conseguiu acompanhar, estendeu-lhe a faca perto de seu braço.
— Está sem fio. Como posso afiá-la?
não conseguiu se mover. Sua respiração estava travada. riu daquela cena ridícula, recuando com a faca.
— Devo ter te assustado. Você está pálida.
Fez certo esforço para acompanhá-lo na risada, completamente sem êxito. Em vez disso, só pareceu uma risada nervosa.
— Na segunda gaveta tem um afiador. Fique à vontade.
Abriu a gaveta e sacou o afiador. Passava a lâmina pelo fio repetidas vezes, em silêncio. Poucos segundos depois, devolveu o afiador para a gaveta. Voltou a cortar a carne enquanto narrava, o rosto inexpressivo, mas a voz carregada de quem lia um texto de teatro:
— Uma vez, eu estava passando por uma cidade pequena durante uma tempestade horrível. A chuva já tinha diminuído quando eu passei por um carro pequeno, e com uma garota na frente, agitando os braços e indo para o meio da estrada. Já estava cansado, mas parei para ajudá-la. A garota correu até a minha janela e disse que o pneu do carro tinha furado. Seu corpo estava tão sujo que parecia que aquela crosta de sujeira era da própria pele dela. Mas tinha um cheiro irresistível de chuva. Disse que precisava da minha ajuda, que a chuva tinha feito eles passarem por uma pedra e furaram a roda, então parei num acostamento a alguns metros.
— Você foi ajudá-los? — perguntou , olhando para ele. Os olhos de brilhavam contra a luz que vinha do lado de fora. Ele não olhava mais para a carne.
— Eu era o único carro na estrada em muitos quilômetros. Bem, talvez eu devesse ter notado que, no meu caminho até aquele ponto desértico, a chuva já havia passado há algum tempo, mas talvez o acidente tivesse acontecido bem antes. A garota devia ter uns 16, 17 anos. Usava um vestido preto, curto, rasgado nas pontas, com aparência de algo herdado. Ainda chovia, mesmo que fraco, quando fui andando com ela até o carro. Quando cheguei lá, havia mais uma menina e um homem esperando perto de uma mureta. O homem ergueu uma faca e eu levantei as mãos em rendimento.
virou o rosto para com os olhos bem abertos.
— Tentaram te assaltar?
— Sim, e percebi que as meninas também estavam rendidas. Ele tentou me render e levar meu carro, não tinha nenhuma luz além do céu e alguns postes da estrada. Como eu disse, nenhum carro passava. Acho que nunca fiquei com tanto medo. — Fez uma pausa breve. — Normalmente, em meu tempo livre, eu costumo fazer coisas que me deixam relaxado o suficiente para me dar a sensação de poder. Mas, naquele dia, eu tinha certeza de que não havia chance de sair daquela situação. As duas garotas menores iam seguindo o homem, que ia atrás de mim, a faca nas minhas costas. Quando chegamos ao meu carro, inclinei o corpo para dentro e peguei uma arma que deixo guardada dentro do porta-luvas, e enquanto ele prestava atenção nas meninas, para que elas não corressem, atirei em sua barriga.
soltou uma exclamação de susto e entusiasmo.
— Meu Deus — murmurou. Já nem olhava mais para o molho.
— Ele resistiu um pouco, mas atirei na cabeça depois que ele caiu. Já estava em uma distância segura para mim e para as garotas. Quando soubemos que ele estava morto, lembro de ter soltado o ar com força, e caído sentado no chão. Acho que nunca tinha ficado tão tenso. De repente, acho que como poucas vezes já aconteceu comigo, eu estava em uma posição completamente submissa, sem controle, sem poder. Mas se eu tinha conseguido fazer aquilo, não havia mais nada que eu pudesse fazer.
Então, murmurou:
— Eu nunca havia matado alguém por necessidade. E não havia posição mais alta do que aquela.
— O que houve com as meninas?
olhou-a de lado e sorriu novamente. Soara um pouco irônico, enquanto passava o dedo pela lâmina, limpando-a do sangue da carne. Seus olhos voltaram a ficar opacos.
— Uma delas, eu deixei que fosse embora. Deixei-a em uma praça e ela foi procurar a polícia. Disseram que não se conheciam.
Fez uma pausa breve.
— A outra pareceu ter ficado mais à vontade comigo. Dei a ela comida, deixei que comesse até que ficasse saciada. Tinha 16 anos e se chamava Anya. Era órfã. Acho que foi a pessoa que conheci mais rápido.
Tinha frisado a palavra “conheci”. Prosseguiu:
— Ela gostava de comer. Comia rápido, fazendo muito barulho. Tinha o apetite de uma criança, na verdade. Então, quando a mandei ir embora, o cheiro de chuva em suas roupas e cabelos ainda não tinha passado. Ainda assim, não importa o quão agradável tivesse sido meu tempo com ela, a imagem daquele homem com a faca contra minhas costas era clara demais para mim. Dirigi durante toda a noite, até que cheguei a uma vila, já tendo amanhecido. E comprei uma faca como esta — ergueu a faca de em sua mão —, como a que aquele homem havia me ameaçado.
— Por que não pegou a faca dele?
olhou para de lado, com o cenho franzido e os lábios sutilmente arqueados de um lado.
— Perdão?
— A faca do homem. Era a arma dele, o que fazia ele ter controle sobre você. Por que não pegou ela, em vez de comprar uma idêntica? Você estaria, justamente, transferindo o poder dele para você.
não soube responder. Depois de alguns segundos, concluiu que de fato não havia resposta.
— Não sei, . Eu devia ter pegado a faca dele, mas se achassem o corpo dele na estrada, seria uma prova criminosa que eu carregaria comigo. O tiro foi em legítima defesa.
o observava com o rosto atencioso, mas, nesse momento, deu um pequeno sorriso.
— Entendi. Já está bom. já vai chegar, é melhor deixarmos tudo pronto para ele.
Tentou tocar a sequência que faltava. Pelo menos para o primeiro rascunho da peça, já parecia estar quase acabando. A partitura estava quase completa, com exceção do último violino, algo especialmente fácil. Ainda assim, toda vez que tentou tocá-la naquela tarde, não conseguia.
As cerdas do arco corriam pelas cordas, mas não na velocidade certa, e sem fazer o característico som arranhado. Seus dedos pareciam correr mais rápido, sem seguir o tempo estipulado pelos outros instrumentos, gravados anteriormente.
Pausa. Respiração profunda.
Ajeitou a coluna e colocou novamente o arco na posição. Começou a corrê-lo e o interrompeu pouco depois.
De novo.
Violino em posição. Arco em posição. Dedos prontos, e errou mais uma vez.
Lançou o violino contra o divã, irritada. O pequeno instrumento estalou contra a parede antes de cair no pequeno divã preto. correu até ele e ajoelhou-se no chão para conferir se havia quebrado algo. Por sorte, nenhuma corda ou peça tinha quebrado ou arrebentado. Suspirou em alívio.
Ficou de pé e levou o violino para a base. A porta de seu escritório estava fechada por puro costume, desde que saiu novamente para trabalhar. Abriu a porta e parou ainda no portal para olhar para o corredor. Andou, pé ante pé, até um quarto cuja janela apontava para o quintal. Fingiu passar casualmente pela janela e viu que não estava próximo da piscina.
Voltou para o corredor e notou que a porta do quarto de estava entreaberta. Andou em silêncio até o quarto e tentou olhar o que se passava do lado de dentro do quarto. viu o corpo de de costas para a porta, os braços cruzados e olhando para baixo, para cima da cama. Ao lado de sua mala, podia ver a arma sobre a qual tinha contado mais cedo.
— ? — ele perguntou, girando o rosto um pouco para o lado, mas sem olhar por cima do ombro.
Ela recuou, mas abriu a porta com uma mão.
— Precisa de alguma coisa?
girou o corpo e expôs o que sobrara de suas coisas, em cima da cama. Além da arma, posta cuidadosamente em cima de uma muda de roupas, ainda tinha uma pequena bolsa e um par de óculos escuros.
— Estou bem. Estava tocando?
Engoliu em seco. A arma estava posicionada perfeitamente em cima da muda de roupas, um sinal de que fora colocada como uma parte do cenário. Era estranho imaginar que aquela mesma arma foi usada em um momento de delicadeza e pânico, em que um pequeno deslize resultaria em uma catástrofe. Ainda assim, com medo de uma morte iminente, teve a firmeza de pegar a arma e posicioná-la de modo que, além de se salvar, salvou também duas jovens.
Agora, no entanto, o efeito era contrário. retinha a arma como um aviso.
— Tentando. Não consegui tocar direito.
— Sem concentração? — ele perguntou, baixo, sem olhar para trás.
A frase ressoou por alguns segundos antes que respondesse:
— Sim. Estava pensando em outras coisas.
virou-se para ela novamente. Olhou, em seguida, para a arma e a segurou, o cano erguido para o teto e o dedo no gatilho. não se moveu. Não soube precisar se estava em choque ou se estava fascinada demais.
— Chegue mais perto. Vou te mostrar como ela funciona.
engoliu em seco novamente. Não haveria modo de negar aquela ordem, por mais mansa que fosse a voz de . Começou a andar até onde ele estava, com as mãos atrás do corpo. Se gritasse, não haveria ninguém por perto para socorrê-la. Seria inútil tentar atacá-lo: por perto, não tinha nenhuma coisa mais rápida do que o tiro que poderia acertá-la.
Quando ficou de pé na frente de , viu que ele tinha uma de suas marretas ao lado da mala. Apontou para ela com o cano da arma e disse:
— Vou deixar esta com vocês. disse que precisava de uma, para quebrar algumas coisas no porão.
Ela respondeu com a voz calma:
— Entregue a ele mais tarde, quando ele chegar.
Ergueu a arma na frente do rosto de . A marreta estava atrás de ; não conseguiria pegá-la caso fosse necessário. O cano da arma era prateado, perfeitamente limpo, brilhante. Provavelmente, tinha sido lavado algumas vezes. Desencaixou o cilindro de balas e pareceu tirar todas que estavam armazenadas ali dentro, e com um movimento para o lado, devolveu o cilindro ao seu lugar.
reposicionou o dedo no gatilho. conseguia se ver no reflexo do cano.
— É uma arma sofisticada — comentou, esfregando o dedo pela trava. — Comum, mas sofisticada. Não merecia um homem como o que ela matou.
Fez uma pausa, o cano apontado na direção dos lábios de , apertados e vermelhos. Seus olhos olhavam para os de , esperando-o.
— Faz barulho demais. E deixa o cheiro de pólvora.
Destravou a arma enquanto a ponta do cano tocava seus lábios.
o olhava sem vacilar. Seus olhos estavam um pouco apertados, pelo sol que entrepassava na janela. Abriu a boca e fechou completamente os olhos.
Imediatamente, ouviu travar novamente a arma e jogá-la no chão, longe de ambos. abriu os olhos com o som da batida, o rosto apontado para o de . Voltou a fechá-los quando sentiu a mão de em sua cabeça e o corpo ser pressionado contra o dele. A boca de era quente, exatamente como ela imaginava que fosse, desde quando ele saiu daquele carro. As mãos de subiram para os cabelos de e agarraram-se aos seus fios desarrumados. O beijo de era violento, assim como a força de suas mãos ao apertarem as costas de por cima do vestido. Ela segurou com força o pescoço fino de , puxando-o com mais força, sem chances de fuga. Ele já tinha caído, e ela não o deixaria ir embora.
segurou a barra de seu vestido e ergueu-a, puxando todo o vestido pela cabeça de . Por baixo do tecido fino e monocolorido, ela vestia ainda um par de roupas íntimas feias e malcuidadas. rugiu novamente contra os lábios de , estes já com um pequeno corte. Suas mãos foram até a camiseta cinza para puxá-la para cima, e enquanto terminava de tirá-la, já estava dedicada a abrir os jeans. Quando o fez, puxou o tronco de para perto e sentou-se na cama.
Seu corpo era grande, mesmo que não fosse musculoso. Era como uma escultura malfeita, que o artista não se deu o trabalho de aperfeiçoar os detalhes. Havia certo tom de obra inacabada no corpo de . Decerto, algumas linhas saltadas demarcavam poucos músculos, mas de modo tão natural que sabia que eram acidentais. apoiou as mãos ao lado do corpo ao afastá-lo, de modo que estivesse completamente em cima do colchão. tinha uma mão de cada lado da cama, a coluna arqueada para frente e os olhos observando-a por debaixo. Parecia um felino calculando seu salto, e assim fez, ao subir na cama e ficar em cima do quadril de . Puxou, com ambas as mãos, sua roupa íntima e começou a alimentar-se.
Não era rápido, como sabia que ele não seria. Em vez disso, aproveitava cada segundo do sabor que parecia querer experimentar há tanto tempo. As mãos não o ajudavam. Não sugou de início: sabia que, para apreciar de fato, deveria começar pelos cantos. Não tinha fechado os olhos, pois sabia que a aparência contribuía para o gosto de qualquer alimento. Não deixava nenhuma parte lhe fugir: tudo tinha sua atenção, tudo precisava ser sentido por . Quando chegou ao centro do prato, dedicou-se a sentir seu gosto até o final. Demorou-se, passou todo o ápice da língua em sua área, o que tomou o tempo de marcar toda a região como sua, e totalmente sua. Por fim, respirou fundo e sentiu o que seria, definitivamente, seu cheiro preferido por muito tempo.
Ergueu o rosto e impulsionou o corpo para cima do de . Mal seus joelhos haviam afundado as laterais das pernas dela, pôs a mão em suas costas e segurou-o com força. Girou o corpo rapidamente e deitou no colchão. Confuso, ele franziu o cenho enquanto ofegava. ergueu o corpo e apoiou-se em seus joelhos, cada um posicionado de um lado do quadril de . Apoiou uma de suas mãos no tronco de e apertou os joelhos, mantendo-o imóvel da cintura para baixo.
Então, sorriu.
invadiu-o com os olhos fechados. Seu corpo estava relaxado, mesmo que determinado a repetir os mesmos movimentos. E, a cada nota, sua velocidade parecia aumentar aos poucos, em uma variação quase imperceptível. Mas , certamente, percebia; afinal, ele tinha gosto para música de verdade.
E fazia uma música alta, brutal, grosseira, que ele sabia que não sabia admirar. Talvez, sequer conseguia fazê-la tocar daquele modo.
segurava os quadris de , mas não exercia qualquer influência em seus movimentos. Era apenas um apoio, e mantinha o respeitoso silêncio para ouvir a música de . De fato, alguns ruídos invadiam a canção, como a cama e o som surdo das peles úmidas rebatendo-se. No entanto, não atrapalhavam a composição, enriquecendo-a com a ambientação perfeita.
fugia de seu corpo, mas logo voltava a ele. Ao menos, era assim que viu a cena em uma primeira visualização. Percebeu, então, que era exatamente o contrário: ela o puxava e o repelia, até aceitar por total sua participação. abriu-se para sua invasão, aceitou seu vírus e seu ritual. Mesmo que parecesse haver alguma tentativa de rejeição (gritava o suficiente para que acreditasse haver), aceitou aquele parasita sendo repassado.
Só que ela sabia que dessa vez, no entanto, ela permitiu que aquele mal a alcançasse.
No fim, com ambos tentando se reerguer com peso da casa em suas cabeças, deitaram-se lado a lado na cama. tinha os pés na cabeceira da cama, enquanto tinha a cabeça deitada no travesseiro e apontada para os delicados tornozelos de . Ele fechou os olhos e respirou fundo. O cheiro era fraco, mas podia senti-lo se estivesse concentrado o suficiente. olhava para a marreta perto de sua cabeça. Era grosseira, rudimentar. Fantasiou, por alguns instantes, sua mão em volta do cabo de madeira. Uma marreta como aquelas faria um grande estrago, fosse na parede ou em uma pessoa. Esticou a mão e tocou o metal hexagonal em sua extremidade, frio.
Virou o rosto para cima, para o teto da casa, e podia sentir ela pulsar em sincronia com as respirações dos corpos suados de e . Sentia o teto pesar, ao mesmo tempo em que parecia envolvê-la em um afago. Finalmente, estava de fato se sentindo em casa. Deixou de se sentir como uma invasora que insistia em fazer o solar cooperar com suas perspectivas, como se quisesse modelá-lo de acordo com seus desejos. Agora, sabia que era o contrário. O solar a envolvia como se a carregasse no colo, e a nutria com sua essência.
Não era um pedregulho.
Naquela noite, o jantar seguiu com poucas conversas, a maioria entre e . No entanto, naquela refeição em especial, perguntou a se ele voltaria a passar pela região em breve. Ele respondera que era improvável, mas que poderia desviar sua rota de trabalho com antecedência, na próxima vez. Comentou também que o jantar estava delicioso, e que gostaria de comer no solar 137 mais vezes.
De tarde, voltou para seu escritório e, com a porta fechada, terminou de gravar o violino que faltava em sua partitura básica. A primeira parte da canção já estava pronta, mas precisava enriquecê-la, adorná-la. A fase de enfeitar a música era fácil, já que se tratava apenas de vestir o corpo para servir aos ouvidos menos sensíveis. De qualquer modo, precisava esconder a essência, que era crua e simples demais.
Ainda se passariam dois dias sem que continuasse sua composição. Não por não conseguir, mas por preferir criar uma atmosfera ideal antes de forçar-se em um processo automático. Não poderia desenvolver uma obra de arte com pressão.
tocava, no piano, a única peça que se lembrava. bebeu um pouco de vinho antes decidir que era hora de subir as escadas e trabalhar. Observava o homem ao piano.
Notou que uma das principais diferenças entre e era que este não tinha qualquer noção de tempo ou intensidade.
ergueu os olhos e olhou para ela. Não hesitava.
Você sabe o que deve fazer com invasores, . Você já fez isso antes. Eu te dou a minha bênção.
desceu as escadas com o violino nas mãos. seguiu os passos de com os olhos. Assim que ela chegou à mesa de no quintal, entre as flores, sentou-se no banco. Posicionou o violino e começou a tocá-lo. logo reparou que música tocava para ele. Deitou a cabeça para o lado e a assistiu.
tinha um jeito especial de tocar. A maioria dos músicos que via na televisão tocavam com os olhos fechados ou semicerrados, a cabeça balançando e o corpo dançando como se não fossem os músicos, mas os dançarinos. Em vez disso, olhava para a própria mão enquanto tocava, como se estivesse se monitorando para que não fugisse da canção original. sabia que, caso ela não olhasse para os próprios dedos finos ao dedilhar, fugiria para uma improvisação livre, e era isso que ela abominava. Era um território muito desagradável para ela. Seus olhos pequenos estavam focados, mal piscavam e nunca desviavam. Seu corpo permanecia rígido, como todas as vezes em que eles dividiam o ambiente, diferente de quando ela tocou o piano sem que se importasse com sua presença. E seu som era tão mais bonito nesse momento, quando estava de costas para e suas mãos trabalhavam no piano sem intenção; quando esvaía-se em um violoncelo rústico. Não apenas seu som, mas suas feições, que assumiam uma aparência viril de total atenção, exatamente como enquanto comia. Bem diferente de , aquele ogro.
tocava um violino como se não houvesse nada no mundo, divino ou não, com mais poder do que ela. E isso era tão atraente que temia estar transparecendo demais. Quando terminou, suspirou e deixou o violino no colo.
— Toque alguma sua — ele pediu.
Posicionou novamente o violino e passou a tocá-lo devagar. As notas eram graves, em tom baixo. Por um instante, imaginou que fosse, na verdade, uma peça de Chopin. Mas não: a canção seguiu sua estrutura melancólica e lenta. Achava, em alguns momentos, que fosse aumentar a velocidade e o tom, tocar mais rápido, como costumava fazer quando estava sozinha. Trancada em seu escritório, a ouvia tocar o violino esganiçado, em escalas erradas, e o violoncelo desafinar com as notas escorregadas. Só que era impagável ouvi-la tocar tão rápido, ansiosa pela próxima nota, como se sua verdadeira intenção fosse não deixar que a música acabasse. Quando tocou o piano na sala, as sonatas, sabia que ela tentava se conter. Mas ela ter conseguido tocar alguma música própria consciente da presença dele era... Quase uma autorização. Um tipo de acordo mútuo de permissão.
Ainda assim, não era suficiente. precisava de sua autorização formal, direta. E aquela canção melancólica era exatamente isso. Era o máximo de sua intimidade, era o ponto mais alto de sua exposição. Poucas variações, as notas mais simples, básicas, o próprio esqueleto da música. Tão insossas quanto conseguiam ser.
Quando terminou, ficou de pé e voltou a andar de volta ao solar. ergueu o corpo e tirou os óculos escuros, observando-a andar.
— Estarei no meu escritório, caso precise de mim.
— Hoje quero ajudá-la a fazer o almoço.
olhou-o por cima do ombro.
— Então venha. Hoje quero preparar carne.
Ela tinha deixado a carne em cima da bancada. , dentro da cozinha, estudou a peça por alguns segundos. Ao seu lado, tentava ser discreta, sem sucesso, ao observá-lo. vestia novamente a camiseta cinza, além de calças jeans e tinha os cabelos jogados para trás, desalinhados. Com a mão esquerda, segurou a carne e, com a direita, empunhou uma das facas para começar a cortá-la em bifes. assistia-o sem conseguir prestar atenção em outra coisa. Provavelmente, ele também vendia facas. Cortava a carne como se fizesse uma demonstração de como usar a faca, os cortes rápidos e retos. Parecia trabalhar em uma pintura.
E, céus, o cheiro era maravilhoso.
— Onde você mora, ? — perguntou, voltando a prestar atenção no tempero no fogão.
Ele não se moveu para olhar para ela. Ainda assim, sabia que ele estava sorrindo.
— Passo mais tempo na Califórnia, na sede da empresa.
— Acredito que sua esposa deva ver isso com maus olhos.
— Por isso não tenho esposa.
olhou-o de lado, com uma sobrancelha erguida.
— Prefere trabalhar a se casar?
— Prefiro relacionamentos breves.
— O trabalho de vendedor deve recompensar esse sacrifício.
riu, dando de ombros.
— Acredite, . Não é um sacrifício. Inclusive, viajar com frequência me faz conhecer lugares e pessoas em momentos mais inusitados.
Ergueu a faca e analisou seu fio. parou de preparar o molho, o corpo rígido ao olhar, de lado, para . Seus olhos claros estavam próximos demais da lâmina. Ele girou o corpo para ficar de frente para , enquanto ela permanecia de frente para o fogão. Segurava o cabo da faca com força, sem deixar as pontas de seus dedos ficarem brancas. Parecia apenas uma extensão de seu corpo, como o violino era para . Em um movimento rápido, que ela não conseguiu acompanhar, estendeu-lhe a faca perto de seu braço.
— Está sem fio. Como posso afiá-la?
não conseguiu se mover. Sua respiração estava travada. riu daquela cena ridícula, recuando com a faca.
— Devo ter te assustado. Você está pálida.
Fez certo esforço para acompanhá-lo na risada, completamente sem êxito. Em vez disso, só pareceu uma risada nervosa.
— Na segunda gaveta tem um afiador. Fique à vontade.
Abriu a gaveta e sacou o afiador. Passava a lâmina pelo fio repetidas vezes, em silêncio. Poucos segundos depois, devolveu o afiador para a gaveta. Voltou a cortar a carne enquanto narrava, o rosto inexpressivo, mas a voz carregada de quem lia um texto de teatro:
— Uma vez, eu estava passando por uma cidade pequena durante uma tempestade horrível. A chuva já tinha diminuído quando eu passei por um carro pequeno, e com uma garota na frente, agitando os braços e indo para o meio da estrada. Já estava cansado, mas parei para ajudá-la. A garota correu até a minha janela e disse que o pneu do carro tinha furado. Seu corpo estava tão sujo que parecia que aquela crosta de sujeira era da própria pele dela. Mas tinha um cheiro irresistível de chuva. Disse que precisava da minha ajuda, que a chuva tinha feito eles passarem por uma pedra e furaram a roda, então parei num acostamento a alguns metros.
— Você foi ajudá-los? — perguntou , olhando para ele. Os olhos de brilhavam contra a luz que vinha do lado de fora. Ele não olhava mais para a carne.
— Eu era o único carro na estrada em muitos quilômetros. Bem, talvez eu devesse ter notado que, no meu caminho até aquele ponto desértico, a chuva já havia passado há algum tempo, mas talvez o acidente tivesse acontecido bem antes. A garota devia ter uns 16, 17 anos. Usava um vestido preto, curto, rasgado nas pontas, com aparência de algo herdado. Ainda chovia, mesmo que fraco, quando fui andando com ela até o carro. Quando cheguei lá, havia mais uma menina e um homem esperando perto de uma mureta. O homem ergueu uma faca e eu levantei as mãos em rendimento.
virou o rosto para com os olhos bem abertos.
— Tentaram te assaltar?
— Sim, e percebi que as meninas também estavam rendidas. Ele tentou me render e levar meu carro, não tinha nenhuma luz além do céu e alguns postes da estrada. Como eu disse, nenhum carro passava. Acho que nunca fiquei com tanto medo. — Fez uma pausa breve. — Normalmente, em meu tempo livre, eu costumo fazer coisas que me deixam relaxado o suficiente para me dar a sensação de poder. Mas, naquele dia, eu tinha certeza de que não havia chance de sair daquela situação. As duas garotas menores iam seguindo o homem, que ia atrás de mim, a faca nas minhas costas. Quando chegamos ao meu carro, inclinei o corpo para dentro e peguei uma arma que deixo guardada dentro do porta-luvas, e enquanto ele prestava atenção nas meninas, para que elas não corressem, atirei em sua barriga.
soltou uma exclamação de susto e entusiasmo.
— Meu Deus — murmurou. Já nem olhava mais para o molho.
— Ele resistiu um pouco, mas atirei na cabeça depois que ele caiu. Já estava em uma distância segura para mim e para as garotas. Quando soubemos que ele estava morto, lembro de ter soltado o ar com força, e caído sentado no chão. Acho que nunca tinha ficado tão tenso. De repente, acho que como poucas vezes já aconteceu comigo, eu estava em uma posição completamente submissa, sem controle, sem poder. Mas se eu tinha conseguido fazer aquilo, não havia mais nada que eu pudesse fazer.
Então, murmurou:
— Eu nunca havia matado alguém por necessidade. E não havia posição mais alta do que aquela.
— O que houve com as meninas?
olhou-a de lado e sorriu novamente. Soara um pouco irônico, enquanto passava o dedo pela lâmina, limpando-a do sangue da carne. Seus olhos voltaram a ficar opacos.
— Uma delas, eu deixei que fosse embora. Deixei-a em uma praça e ela foi procurar a polícia. Disseram que não se conheciam.
Fez uma pausa breve.
— A outra pareceu ter ficado mais à vontade comigo. Dei a ela comida, deixei que comesse até que ficasse saciada. Tinha 16 anos e se chamava Anya. Era órfã. Acho que foi a pessoa que conheci mais rápido.
Tinha frisado a palavra “conheci”. Prosseguiu:
— Ela gostava de comer. Comia rápido, fazendo muito barulho. Tinha o apetite de uma criança, na verdade. Então, quando a mandei ir embora, o cheiro de chuva em suas roupas e cabelos ainda não tinha passado. Ainda assim, não importa o quão agradável tivesse sido meu tempo com ela, a imagem daquele homem com a faca contra minhas costas era clara demais para mim. Dirigi durante toda a noite, até que cheguei a uma vila, já tendo amanhecido. E comprei uma faca como esta — ergueu a faca de em sua mão —, como a que aquele homem havia me ameaçado.
— Por que não pegou a faca dele?
olhou para de lado, com o cenho franzido e os lábios sutilmente arqueados de um lado.
— Perdão?
— A faca do homem. Era a arma dele, o que fazia ele ter controle sobre você. Por que não pegou ela, em vez de comprar uma idêntica? Você estaria, justamente, transferindo o poder dele para você.
não soube responder. Depois de alguns segundos, concluiu que de fato não havia resposta.
— Não sei, . Eu devia ter pegado a faca dele, mas se achassem o corpo dele na estrada, seria uma prova criminosa que eu carregaria comigo. O tiro foi em legítima defesa.
o observava com o rosto atencioso, mas, nesse momento, deu um pequeno sorriso.
— Entendi. Já está bom. já vai chegar, é melhor deixarmos tudo pronto para ele.
Tentou tocar a sequência que faltava. Pelo menos para o primeiro rascunho da peça, já parecia estar quase acabando. A partitura estava quase completa, com exceção do último violino, algo especialmente fácil. Ainda assim, toda vez que tentou tocá-la naquela tarde, não conseguia.
As cerdas do arco corriam pelas cordas, mas não na velocidade certa, e sem fazer o característico som arranhado. Seus dedos pareciam correr mais rápido, sem seguir o tempo estipulado pelos outros instrumentos, gravados anteriormente.
Pausa. Respiração profunda.
Ajeitou a coluna e colocou novamente o arco na posição. Começou a corrê-lo e o interrompeu pouco depois.
De novo.
Violino em posição. Arco em posição. Dedos prontos, e errou mais uma vez.
Lançou o violino contra o divã, irritada. O pequeno instrumento estalou contra a parede antes de cair no pequeno divã preto. correu até ele e ajoelhou-se no chão para conferir se havia quebrado algo. Por sorte, nenhuma corda ou peça tinha quebrado ou arrebentado. Suspirou em alívio.
Ficou de pé e levou o violino para a base. A porta de seu escritório estava fechada por puro costume, desde que saiu novamente para trabalhar. Abriu a porta e parou ainda no portal para olhar para o corredor. Andou, pé ante pé, até um quarto cuja janela apontava para o quintal. Fingiu passar casualmente pela janela e viu que não estava próximo da piscina.
Voltou para o corredor e notou que a porta do quarto de estava entreaberta. Andou em silêncio até o quarto e tentou olhar o que se passava do lado de dentro do quarto. viu o corpo de de costas para a porta, os braços cruzados e olhando para baixo, para cima da cama. Ao lado de sua mala, podia ver a arma sobre a qual tinha contado mais cedo.
— ? — ele perguntou, girando o rosto um pouco para o lado, mas sem olhar por cima do ombro.
Ela recuou, mas abriu a porta com uma mão.
— Precisa de alguma coisa?
girou o corpo e expôs o que sobrara de suas coisas, em cima da cama. Além da arma, posta cuidadosamente em cima de uma muda de roupas, ainda tinha uma pequena bolsa e um par de óculos escuros.
— Estou bem. Estava tocando?
Engoliu em seco. A arma estava posicionada perfeitamente em cima da muda de roupas, um sinal de que fora colocada como uma parte do cenário. Era estranho imaginar que aquela mesma arma foi usada em um momento de delicadeza e pânico, em que um pequeno deslize resultaria em uma catástrofe. Ainda assim, com medo de uma morte iminente, teve a firmeza de pegar a arma e posicioná-la de modo que, além de se salvar, salvou também duas jovens.
Agora, no entanto, o efeito era contrário. retinha a arma como um aviso.
— Tentando. Não consegui tocar direito.
— Sem concentração? — ele perguntou, baixo, sem olhar para trás.
A frase ressoou por alguns segundos antes que respondesse:
— Sim. Estava pensando em outras coisas.
virou-se para ela novamente. Olhou, em seguida, para a arma e a segurou, o cano erguido para o teto e o dedo no gatilho. não se moveu. Não soube precisar se estava em choque ou se estava fascinada demais.
— Chegue mais perto. Vou te mostrar como ela funciona.
engoliu em seco novamente. Não haveria modo de negar aquela ordem, por mais mansa que fosse a voz de . Começou a andar até onde ele estava, com as mãos atrás do corpo. Se gritasse, não haveria ninguém por perto para socorrê-la. Seria inútil tentar atacá-lo: por perto, não tinha nenhuma coisa mais rápida do que o tiro que poderia acertá-la.
Quando ficou de pé na frente de , viu que ele tinha uma de suas marretas ao lado da mala. Apontou para ela com o cano da arma e disse:
— Vou deixar esta com vocês. disse que precisava de uma, para quebrar algumas coisas no porão.
Ela respondeu com a voz calma:
— Entregue a ele mais tarde, quando ele chegar.
Ergueu a arma na frente do rosto de . A marreta estava atrás de ; não conseguiria pegá-la caso fosse necessário. O cano da arma era prateado, perfeitamente limpo, brilhante. Provavelmente, tinha sido lavado algumas vezes. Desencaixou o cilindro de balas e pareceu tirar todas que estavam armazenadas ali dentro, e com um movimento para o lado, devolveu o cilindro ao seu lugar.
reposicionou o dedo no gatilho. conseguia se ver no reflexo do cano.
— É uma arma sofisticada — comentou, esfregando o dedo pela trava. — Comum, mas sofisticada. Não merecia um homem como o que ela matou.
Fez uma pausa, o cano apontado na direção dos lábios de , apertados e vermelhos. Seus olhos olhavam para os de , esperando-o.
— Faz barulho demais. E deixa o cheiro de pólvora.
Destravou a arma enquanto a ponta do cano tocava seus lábios.
o olhava sem vacilar. Seus olhos estavam um pouco apertados, pelo sol que entrepassava na janela. Abriu a boca e fechou completamente os olhos.
Imediatamente, ouviu travar novamente a arma e jogá-la no chão, longe de ambos. abriu os olhos com o som da batida, o rosto apontado para o de . Voltou a fechá-los quando sentiu a mão de em sua cabeça e o corpo ser pressionado contra o dele. A boca de era quente, exatamente como ela imaginava que fosse, desde quando ele saiu daquele carro. As mãos de subiram para os cabelos de e agarraram-se aos seus fios desarrumados. O beijo de era violento, assim como a força de suas mãos ao apertarem as costas de por cima do vestido. Ela segurou com força o pescoço fino de , puxando-o com mais força, sem chances de fuga. Ele já tinha caído, e ela não o deixaria ir embora.
segurou a barra de seu vestido e ergueu-a, puxando todo o vestido pela cabeça de . Por baixo do tecido fino e monocolorido, ela vestia ainda um par de roupas íntimas feias e malcuidadas. rugiu novamente contra os lábios de , estes já com um pequeno corte. Suas mãos foram até a camiseta cinza para puxá-la para cima, e enquanto terminava de tirá-la, já estava dedicada a abrir os jeans. Quando o fez, puxou o tronco de para perto e sentou-se na cama.
Seu corpo era grande, mesmo que não fosse musculoso. Era como uma escultura malfeita, que o artista não se deu o trabalho de aperfeiçoar os detalhes. Havia certo tom de obra inacabada no corpo de . Decerto, algumas linhas saltadas demarcavam poucos músculos, mas de modo tão natural que sabia que eram acidentais. apoiou as mãos ao lado do corpo ao afastá-lo, de modo que estivesse completamente em cima do colchão. tinha uma mão de cada lado da cama, a coluna arqueada para frente e os olhos observando-a por debaixo. Parecia um felino calculando seu salto, e assim fez, ao subir na cama e ficar em cima do quadril de . Puxou, com ambas as mãos, sua roupa íntima e começou a alimentar-se.
Não era rápido, como sabia que ele não seria. Em vez disso, aproveitava cada segundo do sabor que parecia querer experimentar há tanto tempo. As mãos não o ajudavam. Não sugou de início: sabia que, para apreciar de fato, deveria começar pelos cantos. Não tinha fechado os olhos, pois sabia que a aparência contribuía para o gosto de qualquer alimento. Não deixava nenhuma parte lhe fugir: tudo tinha sua atenção, tudo precisava ser sentido por . Quando chegou ao centro do prato, dedicou-se a sentir seu gosto até o final. Demorou-se, passou todo o ápice da língua em sua área, o que tomou o tempo de marcar toda a região como sua, e totalmente sua. Por fim, respirou fundo e sentiu o que seria, definitivamente, seu cheiro preferido por muito tempo.
Ergueu o rosto e impulsionou o corpo para cima do de . Mal seus joelhos haviam afundado as laterais das pernas dela, pôs a mão em suas costas e segurou-o com força. Girou o corpo rapidamente e deitou no colchão. Confuso, ele franziu o cenho enquanto ofegava. ergueu o corpo e apoiou-se em seus joelhos, cada um posicionado de um lado do quadril de . Apoiou uma de suas mãos no tronco de e apertou os joelhos, mantendo-o imóvel da cintura para baixo.
Então, sorriu.
invadiu-o com os olhos fechados. Seu corpo estava relaxado, mesmo que determinado a repetir os mesmos movimentos. E, a cada nota, sua velocidade parecia aumentar aos poucos, em uma variação quase imperceptível. Mas , certamente, percebia; afinal, ele tinha gosto para música de verdade.
E fazia uma música alta, brutal, grosseira, que ele sabia que não sabia admirar. Talvez, sequer conseguia fazê-la tocar daquele modo.
segurava os quadris de , mas não exercia qualquer influência em seus movimentos. Era apenas um apoio, e mantinha o respeitoso silêncio para ouvir a música de . De fato, alguns ruídos invadiam a canção, como a cama e o som surdo das peles úmidas rebatendo-se. No entanto, não atrapalhavam a composição, enriquecendo-a com a ambientação perfeita.
fugia de seu corpo, mas logo voltava a ele. Ao menos, era assim que viu a cena em uma primeira visualização. Percebeu, então, que era exatamente o contrário: ela o puxava e o repelia, até aceitar por total sua participação. abriu-se para sua invasão, aceitou seu vírus e seu ritual. Mesmo que parecesse haver alguma tentativa de rejeição (gritava o suficiente para que acreditasse haver), aceitou aquele parasita sendo repassado.
Só que ela sabia que dessa vez, no entanto, ela permitiu que aquele mal a alcançasse.
No fim, com ambos tentando se reerguer com peso da casa em suas cabeças, deitaram-se lado a lado na cama. tinha os pés na cabeceira da cama, enquanto tinha a cabeça deitada no travesseiro e apontada para os delicados tornozelos de . Ele fechou os olhos e respirou fundo. O cheiro era fraco, mas podia senti-lo se estivesse concentrado o suficiente. olhava para a marreta perto de sua cabeça. Era grosseira, rudimentar. Fantasiou, por alguns instantes, sua mão em volta do cabo de madeira. Uma marreta como aquelas faria um grande estrago, fosse na parede ou em uma pessoa. Esticou a mão e tocou o metal hexagonal em sua extremidade, frio.
Virou o rosto para cima, para o teto da casa, e podia sentir ela pulsar em sincronia com as respirações dos corpos suados de e . Sentia o teto pesar, ao mesmo tempo em que parecia envolvê-la em um afago. Finalmente, estava de fato se sentindo em casa. Deixou de se sentir como uma invasora que insistia em fazer o solar cooperar com suas perspectivas, como se quisesse modelá-lo de acordo com seus desejos. Agora, sabia que era o contrário. O solar a envolvia como se a carregasse no colo, e a nutria com sua essência.
Não era um pedregulho.
Naquela noite, o jantar seguiu com poucas conversas, a maioria entre e . No entanto, naquela refeição em especial, perguntou a se ele voltaria a passar pela região em breve. Ele respondera que era improvável, mas que poderia desviar sua rota de trabalho com antecedência, na próxima vez. Comentou também que o jantar estava delicioso, e que gostaria de comer no solar 137 mais vezes.
De tarde, voltou para seu escritório e, com a porta fechada, terminou de gravar o violino que faltava em sua partitura básica. A primeira parte da canção já estava pronta, mas precisava enriquecê-la, adorná-la. A fase de enfeitar a música era fácil, já que se tratava apenas de vestir o corpo para servir aos ouvidos menos sensíveis. De qualquer modo, precisava esconder a essência, que era crua e simples demais.
Ainda se passariam dois dias sem que continuasse sua composição. Não por não conseguir, mas por preferir criar uma atmosfera ideal antes de forçar-se em um processo automático. Não poderia desenvolver uma obra de arte com pressão.
tocava, no piano, a única peça que se lembrava. bebeu um pouco de vinho antes decidir que era hora de subir as escadas e trabalhar. Observava o homem ao piano.
Notou que uma das principais diferenças entre e era que este não tinha qualquer noção de tempo ou intensidade.
ergueu os olhos e olhou para ela. Não hesitava.
Você sabe o que deve fazer com invasores, . Você já fez isso antes. Eu te dou a minha bênção.
Epílogo
Algumas religiões cultuam um elemento chamado de Executor Sagrado. Trata-se de uma figura, normalmente colocada em um primeiro momento como maldita, responsável por uma ou mais de uma execução durante o arco da história. A figura é posta como vilã, mesmo que sua mitologia costume envolver um tipo de ritual necessário. Raramente é compreendido logo após concluí-lo, o que gera algum tipo de banimento. No entanto, quando finalmente é, torna-se uma figura de respeito por seus feitos consequentes à execução, ou até mesmo pelas consequências do próprio ato, como o caso de Caim, assassino de Abel e fundador de cidades. O Executor Sagrado é, por fim, um mal necessário para que se atinja um bem maior, mesmo que nem sempre seja compreendido.
Os desdobramentos da morte de não são relevantes. Só interessa que ele morreu com uma marretada na cabeça, atingida por trás, quando se preparava para sair para o trabalho. Sua esposa, , ligou para a polícia horas depois, alegando que tinha sido estuprada e que o criminoso assassinara seu marido. Não se lembrava de nada, pois tinha sido agredida durante o estupro e ficou desacordada. Tinha marcas de enforcamento no pescoço que provaram sua alegação, e hematomas de sexo não-consentido em sua vagina. Quando acordou, o marido tinha a cabeça estourada na sala de estar, ao lado de seu piano. Inclusive, algumas das teclas estavam manchadas de sangue. não se negou a cooperar e deu à polícia todas as informações que se lembrava, mas o resultado fora inconclusivo. Se mudou do solar 137 alguns dias depois, vestindo uma camiseta branca e jeans.
Os desdobramentos da morte de não são relevantes. Só interessa que ele morreu com uma marretada na cabeça, atingida por trás, quando se preparava para sair para o trabalho. Sua esposa, , ligou para a polícia horas depois, alegando que tinha sido estuprada e que o criminoso assassinara seu marido. Não se lembrava de nada, pois tinha sido agredida durante o estupro e ficou desacordada. Tinha marcas de enforcamento no pescoço que provaram sua alegação, e hematomas de sexo não-consentido em sua vagina. Quando acordou, o marido tinha a cabeça estourada na sala de estar, ao lado de seu piano. Inclusive, algumas das teclas estavam manchadas de sangue. não se negou a cooperar e deu à polícia todas as informações que se lembrava, mas o resultado fora inconclusivo. Se mudou do solar 137 alguns dias depois, vestindo uma camiseta branca e jeans.