conter12

Prólogo

Você já amou inexplicavelmente alguém que não conhecia? Já amou tanto essa pessoa que só em pensar nela sentia o coração acelerar?
Sabe aquele sentimento capaz de te deixar nas nuvens? A sensação de estar ligado a alguém, um sentimento tão puro que mesmo à distância você é capaz de ama-lo com todo seu coração. É capaz de amar por inteiro, intensamente, sem esperar nada em troca ou melhor, esperando apenas ser amado de volta.
Já sonhou com o dia em que enfim encontraria com esse alguém, olharia em seus olhos e reconheceria o amor de sua vida? Assim, simples, amor à primeira vista.

Eu perdi as contas de quantas vezes imaginei como seria nosso encontro, me imaginava na praia, então teria câimbras e em meu socorro, ELE viria. Me imaginei chegando em uma festa, ELE me veria e ficaria espantado com a minha beleza e percebendo que eu era o grande amor de sua vida, deixaria sua namorada e viria até mim. Sonhei com o dia em que ELE esbarraria em mim, nossos olhares se encontrariam e ELE perceberia que eu sou tudo que sempre quis. Eu sonhava com ELE o tempo todo, me imaginava sentindo seu cheiro de perto, olhando em seus olhos de perto, comendo com ELE, rindo com ELE, fazendo tudo que casais normais faziam.
Quando eu não estava imaginando, estava procurando. Quando ELE estava com o meu irmão era um pouco mais fácil, podia admirá-lo de longe. ELE havia estado na minha casa algumas vezes, para minha infelicidade, em momentos em que eu não estava.
Já nem me lembrava quando ou como havia me apaixonado por ELE, por , só sabia que era perdidamente apaixonada. Eu o admirava, era perfeito, era como se eu fosse uma fã obcecada por um ídolo inalcançável, mas para o meu azar ou sorte, estava próximo mesmo que longe de mim. Era um amigo de um dos meus irmãos e para meu azar, o que eu menos me identificava. Me faltava coragem, sempre que ele estava a menos de dez metros de mim, eu congelava, não me lembrava nem de como respirar. Uma vez, ele até sorriu para mim.
infelizmente tinha alguém. Eu havia encontrado o homem dos meus sonhos, mas fui apresentada primeiro a sua bela namorada. Me lembro de chorar por uma semana inteira, não entendia o que ela poderia ter que eu não poderia oferecer. Eu daria a ele tudo que ele quisesse, o mundo se fosse preciso, apenas para sentir o abraço dele uma única vez.
Por mais que detestasse a ideia de com alguém, tinha que admitir que não era difícil se apaixonar por ele, era facílimo. ELE era lindo, os olhos mais brilhantes que eu já tinha visto, gentil, doce, fazia trabalhos voluntários, ensinava crianças no fim de semana. Eu sentia que o conhecia como a palma da minha mão, só não sabia como, já que nunca havíamos trocado nem um “oi”. No fundo, me perguntava como era possível ser perdidamente apaixonada por um homem que nunca sequer havia percebido minha singela existência.
Sempre ficava atordoada com esses pensamentos, me achava louca, até procurei um terapeuta, não poderia ser normal ou saudável um comportamento deste tipo. Até que, certo dia, li alguma coisa sobre vidas passadas, nunca nada fez tanto sentido, era como se fosse exatamente aquilo que estivesse acontecendo: eu, apaixonada por um homem que nunca sequer olhou para mim, explicava minhas fantasias de um modo não racional, mas aceitável. Mas minha descrença no mundo espiritual e a distância de me lembravam que isso era apenas uma fantasia da minha mente carente e romântica, que queria viver um romance épico de qualquer jeito. Sua relação firme com uma garota aparentemente perfeita também cortava meu coração, eles namoravam há oito anos e eu não tinha o direito de me meter entre eles.
Todas as vezes que alguém que eu conhecia falava dele, meu coração sangrava, mas mantinha a pose, duvido se alguém alguma vez percebeu o que eu sentia.
Mas minha vida nunca parou por causa disso, eu tinha algum amor próprio, sempre tentei me apaixonar, gostar de alguém do modo que eu imaginava gostar dele, durava algumas semanas, no máximo alguns meses. Era como se minha alma esperasse por mais, esperasse o momento certo, o que só dificultava as coisas, não é fácil viver desta maneira, esperando alguém que você nunca sabe se vai chegar ou não.
Alguns meses depois de ouvir meu amigo Matt elogiar o casal, descobri que eles iriam se casar. Não me lembro de ter sentido dor parecida com aquela, era o final para mim, o casamento de selaria que nós nunca teríamos chance, que eu nunca poderia estar com ele da maneira que gostaria. Passei a me odiar por isso, como eu conseguia ser tão estúpida a ponto de chorar rios de lágrimas por um homem que eu sequer conhecia? Fiquei melancólica e tudo que eu queria era sumir ou morrer, qualquer coisa que me tirasse aquela dor que eu não sabia de onde saia, mas que tomava proporções enormes.
Resolvi traçar um novo plano para minha vida, chorar e se lamentar, pelo resto da vida não é algo do meu feitio. Decidi estudar, me mudei para longe, deixei minha família, amigos e toda e qualquer lembrança dele que eu pudesse ter, me forçando a criar novas e a ocupar tanto minha mente que não sobraria tempo para me lamentar. Ao passar pela placa que marcava a divisa da cidade, prometi a mim mesma que nenhum amor inexplicável me tiraria de mim e que eu não sofreria daquele jeito nunca mais. Nunca mais sentiria a dor de perder um amor que nunca foi meu e que provavelmente, nunca amaria alguém de verdade. Talvez algo em mim tenha se apagado ou adormecido quando parti, mas era necessário, eu precisava seguir em frente.
Iniciei o curso de gastronomia e me apaixonei pela área, segui minha vida com quase um manual de como esquecer sua paixão-avassaladora-platônica em três passos. Primeiro: esqueça tudo que te lembre ele – incluindo família e amigos se for o caso, segundo: se mude e ocupe sua mente, terceiro: arrume outros problemas.
Agora, quinze anos depois, formada, muito bem, obrigada, mais madura e menos inocente, eu volto a minha antiga cidade. Mas agora já não me importam amores que nunca foram amores de verdade, a única coisa que dou importância agora, é a minha família.


1

Uma casa grande, moderna e ao mesmo tempo aconchegante, havia um grande gramado ao redor da casa. Canteiros de tulipas enfeitavam a entrada, a fachada de vidro e o estilo minimalista diferenciavam a casa das outras da rua. Era uma vizinhança calma, poucos vizinhos e muitas mansões.
A cidade de Paradise era considerada uma das maiores do estado, concentrava os mais diversos tipos de bairros existentes no mundo, bairros praianos com seus surfistas, casas de praia e pessoas sem camisa, o centro com seus prédios chiques, empresas caras e mafiosos, e os bairros residenciais periféricos ou os chiques, como aquele em que morariam. Benefícios de se casar com um engenheiro brilhante e em ascensão.
Estávamos explorando a casa, Dom, nosso filho estava animado com todo o espaço e a área verde. Seria uma vida diferente, eu era uma pessoa completamente diferente de quando saí. Quando me mudei era uma jovem cheia de melancolia por ter um amor não correspondido, agora era uma mulher madura, casada e mãe.
Me lembrava muito bem do percurso até ali, eu tinha dezessete anos e vinte e três quando nos vimos pela primeira vez no campus da faculdade. Eu sempre o evitei, não acreditava que poderia suportar uma vida vazia e superficial, ainda estava mexida pelos últimos acontecimentos. Mas ele não desistiu, sempre solícito, doce e tentando ser um bom amigo, até que dois anos depois acabei me rendendo as tentações e ficamos juntos, engravidei depois. e eu construímos uma vida juntos, ele era um ótimo pai para nosso filho e eu não podia reclamar dele como marido, sua gentileza e parceria me completavam. Nunca fomos arrebatadoramente apaixonados um pelo outro, mas nos amávamos à nossa maneira e nos acostumamos a isso. Hoje estamos aqui, eu abrindo as janelas enquanto traz mais algumas caixas para dentro e Dom conhece melhor a casa. Uma família totalmente imperfeita, mas a minha família feliz.

– O que acha de jantarmos pizza hoje? – sugeriu se sentando no grande sofá branco recém colocado.
– Eu acho uma boa ideia, estou exausta. – Expirei enquanto me jogava ao seu lado colocando a cabeça em seu ombro.
– Amanhã eu tenho uma reunião com Josh Taylor, para acertar todos os detalhes da nova filial. – Ele falou enquanto acariciava minha mão.
– Será que eu já devo comprar meu chapéu chique para acompanhar os eventos sociais da família Taylor? – Provoquei.
– Muito engraçada. – rolou os olhos e recostou a cabeça no sofá. – Mas talvez essa seja uma boa ideia, Westing City é aqui do lado, nunca se sabe quando podemos ser convidados para um chá. – Ele riu alto.
– Agora você me preocupou. – Falei fingindo preocupação.
– Quais seus planos para amanhã? – quis saber. – Eu ainda não sei, estou pensando em uma jornada dupla de mãe e esposa, o que acha? – Sorri e assentiu. – Dom tem aula amanhã, vai ser bom conseguir organizar as coisas.
– Vejo se consigo sair mais cedo para te ajudar. – piscou.
– Obrigada. – Beijei seu rosto com doçura. – É melhor eu tentar descobrir onde foi parar a louça. – Sorri e me acompanhou.

Ele era um bom homem do tipo super – herói americano, alto demais, com ombros largos e cabelos loiros, parecia a descrição de um homem bonito comum, mas não era, tinha um toque selvagem que eu nunca encontrara em homem algum e ficava grata por ter encontrado nele. No fundo, gostava de acreditar que na realidade todos relacionamentos eram assim e não como aqueles da TV, em que o casal nem consegue respirar de tanta felicidade, como se seu coração fosse explodir. Gostava de pensar que isso era só coisa de adolescente.


🍁


A semana passou e eu assumi meu lugar como dona de casa comum. Acordava, preparava o café, levava Dom até o colégio e ia trabalhar, eu cuidava da casa, terminava de desempacotar coisas, cozinhava. Meus pais foram jantar conosco num domingo, conhecer a casa, colocar o papo em dia.

– Então , já está pensando no que fazer? – Meu pai perguntou.
– Na verdade, eu ainda não pensei muito nisso. Talvez eu abra um restaurante, mas ainda não sei. – Eu estava tão entediada com o jantar que nem sequer havia tocado na comida.
– Ah. – Meu pai achou que eu estava debochando e franziu o cenho confuso.
– Isso é sério, eu fiz gastronomia, lembra? – Falei tentando contornar a situação.
– E então Abigail, como vai o Giovanni? – me salvou de outra bola fora perguntando do meu irmão.
– Ah, ele está ótimo. Sua esposa, a Sue, está meio triste, um amigo está bem ruim no hospital, então eles não têm vindo nos visitar. Parece que teve um derrame, um rapaz jovem, é uma pena. – Mamãe disse com pesar.
– Deve ser horrível. – suspirou e o assunto acabou novamente.

Não que eu gostasse de ser a eterna criança birrenta da família, mas não estava afim de ouvir falar do passado ou da falava da família perfeita do meu querido e adorado irmão. Porque não falar da faculdade, do parto de Dom, do emprego novo de , qualquer coisa que não fosse sobre a cidade e seus tempos antigos ou meu irmão. A pergunta de um milhão de dólares é, se eu odeio tanto este lugar, para que voltar?
O jantar passou rápido, estávamos terminando a sobremesa quando o foco da conversa se voltou para mim novamente.

– Esse jantar está maravilhoso, . – Minha mãe disse.
– Que bom que os anos na faculdade valeram a pena. – Disse sem humor e meu pai riu.
– Quem disse que precisa ir para faculdade para aprender cozinhar? – Ele disse e eu respirei fundo, depois sorri.
– Bom, eu fui. Foi isso que eu estudei durante anos. – olhou para mim com receio.
– Ouviu isso, querida? Disse para ela que você aprendeu com sua mãe? – Meus pais riram alto, eu e nos encaramos.
– Quando você foi para faculdade, achei que fosse estudar algo de verdade. – Meu pai falou e deu de ombros.

Eu não consegui dizer nenhuma outra palavra até eles passarem pela porta, nem mesmo boa noite!

🍁

– Isso foi pedreira. – falou enquanto recolhia a louça.
– Será que a gente pode colocar na porta um aviso, proibido a entrada de qualquer membro da família ? – Eu quis saber revirando os olhos.
, eu sei que eles são terríveis e que amam o Giovanni possivelmente mais do que amam você e Oliver. – Eu o olhei fingindo estar ofendida. – Mas eles são seus pais, cheios de defeitos, mas seus pais. Talvez seja bom aproveitar nossa mudança e tentar se reaproximar. – Ele finalizou me dando um beijo na testa e piscando. – Coloque o Dom na cama, a louça é minha.

Obedeci.
Encontrei Dom jogando vídeo game, me surpreendia como ele ficava cada vez mais bonito. Agora com quase treze anos tinha muitos traços do pai, mas não era parecido. Tinha o cabelo loiro de , mas os olhos azuis da minha avó paterna, era alto e bonito, além de ser engraçado, doce, gentil e prestativo. Quando eu olhava para ele, me sentia mais que orgulhosa, sentia que não tinha falhado com ele, que meu filho era alguém do qual eu me orgulharia muito.

– Hora de dar tchau. – Avisei olhando do batente da porta.
– Só mais dez minutos. – Ele pediu.
– Já são onze horas, você precisa dormir. Se lembra da prova de amanhã? E do teste para o time de futebol? – Eu disse me aproximando e colocando as mãos em sem ombro.
– Os testes. – Ele corrigiu. – Vou fazer o teste para entrar para o time de natação, o pai pediu.
– O que? Ele pediu para fazer o da equipe de natação? – Indaguei incrédula me sentando em sua cama.
– Ele disse que ganhava todos campeonatos quando estudava. – Dom lembrou revirando os olhos.
– Mas em compensação, ele era o cara mais chato e arrogante que já frequentou o colegial. Aposto que ele não te contou essa parte. – Eu contei rindo.
– Não contou. – Dom respondeu chocado.
– Se você realmente quer entrar na equipe de natação, faça o teste, mas se não quer, o que eu acho, não faça.
– Mas meu pai... – Dom me lembrava tanto da minha infância, atrás de aprovação...
– Faça o que você gosta, se for o clube de teatro, o coral ou o time de futebol. – Eu falei sorrindo.
– Obrigado, mãe. – Ele sorriu de volta.

Sempre achei que essa ligação entre mãe e filho fosse algo inventado, como todos os outros sentimentos, romantizados demais. Mas com Dom, eu via que era tudo verdade, vê – lo sorrir, ficar feliz e animado por um teste de futebol, me deixava feliz. As conquistas dele eram as minhas, os fracassos dele eram os meus, ele era meu pedaço. Talvez os quinze anos fora não tenham sido assim tão ruins, não olhando por esse lado.

🍁


Levantei mais cedo que o habitual para preparar o café da manhã, afinal o dia merecia começar com chave de ouro.

– Bom dia! – cumprimentou sorrindo e cutucando uma panela que ainda estava no fogo.
– Não toque aí. – Dei um tapa leve em seu braço.
– Isso está muito cheiroso. Qual a ocasião especial?
– Começa com nosso e termina com Dom. – Brinquei. – Bom dia, querido! – Dom devia estar tão ansioso que chegou na cozinha antes de irmos chama – lo.
– E aí, carinha? – começou a falar umas coisas inaudíveis com nosso filho.
– O café está na mesa. Omelete, panquecas com geleia de frutas vermelha, suco de laranja e tartelette de frutas da estação com calda de tangerina. Eu sei que você ama. – Mostrei sorrindo.
– Nossa, poderia ter um teste todo dia. – Dom riu.
– Espere pela melhor parte, hoje eu vou levar você a escola. – Contei servindo café preto a .
– Você? O que houve, você bateu a cabeça? – zombou.
– Eu quero ir ao mercado, preciso de umas coisas que faltaram da última vez que você foi. – Revirei os olhos.
– Tudo bem, senhora Chef!


🍁


Éramos uma família bacana, apesar de tudo. No caminho, eu só conseguia pensar em como seria incrível ter alguém como meu filho na minha época. Na época em que eu vivi ali, época que eu acreditava que tudo era parte de um complô contra mim e que uma dor de coração partido duraria a vida toda. Era nostálgico pensar que meu filho passaria a adolescência onde eu passei a minha. Uma coisa assim era inimaginável para mim até seis meses atrás, quando chegou com a notícia do emprego novo em casa.
Era estranho e nostálgico rever aqueles portões depois de tantos anos, a escola era a mesma, obviamente com algumas mudanças, mas ainda mantinham a grande piscina na qual meus amigos quase me afogaram uma vez, o campo de futebol e as arquibancadas em que eu dei o meu primeiro beijo. Será que aconteceria isso com Dom também? Ou já havia acontecido? Um aperto tomou meu coração, até quando eu teria o meu bebê?
Não gostava nem de pensar na hipótese de Dom começar a namorar. Olhei de soslaio para o banco do carona, ele estava batendo os dedos da coxa, com os fones de ouvido. Daria qualquer coisa para saber o que estaria se passando na mente dele naquele momento.
– Chegamos, quarterback. – Brinquei quando estacionei.
– É. – Respondeu nervoso.
– Dom. – Ele voltou seu olhar para mim. – Você é ótimo, era do time em New York, você é bom. Mas se não conseguir, tudo bem também, não é nada demais, é só tentar de novo. – Ele assentiu, sorriu e me abraçou.
– Valeu. – Seu abraço era uma delícia.
Por mais que ele fosse meu filho e que na maioria das vezes eu que comprasse seu perfume, todas as vezes que o abraçava era como se nunca tivesse sentido seu cheiro antes.
Saí do carro junto com ele, mas apenas o observei de longe. Ele olhava receoso para trás, se certificando que não estava sendo seguido. Eu tinha ali o amor da minha vida, a coisa mais importante para mim, a pessoinha que me fazia feliz todos os dias de um modo inimaginável. Eu nunca fora exatamente o modelo de mãe, ás vezes parecia ser mais uma irmã mais velha que uma mãe, sempre dizia isso. Mas era quem eu era, uma velha criança de trinta e poucos anos, meio imatura, mas totalmente séria quando necessário. Claro que meu lado doce e amável havia ficado em New York, a velha cidade sempre despertara o lado amargo.
– Meu Deus! Eu não acredito que está aqui bem na minha frente! – Uma voz esganiçada me assustou e me fez ficar alarmada. – , é você mesmo?
– Desculpe? – Quando dei por mim, os braços da desconhecida já me envolviam.
– Gina. Spilner. Se lembra? Eu namorei seu irmão. – Mas que droga, pensei.
– Gina, oi! – Claro que eu me lembrava dela, mas não que fosse uma lembrança amigável. Fingi meu melhor sorriso.
– Eu estava te olhando desde antes de você sair do carro para ter certeza se era mesmo você. – Ela disse rápido demais. – Aquele era seu garoto? Ele é lindo, se parece com seu irmão.
– Você é a primeira pessoa que diz isso. – Tudo bem tentar ser educada, pensei.
– Você se casou? Está linda! – Ela parecia realmente feliz em me ver.
– Obrigada, você também está. Sim, me casei e você?
– Me casei e estou grávida do meu terceiro filho. – Ela respondeu tocando a barriga, estava bem radiante.
– É mesmo? Parabéns! – Tentei soar agradável, não sabia se havia conseguido, não era de bom tom soar desinteressada ou entediada, mesmo quando se está.
– Sim, é uma menina, se chamara Camile. Estamos no sétimo mês. – Ela contou sorrindo. – Quem diria que um dia você voltaria para cá, não é? A popular, presidente da turma.
– Eu nem me lembrava disso. – E eu estava sendo sincera.
– Sua mãe me disse que você morava em New York. Porque voltaram para cá? – Um pouco bisbilhoteira. Eu sabia que se dissesse a ela a cidade toda saberia, talvez não houvesse mal nisso.
– Meu marido recebeu uma proposta interessante de trabalho.
– Que ótimo! – Ela assentiu. – A cidade continua minúscula, exatamente a mesma que você deixou, sem muitas mudanças. Se bem que... – Ela riu alto. – Se lembra da Carly, que namorou seu outro irmão? – Eu realmente não queria entrar nesse assunto.
– Sim, claro. – Disse fingindo prestar atenção e estar interessada no que ela dizia.
– Ela agora se chama Noah, namora uma miss e mora na casa dos pais. Fora isso tudo continua o mesmo. – Não me contive e acabei rindo com Gina.
– Apenas isso mudou? – Não conseguia segurar a risada enquanto imaginava o drama que Giovanni devia ter feito ao descobrir que a quase noiva agora se chamava Noah. Não tinha nada a ver com a transição de Noah, mas meu irmão religioso e careta como era, eu só conseguia imaginar a reação dele.
– Claro que muita gente casou. – Ela ainda ria, possivelmente pelo mesmo motivo. – Coisas ruins aconteceram também. – Ela fechou a expressão e começou a acariciar a barriga.
– Como por exemplo... – Talvez eu quisesse muito saber das fofocas.
– Ted e Natalie morreram ano passado. Houve um incêndio na casa deles.
– Ted do time de futebol e Natalie, a estranha? – Eu os conhecia, Ted era meu amigo e eu sequer sabia da sua morte. – Espera, eles se casaram?
– Sim. Infelizmente o tempo não volta, não é?! – Ela parecia um pouco sentida.
– Ted era meu amigo. Meu melhor amigo. – Eu estava totalmente chocada. – Essa deve ser a cidade com mais tragédias do país. – Sussurrei.
– Talvez. – Ela estava com aquela cara que sempre fazia quando queria contar uma fofoca.
– O que você quer me contar? – Perguntei inclinando um pouco a cabeça.
– Você ainda me conhece, não é? – Ela riu alto.

Por mais difícil que fosse aceitar, quando estávamos no colégio, Gina namorou meu outro irmão, Oliver. Nós éramos inseparáveis, Gina era líder de torcida e era da equipe de natação, eu era presidente da turma e a primeira da classe. Éramos o que os filmes adolescentes chamam de populares, mas sem aquela parte do bullying. Tudo bem, as vezes também tinha essa parte, não me orgulho.

– Tudo bem, você se lembra da Sarah? – Ela disse como quem conta um segredo.
– Não, eu deveria?
– Não, tudo bem, você não conhecia ela nem ninguém que tivesse proximidade, eu acho. Talvez o Matt, mas isso já faz tanto tempo.... – Ela deu de ombros.
– Ela morreu? – Perguntei incrédula.
– Não! – Gina respondeu e pousou a mãe sobre o peito. – Pior, o noivo ficou doente e ela o abandonou, acredita?
– Que cruel. – Quem era a Sarah que Matt conhecia? Eu só me lembrava de uma, mas não poderia ser essa, poderia? Não! Não!
– O noivo não tinha família sabe, alguns amigos ainda o visitam, mas ouvi dizer que ele não tem mais tempo, deve morrer logo. – Ela voltou a acariciar a barriga.

Não era possível que depois de tudo, depois de todos aqueles anos fora...aquele assunto não poderia voltar a me perseguir. Não que eu tivesse o esquecido por alguns segundos sequer alguma vez na vida, mas não podia acontecer de novo. Por favor, não! Também podia não ser ele, não é? Tudo bem que ele era o noivo de uma Sarah que o Jared conhecia e que não tinha família, mas qual era a probabilidade de ser a mesma pessoa a estar morrendo no hospital?
Eu tinha que perguntar, mas eu não sabia se queria ou não ouvir a resposta. Não queria, mas precisava.
– Não é a Sarah do , é? Aquele bonitinho? – Perguntei fingindo desinteresse.
– Sim, é essa. Sabe, , se você o ver hoje em dia, nem o reconhece. Minha prima Darcy trabalha no hospital, ela disse que o médico não deu muita esperança. – Foi como um soco na boca do estômago.
– Que droga, não é?! – Eu não sabia o que fazer. – Gina, eu preciso passar no mercado, nos falamos depois, tudo bem? – Tentei ser simpática.
– Claro, . Nos vemos na hora da saída. – Ela acenou.


🍁


No carro, não era como se eu pensasse em outra coisa a não ser ir para o hospital, ainda me lembrava bem onde era, descendo a ladeira depois da escola, entre os prédios mais altos da cidade, um lugar frio e úmido, mas perto da praia. Eu odiava a cidade e seu hospital, mas assim que escutei as palavras saindo da boca de Gina, já não tinha mais escolha, nem controle sobre o que eu faria a seguir. Não existia nada mais que importasse naquele momento além do hospital e de quem estava nele, nada no mundo me tiraria da rota e assim eu estava prestes a quebrar uma promessa que durou mais de uma década, sem qualquer arrependimento.
Passar pela recepção e todo o resto não era difícil, em menos de dez minutos eu já estava no corredor indicado pela enfermeira. A porta do quarto era grande e por uma pequena aberta eu podia assistir a toda movimentação dentro do quarto, vários enfermeiros tentavam sem êxito fazer a contenção de um paciente.
O homem se debatia na cama, rápido e com força, era possível que se machucasse daquela maneira, ele gritava também, nada compreensível, ele parecia não conseguir falar mais. Era como se estivesse preso no próprio corpo e se debatesse desesperado tentando sair, tentando se comunicar com as pessoas que o rodeavam. Eu congelei assistindo a cena até perceber do que se tratava ou melhor, de quem se tratava, só o reconheci quando os olhos profundos e castanhos assustados cruzaram com os meus. O rosto antes bonito e corado estava pálido e ossudo, como se todos os músculos da face tivessem sido retirados cirurgicamente. O cabelo antes bagunçado e um pouco grande, com algumas ondas, estava curto, cortado de qualquer maneira por máquina. Os membros, antes fortes e firmes, agora pareciam varetas finas. Ele tentava se erguer, balançando o corpo como numa gangorra, foi a cena mais assustadora e triste que eu havia visto na vida.
A vontade de me aproximar me consumia na mesma intensidade que a angustia por vê-lo naquela situação, ambas foram infinitamente menores que a vontade de chorar e correr de volta a New York. De acordo com que diminuía a distância entre nós, mais era possível sentir o cheiro de urina e vômito. Pelo que eu sabia dele, com certeza seu desespero poderia ser por estar sendo visto naquela situação tão constrangedora. Ele babava e ainda gritava coisas que eu não entendia, parecia estar agressivo demais para uma aproximação, talvez estivesse louco, desorientado, completamente fora de si.
Mas quem era meu cérebro para ordenar que eu me afastasse naquele momento?
Num impulso, antes mesmo que os enfermeiros notassem, corri em direção a maca e segurei num ímpeto a mão do homem que ali estava, quando os olhos dele se voltaram para mim, meus lábios se moveram suavemente, como se eu não estivesse em pane por dentro.
– Está tudo bem! Eu estou aqui com você! Vai ficar tudo bem! – E repeti aquelas palavras quase centenas de vezes, como um mantra, como se tudo que aconteceu na minha vida até aquele momento fosse para que eu pudesse fazer aquilo, naquela hora, naquele lugar.

Ele, como o vento de uma tempestade, começou a se abrandar devagar, parou de gritar e de se mexer e começou a me encarar fixamente. O cheiro forte ainda estava ali, mas não importava, eu apenas sorria e repetia o mantra.

O tempo não parecia ter passado, até que uma enfermeira veio incomodar.

– Senhora, eu preciso que saia. Eu preciso cuidar do paciente agora. – A enfermeira parecia receosa.
– Não tem muito tempo que estou aqui. – Falei.
– O horário de visitas acabou a meia hora, se quiser pode voltar amanhã.
– Tudo bem. – Eu disse. – Vai ficar tudo bem, descanse, eu volto depois. – Disse para ele com um sorriso e apertei de leve sua mão antes de solta – la com pesar.

Olhei – o algumas vezes antes de sair do quarto, mas ele continuava imóvel, não sabia o que estava sentindo, estava totalmente confusa.

– Com licença. – Alguém interrompeu meus devaneios.
– Sim.
– Você é da família? – Um médico perguntou.
– Desculpe, eu não entendi. – Mantinha uma expressão confusa no rosto.
– Senhor , onde você passou cinco horas. – Cinco horas? Pensei.
– Eu só o conheço. – Estava totalmente desorientada.
– Parece que ele te reconheceu, você o acalmou. – O médico sorriu, eu estava totalmente confusa com tudo. – Pode me chamar de Rafael, senhora?
. . – Disse rápido. – Você é o médico responsável por ele? O que ele tem? É grave? – Praticamente vomitei.
– Bom, nosso amigo tem um quadro de Síndrome de Albizzi, grau oito, vou tentar não usar o meu vocabulário médico. – Ele sorriu e eu não entendi porque fizera aquilo.
– Então é bem grave, não é?
– Sim, sinto muito. – Dr. Rafael disse um pouco mais sério. – O quadro dele tem se desenvolvido de uma maneira atípica. Ele não tem mais exatamente todos os movimentos do corpo, é como se fosse um tipo de paralisia, ele aparenta as vezes estar orientado, mas também acontecem surtos como esse que você presenciou. Eles são bem comuns. – Mas o que era tudo aquilo? Pensei.
– Desculpe, você disse grau oito? Qual seria o grau nove e o dez?
– Nove, os órgãos param de funcionar, dez, óbito por Síndrome de Albizzi. – Dr. Rafael respondeu com um olhar sério.
– Quais as chances de uma reversão? – Eu não entendia como aquilo estava acontecendo.
– Sinceramente, senhora , talvez ele passe anos estagnado no grau oito, talvez essa noite avance para o grau dez, não é possível prever. Quanto a uma reversão, acredito que apenas com um milagre. Essa síndrome é nova, não se tem muitos registros dela. Noventa por cento das pessoas que tiveram Albizzi morreram e os dez por cento que sobreviveu não teve a doença tão avançada. – O médico contou e eu só conseguia pensar em sair dali, correr o mais rápido possível.
– Eu preciso ir. – Disse rápido e praticamente corri até a saída.

Da portaria do hospital era possível ver os portões verdes do cemitério da cidade, me lembrei de Ted. Era como um turbilhão de sentimentos dentro de mim e eu não conseguia organizar meus pensamentos, minha cabeça gritava desesperada, eu estava completamente desorganizada.

Quando entrei no cemitério uma brisa gelada atravessou as roupas que eu usava, não gostava daquele lugar. O cemitério tinha tristes e grandes árvores, algumas estátuas e algumas colinas, do alto dessas colinas era possível ver a baía, a praia, o píer com seus barcos ancorados e o mercado de peixes.
Lembrava de ter ido ao funeral do pai de Ted, talvez ele estivesse por perto. Depois de caminhar um pouco encontrei o mausoléu da minha família, no alto da primeira colina, seria uma vista bonita se não fosse um cemitério. Logo atrás do mausoléu estavam os túmulos da família Weiss, Ted estava como previsto ao lado de seu pai. Theodore J. Weiss Jr. Amado marido, pai, irmão e filho. Para sempre nos nossos corações. Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te. A velha frase de Shakespeare que Ted usava para tudo estava ali, lembrando que o espírito culto e curioso de Ted ainda era capaz de tocar corações. Agora o meu amigo estava ali, enterrado, sozinho, longe de tudo que ele amou na vida...longe do filho. Por mais que tivesse abandonado a cidade sem pensar duas vezes, enxergar agora todas as mudanças, tudo que havia passado. Ted era meu melhor amigo, eu poderia ter o aconselhado em seu relacionamento, ido ao seu casamento, poderia ter conhecido seu filho, tinha perdido muita coisa. Me sentei com cuidado, encostando na lápide de Ted e deixei que as lágrimas escorressem livremente.

– Me desculpe. Eu nunca estive aqui para você, não é?! Lembra do que o Giovanni sempre me chamava? – Dei um suspiro profundo. – Egoísta, você nunca vai ter alguém porque você não merece que alguém goste de você. – Repeti as palavras que meu irmão sempre dizia. – Ele estava certo. Eu fugi daqui porque eu não conseguia conviver com a felicidade alheia e olha tudo que aconteceu. Você se casou, teve filhos, morreu e eu não soube de nada disso. Até a Gina língua grande me contar hoje. – Respirei fundo. – Eu sinto muito. Eu nunca tive um amigo lá como você, sabe. Na verdade, acho que a última vez que eu tive amigos de verdade foi aqui. Que droga, eu não consigo acreditar que você morreu e eu nem fiquei sabendo. – Mais lágrimas e suspiros.

Já não existiam mais lágrimas para serem derramadas, estava encostada na lápide do meu melhor amigo, encarando o vazio, pensando no quão idiota eu tinha sido, no quão estupida, em como tudo havia dado errado para e para Ted e como eu simplesmente preferi ignorar tudo e abandonar todos por inveja e egoísmo. Não havia me dado conta que as horas passaram, só percebi quando encarei o céu negro e com algumas estrelas. Pude ouvir passos lentos atrás de mim, não me virei, a essa altura não fazia diferença se fosse o zelador ou um fantasma.


2

– Você gosta mesmo de desaparecer, não é?! – Uma voz macia, tive impressão de conhece-la. – Acho que se tivesse um odeiadores anônimos de Paradise, você seria membro fundador. Precisa achar uma cidade para te fazer feliz, se tivesse uma competição de melancolia e mau humor, você sempre ganharia. – Oliver, pensei.
– Oliver?! – Perguntei olhando por sobre o ombro.
– Quem achou que era? – Ele respondeu se sentando ao meu lado. – estava quase acionando a polícia. Você está desaparecida desde as oito da manhã. Sabe que horas são agora? Nove da noite. Eu pensei que você tinha fugido, ou se jogado na baía. Lembra quando éramos crianças, você sempre sumia e ia para a baía quando as coisas ficavam ruins e ameaçava se afogar lá? Sempre tão dramática. – A lembrança me fez sorrir fraco.
– Como me encontrou? – Perguntei olhando para ele de soslaio.
– Fui te visitar, descobri que tinha sumido. Impedi de ir até a polícia, refiz seus passos. Imagina a surpresa que tive quando descobri que Gina língua grande tinha contado sobre tudo que aconteceu na cidade nos últimos quinze anos. Imaginei que sua consciência iria te trazer até aqui.
– Por que ninguém nunca me contou sobre ele? – Fiz a pergunta que estava na minha mente desde que soube de tudo.
– Eu não sei, nunca quis contar. – Ele deu de ombros. – Ele era meu melhor amigo também, eu não acredito até hoje que ele morreu.
– Como foi? – Oliver deu um pesado suspiro antes de continuar.
– O Jack estava com os avós, o Ted estava em casa com a mulher. Ninguém sabe direito como aconteceu, foi durante a noite, talvez morreram dormindo. – Oliver deu um sorriso triste.
– E a criança?
– Os avós continuam aqui e ele vive com eles, tem uns treze anos. Lembra como o Ted era bom recebedor? Jack é ainda melhor.
– Eu queria ter convivido mais com ele antes dele morrer.
– Não tinha como você adivinhar, está tudo bem. Você veio aqui pedir desculpas? – Oliver quis saber envolvendo meus ombros com seu braço.
– Sim.
– Então continue visitando que ele vai te perdoar. – Oliver sorriu. – Vamos, todo mundo está louco atrás de você.


🍁


Depois de vários abraços e muitos Graças aos céus que você está bem, Oliver foi embora com meus pais e eu fui tomar um banho. Quando me deitei já estava à minha espera na cama, aproveitei a chance e me aninhei em seu peito como adorava fazer.

– Dia difícil. – Ele disse e eu apenas assenti em silêncio, sentindo o calor de sua pele. – Oliver me contou o que aconteceu. Eu sinto muito, de verdade.
– Teve mais uma coisa. – Não sabia exatamente porque havia dito aquilo.
– O que foi? – quis saber com seu olhar compassivo.
– Uma pessoa...um amigo. Eu também descobri que ele está no hospital, poucas chances de recuperação e a noiva o abandonou quando ele ficou doente. – Estava ficando boa em fingir que não me importava.
– Tudo bem. – me apertou mais forte. – Você não vai perder mais ninguém. Você foi vê-lo?
– Sim.
– É mesmo assim tão grave? – acariciava minha cabeça com delicadeza, ele sabia que aquele carinho me acalmava.
– Pior ainda.


🍁


O resto da semana passou como se aquele episódio emocional desesperado nunca tivesse acontecido. Não fui mais ao hospital, nem levar Dom ao colégio, não visitei o tumulo de Ted, nem vi Gina língua grande, não vi meu irmão gêmeo, nem meus pais ou meu outro irmão. Era uma sexta como outra qualquer, Dom se despediu e foi para o carro e veio me dar um beijo antes de sair.

– Quais são seus planos para essa sexta ensolarada? – Ele perguntou sorrindo.
– Nenhum. – Sorri enquanto recolhia a louça.
– Por que não visita seu amigo no hospital hoje? Aproveite e leve umas flores para o Ted. – sugeriu. – Eu sei que não está bem desde aquele dia, eu conheço minha esposa. Vá vê-los. Você precisa aprender a lidar com isso e só pode fazer isso sozinha. – Eu sorri.
– Eu vou pensar, está bem? – Prometi a contragosto, ele sorriu e me deu um beijo.

Uma hora depois já estava no carro, havia passado em uma floricultura e comprado flores para e Ted. Não foi preciso pensar muito, era óbvio que eu queria ficar do lado dele até ele partir se fosse o caso, o que eu rezava para não ser. E se tinha alguma intenção em me curar dessa paixão doentia, eu devia enfrentar tudo, como me aconselharia se soubesse da história toda. E tinha que seguir o conselho de Oliver e visitar Ted, tentar me redimir pelo menos um pouco, apesar de que esse tipo de coisa depois que alguém morre já não importa ou significa nada.
Fui rápido até o tumulo de Ted.

– Como vai, Ted? Desculpe o show dramático da última vez que estive aqui, você sabe como sou emotiva as vezes. – Ri fraco. – Sei que estou em falta com você, mas Oliver me deu um conselho, para me ajudar a me redimir com você. Eu sei que você preferiria alguma bebida alcoólica, mas na atual situação, flores caem melhor. – Uma brisa suave balançou meu cabelo de repente. – Que bom que gostou. – Sorri.

Depois de algum tempo contando coisas da minha vida para a lápide de Ted, resolvi que era hora de seguir para minha epopeia. Segui a pé até o hospital, quando cheguei ao quarto dele as janelas e cortinas estavam fechadas e ele mantinha o olhar fixo no teto, imóvel. Ainda mais esquelético do que no último dia, se isso fosse possível.

– Bom dia! – Cumprimentei sorrindo. – Acho que esse quarto talvez precise de um pouco de luz. – Seu olhar continuou no teto até o momento em que eu abri as cortinas, talvez a claridade tenha incomodado seus olhos e ele passou a me encarar.

Coloquei as flores em cima de uma espécie de mesa de cabeceira hospitalar, eram tulipas brancas, minhas favoritas.

– São tulipas. – Apontei mostrando as flores para ele. – São minhas favoritas. – Ele continuava me encarando, devia me achar completamente louca.
– Claro que você está pensando, quem é essa maluca que está aqui? Eu pensaria também. Aliás, meu nome é . Você não me conhece, mas eu conheço você. – Ri sem graça encarando o chão enquanto girava minha aliança no dedo. – Você deve conhecer talvez meu irmão, Oliver ou Giovanni . Talvez uns amigos, Jared Mills, Gina Spilner. – Será que ele me entendia? Pensei. – Eu não sou nenhuma psicopata, sério. Estudei gastronomia em New York, as possibilidades de gastrônomos serem psicopatas é bem pequena, mas talvez eu seja meio louca, segundo meu pai, mas nada muito sério.

Ele continuava me olhando, seu olhar parecia incerto, mas não conseguia saber se ele estava são ou não. Alguns minutos em silêncio e voltou seu olhar para o teto novamente, depois do surto que eu havia visto e do que o médico disse, eu acreditava que ele estivesse fora de suas faculdades mentais. Além disso, também não se mexia e tinha o corpo franzino cheio de fios e agulhas, os olhos castanhos estavam fundos e ele tinha grandes olheiras roxas. Nunca tinha tido o prazer de chegar perto dele o suficiente para sentir seu perfume, mas agora ele tinha o cheiro característico que idosos acamados tinham. Eu não sabia o que falar, estava perdida. Esperei tanto aquele momento, ficar tão perto dele e agora não sabia mais o que fazer.

? – Chamei incerta e ele voltou seu olhar para mim, talvez tivesse entendido o que eu dissera, o que me fez feliz. – Ah, você está aí. – Ele revirou os olhos.

Tudo bem, ele estava ali, estava são e já me achava um saco. Como eu podia ser tão estúpida?

– Desculpe se estou soando muito idiota, é que eu nunca sei lidar com pessoas doentes. Uma vez eu quase afoguei meu irmão mais velho com sopa quente quando ele teve gripe. Em minha defesa, ele é o Giovanni, então muita gente daria tudo para fazer o mesmo. – Eu disse e ri, fixou seu olhar em mim. – Eu posso ficar te fazendo companhia, sabe? – Seu olhar estava mais suave, eu não sabia como sabia disso, mas estava.


🍁


Alguns dias depois, já havia estabelecido uma rotina no hospital, até mantinha um ou dois livros no quarto de Adam para passar o tempo, as vezes lã e agulhas de tricô. Era confortável estar ali, quase a mesma sensação de se estar sentado na varanda à tarde, depois de um dia de praia, observando o sol se pôr. Talvez não tão agradável pela doença de , mas mesmo assim ainda conseguia extrair partes boas. Estava distraída com um livro de Jane Austen quando meu celular tocou de repente, era o número de casa. Não tinha problema atender o celular na frente dele, não é?

Alô.
– Mãe. – Era o Dom.
– Oi, querido. Está tudo certo?

– Sim. Eu queria saber se eu posso ir jogar vídeo game na casa do Tyler.
– Quem é esse? – Às vezes ser mãe não dá uma folga.
– A mãe dele se chama Gina, ela disse que você deveria ir também.
– Que Gina?
– Ela disse alguma coisa do tipo Gina língua grande. – Ele contou sem jeito. – Mas eu juro que foi ela que disse, não eu. – Eu ri.
– Claro, querido. Divirta-se!

Era espantoso como Gina não desaparecia, era como se ela estivesse em todos os lugares. ainda me encarava, parecia curioso, mas era um chute.
– Era o meu filho, ele tem doze anos. Nos mudamos para cá há algumas semanas, ele está se adaptando. Eu morei aqui minha vida toda, então quinze anos atrás resolvi ir para New York e agora voltamos. E a história parece se repetir, já que ele está indo brincar com o filho da Gina Língua Grande que foi minha amiga, cuja a mãe foi amiga da minha mãe.... – Lembrei e sorri balançando a cabeça. Eu podia jurar que ele também havia achado graça, seu olhar mudou, mas ele voltou a encarar o teto.
– É, acho que vou ligar a TV. – Avisei. – Espero que isso não atrapalhe o que está fazendo.

Ele continuou imóvel, na TV passava a reprise de um programa culinário qualquer, talvez odiasse, mas acho que depois de tudo, ver um programa que não gosta deveria ser o menor dos problemas.

– Nossa, ele não colocou os ovos. Isso vai ficar horrível, intragável. – Eu falei totalmente concentrada na massa que o participante fazia, tão concentrada que nem percebi que ele me encarava. – Opa. – não se virou quando eu o flagrei. – Eu sei que deve ser bizarro. Um belo dia uma completa estranha entra no seu quarto e anuncia que vai te fazer companhia. Entendo que é loucura, ás vezes eu acho loucura. Fico pensando no que estou fazendo e só consigo achar que eu sou um incrível pé no saco. – Ri fraco. – Um amigo meu que infelizmente não está mais entre nós, sempre disse que eu consigo ser a pessoa mais chata que existe quando eu quero. – Lembrei que Ted sempre dizia isso. – Mas eu juro que agora eu não quero...quer dizer, eu sei que já estou passando por aqui há alguns dias, falando como um rádio e fazendo barulho, mas não estou incomodando tanto assim, estou?! – arqueou uma sobrancelha e estreitou o olhar.

Passaram algumas horas e eu já não prestava atenção na TV, tudo que eu perdi apagando minha cidade do mapa por quinze anos flutuava pela minha mente. Lembrava dos casais, dos amigos, de quando saíamos para ver filmes e dos filmes românticos que assistíamos, como sempre brigávamos porque Giovanni queria ver filmes dramáticos. E então uma ideia surgiu de repente e eu agradeci de coração por meu irmão ter me forçado a assistir filmes cults ao seu lado.
– Chamei tão de repente que ele se assustou. – Eu tive uma ideia maluca, mas eu acho que pode dar certo. Então... – Ele mantinha o olhar em mim. – Você consegue controlar quando pisca? – Ele revirou os olhos. – Isso não foi gentil da sua parte. Enfim, se você conseguir, podemos criar um tipo de código. Sabe, como uma piscada para sim e duas para não, piscar só um olho para talvez. – Eu acabei rindo de mim mesma, parecia uma ideia muito infantil. – Se quiser se comunicar, é claro. E então, o que acha de tentarmos? – Ele ainda me encarava. – Você quer tentar? – Ele demorou a piscar, talvez não tivesse entendido nada, mas então piscou uma vez. – Ótimo! – Comemorei e talvez tenha deixado minha alegria transparecer demais.
Com essa comunicação estabelecida ou o que eu achava ser uma comunicação, talvez fosse o caso de fazer a pergunta que eu não queria saber a resposta. Mas eu precisava, pelo menos para me certificar que não estava sendo egoísta como sempre impondo minha presença a ele.

, você quer que eu vá? – Ele havia voltado o olhar para o teto novamente e quando me ouviu olhou para mim e diferente da primeira vez piscou rápido duas vezes e eu sorri. – Como queira.

Era muito estranho para mim estar ali, o vendo diariamente e falando como uma criança curiosa no auge de seus quatro anos. Mas era como se fosse o normal, como se eu soubesse tudo sobre ele e de fato eu sabia, estava uns quinze anos desatualizada, mas sabia. Diferente de quando o vi no hospital pela primeira vez, quando fiquei apenas segurando sua mão e o olhando, agora já havia até estabelecido um tipo de contato. As coisas estavam indo rápido demais, o que era estranho, mas ao mesmo tempo incrível.
Eu havia prometido não deixar que aquele amor voltasse ou acontecesse novamente, mas quando ele me deixou entender que não queria que eu fosse, apenas quebrei de vez todas as promessas e tudo que havia passado, só queria ficar ali até que mundo acabasse. Agora eu sentia, de uma forma torta, que tudo estava bem e ao mesmo tempo, que tudo estava mal por causa de sua doença. Eu estava completamente feliz, secretamente triste e em negação quanto a sua possível morte eminente.


🍁


Os dias passaram rápido, sem perceber já estávamos na antiga cidade há um mês. estava ótimo no trabalho, Dom estava no time e muito animado com a escola e eu estava perto de quem realmente importava para mim. Os dias eram sempre os mesmos, eu fazia o café da manhã. e Dom saiam, eu cuidava dos afazeres domésticos e almoçava sozinha. Durante a tarde, visitava Ted e depois passava a tarde com , estávamos ficando cada vez melhores na nossa comunicação, ás vezes me perguntava se ele queria mesmo ouvir sobre certo assunto ou se queria que ligasse ou desligasse a TV. Agora ele revirava menos os olhos e nunca mais teve uma crise como a primeira que eu presenciei.
Também não estávamos mal com a família, vez ou outra via meus pais, Oliver sempre saía com e Dom para fazer as coisas mais aleatórias que conseguiam pensar. Também havia o trabalho de , seus novos amigos sempre estavam presentes nas nossas conversas e sempre o convidavam para rodadas de pôquer, charutos ou happy hours demorados. Gina também era um assunto comum agora, com nossos filhos sendo amigos, sempre nos esbarrávamos pela cidade. Isso me alentava, era bom sentir que tudo estava sob meu controle e fluindo como esperado, ter amigos e fingir normalidade é bom quando se está um caos por dentro.
O sol estava alto, talvez fosse um dos dias mais quentes do ano e eu mal podia esperar para entrar no quarto fresco de , mal podia esperar para vê – lo, mas doutor Rafael interrompeu meus planos quando me cercou no corredor.

– Senhora , é bom vê-la. – Ele sorriu.
– Olá. – Respondi desconfiada.
– Eu queria conversar com você sobre o caso do nosso amigo . – Rafael pôs as mãos nos bolsos do jaleco e sorriu levantando as sobrancelhas.
– Claro, algum problema? Ele está bem? – Perguntei com o coração apertado.
– Sim, está tudo ótimo. É exatamente sobre isso que quero falar. – Talvez ele tenha percebido meu olhar de extrema confusão e resolveu continuar. – Bom, como você é a pessoa que mais o visita, acredito que seja do seu interesse saber que a doença regrediu.
– Desculpe? Eu acho que não entendi. – Havia entendido, mas queria ter certeza de que não estava sonhando.
– Se lembra de quando nós nos conhecemos? Quando o quadro dele estava no grau oito da Síndrome e evoluindo para o nove? – Rafael lembrou, mas eu o interrompi.
– Você não me disse que ele estava evoluindo para o nove. – Estreitei o olhar e falei séria, talvez áspera e brava.
– Isso não faz diferença, fizemos mais alguns exames ontem quando percebemos que ele não estava tendo mais crises. E com o resultado deles, nós refizemos todos os outros e pudemos concluir que a síndrome regrediu. Se é que podemos usar esse termo. – Ele disse mais para si do que para mim. – Enfim, ele passou de grau oito para grau seis.
– Seis? E o que isso significa? – Perguntei ansiosa.
– Bom, segundo o que sabemos. Alguém com grau seis não precisa se alimentar por sonda e nem precisa respirar por aparelhos também, as funções motoras ainda estão comprometidas e não sabemos se ele consegue falar, primeiro porque a laringe, faringe, pregas vocais e vestibulares ainda estão machucadas devido ao uso de sondas e o comprometimento muscular. – Enquanto ele explicava eu só conseguia pensar no que tudo aquilo significava, mas esperava que ele não notasse minha confusão, porque não queria uma explicação. – Então, resumindo, a qualidade de vida dele é melhor e como não sabemos sobre sequelas, ele fará reabilitação com terapeuta ocupacional e fisioterapeuta, com a fonoaudiologia. Redução de danos, sabe como é.
Eram muita coisa para filtrar e entender.
– Ele já sabe? – Perguntei.
– Ele está dormindo, mas pode contar quando acordar. Talvez com a regressão ele consiga compreender. – Rafael acenou e começou a caminhar pelo corredor.
– Rafael. – Chamei e ele se virou. – Isso significa que a doença vai parar? Ou que ela vai regredir mais? – Rafael sorriu docemente.
– Acho que testemunhamos uma espécie de milagre aqui, não é? Quem sabe o raio caia no mesmo lugar duas vezes? – Rafael sorriu e antes de sumir no corredor eu o chamei novamente.
– Ei, Doutor Rafael! – Ele se virou. – Ele sempre entendeu o que diziam para ele. – Rafael manteve uma expressão confusa no rosto, enquanto eu seguia para o quarto do .


🍁


Estava perplexa quando entrei no quarto, as janelas estavam abertas e uma brisa fresca balançava as cortinas. Ele estava lá, deitado, dormindo e poderia ser coisa da minha cabeça, mas eu podia jurar que ele já parecia melhor. Me sentei na cadeira perto da cama e fiquei, pelo que pareceram horas, pensando no que o médico havia me dito. Ainda não sabia como agir, nem o que pensar, só estava feliz, uma pura e resplandecente felicidade.
Depois de algum tempo, como ainda não havia acordado, pensei em ir comer alguma coisa, estava fechando a porta do quarto atrás de mim quando me choquei levemente com um homem, ele era alto, tinha olhos castanhos brilhosos e pele negra e me era muito familiar. Um homem realmente bonito e aparentava ter mais ou menos a minha idade.

– Oi. Desculpe. – Ele hesitou. – Eu estou procurando o quarto do , mas acho que me mandaram para o lugar errado.
– Na verdade, não. – Sorri sem graça. – Esse é o quarto do . – O homem me encarou confuso. – Eu tenho ficado aqui, para fazer companhia a ele durante as tardes.
– Ah, sim. – Era visível que ele ainda estava receoso. – E ele pode receber visitas?
– Claro. – Respondi rápido. – Ele só está dormindo agora.
– Tudo bem. – O homem encarou o chão por alguns instantes. – E como ele está?

Eu não sabia se deveria contar a ele sobre o que o médico havia me dito, mas ao mesmo tempo, que mal faria? Conduzi o novo visitante até o final do corredor, que ficava a cerca de um metro da porta do quarto dele, onde teria um pouco mais de privacidade para falar e que parecia um lugar agradável, por causa da grande janela que tinha vista para baía.

– Eu nunca me dei conta de como senti falta desse lugar. – Comentei distraída olhando para a Baía.
– O que disse? – O homem perguntou confuso.
– Ah, desculpe, pensei alto. É que fiquei muito tempo fora da cidade, estou me acostumando de novo a tudo. – Ri fraco.
– Por isso eu te acho familiar. – Ele sorriu grande, depois abaixou as sobrancelhas, formando uma ruga entre elas, franziu os lábios e deixou a cabeça cair levemente para a esquerda. – Você não seria a , seria? – Agora ele estava mais para incrédulo e eu sorri confirmando sua suspeita. – Não se lembra de mim? Matt Shay!
– Oh meu Deus! Matt. – Meu Deus, era Matt Shay. – Eu não acredito que é você. – Ri alto e o abracei.
– É, sou eu. Você está cada vez mais idêntica ao Oliver, parece ele com cabelo. – Ele comentou ainda me abraçando. – Como você está? Se casou? Teve filhos?
– Sim, para as duas perguntas. Eu me casei e tenho um lindo garoto de doze anos. – Matt riu e se escorou no parapeito da janela.
– Que coisa. Tantos lugares para a gente se reencontrar e olha só, bem aqui no hospital. – Matt riu e respirou fundo. – Mas eu não me lembro de você com ele. Vocês já se conheciam naquela época?
– Na verdade. Não. – Sorri sem mostrar os dentes e voltei a encarar a janela.
– Que bom que ainda existem pessoas boas no mundo. – Matt suspirou calmo. – Depois que aquela mulher deixou ele, piorou bem mais. – Ele lembrou.
– Eu soube. – Concordei.

Matt Shay era do time de futebol, junto com Ted e Oliver, mas por ser um pouco mais velho que nós, era do time quando estava nele. Havia ido a algumas festas com Matt e os outros do time enquanto estava na escola, éramos amigos de festa e que as vezes ficavam juntos, nada fora do normal para adolescentes.

Flashback
– Ela me disse que faz meu trabalho de física se eu a ajudar a ficar com você. – Contei para Oliver que riu debochando.
– Por que as mulheres dessa escola só se interessam pelos ? – Ted indagou lançando a bola em Oliver.
– Isso só se aplica com os homens da família, porque os homens da escola não ligam muito para as mulheres . – Disse me sentando perto do meu irmão.
– Você não tem todos os caras aqui atrás de você porquê não quer. – Oliver falou olhando para mim.
– Até parece. – Desdenhei cruzando os braços. – Do que adianta se justamente o que eu quero, não posso ter?
– Você diz isso, mas na última festa estava com Matt, lembra? – Gina alfinetou. – E eu estava sozinha.
– Só porque não conseguiu quem queria. – Provoquei arqueando uma sobrancelha e fazendo os meninos me encararem.
– Gina ainda não superou o Oliver? – Ted riu alto.
– Idiota. – Ela bufou e saiu de perto de nós enquanto os meninos riam, inclusive Oliver.
– Coitada, gente. – Eu cruzei os braços acima do peito.
– Acabou a diversão, o pai chegou. – Ted avisou referindo-se a Giovanni que se aproximava do grupo. – E aí Giovanni? Já veio buscar seus bebês? Já está na hora do banho? Ou você veio nos dizer que já ganhou seu Nobel? – Ted riu e fez os outros rirem.
– Quando você vai crescer, Ted? – Giovanni perguntou mal-humorado.
– Não fica bravo não, filho. – Ted pôs o braço no ombro de Giovanni. – Eu não quero que você se estresse. Eu quero ser seu amigo, porque talvez com você eu arrume mais mulheres do que andando com seu irmão. – Todos riram.
– Eu sou o irmão descolado, que joga futebol. O Giovanni é o inteligente. – Oliver apontou alegre. – Temos para todos os públicos, Ted. Sinto muito, mas você vai ter que ficar com a Natalie, a estranha. – Oliver disse e Ted mostrou o dedo do meio.
– Nossa, vocês são cruéis. – Disse.
Flashback end.

? – Matt me despertou da minha rápida viagem ao passado.
– Sim, desculpe. Eu estou meio cansada. – Ri fraco e ele sorriu.
– Então, como está o ? – Ele perguntou.
– Bom, você chegou num bom dia. – Sorri verdadeiramente feliz. – Então, não sei o quanto você está sabendo. Quando eu comecei a visita-lo, soube que ele estava no grau oito dessa doença horrível e evoluindo para o nove, segundo o médico.
– Isso é ruim, não é? – Matt perguntou ansioso.
– Bom, quando eu cheguei aqui ele estava tendo uma crise horrível. – Matt me olhava com pena, não de mim, mas de . – Depois disso eu o acompanhei aqui e ainda estou. – Sorri. – Hoje, eu tive boas notícias. Aparentemente, tivemos nosso milagre de natal fora de época. – Matt me interrompeu.
– Como assim? – Ele estava confuso.
– Segundo o médico dele, Rafael, a síndrome dele só evoluía, não regredia, mas aparentemente, ela regrediu de oito para seis. – Contei.
– Seis? Mas isso é ótimo, não é? – Ele perguntou animado e eu assenti. – Isso é ótimo. Ele fala? Como ele está? Me fala tudo, rápido!
– Calma, Matt. – Ri de seu desespero. – Ele vai começar a ser tratar com uma equipe mais especializada, pelo que eu entendi, que não foi muito. E ele não fala, mas nós conseguimos nos comunicar através de piscadas de olho. Uma para sim e duas para não.
– Isso é inacreditável. – Ele estava visivelmente feliz.
– É bom que você tenha vindo hoje, aliás. – Suspirei. – Eu não sei a quem contar. Quer dizer, não sei como contar a família e não sei se o hospital avisaria.
. – Matt fechou os olhos por alguns instantes, riu sem humor e segurou com delicadeza minha mão. – É porque não tem para quem contar. Eu falo com os amigos, fora isso, além de eu, você e mais umas cinco pessoas, não tem ninguém.

Era algo duro, triste. Não se ter a quem contar uma notícia dessas, perceber o óbvio, que não tinha quase ninguém por ele, foi um baque que me deixou surda e tonta por algum tempo.

– Será que ele acordou? – Matt perguntou, tentando mudar o clima.
– Talvez sim, porque não vai lá ver? Eu vou tomar um café e já encontro vocês. – Sorri e começamos a caminhar em direção a porta. – Bata antes de entrar, ele não gosta que entrem sem bater. – Ele sorriu. – E conte a novidade a ele, eu ainda não tive tempo e acho que ele vai gostar de saber. Além de ficar feliz em receber outra visita que não seja a minha.

Eu sorri e ele entrou no quarto gritando algo como “E aí, minha loira! ” e ignorando a minha recomendação. Deixei-os lá e fui até a cafeteria.

🍁


Depois de enrolar por mais de meia hora na lanchonete do hospital encarando um copo de café vazio e uma rosquinha velha, resolvi voltar para o quarto de . Não por estar curiosa sobre a vista de Matt, mas por saudades, meu estômago ainda revirava todas as vezes que eu pensava que ele estava só alguns andares de distância.
Quando cheguei perto da porta que estava entreaberta, pude ouvir um pouco da conversa e percebendo que se tratava de mim, a curiosidade me fez parar e escutar um pouco.

– Então. – Matt suspirou depois de uma longa risada. – Nem aqui você sossega, não é? Sério que a está aqui te fazendo companhia? – Matt riu. – Eu achei que com você sem poder ver muitas mulheres eu teria mais chances.
– É sério. – Matt continuou. – Ela continua bem bonita. Você conhecia ela? – Não pude ver a resposta de . – Essa mulher era terrível, meu amigo, chave de cadeia. Impulsiva, sem juízo, fazia só o que tinha vontade. Até hoje eu não sei porque ela saiu da cidade. – Matt pareceu ponderar. – Mas também, eu duvido que ela ficaria aqui de qualquer jeito, mesmo se tivesse ficado na faculdade, o Oliver também não ficou. – Matt riu novamente. – O que importa é que ela está aqui te fazendo companhia. Cara, você é impossível. – Matt riu alto e olhou em direção a porta, me pegando de surpresa. – Olha ela aí! – Gritou e eu sorri sem graça entrando no quarto. – A gente estava falando de você.
– É mesmo? – Perguntei como se não tivesse escutado tudo, estava ficando boa em mentir.
– É, falando da escola e de garotas. – Ele contou me abraçando de lado e rindo. me encarava, mas sua boca estava levemente curvada em um pequeno sorriso ou eu estava imaginando coisas. – Você sabia que sua bela acompanhante fazia racha, ? – Eu encarei Matt com os olhos arregalados e ele ainda sorria. arqueou as sobrancelhas também, talvez estivesse surpreso.
– Não. Não, quer dizer... – Minhas inconsequências na juventude não eram coisas que gostava de lembrar. – Não era assim também. – Desdenhei.
– Ah! Claro que era. – Matt colocou as mãos na cintura. – Lembra aquela vez que você ganhou aquele carro numa corrida com aquele cara da gangue? E seu pai te fez devolver? – Matt lembrou.
– Eu não devolvi, vendi o carro. – Confessei sem perceber e quando me dei conta era tarde demais.
– Essa eu não sabia. – Matt deu uma risada alta e escandalosa. – O que acha de a gente correr um pouco uma hora dessas? Eu, você e o ligeirinho. Sabia que o também corria? Ele era muito bom, só não melhor que eu. – Matt provocou e revirou os olhos.
– Todo mundo era melhor que você. Você só tinha papo. – Falei encarando Matt por cima do ombro.
– Há, há, há. Até parece. – Ironizou.

pareceu sorrir de novo, talvez fosse algo relacionado a sua melhora e com certeza era a coisa mais bonita que eu já havia visto. E então ele olhou para mim, continuou com seu quase sorriso e piscou, não como um sim ou não, piscou apenas um olho, como se fosse um sinal de cumplicidade ou eu estava vendo coisas, de novo.

– Vamos ver isso então. Eu, você e o . Vamos correr e eu vou te ensinar a não cantar vitória antes do tempo. – Eu olhei para que piscou como sim e encarei Matt.
– Eu não corro mais, Matt. – Disse ajeitando o cobertor de . – Tenho um filho agora, o que me fez assinar o pacote de ser bom exemplo.
– Só vai ser mau exemplo se perder. – Ele riu.
– Eu não quero que o Dom seja inconsequente como eu era...e irresponsável...e as outras coisas. – Disse pensativa.
– Não acredito que você vai amarelar. – Matt disse olhando nos meus olhos, ele sabia como me manipular.
– Eu não acredito que você está apelando desde jeito. – Olhei-o com os olhos em fenda.
– Eu vou começar a movimentar essa parada. – Matt disse e riu alto. – Bom, já que você está em mãos mais macias agora. – Ele disse encarando . – Vou ter que te deixar. Mas não chora não, eu volto.

Matt sorriu, apertou sem jeito a mão de me abraçou e nos deixou.


3

Mesmo depois que ele saiu do quarto, a atmosfera continuava a mesma de quando ainda estava ali. Alegre e levemente constrangedora.
Encarei , que agora estava com os olhos fechados, ele estava mais corado, havia engordado um pouco e seu rosto não tinha mais aquele aspecto esquelético de antes, sem as olheiras profundas e escuras. Segundo a equipe médica, agora dormia bem todas as noites e estava cada dia melhor, possivelmente devido a regressão da doença. Às vezes antes de dormir ou quando me distraía pensando nele durante o dia, passava pela minha cabeça que talvez a melhora fosse por minha causa, mas logo a razão chegava, me mostrando que isso era no mínimo impossível.
Estava o observando atentamente seu cabelo, rosto, ombros, peito, braços, mãos, observando cada detalhe como estava acostumada a fazer, tão concentrada que nem percebi quando ele abriu os olhos e passou a me encarar, fui pega de surpresa e não consegui disfarçar a vergonha.

– Por que você está me olhando assim? – Perguntei sorrindo e ele sorriu de lado. Aquilo com certeza era um sorriso, meu coração parecia uma fogueira.

Saí de perto dele e fui ajeitar as cortinas, trocar a água dos vasos de plantas, deixar o quarto apresentável, mas sentia que me seguia com os olhos, o que já estava me deixando envergonhada. Resolvi pegar um livro que sempre deixava lá e fazer o que sempre fazia, sentar na poltrona ao seu lado e ler para passar o tempo, mas continuava me encarando.

– O que foi? – Perguntei olhando para ele.

arqueou as sobrancelhas como se me encorajasse a dizer algo. Ah, é claro, ele era o mais interessado na notícia e eu sequer tinha comentado.

– O Matt falou alguma coisa com você, sobre o que o médico disse? arqueou uma sobrancelha e fechou um dos olhos, aquilo significava “tem certeza?” ou “Não foi suficiente” e pelo meu entendimento no nosso idioma, devia ser a segunda opção.

– Não sei até onde você está ciente do seu estado. – Eu cocei a garganta em uma tentativa falha de deixar minha voz mais firme e clara e juntou as sobrancelhas, concentrado. – Essa sua Síndrome é dividida em graus. Explicando porcamente e ignorando o fato de que você provavelmente já sabe isso tudo. Bom, nesses graus, vamos focar neles. Quando eu cheguei você estava no oito, evoluindo para o nove, pelo que eu soube. Mas o seu médico, Rafael, resolveu refazer os exames depois que notou sua melhora e hoje, quando eu cheguei, ele me disse que você regrediu do grau oito para o seis. - piscou algumas vezes, aparentemente atordoado. – Isso é muito bom, sabe?! Significa que você está melhor. Ele não sabe se a doença vai parar aí ou se vai continuar regredindo, mas de qualquer forma isso é muito bom? Não acha? – Segurei sua mão na tentativa de demonstrar algum apoio.

olhava fixamente para mim, mas era claro que estava confuso. E então, sorriu levemente de novo e apertou minha mão, meus olhos se voltaram para nossas mãos e depois aos seus olhos. Eu o teria beijado naquele instante, mas não podia, não sabia nem se ele queria. me olhava com o pequeno sorriso no rosto e a mão grande e quente ainda apertando a minha, ficamos naquela posição por muito tempo. Eu não queria sair dali e aparentemente ele não tinha intenção de fazer algo diferente.

– Parece que o Matt não te explicou muito bem. – Sussurrei depois de algum tempo e piscou um sim. – Eu queria saber o que você está pensando. – Falei e ele revirou os olhos. – O que? É uma notícia boa e eu sou curiosa.

Passamos o resto do tempo olhando um para o outro, até que precisei ir, já estava tarde demais e eu tinha uma família me esperando em casa.
Quando me despedi achei que era a hora de passar de fase, me arriscar um pouco mais. No auge de toda ansiedade e tomada por uma vontade enlouquecedora, deixei um beijo em sua testa. Foi tudo muito rápido, não queria ver qual expressão ele teria no rosto quando eu abrisse os olhos, eu morreria se visse algo como uma recusa ou coisa do tipo, por iss resolvi sair bem rápido do hospital.

🍁


Em casa tudo correu normalmente, Dom comeu e foi para o quarto jogar vídeo games, foi ler alguma coisa e eu fui tomar um banho longo e quente. Já era bem tarde quando terminei, então resolvi olhar Dom e me deitar.

– Já está na hora de dormir. – Avisei escorada no batente da porta do quarto dele.
– Eu vou. Só vou terminar essa partida, é um jogo online. – Ele respondeu sem me encarar.
– Está tudo bem? – Perguntei percebendo a bagunça nada habitual em seu quarto, mesmo se tratando de um pré-adolescente.
– Sim. – Respondeu.
– Eu vou me deitar, estou cansada. – Disse e caminhei até ele para deixar um beijo.
– Também, só fica no hospital. – Paralisei no meio do caminho, quando entendi o que Dom havia dito.
– Eu fico fazendo companhia para um amigo doente enquanto você e seu pai não estão em casa, Dominic. Poderia ser qualquer um de nós, abandonados, sozinhos em um hospital. E eu não sei você, mas eu iria querer que um amigo me fizesse companhia. – O repreendi um pouco magoada e Dom não respondeu. – Para cama, agora.
– Mãe, eu não posso, é um jogo... – Ele choramingou e eu o cortei.
– Online, eu sei e não me interessa. Vá agora, vou esperar aqui. – Ordenei cruzando os braços.

Dominic desligou tudo bruscamente e saiu chutando fios e cadeiras. Puxei-o pela camiseta e dei um beijo em sua cabeça.

– Tenha um boa noite. – Disse e respirei fundo. – Eu sinto muito se você está sentindo minha falta aqui, é só me dizer o que eu posso fazer para te compensar. Tudo bem?! – Ele apenas acenou com a cabeça e foi escovar os dentes. – Venho aqui em trinta minutos checar se você já dormiu.

Não era como se eu estivesse passando dias no hospital, enquanto todos estariam ocupados cuidando de suas vidas e eu estaria ociosa em casa, adoecendo ou tendo ideias ruins, estava fazendo algo bom, estava com , mesmo que fosse mais por mim do que por ele. Fui desperta dos meus pensamentos com me cutucando.

– O que aconteceu? – Ele perguntou enquanto adentrávamos no nosso quarto.
– Como assim?
– Você está com essa cara. A cara confusa, mas irritada. – Ele supôs incerto, como se tivesse medo da minha reação.
– Não, é que... – Ele me conhecia bem. Suspirei. – Dom. Ele parece contrariado por eu passar minhas tardes no hospital. – Bufei e fez uma pausa longa demais, sugestiva demais. – O que foi, ?
– Você realmente tem passado muito tempo lá. E quando não está de corpo, está com a mente, planejando algo, pensando sobre ou até falando sobre. Eu não fiz psicologia, mas eu acho que ele tem sentido a sua falta, ele vê mais o Oliver e a Gina do que você. E vocês eram tão próximos em New York, talvez só esteja com ciúmes. – explicou encarando a janela.
– Eu só estou tentando fazer uma coisa boa, uma boa ação. O que vocês querem? Alguém disponível em tempo integral para perguntar como foi o dia de vocês? – Me irritei.
– Não foi isso que eu disse. – Como não? Pensei. – Eu só estou tentando dizer que, nem eu e ele somos daqui. – se aproximou e colocou as duas mãos no meu ombro. – Ele as vezes se sente sozinho e eu também, nós dois nem sabemos quem é esse cara com quem você tem passado as tardes. Antes que você comece, eu não me oponho a você ir, só pensa no que eu estou dizendo. Talvez, só talvez, o consiga ficar uma tarde sozinho ou até uns dias. Para você aproveitar com sua família. Ele sobreviveu até nós chegarmos sem você, acredite, ele dá conta.

Não concordava muito com o que dizia, mas uma parte minha, a parte madura e centrada, sabia que ele estava certo. Eu não poderia simplesmente abandonar tudo por , eu tinha um filho que precisava de mim, da minha atenção, um marido bacana e eu não estava sendo nem um terço do que ele merecia como esposa e tinha a minha família, eu teria que me colocar alguns limites, logo.

🍁


A noite que seguiu foi a segunda mais longa desde que havia retornado a Paradise, a primeira era a noite seguinte ao dia que reencontrei . Me levantei mais cedo do que de costume e quando Dom e acordaram a mesa já estava posta.

– Nossa, que mesa bonita, você acordou inspirada. – disse sorrindo e se sentando na mesa, junto a Dom.

O café passou rápido, enquanto falava algo sobre um jogo que iria acontecer e que levaria Dom para assistir. Mas tudo que rodava minha mente, era como eu iria me afastar de , como iria me distanciar se tudo que eu mais queria era ficar o mais próximo possível, por mais tempo possível. Era terça-feira e chovia, provavelmente teria trânsito e se atrasaria para o trabalho, então caberia a mim levar Dom ao colégio.
Enquanto ele terminava de se arrumar, se aproximou e disse:
– Sobre o que eu falei ontem, vamos fazer uma coisa. Me deixa falar, depois você questiona. – Disse sério, me olhando nos olhos. – Não vá ao hospital hoje, vá buscar o Dom depois do treino, nas terças ele sai mais cedo. Você adora esse clima, aproveite e vá ver uns filmes com ele, vocês faziam tanto isso antes. Ele vai gostar, vai surpreende-lo. – O olhar de não me encorajava a dizer não. Ele tinha um jeito doce e sútil de fazer com que eu fizesse o que ele queria e naquela situação, não tinha argumentos para recorrer.
– Certo, eu vou fazer isso. – Sorri.
Enquanto caminhava até a garagem me arrependi e me convenci de que estava tomando a decisão certa mais de vinte vezes. Ser mãe era uma tarefa em tempo integral que eu não poderia deixar de lado porque supostamente estou novamente apaixonada por um cara que não quer nada comigo. Somando a meu breve surto de imaturidade materna e o fato de que eu pensava mais em do que no meu próprio marido, eu me sentia abominável. Droga de cidade. Sempre despertando o pior.


🍁


O trajeto até a escola fora silencioso, talvez fosse mais uma coisa em que Dominic se parecia comigo, eu odiava conversas no carro e, ou ele também compartilhava o sentimento ou fazia silêncio em respeito a mim.
Eu precisava ocupar meu tempo com alguma coisa, para vencer o impulso de correr até o hospital. Foi assim que decidi ir até a casa onde eu cresci, talvez me encontrando com as memórias daquela Olívia, conseguisse esquecer por algumas horas.
Bater na porta esverdeada da grande casa branca sempre era difícil, quando eu era adolescente e chegava muito tarde em casa ou até mesmo agora, quando minha consciência dizia que estava errando compulsoriamente.

– Oi, mãe. – Tentei sorrir.
– Olívia! Que bom que veio. – Mamãe celebrou e me envolveu num abraço sufocante. Pareceu muito feliz em me ver. – Olhe só quem chegou, Giovanni. – Gritou chamando meu irmão.

Definitivamente encontrar com meu irmão não era esperado, as pessoas não trabalham mais nessa cidade?
Giovanni, Oliver e eu compartilhamos muitas coisas durante a vida. Biscoitos, na fase ruim, o mesmo quarto, as vezes algumas roupas, mas nunca fomos parecidos. Giovanni sempre foi o que meus pais chamavam de sensato e responsável, meu pai sempre dizia que sabia que poderia contar com Giovanni e até onde eu sei, ele era o único que sempre os visitava, sempre ligava e estava por perto, mais que Oliver, que teoricamente ainda morava com eles. Quando se é o filho favorito e não é cravejado de críticas somente por existir, é realmente fácil aparecer sempre.
Giovanni era mais velho, três anos mais velho que eu e Oliver. Era alto, cabelo castanho, sempre impecavelmente penteado para trás, sempre com seu melhor terno, que na maior parte das vezes só salientava seu corpo franzino, era branco, quase pálido, vivia doente, tinha crises de ansiedade semanais e asma, por isso nunca fazia as mesmas coisas que nós, preferindo sempre ficar em casa, estudando ou pintando, Giovanni fazia belíssimas pinturas a óleo. Era a personificação de filho perfeito, frágil e gentil.
Oliver e eu, mesmo sendo gêmeos, não éramos muito parecidos. Oliver era alto, tinha olhos verdes brilhantes e cabelo ruivo, sempre teve espírito livre, me lembrava de ouvir nossos pais o criticando desde o dia em que nascemos, mas para ele não surtia efeito algum, parecia que ele sequer estava compreendendo o que diziam. Oliver sempre quis viajar, conhecer o mundo e ele fez, logo que terminou a escola saiu pelo mundo, trabalhando em hostels para pagar sua estadia, até criar um site de dicas de viagem e ser patrocinado para isso. Oliver era o irmão legal, se quisesse companhia para viagens, dicas das melhores festas, parceiro para encher a cara em um bar, era sempre o Oliver. Para ele, a vida era uma festa e você devia aproveitar, não precisava se apegar a nada, tudo era passageiro, não existia pessoa no mundo capaz de prendê-lo.
, oi. – Giovanni cumprimentou e me abraçou. – Eu soube que você havia se mudado, fui até sua casa, mas acho que não tinha ninguém. – Contou tentando parecer simpático. Maquiavélico, pensei.
– Eu andei ocupada. – Expliquei e ele acenou.
– Entre, eu fiz um chá para o seu irmão, a tosse dele voltou. – Mamãe contou rápido enquanto eu me sentava na sala.

Sala que agora estava bem mais moderna, com uma TV gigante e várias outras coisas tecnológicas, assim como a cozinha, pelo que se podia ver pela porta.

– As coisas aqui já não são mais como eu me lembrava. – Comentei. – O que houve?
– Você está falando da TV, não é? – Mamãe gritou da cozinha. – Foi seu irmão. Não é ótima? Eu consigo ver todos os canais que eu quero, agora. Antes nós não conseguíamos ver nem os noticiários. Ele me deu várias coisas, presentes de natal e aniversário. – Disse, enquanto servia chá para mim e falava desesperadamente das coisas que meu bondoso irmão havia comprado, enquanto Giovanni fingia estar distraído no celular. – E seu pai? Precisa ver como ele está feliz com o colchão massageador.
– Nossa, realmente. E o que Giovanni tem feito para comprar todas essas coisas, assalto à banco? – Ironizei.
– Não. – Giovanni respondeu confuso. – É que eu estou com um cliente importante agora, recebi muitas comissões. Você se lembra de como o papai reclamava das hérnias de disco.

Era chocante o potencial que Giovanni tinha de me irritar por estar simplesmente respirando.

– Como vai o Dom? – Giovanni perguntou rápido.
– Bem, está na escola agora. Entrou para o time. – Contei sem muito ânimo.
– Que bom! Isso é ótimo, o Jack também está. Não sei se você sabe, Sue e eu somos padrinhos dele. Ele praticamente mora com a gente. – Contou sorrindo largo.
– Ted convidou você para ser padrinho do filho dele? – Arregalei os olhos incrédula. Não fazia sentido, Ted não gostava de Giovanni.
– Sim. – Giovanni confirmou. – E sabe, Jack tem se saído muito ...
– Ted não gostava de você, porque ele te convidaria? – O interrompi bruscamente.
– Eu... – Meu irmão abriu a boca algumas vezes, mas sem dizer nada.
– Por que depois da faculdade eles trabalharam juntos, . E as birras de escola desapareceram. – Mamãe respondeu, séria.
– Nós pescávamos juntos todo fim de semana. Sue e Natalie trabalhavam na mesma escola, Natalie era professora. – Giovanni explicou sem graça.

Quando tudo parou de fazer sentido? A vida de todo mundo tinha andado, menos a minha. Eu me sentia estagnada, como se vivesse em duas linhas temporais diferentes, como se eu tivesse pausado uma quando saí da cidade e agora retomado de onde eu parei, mas as vidas de todos haviam andado, menos a minha. Era como de repente acordar tendo quinze anos de novo e ver todos seus amigos adultos, casados e você parada. Estagnada. Presa.
Depois de praticamente meia hora em silêncio sepulcral, meus impulsos adolescentes resolveram desabrochar novamente e atacar gratuitamente meu irmão, que agora se divertia com uma revista de palavras cruzadas.

– E a Carly, Giovanni? – Perguntei sugestivamente e arqueei uma sobrancelha.
– Sim, a Carly. – Ele voltou seu olhar para mim como quem explica algo para uma criança. – Mas não a chame mais assim, ela prefere Noah.
– O que? – Quase todo chá que havia tomado quis sair de uma vez só, não era possível que ele reagiria assim.
– Pois é, ela decidiu que queria fazer a transição um ano depois de se formar na escola. Foi muito difícil, a cidade toda criticou o processo, os únicos lugares que ela podia ir sem ser julgada ou atormentada era a sua própria casa e aqui. – Explicou ele.
– É, coitado. Foi difícil mesmo. – Minha mãe completou. – E como ele está, tem notícias?
– Ah sim, eu conversei com ele semana passada, mãe. Disse que está tudo indo bem, agora conseguiu um emprego, mas disse que foi bem difícil. – Giovanni contou.


Então Giovanni não só havia reagido bem a tudo, como também ajudou Carly no processo? Eu não entendia, o Giovanni que eu tinha em mente a teria julgado, se afastado. Não que ele já houvesse feito isso alguma vez na vida, mas pelo menos era o que eu esperava. Eu amava criticar meu irmão, apontar os erros numa criação perfeita era saboroso. Era como seu meus pais fossem Deus, Giovanni a humanidade e eu Lúcifer, criticando e mostrando o quanto Giovanni era imperfeito, enquanto isso os outros anjos e Oliver viviam suas vidas cantando e desfrutando de todo lugar que poderiam ir com ajuda de suas asas. A humanidade não poderia fazer algo bom, Giovanni não poderia fazer algo bom.

– Acho que é melhor eu ir, prometi que almoçaria em casa hoje. – Giovanni falou enquanto se espreguiçava e se preparava para sair. – Foi bom te ver, . Vamos marcar alguma coisa, talvez um jantar. Estou muito ansioso para provar sua comida. – Disse sorrindo.

Acenei e dei o melhor de mim para tentar sorrir. Mamãe levou Giovanni até a porta, fazendo mil recomendações quanto a sua saúde, me juntei a ela no batente da porta, enquanto observávamos meu irmão entrar no carro, acenar e buzinar antes de sair.

– Não deixe de marcar esse jantar. Giovanni está muito animado com a sua volta. – Mamãe disse, me encarando. Nessas horas, sua pouca altura não fazia muito diferença, ela sempre parecia ameaçadora.
– Giovanni? Animado por minha causa? – Ri irônica.
, ele falou com seu pai sobre sua carreira, sabia? Ele explicou para ele como era sério. Porque depois do jantar seu pai só sabia remoer essa história. – Contou, levemente indignada. – Giovanni pelo menos tem tentado e você? Vai esperar eu e seu pai morrermos para fazer as pazes com seu irmão? Francamente, era só o que me faltava. Eu não tenho um minuto de paz e sossego nessa vida. – Mamãe finalizou seu ato dramático e entrou para dentro de casa novamente, para recolher a louça do chá. – Eu peço todos os dias para você e Oliver tomarem jeito. Eu até tive um sonho, sabia?
– Mãe, por favor, pare. Não precisa disso. – Repreendi.
, a pressão alta do seu pai. Só a misericórdia de Deus para nos ajudar. Eu orei e eu sonhei que um homem entrava na sua vida e ia te mostrar o caminho da paz, do amor, da família. – Mamãe sempre fora o tipo beata, com a distância eu quase me esquecia disso.
– Eu já encontrei, mãe. Eu me casei. – Disse entediada e levantei a mão para que ela tivesse uma boa visão da aliança.
– Pois bem e ele te trouxe aqui. é mesmo um santo, eu disse isso a ele. Agora nós só precisamos arrumar uma esposa para o seu irmão.
– Mamãe. – Ri alto, deixando-a confusa. – Até parece que não conhece seu próprio filho. – Eu tenho que ir.
– Se você ficar mais de uma semana sem aparecer aqui, eu vou chamar a polícia. Não estou brincando, Olívia. – Prometeu séria.
– Tudo bem, vou tentar. – Sorri e mamãe me repreendeu com o olhar, depois me abraçou e me deixou ir.

Mamãe era uma imigrante italiana, brava e alegre, que se casou com um francês alto e sério. Eles sempre foram muito próximos e muito religiosos, uma belíssima família tradicional. Todos os nossos encontros eram assim e mesmo depois de mais de quinze anos sem pisar naquela casa, logo na primeira visita já recebia um sermão de como eu deveria tomar jeito. Mamãe não se importava se eu havia passado anos sem vê-la ou se eu já era uma mulher feita. Para ela, quando saí de seu ventre dei plenos poderes a ela sobre minha vida e assim ela poderia me repreender sempre que achasse necessário.
Mas ao contrário do normal, dessa vez, eu não me estressei com suas críticas, só achei graça e percebi que no final das contas, eu sentia falta do drama e até das críticas. Eu não entendia porque, nem como isso havia mudado em tão pouco tempo, mas algo diferente estava no ar, estava no meu coração. Diferente da primeira vez em que encontrei meus pais desde que voltei para essa terrível e irônica cidade.


4

– O que aconteceu? – Dom perguntou alarmado assim que atravessou os portões da escola e me viu encostada no carro.
– Nada, só vim te pegar. – Expliquei. – Por que?
– Você nunca vem me pegar. Tem certeza que não aconteceu nada? – Dom ainda estava desconfiado.
– Eu preciso de uma explicação para te buscar na escola desde quando, garoto? – Brinquei e ele ficou ainda mais desconfiado.
! – Uma voz distante chamou. – Querida, quanto tempo. – A voz distante já estava próxima demais do meu rosto para eu ignorar.
– Gina, que surpresa. – Boa ou não, não deixava de ser uma surpresa. Eu sentia falta da individualidade fria de Nova York.
– É mesmo, não é? Tem tantos dias que não nos vemos. – Gina era sempre um poço de simpatia. Sempre.
– É, muitos dias. – Enfatizei tentando cortar o assunto.
– Acho que você tem outra companhia agora, Dom. – Ela sorriu. – Nos vemos depois, querido. – Gina disse e se despediu de nós com um aceno.
– O que ela quis dizer? – Perguntei confusa e Dom entrou no carro.
– Ela me leva para casa todas as quintas. – Dom contou depois que eu me sentei no banco do motorista.
– E ninguém achou que eu deveria saber disso? – Indaguei chateada.
– Meu pai sabe. – Dom deu de ombros. – E você nunca está em casa, nem deve perceber se eu chego em casa mais cedo ou mais tarde. – Dom reclamou.

Abri a boca algumas vezes tentando dizer algo, mas ele tinha razão, estava ficando tão pouco tempo em casa que não sabia nem os horários do meu filho, não sabia de mais nada. E o pior de tudo era que todos sabiam disso, Gina sabia que eu não pegava meu filho na escola e eu nem queria imaginar o que mais ela sabia e podia espalhar por aí.
Estava sendo idiota mais uma vez, talvez Gina não soubesse que eu estivesse fazendo o mínimo que uma mãe deve fazer. A culpa não era dela, Dom ou , mesmo que eu quisesse muito bater nele por não me contar das caronas ou de . A culpa era minha. não me pediu para ir para o hospital, nem nunca controlou meus horários, ninguém além de mim tinha esse poder.
Nem terceirizar mais a minha culpa eu conseguia, talvez o erro fosse grande demais até para eu relativizar.
– Me desculpe. – Suspirei ligando o carro. Dom não respondeu.

Depois de tomar um banho, Dom foi até a cozinha e pareceu surpreso com a quantidade de pipoca que eu estava fazendo.
– O que é tudo isso?
– Pipoca. Quer escolher um filme? – Dom ainda estava desconfiado. – Ou eu escolho, tudo bem. – Resolvi.
– O que eu fiz? Você quer conversar, não é? O que te falaram, mãe? – Dom começou a perguntar sem pausas.
– Nada, eu só queria ver um filme com você...as já que insiste, o que você fez? – Me sentei no sofá e o encarei por um tempo.
– Nada. – Desconversou. – É que você está estranha.
– É, eu sei. É bandeira branca. – Sorri. – Vamos voltar ao normal agora, vamos ver filmes com pipoca nos dias chuvosos, tomar banho de chuva quando estiver quente e todas as outras coisas que fazíamos antes.
– Você não vai para o hospital hoje? – Dom perguntou, ainda desconfiado. Talvez ele tivesse sentido mais falta da mãe do que eu imaginava.
– Não, hoje eu vou ficar no sofá e você?
– Tá. – Dom riu e se jogou no sofá.

Nos últimos dias eu estive tão presa no passado e em que quase me esqueci do quanto sentia falta desses momentos, de ficar em paz com e Dom, sem me preocupar com nada, apenas me divertindo. Em algum momento a tinha se dividido em duas, a do presente ficou em Nova York e para Paradise apenas a adolescente havia voltado. Precisava resolver, tinha muito em jogo para ter uma crise de identidade, precisava juntar as duas metades que me formavam, só assim eu conseguiria minimamente dar conta dos meus problemas.
No meio do segundo filme Dom adormeceu, chegou sorrateiro e ficou nos observando da porta.

– Olha quem já voltou. – Falei quando percebi sua presença.
– Que bom ver isso, estava com saudades. – confessou e me deu um beijo.
– Acho que todos estávamos precisando de coisas assim.
– Que bom que me ouviu. O que ele achou? – quis saber enquanto acariciava o rosto de Dom.
– Ele se assustou, depois ficou desconfiado, duvidou das minhas intenções puras, mas não conseguiu resistir por muito tempo. – Contei e riu.
– Ele está grande demais. – comentou com um sorriso no rosto.
– Nem me fale disso. Eu já estou sentindo alguns sintomas daquela síndrome, como se chama mesmo? A que sua mãe teve?
– Síndrome do ninho vazio. – completou e riu. – Você já sente, é? – Sorriu e me deu um beijo.
– Acredita que ele ainda dorme com massagem nos pés? – Contei.
– Ah, eu também quero. – pediu e se recostou na parede cruzando os braços.
– Quer uma massagem nos pés? – Brinquei me levantando do sofá e o abraçando.
– Pode ser mais que isso, um pouquinho mais. – piscou.
– Só um pouquinho. – Eu ri e puxei para o corredor, nessas horas a porta do quarto parecia distante demais.

🍁


– Que horas são? – Dom quis saber, ele estava com os cabelos bagunçados e o rosto amassado.
– Sete e vinte. Você estava na sala? Achei que fosse parte do sofá novo. – implicou.

Era a primeira vez que cozinhávamos juntos desde que nos mudamos para Paradise, depois de matar a saudade no final da tarde, precisávamos matar também a fome. Era irônico como nos momentos mais relaxados é que eu percebia o quanto era bonito, o quanto ele era engraçado. Dom se juntou a nós depois do banho, parecíamos a velha família perfeita de Nova York, rindo de uma frase confusa que Dom havia dito, implicando com por algo do passado dele, sendo felizes, puramente felizes.
Dom estava lavando a louça, picava frutas para a salada e eu estava checando a lasanha no forno. A conversa era sobre como falava, enquanto Dom e eu o imitávamos deixando-o irritado.
– Eu não falo assim. – negou tentando engrossar a voz, enquanto riamos.
– Você pode negar, mas sabe que é verdade. – Eu disse.
– Pelo menos eu tenho sotaque, tenho identidade, estilo. Não sou duplicado igual vocês. – se defendeu.
– Quem ele está chamando de duplicado, Dom? – Perguntei tentando parecer brava. – Você e o Dom são as mesmas pessoas em tamanhos diferentes. Versão de bolso e GG.
– Ei! – Dom protestou. – Eu tenho um metro e cinquenta e cinco. Não sou de bolso.
– Ainda consigo guardar você no armário da cozinha, quer tentar? – propôs empolgado. – Vamos ver se você ainda cabe.
– De jeito nenhum! – Adverti. – Ninguém vai entrar no meu armário! Que ideia.

Quando Dom era pequeno, nós medíamos seu crescimento o colocando dentro de coisas, como: caixas de sapato, gavetas, baús, armários e todo espaço que ele coubesse. Tudo começou no primeiro mês, quando eu cheguei em casa e flagrei tirando fotos enquanto Dom estava dentro de uma cesta de café da manhã.
– Pai, nós ainda vamos viajar no seu aniversário? – Dom perguntou de repente.
– No meu aniversário? – pareceu confuso, sobre seu aniversário e sobre promessas que poderia ter feito.
– Sim, seu aniversário. É domingo, não é? – Dom quis saber. – É que a gente sempre viaja no seu aniversário.
– Bom, eu não estava pensando nisso. Na verdade, até esqueci que meu aniversário estava para chegar. – confessou.
– Isso é um reflexo da idade, os trinta e oito anos estão aí. Você está velho, querido. – Impliquei.
– Muito engraçada. – riu sem humor. – Acho que seria bom uma viagem, só nós três. – cogitou a ideia, me olhando sugestivamente.
– Que legal! – Dom comemorou. – A gente pode ir para um lugar que dê para pescar, você pode me ensinar a pescar com rede, como o tio Oliver faz. – Dom ficou muito animado, eu nem tanto. Deixar por um dia não tinha sido tão ruim, mas deixa-lo um fim de semana inteiro?
– Calma, não é assim também. – o acalmou. – Será que a sua mãe topou?
– Mãe, por favor. Viagem. Aceita. – Dom suplicou.
– Eu não sei, não preparamos nada. – Tentei pensar numa desculpa boa o suficiente.
– Eu tenho umas folgas pendentes, consigo ir. E podemos fazer as malas depois do jantar e sair amanhã de manhã. – planejou.
– Ir para onde, ? – Questionei torcendo para que ele não tivesse uma resposta.
– Deixe isso comigo, só se preocupe em fazer as malas.
– Mãe e então, nós vamos, não é? – Dom perguntou.

tinha aquele olhar, o olhar de “diga que sim’’. Eu queria viajar, o dia tinha sido tão agradável, eu sentia falta das nossas viagens, queria ir. Mas tinha o , como eu poderia deixa-lo assim? Sem nem avisar para onde eu ia, se iria voltar.

– O que acha, ? Não precisa se preocupar, tudo vai estar no mesmo lugar quando você voltar. – falou, ele sabia o motivo da minha indecisão.
– Você pode ir no hospital outro dia, mãe. Mas viajar no aniversário do meu pai é só uma vez por ano. – Dom afirmou.
– Tudo bem, então nós vamos viajar. – Concordei vencida por minhas vozes interiores.

Dizem que ser mãe é padecer no paraíso, eu entendia sobre o que essa frase se tratava. Eu queria ficar, passaria o fim de semana inteiro no hospital se dependesse de mim, mas Dom havia pedido, eu não negaria isso a ele, não depois de ver sua animação, de ter percebido o quanto ele sentia minha falta. Na tentativa de me unir a minha versão adulta, eu devia fazer escolhas que não era as mais atrativas, pelo menos não para mim. Meu filho queria viajar, então eu viajaria, era o certo a se fazer, e eu estava cansada de errar com essas duas pessoas.

🍁


Quase junto com o sol nós nos levantamos, iriamos para um chalé na cidade vizinha. organizou tudo numa velocidade invejável e quase não dormiu na véspera. Eu não dormi também, mas o motivo era outro, estava preocupada demais em como ficaria, se ele sentiria minha falta, se ele pensaria que eu o abandonei. Não consegui parar de pensar nisso, de me questionar e de ter medo, no fundo eu até queria que sentisse saudades, significaria que ele se importava, que eu fazia alguma diferença em seu dia.
O chalé ficava no alto de uma montanha, junto com mais outros três, rodeados por árvores muito altas, o acesso era por uma estrada de terra esburacada que com toda certeza, se chovesse ficaríamos atolados. Dois quilômetros antes dos chalés, havia um lago azul grande e bonito, mais acima uma cachoeira, mas o clima esquisito de maio não nos permitiria aproveitar muito.
– Sabe, eu acho que vi um lugar parecido com esse em um filme uma vez. – Comentei.
– Sério? Qual era? – quis saber animado.
– Não sei, acho que foi em sexta-feira treze ou em o chamado. Não, espere, acabei de me lembrar, foi em Mama. – Debochei.
– Nossa, você é muito engraçada. – franziu o cenho, ranzinza. – Não é tão ruim.
, quatro chalés no meio do nada. Sério, você nunca viu nenhum filme de terror? – As férias da família : uma comédia pastelão ou um filme de terror de péssimo gosto? Pensei.
– É isolado para fugir do caos da cidade, por isso. – defendeu.
– Querido, nós moramos no sul de Paradise. Última vez que tivemos caos na região foi no bingo da igreja valendo dois frangos assados, em oitenta e dois. – Eu ri.
– O que aconteceu? – Dom indagou curioso enquanto se enfiava entre os bancos da frente.
– Tiveram dois ganhadores e os idosos começaram uma briga generalizada, dois foram presos. – Me virei para encara-lo. – Aliás, seu bisavô foi preso. Meu pai teve que ir em várias audiências acompanhando ele depois. Vovô não podia ficar a menos de quinze metros de um outro idoso.
– Você está brincando. – duvidou.
– Não, eu juro. Pode perguntar aos meus pais e meus irmãos. – Assegurei e e Dom gargalharam. Tínhamos muitas histórias de brigas na família, mas geralmente eram histórias engraçadas.
– Chegamos. – anunciou.
– Olha, pai. Tem mais gente aqui. – Dom avisou.

Frente ao outro chalé estava uma SUV preta que parecia ter acabado de sair da loja. Com o barulho da nossa chegada, um casal surgiu na porta do chalé e depois uma criança.

– Quem são eles? – Questionei.
– Não faço ideia, não sabia que teriam mais pessoas aqui. – contou enquanto observava o casal curioso.
– Quais as chances de eles serem sequestradores e terem sequestrado aquele menino? – Não custava nada me preparar para eventuais problemas.
– Eu conheço ele de algum lugar. – Ponderou .
– São bonitos, mas ele tem uma coisa diferente...parece um surfista com aquele cabelo bagunçado. Bem bonito. – Observei.
– Achou ele bonito? – quis saber. – O que mais achou dele?
– Sem ciúmes. – Ri e passei a mão por seu cabelo curto, tentando provoca-lo. – Vamos socializar, vai ficar estranho se ficarmos aqui no carro encarando.

estacionou e nós tentamos fingir alguma normalidade, estávamos todos envergonhados demais. Aparentemente, ninguém esperava encontrar outra família ou possíveis criminosos naquele lugar ermo.

– Olá. – O homem cumprimentou.
– Como vai? Acho que seremos vizinhos esse fim de semana. – observou.
– É, parece que sim. – O homem sorriu, tinha um sorriso bonito, do tipo que ilumina qualquer ambiente. – Eu sou Tony, essa é minha esposa Louise e nosso garoto, Alex. – Se apresentou e a esposa e o filho acenaram. Isso se realmente fossem esposa e filho.
– Eu não acredito. – começou a rir alto, nos deixando confusos.
, por favor, não nos envergonhe. – Tentei reprende-lo entredentes.
– Eu achei que te conhecia de algum lugar, mas a última pessoa que pensei encontrar aqui era você. – ainda sorria como um bobo e foi até Tony para apertar sua mão. – Tony é piloto de Fórmula um, amor. – explicou.
Certas coisas só aconteciam comigo, pensei enquanto sorria amarelo.
– Olá! – Cumprimentei sem graça, Dom também correu ao encontro de Tony.
– Nossa, eu nem acredito que isso está acontecendo. – sempre gostou de esportes de velocidade, com certeza aquele seria o melhor aniversário de todos para ele.
, porque não me ajuda com as malas. – Sugeri. – Deixe Tony descansar, sem assédio de fãs.
– Ah, claro. – assentiu, ainda estava empolgado demais.
– Tudo bem, não é incômodo. – Tony disse gentilmente.
– Vamos, . Dom, por favor. – Chamei.

Depois de apertar as mãos de Tony mais duas vezes, e Dom cederam e deixaram a família famosa em paz. Quando pensei em um fim de semana nas montanhas, não imaginava nem em meus melhores sonhos que encontraria alguém famoso, nem tinha roupa para a ocasião.

– Eu não acredito. – parecia uma criança depois de tomar refrigerante demais, olhando a cada cinco minutos pela janela. – Você viu como ele é simpático?
, se você ficar assediando, daqui a pouco vão embora. Dê um tempo. – Pedi. – Além do mais, vocês não iam pescar?
– É, mas a gente pesca depois. É o Tony Render. – A última vez que esteve assim, foi quando Dom nasceu.
– Pai, depois do almoço nós vamos pescar? – Dom perguntou.
– E se a gente chamasse o Tony? – pensou alto.
, você não vai chamar ninguém. Ele não te conhece, ser famoso não o torna seu amigo. – O repreendi.
– Mas a gente devia socializar com eles. – tentou argumentar.
– Eu acho que eles não querem socializar. – Disse me aproximando da janela que observava o movimento do outro chalé.
– Por que?
– Porque ninguém que queira socializar vem para um lugar como esse. – Conclui fechando a cortina, encerrando a carreira de voyeur de .

🍁


Depois do almoço conseguimos tirar do chalé e ele enfim aceitou ir pescar com Dom. Ficar sozinha era sempre bom, mesmo num lugar assustador como aquele e com gente famosa na casa ao lado. Mas eu não deixaria de aproveitar o silêncio, abri uma cerveja e me sentei na pequena varanda que o chalé tinha, de onde eu estava só conseguia ver os carros e as árvores, nada mais.
A nova vizinha famosa teve a mesma ideia, mas ela tomava algo quente numa caneca maior que a lata de cerveja que eu tinha. Ao me ver, ela sorriu e mostrou a caneca e eu levantei a lata.
– Às vezes é preciso algo mais forte. – Eu disse.
– Por isso eu prefiro o chá escocês. – Ela apontou para a caneca e sorriu marota. – Isso está cheio de uísque. – E riu alto.
– Mulher! – Eu ri. – Você precisar me ensinar a fazer.

Ela era boa, Louise era o tipo de mulher que te surpreendia, parecia ser séria e calada à primeira vista, mas depois se mostrava espirituosa, gentil e dócil. Já haviam horas que estávamos tomando chá escocês e falando mal dos chalés, mas pareciam apenas alguns minutos.
Eu não esperava que a esposa de um piloto famoso fosse tão humilde e agradável a ponto de se oferecer para tomar alguma coisa alcoólica comigo, mas agora ela estava sentada ao chão e comendo amendoins com uma simples chef.
– Eu não tenho problema com lugares simples, mas eu juro, quis matar Tony quando chegamos. – Contou, Louise tinha um sotaque francês delicioso de se ouvir.
– Não parece que aquele filme, sexta-feira treze, foi feito aqui? – Perguntei.
– Eu tenho total certeza, Olivia. Tony disse que aqui pelo menos teríamos paz, mas claro, só os caça fantasmas viriam para um lugar como esse. – Louise zombou.
– Desculpe por invadir seu espaço. – Brinquei.
– Imagine, se eu não tivesse alguém para tomar uísque comigo, acho que eu mesma me tornaria a entidade. – Rimos.
– Estão casados há quanto tempo? – Perguntei, já estávamos levemente embriagadas.
– Tem uns seis anos?
– Se você não sabe... – Louise riu alto.
– Eu sempre sou desligada com esses detalhes. Tony sabe até os meses, experimente perguntar para ele depois. – Louise respondeu depois de finalizar outra caneca.
– Sorte para você. Nem eu nem somos bons com datas. – Assumi.
– Vocês têm quanto tempo de casamento. – Quis saber a outra.
– Já são quase treze anos. Espero não ter entregue minha idade. – Brinquei.
– Nossa, é bastante tempo. – A francesa suspirou.- Como é estar casada há tanto tempo? – Louise perguntou.
– Bom... – Eu não sabia o que dizer. Como era estar casada a tanto tempo e continuar apaixonada? Eu queria perguntar a ela. – Às vezes parece que somos mais amigos do que cônjuges. – Respondi um pouco sem graça. – E vocês?
– Uma loucura. – Ela riu. – Tony e eu somos pessoas muito diferentes. Ele é simpático, extrovertido, tem milhões de amigos, faz piada de tudo. Eu sou mais quieta, mais tímida, achei que nunca daria certo, eu confesso. Mas temos feito coisas lindas juntos e eu nem estou falando do nosso filho. – Louise riu. – Eu tenho aquela mesma sensação de frio na barriga que tive quando o vi pela primeira vez. – Confessou. – Mas acho que temos muito chão até chegar no estágio que você e estão.
– Como vocês se conheceram? – Não queria que o assunto fosse meu casamento, nem eu entendia como ele estava, como funcionava. Por mais que Louise fosse simpática, não queria contar a ela sobre meu fracasso como esposa.
– Eu o vi numa corrida, mas ele não me notou. Tempos depois, eu escrevi uma matéria para um jornal, detonando ele. – Louise sorriu de canto. – E ele veio me questionar, todo cheio de razão, me lembro do prazer que era irrita-lo. Depois disso, ele me convenceu e eu resolvi dar uma chance e fazer uma entrevista, para tentar ajuda-lo. Na época, ele era muito cobrado, eu e outros jornalistas falávamos muito mal dele, com razão. – Louise encheu a caneca com mais uísque e sorriu, a lembrança devia ser boa, ela não conseguia parar de sorrir. – Ele queria se provar, viver no limite. E aí, nós nos conhecemos.
– Você não consegue disfarçar a carinha de apaixonada, Louise. – Impliquei.
– É porque eu sou. – Ela riu. – Quando eu vi aquele homem lindo passando por mim no paddock...eu não sei explicar, mas era como se não existisse mais ninguém no mundo, eu me apaixonei. - Louise suspirou. – Eu poderia falar do Anthony o dia todo sem me cansar.

A atmosfera ao redor de Louise era aconchegante e romântica, quase conseguia ver os corações subindo enquanto ela falava. Eu não era assim, nunca fui, talvez aquele amor adolescente dos filmes fosse mesmo real ou talvez Louise só estivesse iludida, vivendo uma paixão, paixões são assim. Por outro lado, estavam casados e com filho, quase seis anos de casamento, não era qualquer coisa. Eu estava tocada pela emoção que Louise emanava, confusa e talvez, bem no fundo, com um pouco de inveja.

– Oi, passarinho. – A repentina chegada de Tony com o filho me despertou. Louise abraçou o menino e afastou a caneca com uísque.
– Louise, não acredito que você está dando uísque para nossa vizinha. – Tony a repreendeu. – O que vão pensar de nós?
– Ela que começou, ela tinha cerveja. – Louise se defendeu e riu.
– Nós precisamos conversar. – Tony disse se dirigindo a mim. – Eu tenho um carregamento de uísque, mas minha esposa não lembrou de trazer nenhuma cerveja, será que eu poderia fazer uma troca?
– Feito. Posso colocar gim nisso? fica muito hiperativo quando toma. – Negociei com Tony.
– Ah, esse é o segredo dele. – Tony entendeu. – Eu o vi agora, nadando no rio. Quantos graus fazem, doze? – Tony estava incrédulo.
– O que esse homem não faz por um peixe. – Falei. – Por isso eu sempre ando com álcool.
– Você não quis experimentar a água, Anthony? – Louise provocou.
– Ainda não estou maluco. Eu gosto de fogo, de coisas quentes, deixe a água fria para o . Ele parece ser uma dessas pessoas que gosta de extremos, eu estou muito bem em cima do muro. – Tony brincou.
– Vamos tomar um banho, garotinho. – Louise disse.
– Você está falando comigo ou com ele? – Tony perguntou.
– Com os dois. – A francesa se levantou. – Por que você está com esse cheiro horrível?
– É uma longa história. – Tony fingiu sussurrar abaixando o queixo e fazendo bico.
– Eu não quero nem imaginar. – Louise balançou a cabeça em negação. – Nos vemos depois, . Eu preciso cuidar das crianças agora.

Louise e Anthony fecharam a porta e e Dom surgiram na clareira dos chalés. estava completamente molhado, o peitoral definido marcava a blusa cinza, o casaco estava nas mãos, o cabelo pingava. Era incrível como aquele homem sempre parecia estar saindo de um ensaio fotográfico em uma revista de homens lindos. Dom estava mais atrás segurando um peixe quase do seu tamanho, seu sorriso enchia o rosto de orelha a orelha.
– Mas o que é que aconteceu? – Perguntei surpresa e animada.
– Ah, mas você não vai imaginar. – respondeu orgulhoso.

🍁


A manhã de sábado estava um pouco mais quente, segundo , o domingo seria ensolarado. Depois de algumas investidas, ele e Tony resolveram fazer hambúrgueres para o almoço. experimentou toda roupa que tinha trago, até achar alguma que ele considerasse decente. Alex estava conosco, passou a manhã ajudando Dom e com a lenha para uma fogueira, Tony e Louise deviam estar se divertindo.
Quando enfim chegaram até os fundos do nosso chalé, já passava do meio-dia. Tony estava animado e Louise resplandecendo elegância e gentileza como no outro dia.
– Eu vim pela cerveja, . – Tony confessou.
– Quantos eu consigo ganhar se eu vender o segredo da sua fraqueza para os concorrentes? – Provoquei Tony.
– Que horror. É com esse tipo de pessoa que você se relaciona, ? – Questionou beliscando um pedaço de carne e se sentando.
– Aqui. – Disse abrindo a garrafa com a quina da mesa e a servindo a Tony.
– Não. – Anthony abriu a boca chocado. – Olha o que essa mulher fez. Está vendo, Louise? É isso que eu sempre te digo, não se vê coisa assim na França. – Garantiu.
– A primeira vez que eu vi essa mulher, ela abriu uma cerveja com o cotovelo. – contou enquanto acendia a churrasqueira.
– Você precisa me ensinar. – Tony pediu colocando as mãos na cintura.

Tony e Louise eram o tipo de casal que contagiava qualquer ambiente. Estavam felizes, leves, rindo, brincando. Ele não deixava de olha-la, o tempo todo, mesmo se ela estivesse de costas ou que estivesse fazendo outra coisa, seus olhos sempre a seguiam. Louise também não ficava atrás, antes que Anthony dissesse algo, ela já sabia. Antes que ele pedisse uma cerveja, ela já estava com uma para servi-lo, eles se comunicavam com o olhar, o tipo de coisa que você só vê em filme. Mas por mais que fossem famosos, ricos, era real, o sentimento do casal era palpável, daqueles que te faz querer ter um igual, sentir as mesmas coisas, viver a mesma coisa. Talvez aquele amor arrebatador realmente existisse, mas fosse para poucos, isso explicaria tudo, talvez eu só não havia sido contemplada.
Sendo sincera, não podia reclamar. Tinha um casamento feliz e estável, um marido de beleza estonteante, segundo minha opinião e um filho maravilhoso. Não era igual, o sentimento entre nós não era como o do casal famoso, mas também tinha seu valor, não tinha?
– Então, . contou que você era chef em Nova York. – Louise puxou papo me despertando.
– Pois é, eu trabalhei com isso por uns dez anos. Logo que terminei as especializações, Dom nasceu. Sabe como funcionam essas coisas, precisei parar. – Contei. – fez a parte dele como pai, obviamente, mas não foi suficiente.
– No final, quem amamenta somos nós. – Louise completou e riu. – Tony também foi muito presente e para minha sorte, meu trabalho me ajudou, podia escrever de casa.
– Eu treinei bastante, consegui criar receitas novas, mas foi só. Só consegui voltar depois, quando Dom estava com quase três anos. Mas tive que mudar meu horário, não podia ficar tanto tempo fora trabalhando, como é o normal. – Eu contei e Louise assentiu. – Na verdade, acho que trabalhar com isso, na cozinha e ser mãe não são coisas muito possíveis. Não se eu quiser colocar a mão na massa. – Confidenciei a ela.
– Eu escrevi um artigo para uma revista, quando Alex nasceu. Era sobre mães no esporte, é chocante como é uma batalha para elas. Para todas nós, para ser sincera. Ser mulher não é fácil, ser mãe é ainda mais. Elas não recebem os direitos, são afastadas e não conseguem voltar, tem que reduzir o tempo de trabalho e uma série de coisas. E os maridos seguem a vida, como se nada tivesse acontecido. – Louise falou. – E sabe a melhor parte disso? Pelo menos é a parte que eu mais gosto. – Sorriu.
– Qual é? – Perguntei tomando um pouco de cerveja.
– Nenhuma delas, absolutamente nenhuma, se arrepende ou preferia não ter tido filhos. – Louise revelou.
– É, isso. É como dizem, ser mãe é padecer no paraíso. – Eu sorri.
– Um brinde à maternidade e a padecer no paraíso. – Louise e eu erguemos os copos. – Eu vou usar essa frase.
– Fique à vontade.

Se me contassem que voltando para Paradise eu reencontraria , me aproximaria dele, conheceria um casal famoso, comeria hambúrgueres caseiros com eles, jamais acreditaria. É sobre aquilo, as voltas que a vida dá, quase impossível prever e geralmente é bem melhor do que imaginamos. Essa é a beleza de se estar vivo, as surpresas cotidianas. Nossas vidas são sempre atravessadas por outras pessoas, pelas escolhas de outras pessoas.
Quando voltei, sequer conseguia ouvir o nome do meu irmão sem vomitar ou nem me passava pela cabeça frequentar a casa dos meus pais, estava conformada com meu casamento amistoso e bem com quem eu era. Hoje eu estava questionando minhas escolhas, me achando uma pessoa vazia e incomodada com meu casamento, me fazendo vinte críticas por minuto, pensando em contar aos meus pais sobre Louise e Tony e pensando até em causar inveja no meu irmão contando a ele como Tony era simpático. Era um furacão.
. – Louise chamou. – Você estava em que mundo?
– Você me chamou? Desculpe. – Disse sem graça. – Pensando na vida.
– Entendo. – Ela riu. – Eu te perguntei, o que você tem feito agora? Se pretende voltar a cozinhar.
– Desculpe, eu nem escutei. – Me desculpei novamente. – Eu ainda não sei. Na verdade, quando eu voltei para minha antiga cidade, eu pensei nisso. Mas muita coisa aconteceu e eu acabei deixando isso um pouco de lado. – Expliquei.
– O que você tem feito? – Louise insistiu. – Desculpe, a jornalista em mim não dá trégua. – A francesa piscou envergonhada.
– Tudo bem, não é sempre que sou entrevistada por uma jornalista de verdade. – Brinquei. – Eu não tenho tido tempo nem para pensar sobre isso. Acho que eu cuido deles e fico no hospital a maior parte do tempo. – Assumi. – Tem uma pessoa, um antigo conhecido, quando voltei a cidade descobri que ele estava doente e agora eu tenho ficado com ele no hospital, de companhia. – Contei a Louise.
– Que pena, eu sinto muito. – Lamentou.
– Eu também. – Sorri triste. – Ele não tem família, ninguém vivo pelo menos. Acho que é mínimo que eu posso fazer, ficar ao lado dele.
– E é grave? – Questionou a outra.
– Sim, pelo que eu sei sim. – Suspirei e tomei mais um pouco de cerveja. – É difícil, ele era um homem livre, cheio de vida. É difícil vê-lo daquele jeito, no hospital, fragilizado, sem expectativas.
– Eu imagino que sim. – Louise sorriu dócil. – Vocês se conhecem desde quando?
– Desde que eu tinha uns treze anos. – A lembrança me fez sorrir. – Ele é mais velho que eu, me lembro de vê-lo na praia e com meu irmão algumas vezes. Ele tinha um sorriso lindo, ainda tem, mas hoje em dia quase não sorri. – Tomei mais um pouco de cerveja. – Ele é aquele tipo de pessoa que te contagia e é tão gentil, sempre estava ajudando alguém, era voluntário em vários lugares. – Sorri me lembrando das coisas que fazia antes, ou pelo menos das coisas que eu me lembrava que ele fazia.
– Parece alguém verdadeiramente bom. – Louise comentou enquanto abria outra cerveja.
– Ele é. Quando eu o reencontrei ele não estava mais falando, agora ainda não fala, mas nós temos um código. Eu tirei de um filme que vi, ele pisca uma vez para sim e pisca duas, para não. Nos comunicamos assim, eu sempre sei o que ele quer dizer só com o olhar. Na primeira vez que ele me respondeu assim, piscando, eu quase tive um ataque, meu coração quase saiu pela boca, eu fico arrepiada só com a lembrança. – Mostrei meu braço a Louise e ela sorriu grande.
– Você também fala de mim assim quando eu não estou perto, Louise? – Tony questionou de repente ao surgir atrás de Louise e ela me lançou um olhar furtivo.

Não entendi o que ela quis dizer com aquele olhar.

– Essa é a melhor viagem da minha vida inteira. – falou enquanto se deitava.
– Que bom que está feliz. – Respondi distraída.
– Amanhã, se o sol aparecer vamos todos para a cachoeira. E depois comer o meu bolo e vamos fazer outro churrasco. – contou seus planos.
– Vamos sim.
– O que foi? – Perguntou se virando para mim. – Você está estranha desde que Tony e Louise foram embora.
– O que você acha deles como casal?
– O que você quer dizer? – franziu o cenho confuso.
– Como casal, marido e mulher. A relação deles, o casamento, o que você acha?
– Ah, . – se ajeitou na cama e ponderou um pouco. – Eles são bonitos juntos, combinam. Parecem felizes, Tony fala o tempo todo dela.
– Ela também fala muito dele. – Observei.
– Então, eles estão apaixonados, é bonitinho de ver. Não sabia que ele era assim, família. Só aumentou a admiração. – falou. – Mas por que seu interesse nisso? Alguém falou alguma coisa?
– Não, eu só não estou acostumada a ver casais assim. – Comentei.
– Famosos? – Apaixonados, pensei. – Nem eu estou, acho que ninguém está. – riu, me deu um beijo e virou para o lado.

🍁


O domingo estava quente e ensolarado, perpetuando a tradição de que todos aniversários de eram ensolarados. Como programado por ele, estávamos todos na cachoeira. estava na água com Dom, enquanto Tony, Louise e Alex sentados nas pedras comigo, estávamos fofocando sobre famosos e tirando algumas fotos.
– Diga a verdade, . – Tony pediu. – Quantas horas ele passa na academia? – Tony se referia a que estava sem camisa, com água na altura da cintura, exibindo um físico invejável.
– Por incrível que pareça, ele corre duas vezes por semana e faz musculação três. – Contei. – Ele é assim desde que o conheci, fazia natação também.
– Eu tinha um segurança que me colocava medo, era enorme, um trator. E ele ficaria pequeno perto do . – Tony contou fingindo estar chocado.
– Não exagere. – Louise piscou. – Não é assim. Aquele segurança tinha quase o mesmo tamanho que ele.
– Me deixe elogiar o homem, Louise. – Pediu, fingindo estar contrariado.

Aparentemente a viagem estava servindo para me mostrar que não estava apaixonada pelo meu marido e que ao mesmo tempo, ele era o homem mais bonito do planeta. Enquanto e Dom se divertiam, minha cabeça reprisava todos os momentos da nossa união, tentando lembrar se alguma vez eu o tinha olhado da mesma forma que Louise olhava para o marido ou alguma vez que tivesse sorrido para mim da mesma forma que Anthony sorria para a esposa.
– Mãe, meu pai disse que dá para pular daquela pedra. Eu posso? – Dom perguntou inocente, quando eu entrei na água.
– Obviamente, não. Não escute seu pai, nunca. – O repreendi e ele deu de ombros.
– Água boa, não é? – perguntou, me abraçando por trás.
– Você disse ao Dom que daria para pular daquela pedra? – Questionei apontando para as rochas.
– Eu disse que é possível. – Respondeu enfatizando a última palavra. – Ele está se divertindo, disse que quer voltar no próximo ano. Poderíamos combinar com o Tony.
– É, talvez eles consigam vir. – Concordei. Realmente era uma boa ideia, afinal, quem não quer férias anuais com Louise e Tony Render?
– E você, se divertindo? – Ele quis saber.
– Eu estou. – Disse e me virei para encara-lo. – Tem sido um bom fim de semana. Louise é uma companhia agradável, parece que nos conhecemos desde sempre, Tony é um doce, Alex é muito educado. E eu senti falta de viajar com vocês, mesmo que todas as atenções estejam com Tony e não em mim. – Impliquei fingindo estar enciumada.
– Querida, prioridades. – disse. – Ganhe o mundial, seja eleito como melhor piloto do mundo depois nos falamos.
– Que idiota! –Bati de leve em seu peito, fingindo estar muito magoada, gargalhou.

🍁


– Você acredita nisso? Bem ali, o Tony Render. Será que se eles postarem alguma foto, vão aparecer fotógrafos na nossa casa? – Meu marido disse empolgado, enquanto assistia ao casal famoso em seu churrasco de aniversário.
– Eu acho bom que não. – Disse.
– Você não quer ser famosa, querida? Pense no que o Giovanni diria.
– É, pensando assim... – A ideia era boa.
– Meus parabéns, . – Tony falou enquanto o abraçava. – Qual o sabor de suplemento que tem no bolo? Chocolate ou morango? – Zombou.
– Nenhum, o bolo é falso. Vamos comer ovos cozidos e suco detox. – entrou na brincadeira. – Não achou que teria bolo, não é?
– Não acredito que você seria capaz dessa atrocidade. – Tony fingiu estar chocado, colocou uma mão no peito e se escorou na parede.
, os ovos. Pode pegar. – Ordenou .
– Você está expulso do fã-clube, ! – Tony exclamou.
– Eles vão ficar nisso até ano que vem. – Louise disse. – Eu conheço bem.
– Acho que devíamos cortar o bolo, então. – Eu sugeri.
– Vamos deixar eles aí falando sozinhos e entrar. – Dom propôs.
– Se você esconder o bolo do Tony, aí sim, ele vai subir pelas paredes. – Louise contou e nós rimos.
– Ninguém na escola vai acreditar que eu conheci o Tony. – Dom disse quando Louise se afastou de nós.
– Que sorte, não é? Termos vindo para cá justo nesse fim de semana. Você tirou fotos com ele?
– Sim, tirei várias. Tia Louise disse que vai escrever uma matéria sobre esse fim de semana. – Contou.
– Tia Louise?
– Ela que disse, mãe. – Dom se explicou e eu ri. – Podemos chamar eles para o meu aniversário?
– Querido, podemos tentar. Mas eles moram muito longe e são muito ocupados. – Expliquei. – Mas quem sabe...

Depois do bolo, Tony e Louise anunciaram que estariam indo. O mundo de e Dom desabou. Depois de trocarmos contatos, abraços e recomendações sobre a viagem e as competições, eles estavam prontos para partir.
, eu espero que aquela pessoa de quem falamos fique bem. – Disse sorrindo enquanto segurava minha mão. – Vou te dizer algo que eu demorei para entender, mas quando consegui, mudou minha vida. Às vezes tudo que queremos está a distância de um no salto no escuro. – Ela enfatizou.
– Eu vou me lembrar disso. – Assim que entender o que quis dizer, pensei.
– Aí, eu acho que vou chorar. – disse assim que a família entrou no carro.
– Segura sua onda, Rambo. – Brinquei acariciando os cabelos de Dom.

🍁


– Enfim em casa. – suspirou. – Se tivesse que dirigir por mais meia hora, eu acho que dormiria no volante.
– Eu disse para me deixar trazer o carro, mas você é teimoso demais. – Falei.
– Eu disse que dormiria, não que dormi. Eu não tive culpa, o trânsito estava ruim e você sabe que eu sempre fico com sono quando pegamos trânsito. – se explicou. Era quinta vez que ele se explicava desde que saímos do chalé.
– Se você não tivesse saído tão tarde, não teríamos pego trânsito. – Resmunguei.
– Será que o Tony pegou trânsito? – pensou alto e eu revirei os olhos.

A viagem de volta sempre era mais longa que a ida e tinha tido a brilhante ideia de viajar à noite para fugir dos engarrafamentos, acabamos pegando um de mais de dois quilômetros. Dom nos ajudou com as malas e enfiam íamos todos dormir. Não conseguia me lembrar da última vez que fiquei tão cansada com uma viagem, meus desejos eram apenas um banho fervendo e uma cama quente.
– Dom, veja se tem alguma ligação perdida ou coisa assim. – pediu e Dom foi conferir. – Acho que ninguém vai querer jantar. – Comentou.
– Eu me demiti, estou indo dormir. – Falei antes que tivessem a brilhante ideia de sentir fome. – Algum recado, querido? – Perguntei a Dom.
– Não, mãe. – Afirmou.
– Então, boa noite. – Beijei seu rosto. – Não me acordem amanhã. Nem se a casa estiver pegando fogo. – Avisei um pouco ameaçadora.



5

Não acordei tão tarde quanto gostaria, mas tarde o suficiente para quase perder a hora do almoço. Uma das coisas que eu mais sentia falta da juventude era dormir sem ter hora para acordar, uma liberdade boa, não ter rotina, não ter horários. Sendo uma mulher casada e mãe, agora eu tinha responsabilidades mais urgentes, como preparar o almoço dez minutos depois de acordar.
A campainha avisou que eu teria alguma visita indesejada, estava de pijamas, cozinhando várias coisas ao mesmo tempo. Meus planos eram terminar o almoço, tomar um banho e me preparar para fingir ter acordado as sete da manhã.

– Você. Oi. – Descobri Giovanni sorrindo e animado do outro lado da porta. De todos os possíveis visitantes, eis o pior.
– Oi. Não vi mais você, resolvi aparecer. – Ele explicou, estava alegre. – Posso entrar?
– É, entra. – Respondi sorrindo amarelo.
– Eu estive aqui no sábado. – Giovanni contou. – A casa é ótima, tem quintal atrás? – Perguntou enquanto passeava pela sala e corredor.
– Nós viajamos, foi aniversário do . Sim, temos quintal. Alguma outra pergunta? – Não que eu fosse uma pessoa tão desagradável, é só que eu só sabia lidar assim com meu irmão, era assim desde que conseguia me lembrar.
– Desculpa a entrevista. – Giovanni riu. Aparentemente, ele ignorava minha grosseria. – É uma casa bonita e parece bem grande, Dom deve gostar. Ele está na escola?
– Sim, e no trabalho. É, ele gosta, mas não aproveita muito, fica mais jogando ou na televisão. – Expliquei me atendo as panelas, Giovanni se aproximou da ilha da cozinha e ficou ali me observando cozinhar.
– É a geração, acho que todos são assim, Jack pelo menos é. Nós lutamos para ele ir para fora. – Giovanni contou. – Quantos anos fez? Devíamos sair para beber, comemorar. – Sugeriu.
– Trinta e oito. Fale com ele, disse que queria sair para jogar sinuca, ele vai gostar da ideia. – Garanti.
– Devíamos marcar um jantar, um almoço. Todo mundo. – Giovanni estava realmente focado em socializar.
– Quem sabe... – Desconversei, não tinha o mesmo espírito, nem estava com ânimo para aturar a família toda reunida.
– Não é porque você se isolou em Nova York que temos que continuar assim. – Não acredito que ele está fazendo esse drama todo, pensei enquanto respirava fundo. – Nós somos só três, não precisamos esperar alguém morrer para pararmos com essas brigas de criança.
– Quem você está chamando de criança? – Indaguei o encarando, tinha na mão direita a faca que cortava as cebolas.
– Você nem está olhando para mim enquanto eu falo com você, . – Giovanni apontou. – Eu percebi aquele dia, você ficou me provocando o tempo todo, com aquele questionamento patético e transfóbico sobre a Carly. Eu entendi sua espetada no tom.
– Eu? – Desconversei. – Só falei o óbvio, mas como sempre, tudo é sobre você, não é? Quem é que você está chamando de transfóbica? Quem sempre foi o dono da moral e dos bons costume foi você.
– Aí, está sendo de novo. – Giovanni riu alto sem humor. – , eu sei que deve ter sido muito confuso para você quando saiu do armário e já haviam se passado quinze anos, mas deixe-me de contar tudo que mudou nesse tempo. – Meu irmão provocou.
– Eu parei no tempo? Eu? – Apontei a faca para meu peito, tentando enfatizar o “eu” da coisa. – Eu me mudei, fiz várias coisas...se tem uma coisa que não fiz foi parar no tempo e me contentar com a mesma vidinha pacata de sempre nessa cidade.
, você é tão previsível. – Giovanni rolou os olhos, mas algo em sua expressão ainda denunciava seu divertimento com a situação. – Mais uma vez...você é muito inteligente, com toda certeza, ótima escolha. Mal posso esperar para aplaudir o fato de você ter ido embora e nunca mais ter voltado. Aliás, quem é que poderia importar nessa droga de cidade chata e patética? Seus pais? Não, velhos demais, ultrapassados demais. Seus irmãos? Chatos demais, dispensáveis demais. Seus amigos? Quem liga para eles quando se pode fazer novos amigos mais descolados em New York, não é?! – Alfinetou.
– Não é verdade, nada disso. – Tentei contestar, mas não tinha argumentos para isso.
– Não, claro que não. – Giovanni balançou uma das mãos em minha direção. – Quando você soube da morte do Theodore? Como foi minha festa de casamento? Onde foi o casamento do Ted? – Eu abri a boca, mas não soube o que falar. Giovanni expirou e riu vitorioso. – Eu não sei você, mas acho que tenho um ponto. – E você, com toda sua razão e certeza, por estar certo como sempre, resolveu vir aqui jogar tudo isso na minha cara. – Constatei e ri sem humor.
– Não, pelo amor de Deus, . – Ele rolou os olhos e bufou impaciente. – Eu vim te visitar, você que adora viver numa novela onde é sempre a mocinha injustiçada. Vou te contar uma novidade, irmã. Sente-se, pois isso pode te chocar. – Giovanni se aproximou, pegou a faca que estava em minhas mãos e a pôs na pia, depois tocou meu ombro e me olhou nos olhos. – Ninguém está conspirando contra você, ninguém te odeia e você é só mais uma pessoa comum. Um grão de areia de uma praia comum. Tcharan. – Giovanni debochou e eu quis matá-lo.
– Você devia ir embora. Agora. – Pedi trincando os dentes.
– Você não muda, não é? – Giovanni constatou depois de um longo suspiro. – Continua dura, inflexível...cheia de si. Você realmente acha que a vida de todo mundo continuou do mesmo jeito, só a sua que mudou. Acha que tudo devia estar como você se lembrava porque é confortável para você, você era legal, popular...mesmo não sendo nada legal no final das contas. Continua achando que é mais legal ou melhor que todo mundo, mesmo sendo uma baita babaca. – O tom de Giovanni era frio, cortante, eu arriscaria dizer que ele estava decepcionado.
– E você por sua vez, só quer mostrar o quão superior é, o quanto o resto da humanidade precisa aprender com suas ações, o quanto você devia ser valorizado e amado...isso é narcisismo, Giovanni. – Expliquei enquanto fazia a melhor cara de nojo que conseguia.
– Ah, não. – Giovanni expirou e encarou o chão. – Você acha mesmo, depois de todo esse tempo, que eu sou um vilão terrível que está enganando a todos, que faz coisas boas apenas porque tem um plano mirabolante de dominar o mundo? , isso realmente faz sentido para você quando diz em voz alta ou é só meme? Um surto coletivo?

Eu não respondi, não pude. Parecia ridículo, ninguém poderia ou conseguiria viver tanto tempo fingindo ser algo que não é, máscaras caem, cedo ou tarde. O mundo estava mesmo de cabeça para baixo, eu estava realmente concordando com Giovanni em algo.
– Sabe...eu não...não vou falar mais nada sobre isso. Quando decidir vir aqui, tinha outros planos. Você é minha irmã, não houve nenhum dia em que eu não sentisse saudades suas. Eu tenho ciência de que você e Oliver sempre foram mais próximos, que eu sempre fui meio que o impostor nessa bagunça toda, mas eu também sou irmão de vocês...gostaria de me sentir incluído, parte de...enfim. – Giovanni expirou pesadamente e por alguns instantes eu senti o coração apertar. – Eu acho que poderíamos tentar...a família toda reunida enquanto ainda estamos todos aqui, antes do Oliver viajar. – Giovanni se sentou em uma cadeira, apoiou os rostos nas mãos, os cotovelos na ilha e ficou me encarando.
– Oliver vai viajar de novo? – Perguntei confusa.
– Não sabia? Ele vai no final do mês, Bangladesh. – Giovanni respondeu entediado. – Ele não te contou? Você tem café aí? – Escuta, Giovanni, se você acha...– A chegada repentina de Dom interrompeu minha resposta.
– Oi. – Dom cumprimentou e pela sua expressão confusa achei que devia ter escutado algo.
– Oi, Dom. Como está? – Giovanni se levantou e o abraçou.
– Oi, tio. – Dom e Giovanni pareciam ter uma certa familiaridade de que eu não estava ciente. – Tem um monte de coisas para te contar, nós fomos viajar. O Tony Render estava lá, meu pai me ensinou a pescar com rede, eu tentei fazer como você, mas com a vara é bem mais fácil. Meu pai pegou um peixe enorme com as mãos. E o Tony fez hambúrgueres com a gente.
– Quem? – Giovanni perguntou e sorriu. – Você tem que contar uma coisa de cada vez.
– Você vai ficar para almoçar, não é? Eu te conto tudo. – Dom perguntou. Ele estava empolgado?
– Oi, Dom. Também estou bem, obrigada por perguntar. Banho, agora. – Ordenei enciumada.
Dom cumprimentou Giovanni mais uma vez, com um toque especial e nos deixou.
– Mas o que é isso? – Questionei.
– Nós saímos algumas vezes. Eu, , Oliver e Dom. – Giovanni explicou.
– E porque eu não sabia disso?
– Se seu marido não contou, é porque sabe que você faria o que está fazendo agora. – Giovanni esclareceu.
– Você já me ofendeu demais hoje, Giovanni. – Disse apagando as chamas e finalizando o almoço. – Você não tem um trabalho? Algo para fazer que te tire da minha frente antes que eu esfaqueie você.
– Tio, você tem que ver as fotos que nós tiramos. Tem o Tony no aniversário do meu pai, tem a gente na cachoeira... – Dom contou animado, de volta a cozinha.
– Vamos marcar um dia, eu quero que você me mostre tudo e me explique que história é essa com Tony Render, Dom. – Giovanni se levantou e se espreguiçou lentamente. – Eu não trabalho hoje, . Tirei o dia para fazer visitas, fui até minha mãe, aqui e agora vou para o hospital. – Explicou.
– Aconteceu alguma coisa? – Dom perguntou.
– Vou ver um amigo, me ligaram do hospital hoje. – Giovanni explicou triste.

A palavra “hospital” e “” começaram a piscar na minha mente de repente. Como eu poderia ter esquecido? Deveria aproveitar e acompanhar meu dócil irmão até o hospital. Mas deixaria Dom sozinho em casa?
– Não ligaram para você, ? – Giovanni perguntou docemente.
– Para mim? – Como assim? Pensei. – Por que me ligariam?
– Soube que você tem o visitado, me disse. Achei que tivessem te avisado.

Era um pesadelo.
Só poderia ser um pesadelo. Eu saía por um fim de semana e de repente tudo mudava, o chão sumiu, estava flutuando, insegura, prestes a cair. Meu estômago era um buraco negro que me sugava à medida que eu respirava. O ar se tornou tóxico, a cozinha insuportavelmente fria, tudo à minha volta era como um filme antigo, mudo e cinza.
– Ninguém me avisou. – Disse tão baixo que duvidei que Giovanni tivesse escutado.

Dom me olhava assustado, Giovanni caminhou até mim e segurou minhas mãos.
– Você está bem? Está gelada. – Constatou. – Dom, pegue um pouco de água.
– Por que ninguém me avisou que ele estava mal? – Indaguei ainda tonta.
– Talvez ligaram no fim de semana. – Ponderou Giovanni. – Me deixe ver.

Dom parecia estar assustado, talvez pelo meu estado. Quando me entregou o copo com água, estava quase tão transparente quanto o líquido.
– Aqui, tem umas cinco ligações do hospital. – Giovanni contou. – Desde sexta.
– Dom... – Eu entendia a reação dele, não era por minha causa, pelo menos não pelo meu estado atual. – Posso ir para o hospital com você? – Perguntei.

🍁


A viagem até o hospital durava cerca de quinze minutos, mas pareciam quinze anos. A culpa era minha, eu não deveria ter deixado sozinho. não entendia, não entendia o que estava acontecendo, eu não devia ter dado ouvidos a ele. Tive a chance de ficar com , ele estava até melhor e então eu estraguei tudo. As palavras de Giovanni também ecoavam na minha cabeça. Eu fui egoísta, não é? Deixei sem nem ao menos me despedir.
Eu estava prestes a vomitar, minha cabeça doía, não tinha ar suficiente para respirar. Dom estava no banco de trás e eu ao lado do meu irmão. Giovanni me observava preocupado, seus ombros estavam tensionados, mandíbula travada.
Quando enfim foi possível enxergar a fachada do hospital, o banco do carro parecia estar completamente eletrificado, era capaz de sentir o choque por todo meu corpo, sendo mais um estímulo para que eu corresse para dentro do hospital. Saí do carro sem sequer olhar onde pisava, nem para os lados ao atravessar a rua, levei apenas alguns segundos para chegar até a porta do quarto e mais tempo que o normal para conseguir girar a maçaneta.
Me lembrava do último dia que o havia visto, o beijo em seu rosto, a notícia da melhora. Me lembrei também de quando o reencontrei, o desespero, o cheiro do quarto, o estado em que ele estava, sua aparência. Talvez agora, ao abrir aquela terrível porta, me deparasse com ele do mesmo jeito que encontrei, caminhando para a morte.
Era demais para mim, demais para segurar. As lágrimas surgiram da mesma forma que a água quando uma barragem se rompia: sem fim, fortes, incontroláveis, doloridas. Doía em mim a dor que ele poderia estar sentindo, doía a dor que eu poderia ter causado, a dor que eu sentia, o medo de perde-lo mais uma vez. Os sentimentos que eu carregava desde o primeiro dia, mas que ainda não havia tido coragem de externalizar agora se tornavam pesados demais.
Encostei na parede frente a porta e me deixei dissolver até o chão, dissolver como as minhas lágrimas, dissolver junto com tudo que eu achei saber e ser, com tudo que se mostravam máscaras e mentiras. As palavras de meu irmão, a culpa, o medo, a negação. Estava apavorada.
Dom e Giovanni chegaram ao corredor e foram ao meu encontro, Dom se abaixou e ficou em silêncio, ao meu lado. Giovanni, na minha frente, tentava me acalmar acariciando meus ombros e cabeça. Ninguém disse nada, meu irmão não me julgou, meu filho não me culpou, só me acolheram.
Depois de quase uma hora chorando, consegui me recompor minimamente. O médico, Rafael, também notou nossa presença e teve a sensibilidade de me dar um tempo antes de aparecer.
– Doutor. – Giovanni cumprimentou o médico.
– Boa tarde, vocês precisam de algo? – Rafael perguntou, ele tinha um olhar terno, parecia preocupado com nosso estado. Eu estava péssima, Dom visivelmente assustado e Giovanni também não estava nos seus melhores momentos.
– Nós viemos pelo . Soubemos que ele não está bem. – Explicou Giovanni.
– Eu estava viajando, não sabia. Por isso não aparecia antes, eu ... – Tentei me explicar e recebi um olhar compreensivo e doce como resposta por parte do médico.
– Bom, houve uma piora importante, não sabemos ainda do que se trata. Pode ser algum tipo de agravo da síndrome, nós não entendemos bem como ela funciona. Pode ser uma pneumonia, alguma falência sistêmica ou sepse. Ainda estamos investigando. – Rafael relatou.
– Se você puder ser mais claro, doutor. – Giovanni pediu.
– Não sabemos ainda do que se trata, pode ser algo simples ou não. É só isso que temos por enquanto. – Rafael parecia agora tão triste quanto eu.
– Nós podemos vê-lo? – Perguntei impaciente e ansiosa.
– Um de cada vez e por pouco tempo. O quadro é delicado, não podemos estressar muito o nosso amigo. – Orientou.
– Pode ir primeiro, . Eu fico aqui com Dom. – Meu irmão cedeu e eu aceitei.


🎵 Dê play na música aqui, se necessário coloque para repetir – Athlete – Wires 🎵



Talvez Rafael soubesse da minha falta de coragem para abrir a porta, ele mesmo resolveu fazer isso, praticamente me empurrando para dentro do quarto. não estava acordado, tinha fios presos ao corpo, mas não estava mais tão esquelético quanto antes, o quarto tinha um cheiro diferente, mas não era o mesmo do primeiro dia. Provavelmente as lágrimas já estivessem marcando o chão no lugar que estava parada, era difícil vê-lo naquela situação. Novamente.
– Oi. – Disse entre soluços e me aproximei do leito. – Me desculpe. Eu não podia ter deixado você. Eu sinto muito. – Talvez eu estivesse chorando mais num dia do que havia chorado a vida inteira, pensei.

Me sentei na cadeira de sempre e apoiei a testa no colchão. Não conseguia nem mesmo olha-lo ali, tão frágil, cheio de fios por seu corpo. Não era assim que eu o havia deixado, mas considerando que eu nem deveria ter ido, não podia reclamar. O que eu deveria ter feito? Dizer a Dom e a que não podia viajar? De qualquer forma, eu teria feito alguém sofrer. Todas as minhas escolhas davam em um beco sem saída, eu não conseguia mais tomar nenhuma decisão sem magoar alguém.
Ao voltar meus olhos para seu rosto, me assustei com um acordado e me encarando. Seu olhar era confuso e existia um quê de ressentimento, eu conseguia sentir.
– Eu sinto muito. – Continuei entre soluços. – Eu não devia ter ido ou pelo menos devia ter te avisado. Eu sinto muito. – respirava com dificuldade, seus pulmões chiavam tanto que era possível ouvi-los de onde eu estava.

Ele me observava sem piscar e talvez pela primeira vez, eu não pudesse entender o que seus olhos queriam me dizer. Era como se ele estivesse com dor, agonia, sofrendo, talvez sua piora fosse maior do que estavam prevendo. não mexia um músculo, estava imóvel, uma estátua com olhos bem vivos encarando minha alma.
– Eu não vou sair daqui. – Assegurei envolvendo suas mãos com as minhas. – Não vou nunca mais sair do seu lado, eu prometo. Não vou deixar você sozinho, nunca mais. – Prometi.

Giovanni bateu na porta e a abriu, disse que eu deveria deixar descansar e ele também gostaria vê-lo um pouco.
– Eu tenho que ir agora, mas eu volto amanhã, para ficar com você. – Prometi e piscou uma vez. – Descanse, fique bem. – Disse e beijei sua testa.

No último encontro, um beijo semelhante foi dado por motivos bem diferentes e gerou reações bem distintas. Desta vez, era como se ao mesmo tempo que eu lhe assegurava que estaria com ele, também me certificasse de que se algo pior acontecesse, teríamos nos despedido. Foi talvez o beijo mais demorado e dolorido que havia dado em toda vida.
Quando sai do quarto, novamente a tormenta de lágrimas surgiu e eu só queria desaparecer. Deixei meu irmão, Dom e o médico no corredor e tentei correr para longe de mim, longe dos meus pensamentos.
O jardim do hospital era um dos poucos espaços vazio àquela hora, a água esverdeada do lago refletia as árvores e o sol da tarde, alguns pássaros cantavam longe e era possível ouvir algumas vozes. Não era o melhor lugar para chorar, mas eu estava confusa e triste demais para me preocupar em ter dignidade. Estava com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos no rosto, sentada no banco mais distante do hospital e mais próximo da margem do lago, entremeio meus soluços pude ouvir alguém se aproximando. O médico. Com certeza Rafael estava ali para me repreender e dizer o quanto eu fui imprudente e relapsa em ter abandonado . Mas ele se aproximou, se sentou ao meu lado e ficou em silêncio por muito tempo, até que eu ficasse incomodada e resolvesse falar alguma coisa.
– Precisa de alguma coisa? – Perguntei ríspida.
– Você precisa de alguma coisa? – Repetiu e eu ri sem humor e voltei a encarar meus joelhos.
O médico continuou sentado em completo silêncio, apenas observando o lago e os patos dentro dele.
– O que está te machucando? – Doutor Rafael perguntou depois de uma eternidade de silêncio.
– Por que acha que estou machucada? – Perguntei sem olha-lo.
– Um grande médico me ensinou que bons médicos precisam saber reconhecer a dor, mesmo quando seu paciente não for capaz de faze-lo. – Explicou.
– Foi por minha causa, não é? piorou por minha causa? Porque eu o deixei. – Indaguei tentando intercalar os soluços com as frases.
– Às vezes nós não estamos preparados para certas mudanças. Às vezes achamos que tudo dura para sempre, sem mudança, no nosso controle, que nada mais influência. Uma visão no mínimo equivocada. – Falou o médico.
– O que? – Questionei confusa. – Por que está falando assim? É só dizer que foi minha culpa e pronto. Dizer que eu não deveria ter saído do lado dele, porque o precisava de mim. – Me virei para encara-lo.
– É mais fácil para você acreditar que ele piorou porque você não o visitou num fim de semana, do que aceitar que a morte ou vida de não estão ao seu controle? – O médico apontou e aquilo me cortou profundamente.
– Do que está falando? Aceitar a morte dele? Ele não morreu, nem vai morrer. – Afirmei com os olhos arregalados de medo e raiva. – Ele não vai morrer. Do que você está falando? O que está acontecendo? O que está escondendo de nós?
– Nada. Não há nada para esconder, a verdade está acessível aos que querem. – O médico me encarou, sua expressão era carregada de empatia e paciência. – Só estou tentando dizer que por mais que queira para si essa culpa, ela não te pertence. – Rafael explicou.
– Como não? – Aumentei o tom da voz e girei meu corpo para vê-lo melhor. – Ele estava melhorando e eu fui embora, ele piorou por isso. Eu não podia ter ido...mas eu não vou mais sair desse hospital, eu juro. – Disse nervosa enquanto tentava secar algumas lágrimas.
, não é uma pessoa tão frágil quanto pensa. Ele já passou por muita coisa, ele sobrevive a isso também. E você, pelo que eu vi, tem uma família, um filho, você não pode se culpar por ter uma vida. – Esse médico era mesmo uma pessoa estranha, pensei antes de desabar novamente, mas agora ele resolveu me dar um pouco de apoio, colocando uma das mãos nas minhas costas. – Além do mais, você precisa ver as coisas como elas realmente são...
– Eu não entendo. – Falei sem olha-lo, tentando evitar que ele me visse chorando. – Eu estou tão perdida, não posso escolher. Tenho meu filho, meu marido, mas eu não posso deixar o . Eu sempre faço tudo errado, se não tivesse vindo aqui aquele dia, não saberia dele e ele não me conheceria, isso não teria acontecido. Eu nunca devia ter voltado para essa cidade. – Eu falava e chorava alto, qualquer pessoa que estivesse a dois metros de nós poderia me ouvir. – Mas eu nunca saberia sobre Ted e Natalie...eu nunca deveria ter saído da cidade, eu conheceria o filho do Ted, talvez ele não morresse, eu poderia estar casada com agora, porque ele está solteiro. Eu não devia ter fugido, se eu tivesse ficado tudo seria tão diferente. – Lamentei encarando Rafael, que acompanhava tudo com paciência e empatia. – Mas eu não teria meu filho...só fiz escolhas ruins a minha vida toda e continuo fazendo. Por que eu sou assim? Magoo todos a minha volta, magoo meu filho e marido por ficar tanto tempo no hospital, magoo por abandona-lo sem razão, magoo meus pais por nunca ir vê-los, nunca ligar... Meu irmão, ele está aqui comigo, mas está magoado porque queria que nós nos aproximássemos e em vez disso nós brigamos, eu acho que tenho muita inveja dele e de como ele consegue ser uma boa pessoa, um bom filho e amigo e fazer tudo parecer tão fácil. Eu não sei fazer isso, não sei o que fazer...– Desabafei.

Todas aquelas coisas estavam se passando dentro de mim, algumas desde que cheguei na cidade, outras nas últimas horas. Eu não tinha amigos na cidade, não mais, pelo menos não o tipo de amigos que eu poderia desabafar assim, dizer das minhas inseguranças, dizer de tudo que eu sentia. E mesmo assim, disse tudo para alguém que eu vi apenas algumas vezes na vida, alguém que eu sequer conhecia direito. Rafael pareceu absorver tudo o que eu disse e pensava em algo para dizer, eu já me sentia melhor só por ter dito tudo.
– Sabe, eu sempre admirei as rosas, as flores de modo geral, mas principalmente as rosas. O perfume singelo, a beleza, a forma, acho que não tem ninguém no mundo que não goste. – Rafael comentou e eu comecei a observa-lo com curiosidade. – As rosas, assim como outras flores, são coisas bem curiosas. Nem sempre que desabrocham elas saem perfeitas, exuberantes e lindas como estamos acostumados a ver. Algumas vezes, elas saem defeituosas, o mesmo galho é capaz de gerar flores perfeitas numa floração e flores defeituosas na outra. E quando isso acontece, ninguém arranca a roseira, só fazem a poda do mesmo jeito que fazem quando ela produz uma flor perfeita. E então se espera até a próxima floração. – Rafael sorriu, me olhou nos olhos e continuou. – É simples. Todas as vezes a roseira tem a mesma oportunidade de desabrochar uma rosa perfeita ou não e ela segue tentando. Estação após estação.
– Eu não entendo de rosas, doutor. – Assumi confusa. – Nem entendi muito o que você quis dizer. – O médico riu.
– Todos os dias, todas as horas do dia você pode voltar atrás e tentar desabrochar uma rosa perfeita. Você tem a chance de recomeçar todos os dias enquanto estiver viva. – Rafael esclareceu.
– Mas eu sempre faço a coisa errada, não sei se ter uma chance todo dia mudaria isso. – Expliquei chateada.
– Se você já sabe o que não fazer, só falta aprender o que fazer. – O médico disse. – E sobre as plantas, você pode agradar as plantas com sol e com a chuva quase na mesma medida. Mas sol demais faz as plantas secarem e chuva demais as afoga. – Ele se levantou.
– Doutor, eu não entendi. Eu estou dando sol demais para alguém? Ou eu deveria intercalar sol e chuva com , sendo o sol a minha presença e a chuva a ausência? – Indaguei confusa e Rafael riu.
– Por que você só enxerga dois caminhos? Nem tudo é tão prático. – Ele disse.
– As plantas não vivem só com sol ou só com chuva. – Afirmei, parecia estar entendendo. – Quer dizer que eu tenho que criar uma escala?
– Acho que é melhor nós conversamos em outro dia, você está cansada. – Rafael riu. – Aliás, sobre mudanças: além das chances de mudar que temos todos os dias, as vezes a vida nos oferece uma chance especial de reescrever a nossa história. Essas chances não aparecem todo dia, .

Dizendo isso, o médico simplesmente deu as costas e foi para dentro do hospital. Ele era um homem estranho, mas mesmo assim, era como se tivessem tirado uma tonelada das minhas costas. Uma chance todos os dias, sol e chuva, plantas. Eu devia fazer o que? Fazer uma escala de visitas? Mudar quem eu era? Ignorar tudo e reescrever? Ou revisar o livro da minha vida até agora e tentar corrigir os erros?
Sequei os olhos pela quinta vez no dia. Nunca tinha sido alguém do tipo que fica chorando e se lamentando, não começaria agora. E se fosse para chorar, pelo menos seria pelo motivo certo.


6

Às vezes me perguntava de onde meu irmão tirava as coisas que pensava sobre mim, por muito tempo achei que fossem delírios de uma mente ciumenta e recalcada. Sempre pensei que devia me valorizar, me pôr em primeira opção, ninguém faria isso por mim se eu não fizesse primeiro, precisava reconhecer meu lugar no mundo. Quando Dom nasceu algo mudou em mim, bem no fundo. Aprendi que eu já não era suficiente como prioridade e tudo se voltou para ele. A vida ensina, o mundo ensina, meu filho e meu casamento me ensinaram muitas coisas sobre prioridades e amor.
Mas talvez tudo tenha sido superficial demais para fazer sentido, para me atravessar de verdade. Eu nunca havia repensado minha adolescência e juventude, sempre achei que tinha feito o melhor que podia, mas isso era apenas um jeito covarde de ignorar qualquer culpa ou erros que tivesse cometido. Quando se considera que não precisa rever, repensar suas ações, o caminho começa a se afunilar, como se não precisasse mudar.
Também nunca havia tentaodo racionalizar minha relação com meus irmãos, continuava enxergando Oliver como o irmão legal e Giovanni como o chato ranzinza que sempre aparecia para receber todas atenções e dar lições de moral. Mas eu não tinha mais dezessete anos, tinha mais de trinta, precisa que agir como tal.
Giovanni estava certo, eu era egoísta e sempre fazia tudo errado. Me lembro de quando nós ainda morávamos com nossos pais, depois de infernizar a família toda para que não fossemos viajar e eu pudesse ir a uma festa, tivemos a pior briga. Giovanni dizia que eu só me importava comigo mesma, que provavelmente não sabia amar ou ter empatia por alguém. Talvez ele estivesse certo, talvez eu só tivesse essa obsessão por por nunca ter podido tê-lo. Nunca soube amar alguém, por isso estava casada com um homem por quem não era apaixonada.
Mas eu tinha empatia, não era uma psicopata. Eu me importava com , Dom, com meus pais, Oliver e até com Gina e Giovanni. Me importava com eles, com o que pensavam. Não era o tipo megera que está casada com alguém enquanto pensa no amante, por mais que as vezes soasse assim. e eu tínhamos uma espécie de acordo silencioso, um trato nunca dito. Nós sabíamos que não éramos os grandes amores de nossas vidas, sabíamos que nosso relacionamento estava mais para uma amizade colorida do que uma paixão avassaladora.
Ele sabia disso, eu sabia disso, era um acordo mútuo onde não nos preocupávamos com esses detalhes, mas sim com o bem-estar da nossa família, do nosso filho. Éramos parceiros de vida, amigos e será que isso era tão ruim?
Mesmo assim não conseguia me sentir confortável com a situação, era como se eu estivesse traindo todas as vezes que ia ao hospital, mesmo que os sentimentos fossem absolutamente platônicos e internalizados, eles ainda existiam. Estava confusa, triste, preocupada, com medo, tudo de uma vez só. Desde a piora de , visita-lo no hospital havia se tornado uma interminável sessão de terapia.
Eu chegava pela manhã, me sentava o mais longe possível dele, longe do alcance dos seus olhos e pensava, o silêncio do quarto me ajudava a clarear a mente enquanto buscava uma saída para meus problemas. Depois de passar o dia todo mergulhada no meu caos, pegava Dom na escola e íamos para casa, pelo menos em partes eu tinha conseguido encontrar uma solução. e Dom não reclamavam mais da minha ausência e eu fingia estar feliz e presente quando estávamos juntos. Quando estava com eu não sentia necessidade de fingir, apenas me permitia ficar triste, encarando o nada e contemplando a face da minha existência vazia.
No primeiro dia em que fui vê-lo, após meu colapso emocional e a viagem, me encarou por todos os segundos em que estive no quarto, seu olhar me atravessava, me cortava. No segundo dia ele parecia ressentido, passou a maior parte do dia de olhos fechados ou encarando o teto, nas poucas vezes que voltou-se para mim, fui incapaz de decifrar o que queria dizer. No terceiro dia parecia refletir meu olhar triste, confuso e vazio. Ele me olhava, mas a maior parte do tempo parecia estar olhando para dentro de si mesmo, como se eu nem estivesse ali e assim ele se comportou até o final da semana.
Em nenhum daqueles dias eu tive coragem de olhar em seus olhos, estava envergonhada, triste, decepcionada. Não queria saber o que ele pensava ou como ele agiria se eu tentasse me aproximar.
– Eu estou indo. – Avisei, depois de verificar as horas. – Boa noite. – Disse sem encará-lo, enquanto pendurava a alça da minha bolsa no ombro.

Não o olhei, mas de soslaio pude ver que ele me mantinha os olhos presos em mim. Não fazia ideia do que era pior, saber o que ele estava pensando ou continuar com aquela incógnita.

Nos últimos dias, costumávamos sempre ter visitas para o jantar, ora meus pais, ora Oliver. E como o dia da viagem de Oliver se aproximava, a noite seria dele. Depois de pegar Dom na escola e fazer compras, teria que cozinhar para recepcionar meu irmão que não dava as caras desde antes do fatídico fim de semana.
O jantar fora completamente voltado para nossa viagem e nossa companhia famosa, Dom e já haviam contado todos os detalhes de cada um dos dias da viagem pelo menos três vezes. Oliver achava tudo muito engraçado, sua personalidade leve e fluída era capaz de tornar qualquer momento tedioso em uma festa animada, mas dessa vez eu não conseguia acompanhar, parecia não achar mais tanta graça assim de suas piadas ou ignorar sua distância para rir de algum comentário.

– Você está em qual mundo hoje? – Oliver perguntou, trazendo mais pratos para a cozinha depois do jantar.
– Em nenhum, só estou cansada. – Respondi sem encará-lo.
– Você está diferente. – Oliver reparou.
– Ah, você acha mesmo? – Questionei irônica.
– Já sei, aconteceu alguma coisa. Me conte. – Pediu se recostando na pia.
– Por que não me contou que pretendia viajar de novo? – Indaguei ressentida.
– Porque eu não tive tempo, também não era importante. – Oliver deu de ombros.
– É sério? – Questionei indignada. – Você simplesmente vai embora de novo e não achou que seria importante avisar a sua irmã?
, até alguns meses atrás nós só nos falávamos por comentários em fotos, por que eu precisava com tanta urgência de contar? – Oliver questionou confuso.
– Por que seu sobrinho está se acostumando a ter você na vida dele, Oliver. Por que eu estou...por que você não pode deixar seu individualismo de lado um pouquinho? – Perguntei derrotada.
– Individualismo? , que cena desnecessária...quer dizer, uau.– Oliver rolou os olhos entediado.
– Você não entende porque isso me magoa, não é? – Expirei todo ar que guardava, não acreditava no que estava prestes a dizer. – Giovanni estava certo. – Completei.
– Oi? Giovanni? Desde quando vocês se falam? – Oliver perguntou e riu confuso.
– Não importa, não mude de assunto. – O cortei séria. – Achei que fosse ficar aqui, fosse ficar conosco...
– É, mas eu nunca fiquei. Só voltei para me estabilizar, mas já estou pronto para partir. – Falou com a simplicidade de quem avisa que vai ao mercado.
– Eu precisei saber pelo Giovanni que você estava saindo do país. – Desabafei chateada.
– O Giovanni tem se saído um belo fofoqueiro, o que mais ele disse sobre mim?
– Nada. Fofoqueiro ou não, talvez ele esteja certo sobre tudo, tudo que sempre disse sobre nós dois. – Assumi voltando minha atenção para a louça na pia. – Talvez nós dois sejamos egoístas, péssimas pessoas, incapazes de amar.
– Por que você está fazendo tanto drama com isso? – Oliver arqueou uma sobrancelha. – Nós fizemos escolhas, . Eu, você e o Giovanni. Eu escolhi ser livre, viajar por aí, você escolheu se afastar e ser a tia rica que liga no natal e o Giovanni escolheu ficar e manter o legado da família na cidade, cuidar dos nossos pais. – Disse com simplicidade. – Também acho que no fundo ele tenha razão. Se eu pensasse como ele, também nos acharia muito egoístas por termos saído pelo mundo e deixado ele sozinho aqui.
– Você concorda e admite? – Perguntei chocada.
– Mas é a verdade. Eu não deixaria de fazer o que eu gosto por nada, mas fico feliz que alguém tenha ficado e que cuide dos nossos pais. Se eu sou egoísta por não querer me prender, por ser livre, então que seja. Eu sei dormir com isso, não me atrapalha em nada. – Confessou sorrindo.
– Como você consegue? – Indaguei, pasma.
, você nunca se importou muito com o que as outras pessoas pensavam, porque começar agora? Geralmente, com a idade o processo é o oposto. – Oliver brincou.
– Eu não quero ser assim, ser essa pessoa que não liga para ninguém, que não se importa com ninguém, que só vive para si. – Admiti.
– Você não é assim. Eu sou, um pouco. – Oliver brincou. – Não pode se culpar por ter feito o que queria fazer e Giovanni não pode te culpar por ele ter feito o que precisava fazer. Acho que vocês complicam demais.
– Ele não me culpou...mas eu tenho pensado, tenho repensado a vida, minhas escolhas. – Admiti.
– Então é ainda mais fácil. – Oliver brincou. – Deixa para lá, você fez o que pode. Segue o baile.
Oliver riu e deixou a cozinha.
Era isso? Simplesmente aceitar que se é um cretino? Não pensar nas consequências ou nas pessoas que sofreram com isso? Pela primeira vez em toda minha vida eu começava a entender o que Giovanni dizia e a pior parte era que ele tinha razão.

🍁


Os últimos meses tinham sido tão confusos, não compreendia o que estava acontecendo comigo, tudo que entendia e acreditava parecia se modificar, nada fazia mais sentido como antes. A pessoa que eu amava e reconhecia quando olhava no espelho já não era mais tão agradável, nem tão conhecida, parecia alguém diferente, alguém de quem eu não sabia ainda se gostava ou não.
Nos sábados eu não ia mais ao hospital, só se Dom e não estivessem em casa. Os sábados eram voltados para eles, uma meta que eu havia estabelecido comigo mesma para tentar equilibrar as coisas. Eu estava no quintal, tomando um pouco de sol, e Dom estavam no mercado e eu tentava manter minha mente em casa quando Giovanni resolveu fazer uma visita surpresa.
– Não nos falamos mais depois daquele dia, queria saber se você está bem? – Ele se explicou, sentando-se ao meu lado nas cadeiras do quintal.
– Na verdade, não. – Assumi, encolhendo os ombros.
– Eu não sabia que você era tão próxima do . – Giovanni comentou, inclinando a cabeça para me olhar melhor e eu o respondi com uma risada amarga. – O médico disse que suas visitas têm feito bem a ele, que ele melhorou. – Contou.
– É, a síndrome regrediu. – Me recostei na cadeira, encarando o céu. – Mas agora ele piorou e não sei se minha presença realmente tem sido interessante.
– Não foi sua culpa, ele teve uma dessas coisas que pessoas que ficam hospitalizadas muito tempo tem. – Giovanni tentou me acalentar. – Não olhe isso, olhe a melhora dele. Ele estava cada vez pior, então você começa a vê-lo e ele começa a ficar bom. – Meu irmão sorriu e tocou meu braço.
– Eu não sei, eu nem consigo encará-lo. – Remexi minha aliança e encarei o chão, tristonha. – Nem consigo olhar para ele.
– Por que? – Ele questionou franzindo o cenho.
– Não sei, acho que ele pode estar desapontado comigo. Decepcionado por eu não ter avisado, ter sumido. – Expliquei.
. – Meu irmão riu entredentes. – O não é uma criança frágil e que precisa de atenção o tempo todo. Ele é adulto, ele sabe que você tem a sua vida, sua família. Ele deve ter ficado preocupado com você, no máximo. – Ele piscou.
– Sei lá. – Dei de ombros.
– Por que você faz isso, visita ele? – Giovanni indagou arqueando uma sobrancelha.
– Não posso ser a boa samaritana? – Ri e o cutuquei.
– Pode, só fiquei curioso. Quer dizer, você tinha uma queda por ele antes, mas não sabia que ainda se lembrava. – Giovanni ajeitou a camisa e eu congelei.
– Eu nunca tive uma queda por ele. – Respondi na defensiva, engolindo em seco.
– Por favor, quem você acha que engana? – Ele soltou um riso nasalado. – Eu me lembro de você perguntando dele, aparecendo magicamente nos lugares que nós estávamos. Inventando desculpas para que eu chamasse ele para nossa casa, espionando nossas conversas pelo telefone.
– Que absurdo, isso é mentira. – Neguei depressa e senti o rosto esquentar.
, por favor. Não negue. – Giovanni sorriu e cruzou os braços atrás da nuca. – Se lembra quando fomos para a praia e ele sorriu para você, te cumprimentou? Você ficou congelada na areia, com os olhos arregalados. – Giovanni gargalhou.
– Para com isso, Giovanni. Não tem graça. – Pedi, tentando me manter séria e disfarçar o desespero.
– Claro que tem. – Falou voltando-se para mim e fazendo cosquinhas. – Você tinha aquelas paixões platônicas por ele. Todo mundo sabia, você não engana ninguém.
– Como assim todo mundo sabia? – Questionei chocada e com os olhos arregalados.
– Todo mundo sabia, ué. – Giovanni deu de ombros.
– Giovanni. – Chamei sua atenção, endireitei a coluna e arqueei uma sobrancelha, encorajando-o a continuar.
– Todo mundo sabia que você tinha uma queda pelo , eu sabia, Oliver, ... – O interrompi.
– O quê? – Perguntei e provavelmente estava mais branca que uma vela. – sabia? sabe? – Estava nervosa com a ideia de que não era tão desconhecida assim para ele.
– Claro, ele percebia, você nunca foi muito sutil. Às vezes ele implicava comigo, falando que seria meu cunhado. – Giovanni riu com a lembrança.
– Como assim? Me conta isso direito, Giovanni. – Funguei e Giovanni riu torto.
– Aí, você é tão previsível. – Ele riu alto. – Uma vez alguém perguntou se ele não tinha interesse em você, já que você nitidamente era fã número um dele. E aí ele começou a brincar com isso, que ele estava trabalhando para virar meu cunhado, implicava comigo, perguntando de você, se você estava em casa, se você também sairia com a gente. – Contou.
– E você nunca pensou em me contar? – Perguntei revoltada.
– Não, era brincadeira. E você não seria uma boa companhia para ele. – Giovanni riu e deu de ombros.
– Idiota. – Xinguei e ri. – Não acredito que ele sabia quem eu era...
– Você achava mesmo que ele não te conhecia? – Me encarou surpreso.
– Ele nunca falou comigo, nunca me notou. – Ri sem humor e sacudi a cabeça.
– Que mentira, é claro que ele notava. é tímido e você é você. Você sempre foi muito espalhafatosa, chamava atenção das pessoas, era popular. Ele sempre ficou na dele e depois acabou começando a namorar. – Giovanni explicou.
– É, eu me lembro disso. – Falei ressentida.
– Ele perguntou de você quando se mudou e depois que adoeceu. – Giovanni assumiu.
– Como é que é? – Perguntei inclinando-me para frente.
– Ele perguntou por onde você andava, o que tinha acontecido com você. Quando eu contei que você tinha se casado, ele disse que ainda não tinha desistido, hora ou outra ele ia ser meu cunhado. – Giovanni riu saudoso. – Foi a última vez que eu ouvi sua voz. Depois ele piorou e a vida aconteceu. Não conseguia visita-lo com a mesma frequência e nem queria vê-lo naquela situação, também. – Ele sorriu triste.
– Eu não sabia de nada disso, não fazia ideia. – Comentei tocando levemente seu braço. – Eu não devia ter saído da cidade, devia ter ficado aqui. Tudo seria diferente. – Suspirei e voltei a encarar o céu.
– Você não teria se casado com . – Giovanni assentiu.
– Não, não teria.

Eu não me lembrava da última vez que tinha conversado com meu irmão, acho até que nunca tinhamos tido um momento assim, conversando sinceramente sobre qualquer coisa. A de alguns meses atrás teria preferido morrer a ter essa conversa, mas agora algo havia mudado em mim, na forma com que eu entendia as ações do meu irmão. Ou eu estava maluca ou Giovanni era sensato, agradável e simpático?
Talvez fosse algo no cabelo preto milimetricamente arrumado e penteado para trás, talvez a camisa polo, cheirando a amaciante de roupas ou talvez as informações sobre , saber que ele me conhecia fazia sentido, explicava porque ele não se assustou muito com a minha chegada.
– Me responda uma coisa, com toda sinceridade do mundo. – Giovanni pediu, me distraindo dos meus pensamentos. – Você ainda gosta dele?
– O quê? Que pergunta ridícula. – Balancei a cabeça e desviei o olhar.
– É sério, . – Giovanni tocou o queixo. – Isso explica muita coisa. Você ainda gosta dele, não é? Por isso ficou tão abalada quando ele piorou. – Giovanni anunciou atônito.
– Que coisa patética. – Disse zangada. – Eu sou casada, não estou apaixonada por ninguém. Estou casada, Giovanni. Me respeite.
– Tudo bem, tudo bem. – Giovanni se rendeu, levantando as mãos. – Se você diz, eu acredito.

Nunca havia passado pela minha cabeça que alguém tivesse percebido qualquer sentimento platônico meu por . Eu não sabia se estava mais chocada por isso ou pela insinuação de Giovanni sobre eu ainda estar apaixonada. Era ridículo, eu não era apaixonada por , mesmo o amando isso era fato. Mas estar apaixonada por era diferente, era loucura, não podia acontecer, principalmente se eu considerasse a variável de sua saúde frágil.
Não consegui me desligar das revelações de Giovanni. sempre soube quem eu era, sempre soube de mim, se eu soubesse que ele me notava, que sabia quem eu era, tudo seria diferente. Talvez eu tivesse me declarado, talvez nunca deixasse a cidade, talvez estivesse por perto quando ele adoeceu, talvez ele nunca tivesse ficado noivo ou até mesmo adoecido. Pensar em todos os “se tivesse...” e “talvez fosse...” era tortura, tudo podia ter sido tão diferente. Era como se nós estivéssemos destinados a não ficarmos juntos, como se não fosse para ser. Por isso o destino havia se encarregado de fazer meu irmão nunca me contar sobre as brincadeiras, se encarregado de nunca me deixar criar coragem para me declarar, de eu ter saído da cidade e me casado com outra pessoa.
Talvez e não fosse para ser.

🍁


O resto do fim de semana levou anos para passar. Eu estava completamente ansiosa para ver , precisava falar com ele, precisava perguntar, contar que eu sabia sobre suas brincadeiras, que ele me conhecia. Ensaiei minhas falas o suficiente para que meu discurso se tornasse mecânico e prático. Seria a primeira vez que falaria com depois de tudo, meu estômago estava tão revirado que parecia a primeira vez que eu o veria.
Eu devia levar Dom para o colégio, depois iria para o hospital resolver o que tanto me perturbava.
Dom estava ansioso, inquieto, como se algo o estivesse incomodando, totalmente alheio e distante. Ele permaneceu toda a viagem até a escola em completo silêncio, com os olhos vidrados na rua, sem fones. Quando estacionei perto do portão do colégio, ele respirou fundo, voltou seu corpo para mim e começou a falar:

– Você pode me pegar mais tarde hoje? – Perguntou me olhando por baixo de suas sobrancelhas.
– Por que? O que tem hoje? – Quis saber desligando o carro e voltando minha atenção à Dom. Ele balbuciou algo quase inaudível. – O que tem?
– Testedeteatro. – Falou rápido demais para alguém normal entender.
– Dom? – Arqueei uma sobrancelha.
– Teste de teatro. – Ele disse sem me encarar.
– Teatro? Não sabia que você teria teste hoje. Por que não nos contou? – Eu estava confusa, tinha medo de que por consequência do meu afastamento minha relação com Dom estivesse ainda mais estremecida.
– Eu não sei...sei lá, achei que iam rir de mim. – Ele disse encarando o câmbio e coçando a cabeça.
– Rir? – Eu expirei. – Mas é claro que não. Seu tio Giovanni era do teatro também. – Contei saudosa e de repente me dei conta de que talvez Giovanni estivesse com um plano muito maléfico de conquistar aos poucos os corações de toda minha família. – A ideia foi dele, não é? Tio Vanni te convenceu? – Perguntei sorrindo.
– Não, ele só me apoiou, disse que eu devia tentar. – Dom se recostou no banco do carona e apertou a mochila contra o corpo.
– Você está animado? Eu queria tanto assistir. – Falei e puxei uma de suas bochechas e Dom tentou sem resultados se afastar das minhas mãos.
– Amém que não pode. Seria maior vergonha do mundo. – Disse ranzinza. – Eu tô nervoso. – Ele riu e enrubesceu.
– Não acredito que teremos um Leo DiCaprio na família. – Brinquei. – Você vai se sair bem, se por acaso o nervosismo atrapalhar, pode pedir dicas ao Giovanni. Ele vai adorar ministrar um curso intensivo de teatro só para você. – Eu sugeri.
– Não fala isso, mãe. Nem brincando. Quando eu contei que ia fazer o teste ele começou a recitar umas coisas sem sentido. Ajoelhou no meio do supermercado e fingiu ser o Romeo. – Dom contou rindo. – Eu paguei o maior mico e ele me manda mensagens toda hora, falando de teatro.
– Faça como eu e o resto da família. Bloqueie ele. – Sugeri rindo. – Mas aí pode ser que ele queira aparecer em casa para te ajudar nas peças. – Eu ponderei e Dom riu alto. – Alguém devia estudar o Giovanni. – Balancei a cabeça, rindo abafado.
– Mãe. – Dom chamou, ficando sério de repente. – Desculpe não ter contado sobre a ligação do hospital. – Ele parecia envergonhado, estava ainda mais vermelho. Encarei o volante, a rua, respirei fundo e inclinei a cabeça para observar melhor meu filho.
– Por que você fez aquilo? – Fiz a pergunta que dançava em minha mente desde o fatídico dia.
– Eu não sei, não queria que você fosse para o hospital. Queria que continuasse tudo como tinha sido na viagem. – Dom explicou com simplicidade e eu fiquei completamente sem argumentos.
– Você viu o ? Aquele dia? – Perguntei depois de alguns segundos.
– Só de longe. – Dom disse e encolheu os ombros.
está mal, acho que ninguém assim quer ficar sozinho. Eu não gostaria de ficar sozinha. – Eu suspirei. – E eu gosto muito dele, é muito importante. Mas você é meu filho, você sempre vai ser a pessoa mais importante da minha vida. Eu sei que sentiu minha falta, tô tentando consertar isso. – Tentei sorrir. – Mas não faça isso de novo, tá bem? Mentir, esconder, não são coisas que alguém digno faça. Por favor. – Dom assentiu com a cabeça e sorriu sem mostrar os dentes. – Boa sorte no teste. – Eu desejei.
– Obrigada, mãe. – Dom agradeceu, me abraçou e saiu do carro. – Mãe, você vai no hospital hoje? – Dom quis saber, antes de fechar a porta do carro e eu ponderei um pouco para responder.
– Vou sim. – Disse num suspiro.
– Que bom. – Dom sorriu. – Fala com que eu mandei um oi. – Disse sorrindo, fechou a porta e me deixou, quase que literalmente no chão.

Aquele era o sinal que eu precisava, a liberdade que eu precisava. Se para Dom estava bem que eu fosse para o hospital, que eu ficasse com , então era o que eu faria. Parecia que estava esperando mil anos por aquelas palavras.
Estava decidida a pelo menos dizer uma frase para , depois de tantos dias fugindo, agora que sabia de tudo, não poderia ficar em silêncio. Não que fosse conseguir, estava tão ansiosa que ficar calada não era uma das minhas opções.
Entrei no quarto e fui de pronto para o lado de seu leito, ele me encarou confuso. Ainda não conseguia olha-lo nos olhos, estava muito envergonhada e toda coragem e o discurso que tinha ensaiado haviam desaparecido sem deixar rastros. Me recostei na lateral da cama, encarando a parede branca, rezando para me lembrar de tudo que havia planejado dizer.

– Oi. – Suspirei. – Eu queria dizer algumas coisas. Tinha pensado em algumas coisas, mas agora não sei mais o que dizer... – Soltei o ar que segurava sem perceber. – Na verdade, talvez não devesse dizer nada. – Apertei o colchão com força. – Eu estou com ainda mais vergonha, eu não sei o que você pode estar pensando, mas eu queria me desculpar.

Nos últimos dias, eu chorava todas as vezes que pensava no que tinha acontecido, agora não seria diferente. Tentei disfarçar, secando rapidamente algumas lágrimas que insistiam em cair.

– Me perdoe por ter sumido sem dar explicações. Eu sei que não foi muito tempo, mas mesmo assim, não foi certo. Eu devia ter avisado. Imagino que você esteja decepcionado comigo, irritado ou talvez nem tenha percebido a minha ausência. De qualquer forma, eu estou envergonhada. – Sequei outra lágrima teimosa com as costas da mão. – Eu sinto muito.

🎵 Dê play na música: One Republic – (Say) All I Need 🎵


segurou minha mão num rompante e a apertou, me fazendo voltar o olhar para ele. Não me lembrava de vê-lo fazer aquilo antes, talvez ele estivesse realmente melhorando, o que me deixou imediatamente feliz. Ele tinha as sobrancelhas franzidas e me olhava fixamente, sua boca era uma linha tensa. Quando se certificou que tinha minha atenção, ele arqueou levemente as sobrancelhas e eu poderia jurar senti-lo acariciar minha mão com o polegar.
Eu funguei, tentando engolir o choro. me olhava tão fixamente que era quase impossível desviar.
Eu queria beija-lo.
Minha nossa, como eu queria. Estávamos próximos, como a muito tempo não estávamos e me olhava tão profundamente que era como se pudesse enxergar minha alma, meus sentimentos e tudo que eu carregava dentro de mim. Ele piscou uma vez, se ele realmente estivesse lendo minha mente, aquele devia ser o sinal verde para que eu o beijasse. Eu não conseguia pensar muito, só sentir. Eu sentia próximo a mim, sua mão sobre a minha e enfim sentia seu toque e era quente como eu imaginava. Sentia seu olhar me atravessando e quase me deixando nua, uma nudez diferente. Seu olhar me fazia despir das máscaras, dos sentimentos falsos, das incertezas, como se pela primeira vez eu pudesse ser livre, ser eu mesma. Ser só a , sem fingimentos.
Meu coração estava tão acelerado e minha respiração tão descompassada que tive que respirar pela boca. Eu estava vendo coisas ou também estava do mesmo jeito? Tão ansioso quanto eu?
Sua boca também estava entreaberta e de acordo com que eu me aproximava, podia sentir seu hálito quente. Eu estava vivendo um sonho, definitivamente. piscou mais uma vez e seu olhar passeou rapidamente dos meus olhos para minha boca, de acordo com que eu diminuía a distância entre nós, estreitava o olhar. Quando já não estávamos a mais de dez centímetros um do outro, ele sorriu de canto.
E eu o beijei.
Eu não sabia até aquele momento, mas o beijo de era tudo que eu precisava para viver. Quando nossos lábios se tocaram, algo explodiu dentro de mim e então uma sensação de paz preencheu todo e qualquer espaço que eu pudesse ter vazio. Como se a função da minha existência fosse unicamente estar ali, beijando . Tudo fazia sentido agora, tudo estava no lugar. Os lábios de eram mais macios do que eu imaginava, eram confortáveis, tinham gosto de casa, gosto de lar.
Era como se nosso beijo tivesse parado o tempo, nada mais importava, só estar ali com ele. Quando enfim separamos nossos lábios, ele ainda mantinha o mesmo contato visual intenso, eu conseguia com facilidade contar todos os tons de azul que formavam sua íris, podia perceber cada detalhe de seu rosto, sentir seu cheiro. Era como se meu propósito de vida fosse estar com ele, beija-lo, senti-lo.
Mas então, a realidade invadiu meu sonho, a imagem de ocupou minha mente e a culpa fez meu estômago revirar. Desviei o olhar e pisquei algumas vezes, atônita, tentando recobrar o controle sobre meu corpo, olhei nos olhos de mais uma vez e ele estava calmo, mas parecia curioso. Então me afastei num rompante, me voltei para ele mais uma vez, eu respirava com dificuldade e meu coração estava acelerado e então eu fugi.
Eu sempre imaginei como me sentiria depois de beijar . Desde a primeira vez que olhei para ele, imaginava como seria a sensação, como eu me sentiria, o que ele diria. E agora tinha acontecido, eu o havia beijado e estava em pane. Tantas coisas aconteceram desde que voltamos para a cidade, mas isso era inimaginável.
Eu precisava contar para alguém, precisava conversar sobre aquele beijo, sobre tudo. Ted e seu sorriso grande preencheram minha mente e eu percebi que estava perto, o cemitério e o hospital eram vizinhos, eu só precisaria cruzar a rua.

– Ted. – Cumprimentei, me sentando no chão para tentar recuperar o ritmo normal da minha respiração, após correr por entre os túmulos. – Eu fiz uma coisa.

Eu geralmente contava tudo para ele, desabafava, pedia conselhos. Ted era o tipo de pessoa que fingia não se importar, só gostar de diversão, mas no fundo era doce e gentil. Se Oliver e eu ainda estávamos vivos era graças aos seus conselhos.
– Se lembra do ? O bonito, amigo do Giovanni. – Comecei a contar. – Eu o beijei. Nossa, eu nem acredito. Falando alto parece ainda mais absurdo. – Eu ri. – Eu não sei o que fazer agora. Meu deus, eu beijei .

Uma voz ecoava em minha mente, até que demorou.

– Mas eu sou casada. – Me lembrei. – Eu acabei de trair meu marido. Meu Deus. – Percebi. – Eu faço tudo errado, não acredito. Eu não devia...

Mas você não gosta dele, a voz tornou a dizer.

– É, é verdade. Eu percebi que não sou apaixonada por ele, talvez nunca fui. – Confessei. – Mas isso não me dá motivos para trair meu marido. E pior ainda, eu não sei nem se ele gostou do beijo, eu posso ter o beijado a força...

Você acha mesmo que ele não gostou, é sério? A voz indagou.

– É, ele estava me olhando estranho. – Eu sorri. – Talvez, no fundo ele quisesse. Mas eu não sei, talvez. – Ri alto. – Mas o que eu faço? Quer dizer, eu sou casada. – Eu estava tão confusa.

Pense, pediu a voz.

– Eu acho que eu tenho algumas opções. Pense comigo, Ted. – Eu pedi. – Eu posso fingir que isso nunca aconteceu e continuar casada, posso largar tudo e esperar , posso ficar com os dois... – Um filme com imagens de e invadiu meus olhos. – Eu devia me separar, deixar livre, não é justo para ele ficar com alguém que não o ama de verdade. E talvez, se melhorar, podemos tentar conversar. Uma coisa não tem a ver com a outra, eu não posso mais ficar com de qualquer forma. – Conclui.

Já não era sem tempo, a voz concordou.

– Eu não sei como fazer isso, mas preciso fazer. – Disse passando as mãos pelo cabelo. – Eu vou me separar de . – Sorri e respirei fundo, encarei o mar por alguns segundos e me lembrei dos olhos de . – Eu não acredito que beijei o .

🍁


Durante o resto do dia, eu não conseguia pensar em outra coisa. A sensação do beijo, o gosto, o cheiro dele, a pele, a vontade no olhar. Eu nunca esqueceria daquilo, nunca havia percebido quão incompleta eu era até estarmos conectados. Eu mal podia esperar para repetir aquilo, precisava sentir aquela sensação de novo, era como respirar.
Mas o acordo feito entre meu cérebro e meu coração era de que eu só o beijaria de novo depois de me separar de . Devia esperar, devia preparar o terreno, preparar Dom. Me apertava o coração imaginar como ele reagiria, mas eu precisava escolher. Eu era mãe, mas tinha uma vida, não me resumia a ser mãe de Dom, eu era filha de alguém, esposa de alguém, uma mulher com vontades, sonhos, desejos.
O dia passou como um borrão, minha mente sempre vagava até o hospital, até aquele quarto, até onde ele estava. Será que ele estava acordado? Será que ele pensava em mim? Será que pensava sobre o beijo?
Eu me sentia uma adolescente de novo, ansiosa para encontrar o motivo dos meus sorrisos bobos e da minha falta de concentração. Tinha decidido levar Dom para a escola, depois passaria no hospital, precisava vê-lo, mesmo que estivesse prestes a vomitar de ansiedade e nervosismo.
– Você vai levar o Dom de novo? – perguntou, ao me perceber trocar o pijama.
– É, vou sim. – Respondi distraída e ele veio até mim com a gravata em mãos, pedindo silenciosamente por ajuda.
– Dom disse que você foi ver o ontem. – comentou, ele estava sentado na cama e olhava para cima, enquanto eu ajeitava o nó de sua gravata.
– Eu fui. – Falei olhando em seus olhos. – Por quê?
– Nada. Você voltou feliz...Aí. – reclamou quando eu apertei o nó além do necessário.
– Desculpe. – Eu estava na defensiva, por razões óbvias.
– Eu gostaria de conhece-lo. – Eu engoli em seco. Como eu apresentaria a o homem por quem eu estava apaixonada?
– Conhecer o ? Por quê? – Perguntei nervosa.
– Porque é com ele que você passa a metade dos dias, porque ele é seu amigo, porque eu estou curioso. O que mais eu posso listar? – ironizou. – Por que? Não quer que eu vá ao hospital?
– Não, claro que não. – Neguei rápido. – Você pode ir. Vá a hora que quiser.
– Que bom. – riu. – Por alguns segundos comecei a me preocupar. Talvez o hospital fosse só uma desculpa para você ir para outro lugar. Sei lá. – apertou minha bochecha e depositou um beijo rápido em minha testa.

🍁


Eu tinha que resolver aquilo, não fazia ideia de como, mas precisava resolver.
Depois de deixar Dom no colégio e visitar Ted, era chegada a hora de vê-lo. Tinha impressão de que poderia vomitar a qualquer momento, estava tão nervosa, eu conseguia sentir meu sangue percorrendo cada centímetro de minhas veias, sentia meu coração acelerado, as mãos suadas, a respiração descompassada. Era oficial, eu estava mesmo apaixonada de novo por .
Abri a porta num rompante, não tinha a sutileza como hábito quando estava tão alegre. se exercitava, uma mulher de cabelos ruivos e rosto quadrado estava com ele. Ao perceber minha chegada, ela sorriu simpática.
– Oi! – Ela cumprimentou e eu sorri educada. – Acho que estávamos falando de você.
– Falando? – Eu indaguei surpresa.
– É, eu quis saber a razão dele estar de bom humor hoje e ele deixou escapar que era por causa de alguém especial. Suponho que seja você. – Ela contou. estava tão vermelho quanto um tomate maduro e tinha fechado os olhos.
– Quer dizer que você fica falando de mim por aí? – Brinquei provocando , que abriu os olhos, bufou, revirou os olhos e olhou para o outro lado. – Eu me chamo . – Estendi a mão para cumprimentá – la.
– Joy. – Ela apertou minha mão e sorriu. – Eu sou a terapeuta ocupacional do .
– Claro. – Concordei. – O doutor Rafael disse que viria.
– Quem? – Joy questionou confusa, enquanto flexionava o joelho esquerdo de .
– Rafael, o sobrenome eu esqueci. Ele é o médico do , pelo menos é o que eu mais vejo aqui. – Expliquei.
– Eu não conheço nenhum médico com esse nome aqui. – Joy franziu o cenho e pareceu pensar por alguns instantes. – Devo conhece-lo pelo sobrenome, então. – Sorriu e deu de ombros.
– E como nós estamos aqui? – Eu quis saber, enquanto tocava o ombro de , para cumprimenta-lo. voltou rapidamente seu olhar para mim e eu sorri.
– Estamos indo bem. Já estamos juntos há algum tempo, mas com a melhora do quadro, resolvemos intensificar a reabilitação. – Joy explicou. – Tem sido bom, estou avaliando a cada quinze dias e os resultados tem sido cada vez melhores.
– É estranho nós não termos nos conhecido ainda. – Comentei.
– A vida é cheia de encontros e desencontros. – Joy sorriu.

Joy repetiu mais algumas séries de exercícios, eu nunca havia acompanhado uma de suas sessões, não fazia ideia de como estava progredindo.
– Mais um pouco, mais um pouco. – Joy pediu, enquanto incentivava a puxar uma tira elástica com mais força. Ele parecia extremamente cansado, suava um pouco e mordia o lábio, tencionando a mandíbula. – Ele tem que recuperar a força muscular, mas estamos fazendo aos poucos para não fadigar a musculatura. tinha um ótimo condicionamento físico antes de ficar doente, isso tem nos ajudado. – Joy explicou.
– Ah. – Balancei a cabeça, concordando mesmo sem compreender uma palavra e Joy riu.
– Eu vou traduzir. – A terapeuta se voltou para mim e sorriu, debochando. – Ele era bem atlético antes, isso é bom. E agora estamos indo devagar, a pior fase já passou. A fonoaudiologia disse a mesma coisa, talvez em breve não precise de mais nenhum de nós.
– Eu espero que sim. – Sorri. – Nada pessoal.
– Por hoje é suficiente. Descanse e tente repetir aqueles outros exercícios que eu te ensinei, okay? – Joy pediu para ele. – Foi um prazer, . – Acenei e ela saiu do quarto.
– Você falou com ela do mesmo jeito que fala comigo ou está se comunicando por aí com outras pessoas pelas minhas costas? – Perguntei fingindo estar indignada, sorriu e revirou os olhos.
– Eu devo entender isso como, exatamente? – O provoquei.

segurou uma de minhas mãos e a apertou levemente. Era a primeira vez que eu o via sentado, sozinho e ele parecia tão bem-disposto, feliz. Algumas mudanças em seu estado eram nítidas, não estava mais tão pálido, tinha o rosto mais cheio, havia engordado um pouco, os cabelos estavam maiores, os olhos mais vivos. Ele agora sorria para mim, sorrisos mais tímidos e fechados, mas ainda eram sorrisos dele. Ele conseguia se sentar sozinho e tinha alguma coordenação em suas mãos e braços, o que o permitia me tocar com alguma limitação.
Eu estava presa em meus pensamentos, em minhas análises sobre sua melhora quando percebi ser sutilmente puxada para mais perto. me encarava com os olhos em fenda e um sorriso de canto. Aquilo não significa o que eu achava que significava, não é? O que raios aquele homem queria? O que era aquele olhar?

– O que você quer? – Perguntei ansiosa e inclinou a cabeça e sorriu piscando um olho.
– Você vai ter que ser mais claro. Tente uma mímica. – Eu provoquei e ele franziu o rosto numa careta.
– Então quer dizer que você fica falando de mim por aí? – Quis saber. sorriu e piscou com um olho, aquilo significava um talvez ou nem tanto.
– Sua terapeuta te entregou. Você não consegue esconder muita coisa de mim. – Eu ri e me sentei em sua cama. me olhou e balançou a cabeça negativamente, devagar.

E eu sorri, talvez o maior sorriso que já havia dado na vida.

🍁


Eu estava novamente frente à casa branca de porta esverdeada. Da calçada, era possível ver o mar, alguns prédios do centro e um pequeno estádio de futebol. Paradise era uma cidade grande, mas seu Sul parecia ter parado no tempo. O maior prédio que tínhamos devia ter uns cinco andares, mas quanto mais ao norte você fosse, encontraria prédios cada vez mais altos. Pareciam duas cidades dentro de uma só, uma parte modernizada, agitada e populosa, outra parte calma, bucólica, praiana e tranquila.
A casa do senhor e senhora ficava em uma ladeira um pouco íngreme, com duas palmeiras em frente, grama bem cortada, flores vermelhas no jardim e cadeiras de balanço na varanda. Me lembrava bem das centenas de vezes que ficava ali, observando o mar e pensando na vida, sofrendo por algum dilema adolescente ou imaginando minha vida ao lado de .
Às vezes era como se tudo aquilo tivesse acontecido há milênios. Três vidas diferentes, a da juventude, de New York e a de hoje. Tudo ainda era tão confuso, eu não era mais a mesma pessoa que era quando deixei a cidade, nem a pessoa que voltou, era alguém diferente, estranha. O maior sinal daquela mudança era estar indo por vontade própria até a casa da minha família.
Já faziam cerca de dez minutos que estava parada, ainda dentro do carro, pensando se deveria mesmo entrar ou não. Não sabia o que estava fazendo ali, não poderia contar aos meus pais sobre meus planos, nem pretendia contar a Oliver sobre.
– Vai ficar aí o dia todo ou vai entrar? – Meu pai me surpreendeu, batendo no vidro de repente.
– Oi, pai. – Cumprimentei. Não teria escolha, depois de ser vista teria que socializar com aquela espécie exótica. – Como o senhor está?
– Normal. – Ele respondeu, se sentando nas cadeiras da varanda. – Sua mãe saiu, eu estou preso do lado de fora. – Contou e eu ri.
– Não tem mais nenhuma chave reserva?
– Não, o Oliver perdeu, vive com a cabeça em outro mundo. – Meu pai contou ranzinza.
– Ele devia fazer outra cópia. Oliver não pode fazer isso, tem que ser mais responsável. – Falei franzindo a boca e balançando a cabeça.
– Eu disse isso. – Meu pai concordou e me sentei ao seu lado, olhando o mar e percebendo o quanto eu soava como Giovanni.
– Como está o Dom?
– Está bem, fez um teste de teatro essa semana. – Disse.
– Ele não vai parar de crescer, vai ficar do tamanho do pai. Eu encontrei com ele no mercado, no fim de semana. – Contou. – Um baita homem. Mas ele não parece ninguém da família.
– É, eu também acho. Disseram que ele se parece com Oliver, mas eu não acho. – Falei e meu pai concordou com um aceno. – Te contaram que nós encontramos aquele piloto de Fórmula Um? Naquela viagem no aniversário do . – Eu não sabia porque estava contando aquilo, só que queria contar.
– Não, ninguém me fala nada. Eu nem sabia que viajaram. – Ele reclamou.
– Pai...foi só um fim de semana. Fomos para um chalé no aniversário do . – Expliquei.
– Quem vocês viram? – O pai perguntou mal-humorado.
– Tony Render, o piloto de Fórmula Um. Ele estava lá com a esposa e o filho. Ele é bem simpático. – Contei.
– Ele? – Meu pai arqueou as sobrancelhas, estava surpreso, porém não admitira e fingiria desdém.
– É, veja como são as coisas. – Eu ri. – e Dom ficaram no pé dele o fim de semana inteiro. Tiraram milhões de fotos. Inclusive, tem o telefone dele agora.
– Ele vai correr esse fim de semana, avise para dizer que eu mandei um oi. – Ele deixou escapar. – Eu vi o tio dele correr, era bom, ganhava algumas, mas pulava de escuderia para escuderia. Sempre interessado nisso. – Meu pai esfregou o dedo indicador e o polegar, gesto que significava dinheiro em sua linguagem própria. – Mas o Tony, esse sim é um piloto de verdade. Ele não tem medo, ele entra com o carro em qualquer espaço, só enxerga a linha de chegada. Pode ser que ainda se mate numa pista, mas é bom piloto. – Ele expôs.
– Que horror, pai. – Eu o repreendi de pronto e dei três toques na madeira da cadeira. – Não fale assim.
– Mas é a verdade. Aposto com você que ele sabe disso. – Meu pai exalou. – Quando se dá o sangue por alguma coisa, tem que estar preparado para perde-lo.
– Para, o Tony tem família. Não é bom falar isso, atrai coisas ruins. – Pedi.
– O que atraí coisas ruins é se enfiar com um carro entre dois carros. – Meu pai resmungou. – E o seu restaurante? – Ele quis saber, me surpreendendo.
– Restaurante? – Perguntei tonta pela mudança brusca de assunto.
– Você disse que ia abrir. Quando vai começar? – Meu pai se voltou para mim e passou a me encarar. – Você tem que ser independente, não é bom depender dos outros.
– Por que está dizendo isso? – Perguntei confusa.
– Nada, só não é bom. – Ele disse e deu de ombros.
– Você está mais estranho que o normal hoje, pai. – Eu ri baixo.
– Você que está. – Meu pai acusou. – Tudo bem em casa?
– Você acha que eu vim aqui porque estou com algum problema em casa? – Exalei o ar, soltando um riso nasalado sem humor.
– Por que mais você viria aqui? Você não é como o Oliver, que vem sempre que precisa de dinheiro. Nem como o Giovanni, que vem para ajudar. Você vem quando não quer estar em outro lugar, quando quer paz. Sempre foi assim. – Meu pai afirmou.
– Eu? Até parece. – Revirei os olhos e balancei a cabeça negativamente.
– Quando você tinha uns dez anos, no natal, o presente de vocês foi um cachorrinho. Cada um teve um cachorrinho. Giovanni não podia, tinha saúde frágil, ganhou um peixe. – Meu pai contava, saudoso.
– África e Rosquinha. Os nomes eram África e Rosquinha. – Contei rindo com a lembrança.
– O seu irmão saía por aí com o cachorro, todo lugar que ele ia o cachorrinho ia também. Já você, ficava calada. Até que um dia, chegou aqui com um gato cinza. Disse que tinha trocado, que o cachorrinho era agitado demais para brincar de escola, precisava ser um gato. – Meu pai riu alto. – Chamou ele de Salem. Você tinha dez anos, resolveu tudo sozinha. Não precisou de ajuda, não pediu. Naquela idade, Oliver ainda precisava de ajuda para amarrar os sapatos.
– Oliver sempre foi meio folgado. – Revelei. – Dois dias depois, o dono da loja de animais quis desfazer a troca, disse que o cachorrinho era muito bagunceiro. – Me lembrei.
– É, ele acabou ficando com Giovanni. Ele ainda está lá, sabia? – Meu pai contou.
– É sério? – Perguntei chocada. – Quantos anos ele tem? Ele devia entrar para o livro dos recordes.
– Seu irmão deve estar cuidando disso. – Meu pai riu, depois respirou fundo, pareceu pensar um pouco. – Você é assim, quando a gente menos espera, você aparece com algo pronto. Você não falava quando tinha um problema, ninguém nunca sabia. Mas ficava aqui, sentada nessa cadeira. Ficava em silêncio e você não fica em silêncio quase nunca. – Ele riu e tocou meu joelho.
– Então você voltou na história dos cachorrinhos apenas para me chamar de faladeira, pai? – Brinquei.
– Falei porque eu quis falar, sua chata.
– Eu acho que continuo assim. – Respirei fundo depois de uma longa risada. – Eu devia ter ficado aqui, não devia ter ido embora. Devia ter sido mais presente também, eu me arrependo. – Confessei.
– A gente faz muita besteira quando é jovem. – Meu pai tentou me consolar. – Mas você casou, se formou, teve um filho, agora voltou para cá... – Papai pareceu ponderar. – Por que se arrepende? Não está feliz? – Ele me encarou e eu exalei pesadamente.
– A vida é complicada.
– É, ela é. – Ele disse e deu duas leves batidinhas em meu joelho.

Meu pai e eu nunca tínhamos conversas longas. Ele sempre fora mais seco, austero, duro, mas tinha sua forma de amar. Suas gentilezas eram vistas no dia a dia, quando ele nos acordava todos os dias de manhã para irmos para o colégio, quando nos levava e buscava de todos os lugares, quando insistia em trabalhar, mesmo doente porque nós precisávamos de roupas ou do que quer que fosse. Era um pai presente, não do tipo piadista ou carente de atenção, era do tipo firme, severo e que no final das contas, não importava para que fosse, mas você poderia contar com ele, ele estaria lá para qualquer coisa. Nós sabíamos, eu sabia, que sempre teria meu pai, que caso tudo desse errado, eu poderia chama-lo e ele viria, para salvar o mundo, me resgatar. Confiava nele.
Sentada ali, dividindo aquela varanda tão familiar, só conseguia pensar em como eu havia sido tola. A vida passa tão rápido, tudo é tão fluído. Ted nunca poderia ter um momento assim com seu filho e nunca mais teria com seu pai. Eu ainda podia, podia me sentar com meu pai, podia me sentar com meu filho, falar de banalidades, pedir colo.
– Você devia jantar lá em casa essa semana. – Eu disse num rompante. – Mas só se não for falar mal da minha comida. – Brinquei e ele riu.
– Mas para isso você vai ter que cozinhar bem. – Ele falou. – Será que você sabe fazer um Ratatouille que preste? – Meu pai provocou.
– Eu faço simplesmente o melhor do mundo. – Falei jogando o cabelo. – Mas pensando bem, o senhor devia cozinhar. Um jantar francês, o que acha? – Propus.
– Eu não vou cozinhar para você não. – Meu pai cruzou os braços.
– Uma pena, eu tenho uma garrafa de vinho que ganhamos de presente de despedida quando saímos de New York... adoraria abri-la. – Eu pisquei.
– Mas que diabos, com quem aprendeu a fazer isso? – Ele brincou.
– Um homem não tem preço, a não ser que seja um francês, esse você pode comprar com uma bela garrafa de vinho. – Repeti a frase que havia escutado durante toda minha infância.

Meu pai levantou o dedo indicador, balançou suavemente em minha direção e voltou seus olhos para o mar. Eu estava em casa, eu estava feliz.

🍁



Nunca gostei de hospitais, o cheiro incomodava, as pessoas de branco sempre me assustaram. Pensar em hospital era como pensar em morte e eu não gostava nem um pouco disso. Me lembrava da época em que vivíamos indo e voltando do hospital, nossa avó estava com câncer em estágio terminal. Toda semana íamos nos despedir, minha mãe quase não dormia em casa e meu pai não sabia bem explicar o que estava acontecendo.
Me lembro de uma tarde chuvosa, era páscoa, não tínhamos recebido chocolates nem tivemos um almoço satisfatório. Então eu pensei, pensei que se minha avó morresse tudo seria mais fácil. Eu devia ter uns seis anos, só queria minha mãe em casa, não ter mais que ir ao hospital e queria que minha avó voltasse a fazer biscoitos para mim. Na mesma tarde minha avó faleceu, fiquei tão aterrorizada, contei ao meu pai que era minha culpa, que eu havia pedido isso. Não quis ir ao funeral, estava envergonhada e com medo, pensando que todos brigariam comigo por ter matado a vovó.
Meu pai me pegou no colo, sentou ao meu lado na igreja e no final do dia olhou nos meus olhos e disse que tudo bem eu ter desejado isso. Que as vezes, quando se quer muito uma coisa, só pensamos no que atrapalha o caminho. Disse que minha avó sabia que eu a amava e que ela estava feliz em devolver minha mãe para nós.
Essa lembrança frequentemente passeava em minha mente, talvez por causa da minha rotina no hospital, talvez porque eu tinha a mesma sensação sobre . Eu queria tanto resolver tudo, mas não sabia como, torcia para que tudo magicamente desaparecesse e eu pudesse enfim ficar com , pudesse ter Dom e comigo. Não queria que morresse, obviamente. Mas não queria ter que lidar com ele.
Viver daquele jeito estava cada vez mais angustiante. Eu pensava em todo o tempo em que estava com e pensava em em todos segundos que estava com . Enlouqueceria em breve. Precisava resolver aquilo, me separar, deixar livre e ficar livre, mas não sabia como fazê-lo. Não seria uma conversa fácil, não era um namoro de alguns meses, era um casamento de mais de dez anos. Pensar no tempo me fazia repensar minha escolha, será que era realmente a coisa certa a se fazer? Não estava sendo impulsiva?
Naquela tarde, surpreendentemente não estava em seu quarto, tinha ido ao jardim com alguém, segundo uma enfermeira. Eu estava ansiosamente preocupada para descobrir quem poderia ser o visitante misterioso.
Perto do lago, sentado em uma cadeira de rodas estavam , o som brilhava em seus cabelos e pele, ele nunca esteve tão lindo. Ao seu lado, em pé, estava Matt Shay. Matt ria alto enquanto arremessava algumas pedras no lago.
– Então esse é o sequestrador? – Perguntei os surpreendendo e Matt voltou-se para mim, sorrindo atônito, apenas me lançou um olhar curioso.
! – Matt cumprimentou com um abraço, animado. – Que bom te ver.
– É, bom te ver. – Assenti e toquei o ombro de , cumprimentando-o.
– Eu fiquei tão feliz em ver que ele está bem, que melhorou. Fiz até deixarem ele vir dar um passeio. – Contou animado e piscou uma vez.
– É uma boa ideia. Eu ainda não tinha pensado nisso. – Voltei meu olhar para . – Gostando do sol? – Perguntei e ele piscou uma vez.
– Não vai demorar muito até ele vir aqui sozinho. – Matt falou. – Até voltar a sair por aí, normalmente.
– Que os céus te ouçam. – Eu sorri e assentiu devagar com a cabeça.
– Mas e vocês, como estão? Ele não quis me falar muito, sabe como ele é. – Matt se sentou num banco e cruzou as pernas. – adora esconder o jogo.
– O que você quer saber? – Questionei confusa e me sentei ao seu lado, de frente para que nos observava atentamente.
– Sabe, vocês dois... – Matt apontou para mim e , depois sorriu tímido. – Eu fico curioso, ninguém me conta nada. Vocês estão...você sabe, juntos? – Eu engoli seco e engasguei, jogou a cabeça para trás e sorriu.
– Eu meio que tenho um marido, eu...eu sou casada. Eu... – Tentei soar firme. – Nós...eu...
– Ah... – Matt abriu a boca, parecia pensar em dizer algo, mas balançou a cabeça devagar, em negação e piscou duas vezes. – Entendi. Maneiro. Casada. Legal. Acho que vou pegar um café. Quer um café? Vou trazer um café para você. – Matt se esquivou, envergonhado e se levantou, indo praticamente correndo até a lanchonete do hospital.
– Pois é. – Balancei a cabeça e encarei o lago. – Que torta de climão.

olhava fixamente para o lago, ele parecia mais calado que o habitual. Não que ele falasse, não ainda, mas pela convivência, seus gestos, trejeitos, expressões, mantínhamos sempre muitas conversas, ele era sempre tão expressivo e provocativo. Mas dessa vez estava sério, contemplativo, parecia um pouco incomodado.

– Está pensando em que? – Quis saber e ele voltou seu olhar rapidamente para mim e depois continuou a encarar o lago. – Tinha tempo que você não via isso, não é? Que não sentia o vento assim. – piscou uma vez.
– Você já pode escrever uma carta para o papai Noel, mas dessa vez, agradecendo o presente de natal. – Brinquei e ele revirou os olhos. – Qual é? Você devia estar mais animado. – Dei-lhe um leve empurrão no ombro. – Está melhorando, as coisas vão ficar bem. – se inclinou levemente em minha direção, tinha no rosto um olhar que denunciava sua incerteza. – Vai tudo ficar bem. Confie. – Eu sorri, balancei a cabeça e toquei sua mão. – Em breve você não vai precisar mais das minhas visitas.

piscou duas vezes e balançou a cabeça, negativamente, depois abriu a boca. Meu coração deu um salto, cheio de expectativa e então Matt voltou.

– Você toma café com açúcar? Porque só tinha desse tipo. – Matt anunciou, fechou a boca e voltou a encarar o lago e eu agradeci aos céus por meu autocontrole. Em outros tempos, Matt precisaria de um médico depois de interromper uma chance daquelas com .

Matt Shay era um bom amigo, gentil e sem dúvidas animava . Fazia com que ele se lembrasse dos velhos tempos, isso era bom. Talvez fosse a motivação que ele precisava para continuar firme no tratamento e quem sabe se recuperar ainda mais.
A melhora de era nítida, eu não cabia em mim de felicidade e orgulho. A possibilidade de morte parecia estar cada vez mais distante, ele estava seguro, estava melhor. Tudo ficaria bem.

– Ele chamou os bombeiros e a polícia, tudo por causa de um banheiro químico que estava na janela dele. Nada por causa do barulho, tudo pelo banheiro. – Matt terminou de contar e eu ri alto de sua história.
– Então é isso que vocês fazem na polícia de Paradise? Sempre achei que fosse mais perigoso, sabe? Mais adrenalina. – Brinquei, fingindo desdém.
– Ah, isso são só algumas coisas engraçadas. Mas o departamento de polícia de Paradise é o melhor do mundo. Sabia que mais de sessenta por cento dos polícias de Paradise são negros? Incluindo detetives, capitães, sargentos e comissários? – Matt revelou animado.
– Isso é por causa do prefeito? Kambami? – Perguntei.
– Também. – Matt assentiu. – Começou com ele, Kambami abriu as portas. Eu vou trabalhar com a filha dele, detetive Michaela Bloom. Ela coloca medo em qualquer um, esteve em combate e agora é detetive da divisão de crimes especiais, na inteligência. – Matt contou.
– Achei que você odiasse politicagem. – O provoquei. – Daqui a pouco teremos um Matt político.
– Que nada. – Ele riu. – Eu estou indo para a divisão de inteligência. A região das docas e do centro comercial de Paradise está perigosa demais. Quero voltar a morar nessa parte da cidade, mais calma, a praia é limpa. – Explicou.
– Você faz bem, eu demorei tanto para voltar. Acho que nunca mais saio daqui. – Confessei e Matt sorriu, inclinou a cabeça, estreitou o olhar e sorriu de canto.
– Que bom, preciso de alguém que saiba cozinhar bem na minha vida. – Matt falou.
– Nem comece. – Empurrei Matt levemente e me levantei. – Preciso ir, nem vi a hora passar.
– É, verdade. Acho que já está na hora de levar o bebê para dentro. – Matt zombou e revirou os olhos. – Deixa comigo. – Levantou-se e assumiu a direção da cadeira de .
– Você, se cuide. Boa noite, volto amanhã. – Me despedi, deixando um beijo na bochecha de . – Se cuide, Matt. Me ligue, vamos marcar alguma coisa. – Abracei-o e os deixei ir.

Eu sentia falta desse tipo de tarde, apenas conversando sobre a vida, trocando experiências e colocando o papo em dia. Isso era só uma das coisas que havia passado a valorizar nos últimos tempos.
. – Doutor Rafael me chamou de repente.
– Doutor. – Cumprimentei com um aperto de mão.
– Como você está? – Rafael me olhava nos olhos, parecia genuinamente interessado.
– Bem, as coisas estão fluindo. Não totalmente como eu gostaria, mas estão. – Sorri fraco.
– Tudo tem seu tempo, as vezes você pode não entender na hora, mas as engrenagens da vida não falham. – Assenti enquanto me perguntava por que ele tinha que ser sempre tão excêntrico. – A beleza da vida é o que nos guia nela, o segredo é escolher bem a bússola. – Rafael continuou.
– Como eu faço isso? – Eu ri fraco. – Porque uma bússola agora seria providencial.
– Você pode escolher se quer o medo, o amor, a razão, o poder ou as outras várias possibilidades. São escolhas que só você pode fazer. – Me perguntei se acaso ele havia visto o beijo em , meu coração parou quando considerei essa possibilidade.
– Mas você está falando de que? Quer dizer, por acaso você viu algo? – Perguntei tentando ser sutil e falhando terrivelmente.
– Tem coisas na vida que não é preciso ver, dá para apenas sentir. – Ele sorriu e eu tinha certeza de que ele sabia.
– Eu estou tentando resolver. Eu cometi um erro, um erro pequeno diante de todo o resto, mas eu estou resolvendo. – Tentei explicar.
– Certas coisas não precisam de conserto, só precisam de amor. – Rafael parou frente à entrada para o ambulatório e passou um pouco de álcool nas mãos. – Eu não gosto de me meter, nem de palpitar, mas as vezes acho que você precisa de uma luz para enxergar as coisas óbvias. – Ele sorriu e eu o encarei pasma. – Já faz tanto tempo...talvez seja uma boa escolha se deixar guiar pela bússola do amor. Ela cura tudo, ela vai te ajudar, só confie. – Rafael piscou e eu tive certeza de que ele não era alguém normal. – Até mais, . – Rafael acenou.
– Doutor. – Chamei. – Eu conheci a terapeuta do , Joy. Mas ela pareceu não te conhecer.
– Joy me conhece, mas de outra maneira. Se você perguntar para qualquer um nesse hospital, todos vão me chamar por nomes diferentes. – Rafael riu. – Você gostou dela?
– Da terapeuta? – Indaguei confusa e ele assentiu. – É, ela parece ser boa. – Dei de ombros.
– Joy é uma boa moça, ela vai te ajudar muito ainda. – Rafael piscou. – Caso você ainda precise, é claro.
– Me ajudar? No que? – Eu quis saber.
– Libertação. – Rafael sorriu e desapareceu no corredor.

Cada vez que eu o encontrava tinha mais certeza, doutor Rafael não era desse planeta, quiçá deste universo. Eu precisaria de Joy para que? Acaso sofreria algum acidente? Talvez ele se referisse a , ela era terapeuta dele, talvez ela o ajudaria a se libertar do hospital. Para mim, seria com toda certeza libertação.
Da primeira vez, o médico sugeriu que eu prestasse mais atenção em flores, agora me diz sobre engrenagens e bússolas. Já faz tanto tempo...ele se referiu ao meu casamento e tinha razão, fazia tanto tempo que estávamos juntos. Eu não era apaixonada por , mas o amava, sem sombras de dúvidas. Escolher com a bússola do amor seria isso? Escolher meu casamento, meu filho e o homem que eu amava em vez do que estava apaixonada?
Tudo bem que aquele era o conselho de um médico que sabia apenas metade da história. Mas talvez ele tivesse razão, talvez eu devesse escolher meu casamento. Meu filho não sofreria, não sofreria e para nada ia mudar. Quanto a mim não importava, eu aguentava o tranco, já havia passado por isso antes.
Mas eu devia mesmo ouvir o médico?

🍁


– Dom, eu vou mesmo ter que pedir de novo? – chamou a atenção de Dom, que estava assistindo TV.
– Eu já vou. – Ele avisou.
– Dominic! – chamou, elevando mais a voz. – Caramba, cara. Por que você não pode obedecer de primeira?

Estávamos ajeitando tudo para o almoço, Giovanni e sua família, Oliver e meus pais comeriam conosco. tentava acender a churrasqueira, eu estava cozinhando e Dom preso na TV. não costumava se irritar ou perder a paciência facilmente, mas naquele momento, depois de pedir várias vezes para que o Dom fizesse algo, ele saiu do sério.
– Eu já estava indo. – Dom se explicou quando se aproximou e desligou a TV.
– Meia hora. Meia hora. Eu estou te chamando lá fora e você está aqui na TV. – ralhou conduzindo Dom para o quintal.

Eu sentiria falta disso, dessas situações do cotidiano. De assistir brigando com Dom, de vê-los juntos assim. Claro que obviamente Dom moraria comigo. Depois da separação, ele escolheria a mãe, não é? Eu ainda não havia ponderado acerca dessa possibilidade, era quase uma certeza para mim. Dom escolheria a mãe, é claro...
Mas e se por uma trapaça do destino ele não quisesse viver comigo? E se ele escolhesse viver com o pai? Eu ficaria sozinha, completamente. Para onde eu iria quando me separasse? Voltaria para a casa dos meus pais? Faria sair de casa? Para onde ele iria? Eu não poderia pedir para sair, eu sairia. Mas para onde iria com Dom? E se ele não quisesse ir comigo?
A cada segundo a ideia da separação ficava mais complicada e mais difícil. Surgiam tantos pontos a serem pensados, tantas coisas para serem resolvidas...
– Eu já acendi a churrasqueira. – avisou entrando na cozinha. – Acho que vou esperar mais um pouco para colocar a carne.
– Certo. – Concordei sem encará-lo, se aproximou da pia e encostou na parede.
– Eu estava pensando, nosso aniversário está chegando. Podíamos fazer uma viagem, talvez New York ou outro lugar. Califórnia ou algo assim. – Sugeriu.
– Nossa, eu me esqueci completamente. – Assumi.
– Eu imaginei, por isso estou falando. – Ele beliscou um pedaço de palmito e começou a mastigar. – Esse palmito está ótimo. Eu falei com Tony, ele e Louise estão planejando ir para Los Angeles em breve, ele disse que seria bom se pudéssemos ir também.
– Tony nos convidou? – Perguntei surpresa.
– Pois é, ele disse que devíamos ir. Sabe, as praias, gente rica, Tony Render. – sorriu e beliscou meu braço levemente.
– Você quer viajar para comemorar o aniversário de casamento ou para ver o Tony? – Questionei áspera.
– Bom... – gaguejou. – É para comemorar o casamento, claro. Mas seria bom rever o Tony, a Louise. – Explicou.
– Para acontecer como no seu aniversário e você ficar atrás do Tony o tempo todo? Passo. – Cortei.
... – lançou um olhar ressentido e ao mesmo tempo compreensivo. – É diferente. E naquele fim de semana todos ficamos com eles, não só eu. – Ele disse.
– Não vou viajar com você para ficar de escanteio, se quiser vá sozinho. – Afirmei seca, sem olha-lo.
– O que aconteceu? Eu fiz alguma coisa? Você parece chateada comigo. – quis saber, tocando meu ombro de maneira delicada.
– Não, . Você nunca faz nada. – Respondi. Por que nem brigar poderia ser fácil com ? Pensei.
– Eu não sei o que aconteceu, de verdade. Mas, me desculpe. – encarou o chão e pensou um pouco. – A gente pode ir para outro lugar, talvez um fim de semana em algum hotel bom, Dom pode ficar com seus pais. Não precisamos ir para Los Angeles, nem nada disso. Ou podemos ficar aqui e só jantar. – me encarou e eu expirei pesadamente.

Não queria ser uma idiota com , não era justo trata-lo mal, brigar com ele e fazê-lo se sentir mal. Mas ao mesmo tempo, por mais infantil que fosse, mostra-lo que eu não era a pessoa certa me parecia uma boa ideia. Talvez ele decidisse se separar, mas aparentemente só sofreria calado e tentaria me agradar...
Quando todos chegaram, tentei disfarçar minha chateação e também, embora não tenha conseguido muito. Quando perguntavam, ele respondia que a semana tinha sido difícil e sorria amarelo, típico de .
– Que vibe ruim é essa? – Oliver quis saber, se sentando perto de mim no quintal.
– Não tem vibe ruim nenhuma, deve ser só sua energia pesada. – Respondi ríspida.
– Nossa, você pegou pesado. Energia pesada? A minha? Justo a minha? – Questionou, pousando a mão no peito, enfatizando seu choque.
– O que foi? – Giovanni perguntou curioso, se sentando na outra cadeira vazia.
– O Oliver fazendo drama. – Falei sem olha-lo.
– O que o tem? Ele está estranho, não falou nada sobre dietas, academia ou polo aquático até agora. – Giovanni contou, observando por cima dos ombros.
– Nada, não tem nada. – Respondi, tentando encerrar o assunto.
– Por que vocês brigaram? – Oliver quis saber.
– Nós não brigamos. – Falei.
– É tão óbvio que sim. Se você não tentasse disfarçar acho que daria mais certo. – Oliver comentou.
– É por causa do ? Ele não está feliz com você indo ao hospital? – Giovanni quis saber e eu lancei a ele um olhar quase cortante.
– O que tem nisso? Por que ele implicaria? é a pessoa mais calma que eu conheço. – Oliver observou.
– Ela ainda tem uma queda pelo . – Giovanni contou.
– Giovanni! – Eu o repreendi.
– Sério? – Oliver inclinou a cabeça, confuso. – Nossa, agora tudo faz sentido. Então é por isso que...
– Não, não tem nada a ver. Giovanni enlouqueceu. – O interrompi.
– Por que está brigando com seu marido bonitão, então? – Giovanni indagou.
– Vocês dois podem fazer o favor de pararem de se meter na minha vida? – Pedi.
– Tá bem. Não está mais aqui quem falou. – Giovanni levantou as mãos rendido. – Só vou dizer mais uma coisa. – Eu revirei os olhos. – Você acha mesmo uma boa ideia comprar uma briga com seu marido pelo ? – Giovanni questionou e arqueou uma sobrancelha.

Minha consciência, doutor Rafael, Giovanni, todos diziam a mesma coisa, eu só precisava de coragem e maturidade para aceitar.
– Gio. – Oliver chamou. – Você diria que eu tenho uma energia pesada?


– Isso sim é um almoço de família digno. – Mamãe disse, enquanto todos comiam.
– Por isso o próximo será na casa da senhora. – Brinquei.
– Devíamos mesmo fazer isso sempre. Nunca se sabe quando tudo pode mudar. – Giovanni comentou e me olhou sugestivamente. – Jack, pegue berinjela. – Meu irmão pediu ao afilhado.
– Aproveitem a minha presença enquanto ainda estou aqui. – Oliver falou.
– É, só veremos Oliver de novo quando o dinheiro dele acabar. – Meu pai o provocou.
– Isso é que eu chamo de aproveitar a vida. – Giovanni retrucou e Oliver o cumprimentou com um toque de mãos.
– A vida passa muito rápido. – Oliver comentou. – Temos que aproveitar esses momentos em família, isso que importa. – Completou e me encarou.
– Aos Beauchamps! – Papai propôs um brinde.
– Aos Beauchamps!

Quem te viu, quem te vê, .
Se me dissessem quando cheguei à cidade que eu participaria de uma cena dessas, um churrasco de domingo em família, com meus irmãos e meus pais...
Mas até que não era tão ruim, meus irmãos e eu nos dávamos bem, meus pais pareciam felizes com aquele acontecimento, Dom estava animado e Jack também, representando Ted. Éramos uma família feliz e eu só conseguia pensar em como seriam os próximos almoços depois que eu anunciasse minha separação. Onde almoçaria nos domingos?
– Pessoal, um minuto da atenção de vocês. Tenho uma notícia muito boa para dar. – Giovanni anunciou, se levantando com um copo em mãos.
– Oliver conseguiu um emprego fixo? – Meu pai perguntou.
resolveu abrir uma academia e deixar a construção civil? – Oliver chutou.
– Deixem ele falar. – Pedi, me recostando na cadeira e segurou minha mão.
– Minha mãe está grávida? – Dom supôs ansioso e eu o olhei confusa.
– Acho que eu seria a primeira a saber, não é? – Balancei a cabeça e revirei os olhos, riu alto.
– Como vocês falam, meu Deus! – Giovanni ralhou. – Eu estou tentando contar algo aqui.
– Ande logo com isso, Vanni. – pediu.
– É com muita alegria que Susan e eu anunciamos que temos mais um Beauchamp a caminho. – Sorriu.

Mamãe colocou as mãos no rosto e abriu a boca, chocada, depois se levantou e correu para abraçar Giovanni. Meu pai se levantou e seguiu o mesmo caminho. Jack disse algo para Dom, provavelmente o garoto já sabia da novidade. Oliver bateu palmas e assoviou, se levantou e abraçou Giovanni e Susan, seguido por mim.
– Que ótima notícia! – disse, animado. – Parabéns, casal.
– Obrigada! – Susan agradeceu. – Tem mais uma coisa.
– Não me diga que são gêmeos? – Oliver perguntou desconfiado.
– Não. É algo melhor. – Giovanni contou. – Primeiro, nós já sabemos o sexo. Descobrimos a gravidez já um pouco adiantada, então já deu para ver. – Ele explicou.
– Bem que eu desconfiei. – Mamãe confessou e riu.
– Nós decidimos que ela vai se chamar Suzana, como a vovó. – Giovanni revelou e sorriu dócil para nossa mãe. – E nós queríamos muito, que o , e o Oliver fossem os padrinhos.
– Uau! – expirou chocado.
– Três padrinhos? – Papai questionou.
– Sabe, um casal de padrinho mais um. – Giovanni explicou. – E então, aceitam?
– Eu admiro sua coragem em me convidar. – Oliver brincou enquanto se levantava para abraçar Giovanni. – Claro que eu aceito. Sempre quis ser padrinho de alguém.
– Nós também. É claro. – respondeu, depois de confirmar a resposta com um olhar furtivo. – Será uma honra.

Um bebê, meu irmão teria um bebê. E o mais inimaginável, eu seria madrinha da criança. A vida adulta era isso então? Priorizar a família, o amor e deixar as rixas, as diferenças de lado?
e eu seriamos padrinhos da pequena Suzana, seria apenas mais uma coisa que nos ligaria, mais uma coisa que poderia perder se nos separássemos. Há alguns dias eu tinha certeza absoluta de que o certo a fazer era me separar, que era o que eu mais queria no mundo, mas agora me parecia uma ideia muito, muito ruim. Me separar de parecia algo egoísta a se fazer, todos sofreriam mais uma vez por um capricho meu.
Ao mesmo tempo, eu estava apaixonada por , não era justo permanecer casada com alguém estando apaixonada por outro. Pensei que estivesse confusa antes, mas agora, isso sim era confusão.
Ver Giovanni e Susan ali, juntos, felizes, me fazia pensar se era assim que as pessoas viam a mim e também, como um casal feliz e crescendo. A vida não era nada fácil e você sequer precisa de dramas mexicanos para isso, as escolhas mais simples eram as mais difíceis, escolher entre o que eu queria e o que era melhor. Ah, como eu queria ter tido que escolher quinze anos atrás...
Estava me preparando para dormir, nossos convidados haviam ido embora depois das oito da noite. Eu estava cansada emocional e fisicamente, pareceu me evitar durante o resto do dia, mas quando sai do banho, ele já me esperava no quarto.
– Eu quero falar algumas coisas. – Ele anunciou e eu me sentei na cama. – Você me deixa confuso. Eu nunca sei o que esperar, isso já era comum, sempre foi, mas agora, eu estou perdido. Estamos bem e então de repente você fica distante, não se comunica, me afasta...eu não sei se fiz algo, mas se fiz, me diga. – Ele pediu. – Eu não entendi o que foi aquilo na cozinha hoje. Não tinha necessidade de uma discussão por aquele motivo.
– Eu não posso me chatear por você querer passar o aniversário de casamento com seu amigo? – Questionei, estava acuada.
– Você pode, melhor, poderia. Se ligasse. – falou ressentido.
– Se ligasse? – Voltei meu olhar para ele, abismada. – O que você quer dizer?
, você não se importa com isso. É nítido, você tem outras preocupações desde que chegou aqui. Sua família, seus amigos e eu entendo isso, de verdade. Você ficou anos fora, é normal querer se reaproximar. – falou. – Eu não reclamei, aceitei tudo como você queria. Mas não vou aceitar você fingir que eu estou errado, sendo que não é verdade.
– Eu estou errada então? – Questionei me levantando.
– É isso que eu estou tentando dizer. – falou e eu abri a boca tentando dizer algo à altura, mas não pude. – Eu sei como nós somos. Sempre fomos independentes, livres. Nunca fomos um casal comum, como o Giovanni e a Susan, por exemplo. Mas isso nunca foi um problema, sempre foi bom para nós dois. Eu te amo, você me ama e temos o Dom. Eu sei que nunca fui sua primeira opção. – riu fraco e eu o direcionei um olhar triste. – Mas, sabe? – coçou a cabeça e se sentou na cama.
, eu... – Tentei falar, mas não sabia o que dizer.
– Eu estou meio perdido aqui. Se você puder me dizer o que está acontecendo, o que está te incomodando... nós sempre fomos amigos, isso não mudou. Eu só preciso entender, entender se algo mudou...
– Eu sinto muito. – Disse me ajoelhando em sua frente. – Às vezes eu faço coisas que não tem muito sentido. Eu estou tentando aprender, amadurecer e parar de magoar as pessoas que eu gosto, é difícil, mas eu juro que estou tentando. – segurou meu rosto e secou uma lágrima que escorreu solitária. – Eu não sei o que está acontecendo. Eu até sei, mas eu estou sentindo tantas coisas agora e eu não sei o que fazer com isso. – Assumi. – E mais uma vez eu estou deixando respingar em vocês...
– Me conta, eu posso ajudar. Divide comigo. – pediu.
– Eu não posso, são... são coisas que eu preciso lidar. Sozinha. – Recostei a cabeça em seu peito. – Desde que eu voltei para essa cidade, parece que tudo que sabia sobre mim mudou, tudo está de cabeça para baixo. E eu não sei o que fazer, sinceramente. Eu só queria dormir e acordar sem nada disso, sem estar confusa, sabendo quem é a pessoa que eu vejo no espelho. – Desabafei.
– Eu sei quem você é, você é a . Você é uma mãe incrível, uma chef brilhante e a minha esposa, amiga, companheira. Você é engraçada, alegre, inteligente, tem um gosto muito caro e odeia acordar cedo. Odeia que mastiguem alto perto de você, pode ser extremamente mau humorada as vezes, mas isso eu sempre resolvo com uma massagem. – contou e eu ri. – Você é a pessoa mais elegante que eu conheço, depois de Louise Render. – Dei um leve tapa em seu peito. – Você, , tem medo do que não conhece, mas não pensa duas vezes antes de defender qualquer um que ame. É intensa, forte, alegre e eu te amo.
, eu não mereço isso. Não mereço que você me ame, nem que você fale essas coisas para mim. – Confessei.
– Você não é perfeita, meu amor. Eu sei que é um baque ouvir isso, mas você não é. – Ele sorriu. – Você tem defeitos e erra assim como qualquer um, eu posso viver com isso. – Balancei a cabeça negativamente e me abraçou.

Abraça-lo era como abraçar uma roseira. Eu podia sentir todos seus espinhos, sentia cada um deles furando minha pele e cortando minha carne. Não podia fazer aquilo, não podia engana-lo, não podia fingir que estava tudo bem, precisava me afastar, precisava sair dali, mas não tinha forças. me puxou para junto de si, me deitou na cama e me abraçou.
E por mais culpada que eu estivesse, por mais que seu toque me ferisse, eu me sentia segura, me sentia protegida de mim mesma. Como se enquanto eu estivesse ali, não precisasse me preocupar com o que estava fazendo, por algum tempo, por apenas uma noite eu não precisasse me lembrar do que estava prestes a fazer, não precisava pensar no quanto sofreria com as minhas escolhas.
Naquela noite eu apenas choraria, me despediria do carinho de e viveria o luto. Talvez um dia ele me perdoasse quando se lembrasse de como eu estava triste antes de anunciar nossa separação. Talvez ele entendesse meus motivos. Eu precisava daquilo, precisava chorar o fim do meu casamento, tudo começou com nós dois, teria que terminar assim também.

🍁


Giovanni tagarelava qualquer coisa sobre bebê e enjoos, eu não conseguia prestar atenção. Quando me ligou naquela manhã, se oferecendo para me acompanhar na visita a , eu quase ajoelhei para agradecer aos céus. Eu precisava muito vê-lo uma última vez antes de sentenciar o fim de tudo, precisava olhar em seus olhos para tomar a coragem que precisaria para mais tarde.
Com , mesmo com nossa relação de certo modo, superficial, eu me sentia em casa, podia ser eu mesma. Estava confortável o suficiente para não fingir estar bem, só queria olha-lo, respirar fundo e ter a conversa com de uma vez. Não podia passar daquela noite, não depois de tudo.
– E aí! – Giovanni cumprimentou ao entrar no quarto e sorriu de canto. – Tudo certo? – piscou uma vez e então voltou seu olhar para mim, eu acenei com a cabeça e ele franziu o cenho.
– Eu tenho novidades para você. – Giovanni anunciou, animado. – Susan está grávida. – sorriu abafado e suspirou. – Pois é, é uma novidade e tanto. Eu estou tão feliz, já comprei vários livros sobre bebês e paternidade. – Giovanni contou. – Susan está bem, está brilhando, ela te mandou um beijo. – piscou uma vez, fez beicinho e sorriu.
– A e o marido vão ser os padrinhos, junto com Oliver. – Giovanni contou e senti o olhar de sobre mim, ele parecia tentar ler meu rosto, descobrir o que eu estava pensando. – Eu queria muito que você pudesse ir ao batizado, vou ficar torcendo. – Gio tocou a perna de e a balançou suavemente.
– Vou pegar um café. – Disse de repente. – Não demoro. – Giovanni assentiu e eu os deixei.

Tudo era incomodo, as luzes do hospital, o branco das paredes, as pessoas que pareciam olhar para mim, a calça jeans apertada, o salto alto, o casaco quente demais, me faltava ar. Era um daqueles momentos, daqueles que você quer desligar, quer sumir. Eu não devia estar ali, eu devia resolver tudo.
Pensava no compreensivo, solícito e gentil da noite anterior, pensava no curioso e confuso que estava no quarto. O denominador comum era eu, tudo se resumia a mim de alguma forma. Eu era o problema, sempre fui, sabia o que queria, tinha certeza que queria, mas não tinha mais certeza se era a melhor escolha ou a escolha certa.
Talvez nunca tenha tomado um café tão devagar no mundo, não que eu tivesse realmente tentado. O café tinha um gosto amargo e sem vida, bem como devia estar meu rosto naquele momento. Queria voltar, mas me sentia tão culpada por querer, eu era realmente um ser humano horrível.
Decidi acabar com a distância, já que estava ali, não era justo passar todo tempo encarando uma parede. Encontrei Giovanni na porta do quarto de , ele estava tão distraído com o celular que nossos corpos se chocaram.
! É você. Que susto. – Giovanni colocou a mão sobre o peito. – Eu estou indo, surgiu uma emergência no trabalho. Nos vemos depois?
– Claro. – Confirmei e meu irmão deixou um beijo em meu rosto e saiu apressado pelo corredor.
. – Cumprimentei, me sentando na beira de sua cama.
me fitava com o cenho franzido, como se quisesse perguntar o que havia comigo.
– Não me olhe assim. – Ri fraco. – Está tudo bem. – Eu o encarei e senti aquela coisa, a coisa que me conectava a como nunca havia conectado a mais ninguém. – Eu estou dividida. – Assumi. – Eu quero muito uma coisa, acho que esperei a vida toda por isso. Mas acontece que agora eu não sei se é a coisa certa a se fazer, entende? – piscou uma vez e tentou alcançar minha mão, então eu apertei a dele. – Eu acho que sempre estrago tudo. Acabo magoando as pessoas, decepcionando todo mundo. Se eu fizer a escolha que quero agora, vou magoar muitas pessoas que amo. – Balancei a cabeça devagar e inclinou-se em minha direção. – Percebeu quantas vezes usei o eu nessas frases? Péssima, , péssima. – Ri fraco.

encostou sua testa na minha e me fitou com a testa franzida, depois fechou os olhos. Alguns minutos se passaram e ele voltou a me examinar, expirou com força e tentou se deitar com alguma dificuldade. Com uma de suas mãos me puxou levemente para perto de si e piscou uma vez. Eu estava sentada em sua cama, deixei meu corpo descansar e deitei-me, fechei os olhos e o abracei de lado. Quando o procurei, ele me observava, sua face havia se fechado, olhos estreitos e sobrancelhas franzidas, parecia preocupado, pensativo.

– Eu não sei o que fazer. – Assumi.

beijou-me suavemente o topo da cabeça e então não havia mais medo, confusão, dor, dúvida. Só a sua presença. preenchia todo o quarto, não havia espaço para mais nada, para nenhum sentimento ruim. Estava bem e sentia que independente do que fosse acontecer dali em diante, tudo ficaria bem se eu tivesse aquele abraço para me esconder.

🍁


Decidi voltar caminhando para a casa, não era longe e eu precisava pensar, precisava decidir como contaria para , como diria que havia me apaixonado, que o amava, mas que não podia mais ficar com ele. Tinha que pensar em como contar para Dom, não fazia ideia de como ele reagiria, precisava ter calma, ser paciente.
Dom tinha ido para casa de Gina depois da aula, por isso chegamos juntos em casa. Gina o havia acompanhado.
, quanto tempo. – Ela cumprimentou ainda no carro.
– É, já faz um tempinho. – Eu sorri.
– Está tudo bem?
– Vai ficar. – Eu acenei e ela se foi. – Vamos entrar? – Chamei Dom e depositei um beijo em seu rosto enquanto o abraçava de modo demorado.
– Mãe, tudo bem? – Ele perguntou.
– Sim, querido. Tudo ótimo. – Falei acariciando seus cabelos e ele me olhou desconfiado. – Eu amo você. – Dom sorriu, assentiu e correu escada acima.

Devia preparar um bom jantar, cozinhar sempre me ajudava a pensar, mas dessa vez teria que ser um daqueles jantares de conforto. Algo para preencher os corações que ficariam quebrados depois daquela noite.
Pensar na reação de , imagina-lo surpreso, triste e sofrendo ainda me congelava. Rezava para ter coragem, para conseguir fazer o que tinha que fazer, mesmo não sendo exatamente a coisa mais certa para todos.
– Você não vai acreditar. – chegou de repente, como um furacão, rindo e falando alto. – Eu não acredito nisso. É incrível!
– Talvez se você me contar, posso decidir se acredito ou não. – Falei confusa, saí da cozinha e fui ao seu encontro.
– Ela fez, ela escreveu. – festejou enquanto me mostrava a revista em suas mãos. – Uma das secretárias me parou hoje, pedindo para eu falar sobre o Tony Render. – Eu o encarei confusa. – Eu não tinha contando para quase ninguém sobre a viagem, quando eu perguntei como ela sabia, ela me mostrou isso. Não é incrível?

O amor em tempos líquidos, por Louise Rousseau – Render.
O título da matéria me fez recordar daquele fim de semana que tinha sido o estopim para tantas coisas. Louise havia escrito uma matéria sobre nossa viagem em família, a francesa falava da necessidade de se distanciar para valorizar o que realmente nos importa, sobre parar o tempo e tentar aproveitar ao máximo a companhia de quem está ao nosso lado. Louise também narrava a história de uma adorável família que os havia acompanhado, uma família que a mostrou que o amor pode resistir as trivialidades cotidianas, que o casamento é muito mais que paixão incandescente.
A cada frase lida meu coração apertava, aquela jornalista falava de nós, do nosso casamento e da nossa família de forma tão especial e esperançosa, enquanto eu, que devia defende-lo, pensava em formas fáceis para acabar com tudo. Era vergonhoso, triste, eu era realmente uma péssima pessoa. Tinha traído meu marido e agora tramava deixa-lo.
Louise contava no texto o quanto nossa família a havia tocado, o quanto aquele fim de semana seria inesquecível para todos. Para ela, a atmosfera de companheirismo, amor e apoio mútuo que nos envolvia era fascinante. A francesa finalizou o texto fazendo reflexões sobre como nós abrimos mão de viver grandes amores assim, de viver o que realmente queremos por vontade de agradar e medo do desconhecido e enfatizou para que ninguém deixasse que um segundo sequer passasse sem dizer o que precisa dizer para quem ama.
Nos últimos dias, me torturar era meu novo passatempo favorito. Me culpava por ter saído da cidade, por ter voltado, por ter visitado e por não o ter visitado. O novo arrependimento era o beijo e a grande nova dúvida era sobre o que fazer depois disso. Era uma verdade absoluta que beijar , estar com ele era a melhor coisa do mundo, mas tudo aquilo que Louise falava, tudo aquilo que vivi com . Eu não podia, não era certo com ninguém.
– Meu amor? – chamou e tocou levemente meu ombro. – Está chorando? – Perguntou sorrindo docemente e inclinou a cabeça.
– Eu... – Tentei me explicar.
– É bonito, não é? – Ele secou uma de minhas lágrimas com o polegar e me abraçou de lado. – Achei tão lindo a maneira com que ela nos referiu. Exemplo para novos casais. Eu estou tão feliz. Acha que o Dom vai gostar? – perguntou e eu assenti com a cabeça e sorri fraco.
– Eu vou tomar um banho e depois mostramos ao Dom, o que acha? – sugeriu. – Eu te amo. – Disse, segurou meu rosto e me deu um beijo.

Eu queria correr, era como se as paredes estivessem encolhendo, minhas roupas incomodavam, minha pele me causava incomodo. Eu estava tão angustiada, sufocada, era difícil respirar. Saí para o quintal, precisava de ar, precisava chorar.
Como eu poderia, como eu poderia deixa-lo? Como eu poderia me separar de e deixar todos os momentos, todos os anos juntos para trás? E tudo isso para seguir uma paixão adolescente? Paixão essa que eu nem sabia mais se era mesmo uma paixão ou apenas algo que eu não consegui e que precisava concretizar para amaciar meu ego, quem sabe fosse só fogo de palha, passageiro.
Eu não poderia deixar sozinho e simplesmente me separar, me jogar no desconhecido, enquanto torcia para que correspondesse meus sentimentos. Era loucura e era injusto, havia passado tanto tempo com , não seria justo jogar tudo fora por algo repentino, inconstante, efêmero. No fundo eu achava que não fosse passar, achava que nunca me esqueceria do sabor do beijo de , que nunca deixaria de sentir a dormência nos lábios depois de tê-lo beijado, nunca me sentiria segura como me sentia em sua presença. Mas mesmo assim, não seria justo.
Tentei me lembrar de todos os momentos únicos com , nossas férias na praia, nossa viagem pela Europa com pouquíssimo dinheiro e que nos tinha rendido ótimas histórias e risadas. Da gravidez, das vezes que ele saía no meio da noite para procurar todos tipos de doces existentes que fossem a base de Kiwi ou quando ele passava noites em claro cuidando de Dom, mesmo tendo que trabalhar no outro dia, para que eu descansasse. Todas as vezes que me apoiou nas minhas decisões, que sofremos juntos nossas perdas, que comemoramos nossas vitórias. Eu não podia deixa-lo. Não conseguia.
Talvez o amor fosse isso, se doar, abrir mão. Eu não era apaixonada por , mas éramos casados há tantos anos que devia ser normal, não é? Sentir amor e não paixão. Ele me amava, esteve comigo, tínhamos um filho e eu não tinha direito de traumatizar Dom com um divórcio e nem de abandonar dessa forma.
Mas estava em meus pensamentos, eu precisava fazer alguma coisa, tinha que fazer uma escolha e dessa vez precisava fazer a escolha certa. Era óbvio para mim, mas precisava ser feito da melhor forma, era necessário ser madura, responsável. E precisava ser feito logo.
Deixei um bilhete para sobre a ilha da cozinha e fui para o hospital, precisava fazer antes de perder a coragem.
Não era horário de visitas, mas as enfermeiras estavam tão habituadas à minha presença que já nem se importavam muito com a minha circulação ou talvez fosse Deus me ajudando a tomar a decisão certa. Congelei frente a porta do quarto de , aquilo separaria a adolescente da adulta, eu mataria parte de mim ali. Mataria uma parte inocente, infantil, sonhadora e junto com ela mataria qualquer sentimento por . Precisava ter coragem, precisava fazer o que tinha que fazer.

🎵 Dê play na música aqui, se necessário coloque para repetir – The Fray – never say never 🎵



Quando enfim entrei no quarto, me encarou confuso e tentou sorrir. Pensei em desistir, devia pensar em mim primeiro e ficar com o homem que eu queria de uma vez por todas, mas não podia. Olhar para me faria desistir e eu não poderia me dar esse luxo. Me aproximei de seu leito e comecei a falar:

– Olá. – Cumprimentei encarando o lençol. – Tem algo que eu preciso dizer, precisamos conversar. Eu tenho que te contar algumas coisas e preciso fazer de uma vez por todas. – Ri fraco e tentou tocar minha mão, mas eu a afastei. – Por favor, , só me deixe falar, tá bem? – Pedi e fechei os olhos com força. – Eu estou apaixonada por você, na verdade eu acho que sou apaixonada por você desde que me lembro e não consigo lembrar de algum momento em que não estive assim. Há alguns anos eu daria qualquer coisa para estar vivendo o que estou agora, para ter a chance de ficar pelo menos perto de você de alguma forma. Não sei se alguma vez você notou isso, meu irmão diz que sim, mas eu não sei realmente até onde ele é confiável. – Respirei fundo, na tentativa de controlar o choro que insistia em aparecer.
– E então, quando eu percebi que não teria você, que ... bem sua vida estava seguindo, você ia se casar, eu me mudei e aí tudo desandou. Quando voltei, casada, jamais sonhei com essa possibilidade, de encontrar você aqui, livre. Diferente do que eu imaginava, achei que te encontraria feliz, com uma esposa belíssima e com alguns filhos bonitos, uma família de comercial de TV. Eu decidi arrancar esse sentimento, sufoca-lo até que ele deixasse de existir, mas quando eu te vi, quando eu pude olhar para você depois de todos esses anos... – Balancei a cabeça e continuei. – Eu percebi que nada mudou, na verdade eu demorei para aceitar isso. Demorei para entender tudo o que estava acontecendo, tudo pelo que eu estava passando. Percebi que não sou como imaginava e estar com você tem me ajudado nisso, tem me motivado a ser melhor, porque de alguma maneira eu desejo muito ser alguém melhor para você. Alguém melhor para te merecer. – me encarava, não conseguia traduzir seu olhar. – Mas parte de ser alguém melhor é começar a colocar os sentimentos das pessoas que eu amo acima das minhas vontades e é por isso que eu estou aqui. Eu estou apaixonada por você, e talvez nunca sinta isso de novo na vida, mas eu não posso ficar com você e pateticamente digo isso sem saber se ficar comigo é o que você quer. – Ri fraco e olhei para cima, tentando não chorar. – Eu sinto tanto por isso, lamento tanto, mas eu tenho que ficar com a minha família, com meu marido e tentar fazer o máximo por eles, para o bem do meu filho. Eu sinto muito. – Tentei secar algumas lágrimas insistentes que escorriam e voltei rapidamente meu olhar para . Ele piscou duas vezes. – Eu não posso fazer isso com eles, não é certo. Por isso eu estou me afastando, continuar aqui com você, sentindo o que estou sentindo, seria como trai-los. Você merece alguém que possa estar com você por inteiro e merece a mesma coisa. Eu não sei se vou conseguir, mas... – Disse e tentei sorrir de novo. – Eu queria que as coisas não fossem assim, queria poder ficar e você sabe... – Tentei dizer o que se passava pelo meu coração. – Eu sei que disse que não te deixaria mais, mas agora é a melhor coisa a se fazer, acredite, por nós três. E eu acho que nunca fiz nada tão difícil. – Confessei e olhei para cima de novo, tentando não chorar mais. – Eu preciso ir, preciso. – Suspirei, inclinando a cabeça para olhá-lo.

piscava duas vezes, repetidamente, tinha no rosto uma feição confusa, irritada, triste, frustrada. Era nítida sua angústia por não conseguir se expressar como gostaria, ele abria a boca, pasmo e balançava a cabeça. Enfim conseguiu tocar minha mão, tentou apertá-la com o máximo de sua força, que atualmente não era muita.
– Eu tenho que ir, você vai ficar bem. Vamos todos, vai ficar tudo bem. – Tentei dizer algo reconfortante para nós dois. – Nós não podemos...talvez seja coisa do destino, não era para ser. Eu preciso mesmo ir. – Disse me afastando devagar.

balançava a cabeça negativamente e também piscava os olhos, agitado. Era a pior cena que eu já tinha visto na vida, eu estava matando uma parte de mim, com certeza estava. Ele ainda segurava minha mão, aquela separação de peles seria talvez uma das coisas mais dolorosas que eu faria na vida. Tentei memorizar por alguns segundos como era o seu toque, como era sentir sua pele junto a minha e então comecei a me afastar, devagar. O olhar de era ainda mais ansioso, contrariado e para minha surpresa, uma lágrima havia se formado e escorria pelo lado de seu rosto, seguida por outra e outra. Eu não tinha mais forças ou iria embora naquele segundo ou nunca mais iria. Respirei fundo e separei nossas mãos de uma vez, voltei meu olhar para uma última vez e o vislumbrei ferido, profundamente, talvez fossem coisas da minha imaginação fértil. Andei de costas para a porta, devagar, tentando com todas minhas forças conter o choro.
Fechei a porta, selando aquela que seria a última vez em que eu o veria e desabei. Era como se meu corpo perdesse o contorno e eu dissolvesse ali, no chão, no corredor. Estava feito, era a coisa mais difícil que eu havia feito na vida, mas precisava ser assim.
Precisava, não é? Eu precisava deixa-lo ir, precisava me libertar daquele amor para conseguir enfim viver livre e em paz.


7

Seis meses depois...

– Como está o foie gras? – Gritei enquanto batia a manteiga.
– Mais dois minutos, chef. – Alguém gritou em resposta.

Ainda batendo a manteiga, me aproximei de outra ilha e alguém ofereceu um pouco de sorvete de cacau, o sabor invadiu e aguçou todos meus sentidos, estava esplêndido.
– Para o freezer. – Ordenei e em seguida me afastei para outro canto. – Quero saber das lagostas.
– Pode empratar, chef. – Outro respondeu.
– Me deixe provar esse béarnaise. – Pedi me aproximando do gigantesco fogão. – Está horrível. O que você colocou? Refaça. – Gritei.
– Foie gras está pronto. – Alguém avisou.
– Onde está meu molho de vinho? – Gritei novamente e outro surgiu ao meu lado carregando uma vasilha de lâminas de trufa. – Você chama isso de lâminas de trufas? Por favor. Quero para ontem, se mexa.
– Sim, chef. – Respondeu.
– Onde está o Charles com meu filé mignon? – Chamei.
– Aqui, chef. – Charles ofertou-lhe uma panela.

Milimetricamente posicionei os componentes do tournedo rossini, filé mignon, foie gras, molho de vinho tinto e lâminas de trufa e tudo estava perfeito, nem o próprio Gioacchino Rossini poria defeito num prato daqueles.
, um cliente no salão gostaria de te cumprimentar. – Peter, o metre avisou.
– Qual cliente?
– Veja por si mesma. – Respondeu misterioso e eu franzi o cenho, depois o segui.

Sentada em uma mesa afastada das janelas, de frente para o salão e com um sorriso que transparecia elegância e simpatia estava ninguém menos que Meryl Streep.
– Então aí estão as fantásticas mãos por trás desse maravilhoso jantar. – A atriz cumprimentou e eu apertei os lábios num sorriso e baixei levemente o queixo. – O Pão cantarelos com damascos secos e vinho...dos deuses. O licor de verbena...o Ratatouille. Eu não tenho palavras, simplesmente perfeito. Gostaria que tivesse um restaurante assim perto de casa.
– Muito obrigada, eu fico muito feliz. – Torci o canto da boca num sorriso contido e fiz uma sutil reverência.
– Eu amei tudo, é tão cuidadoso, tão impecável...– A atriz suspirou. – Fiquei ainda mais contente ao saber que se tratava de uma chef. Se me permite, seu nome não me é estranho... – Meryl supôs sorrindo.
– Eu morei muitos anos em Nova York, pode ser isso. – Assumi.
– Não me diga. Onde você esteve?
– Na cozinha do Frankies 457 Spuntino, Babbo e La Pecora Bianca, depois fiquei mais quatro anos frente à cozinha do Carbone de New York também. – Contei e a atriz assentiu devagar.
– Eu amo o Carbone, por isso seu nome era familiar, então. – Meryl se inclinou sutilmente sobre a mesa, na tentativa de se aproximar um pouco mais da chef. – Eu amava a comida do Carbone, de todo meu coração, mas por favor, continue com a comida francesa. Você tem um dom, é como se eu estivesse num banquete dos céus.

E então me permitir sorrir mostrando todos os dentes, balancei a cabeça duas vezes e me despedi da atriz. Estava novamente me acostumando a aquele tipo de situação, me sentia mais útil, mais completa, mais feliz. A grande chef, estava de volta, com força total.
– Dois minutos para as batatas. – Ouvi alguém dizer assim que retornou à cozinha.
– Dois minutos para empratar o magret de carard. – Gritei.

Nos últimos meses era assim que passava meus dias, melhor dizendo, minhas noites. Existiam muitas coisas nas quais eu não queria pensar, rostos que nem sempre eu queria ver. Ter tirado do papel meu restaurante era bem mais que uma válvula de escape, era uma das coisas que me motivava a viver, que me faziam sair da cama todos os dias. Estávamos abertos há cerca de quatro meses e éramos um sucesso, o grande salão era branco, com conchas até a metade da parede exterior, bougainvilles vermelhas circundavam a porta e algumas janelas, completando o clima provençal romântico. Dentro do salão, as grandes janelas com vista para o mar iluminavam as mesas que eram cobertas por finas delicadas toalhas brancas e flores. Assim era o Eau de mer - Paradise, nome em francês que significava água do mar.
O restaurante, que era como um segundo filho, não poderia ter outro nome. Fora predestinado a ser dela desde o princípio, quando soube do imóvel a venda perto da praia, quando Giovanni disse que os donos eram seus clientes, tudo caminhou para que o belíssimo salão pertencesse a ela. Além de Dom, nada preenchia mais meu coração de orgulho do que aquela cozinha magnifica e a todo vapor.
– Chef, já terminamos aqui. Vamos comemorar agora? – Charles, o sous–chef quis saber me tirando de meus devaneios.
– Claro. – Respondi enquanto soltava o corpo sobre uma cadeira qualquer. – Alguém pode abrir o champanhe?
– Mas chef, você devia. Você é a chef. – Alguém disse.
– A chef está cansada, as mãos da chef doem e as pernas também. – Brinquei. – Teremos aquelas duas estrelas Michelin quando eu acordar amanhã.
– Dá para acreditar? – Peter balançou a cabeça e riu. – Menos de seis meses aberto e já temos duas estrelas Michelin.
– Isso é por termos a melhor chef da cidade. – Uma das cozinheiras, Aisha disse.
– Da cidade, não. A melhor do país. – Charles corrigiu erguendo uma taça. – Possivelmente a melhor representante da culinária francesa fora da França.
– Vocês acham que vou aumentar o salário de vocês depois desses elogios? – Provoquei fingindo falar sério.
– Como não? – Peter entrou no jogo. – Eu achei que seria até promovido depois dessa.
– Acredite, doí muito mais para manter essas belezinhas do que para conquistar. – Avisei. – À vontade para comemorarem, mas eu estou indo para casa. – Levantei e me espreguicei vagarosamente.
– Não se esqueça da entrevista para aquela revista, as duas. – Peter lembrou.
– Claro. – Balancei a cabeça sem encara-lo. – Charles, algum problema com o mercado amanhã? – Não. Já conferi tudo duas vezes. – Ele confirmou.
– Ótimo, muito bom. Salmão e badejo. – Enfatizei batendo duas vezes com o indicador na testa do promissor sous–chef.

🍁



– Bom dia, mas só para quem tem duas estrelas Michelin. – anunciou ao entrar no quarto segurando uma bandeja recheada de comida, me despertando do sono leve da manhã. – Tomara que esse café da manhã esteja como gosta, chef.
– Que horas são? – Perguntei cobrindo os olhos com um travesseiro.
– Dez e meia. – Dom respondeu subindo na cama. – Viu, nós esperamos a hora certa.
– Dez e meia ainda é muito cedo para mim, voltem em três horas. – Pedi e puxei o cobertor para mais perto.
– Não vai dar não. – gargalhou. – Anda logo, preguiçosa.

Não havia nada mais abominável no mundo do que acordar cedo, cérebros não eram feitos para funcionar antes das dez da manhã, essa era minha filosofia. Puxei o cobertor e me estiquei na cama, como um gato que não quer se mover, e Dom me assistiam ansiosos.
– Então, o que você trouxe hoje? – Arqueei uma sobrancelha para meu marido e puxei Dom para mais perto, beijando-lhe a cabeça.
Croque monsieur, seu favorito. – Dom anunciou.
– A apresentação está péssima. – Eu ri quando retirou a cloche de aço de cima do sanduíche.
– E é por isso que você é a chef, não eu. – apontou para mim e sorriu.
– Você tem um ponto. – Dei de ombros.
– Será que eu posso contar na escola que você ganhou a estrela? – Dom quis saber e eu inclinei meu rosto em sua direção e sorri fechado.
– Duas, duas estrelas. – o corrigiu.
– Pode, é claro. Mas não seja arrogante. – Disse. – Isso por acaso é suco de morango?
– Tudo para minha rainha estrelada. – levantou o copo em minha direção. – Me conta, como foi quando soube?
– Eu...– Fiz uma pausa para engolir o suco e sorri. – Charles entrou correndo na cozinha com o guia nas mãos, então todos começaram a se abraçar...parecia uma festa. – Ri e e Dom me acompanharam. – Mas sabe, dessa vez foi diferente.
– Diferente como? – Ele quis saber.
– É como se...como se fosse mais como uma sensação de paz do que euforia. Eu vi como o Charles ficou, parecia o melhor dia da sua vida, mas eu só estava em paz. Uma felicidade calma e tranquila, apenas uma validação do que eu já sabia. Estou parecendo muito arrogante? – Quis saber.
– Não, não. – ofereceu-me uma taça com frutas e se deitou ao meu lado. – Você já teve três estrelas, já está acostumada. Claro que esse resultado veio rápido, mas é meio óbvio. – Ele mordeu uma pêra. – O que quero dizer é, se você está diante de Dante Alighieri, não vai esperar até ouvir sobre ele para considera-lo. O pessoal do guia Michelin já conhecia você.
– Soube que o outro francês, o Le Bistrot Cuisine, que fica no centro da cidade. – assentiu. – Parece que eles não receberam nenhuma estrela, ouvi dizer que não ficaram muito felizes com a nossa classificação.
– Quem te disse isso? – indagou.
– Charles. – Tomei um longo gole de suco de morango. – Ele trabalhou lá antes, odeia o lugar.
– Você conhece quem é o chef?
– Não, dizem que é de fora da cidade, mas não é francês. – Contei. – Ele pode se coçar o quanto quiser, enquanto isso nós crescemos. – Ri alto.
– Isso aí, ninguém consegue superar a incrível chef, futura jurada do Masterchef, dona do melhor magret e do pior café do mundo, . – levantou sua xícara de café para brindar e nós rimos.

🍁



Era a quinta vez em que me ajeitava e ajeitava a dólmã branca, a repórter conferia algo em seu celular com calma e aquilo estava começando a me irritar. Ainda precisava abrir o menu, conferir os peixes, enquanto isso a jornalista parecia ter todo o tempo do mundo.
– Podemos começar? – A jovem de pele ébano sorriu.
– Com certeza podemos. – Assenti rapidamente.
– Bom, . O Eau de Mer está em funcionamento há menos de seis meses e já foi classificado pelo Guia Michelin, que avalia os restaurantes ao redor do mundo, com duas estrelas, sendo que o máximo são três. Poderia nos contar um pouco do percurso até aqui? – Perguntou.
– Bom, é uma longa história. – Eu sorri, cruzei as pernas e cruzei as mãos, pousando-as sobre o joelho. – Primeiro, eu sou de Paradise, nascida e criada entre essas praias, me mudei para New York depois do colégio, estudei gastronomia lá. Trabalhei muito tempo como assistente, cortando carnes, lavando louça e limpando a cozinha. Depois de muitos anos de trabalho duro, conheci o chef Massimo Bottura durante uma viagem para Modena com meu esposo. – Sorri ao me lembrar dos detalhes daquela viagem. – Tive a chance fantástica de aprender muito com ele, nos tornamos amigos. Quando voltei para New York fui direto para a cozinha do Frankies 457 Spuntino, depois disso assumi o Babbo e La Pecora Bianca, saí deles e passei quatro anos no Carbone. – Contei rindo.
– São todos restaurantes famosos, premiados na cidade. – Ela observou.
– Sim, acredito que por isso a classificação tenha vindo tão depressa. De certa forma, já tinha alguma atenção voltada para mim, sem querer soar arrogante. – Brinquei e me senti uma tola em seguida.
– Eu estou curiosa, como uma chef brilhante da culinária italiana se tornou essa perfeição parisiense?
– A família da minha mãe é de origem italiana, Trento, Modena...mas meu pai é de Lisieux, na França. – Contei apertando mais os dedos. – Eu sempre gostei da culinária francesa, sempre foi algo relacionado a memórias afetivas, sabe? – Ela assentiu. – Meu pai cozinhava nos fins de semana e eu lembro que meus irmãos e eu mal podíamos esperar para que a semana acabasse e ele enfim cozinhasse algo. Pratos italianos foram minha especialidade por muito tempo, mas estavam completamente fora da minha zona de conforto, decidi que era hora de resgatar minhas raízes, homenagear meu pai.
– Podemos dizer que você saiu do mais difícil para você, para o mais fácil, o francês?
– Eu não diria mais fácil. Embora eu saiba de cor quase todas as receitas e caso tenha dúvidas, posso simplesmente ligar para o meu pai, a responsabilidade é muito maior. É como se eu estivesse representando o tesouro da família, representando a minha infância...a simplicidade provençal, rustica, essência francesa...– Disse e ela sorriu enquanto assentia.
– É daí que vem o conceito do restaurante?
– Eu fui criada por aqui...indo à praia depois da escola. A casa dos meus pais era numa ladeira íngreme, de quase todas as janelas era possível ver o mar, esse ambiente sempre me cativou...o azul do mar me lembrava os olh...– Tossi tentando limpar a voz e mudar o rumo da conversa. Não, , isso não, por favor. Pensei. – Durante a viagem em que conheci Massimo Bottura, conheci Spello, na Umbria e Pescocostanzo, na Calábria, me apaixonei por elas e também por Eguisheim, na Alsácia. Aquelas vilas com suas paredes de tijolos de pedras, as flores...eu não conseguia parar de pensar naquilo. Em New York eu não tinha essa liberdade, era uma selva de concreto, sabe? – Sorri e me senti relaxar um pouco, aquelas memórias não eram acessadas há tanto tempo que havia até me esquecido do quanto eram boas.
– É realmente encantador, você se sente num bistrô parisiense, mas é como se estivesse com os pés no mar mediterrâneo por causa do mar. – A jornalista observou sorrindo e olhando através da grande janela.
– Essa praia é incrível. Eu fiquei muito feliz com a possibilidade de criar meu restaurante aqui...trabalhar com essa vista, com os turistas nas calçadas, com o barulho da água do mar batendo nas pedras, o cheiro das flores na janela...– Suspirei profundamente. – Me disseram uma vez que eu devia escolher bem com o que trabalhar, assim eu não precisaria trabalhar mais nenhum dia da minha vida.
– Eu realmente consigo sentir isso através de você, o seu amor pelo que faz, por esse espaço. – A jornalista cruzou as pernas e apoiou o cotovelo na mesa. – É correto dizer que tudo isso, todo esse sentimento e o carinho por esse lugar e pelo que ele representa para você, isso é o responsável pelo sucesso do Eau de Mer?
– Toda essa atmosfera sentimental influencia, com certeza. Mas o sucesso do Eau de Mer se deve único e exclusivamente por causa da minha equipe, do meu time. – Enfatizei batendo com dois dedos na mesa. – Eu tenho uma equipe brilhante, me sinto completamente dispensável aqui. – Falei rindo e ela me acompanhou.
– Isso não é uma coisa comum de se ouvir entre os chefs por aí. – Ela disse e eu assenti. – E ao que se deve o sucesso dessa equipe, na sua opinião, ?
– Bom, é simples. Eles são bons, amam o que fazem...eu acho. – Pude ouvir risadas vindas de um dos cantos do salão, de onde a equipe assistia a entrevista.
– É verdade, eu atesto. – Charles confirmou sorrindo.
– Você chamou atenção da mídia quando abriu, principalmente pela diversidade da equipe. Contratar refugiados e pessoas de outras nacionalidades era algum projeto pessoal seu? – A jornalista quis saber. – Não, não vejo assim. – Balancei a cabeça negativamente e voltei a cruzar a mãos sobre o joelho. – Essas pessoas são ótimas, independentemente de onde elas são. Tenho comigo o Charles, francês, por exemplo. Ninguém nunca questionou sua presença, não entendo porque questionam a presença dos outros por eles serem de onde são, não faz nenhum sentido. Mas eu entendo do que se trata, a questão da qual falamos é política, de saúde, econômica...eu nunca me atentei muito a causas, mas nos últimos meses tenho pensado sobre. – Respirei com calma enquanto pensava em como dizer o que queria. – Eu, nós, ignoramos e negamos durante muito tempo esse problema, eu acho que só estou tentando fazer minha parte, da maneira que posso.
– Acho que podemos dizer que o Eau de Mer é bem mais que apenas um restaurante badalado, não é? – A jovem continuou. – No estado, é o único com estrelas Michelin, é dirigido por uma mulher, mãe, esposa. Como é conciliar tudo isso?
– É estranho como essa questão parece pesada quando se trata de uma chef, não é? – Sorri e a jornalista encolheu os ombros, envergonhada. – Há algum tempo, uma mulher que admiro me fez pensar sobre isso. Eu tenho uma família incrível, meu esposo é um grande homem que me apoia em tudo, um grande amigo, mas quando eu entro nessa cozinha, nunca entro sozinha. Entro com a parte de mim que é mãe, esposa, mulher da casa, filha, irmã, chef, tudo isso junto. Se alguma dessas não estiver bem, tudo vai mal. É difícil, realmente, no início eu pensei em desistir...mas hoje eu acho...acho que por mais complexo que seja, eu aprendi a lutar.

🍁



Eu não me lembrava da última vez em que o jantar de ação de graças havia sido tão recheado. Não recheado de comidas, recheado de pessoas, muitas pessoas, pessoas que há um ano eu sequer sonhava com a possibilidade de dividir a mesa. Agora eu estava sentada ao lado de , de frente para a esposa grávida do meu ex-odiado irmão, enquanto meu pai fazia a prece de agradecimento pelo jantar.
Era estranho na mesma medida que reconfortante. Desde o segundo em que pisei na cozinha da casa dos meus pais, um filme se passava pela minha cabeça num looping interminável. O ano de dois mil e quatorze havia sido o mais atípico de todos e com certeza ficaria marcado na minha vida para sempre.
O ano em que voltei para minha antiga cidade achando que encontraria um inferno, mas na verdade encontrei um purgatório. Ano em que conheci meus demônios, expurguei os que já não tinham mais espaço dentro de mim, fiz as pazes com as minhas sombras. Ano em que experimentei sentir uma paixão adolescente de novo para em seguida encerrar de vez aquele ciclo.
Eu ainda pensava em , na verdade, ele era a primeira coisa que eu pensava quando abria e fechava os olhos todos os dias. me assombrava, eu sempre me perguntava como ele devia estar, se ainda se lembrava de mim, se perguntava por mim...no fundo eu acho que queria que ele piorasse, que me chamassem de volta desesperados, mas eu sabia que não podia.
A velha havia passado quinze anos de sua vida se martirizando, remoendo, sendo amarga e mal-amada por não ter tido coragem de lidar com sentimentos juvenis, por não ter dito o que sentia. Em compensação, a atual havia fechado o ciclo, fechado aquela ferida de quinze anos, se libertado e libertado sua adolescente interior. Me sentia melhor agora, mais livre para tentar me apaixonar por , mais livre para a vida, embora às vezes a culpa por possivelmente provocar em algum tipo de empatia para depois abandona-lo me corroesse.
Aquele espaço vazio que sempre pertencera a frustração do sentimento por , agora era ocupada pelo restaurante, por Dom, por meus irmãos e meus pais. Todas essas coisas bastavam se eu não pensasse muito, por isso, evitava ficar sozinha, mas caso acontecesse, bebia.
Pensei que com o fechamento do ciclo com , as coisas entre e eu fossem melhorar, acender. Mas tudo continuava exatamente igual, éramos um casal bonito de aparências, mas era como se fossemos de plástico, reais enquanto alguém brinca, estáticos e falsos quando ninguém está olhando. continuavam saindo com seus novos amigos do trabalho e academia, não nos víamos mais com tanta frequência por causa da loucura dos nossos horários, mas ninguém reclamava.
Eu estava disposta, encerrar tudo com era o caminho, a porta que eu precisava que fosse aberta para que e eu tivéssemos uma chance, pelo menos do meu ponto de vista. Por isso, ainda não havia desistido de tentar, tínhamos mais de onze anos juntos, isso devia significar alguma coisa e eu sabia que talvez fosse a hora de tentar esquentar as coisas entre nós.
– Preocupada com o que? – Giovanni se aproximou de repente, sentando-se ao meu lado na varanda.
– Quem te disse que estou preocupada? – Desconversei e tomei mais um pouco de gin.
– Suas sobrancelhas juntas, Frida Kahlo. – Ele disse.
– Nada, só pensando na vida...– Nessas horas eu sentia falta de ter uma irmã, poderia perguntar a ela sobre como apimentar as coisas entre e eu, pensei enquanto observava Giovanni e seu cabelo preto penteado impecavelmente.
– O Eau de Mer não funciona hoje? – Giovanni quis saber.
– Não, hoje todo mundo foi passar a noite com a família. – Contei enquanto relaxava no banco de madeira da varanda.
– Que chefe boa, preciso de alguém assim na minha vida. Não teria uma vaga para mim no restaurante, teria?
– Sempre tem, aliás, no momento acho que precisamos de uma atração. Sabe como são essas coisas, preciso deixar meus clientes animados. – Falei e bebi mais um pouco.
– Esse ano foi um ano estranho...– Giovanni suspirou. – Estranho, mas não de um jeito ruim, só estranho. Sabe, eu e você aqui, bebendo e falando qualquer coisa...eu não esperava, mas fico tão feliz que esteja acontecendo.
– É, eu acho que deixamos aquela infantilidade toda para trás...eu deixei. – Suspirei e bati duas vezes na perna dele.
– Sabe a maior mentira que nos contam? – Giovanni quis saber.
– Não, qual é?
– Que vamos estar maduros quando crescermos. – Eu ri abafado e balancei a cabeça. – É sério. – Giovanni riu. – A gente cresce achando que adultos são maduros e sabem o que fazem, mas não é assim, fazemos o que podemos com o que temos no momento.
– Alguns são maduros sim.
– Está falando de quem? Por que se for de mim, sinto muito por te contar, mas eu não sou nem um pouco. Agora mesmo, estou desesperado. – Giovanni pousou o tornozelo esquerdo sobre o joelho direito e abriu um braço, apoiando-o no encosto do banco.
– Olhe só para mim...você é o único que sabe de tudo. Eu deveria ser alguém centrada, sensata, não uma mulher amarga e rancorosa que remoeu por mais de dez anos uma paixão adolescente não correspondida. – Expirei pesadamente e encolhi o corpo quando um vento frio vindo da praia nos atravessou.
– Não, não era só sobre o . – Giovanni repuxou os lábios e o nariz numa careta. – É bem mais que isso, era sobre você no final das contas. Sobre perceber o quanto se pode melhorar, mudar...se te serve de consolo, eu conheço muitas pessoas bem mais velhas que você e que ainda não se deram conta disso.
– Admiro você e o jeito com que tenta me fazer sentir melhor com meus erros. – Brinquei.
– E que atire a primeira pedra aquele que nunca agiu por impulso, cego de emoção ou paixão. Ou aquele que sempre sabe o que está fazendo. – Giovanni sorriu e me puxou para perto. – Você está diferente agora, todos sabem e sentem isso. Está mais madura, é claro, mas ao mesmo tempo, está mais dura, eu chuto um pouco mais triste.
– Me acha triste?
– Gentil, mas triste. – Giovanni confirmou.
– Talvez esse seja o preço de ser adulto e maduro. Lidar com as tristezas de frente, como se elas fossem só nossas responsabilidades. – Falei. – Eu estou bem. Acho que estou conhecendo e entendendo a mulher que me tornei depois dos últimos meses.
– Faz sentido. – Ele assentiu. – Eu ainda acho que você devia vê-lo.
– O trato era só falar dele para mim caso algo realmente sério acontecesse, algo do tipo morte. – Disse e me afastei dele, endireitando a coluna e bebendo mais um pouco de Gin.
– Tudo bem, mas eu acho que...– Giovanni tentou argumentar.
– Vanni, e tudo relacionado a ele está no passado. Morreu junto com a velha , a nova não o conhece e é melhor assim. Melhor para os dois. – Respirei fundo e olhei em seus olhos. – Eu fico feliz de que agora você o visite, não precisa que eu volte para a vida dele e bagunce tudo de novo e eu não quero que ele invada a minha novamente.
– Não queremos que quem invada o que? – perguntou, nos surpreendendo quando surgiu na soleira da porta.
– Oliver. Sabe como ele é, espaçoso, vulgar, nenhum bom senso. – Respondi rápido e me levantei.
– Tem certeza? – tentou ler meu olhar.
– Absoluta. – A nova mentia um pouco melhor, pensei.

🍁



A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO – Movido! Não é sem tempo. Deixai-vos mover e como viestes, ide embora. Saí daqui. Vi imediatamente que tínheis o ar de móvel.
DOM – Como! Que móvel?
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO – Um tamborete.
DOM – Disseste bem! Vem e assenta-te em cima de mim.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO – Os burros foram feitos para carregar e vós também.
DOM – As mulheres foram feitas para carregar e vós também.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Não serei o rocim que vos carregará, se é a mim que vos referis.
DOM — Ai de mim, bondosa Catita. Não te serei pesado, porque, vendo-te jovem e leve...
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Muito leve para deixar-me apanhar por um casca-grossa como vós. Entretanto, peso o que deveria pesar.
DOM — Deverá convir-me! Sem dúvida alguma.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO— Falastes bem, mas como um falcão.
DOM — Ó rolinha de lento voo! Que falcão irá apanhar-te?
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Oh! Para uma rolinha, vai ele buscar um falcão!
DOM — Vamos, vamos, minha vespa; na verdade, ficais irritada demais.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Se sou vespa, cuidado com meu ferrão.
DOM — Só terei, então, um remédio: arrancá-lo.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Sim, se o imbecil for capaz de saber onde está.
DOM — Quem não sabe onde a vespa tem o ferrão? Na cauda
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Na sua língua.
DOM — Na língua de quem?
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Na vossa, se falais de caudas. E sabe o que mais? Adeus.
DOM — Como! Com minha língua na vossa cauda? Ora, vinde aqui. Sou um cavalheiro, bondosa Catita.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Vou então experimentar. – Dá–lhe um tapa.
DOM — Juro que vos esmurrarei, se baterdes de novo.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — E perderíeis as armas de cavalheiro. Se me baterdes, não sois cavalheiro, e se não sois cavalheiro, não precisais de armas.
DOM — Seríeis um arauto, Catita? Oh! Coloca-me então em teu armorial!
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Qual é vosso timbre? Uma crista de galo?
DOM — Um galo sem crista, contanto que Catita seja minha galinha.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Jamais sereis meu galo. Cantais como um capão.
DOM — Vamos, Catita, vamos. Não vos mostreis tão azeda.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — É meu modo, quando vejo uma maçã silvestre.
DOM — Ora, aqui não há nenhuma maçã, e, portanto, não precisais ficar tão irritada.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Há sim, há.
DOM — Então, deixai que eu a veja.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Se tivesse um espelho, eu a mostraria.
DOM — Como! Estais querendo dizer que mostraríeis meu rosto?
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Muito esperto apesar de tão moço.
DOM — Por São Jorge! Sou muito mais moço do que vós.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Estais, entretanto, muito acabado.
DOM — É por causa das preocupações.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Não tenho preocupações.
DOM — Ouvi-me, Catita. Garanto-vos que não escapareis assim.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Se ficar, vou irritar-vos. Preciso ir embora.
DOM — Não, de modo algum. Eu acho que sois extremamente gentil. Disseram-me que éreis brusca, indômita, desagradável. E, agora, vejo que eram grandes mentiras. Acho-te deliciosa, jovial, extremamente cortês. Só que tens a palavra lenta, mas doce como as flores na primavera. Não sabes franzir o cenho, nem sabes olhar de soslaio, nem morder os lábios, como as moças geniosas. Enfim, ao invés de sentires prazer em pronunciar palavras injuriosas, recebes teus adoradores com benevolência e afabilidade. Por que o mundo fala que Catita é coxa? O mundo caluniador! Catita é ereta e esbelta como o talo da aveleira, morena como a noz e mais doce que a amêndoa. Oh! Deixa-me ver-te andando! Tu não és coxa!
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Idiota, vai dar ordens a teus criados.
DOM — Alguma vez, adornou Diana um bosque, como Catita enfeita esta sala com seu ar de princesa? Oh! Sê Diana e que Diana se transforme em Catarina e, então, que Catarina se torne casta e Diana, terna.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Onde estudastes todo este belo discurso?
DOM — É um improviso nascido de meu espírito materno.
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Mãe espirituosa com um filho estúpido.
DOM — Não sou inteligente?
A GAROTA DE VESTIDO VERMELHO — Sim, conservai-vos quente.
DOM — Tal é minha intenção, doce Catarina, mas em tua cama. Portanto, deixando de lado toda esta conversa, expressar-me-ei em termos claros: vosso pai consente que sejais minha esposa. Vosso dote já está estipulado e, queirais ou não, casar-me-ei convosco. Agora, Catarina, sou o marido que vos convém. Logo, por esta luz que me faz ver tua beleza, beleza pela qual te adoro, tu só deves casar-te comigo, já que nasci para dominar-te e transformar uma Catarina selvagem em uma Catarina submissa como as outras gatinhas caseiras. Está chegando vosso pai. Nada de negativas! Devo e quero casar-me com Catarina.


– Meu Deus, estamos ricos. Ele é muito bom. – sussurrou quando mais personagens entraram em cena.
– O Heath Ledger perde feio. – Ri entredentes. – Eu estou quase acreditando de verdade que ele está apaixonado por aquela garota.
– Sabe, eu conheço um agente. Era cliente do escritório. – Giovanni sussurrou atrás de nós, se inclinando para as poltronas da frente.
– Do que você está falando? É só uma peça da escola. – Girei o rosto em sua direção.
– Ah, não mesmo. Pelo que estou vendo, ele poderia ser o próximo Homem-Aranha. – Giovanni piscou. – Quem é Dylan O'Brien, Taylor Lautner perto de Dom ?

Não que eu fosse do tipo superproterora, mas pensar no meu menino, tão jovem e longe de mim me deixava de cabelos em pé. Dom agora tinha treze anos, mas eu ainda o via como meu bebê, o meu engraçadinho e inocente bebê. Era difícil dissociar o adolescente desenvolto, lindo e carismático que interpretava Petruchio, de Shakespeare, do meu menininho doce e que adorava massagem nos pés.
Mesmo assim, era impossível negar que ele realmente tinha talento. A Megera Domada, de Shakespeare era uma das minhas obras favoritas de todos os tempos, já havia me cansado de ver suas adaptações e mesmo assim, nenhuma era igual àquela. Dom prendia a atenção de todos, você não podia deixar de olhá-lo, ficava preso aos seus gestos e expressões.
A família estava reunida mais uma vez para prestigiá-lo, era bonito de ver e eu podia dizer, com tranquilidade que estava mais que transbordando de orgulho.

🍁



– Eu apostaria numa paixão. – Provoquei Dom assim que pisamos em casa. – Sabe, eu até gostei dela. Podia convidá-la para um jantar ou almoço no Eau de Mer.
– Mãe. Esquece. Sem chances. – Dom rolou os olhos. – Vou dormir, boa noite.

Dom abraçou a mim e a e foi para o quarto, nos deixando a sós na sala.
– Será que tem alguma coisa para comer? Estou morrendo de fome. – se dirigiu à cozinha e eu fui atrás dele.
– Viu como a barriga de Susan estava linda? – Perguntei distraída enquanto assistia ele resgatar ingredientes para um sanduíche na geladeira.
– Vi, essa criança não nasce nunca, não é? Quer dizer, já aconteceu tanta coisa. – riu.
– Está perto, agora já não deve demorar. – Lembrei sorrindo. – Sabe, eu sinto saudades dessa época. Um bebezinho novo, dessa chegada misteriosa.
– É legal, sinto saudades de um bebê também, mas o meu está gigante. – sorriu de novo e eu o acompanhei.
– Nós ainda temos tempo...se...bom, se quisermos, temos tempo. – Falei vacilante.
– Tempo? – Ele arqueou uma sobrancelha.
– Tempo para termos outro bebê, outro filho.
...– suspirou e olhou para o chão. Eu o havia pego de surpresa e ele sequer sabia o que dizer. – Por que nós teríamos outro bebê?
– Por que não teríamos? – Devolvi a pergunta e me levantei para me aproximar dele. – Estamos bem, Dom está grande, você está bem no trabalho, eu também. Por que não pensar nisso?
– Você vai largar a cozinha do restaurante para cuidar de um bebê? De novo? Vai atrasar sua vida para isso, de novo? Ou não pensou nisso? – perguntou sério.
– Eu não me importaria. – Dei de ombros. – Eu sempre quis ter filhos, depois do Dom não pensei mais nisso por um tempo. – Suspirei. – Mas agora eu já estou bem, tenho duas estrelas, o restaurante vai bem. Charles poderia assumir a cozinha com tranquilidade.
– Mas e a minha opinião? Quando ela parou de contar?
– Nunca. Nunca parei de me importar com a sua opinião, por isso estamos conversando. – Falei tocando seu rosto.
– Você está me comunicando seu plano, é o que parece. – Acusou.
– Não é como se eu já estivesse pensando nisso por semanas. A ideia me ocorreu hoje, quando vi a Susan e Giovanni juntos. – Expliquei.
, eu amo você, você sabe...– Ele disse.
– Mas? – Sorri triste e encarei o chão.
– Mas não é o que eu quero. Eu nunca sonhei em ser pai, nunca foi meu plano, mas você melhor que ninguém sabe o quanto eu amo o Dom e o quanto amo ser o pai dele. O Dom foi um acidente, não acho que seja interessante para nenhum de nós outro bebê. Só atrapalharia e bagunçaria nossas vidas.– explicou.
– Atrapalharia? – Repeti pasma.
– Nós estamos bem assim, como estamos. Por que mudar? – Ele piscou, beijou minha testa e saiu da cozinha com seu sanduíche em mãos.

estava certo sobre o fato de que um bebê bagunçaria nossas vidas, mas atrapalhar era uma palavra forte demais. Sempre soube da falta de desejo dele por mais filhos e isso nunca havia me incomodado, até agora. De um jeito completamente torto, eu imaginava que, se nossa relação começou quando tivemos nossa primeira gravidez, poderia fazer com que ela renascesse com um segundo. De certo modo, entendia aquilo como um sinal de que não estava tão interessado nesse renascimento, não tanto quanto eu.
Mas eu sequer podia culpa-lo, não podia por simplesmente não saber se, ele sempre fora distante assim como eu, mas agora, por buscar essa aproximação eu podia perceber, ou se algo novo havia o feito perder o interesse. Já faziam alguns meses em que eu tentava resgatar ou construir uma paixão por , mas tudo pareceu não cooperar. Absolutamente tudo.

🍁



A vida sempre segue, não importa onde estejamos, ela sempre segue. O destino é implacável, não se pode lutar contra ele, nem contra as consequências de nossas ações. Vivemos tão focados no que não temos ou no que perdemos, que esquecemos de valorizar o que temos, até perdermos aquilo também e então se torna tarde demais.
Refletia sobre isso enquanto encarava a prateleira de massas, completamente distraída do que acontecia no supermercado. Sobre aceitar a falta de interesse do meu marido, me acostumar com ela ou se tudo não se passava de impressões de uma mente carente e atribulada.
estava agindo normal e eu em desespero, ou ele estava distante e eu agindo normalmente?
. – Alguém me cutucou de repente. – Como você vai? – Gina estava bem ao meu lado, sorrindo e cheia de amor para dar. – Gina. – Sorri fechado. – Bem, obrigada. E você e as crianças? Harry?
– Tudo bem, todos bem. Me deixando maluca, se quer saber. – Ela riu e eu a acompanhei, por educação. – Faz tanto tempo que não te vejo, os últimos meses foram muito tumultuados.
– É, bebês, restaurantes. Coisas. – Lembrei sorrindo.
– Eu queria te parabenizar, soube das estrelas do restaurante. – Ela disse tocando meu braço com delicadeza. – Fiquei muito feliz por você. – Ela sorriu e eu, como em raras ocasiões, sorri também.

Gina era dócil, extrovertida e comunicativa, não era como se fosse o meu oposto, mas eu sempre fiz a linha mais ranzinza. Nunca entendi a necessidade que algumas pessoas tinham de sorrir e falar alto antes das dez e, na vida, Gina era essa pessoa, sorrindo e cumprimentando a todos cinco da manhã. Eu gostava dela, às vezes, até sentia falta, mas não era tão animada, tão esposa feliz e pronta para eventos beneficentes e sociais da sociedade de Paradise.

– Tem algum problema? – Gina perguntou depois de me encarar em silêncio por dois segundos.
– Problema? Não. Por que diz isso? – Arqueei uma sobrancelha e balancei a cabeça negativamente.
– Eu não sei, você parece...eu já vi esse olhar. – Ela piscou. – Parece o mesmo olhar que você tinha, pouco antes de sair da cidade.
– O que? – Indaguei surpresa. – Não. Não tem nada a ver. Que olhar?
– Acuada, confusa, agitada. – Ela respondeu sem vacilar.
– Eu tô bem. – Tentei sorri para soar convincente, mas o máximo que pude oferecer foi uma careta estranha.
– Querida...– Gina me lançou um olhar carregado de pena e empatia e me puxou para o canto, perto da parede e longe de alguns olhares. – O que houve? Problemas em casa.
– Não é nada...só que...– Vacilei de novo. – Está tão na cara assim? – Quis saber depois de um longo suspiro.
– Sim, mas é diferente. – Ela disse ajeitando o cabelo atrás da orelha. – Geralmente você tem outro olhar, um olhar diferente, misterioso, carregado, intenso. Dessa vez, é diferente.
– O problema é diferente. – Dei de ombros.
– O que houve? – Ela me encorajou a dizer com o olhar. Gina não seria a primeira pessoa que eu pensaria em contar algo daquela magnitude, mas quando se está precisando desabafar, geralmente não pensamos racionalmente em para quem contamos. – Claro, acho que todos temos esses momentos. – Ela sorriu tranquila.
– Eu não sei...quero dizer, parece que não se importa muito. Eu tento...sabe, apimentar a relação, mas para ele parece tudo tão banal e normal. – Contei.
– Ele perdeu o interesse por você...de repente? – Gina investigou.
– Não, eu pelo menos acho que não. – Disse eu. – Nós nunca fomos aquele casal cheio de fogo, se é que me entende. Sempre fomos tranquilos, sem nada disso. Mas...acho que eu só tenha percebido tarde demais, agora que quero ser esse tipo de casal, ele já não saiba mais como.
, se eu fosse casada com um marido como o seu, os bombeiros seriam chamados todos os dias. – Ela brincou e eu dirigi um olhar zangado e pasmo a ela. – Só estou dizendo que seu marido é...bom, ele é o tipo marido dos sonhos. Rico, lindo, musculoso, charmoso, gentil, bom pai...como vocês podem não ter...fogo? – Ela sorriu.
– Bom, eu não sei. Só...sei lá, não quero falar de fogo. – Balancei a cabeça rapidamente, tentando afastar as imagens tenebrosas que minha mente havia formado.
– Você acha que ele tem uma amante? – Ela sussurrou.
– Uma amante? – Devolvi chocada.
– Ei, mulher. Não grite, seja discreta. – Ela repreendeu. – Sabe, um homem, quando não quer fazer...aquilo...geralmente é por isso.
– Mas eu não disse que não quer fazer...meu Deus, Gina. – Franzi o cenho chocada.
– Você disse que vocês não têm mais fogo, que você tenta e ele não responde. – Gina lembrou. – Mulher, homens são homens. Isso nunca falha, se ele não quer você, é porque encontrou em outro lugar.
– Não, não o . – Balancei a cabeça negativamente. – Primeiro, não faria isso, nunca, ele é leal, tem um código. Segundo, eu sempre fui muito distante, talvez ele esteja se comportando como sempre, mas agora eu percebi. Terceiro, eu propus outro filho, talvez ele só esteja fugindo da ideia.
– Vocês sempre foram distantes, indício de amante número um. – Ela apontou. – Não quer mais filhos, pode ser o número dois.
– Ou não, talvez ele só não queira.
– Nunca desconfiou de nada? Não chega tarde? Perfumes diferentes? Interesse recente por dietas e por ficar mais bonito? – Ela arqueou uma sobrancelha.
– Não, nada disso. – Neguei de pronto. – Quer dizer, não que eu tenha percebido...
– Sei. – Ela franziu os lábios, ainda desconfiada. – Se não tem outra mulher na jogada, é mais fácil de resolver.
– Como? – Perguntei ansiosa.
– Bom, comece com uma roupa nova. Calcinhas de renda são ótimas. – Ela piscou. – Surpreenda seu homem, faça alguma brincadeirinha. E mais, não são os homens que escolhem ter filhos, nós que escolhemos, se você quiser, terá. – Ela piscou ladina e mordeu a ponta da língua.
– Acha que vai dar certo? Porque eu já tentei lingeries novas, não mudou muita coisa. – Contei.
– Vinho, amendoins. Abacaxi também, mas isso vai ser bom para você. Faça ele comer muito abacaxi antes. – Ela gargalhou.
– Uau, Gina. Eu realmente quase me enganei, quase pensei que tivesse deixado seu lado pervertido na adolescência. – Falei completamente chocada.
, não seja tão inocente. – Ela gargalhou. – Vamos, quero te levar a uma loja. Tem uns produtinhos especiais lá que acho que vão servir para o seu caso.



🍁



Eu encarava a lua pela janela aberta, estava cheia e brilhante, bem como eu queria para um dia daqueles. Dom estava na casa de Gina, dormiria por lá, teríamos a noite toda só para nós. Passava pouco das oito, mal podia esperar para arrancar aquele maldito conjunto de lingerie de renda, que apesar de belíssimo, incomodava e me rendia boas coceiras, somando isso a alergia tradicional pós-depilação.
Não me lembrava de ansiar tanto pela chegada de na vida.
Teríamos uma noite de amor e reconciliação, porque segundo Gina, aquela lua e aquele dia do mês nos era propício a isso. Não era uma mulher crédula, muito pelo contrário, mas escolhi me agarrar a toda e qualquer crença. Pela primeira vez, resolvi dar ouvidos a todas as esposas desesperadas pela atenção de seus maridos que havia conhecido na vida, até me culpei pelas tantas vezes que as julguei como carentes e desesperadas, apenas por estarem dispostas a fazer de tudo pelo casamento.
Enquanto esperava, resolvi ler um pouco, na tentativa de conter minha ansiedade e parar de pensar no que devia estar fazendo que não chegava em casa. Gabriel García Márquez foi minha companhia escolhida, adorava os dilemas do doutor Urbino e sua esposa Fermina, Amor nos Tempos de Cólera era definitivamente um dos meus livros favoritos da vida.
E então, com o passar das páginas e as brigas do doutor com sua esposa pela falta de sabonete, as horas se passaram.
Oito e meia...
Oito e quarenta...
Oito e quarenta e sete...
Oito e cinquenta e dois...
Oito e cinquenta e oito...
Nove e dois...
Nove e quinze...
Nove e vinte e...

Então adormeci.

Senti algo incomodar meu pescoço, como uma pedra dentro dos travesseiros, abri os olhos devagar, piscando algumas vezes, o livro estava embolado junto a meu travesseiro, um pouco babado, com duas ou três páginas amassadas. Corri os olhos pelo quarto, confusa, sinal nenhum de . Algo não estava certo, pensei.
Tateei os cobertores em busca do celular, não existem segundos mais agonizantes do que os segundos que leva até encontrar notícias de algo ou alguém. Quando enfim encontrei o aparelho, haviam duas mensagens de , nelas ele avisava que se atrasaria por causa de mais um happy hour com os amigos.
Arremessei o celular na parede.
Era inacreditável. O que tornava tudo pior era que a mensagem fora enviada apenas as dez da noite. O descaso, o desinteresse... realmente não se importava muito. Talvez pensou que eu estivesse no restaurante, não fez por mal, um anjo sussurrou ao meu ouvido. Ele não liga, sequer se importou em avisar mais cedo, não se importa com comigo, um diabo sussurrou no outro ouvido.
Sentia raiva, ódio, frustração. A sensação de ser a última opção de alguém não era nada agradável, acabava com minha estima e me fazia questionar quão culpada eu era pôr tudo aquilo. Talvez agisse assim depois das minhas fantasias com , mas talvez não, talvez sempre fora assim e eu apenas demorei para perceber.
Levantei pisando firme e agradecendo mentalmente por Dom não estar em casa, separei um cobertor e um travesseiro e desci as escadas rumo a sala. Tentava me concentrar na raiva que sentia no momento e sufocar o pensamento intrusivo que piscava no fundo da minha cabeça: E se fosse o ? Eu teria adormecido enquanto o esperava? Eu teria que esperá-lo?
Não era justo nem certo pensar aquilo, tampouco queria que voltasse a perambular pelos meus pensamentos e ressurgir das cinzas mais uma vez.
Joguei o coberto e o travesseiro sobre o sofá sem qualquer gentileza e me dirigi a cozinha, precisava de um chá, um chá forte, talvez até um calmante. A verdade talvez estivesse na minha cara e talvez eu até merecesse aquilo, tinha uma amante. Aquela frase ecoava pela minha mente e apertava meu coração, esmagava junto meu ego e minha confiança, até mais que aos meus sentimentos.

🍁



Sabe o silêncio incômodo que acontece nos filmes antes que algo ruim aconteça? O suspense antes que o espírito arraste o homem curioso para o sótão? A calma antes que a boneca endemoniada apareça na tela?
Aquele era o clima em minha casa quando desci para o café da manhã naquela manhã.
Precisaria ir mais cedo ao restaurante, havia muito trabalho a ser feito e como geralmente não trabalhava aos sábados, lá estava ele no sofá. Parecia estar de ressaca, quando me ouviu nas escadas, se ajeitou e sentou-se no sofá, encarando a fera.
Não o cumprimentei, me dirigi a cozinha e lá fiquei, preparando uma omelete, mas devagar, como uma criança que desobedece os pais, ou um cachorro que destrói uma almofada, ele surgiu na cozinha, observando-me.
– Bom dia. – Cumprimentou.
– Bom dia. – Respondi entredentes sem olhá-lo.
– O que aconteceu? Eu fiz alguma coisa? – Perguntou como um cão que fica perdido durante a mudança dos donos.
– Você acha que fez alguma coisa? – Devolvi enquanto servia a omelete e começava a comer.
– Eu não sei. – Suspirou. – Eu não entendi nada. Quando cheguei a porta do quarto estava trancada e essas coisas estavam no sofá. Por que eu tive que dormir no sofá? – Ele quis saber em seu tom dócil e calmo de sempre.
– Dormiu no sofá porque quis. – Provoquei enquanto me apressava em comer, queria causa algum conflito. Precisava gritar com ele, brigar, pôr para fora toda raiva que estava ruminando desde a noite anterior. – Tem quarto de hóspedes e Dom não passou a noite em casa.
– Eu não pensei nisso. – Ele admitiu. – Mas você não me respondeu, .
– Pense. – Pedi. – Tire suas próprias conclusões.

Estava nitidamente irritada e magoada e, considerando a calma de , ele sabia disso, só não entendia a razão. Por isso, antes que ele respondesse, terminei de comer e voltei para o quarto, mas desta vez, ele me seguiu.
– Ei, ei...– chamou. – Espera, me conta o que aconteceu.
– Isso aconteceu! – Gritei arremessando a lingerie da noite anterior em .
– O que...– apertou os lábios e baixou a cabeça quando entendeu o que as peças significavam. – Poxa. Eu sinto muito, . Por que não me avisou?
– Era o que eu devia ter feito, não é? Informado a meu marido que gostaria de passar a noite com ele. Quem sabe agendar, solicitar um horário com três dias de antecedência. – Ironizei.
– Não é assim. – respirou fundo. Seu tom calmo e apaziguador enquanto eu queria brigar me irritava.
– Não é assim? ? Eu te esperei aqui a noite toda! – Berrei. – Avisei que Dom não dormiria em casa. O que você queria? Qual é o seu problema? Qual dificuldade que tem em voltar para casa? Questionei.
– Eu não sabia que estaria em casa. – Ele se defendeu. – Pensei que estivesse no restaurante, como sempre.
– Claro que pensou. – Ri incrédula. – Por isso só pensou em me avisar as dez da noite. Que droga, !
– Okay, desculpe, eu devia ter avisado antes. – ergueu duas mãos em defesa.
– Devia...resta saber quanto tempo antes...
– O que você quer dizer? – indagou confuso, com as mãos na cintura, ainda segurando o conjunto de renda.
– O que aconteceu? – Perguntei enquanto me sentava na cama, apoiando os cotovelos nos joelhos e cobrindo o rosto com as mãos. – Porque nos últimos tempos parece que a última coisa que quer fazer é voltar para casa. Sempre há um coquetel, happy hour, pescaria...– Lembrei e passei a encará-lo, queria ver sua reação. – Você conheceu outra mulher?

Os olhos de se arregalaram, ele expirou pesadamente e franziu o cenho, depois balançou a cabeça e juntou as sobrancelhas. Estava incrédulo.
– Como você pode pensar uma coisa dessas de mim? – Agora ele tinha o tom de voz alterado.
– Só estou querendo saber o que aconteceu. – Disse. – Eu só fiz uma pergunta, pode responder com sim ou não.
– Uma pergunta? – se aproximou. – Como se sentiria se eu te perguntasse isso?
– Ofendida, mas eu responderia, sim ou não. – Dei de ombros.
– Simples assim, não é?! Tudo é muito simples quando se trata de você. – Ele acusou.
– O que você quer que eu pense? – Levantei-me gritando. – Você nunca está em casa, não me procura mais, quase nunca. – Acusei. – Só se lembra de me avisar que vai passar a noite fora horas depois de decidir isso. Nem ter filhos comigo você quer...
– Então é sobre isso. – riu sem humor. – Ainda é sobre o assunto dos filhos.
– Não, não é! – Defendi. – Não é sobre filhos, é sobre o que isso significa, . Sobre o que tudo isso significa. Cada fato, cada coisinha que aconteceu e que está acontecendo entre nós, juntas elas me dizem isso. Dizem que você está me traindo.
– Às vezes eu pensava no Giovanni dizia de você. – falou calmamente, de repente. – Que era egoísta, autocentrada, que só se importava consigo mesma.
– Não mude de assunto. – Pedi irritada.
– É aí que está, . – Ele me encarou. – Não estou mudando de assunto, porque tudo é justamente sobre isso. Eu saio, sempre saí. Em Nova York ou aqui em Paradise, desde o primeiro mês eu saio para fazer minhas coisas, ver meus amigos, me divertir. E você nunca se importou. Sabe porquê?
– A culpa é minha?
– Sabe porquê, ? – Ele repetiu aumentando o tom de voz. – Porque em Nova York você estava ocupada sendo uma chef brilhante, famosa, estrela. – riu novamente, mas sem qualquer sinal de graça. – Aqui, você não se importou também. Pelo menos não enquanto estava passando todo tempo no hospital. Mas agora, já que decidiu que quer ter mais filhos, decidiu que quer ser uma mulher diferente...
– Eu me afastei do hospital, me afastei do por você. Por nós. – Falei nervosa.
– Eu nunca pedi para se afastar dele.
– Como não? – Alterei meu tom novamente. – Você praticamente disse que eu dava mais atenção a ele do que a você e ao Dom. Disse até que se sentiam sozinhos aqui.
– Mas nunca pedi para nunca mais visita-lo. – se defendeu. – Isso foi uma escolha sua.
– Claro. – Expirei. – Eu me afastei do porque eu quis, assim você não precisa se afastar dos seus amigos. E eu não posso cobrar que seja alguém mais presente, apenas por ser um capricho meu. Não é isso?

não respondeu.

– Eu sei que ninguém aqui é perdidamente apaixonado por ninguém, nós já falamos sobre isso. – Lembrei. – Você já falou comigo sobre isso. Mas você ainda é meu marido, se me sinto carente, é normal que procure você. Mas me avise caso isso venha te causar algum incômodo. – Falei, abriu a boca, pensando no que responder, mas não disse nada. – Vou para o restaurante.

Disse e sai o mais rápido que pude do quarto e da casa, antes que desmaiasse por não conseguir respirar.

🍁



– O crème brûlée. – Ouvi, como se alguém gritasse longe de mim.
– O crème brûlée, chef! – Charles gritou.

Com o grito ensurdecedor do sous-chef, voltei para a realidade e percebi que estava queimando a sobremesa com o maçarico. Droga, xinguei por pensamento.
– Algum problema, chef? – Ele perguntou preocupado.
– Não. – Respondi rápido. – Na verdade, sim. – Corrigi depois de me afastar dois passos. – É inadmissível que eu esteja cometendo esses erros.
– Acontece. – Ele deu de ombros e sorriu.
– Não acontece não. – Disse com firmeza. – Na cozinha, o que separa os amadores dos profissionais é a forma com que se lida com um erro.
– Entendi. Pode deixar que vou anotar essa.
– Vou lá fora respirar um pouco, colocar a cabeça no lugar para voltar. – Avisei.
– Chef. – Charles chamou. – Mas você tem visitas no salão.
– Visitas? – Arqueei uma sobrancelha, incerta se devia receber quem quer que fosse.
– Uma visita, na verdade. – Ele sorriu gatuno.

Visitas não eram comuns ali, aquela era minha regra. Familiares, amigos ou conhecidos só poderiam entrar no salão caso fossem comer, ou se algo muito importante tivesse acontecido. Parecia uma medida dura, mas num restaurante novo, o entra e sai de pessoas aleatórias que estão ali apenas para dar um oi, poderia significar uma estrela a menos.
Ainda não estávamos abertos, então supus que devia ser algo sério. Precisei lutar contra a vontade de dar meia volta quando encontrei o rosto sorridente de Giovanni que acenava de uma mesa perto da janela.
– Você de novo. – Suspirei ao me sentar.
– É, vim deixar meu currículo. – Ele zombou.
– Não temos vagas, lamento. – Respondi impaciente.
– Então é verdade... – Ele concluiu me observando.
– O que é verdade?
– Fui a sua casa hoje. – Ele contou e eu rolei os olhos. – Encontrei o um pouco tonto, de ressaca, com mau hálito e um travesseiro no sofá.
– Ainda não entendi. – Estreitei o olhar.
– Ele comentou alguma coisa de uma briga que tiveram, mas disse que se eu queria detalhes era para perguntar para você. – Explicou cruzando as pernas. – E considerando seu mau-humor e impaciência, então é verdade.
– Você veio aqui correndo, em pleno sábado, só para saber a fofoca? – Ironizei.
– Claro que não. – Giovanni se inclinou sobre a mesa e segurou minhas mãos com delicadeza. – Fiquei preocupado.
– Claro, me desculpe. – Ri sem humor e Giovanni torceu os lábios. – Não, é sério, eu peço desculpas, mesmo. Só ri porque não tenho ideia do que mais dizer.
– Por que vocês brigaram?
– Eu nunca achei que diria isso, mas aqui vai. – Suspirei pesadamente antes de continuar. – Eu não tenho segredos com você, vou te contar o motivo real de tudo isso.
– Estou empolgadíssimo. – Giovanni falou e se inclinou mais sobre a mesa. – Não sobre sua briga, mas para saber o verdadeiro motivo. – Ele corrigiu.
– Depois que me afastei do , pensei que seria uma boa ideia tentar aquecer as coisas entre e eu. Acho que o espaço que o sentimento que eu tive por poderia ter sido ocupado por sentimentos por , isso se eu quisesse.
– Sei. – Giovanni assentiu.
– Eu tentei, tenho tentado, me empenhado, mas parece que ele está sempre distante, com outros planos. – Respirei fundo, ainda me incomodava pensar que tudo aquilo devia ser por minha culpa. – Eu não sei se sempre fomos assim, se sempre fomos frios um com o outro ou se isso começou por eu ter me afastado dele, por ter buscado muito o .
– Conversar sobre isso com é uma opção? – Meu irmão perguntou.
– Não.
...aconteceu alguma coisa entre você e o nesse tempo que vocês passaram juntos? – Giovanni mudou seu tom sereno e leve para uma austeridade quase paternal.
– Como assim? Quer saber se nós nos envolvemos ou algo do tipo? Eu e o cara acamado? – Indaguei com desdém.
– É. – Ele sorriu. – Deixa, seria estranho...
– Sim, aconteceu. – O interrompi e Giovanni empalideceu. – Você perguntou, eu estou dizendo a verdade.
– Meu Deus! – Ele pôs a mão sobre o coração. – Senhor, . Você é casada e ele está...meu Deus, o que você fez?
– Ei, não é bem assim. – Me defendi. – E fale baixo, por favor. Você é o único além de nós que sabe disso.
– Eu acho que estou tendo um derrame, por favor, chame um médico. – Pediu ele.
– Menos, Giovanni. Não foi a sua esposa, fui eu.
...ele sabe?
– O que você entendeu quando eu disse que você é o único a saber além de nós? – Balancei a cabeça negativamente.
– Como foi isso? Quando foi isso? – Giovanni perguntou enquanto usava um guardanapo para se abanar.
– As coisas foram acontecendo...não foi planejado. – Contei. – Eu comecei a visita-lo e quando percebi não conseguia pensar em outra coisa. Depois da minha viagem, quando ele piorou, foi difícil. Difícil para nós dois. Quando você esteve na minha casa e me aconselhou a falar com ele, eu segui seu conselho. Eu falei e...bom, sabe como são essas coisas...
– Não, , não sei. – Giovanni me interrompeu.
– Nós já tínhamos nosso código de comunicação. – Lembrei sorrindo, era uma boa memória. – Eu conseguia ler o olhar dele, era fácil traduzir e ele...o olhar do me decifra de um jeito que nunca...– Giovanni coçou a garganta e eu retomei um pouco mais focada. – Certo, como eu ia dizendo, depois que falei com ele, nós nos beijamos.
– Eu estou passando mal. – Giovanni dramatizou e eu rolei os olhos de novo.
– Depois disso ficamos ainda mais cúmplices. – Em seguida, as lembranças angustiantes também surgiram. – Mas eu me sentia mal, mal por estar apaixonada por e amar .
– Ah, que bom que em algum momento você se lembrou que tinha um marido.
– Eu não sou uma pessoa tão fria assim. – Devolvi. – Eu pensei em me separar, estava pronta para isso.
– Mas você não fez, não que eu saiba. – Ele concluiu.
– Não pude. – Eu sorri. – Entendi que precisava escolher minha família.
– Agora tudo faz sentido. – Giovanni disse. – Você e suas visitas ao , o jeito que reagia a ele, o jeito que ele reagia quando eu dizia seu nome durante as visitas...– O interrompi.
– Como assim? – Indaguei.
– Espera, me deixa terminar. – Ele pediu e eu assenti. – Seu estado quando parou de vê-lo, pedindo para não saber nada sobre ele, nunca mais. Seu foco aqui e em recuperar o tempo perdido no casamento. O ...agora tudo faz sentido.
– O que tem o ? – Perguntei angustiada.
– Achei que não quisesse saber mais dele...
– Tem razão. – Concordei e expirei, encostando a testa na mesa.
. – Giovanni chamou e eu o encarei. – Mas, você não consegue se lembrar se já eram distantes como casal antes de virem para cá?
– Eu sei que parece péssimo. – Sorri fraco. – Mas nós trabalhávamos demais. e eu, nossos horários não combinavam quase nunca, ele durante o dia e eu durante a noite.
– Mas e a parte de casal...sabe? – Ele perguntou envergonhado.
– Sexo? – Questionei e Giovanni tossiu. – Quando tínhamos tempo ou vontade. Sempre achei que todos os casais fossem assim. – Eu sorri.
– O que te fez mudar de ideia?
– Essa cidade. – Admiti. – Mas principalmente....
– E mesmo assim você quer tentar recuperar o tempo perdido? – Ele perguntou. – Deve estar pesado esse saco de culpa que você carrega.
– Eu nunca devia ter saído dessa cidade, essa é a verdade. – Confessei passando as mãos pelo cabelo. – Mas já que saí, não devia nunca ter voltado.
– Eu acho que devia sim. – Disse ele. – Afinal, você se tornou uma pessoa mais legal. Está mais próxima a família, aos seus amigos, tem seu novo restaurante bem onde sempre sonhou. Sabe, , as pessoas acham que autoconhecimento é uma coisa fácil, tranquila, mas não é verdade. Se conhecer é doloroso, você conhece as partes boas, mas também conhece as ruins.
– Nem me diga.
– Mas é, entre tantas chances que você está tendo, uma delas é a de ver o que tem de problema no seu relacionamento. – Giovanni dizia, mas foi interrompido quando seu celular tocou, ele desligou rapidamente o aparelho e voltou-se a conversa. – Problemas esses que você nunca sequer deu importância o suficiente para nota-los. Acho que isso é uma chance, e você pode usá-la como quiser. Você escolheu ficar com seu marido, precisa escolher enfrentar esses problemas.
– É, eu sei disso, mas na prática não é tão...– O toque do celular de Giovanni me interrompeu e ele pediu perdão ao atender a ligação.
– O que foi? – Disse ele ao telefone. – Fale devagar, não estou entendendo.

Rapidamente Giovanni pôs-se de pé, então empalideceu novamente e caiu sentado na cadeira, balbuciou algumas coisas ao telefone e desligou.
– Vanni. – Chamei. – O que foi? Quem morreu?
– Eu...eu...– Ele gaguejou. – Minha filha vai nascer.
– Como é? – Pulei de pé. – Vamos para o hospital.
– Hospital?
– É Giovanni! Você é o pai. – Falei e me aproximei dele, segurando e o balançando pelos ombros. – Quem é o pai dessa criança, Giovanni? Quem é o pai da minha afilhada?
– Eu. Eu. – Ele arregalou os olhos. – Meu Deus, eu sou o pai dessa criança. Eu sou o pai de uma criança.

🍁




Novamente eu estava no hospital, era a primeira vez desde que havia tomado a decisão de me afastar. Me concentrava na espera ansiosa, tentando distrair minha mente de tudo que pudesse me fazer correr para o corredor do terceiro andar. Era mais difícil do que havia imaginado que seria, talvez por ter relembrado algumas coisas enquanto contava tudo a Giovanni, talvez por ainda não o ter esquecido. Mamãe e papai estavam ao meu lado, sentados na sala de espera, estava na máquina de cafés, tentando ainda se livrar da ressaca.
Não havíamos trocado duas palavras desde que ele chegara ao hospital. Reconhecia que muito do meu esforço era por culpa, mas a frustração de ter me aprontado, comprado lingerie, me depilado e me hidratado, enquanto ele bebia com amigos ainda me deixava inflamada. Percebia o olhar dele em mim o tempo todo, o conhecendo como conhecia, sabia que ele estava maquinando formas de resolver aquele conflito. era pacifista demais até para brigar, mesmo quando estava certo. Além disso, a conversa com Giovanni não saia da minha cabeça. Estava sendo egoísta com novamente, por mais chateada que estivesse, ainda tinha minha parcela de culpa naquilo, e não era uma parcela muito pequena.
– Oi, família! – Giovanni surgiu pelas portas duplas da sala de espera com um sorriso lindo no rosto.
– Como estão as coisas? – Mamãe perguntou.
– Nasceu. – Ele comemorou. – Uma linda menina. A minha menininha.

Giovanni desapareceu em meio a um grande abraço coletivo, beijos e muitos parabéns. Era seu primeiro filho e Vanni estava resplandecente, como se fosse o homem mais feliz do mundo, e eu acreditava que era. Aos poucos, pudemos ver Susan e o bebê, primeiro meus pais, depois e eu.

– Ela é a coisa mais linda do mundo todo. – sorriu abobado.
– Não ainda, para mim ela é, mas reconheço que ela parece um joelho. – Susan sorriu.
– Como você está, querida? – Eu perguntei.
– Bem. – Ela piscou. – Pensei que fosse morrer de dor, mas quando ela nasceu, tudo sumiu.
– É uma menina linda. – Elogiei sorrindo.
– Ela é, ela é. – Susan sorriu olhando para a filha.
– É a minha cara. – Giovanni constatou e nós rimos. – Nossa, olhem só. Ela é minha cópia.
– Menos, Giovanni. Bem menos. – Eu ri.

🍁




– Eu lamento não ter avisado e lamento não ter voltado cedo para casa ontem. – disse assim que abrimos a porta de casa.
– Eu também lamento. – Respondi seca e me dirigi as escadas, mas me segurou pelo braço.
– Ei, vamos nos resolver. – Pediu. – Ficar nessa briga não vai nos levar a lugar nenhum.
– Eu não quero me resolver, , eu quero brigar, quero gritar, xingar você. Te bater. – Confessei irritada.
– Então faça. – Disse. – Faça. Se você vai se sentir melhor e acha que vai ajudar, faça.

O encarei com estranheza. Do que ele estava falando? Pensei. Não faria nada daquilo, não era assim.
– Não vou fazer isso. – Franzi o cenho.
– Se não vai, como eu já tinha certeza, então vamos conversar. – olhou em meus olhos e segurou meus ombros. – De uma vez por todas.

Eu assenti e o segui até o sofá. Remoer uma briga não faria de mim uma pessoa melhor, uma mulher, esposa, mãe ou chef melhor. Por mais irritada que estivesse, talvez devesse mesmo conversar.
– Eu sei que eu vacilei, você tem todo direito de estar assim. – Ele começou a se explicar, mas eu o interrompi.
– Você me ama? – Questionei.
– Amo, claro que amo. – Ele respondeu sorrindo.
– Giovanni foi até o restaurante hoje, nós conversamos.
– E? – me incentivou a continuar.
– Conversamos sobre o que aconteceu. – Contei. – Eu sei que nunca fomos muito devotados, na verdade eu já perdi as contas de quantas vezes assumimos que nunca fomos algo como casal. – Ri fraco e ele apertou os lábios. – Mas essa é a nossa realidade, eu sei disso e sei que você também sabe. Eu acho que decidi tentar ser diferente, uma paixão mais calorosa e tudo isso que os outros casais fazem. Sei que estou exigindo que algo mude do dia para noite apenas porque eu acho que tem que ser.
– Tem feito bem para você falar com Giovanni. – brincou. – Meu amor, nós estamos casados há mais de dez anos. Isso de paixão avassaladora e incandescente é coisa de início. Além disso, nós nunca fomos assim. Se você quiser mudar, se quiser tentar, a gente tenta. – Disse.
– Tudo bem. – Sorri envergonhada. – Já tem dado certo por todo esse tempo, não vamos mudar.
– Mas você vai ficar bem com isso? – Quis saber preocupado.
– Eu vou. Acho que estou tentando compensar alguma coisa. – Admiti.
– Nossa liberdade sempre foi um dos pontos altos do nosso casamento. – Ele sorriu. – Nossa individualidade, o desprendimento...– Ele citou, mas eu o interrompi novamente.
– E o quanto isso não tem a ver com o quanto nos importamos?

Questionei e congelou, franziu o cenho e pareceu não saber o que dizer. No fundo, nós sabíamos a resposta e por mais cômodo que fosse negar, nós sabíamos que aquela verdade estava emergindo e não levaria muito tempo até que nada pudesse reprimi-la novamente.
– Eu ainda estou carente, ainda preciso de sexo. – Anunciei. – Dom só volta depois do almoço. Por favor, faça o que não fez ontem e me...– me interrompeu.
– Por favor. – Pediu pondo-se de pé e me puxando pela mão. – Vamos logo. Vamos antes que minha dor de ressaca volte.

🍁



Os dias que faltavam até o natal passaram depressa. Por mais que a mágoa por ter sido deixada de lado por ainda estivesse fresca em minha cabeça, eu tinha escolhido deixar para lá. Aceitar que nosso casamento era e sempre seria daquele jeito, parar de tentar romantizar ou idealizar coisas, tentar sentir por a paixão intensa que julguei sentir por .
era um bom amigo, bom parceiro, não podia reclamar do marido, era injusto tudo aquilo, principalmente por causa de uma paixão adolescente esquisita. Depois de contar a verdade para Giovanni, passei a imaginar se em algum momento não me aproveitei da fragilidade de , enquanto satisfazia minhas fantasias. Ao mesmo tempo, se tornava cada vez mais difícil reprimir a imagem dele dos meus pensamentos.
– Com quem você está falando? – Perguntei a quando percebi que ele não me seguia com o carrinho de supermercado, ao invés disso, parecia completamente atento a seu celular.
– Oi? – Ele pareceu notar minha presença.
– Com quem você está falando? – Indaguei.
– Ah, é uma amiga. – Contou. – Na verdade ela é irmã de um dos sócios da construtora. É uma pessoa muito gentil, e eu estou me dando muito bem com o irmão dela.
– Eu devo abaixar ao passar pela porta? – Eu quis saber franzindo o cenho. devia estar brincando, pensei.
– O que? Claro que não. – Ele riu. – Eu só estive pensando. – segurou meus ombros enquanto eu escolhia uma manteiga. – O restaurante está dando certo, Dom está bem na escola, Paradise é uma boa cidade.
– O que está tentando fazer? Quer me convencer a fazer o que? – Perguntei curiosa.
– Ouvi algumas conversas sobre estarem à procura de mais um sócio. – Ele contou.
– É sério? – Girei para encará-lo. – Tipo, ser sócio da construtora?
– É. Oficialmente, ser chefe. – sorriu pousando a mão em minha cintura.
– Caramba. – Expirei mordendo o lábio. – Isso é...doido.
– Eu sei, eu sei. – Ele assentiu. – Eu já ouvi algumas indiretas sobre isso e a irmã de um dos sócios, é com ela que eu estava falando, me contou que ele tem falado de mim. É uma pessoa gentil, você vai gostar dela quando a conhecer. – explicou quando eu franzi os lábios numa careta ciumenta.
– Caramba...– Suspirei. – Mas isso também significa ficar aqui em Paradise, não é?
– É, mas não necessariamente. – Disse ele. – Pode ser que futuramente outras filiais se abram...sabe como funciona. Eu queria sua opinião antes de qualquer coisa.
, sabe, eu admiro seu tato em tocar nesse assunto no meio das nossas compras.– Provoquei sorrindo.
– Eu sou meio sonso. – Ele riu.
– Você está fazendo isso por você ou por mim? – Perguntei olhando em seus olhos.
– É algo que eu realmente quero fazer. – afirmou. – Já temos o restaurante aqui, mas eu sei do seu plano de abrir filiais em todo país. Sempre soube que o restaurante não te prenderia aqui.
– Se é o que você quer fazer, então nós faremos. – O beijei rapidamente. – Não acredito que vou dizer isso, mas aí vai, vou adorar ficar em Paradise por tempo indeterminado, podendo ser prorrogado.
– Obrigado, obrigado mesmo. – sorriu grande e sorriu com os olhos.– Acho que vou escolher um vinho para comemorar.
– Boa ideia. – Pisquei.

Não seria eu a egoísta a estragar os planos de , nós nos apoiávamos, nos suportávamos, aquele era o nosso tipo de relação. Ele havia me apoiado incondicionalmente com o restaurante, nada mais justo do que apoiá-lo quanto a seu trabalho ou qualquer outra coisa. Antes de tudo, éramos amigos e eu devia isso a ele.
– Acho que os truques funcionaram. – Uma voz cantarolou ao meu lado, fazendo-me virar para busca-la.
– Gina. – Constatei, não muito feliz.
– Eu estava ali vendo vocês. – Ela sorriu. – Fiquei tão feliz que deu certo.
– Você sempre surge, não é? – Ironizei.
– O segredo é sempre estar onde a emoção acontece. – Ela piscou, rindo como se não tivesse entendido minha ironia.
– É...estou vendo. – Desviei o olhar e voltei minha atenção as geleias coloridas que entupiam meu campo de visão.
– Anda, me diga o que houve. – Gina me cutucou. – Vocês se acertaram?
– Não. – Contei um pouco receosa. – Sim e não na verdade. me deu bolo.
– Está brincando. – Ela arregalou os olhos.
– É. – Continuei sem encará-la. – Ele só avisou que não viria no meio da noite. Nós brigamos, mas já nos resolvemos.
– E qual foi a desculpa dele?
– Olha, pode parecer estranho, mas não é. – Avisei e achei melhor enfatizar aquilo com o olhar. – Sei o que vai dizer e o que deve estar pensando, mas nós sempre fomos assim, livres, sem muita pressão ou coisa do tipo. Ele saiu com amigos do trabalho, esqueceu de avisar, não esperava que eu o estivesse esperando.
– Tá brincando? - Ela arregalou os olhos.
– Não. - Dei de ombros. – Mas está tudo bem, não tem motivos para remoer isso.– Falei.
. – Ela chamou num sussurro. – Você está tendo um caso? – Gina indagou de repente, me pegando desprevenida.
– O que disse? – Arregalei os olhos e senti as pernas perderem a força.
– Um caso. Traindo seu marido, vivendo aventuras amorosas com alguém por aí, as escondidas.
– Não, claro que não!
– Só existem duas razões para uma mulher agir assim, com essa calma toda numa situação como essas. – Ela arqueou as sobrancelhas e começou a falar, como se passasse adiante todo conhecimento da humanidade. – Ou ela não liga porque está tendo um caso, ou porque está cega de paixão. Você há de convir que num casamento de mais de dez anos, ninguém está apaixonado por ninguém há pelo menos cinco anos.
– Claro que não. – Defendi. – Você está simplificando demais, mas não está no meu lugar, não sabe como são as coisas.
– Não mesmo. – Ela empinou o nariz. – Se meu marido fosse um loiro, alto, com olhos azuis e corpo escultural que me deixou depilada, hidratada e cheia de maldade para beber com os amigos, eu estaria louca.
– Essa é a diferença entre nós. – Falei sem me importar em ser ou não rude.
– Vou te perguntar uma coisa, talvez você não goste. – Ela disse depois de algum tempo em silêncio e eu rolei os olhos. – É um relacionamento de aparências? Um casamento plástico?

Eu arregalei os olhos e senti uma raiva avassaladora subir pela garganta. Como ela podia pensar algo assim? Como tinha coragem de fazer uma pergunta daquelas?
– Claro que não, sua maluca. – Esbravejei.
– Okay, não está mais aqui quem falou. – Gina levantou as mãos em rendição. – Mas é que é o que parece, . Pelo menos para quem está de fora.
– Você não sabe de nada. – Acusei sem paciência. – Não pode julgar meu casamento pelo que conversamos. Por duas ou três palavras.
– Duas ou três? – Gina também se irritou. – Querida, eu não vou dizer o que estou pensando agora porque seria cruel. Você pode se irritar, brigar, como sempre fez quando era contrariada, mas isso não muda a verdade.
– Qual verdade? – Devolvi. – A que você está tão entediada em seu próprio casamento que precisa se ocupar com o dos outros?

O rosto de Gina congelou, os olhos azuis se arregalaram e a boca ficou entreaberta por alguns segundos, estava nitidamente ofendida, chocada. Então, de forma repentina, Gina deu-me as costas e se foi, sem responder, sem gritar de volta ou qualquer coisa parecida. Simplesmente se foi.
– Aquela era a Gina? – perguntou surgindo atrás de mim.
– Droga de cidade. – Xinguei baixo.
– O que foi? Não me diga que está repensando o plano. – Ele perguntou preocupado.
– Não, não vou voltar atrás. É só que...– Balancei a cabeça, precisava me acalmar. – As pessoas me estressam.
– Agora me conte uma novidade. – Zombou .
– Vou te contar uma. Sabe o que mulheres entediadas, que devotam suas vidas a seus maridos fazem em seu tempo livre? – Questionei e projetou o lábio inferior numa careta confusa. – Fofoca.

🍁



Era véspera de natal.
Estava enrolada aos cobertores, protelando ao máximo para sair daquele ninho de calor. Nisso, a velha ou a nova eram iguais, nunca trocavam um bom edredom por nada. Dormir não incomodava ninguém, ao mesmo tempo ninguém me incomodava, todos ganhavam.
As últimas semanas haviam sido tranquilas e proveitosas, agora era sócio da construtora, o restaurante ia bem e para completar a paz, eu não gastava mais energia tentando mudar a realidade do nosso casamento. Ainda estava magoada com Gina, não devia ter permitido que ela se reaproximasse desde o início, mas o mal já estava feito. Também não havia contado nada sobre nossa briga ou as últimas novidades para Vanni, meu ex-odiado irmão estava tão ocupado em ser pai, era injusto perturbá-lo com meus dilemas.
Dom estava com meus pais, ajudando a decorar a casa e a escolher uma boa árvore de natal. Me lembrava bem daqueles momentos, de quando éramos crianças e saíamos em procissão junto a meu pai em busca da árvore perfeita. Geralmente chegávamos em casa molhados pela neve e batendo o queixo de frio, mamãe sempre se irritava e falava por horas, mas depois fazia biscoitos de gengibre e servia leite quente com caramelo. Fui arrebatada por aquela saudade e decidi que iria até lá, talvez sobrasse um pouco de leite quente para mim também.
Enquanto me arrumava, o telefone tocou desesperadamente, mas o ignorei. Em seguida, uma mensagem, talvez fosse de Dom ou Giovanni, me convidando para relembrar os velhos tempos regado a leite quente e biscoito de gengibre.
Quebrei o braço, estou no hospital. Merda, pensei.

🍁



Lá estava eu, novamente naquele hospital, a segunda vez em menos de um mês, desta vez era por e seu braço quebrado. Mal podia acreditar que uma simples partida de hóquei no gelo poderia causar uma fratura daquelas. Antes de encontrar a porta de seu quarto, pude ouvir o burburinho de conversas e risadas, parecia que um estádio inteiro lotado de gente estava aglomerado naquele quarto de hospital. Ao abrir a porta, percebi que não só parecia, além de , vários homens com uniformes de hóquei estavam no quarto, falando alto, fazendo piadas infames e gargalhando.
– Minha esposa. – anunciou quando percebeu a minha chegada.
– Meu Deus, . – Balancei a cabeça negativamente.
– Então está é a famosa ? – Um homem de cabelos grisalhos esticou a mão para me cumprimentar. – Muito prazer.
– Como vai? – Sorri ao apertar sua mão.
– Sim, essa é a minha querida esposa. – sorriu. – E aqui estão o pessoal do trabalho e o do hóquei. – Ele apresentou. – Que no final, são os mesmos.
– Como isso aconteceu? Como você quebrou o braço? – Quis saber ao me aproximar. – Você está...está bêbado?
– Talvez só um pouquinho. – Ele sorriu de novo, agora com os olhos fechados.
– Não brigue com ele, . – O homem grisalho disse. – Ele as vezes pensa que ainda é um garoto, mas foi divertido, com certeza foi.
– É, tenho certeza que sim.
– Eu estou bem. – sussurrou. – É natal, ponha um sorriso no rosto, meu amor.
– Eu sei disso. – Anui sem graça e fiquei em silêncio, enquanto toda aquela algazarra recomeçava.

Desde nossa chegada a Paradise, eu ainda não havia sido apresentada aos novos amigos de , agora entendia o porquê. Homens geralmente se tornavam ainda mais bobos quando em bando e aquela era uma prova. Bêbado e com o braço quebrado, parecia um universitário chapado depois dos jogos, ou depois das festas no campus, nem sombra do que eu conhecia como marido.
– Eu não acredito que você está aqui. – Uma voz feminina falou alto ao abrir a porta, capturando minha atenção. – O que foi que você fez dessa vez, ?

A mulher atravessou o mar de jogadores de hóquei rapidamente e abraçou , um abraço demorado demais.

– Boa tarde para você também. – Eu disse.

A mulher girou o rosto e ao cruzar o olhar com o meu, a reconheci de pronto.

– Ah...oi. – Ela cumprimentou sem graça.
, essa é...– tentou apresentá-la, mas eu o interrompi.
– Eu sei quem ela é. – Falei cerrando os dentes.
– É bom te ver, . – Ela tentou sorrir. – Faz tanto tempo que não vem ao hospital.
– Aparentemente tempo demais.

Joy.
De onde meu marido conhecia a terapeuta de ? Quando é que os dois desenvolveram aquela intimidade toda?

– Jojo, essa é a , minha esposa. – me apresentou depois de algum tempo.
– Acho que o nome dela é Joy, . – Tentei corrigi-lo.
– É, ele sabe. – A garota sorriu. – Jojo é meu apelido.
– Ah. – Expirei.

Antes que eu pudesse retorquir, arranhar o rosto de alguém ou coisa parecida, meu celular tocou, desliguei, mas alguém parecia extremamente interessado em falar comigo. Murmurei um pedido de desculpe, preciso atender e deixei o quarto.
. – Falei ao atender.
– Chef, é o Charles. – Ele disse. – Estamos com problemas aqui. Não teremos nada de frango, o fornecedor disse que não pode entregar até o ano novo.
– Me diz que você confundiu o natal com primeiro de abril? – Pedi e uma enfermeira que passava chamou minha atenção, mostrando um aviso de silêncio.
– Ele teve um problema, por causa da neve. – Charles explicou.
– Me lembra de colocar esse fornecedor na lista vermelha. – Pedi enquanto caminhava pelo corredor, impaciente e irritada. – Mas que ótimo, que ótimo. Um problema nunca vem só.
– Aconteceu alguma coisa, chef?
– Não, tudo bem. – Falei. – Meu marido quebrou o braço e está bêbado, além disso tem um time inteiro de hóquei no gelo falando alto e cheirando a cerveja no quarto. – Contei e outra enfermeira me pediu para maneirar no tom de voz.
– Eu tenho uma sugestão, se ajudar. – Ele tentou amenizar o clima, minha voz irritada e exaltada não era comum fora das cozinhas.
– Por favor, me surpreenda.
– Conheço o fornecedor daquele nosso concorrente francês, ele é da cidade. – Charles disse. – O preço diminui, mas talvez teremos um pouco mais de trabalho. É um produtor pequeno.
– Confiável? – Perguntei e respondi com um careta a outro pedido de silencio de um enfermeiro.
– Sim, muito. – Ele garantiu. – Dou a minha palavra.
– Eu não estou com cabeça para decidir qualquer coisa hoje, infelizmente. – Assumi enquanto caminhava até a janela no final do corredor. – Se puder resolver isso, prometo que te dou uma semana inteira de folga.
– Pode deixar comigo, chef. – Ele riu. – E me avise se precisar de ajuda com os jogadores bêbados também.
– Vou jogar água fria. – Brinquei. – Fique tranquilo, eu vou sobreviver. Mas muito obrigada, de verdade. Até depois, nos falamos.

Desliguei o celular, mas mantive minha atenção a pequena foto de Charles. Ela era uma boa pessoa, teria futuro na cozinha e se algum dia eu me fosse de Paradise, certamente ele assumiria a cozinha do Eau de Mer.
Suspirei de olhos fechados, sentia o desanimo me abraçar só de imaginar ter que voltar para aquele quarto cheio de jogadores bêbados, mas ainda tinha algumas perguntas para fazer a Jojo, lembrei com desdém.


🎵 Dê play na música aqui, se necessário coloque para repetir – Gavin James – Always 🎵



Quando levantei o rosto, o que atingiu meu campo de visão me cegou, fez o chão sob meus pés desaparecer, o tempo parar, meu coração acelerar.
De repente, por uma fatalidade do destino, estava eu diante a porta do quarto dele, não podia ser, pensei. A porta estava entreaberta, mas não era possível enxergar com clareza o interior do quarto. Devia dar meia volta, voltar para e ficar lá, ao lado dele, de onde nunca devia ter saído.
Mas quando o assunto era ELE, quando o assunto era , meu cérebro cedia o comando ao coração, que nunca fazia nada direito. Sabia que não devia e não podia, mas naquele instante nada era maior do que a vontade de abrir aquela porta e adentrar aquele cômodo.
E assim fiz.
Meu coração perdeu completamente o ritmo quando meus olhos encontraram . Depois de tanto tempo, toda aquela ansiedade, empolgação e vontade ainda estavam ali, por mais que eu lutasse incansavelmente para reprimi-la, usando todas as minhas forças. dormia tranquilamente, olhos fechados, expressão serena, ele parecia bem. O rosto estava corado, os cabelos maiores e penteados com a intenção de parecerem despenteados, havia engordado também, aquele era a personificação do que povoara minha imaginação desde o dia que deixei Paradise.
Lindo, absolutamente perfeito.
Precisei de algum esforço para não me aproximar demais, para não o tocar, mesmo consumida pela vontade. Era ele, era o que estava ali, depois de todo aquele tempo e eu, mais uma vez, estava completamente hipnotizada.
Sequer percebi quanto tempo havia se passado, pareceram segundos, mas sabia bem que poderiam ter sido minutos, horas. E então, de repente, ele abriu os olhos.
Não soube mais como respirar, nem como falar, ar sumiu dos pulmões, tudo que eu via e sentia, tudo se resumia aos olhos escuros e penetrantes de em mim. Aquela conexão mágica e elétrica que era capaz de aquecer cada célula do corpo, agitar e causar um turbilhão em casa veia estava de volta. Ele parecia surpreso, verdadeiramente, mas com o tempo eu já não tinha tanta certeza se conseguia ler seu olhar com tanta qualidade.
– Me desculpe. – Balbuciei com um nó na garganta. – Eu não quis te acordar, não quis te perturbar. Eu já estou indo, não precisa se preocupar comigo. – Tentei de explicar enquanto andava de costas em direção a porta, mas o olhar de ainda estava preso ao meu e agora sua boca estava entreaberta num suave sorriso. – Desculpe vir aqui de novo, deve estar pensando que sou uma maluca. Sinto muito por isso, mas foi um acidente. Eu sei que devia perguntar como você está, perguntar se quer que eu fique ou vá, como da outra vez, mas não posso. Nem mesmo devia estar aqui, eu sinto-muito.

Eu falava sem parar, mas sequer sabia o que falava, as palavras simplesmente jorravam da minha boca sem controle nenhum. Eu queria correr, só não havia decidido ainda se queria correr para ou de .
– Eu preciso ir, me desculpe. – Falei e me virei, só conseguiria sair daquele quarto se não tivesse mais o olhar de sobre mim. – Você...eu tenho que ir.

– Fique, .

Minhas pernas ficaram fracas, eu congelei no lugar. Era .


8

Meus pés não me obedeciam mais, tudo pareceu congelar ao meu redor e só o que me restava era o eco do som daquela voz que reverberava em minha cabeça. Voz que há alguns meses atrás eu daria tudo para ouvir mais uma vez, que povoava meus sonhos, meus devaneios, mas ao mesmo tempo, o som que cheguei a pensar nunca mais ouvir.
A voz de , um pouco mais rouca do que me lembrava, mas forte do mesmo modo. O que devo fazer? Pensei, mas nenhuma ideia me ocorreu. Não conseguia nem mesmo entender o que sentia, se a vontade de correr que era manifestada pelo formigamento em minhas pernas se devia a ansiedade para ir até ele, ou fugir pela porta e nunca mais voltar.
Não sabia o que dizer, o que fazer, o que pensar nem o que sentir naquele instante, mal podia acreditar que havia escutado aquilo, me pedindo para ficar. Meu cérebro havia parado de funcionar no instante em que pisei naquele quarto, e sem seu auxílio para pelo menos tentar soar educada, não pude domar o medo e o turbilhão de sensação que me afogavam por dentro, por isso corri para fora do quarto sem olhar para trás.
Parei no corredor, buscando algum apoio nas paredes e respirando fundo, tentando não hiperventilar e desmaiar ali. havia dito, havia falado comigo, depois de todo aquele tempo. Meu coração batia tão forte que tinha a impressão de poder vê-lo se movimentar por baixo da blusa, minhas pernas estavam fracas, mãos geladas e corpo tenso.
Desde o dia em que havia decidido me afastar dele, tinha evitado qualquer contato, informações médicas ou qualquer outra notícia, precisava esquece-lo. Por causa disso não fazia ideia de que havia retomado a fala, que estava tão melhor e que era capaz de falar por si mesmo, sem precisar de intérpretes ou traduções de olhares. Mas no fundo, uma voz pessimista e inconveniente me fazia questionar se o que ouvi fora realmente ele ou apenas meu cérebro pregando uma peça de mal gosto. Devia voltar lá para me certificar, pensei, mas o que diria? Poderia ter dúvidas sobre ouvir sua voz, mas não tinha nenhuma sobre tê-lo acordado.
Aquela certamente seria uma das decisões que tem potencial de mudar tudo, o futuro se divide em duas possibilidades, o que poderia ter sido e o que de fato será. Se decidisse voltar até aquele quarto, poderia dar adeus a todo progresso, por menor que fosse, na tarefa de esquece-lo, enquanto se desse as costas e fosse embora, significaria repetir tudo que havia errado há quinze anos. Abandonar assim como havia prometido não fazer, abandonar o sentimento e voltar para uma vida que não tinha tanta certeza se queria ter.
Hesitei depois do primeiro passo, meu olhar fora atraído para o quarto no início do corredor, o quarto de , onde meu marido estava. Sentia culpa por pensar em voltar ao quarto de , por isso resolvi mudar a direção dos meus passos e voltar para os bêbados jogadores de hóquei.
A cada passo dado meu coração se apertava um pouco, e mais um pouco, até que quando estava a distância de um braço da porta, já mal podia respirar. Eu devia estar com , mas não queria, não queria, precisava voltar lá, precisava voltar para ele e então corri.
Surgi na porta de com o peito denunciando minha respiração descontrolada, subindo e descendo, por mais que tentasse controlar e soar calma. Os olhos dele alcançaram os meus no instante em que ouviu o som dos meus passos e ele pareceu surpreso com meu retorno e sorriu de canto.
- Você. – Disse enquanto entrava no quarto, vacilante.
- Eu. – Ele sorriu e eu sorri de volta.

Então era verdade, ele havia mesmo falado, havia mesmo ouvido o som de sua voz. Não estava louca ou fantasiando, me pediu para ficar, depois de todo aquele tempo, ele havia me pedido para ficar. Estava ali, bem na minha frente, sorrindo para mim e então, tudo pareceu fazer sentido de novo.
- Você parece bem. – Me aproximei mais alguns passos. A luz do sol que atravessava o quarto, intensificada pelo brilho da neve na janela, parecia deixa-lo ainda mais iluminado e com aspecto saudável.
- Eu acho que estou. – sorriu abafado e endireitou a postura, sentando-se na cama. – É uma boa surpresa. Você. – Ele franziu o nariz, depois de passarmos alguns instantes em silêncio.
- Para mim também. – Confessei.
- Já faz algum tempo. – Inclinou a cabeça sutilmente, parecia me observar, tentando buscar algo diferente.
- É, uns seis meses eu acho. – Dei de ombros, encaixando as mãos no bolso da calça que usava por não saber o que fazer com elas.
- E vinte e cinco dias. – disse e sorriu quando falhei em impedir que a surpresa tomasse minha feição. – O que? Não é como se eu tivesse muita coisa para fazer.
- Eu sinto muito. – Murmurei envergonhada, encarando o chão e fugindo de seus olhos.
- Não. – Ele balançou a cabeça negativamente e sorriu. – Não diga isso. – Pediu e eu suspirei. – Você também parece bem. Soube do restaurante, Eau de Mer, não é?
- Soube? – Indaguei confusa, mas logo me lembrei da ligação de com meu irmão. – Giovanni. – Sorri e ele assentiu. – Acho que sim, estou bem.
- Eu estou feliz em saber. Gostei do nome a propósito, é simples, original e difícil de pronunciar. – ironizou e eu sorri.
- Sabe como é, eu adoro fugir do óbvio. – Pisquei e levantei um dos ombros.
- Você é sempre surpreendente. Mas antes de fazer minha reserva preciso saber se você tem menus adaptados, uma piscada para carnes, duas para vinhos...uma careta para sobremesa? – brincou, fazendo referência a nossos códigos e eu senti que podia derreter a qualquer momento.
- Droga, sabia que eu estava esquecendo alguma coisa. – Bati a mão espalmada na testa, teatralmente, fazendo-o sorrir. – Mas não se preocupe, me encarrego pessoalmente de traduzir.
- Não sei, não quero ocupar uma chefe com estrelas Michelin. – Ele fingiu estar realmente preocupado.
- Não, claro que não. Nós no Eau de Mer fazemos questão de que todos nossos clientes tenham uma experiência completa de imersão à cultura francesa. Eu sempre cuido disso pessoalmente, sempre ando com dois ratos, uma garrafa de vinho e três maços de cigarro no bolso do avental. – Debochei e ele gargalhou.

Aquela era definitivamente a coisa mais linda que já havia tocado meus ouvidos. A gargalhada de , principalmente depois de uma piada minha, era satisfatório demais para colocar em palavras. Além de que, aquecia meu coração de forma inimaginável, como se eu fosse uma adolescente de novo.
- Não acredito que você fez a piada com os ratos. – Ele balançou a cabeça negativamente, ainda rindo. – Não é um pouco errado? Sua família é francesa. Talvez agora eu esteja um pouco preocupado com a salubridade do seu restaurante. - ironizou. – Vou avisar a Giovanni que teremos que fazer uma inspeção.
- Não, não se ocupe com coisas tão pequenas. – Pedi esfregando as pontas do dedo indicador e polegar e me aproximando um pouco mais dele. - Me diga, . – Perguntei, fingindo falar sério. – Você prefere ratos pretos ou marrons?
- Não. Não. – Ele gargalhou de novo e pensei que poderia ficar ali pelo resto do dia se ele continuasse a rir assim. - Agora toda vez que pensar nisso vou imaginar os ratos. Obrigada, , por destruir toda imagem saudável que eu tinha da França.
- Posso substituir por pombos e o kit para viagem inclui alguns croissants. Do dia anterior.
- Você pode sair do meu quarto? – apontou para a porta, ainda rindo. – Você devia ser proibida por todos os órgãos de turismo de falar qualquer coisa. O que você ganha com a propaganda negativa? Passagens mais baratas? É um cartel? Pirâmide?
- Não, só a alegria por fazer sua mente criar essas imagens. – Dei de ombros, enquanto ria um pouco mais alto do que o adequado para o ambiente hospitalar. sorriu de novo e então suspirou, mantendo os olhos fixos em mim.
- Senti falta disso.
- De uma perdida fazendo piadas horríveis enquanto você implora por paz e sossego? – Perguntei, desviando o olhar e voltando com as mãos para o bolso.
- De ver você sorrir. – Disse e eu engoli o fôlego.

Não consegui dizer nada, como se minhas cordas vocais desaprendessem seu trabalho. No fim, talvez não tivesse nada para falar, pelo menos nada que devesse ser dito por mim a outro homem além de meu marido. continuava com olhar preso ao meu, conectado como se eu nunca tivesse ido embora, como se o tempo não tivesse passado, não parecia chateado ou ressentido com minha ausência, e sim genuinamente feliz com minha presença.
- Aí está você. – Uma voz divertida ecoou porta a dentro, nos fazendo piscar e desviar o olhar rapidamente. – Estava procurando por você e escutei sua voz no corredor. – Sorriu quando olhei para ele.
- . – Sorri amarelo e percebi que correu os olhos por nós dois, confuso e um pouco surpreso, estreitando o olhar como se nos analisasse. – Você devia estar de pé?
- Eu estou bem. – Ele sorriu, caminhando até mim, para perto do leito de . – Estou liberado para ir para casa, aproveitar o natal. Quem é seu amigo? – Quis saber se referindo a , mais sorridente que o normal.

Enfim havia chegado o momento, estava prestes a destruir a cortina que separava minhas duas versões, apresentando para , talvez algo mudasse ou tudo continuasse o mesmo. Meu estômago revirou de medo e ansiedade, mesmo não tendo ideia da razão.
- , esse é o . – Falei, olhando para o homem sentado na cama. – E ...- Hesitei, parte de mim não queria que ele se lembrasse e meu status de relacionamento, mesmo duvidando que havia simplesmente esquecido essa parte. – Bom, esse é meu marido, .
- É um prazer enfim conhecer você. – sorriu simpático, esticando-se para apertar a mão de . – Ouvi falar muito de você.
- Igualmente. As duas coisas – sorriu sem mostrar os dentes e enfatizou a segunda palavra. Seu olhar ainda parecia investigar e analisar minhas reações quanto a aquele encontro, passando pelo meu rosto e pela figura alta e levemente embriagada de .
- Você parece bem. – comentou, passando a mão no cabelo e sorrindo. – Fico feliz em saber que está melhorando.
- Obrigada. – agradeceu com um sorriso fechado. – Búfalos. - Ele comentou fazendo menção ao time que hóquei no uniforme de , ao mesmo tempo que arqueava a sobrancelha ironicamente, dirigindo o olhar para mim.
- É. – sorriu abafado, esticando o uniforme como se quisesse relembrar seus detalhes. – Você gosta?
- Não, gosto de esportes que posso praticar sem parecer pré-histórico. – ironizou e sorriu de canto, fazendo alusão as constantes brigas que aconteciam nas partidas de hóquei.
- Que esporte? – cruzou os braços sobre o peito e riu incrédulo, conhecia aquela postura. – Xadrez? – Debochou.
- Futebol. – falou, maneado a cabeça devagar e torcendo os lábios num sorriso sarcástico.
- E o quão pré-histórico é correr atrás de um cara e se jogar sobre ele? – provocou.
- Ninguém briga em campo durante uma partida de futebol. – deu de ombros, sorrindo pretensiosamente.
- Essa é a sua crítica? As brigas? – balançou a cabeça negativamente e soltou uma risada nasalada. – Entendo, hóquei realmente não é um esporte para qualquer um.
- Eu aposto que não. – endireitou a coluna, arqueando uma sobrancelha para desafiadoramente.
- Traga um capacete e eu levo meu disco e descobrimos. – propôs e eu arregalei os olhos.
- . – Tentei censura-lo, mas meu marido pareceu sequer se lembrar que eu também estava presente, ao contrário de , que sorriu abafado, elevou os ombros, passou a língua pela bochecha e arqueou as sobrancelhas de maneira debochada, olhando depois em minha direção.
- Sabe, ... – inclinou sutilmente a cabeça sobre o ombro e estreitou o olhar. – Vai perceber que sou extremamente competitivo. – Disse, desviando o olhar de e direcionando-o a mim novamente.
Aquele tipo de ação tinha o poder de me deixar completamente desconcertada, sem saber o que fazer ou como agir. parecia gostar de provocar , principalmente me lançando aquele tipo de olhar, deixando-me absolutamente confusa e encabulada.
- Pode apostar, a recíproca é verdadeira. – devolveu, estreitando o olhar e fez o mesmo.
- Você estava pronto para ir, não é? – Me manifestei, tentando respirar ar puro em meio a tanta testosterona que havia sido liberada de repente e em tão pouco tempo.
- Estou. – concordou.
- Bom, acho que é hora de ir, então. – Eu sorri, olhando para e ele assentiu. – Foi bom ver você.
- Eu também achei. – sorriu docemente e esticou a mão, tocando meu braço e causando um choque repentino que me fez perder o ar. – O que preciso fazer para você voltar?
- Eu...- Exalei o ar que não sabia que segurava, e bufou entediado. – Eu volto. Vou voltar. – Garanti sorrindo e assentiu e piscou. - Tchau.
- Até. – acenou com uma mão.

Enquanto caminhava para fora do quarto, meus olhos continuavam presos a cena de sentado na cama, sorrindo e acenando para mim, feliz por saber que eu voltaria. Ainda não sabia como me sentir diante a provocação que acabara de acontecer por parte de e a postura de macho alfa de . Existiam tantas coisas para pensar naquele instante que meu cérebro não conseguia escolher a primeira.
- . – resmungou com deboche, assim que alcançamos o corredor. Não havia nenhum sinal de seu bom humor de bêbado.
- O que foi? – Perguntei sorrindo, sem me importar em disfarçar meu estado emocional.
- Esporte pré-histórico. – repetiu, tentando imitar o tom de .
- E aí você teve a brilhante ideia de propor um desafio? Você com um metro e noventa contra um cara que está hospitalizado a Deus sabe quanto tempo? – Indaguei ainda incrédula com o comportamento de .
- Ele pareceu muito bem para mim. – resmungou rolando os olhos. – O que preciso fazer para você voltar? – Ele tentou imitar a voz de de novo, enfezado.
- Jojo. – Fiz o mesmo, mas imitando a voz dele quando se referiu a Joy e repentinamente me encarou.
– Não tem nada a ver. Coisas diferentes.
- Ah, claro. Bem diferentes. A principal diferença é que eu não fiquei discutindo com ela como um gorila para ver quem consegue ser mais desagradável. – Rolei os olhos. – Como você acabou de fazer.
- Eu não passo tardes inteiras com Jojo. – alfinetou e eu parei de andar, incrédula.
- É sério? Vai jogar isso agora? Depois de seis meses sem que eu pusesse meus pés aqui? – Indaguei.
- Você comparou, só estou dizendo que é diferente. – Ele deu de ombros.
- Eu não chamo por um apelido.
- Não que tenha me dito. – rosnou quando atingimos a recepção do hospital.
- Claro, até porque você não mencionou nenhuma Jojo nas nossas últimas conversas, não é? – Apressei o passo para acompanha-lo.
- Assim como você nunca mencionou que era um cara bonitão e irritantemente sarcástico. – Acusou.
- Será um longo natal. – Bufei.
- Pode apostar. – Ele concordou.

🍁


A véspera de natal havia se tornado um borrão desde que saímos do hospital. e eu não tocamos mais no assunto ou Jojo, nem dentro do carro ou em casa. Mas assim que passamos pela porta da frente, talvez em busca de autopreservação ou por um acordo silencioso que concordamos sem ter consciência de fato, a ida ao hospital parecia nunca ter acontecido. A única lembrança era o antebraço esquerdo de envolto por um gesso e sua necessidade urgente de um banho quente.
E com alguma ajuda do destino, os acontecimentos naquele quarto havia ficado submersos em minha mente até o momento em que entrou no chuveiro. Todos pensamentos e sentimentos vieram como de uma barragem que se rompe, intensos, fortes e de uma só vez. Enquanto meu marido estava no banho, resolvi tomar um chá e me acalmar. A imagem de um sorridente estava impressa em minhas pálpebras e todas as vezes que fechava os olhos, era ele quem eu via. sorrindo, olhando para mim com uma sobrancelha desafiadoramente arqueada, com seu olhar sarcástico, suas provocações...tudo era tão novo e tão incrível ao mesmo tempo.
Era insano como todo esforço para esquece-lo havia se desfeito com alguns minutos de contato, como se eu nunca tivesse deixado seu lado ou nunca tivesse tentado sufocar meus sentimentos, por seis meses ou quase quinze anos. Ao mesmo tempo, a saudade e a vontade de estar com ele pareciam amplificadas mil vezes pela ausência dos últimos tempos. Eu não entendia o que sentia e não entendia como sentia, tinha ansiedade para voltar para aquele hospital, medo do que aconteceria se me deixasse guiar por meus sentimentos mais uma vez, tudo ao mesmo tempo.
Também revisava e repetir em minha cabeças as piadas e ironias de , provocando gratuitamente , como se sentisse...ciúmes. Não, não era nada disso, devia estar vendo coisas mais uma vez, pensava comigo mesma. não teria ciúmes de mim, não haviam razões para isso.
Enquanto pensava no assunto, um filme tomou espaço entre meus pensamentos, nele eu podia relembrar todo percurso até ali. O dia em que havia reencontrado em meio a uma crise horrível, quando senti os olhos dele sobre mim pela primeira vez, o momento em que ele piscou para que eu ficasse ao seu lado, o momento em que percebi seu primeiro sorriso. Também as muitas ocasiões onde me ouvia atentamente falar de qualquer assunto bobo, suas caretas irônicas e extremamente lindas...e o beijo. A lembrança do beijo me atingiu como uma onda gigante e pesada, que te deixa submerso por mais tempo que gostaria.
A sensação do toque dos lábios dele, a vontade que podia ser lida em seu olhar, a explosão no peito. se lembrava disso, com toda certeza se lembrava, mas eu não fazia ideia do que ele pensava a respeito e agora, feliz ou infelizmente podia descobrir e isso era apavorante. Unido a lembrança do beijo estava o dia em que me consolara quando havia considerado o divórcio, o jeito como me abraçou e como me olhava com preocupação.
E .
A razão para que ele precisasse me acolher naquele dia era meu marido, que não fazia ideia de todas aquelas coisas, e que mal podia imaginar que a fonte de toda aquela provocação poderia ser sua esposa infiel. era a razão e a resposta para tudo aquilo, e por mais que voltar a conviver com fosse a coisa que eu mais queria no momento, não podia esquecer a razão pela qual havia me afastado. e minha família.
parecia bem e isso em alegrava, não faria mal a ninguém se eu o visitasse de vez em quando, mesmo apavorada com o fato de que agora poderia realmente saber o que ele pensava sobre tudo que acontecera. Mas não podia abandonar meu propósito, meu casamento e minha família, aquilo era o principal e eu não podia cometer o mesmo erro, não podia e não iria.
Ouvi os passos pesados de descendo pela escada e o assistir andar pela sala e depois vir até a cozinha, a minha procura.
- Como está, homenzinho torto? – Quis saber sorrindo e ele levantou o braço, como uma criança que mostra orgulhosa o quanto foi corajosa.
- Torto. – Ele soltou um riso nasalado, encostando-se ao meu lado, na ilha da cozinha. – Mas pelo menos não foi muito grave.
- Devia ter alguma lei que proíba pessoas de jogar hóquei embriagados. – Disse sorrindo, abraçando sua cintura com a mão que não segurava a xícara de chá.
- Eu tenho quase certeza que ela já existe, pelo menos em Minnesota. – inclinou a cabeça e projetou o lábio inferior. – Mas eu não quebrei o braço porque estava bêbado, quebrei porque cai mal...e outros quatro caras caíram em cima de mim.
- Só isso? – Ironizei e ele deu de ombros sorrindo.
- Sobre hoje...- falou enquanto se dirigia até a geladeira e servia com um pouco de suco. – Jojo é aquela irmã dos sócios que te disse outro dia. É uma garota legal, sempre ia a essas coisas...aos happy hours com os irmãos e o namorado.
- Namorado? – Arqueei uma sobrancelha, inclinando-me sobre a ilha.
- Yep. – assentiu, aproximando-se de mim novamente. – Um dos caras que estava no quarto hoje, mas eles terminaram há algumas semanas.
- Eu a conheci no hospital. – Contei, baixando um pouco a guarda. – É a terapeuta do . Me pareceu alguém legal, é só que eu não esperava que você a conhecesse e que tivessem uma relação tão...- Hesitei. – Próxima.
- É uma relação como qualquer outra, ela sempre implica comigo por ser de Minnesota, por isso teve aquela reação lá. – Ele contou. – Mas não precisa se preocupar. Não mesmo. Sei que não preciso explicar isso, mas acho que devo. – inclinou a cabeça para me olhar nos olhos e sorriu. – Jojo não estava comigo e o pessoal no dia que me atrasei e esqueci de avisar, e a nossa relação se resume aos momentos em que nos encontramos nessas coisas, partidas de hóquei, alguns bares quando vamos comemorar algo específico...esse tipo de coisa.
- Não precisa me explicar, . – Disse a ele tentando parecer superior, mas secretamente feliz por ter dito sem que eu precisasse pedir.
- Eu sei que não preciso, mas eu quero. – Ele deu de ombros. – Porque quero um retorno. – Confessou.
- Como assim? – Franzi o cenho, confusa.
- Te contei sobre a Joy, agora é a sua vez. – Pediu e eu senti o estômago gelar.

Expirei pesadamente, soltando o ar que nem sabia guardar e ponderei, por uma fração de segundos, sobre o que devia dizer. A verdade, pensei, mas não estava pronta para as consequências daquilo. Mentir também não era uma opção, não queria mentir para , era véspera de natal. Tentei escolher o caminho do meio.
- O que quer saber? – Perguntei o encarando.
- Me conte sobre ele, . – cruzou os braços sobre o peito e apoiou o quadril na ilha, estalando a língua quando pronunciou o nome de e estreitando o olhar. Conhecia meu esposo a tempo suficiente para perceber quando ele não gostava de alguém de primeira. – Eu quase não sei sobre o cara.
- Não tem muito mais o que dizer, ele passou os últimos anos hospitalizado. – Dei de ombros, fingindo desinteresse. – era amigo do Giovanni quando éramos adolescentes, mas nunca chegamos a trocar uma palavra, ele era um pouco mais velho. Depois me mudei para Nova York e nunca mais tive notícias. Tudo que eu sei é que ele tinha uma noiva que o deixou quando adoeceu, que não tem muitos amigos e que os pais morreram há muitos anos. – Menti.
- E todo o tempo que passaram juntos, antes?
- ...- Eu ri sem humor, levantando-me. – não falava, estava fraco demais até para isso. Desde que chegamos a cidade, hoje foi a primeira vez que ouvia sua voz. Então, além de acompanhar todos procedimentos que faziam com ele e assistir TV juntos, não existe nada que eu possa contar. – Menti de novo. – Vou me trocar e...preciso ir ao restaurante, um problema com frangos. – Me esquivei, deixando a cozinha, enquanto levantava as sobrancelhas em concordância, mas ainda com semblante pensativo.

Subi rápido as escadas e assim que senti a segurança do quarto me abraçar, fechei a porta, apoiando o corpo na madeira. Não queria ter mentido, não queria enganar daquela forma, mas o que podia dizer? Contar a ele que havia beijado ? Que gostava dele a ponto de ter tramado me separar?
Não podia, principalmente porque ainda estava firme na decisão de manter minha família unida como devia ser. Aquela questão não estava mais aberta para discussão, infelizmente teria que esconder aquilo de se quisesse conservar meu lar, mesmo me sentindo péssima. Como se eu fosse algum tipo asqueroso de traidora, o que não era bem uma mentira.
Mas não podia continuar naquela sessão de auto piedade, nem ficar me lamentando, não era o dia nem o momento certo para isso. Arranquei as roupas sem qualquer cuidado, espalhando-as pelo caminho até o banheiro e me enfiei de uma vez, abrindo a ducha e sentindo a água quente esquentar e abraçar meu corpo. Sentia raiva, muita raiva das minhas escolhas, daquela situação complicada da qual não conseguia sair e que quando parecia estar resolvida, uma onda repentina jogava tudo de cabeça para baixo de novo.
Talvez aquele estivesse sendo o banho mais raivoso que um ser humano já tomou, sentia a pele arder quando esfregava a esponja de banho, tentando limpar os pensamentos, as sensações e as vontades. Queria chorar, mas não conseguia por sentir coisas demais até para conseguir liberar. Como aquela sensação dolorida que se tem quando se está com tanta vontade de urinar há tanto tempo, que quando pode ir ao banheiro, o corpo parece se recusar a relaxar.
A pseudo sessão de esfolamento e escaldo levou certa de quinze minutos, e quando sai do banheiro, estava sentado na cama dobrando minhas roupas que antes estavam espalhadas pelo chão do quarto.
- Tudo bem? – Ele quis saber, olhando-me com um pouco de preocupação e estranheza.
- Não. – Bufei.

Permaneci imóvel, de pé no meio do quarto, enrolada a uma toalha e com os cabelos presos num coque frouxo, enquanto encarava meu marido. vestia um moletom cinza que devia ser o único largo o suficiente para comportar a tala em seu braço esquerdo, calça jeans e um tênis branco, parecia prestes a sair. Ele me encarava como se esperasse uma continuação, a razão para eu estar vermelha e bufando. Mas então uma ideia simples e eficaz piscou em minha mente. Do tipo de ideia que não se pode pensar ou analisar antes, apenas seguir o impulso. Inclinei levemente a cabeça, ainda o encarando e arqueei uma sobrancelha.
- O que foi? – Perguntou, me olhando alarmado.
- Vai sair? – Devolvi a pergunta, aproximando-me dele.
- Me arrumei para ir ao restaurante com você. – Explicou e respirou fundo, fazendo seus ombros subirem e descerem.
- Para me acompanhar? – Perguntei quase retoricamente e assentiu duas vezes, balançando a cabeça. – Que atencioso. – Elogiei quase num sussurro, fazendo com que ele estreitasse o olhar. – É uma pena...- Lastimei, ficando a distância de dois palmos. – Não vai precisar.

Arqueei uma sobrancelha sugestivamente e mordi a ponta da língua, franziu o cenho e arrastou o corpo um pouco para trás, mas ainda mantendo os pés no chão. Sem avisar ou explicar, deixei que a toalha que me cobria caísse no chão.
- Ou! – exclamou chocado. Não podia culpa-lo, se visse alguém saindo do banho irritada como eu estava, não esperaria que algo assim acontecesse. – O que houve? – Ele riu nervosamente.
- Precisa que eu te explique como essas coisas acontecem? – Perguntei, olhando em seus olhos, enquanto avançava sobre ele.
- Não, eu ainda...ainda me lembro. – hesitou, ainda com um riso de espanto no rosto e arrastando-se para o centro da cama cada vez que me aproximava mais um pouco. – É só que...caramba. Eu não estava esperando por isso. – Confessou.
- Se não quiser...- Fingi recuar, afastando-me um pouco e lhe dando espaço.
- Não, não. Eu quero...nossa, eu quero...quero. – sorriu nervoso. – Isso...por acaso isso tem alguma coisa a ver com...você sabe, com Joy e todo o resto? – Ele indagou quando voltei a me aproximar e parei onde estava, um pouco surpresa por sua pergunta e começando a entender sua reação.
- O que? Acha que estou insegura? – Indaguei estreitando o olhar e mordendo provocativamente o lábio. – Ou existe algo mais entre vocês que eu ainda não fui informada.
- Não existe nada, não mesmo. – Ele negou balançando a cabeça, com olhar preso em meus lábios. – Eu só estou surpreso, de verdade. – Ele sorriu nervoso, tentando tirar os tênis sem ajuda das mãos.
- ...eu só estive pensando...- Hesitei, arrastando um dos dedos por seu peito, parando no cós da calça jeans. – Do que adianta ter um marido como você e aproveitar tão pouco? – Indaguei num sussurro arrastado.
- Eu concordo. , como concordo. – Ele balançou a cabeça, meio abobado.

Eu sorri e estiquei a coluna, ficando de joelhos com uma das pernas de entre as minhas, enquanto ele estava sentado perto da cabeceira, me encarando. Intensifiquei o sorriso e pisquei, inclinando-me para puxar seu moletom e , mesmo desajeitado por causa da tala, entendeu o recado e puxou o casaco pela cabeça.
- Assim está melhor. – Pisquei, arranhando suavemente seu peitoral definido, enquanto acompanhava hipnotizado a movimentação das minhas mãos.
- Melhor, bem melhor. – Ele concordou, e eu empurrei seu tronco, fazendo-o deitar e me ocupando de beijar seu pescoço. – ...- arfou. – E isso? – Perguntou levantando o antebraço.
- Sabe, eu acho que temos um sério problema. – Sorri, depois de projetar o lábio inferior teatralmente. – Consegue imaginar o quão torturante será para você? Imagine, comigo indo por cima. – Pisquei e sorriu grande.
- Case comigo, por favor. - Ele pediu antes que eu o beijasse mais uma vez.

🍁


Eu estava deitada sobre o peito de , que subia e descia conforme sua respiração, estávamos ali há cerca de uma hora, apenas descansando do grande esforço que havíamos feito. Já devia passar das oito da noite, mas nenhum de nós parecia ter pressa ou vontade de se levantar e fazer algo diferente. Não fazia ideia sobre o que pensava, mas não conseguia tentar imaginar, sempre que começava a criar teorias, minha mente era invadida por meus próprios pensamentos turbulentos e culposos.
- Devíamos começar a nos arrumar. – Falei quebrando o silêncio, mas apenas gemeu uma reclamação, desaprovando a ideia. – Temos uma festa de natal para irmos. – Lembrei-o, sorrindo.
- Me chama atenção pela comida, mas a ideia de ficar nessa cama quente com o corpo igualmente quente da minha esposa sobre o meu é muito mais interessante. – Ele resmungou, beijando minha cabeça a com voz abafada.
- Teremos isso por muitos anos, não se preocupe. – Sorri de volta, levantando o rosto para encará-lo.
- Teremos? – questionou, ainda no mesmo tom sereno, mas com uma aura filosófica, como se questionasse o que existe depois da morte.

Eu o encarei, confusa com sua pergunta, mas talvez no fundo, bem no fundo, nós sabíamos, ele sabia. Naquela noite percebi que embora com sua natureza livre e desapegada, sabia, algo nele sabia que eu já não era a mesma e que com o encontro com , algo havia mudado de lugar mais uma vez.
- Não diga bobagens, . – Desconversei, levantando-me de uma vez. – Não é uma coisa que se diga. Atraí maus presságios.
- E quando você começou a acreditar em presságios? – Ele apoiou-se nos cotovelos, me acompanhando com olhar enquanto sorria.
- Só não repita esse tipo de coisa. – Pedi num tom mais firme, completamente oposto ao tom que estávamos utilizando antes daquele assunto infeliz. – Se levante, não quero me atrasar. – Pedi e levantou as mãos, se rendendo.

🍁


🎵 Dê play na música e deixe tocar durante todo natal.🎵


- Agora é a sua vez. – Falei, maneando a cabeça e Dom se inclinou mais sobre o tabuleiro de damas, analisando suas chances.
- Eu preciso de tempo. – Pediu.
- Você não precisa de tempo, precisa aceitar que está perdendo. – Provoquei.
- O que aconteceu com o espírito de natal de vocês? – Minha mãe indagou quando passou pela sala, para abastecer a tigela de biscoitos de canela enquanto a ceia não era liberada.
- O espírito de natal não costuma interferir em partidas de dama, mamãe. – Eu impliquei, rindo e ela balançou a cabeça negativamente.
- Pronto, sua vez. – Dom avisou, depois de fazer uma jogada ruim, me dando claras e fáceis chances de vitória.
- O natal não vai te salvar disso, lamento, garoto. – Disse eu, enquanto tirava duas peças brancas dele e vencia o jogo.
- Não quero mais jogar esse jogo, você sempre vence. – Ele reclamou.
- Estou fazendo meu papel de mãe, Dom, te ensinando a perder. – Expliquei, puxando-o para perto e beijando sua cabeça. – E fazendo muito bem.
- Mãe, o que vai ser meu presente de natal? – Ele mudou de assunto, deixando a poltrona que estava e sentando-se ao meu lado, no sofá.
- Oba, já estamos falando de presentes? – Susan, minha cunhada se aproximou de nós.
- O que? Que presentes? Eu devia ter comprado alguma coisa? – Provoquei e Dom arregalou os olhos.
- Mãe?
- Dom, não sei qual vai ser o presente da neste ano, mas definitivamente vocês deviam pensar em uma agenda para o próximo. – Susan brincou e Dom manteve o olhar arregalado.
- Todos trouxeram? Não fui avisada disso. – Continuei fingindo. – Percebeu o olhar de desespero? – Perguntei a Susan e nós duas rimos. – É brincadeira, querido, seu pai foi muito eficiente nas compras deste ano. Mas não vou te contar o que é. – Ri alto, abraçando Dom que também sorriu, mas de alívio.
- Pelo menos você não esqueceu dessa vez. – Ele respirou aliviado.
- Como assim, você já esqueceu alguma vez? – Susan gargalhou.
- Tia Sue, uma vez ela esqueceu dos presentes e saímos no dia vinte e quatro para comprar. Nós dois. – Dom contou. – Mas só ela voltou para casa. E só se lembrou de mim duas horas antes da ceia.
- E isso foi em Nova York, quase tive uma sincope quando percebi. Passei o dia todo com a sensação de ter esquecido alguma coisa, falei com , ele estava preso resolvendo algumas coisas, me lembro dele dizer que se eu não conseguia me lembrar era porque não era importante. – Contei rindo.
- Meu Deus, . – Susan gargalhou, chocada.
- E a melhor parte não chegou ainda. – Falei.
- Melhor parte? Qual a melhor parte em se esquecer o filho durante as compras de natal? – Ela questionou surpresa e ainda rindo.
- Bom, eu o esqueci em uma loja gigantesca no Manhattan Mall e quando voltei até lá, comecei a procurar como uma maluca. – Lembrei. – Revirei todas as lojas e corredores obscuros do lugar, e então desisti, me sentei em um banco perto de uma fonte e estava tomando coragem para ligar para e contar a ele. E aí eu olho para frente e vejo uma apresentação, um coral de natal de crianças órfãs para arrecadação de fundos.
- Não, você está brincando. – Susan riu ainda mais alto, prevendo o final da história.
- E quando eu olho para as crianças, lamentando ter perdido a minha, porque como sempre dizem, você só dá valor quando perde...eu encontro um garoto loiro, na frente de todos os outros, como uma espécie de solista. E lá estava Dominic, vestido de duende e cantando Have yourself a merry little Christmas.
- Como você foi parar lá? – Susan quis saber.
- Espere, não terminei. – A interrompi. – Eu chorei de felicidade, porque achei que teria que convencer a fazer outro garoto para substituir o perdido. – Brinquei e Dom me lançou um olhar incrédulo. – E quando terminou, fui tentar reaver a criança, mas a regente do coral não acreditou, achou que eu estava tentando sequestrar um dos órfãos. Eu quis matar o Dom neste dia, porque faltavam menos de uma hora para meia noite e eu estava presa no shopping explicando para uma senhora de cinquenta anos que o meu filho era realmente meu. Em certo momento eu me perguntei se realmente valia a pena.
- Como isso foi acontecer? – Susan perguntou.
- Eu estava sentado sozinho, minha mãe me deixou esperando um tempão. – Dom contou sorrindo, empolgado com a história. – E a mulher chegou perto de mim, se sentou e me perguntou se eu tinha uma mãe, eu disse: não aqui. – Ele riu alto com a lembrança da travessura. – Ela perguntou onde ela estava e eu falei que estava lá em cima e olhei para cima, para os andares de cima.
- E quando ela perguntou há quanto tempo ele não me via, ele falou que já havia muito muito tempo. – Continuei. – Nem Deus convencia a mulher de que eu era a mãe desse garoto. Precisei ligar para que trouxesse nossos documentos, a polícia foi chamada e no final, nós fizemos nossa ceia de natal em um drive thru do Mcdonalds, ouvindo a música de natal da Mariah Carey. E até hoje, envia um cheque de doação para esse abrigo de órfãos todo ano.
- Meu Deus, isso é quase inacreditável. – Susan gargalhou.
- O que é inacreditável. – Giovanni quis saber, ao se aproximar com , que segurava nossa afilhada nos braços.
- Quando acharam que eu era órfã e chamaram a polícia para a mamãe no shopping. – Dom contou.
- A tem uma ficha policial quase tão extensa quanto o currículo. – gargalhou, sentando-se em uma poltrona.

Estávamos todos na sala, a lareira acesa, na mesa de centro estavam biscoitos de leite, canela e gengibre, chá e suco de uva. sentado na poltrona do papai, com um suéter de tricô com uma grande rena bordada, de pé ao seu lado, Susan com um belo vestido vermelho, casual e confortável, como sempre. No sofá, Dom, com um suéter idêntico ao do pai e eu, com um macacão roxo que havia sido minha última aquisição da quinta avenida, dos tempos de Nova York, e de pé, ao lado do sofá, Giovanni, com um copo de uísque quase vazio. - Por que ninguém nunca me contou da ficha policial dela? – Vanni implicou, sorrindo.
- Porque é por isso que os homicídios estão lá. – Falei e ele fingiu estar com medo, enquanto e Susan riam.
- Acho que homicídio não consta na lista, é uma das poucas contravenções que ela não tem. – falou. – Duas vezes por direção perigosa...
- Eu estava atrasada para a inauguração de um restaurante e depois, atrasada para participar de um programa de TV. – Me expliquei, o interrompendo.
- Duas ou três por desacato, uma vez por depredar patrimônio, essa vez que ela esqueceu o Dom no shopping, por beber em lugar público...tem mais coisas, mas agora não estou conseguindo me lembrar.
- Eu não acredito que você tem uma ficha policial. – Giovanni repetiu, rindo incrédulo.
- Eu tenho, sou uma rebelde. – Brinquei. – Mas a verdade é que sou muito azarada. Um cara, um desses motoqueiros de clubes, bateu no meu carro uma vez, nós discutimos e quando ele saiu com a moto, tentei acertá-lo com o retrovisor que ele havia quebrado, mas acabei quebrando o para-brisas de uma viatura. – Expliquei. – Briguei com alguns policiais que queriam me multar, guinchar meu carro, e uma vez, quando uma das funcionárias do restaurante foi ataca na saída, questionei a atuação da polícia.
- E passou uma noite na cadeira por isso. – lembrou.
- Não, não foi por isso. Passei uma noite quando briguei com aquela mulher, mãe do garotinho que mordia o Dom na escola. – Corrigi.
- Então foram duas vezes. – Ele disse e depois de pensar por alguns instantes, percebi que ele estava certo.
- Você é uma arruaceira agressiva, ? Mamãe sabe disso? – Giovanni perguntou, rindo, mas preocupado.
- Na verdade, não sou esquentadinha, só tive azar de brigar com as pessoas erradas. Além do mais, sou chef de cozinha, já viu alguma que tenha total controle de suas emoções? – Questionei.
- Olha, , acho que você só está piorando sua situação. – sorriu, tocando meu joelho. – Melhor parar de falar.
- Não, deixe ela falar, adoro ouvir os podres. – Vanni pediu, enfiando um biscoito na boca.
- , preciso de você aqui. – Minha mãe chamou da cozinha.
- Olha, que coincidência...como podem ver, preciso ir. – Levantei com um pulo, caminhando para a cozinha teatralmente, enquanto ouvia as risadas de Susan, e Giovanni.
- Aqui estou. – Avisei, assim que pisei na sala de jantar.
- Já não era sem tempo, não é? – Mamãe resmungou e eu a encarei incrédula. – Faça alguma coisa, arrume a mesa, vou ajudar seu pai com o bendito foie gras, que foi uma péssima ideia, aliás.

Assenti e mamãe deu-me as costas, partindo para cozinha a passos rápidos. Por mais estranho que fosse, o natal em família estava sendo divertido e bom, exceto pela falta de Oliver, que havia decidido comemorar o natal em uma região montanhosa e sem sinal de internet ou celular, na Turquia.
Depois de muita negociação, meu pai havia decidido que cozinharia sozinho toda a ceia, o natal seria essencialmente francês, para o desgosto de minha mãe, que havia dito alguns dias antes que não iria para a cozinha nem morta. Mas como uma boa senhora italiana e territorialista que era, não deixaria o velho assumir a cozinha sem sua presença protetora. Era ciumenta demais com seus utensílios para deixar que meu pai fizesse a bagunça dele sem a supervisão dela, ainda mais se tratando de comida francesa.
E mesmo que eu estivesse acostumada com comida francesa por causa do restaurante, a ideia de uma ceia preparada por meu pai era muito, muito agradável, e assim, teríamos um natal francês e provavelmente um ano novo italiano.
- E aí, contraventora. – Giovanni surgiu atrás de mim, roubando uma tâmara da decoração da mesa. – Quantos crimes já cometeu até hoje?
- Até agora nenhum, mas ainda são nove da noite. – Respondi, dando de ombros e ele riu. – Tenho até meia noite.
- Quando pretendia me contar que viu ? – Ele perguntou depois de alguns instantes de silêncio, me pegando de surpresa. Desde que havia chegado até a casa dos meus pais, pareceu sumir da minha mente, para alivio da minha consciência pesada.
- Do que está falando? – Disfarcei, fingindo estar muito concentrada na posição perfeita dos talheres.

Giovanni inclinou a cabeça sobre o ombro e torceu os lábios numa careta impaciente, que significava que não adiantava negar, ele sabia a verdade e estava irritado com minha tentativa frustrada e infantil. O encarei com olhar culpado e ele apontou com o queixo para a varanda, e então foi para fora, passando pela porta francesa, pegando o casaco e indo para a varanda, eu o segui, repetindo suas ações e deixando a mesa quase arrumada.
O vento gelado fazia os ossos doerem, mesmo com o pesado casaco marrom que eu usava, e de longe, podíamos ver o mar, suas ondas revoltas e um cargueiro solitário. Nevava, o jardim estava com uma grossa camada branca que me lembrava açúcar. Giovanni escolhera um canto da varanda, junto as cadeiras de balanço que ficavam ali e com uma vista perfeita para a praia e um boneco de neve que Dom haviam feito mais cedo naquele dia.
- Ainda me choco com sua sutileza, Vanni. – Impliquei, aproximando-me dele, abraçando meu corpo na tentativa frustrada de esquentar.
- Melhor eles desconfiarem do que falamos do que terem certeza. – Ele deu de ombros. – Não ia me contar sobre o ?
- Como você soube? – Devolvi a pergunta.
- Uma pergunta de cada vez, irmã. – Giovanni apertou os lábios num sorriso contido e balançou a cabeça positivamente. Os cabelos pretos penteados para trás estavam impecáveis, sem nenhum fio fora do lugar e hoje, meu irmão cheirava a loção de barbear.
- Eu não pensei sobre contar ou não. – Confessei. – Foi tudo muito rápido, não consegui nem digerir o que aconteceu. Estou tentando não pensar para não surtar.
- . – Giovanni disse de repente e eu franzi o cenho. – me contou. – Completou.
- Como assim? – Eu ri sem humor, um pouco chocada. – ? Por que ele te contaria isso?
- Ele não contou do jeito que você está imaginando, ele sondou. – Giovanni apoiou as mãos no parapeito da varanda e empurrou o quadril para trás, esticando a coluna. – Estávamos falando sobre o braço quebrado e ele mencionou, perguntou se eu sabia que estava melhor, sondou sobre suas visitas a ele e sobre seu afastamento.
- E você? – Perguntei ansiosa.
- Disse a verdade, ué. – Ele deu de ombros, endireitando a postura e senti meu coração parar.
- O que? – Minha voz soou tão esganiçada que se não fosse a tensão do momento, teria sentido vergonha.
- Não, relaxe, . Não toda a verdade, só o que podia dizer. – Explicou. – Disse que ele era meu amigo, que você se sensibilizou quando soube, mas que antes que ele demonstrasse qualquer melhora, se afastou para dedicar mais tempo a família e ao restaurante.
- Caramba, não me assuste assim. – Pedi, esfregando o peito, onde meu coração tentava recuperar um ritmo saudável.
- Eu acho que não colou muito.
- O que quer dizer?
- me pareceu incomodado. – Meu irmão lembrou. – Não desconfiado, eu o questionei sobre isso e ele disse que não, que estava confortável com suas escolhas.
- Então qual é o problema? – Arqueei uma sobrancelha, confusa.
- Ele não gostou do , deu para perceber pelo jeito que ele falou...transparente como água. – Vanni expirou pesadamente e sorriu. – Acho que ele sentiu alguma coisa com ele, algum desconforto ou coisa do tipo. – Giovanni deu alguns passos, sentando-se em uma das cadeiras de balanço. – Mas não entendo, costuma ser sociável, todos o adoram...para o ter tido uma antipatia à primeira vista, dessa forma...
- Você entenderia se os tivesse visto juntos. – Ri sem humor e me sentei na outra cadeira de balanço, ao lado dele. – Foi estranho...como se...ficaram se provocando.
- O que? e ? – Giovanni gargalhou, apontando para dentro, onde estava. – Não posso acreditar, , desculpe. é o cara mais pacifico que conheço e ...ele não faz o tipo. Provocações? Não.
- Pois é, se me contassem eu não acreditaria também. – Sorri, fechando os olhos e apoiando a cabeça no encosto da cadeira. – foi me procurar e me encontrou no quarto com . Ele ainda estava com o uniforme de hóquei e quando viu, começou a fazer provocações sobre o esporte. foi pego de surpresa, totalmente.
- Não, você está brincando. – Giovanni balançou a cabeça negativamente, perplexo.
- Não estou. – Continuei. – chamou hóquei de esporte pré-histórico, e quando dei por mim, estavam se desafiando para provar qual esporte era melhor, futebol ou hóquei.
- Tem certeza que eram e e não Dom e algum colega? – Ele questionou.
- Quase sufoquei com tantos hormônios. – Ri abafado. – E no fim, ainda disse que ia descobrir que ele é muito competitivo. Quer dizer, o que isso significa? E ele ficava olhando para mim, arqueando as sobrancelhas, sendo sarcástico e debochado. – Contei, voltando a encarar meu irmão. – se referiu a ele assim, o cara bonitão e irritantemente sarcástico. – Giovanni encarou o chão, olhando para os próprios pés e depois para mim, com as sobrancelhas arqueadas. – O que foi? Que cara é essa?
- Você não sacou? Sério? – Ele indagou e eu neguei com a cabeça. – , do mesmo jeito que você se lembra de tudo que aconteceu, assim também o . De um passo para trás e observe a situação de fora, está bem claro para mim.
- Você acha...acha que...- Hesitei. – Acha que provocou por...minha causa?
- Por que não pergunta a ele? – Giovanni deu de ombros. – Pretende ir vê-lo de novo?
- Eu disse que iria, ele perguntou o que precisava fazer para eu voltar, eu disse que voltaria. – Contei.
- Ele perguntou na frente do ? – Riu chocado. – Pelo menos não dá para dizer que ele não tem coragem.
- Não brinque com isso. – Resmunguei. – Eu não sei como vou encara-lo, principalmente depois de tudo. Quer dizer, agora ele fala, pode falar o que acha e não sei se estou pronta para isso.
- Achei que esse fosse o momento mais esperado por você. – Giovanni me olhou com doçura e sorriu fechado.
- Era..é...não sei. – Sorri. – Acho que estou com medo. E também, decidi cuidar da minha família e me manter firme com , não posso deixar que o meu sentimento por bagunce toda minha vida de novo.
- Já bagunçou. Não?
- Estou casada e assim vou continuar. – Garanti e meu irmão levantou as mãos em rendição, assentindo.

🍁


- Não é para se servir ainda. – zangou, dando um tapinha suave na mão esticada de Dom, que tentava alcançar os talheres.
- Mas eu estou com fome. – Ele resmungou.
- E quem não está? – Sussurrei entredentes, tomando meu lugar a seu lado, enquanto os outros faziam o mesmo.
- Quem vai fazer o discurso de natal? – Giovanni quis saber empolgado e eu o lancei um olhar incrédulo.
- Ora, seu pai, como sempre. – Mamãe deu de ombros. – Ou você quer? Agora também é pai.
- Não vale, é pai há mais de dez anos e nunca precisou fazer. – Meu irmão reclamou e arregalou os olhos, não era nem um pouco acostumado a aquele tipo de tradição.
- Eu deixo para os mais jovens. – Disfarçou, me olhando como quem pede ajuda.
- Giovanni, não seja estraga prazeres. – Eu o provoquei sorrindo. – Há quinze anos não passo o natal aqui, me deixe ouvir o discurso do papai. – Pedi e ele deu de ombros.
- Sendo assim...- Meu pai pôs-se de pé, coçou a garganta e levantou sua taça a altura do rosto. – É natal. E com exceção do cigano que chamo de Oliver, todos estão aqui e isso me alegra. Até mesmo com sua família, meu neto...- Papai olhou com doçura para Dom e sorriu. – E agora temos mais um membro, uma neta...quem diria, a família crescendo, gerações novas chegando...o tempo passa mesmo. Natal não costuma ser meu feriado favorito, vocês sabem, prefiro o meu aniversário. Desculpe, Jesus, mas é a verdade. – Ele disse e todos riram alto, com exceção da nossa mãe, que balançou a cabeça negativamente. – Mas esse natal é especial, talvez o mais especial que já tenha tido desde que vocês cresceram, porque estão aqui, juntos. Felizes, reclamando do atraso da ceia, conversando e juntos, como uma família comum...nunca achei que seria tão feliz por ter uma família comum...então, um brinde a nossa família comum e ao aniversariante do dia, mesmo que não seja eu. – Falou, levantando mais a taça e nós o imitamos.
- A nossa família comum! – Dissemos ao brindar.
- Eu quero comida! – Dom cantarolou esfregando as mãos e arrancando risadas de todos.

Enquanto as mãos brigavam para se servir, o falatório alto e as risadas ecoavam pela casa, me senti bem. Talvez não fosse a primeira vez que me sentisse daquela forma, mas certamente era a primeira em que tomava consciência do que exatamente sentia. Me sentia em casa, o jantar de natal tinha cheiro, gosto e sabor de lar.
Com mamãe dando tapinhas nas mãos de Giovanni que tentava roubar mais peru do que lhe cabia, enquanto cantarolava All I want for Christmas is you, ajudando Dom se servir com salmão, Susan que parecia a única bem-educada a mesa, papai tentando alcançar o gratinado de batata entre os mariscos e o patê de foie gras e eu, que me servia com vinho enquanto esperava a confusão se acalmar. Era bom, muito bom e eu estava feliz.
Secretamente, parte minha tinha o coração apertado pela ausência de Oliver e por imaginar sozinho no hospital. Me perguntava se alguém havia o servido com algum jantar especial, se estava sozinho, se alguém o havia comprado algum presente, como ele devia estar se sentindo. Por pior que pudesse ser, pensar em naquele momento não me parecia algum tipo de traição, estava mais para um pensamento cristão.
- Feliz natal! – desejou, esticando sua taça de vinho em vinha direção e eu sorri, brindando com ele e depois com Dom e seu suco de uva, que estava sentado em nosso meio.
- Feliz natal!

🍁


Passava de três da manhã e todos já haviam se recolhido, nós e Giovanni e sua família dormiríamos na casa dos nossos pais, para acordarmos juntos na manhã de natal. O jantar fora longo como sempre, e depois de comermos tudo que podíamos e não podíamos, ninguém conseguia manter os olhos abertos, exceto eu. Talvez um dos mariscos ou o salmão tivesse me causado indigestão, ou eram os pensamentos presos a certo paciente em um hospital há alguns quilômetros de distância.
Era difícil me controlar para não cometer a loucura que estava dançando em minha cabeça desde que eu fiquei só na sala, encarando a árvore de natal e tomando leite quente. Como o impulso que sente em comer o doce que não devia, mas que apenas por saber que ele está na geladeira, não consegue tirá-lo da mente.
Talvez estivesse dormindo ou talvez não, talvez estivesse ansioso e angustiado, esperando uma visita na noite de natal, um presente, um abraço, um brinde. Não faria mal se eu pelo menos fosse até lá para descobrir, não é? Não seria demais, nem soaria muito desesperado, não é? Convencia a mim mesma.
Me levantei do sofá com um pulo e me dirigi a cozinha, em um recipiente qualquer montei três pratos diferentes com o que havia sobrado da ceia. Uma entrada, com mariscos e salmão, o prato principal era o patê de foie gras, o peru e queijos, e de sobremesa, um grande pedaço de bûche de Noël. Por um instante, me questionei se gostaria daquela comida, resolvi arriscar, não teria tempo de preparar outros para levar.
Em um dos armários estava uma cesta de piquenique, antiga e empoeirada, mas depois que a limpei com mais cuidado do que faria em um dia comum, e arrumei os recipientes dentro dela, a cesta parecia nova. Junto a comida, coloquei alguns talheres, duas taças que retirei da lava louças e três garrafas pequenas de espumante. Um brinde qualquer que Giovanni havia recebido de um de seus clientes e que havia levado para o jantar, mas que fora completamente ignorada quando surgiu com duas garrafas de vinho francês, comprados há muito tempo.
Estava feliz com meu desempenho, animada e ansiosa, curiosa com a reação de . Deixei um bilhete na geladeira, avisando que voltava logo e vesti o casaco, aproveitando que não havia me trocado e ainda usava o macacão de antes.
Quando abri a porta, com as chaves do carro em mãos, meus olhos foram atraídos para a árvore e seus presentes. Adoraria levar um presente, mas não havia comprado nada. E como um tipo de providencia divina, me lembrei que o presente de Oliver também estava na árvore e meu irmão não o abriria de manhã. Era a ideia perfeita, havíamos combinado de comprar um suéter de lã para Oliver, o havia escolhido e eu tinha a certeza e esperança de que o suéter serviria como uma luva para .
Deixei a cesta ao lado da porta e me abaixei sobre os presentes, revirando em busca do embrulho com nome de Oliver, que ironicamente estava quase que escondido. E então tudo estava pronto, não faltava mais nada.

🍁


O hospital estava um pouco mais movimentado do que era esperado para aquele horário, mesmo no natal, e felizmente o horário de visitas duraria toda a noite. Enquanto percorria o corredor até o quarto de , pensei no quão estúpida era aquela ideia, primeiro, faria alimentar sua desconfiança, além de que provavelmente já estivesse dormindo e eu poderia ter agido como alguém em seu juízo perfeito e ter ido vê-lo de manhã. Odiava a impulsividade que o sentimento por suscitava em mim, era péssimo, detestava agir como uma adolescente, sem ponderar as consequências de minhas ações.
Devia dar meia volta e voltar para o carro, pensei, quando alcancei a porta de seu quarto, que estava entreaberta. Não devia estar ali, o que é que você está fazendo, ? Me perguntei. Não seja estúpida, não dessa vez, disse a mim mesma, encarando os pés e balançando a cabeça negativamente, sem prestar atenção em qualquer coisa ao meu redor.
- Eu estou te vendo. – Uma voz cantarolada fez meu corpo inteiro congelar, e quando levantei meu olhar devagar, temendo encontrar o que sabia que encontraria, vi sorrindo com a cabeça inclinada sobre o ombro, tentando me enxergar através da abertura estreita da porta.

Não desmaie, , será ainda mais vergonhoso, pensei. Ainda podia fingir não ser eu e sair correndo, mas a dificuldade que teria em explicar aquilo depois era grande demais para valer o risco. Respirei fundo e empurrei devagar a porta, me revelando por completo, e a medida com que a porta era aberta, levantava um dos cantos de seus lábios, num adorável sorriso.
- Você voltou. – Ele sorriu quando entrei no quarto e senti todas as borboletas do mundo dentro de mim.
- Eu prometi que voltaria. – Não fazia ideia do que dizer, estava tonta com aquele momento.
- Que bom, isso estava na minha lista de natal. – Ele piscou, estreitando o olhar em seguida, mantendo o sorriso de canto, senti as pernas amolecerem.
- Giovanni achou que você gostaria de um pouco de ceia francesa. – Menti, levantando a cesta, tentando disfarçar.
- Mesmo? E ele veio também? – quis saber, esticando o pescoço para olhar atrás de mim.
- Ele...não pôde. – Menti de novo, mas dessa vez fixou seus olhos nos meus, como se lesse minha hesitação e expirou, sorrindo fraco. – Um bebê, novo, pequeno, é complicado...
- É complicado. – Ele assentiu com um sorriso sutil, ainda sem romper o contato visual, e de algum jeito eu soube que ele sabia, sabia que aquilo não tinha absolutamente nada a ver com Giovanni.
- Bom, eu espero que esteja com fome. – Comecei a dizer, aproximando-me dele e colocando a cesta na pequena mesa ao lado da cama. – Trouxe entrada, prato principal e até a sobremesa, mas espero que goste de comida francesa, porque meu pai resolveu cozinhar esse ano. Ele quis reavivar a tradição da família. – Expliquei sentindo o olhar de me queimar, mas tentando ignorá-lo.
- Você veio aqui só para trazer isso para mim? – Ele questionou, segurando meu pulso de repente, me forçando a encará-lo e por alguns instantes esqueci como se respirava.
- Ninguém devia ficar só no natal. – Murmurei tonta e ele sorriu assentindo.
- Obrigada. – Disse, unindo as sobrancelhas e ainda com o olhar preso ao meu, e tudo que pude fazer foi engolir em seco e assentir.
- Trouxe isso também – Falei mostrando as pequenas garrafas de espumante. – Meu pai diz que uma ceia sem bebida não é uma ceia.
- Você trouxe bebida alcoólica para alguém hospitalizado? – perguntou rindo abafado e enfim percebi a gafe que havia cometido.
- Aí, não. Desculpe. – Balancei a cabeça negativamente, encarando as garrafas que segurava. – Acho que fiquei tão empolgada pensando no que não poderia faltar que acabei esquecendo desse detalhe.
- Tudo bem, se você não contar aos médicos, eu também não conto. – Ele gargalhou, recostando-se na cama para recuperar o fôlego.
- ! – O repreendi e ele sorriu mais. – Não quero ser a responsável pela sua piora de novo.
- É natal, não faz mal um pouquinho disso, seja lá o que isso for. – Brincou, se esticando para olhar melhor a garrafa e sorrindo para mim.
- Vão acabar me expulsando do hospital. – Balancei a cabeça negativamente e sorri, enquanto o entregava o recipiente com as entradas.
- Quando pensei em provar sua comida francesa, não imaginei que seria tão rápido. – brincou dando a primeira garfada. – Vocês franceses sabem o que fazem quando estão cozinhando. – Elogiou com a boca cheia.
- Tínhamos que ser bom em alguma coisa, huh? – Sorri, tomando meu lugar na poltrona ao lado da cama. – Mas como eu disse, meu pai cozinhou, não eu.
- Isso está muito bom. – Ele sorriu de novo.

Era bom vê-lo daquele jeito, sorrindo, comendo sozinho e quase sempre arqueando uma sobrancelha para mim ou sorrindo de canto. A sensação em estar ao lado de era indescritível, tão boa que me perguntava como havia sido capaz de deixa-lo, como havia conseguido ficar tanto tempo longe dele, de sua aura tranquila, seus olhares irônicos e sem sentir sua presença perto.
Sentada naquela poltrona, assistindo-o devorar toda aquela comida no meio da madrugada, num quarto de hospital iluminado apenas por um abajur, me fiz as mesmas perguntas de meses atrás. A diferença era que agora, talvez um pouco mais madura do que naquela época, sabia que nunca sentiria por ou por qualquer outro homem o que sentia por e estava conformada assim. Mas a parte mais difícil continuava sendo estar ali e não poder querer ficar para sempre.


- O que preciso fazer para ser convidado para o próximo natal do s?
- sondou enquanto finalizava a sobremesa.
- Algo me diz que seu nome estará na próxima lista. – Brinquei e ele expirou profundamente, cheio com toda comida que havia ingerido.
- Me sinto alimentado para os próximos quatro anos. – Declarou sorrindo. – Não me lembro quando foi a última vez que comi bem assim.
- O que foi? Não estão trazendo sua gelatina mais? – O provoquei e rolou os olhos, baixando os ombros e bufando, teatralmente. – Ou o mingau já não é mais como antes.
- Sabe, , você é má.
- Eu? – Pousei a mão no peito, fingindo surpresa. – Mas eu até te trouxe sobremesa.
- Isso não vai ser suficiente para te redimir. – levantou os ombros, depois inclinou-se sobre a mesa e puxou uma das garrafas. – O que é isso? Espumante. Isso parece caro...Giovanni? – Perguntou com simplicidade, arqueando uma das sobrancelhas de maneira adorável.
- Presente de um cliente, mas ninguém deu a mínima quando descobriram que também teríamos vinho francês. – Contei.
- O que houve com a boa e velha cerveja? – Ele franziu o cenho. – Acho que estou preso aqui há tempo demais.
- Cerveja na ceia de natal?
- O que é, ? Cerveja não é bom o suficiente para você? – Indagou, levantando o queixo, sorrindo e estreitando o olhar e tudo que consegui fazer foi balançar a cabeça negativamente. – Acho que vou provar isso.
- Não, não. – Pulei da poltrona, ficando de pé ao seu lado. – Você não deve poder beber.
- Vale o risco, é natal. – deu de ombros.
- Não vou deixar você fazer isso. – Sorri roubando a garrafa de sua mão e a devolvendo a cesta.
- Qual é? Você quem trouxe, qual é a graça? – Ele choramingou. – É natal, eu devia poder beber alguma coisa.
- Desculpe, mas não é uma boa ideia. – Neguei, rindo de sua reação infantil. – Mas posso pegar um pouco de água.
- Mas você trouxe para mim. – Argumentou.
- Também trouxe outra coisa, esqueça a garrafa. – Contei e levantou as sobrancelhas, curioso. – Aqui está. – Disse, o entregando o embrulho que estava também dentro da cesta.
- Um presente. – Ele falou, talvez mais para si mesmo do que para mim. – Você me trouxe também um presente.
- É natal. – Falei e me encarou, começando em seguida a abrir o embrulho, cheio de empolgação.
- Mas eu amei. – Cantarolou, teatralmente, levantando o suéter a sua frente e depois mostrando-o a mim. – É a minha cara. – Cantarolou de novo, torcendo os lábios num sorriso debochado e então pude ler o que estava escrito na peça:Diabolicamente Sexy.
- Eu...eu...- Tentei me explicar, mas apenas consegui gaguejar enquanto gargalhava.
- Sempre soube que você tinha uma opinião forte a meu respeito. – Ironizou estalando a língua.
- , eu...- Ri nervosamente, incapaz de me explicar. – Meu Deus...
- Me deixe adivinhar...Giovanni também? – Ele estreitou o olhar, me investigando.
- É uma longa, muito longa história. – Disse eu.
- Ah, ...essa é a parte boa da sua presença, nunca sei o que esperar. – Ele riu entredentes, enquanto vestia o suéter por cima da camiseta que usava. – Como eu estou? Faço jus aos dizeres? – Perguntou arqueando uma sobrancelha e tentando ficar mais sério ou mais sexy.

Não consegui respondeu imediatamente, meu foco estava completamente concentrado em como o suéter vermelho combinava com a pele de , como seu sorriso parecia mais brilhante, como seus olhos pareciam mais luminosos e como sua mandíbula cuidadosamente esculpida parecia ainda mais bela.
- Bem, ficou bem. Muito bem. Perfeito. – Falei depois de alguns instantes em silêncio, balançando a cabeça para tentar voltar para órbita e ele gargalhou, jogando a cabeça para trás.
- Eu adorei isso. – Repetiu, puxando o suéter para que pudesse ler a frase mais uma vez e eu sorri, encostando-me na lateral da cama.
- Obrigada por isso, por tudo isso. – voltou seu olhar para mim mais uma vez.
- Não precisa agradecer. – Garanti, sorrindo fechado e desviando o olhar rapidamente, mas inclinou-se em minha direção.
- Preciso sim. Preciso dizer tantas coisas...- Sussurrou, agora um pouco mais perto, o suficiente para que eu sentisse o cheiro de seu hálito de chocolate da sobremesa.
- Não precisa... – Sorri de novo por não ter ideia sobre como devia agir.


🎵 Dê play na música e coloque para repetir se necessário. Ron Pope - A Drop in the Ocean 🎵


Os olhos de estavam perto, seu rosto estava perto e meu corpo parecia se negar a obedecer a qualquer comando sobre se afastar. Queria apenas estar ali, esperando, curioso com o que ele faria a seguir.
- Eu senti sua falta... – Ele sussurrou e meu coração acelerou. – Estava ansioso esperando você voltar.
- ...- Tentei falar, mas o olhar de parecia me hipnotizar.
- Tem tantas coisas que quero te dizer...que espero há tanto tempo para dizer...- Confessou e levou uma das mãos ao meu rosto, acariciando minha bochecha com o polegar e sorriu. – Tanto tempo que espero para fazer isso.
- Eu...também senti saudades. – Confessei, dando-me por vencida, não era como se tivesse alguma força para lutar.

estava perto, falando, eu ouvia sua voz rouca enquanto ele sussurrava sentir minha falta. Era impensável, como se todos meus sonhos mais fantasiosos estivessem se tornando realidade de uma só vez, e não podia fugir, não podia correr dali. Não me importava com mais nada naquele instante, apenas em saber o que pensava, o que ele sentia e o que diria.

- Você acabou de me fazer feliz dizendo isso. – Sorriu apertando os olhos. – Tive medo de não te ver de novo...- assumiu, estreitando o olhar e franzindo o cenho. – De não conseguir dizer tudo que precisava.
- Eu estou aqui agora, diga. – Pedi, consumida pela curiosidade.
- Me deixa mostrar. – Falou e antes que eu pudesse assimilar, ele me beijou.

As sensações que um beijo traz podem ser inexplicavelmente diferentes e inesperadas, principalmente se considerar que nenhum beijo consegue ser exatamente igual. Mas naquele momento, com os lábios de pressionando os meus, todas as sensações maravilhosas do primeiro beijo estavam lá, mas ainda melhores, amplificadas. Talvez por agora estarmos os dois capazes de nos comunicar e nos movimentar igualmente, sem interpretações dúbias. E definitivamente queria aquilo.
Quinze anos depois e eu estava vivendo o sonho que sempre sonhei, sendo beijada por , com o coração disparado, pernas bambas e inebriada por aquela avalanche de sentimentos que me rodeavam desde o primeiro dia em que havia colocado meus olhos sobre ele.
O beijo parecia me transportar para o céu, como se tudo fizesse sentido, tudo se encaixasse e estivesse em seu devido lugar. E surpreendentemente, para alguém hospitalizado a tanto tempo, beijava muito bem, como se com os movimentos que faziam com os lábios e língua fossem capazes de tocar minha alma. Era como se estivesse onde devia estar, ali, junto a ele era onde eu pertencia, onde ficava melhor, mais confortável. Era o certo.

🎵 Dê play na música e coloque para repetir se necessário for. Jason Walker - Down 🎵


- . – Sussurrei, partindo o beijo de repente, quando a imagem de meu marido invadiu minha cabeça, e juntou nossas testas, ainda com olhos fechados.
- Eu sei. – Falou, enquanto nos dois tentávamos recuperar o ritmo de nossas respirações.
- Não posso...não posso......- Gaguejei, com dificuldade de organizar meus próprios pensamentos.
- Isso não me parece certo...você e ele...- disse, abrindo os olhos e me encarando fixamente, enquanto segurava meu rosto com as duas mãos. – Mas aqui, agora...isso é o certo e eu consigo ver nos seus olhos que você concorda comigo.

Me afastei dele, dando alguns passos para longe de seu leito e dando-lhe as costas, enquanto tentava pensar com clareza.Aquilo era sem dúvidas uma surpresa, nem em meus sonhos mais insanos poderia prever que ele diria ou se sentiria daquela forma.
- Isso...- Hesitei, mordendo o lábio para conter o que realmente queria dizer. – Meu marido é o , você o viu...é um bom homem. Não é justo, não posso fazer isso.
- Você o ama? – indagou, com a mandíbula tensionada e eu respirei fundo, voltando-me para ele.
- Amo.
- E está apaixonada por ele? – Perguntou de novo, levantando as sobrancelhas, e tudo que pude fazer foi expirar profundamente, fechar os olhos e inclinar a cabeça. – Eu achei que...quando você veio aqui, depois daquele beijo...achei que se separaria. – Confessou frustrado.
- Eu também. – Admiti.
- Eu não entendo.
- É complicado...- Falei, desviando o olhar.
- Sei disso, nos últimos tempos a única certeza que tenho é que as coisas são complicadas. – endireitou a postura, falando um pouco mais firme. – Sei também que não podia te oferecer muito antes, que não seria justo com você...mas agora..., eu posso. Estou melhor e melhorando mais a cada dia...
- Não faça isso, por favor. – Pedi, prevendo o que viria a seguir. – Não faça isso comigo.
- ...- expirou pesadamente, balançando a cabeça, com os lábios franzidos e um olhar que revelava a frustração. – Eu...
- Eu não sei o que vai dizer, , mas é melhor que não diga. – O interrompi, sem nem mesmo entender o porquê. – Eu preciso proteger minha família e as vezes, isso significa colocar as próprias vontades em segundo planos.
- Quem te disse isso?
- Eu amo o . Preciso respeitá-lo, prometi que daria uma chance ao meu casamento e estou tentando fazer isso. – Afirmei, usando toda força que não sabia ter.
- Por isso você não voltou mais, por isso aquela noite...- sussurrou para si mesmo, juntando as peças em sua cabeça.
- Eu sei que é confuso, que eu provavelmente baguncei tudo, que não devia ter vindo aqui hoje, nem no dia que voltei para essa cidade, mas...- Disse, emocionada.
- Não, não diga isso. – Ele interrompeu. – Não importa o resultado, não importa o que aconteça, não diga isso. Você...você ter entrado por essa porta foi a melhor coisa que me aconteceu, . – Falou com firmeza.
- Eu não devia ter vindo, não devia ter remexido nisso tudo. Me desculpe. – Pedi, passando as mãos pelo cabelo, e balançou a cabeça negativamente.
- Você pode chegar mais perto? Não vou te beijar de novo, eu prometo. – Ele pediu e eu obedeci, indo até ele devagar, até quase me encostar em seu leito. – A não ser que me peça. – Ele sorriu.
- Sei que não devia ter começado tudo isso, ter te beijado primeiro...eu sou casada e...- Tentei me explicar, mas me atrapalhei com as palavras e a voz falhou.
- Não diga isso. – pediu, segurando meu rosto com as mãos de novo. Por mais que aquela fosse apenas a segunda vez que o via falando, era como se todo o tempo que tínhamos passado juntos não fosse em silêncio e estivéssemos tendo só mais uma conversa. – Não diga mais isso. Você não tem culpa, ninguém tem.
- Nos beijamos duas vezes, ...- Murmurei, e embora me sentisse mal por estar naquela situação, os olhos verdes de , concentrados em mim, me passavam confiança e segurança de um jeito diferente, que não havia sentido antes.
- Talvez nós tenhamos um pouco de culpa, então. – Ele sorriu fraco. – , eu estive preso, enclausurado dentro do meu próprio corpo, implorando para que alguém tivesse um pouco de piedade e acabasse com meu sofrimento de uma vez por todas. – contou e percebi seus olhos ficarem um pouco mais molhados, mas ele não chorou. – Até você chegar e olhar para mim como se eu fosse alguém de novo, como se eu fosse eu mesmo e não um moribundo esquecido por Deus. E tudo aquilo, tudo que aconteceu...foi real. Eu dormia e acordava esperando o momento em que você passaria pela porta sorrindo, porque eu sabia que alguém estava comigo, que alguém estava ao meu lado. Você me salvou, você, . E cada momento que passamos nesse quarto foi especial. Não imaginava que isso pudesse acontecer comigo a essa altura, mas aconteceu. – Declarou.
- Mas não devia. – Lamentei, balançando a cabeça negativamente e apertando os lábios, não queria chorar. – Não devia.
- Eu entendo você, de verdade. – garantiu, me pegando de surpresa. – Você tem uma família, um filho...não posso pedir para que largue tudo por minha causa, não tenho esse direito. Mas passei por muitas coisas aqui e aprendi a não desistir fácil.
- O que? – Perguntei. Aquilo era surreal, ouvir dizer aquelas coisas, sabendo que eram para mim. Por mais que tivéssemos vividos muitas coisas antes, suas palavras eram inesperadas, surpreendentes.
- Estou dizendo que não vou desistir de você. – Afirmou e eu quase desmaiei. – Não vou desistir. Isso, o que estou sentindo agora e o que sei que você também está, porque está escrito nos seus olhos...isso é certo e não vou esquecer. Leve o tempo que for, vou estar aqui, esperando você. Posso não ser como seu jogador de hóquei, nem tão alto ou tão bonito – Implicou sorrindo e eu sorri também, diminuindo um pouco a dor que senti, por pelo menos alguns instantes. – Mas estou apaixonado por você, e eu sei que você também está, assim como sei que Giovanni provavelmente não sabe que você está aqui. – Acusou e eu senti o estômago congelar mais uma vez. – Não precisa dizer nada, não quero te pressionar ou coisa assim.
- Eu preciso ir. – Anunciei, com os olhos arregalados e um pouco nervosa diante a declaração de .
- Desculpe, , não queria te assustar. – apertou os lábios.
- Não, tudo bem. Acho que...só não me acostumei ainda a ouvir você...talvez saber o que você realmente pensa...é novo. – Confessei.
- E eu ainda tenho muito para falar. – Ele balançou a cabeça, mordendo o lábio inferior. – Todas as vezes que quis dizer alguma coisa...mas não pude...em todos aqueles momentos...era tortura.
- Eu realmente preciso ir. – Repeti e segurou minha mão, criando aquela conexão mais uma vez.
- Não vá embora de novo. – Pediu e eu franzi o cenho, confusa com seu pedido. – Eu...eu queria muito que você viesse aqui...quando puder. Só não vá embora de novo.

Meu coração se apertou e precisei de muita força para não correr até e abraça-lo. Primeiro ele tinha me beijado, depois se declarado apaixonado e dito que não desistiria de mim e agora, me pedia para ficar. Doeria muito mais que a primeira vez, talvez fosse um dor tão excruciante que seria melhor a morte. Tudo que eu mais queria naquele momento estava ali, apaixonado por mim, me pedindo para ficar, e tudo que eu justamente não podia fazer era ficar. Não podia abraça-lo, beijá-lo, ficar com ele, ao seu lado. Talvez nós dois, embora tudo que nos envolvia, não estivéssemos destinados a ficar juntos.
- Eu prometo que não vou beijar você, a não ser que me peça. – Garantiu. – Mas por favor, volte.
- Eu vou. Prometo. – Afirmei, apertando os dentes, tentando não chorar. – Não vou embora desta vez.




| Continue lendo>> |