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- Feliz natal. – Giovanni me surpreendeu assim que fechei a porta atrás de mim.

Primeiro congelei com as mãos na maçaneta, coração acelerado enquanto ainda não conseguia forçar meus neurônios em choque a reconhecer a sua voz. Depois, quando me lembrei da sonoridade, girei em meu próprio eixo para encontra-lo sentado, com a filha nos braços que dormia tranquilamente. O rosto era iluminado pelas luzes de natal que piscavam entre os galhos da grande árvore na sala. O relógio acima de sua cabeça, na parede, marcava quase seis e meia da manhã e alguns raios de sol tímidos atravessavam as nuvens espessas e refletiam na neve acumulada na janela fechada.
Eu não reagi a sua presença, apenas o encarei sem dizer nada, com a cesta em uma mão e as chaves do carro em outra. Giovanni me encarava como se soubesse de algum segredo sujo e de fato sabia.
- Cedo para um piquenique, irmã. – Ele estreitou o olhar sarcasticamente e eu apenas levantei os ombros, como se não me importasse. – Eu estava me perguntando quanto tempo levaria até você voltar ao hospital.
- Quem te disse que eu estava no hospital?
- É sério, ? – Vanni arqueou uma sobrancelha. – Vai mesmo manter essa?

Expirei pesadamente e pousei a cesta no chão, depois me joguei sobre o sofá. Giovanni sabia de tudo, não haviam razões para que eu inventasse uma desculpa ou mentisse para ele, nem valeria o esforço mental.
- O que você quer que eu diga? – Perguntei, jogando a cabeça para trás, encarando o teto.
- Quando você vai contar ao ?

Ergui o corpo e arregalei os olhos.
- Enlouqueceu? Não vou contar a ninguém! Nem você!
- Pretende fazer isso, então? Ter um caso? – Giovanni inclinou-se para frente e sacudiu a cabeça negativamente. – Olha, eu gosto do , mesmo. Ele é incrível e eu apoio vocês dois juntos, mas também apoio . Ele é o cara mais tranquilo que eu conheço e como um cunhado amoroso e irmão preocupado, acho que você devia contar a verdade. Se separar, resolver a vida.
- Eu não estou tendo um caso com , Giovanni. – Declarei chateada.
- Não? – Ele uniu as sobrancelhas confuso. - Como? Mas...por que não?
- Porque aparentemente, ser madura e responsável tem a ver com deixar, abrir mão de coisas que me fazem feliz, do que eu realmente quero fazer para facilitar a vida dos outros. – Desabafei. – Para continuar servindo, para manter todos com suas necessidades sanadas e com seu estado de paz em segurança. Não importa a qual preço para mim.
- Não estou entendendo.
- Eu só...- Levantei-me, ainda mais enlutada pelo meu destino. – Só estou cansada de existir. De me sacrificar em silêncio. De fechar a porta para tudo que eu sempre quis, porque algumas vidas podem ser atingidas no caminho.
- ? Você está falando do seu marido e do seu filho. – Giovanni repreendeu empático. – Não se importa com eles?
- Com eles eu me importo. – Dei de ombros. – Só não sei quem ficou responsável por se importar comigo.


🍁


Era quinta, o ano novo estava perto e nós abriríamos o Eau de Mer, mas encerraríamos as atividades mais cedo, depois comemoraríamos o ano novo com nossas famílias. Os iriam para a casa de Giovanni, perto do centro, ver os fogos e as pessoas, ouvir os shows a distância enquanto bebíamos. Todos estavam se esforçando para parecer animados em passar a virada no centro em um apartamento pequeno demais para comportar toda nossa família barulhenta. Não iriamos ficar com a família de , porque segundo ele, já haviam sido muitas festas com a família , muito além do recomendado.
No Eau de Mer, as coisas iam plenas e douradas, muitas reservas para todos os dias, compras chegando, visitas de fornecedores. A cozinha estava lotada e o salão todo dia era redecorado com flores frescas da estação, apesar do frio que acabava com parte da essência praiana do restaurante, as flores, o cheiro de mar e as toalhas brancas quentes devolviam certo conforto e aconchego.
Enquanto me distraía da súbita vontade de falar com Dom que me ocorrera de repente e que não havia conseguido sanar, mesmo com três ligações e várias mensagens em sua caixa postal, tentava me concentrar em nosso estoque. Na despensa e em todos itens que precisariam ser repostos para o feriado.
- Chocolate, acho que temos o suficiente para o ano novo. Mas estou com medo de não recebermos o foie gras a tempo. – Falei enquanto Charles anotava.
- Você sempre cuidou dessas coisas tão de perto em todos seus restaurantes? – Ele quis saber, sempre atento e curioso com minha carreira na cidade grande.
- Sempre. Mas comecei picando legumes e lavando louça, limpando o chão, só tive acesso a isso muito tempo depois. – Contei saudosa. – Tive um professor...um chef que me ensinou tudo. Minha mãe. – Charles riu surpreso. – Ela ia ao mercado e passava horas analisando cada coisa, lendo rótulos, escolhendo as verduras e legumes. Às vezes até plantava os próprios, só para garantir a qualidade.
- Por essa eu não esperava. – Ele riu.
- Eu aprendi tudo que sei sobre culinária italiana com minha mãe, apenas refinei e aprendi os termos gastronômicos corretos na faculdade. – Pisquei. – Quando pude tomar conta dessa parte, já estava pra lá de formada.
- Você não pensou em abrir um francês em Nova York?
- Não. – Confessei, me afastando da despensa e aproximando-me dele. – Não, não sabia que queria um francês até chegar aqui. Sabe, Charles...as vezes a vida pode ser bem surpreendente. – Sorri e Charles fez o mesmo. – Você continua? Quero tentar ligar para o meu filho de novo.

Charles assentiu e eu me afastei um pouco, apoiando o celular no ombro, tentando falar com Dom pela quarta vez no dia, sem resposta.
- Que droga. – Resmunguei finalizando a ligação antes que caísse na caixa postal de novo. – Por que os filhos nunca atendem as ligações dos pais?

Charles riu nasalado, balançando a cabeça e ajeitando a bandana preta que afastava os cabelos castanhos dos olhos.
- Ele deve estar jogando alguma coisa, dormindo. Não precisa se preocupar. – Disse ele. – Está de férias. Quando eu era adolescente e estava de férias, não queria ficar no telefone com a minha mãe.
- Quando você era adolescente? – Ironizei, fazendo piada com a pouca idade dele, que rolou os olhos e depois sorriu.

Sorri sem mostrar os dentes, apesar de detestar as ocasiões onde Dom decidia simplesmente não atender o telefone, precisava ser prática. Pelo horário, devia estar em casa dormindo, nada para se preocupar. Mas ser mãe tinha daquelas coisas, decidir de repente e sem qualquer explicação que precisa ouvir a voz do filho, sem justificativa plausível, só porque seu coração quer. O tão famoso sexto sentido de mãe era realmente algo misterioso e inexplicável. Era ele agora que me infernizava, me incomodando como uma roupa apertada demais ou um sapato de um número a menos em um pé com bolhas.
- Quero garantias de que não vamos ter o mesmo problema que no natal, com fornecedor de aves. – Lembrei Charles, voltando para perto dele. – Eu gostei desse novo, queria que você me apresentasse, conhecer o espaço deles, essas coisas...
Peter, nosso maitrê, se juntou a nós com sua expressão pacífica de sempre e se aproximou de mim, me interrompendo educadamente.
- Seu esposo ligou, disse que não consegue falar com você no celular.
- E o que ele quer? – O olhei de soslaio.
- Pediu para avisar que Dom sofreu um pequeno acidente e o levaram para o hospital. Ele está enrolado e não vai conseguir acompanha-lo, perguntou se poderia.

Eu sabia.
Coração de mãe não se engana nunca, sabia desde o início que algo estava errado. Não fui capaz sequer de esperar Peter terminar sua frase, ouvi o resto da informação enquanto pegava minha bolsa e corria para a porta dos fundos, rumo ao carro. De longe, ouvi Charles e os outros pedindo para que mandasse notícias, mandaria se me lembrasse, mas no momento tudo que importava era encontrar meu filho e descobrir o que droga havia acontecido, se ele estava bem, onde estava e como tinha se acidentado. Queria saber porque soubera antes de mim, eu era a mãe, devia ter ficado sabendo primeiro, o que estava acontecendo com o mundo?
Mas nada daquilo era importante, a única coisa que conseguia ver ou querer ver era a entrada do hospital, e para lá me direcionei, sem me importar com mais nada. Tirando a dólmã e a jogando dentro do carro, afogada em ansiedade e medo.

🍁


Depois de atravessar a cidade e o hospital como um furacão, enfim encontrei Dom sentado sobre uma maca em um dos quartos do hospital. Estava cega de preocupação, e mesmo o enxergando ali, com um sorriso leve no rosto, corado e acordado, não parecia o suficiente para acalmar meu coração.
- Meu menino. – Disse o abraçando apertado, ignorando uma figura de jaleco que assistia a cena de dentro do quarto. Voltando a sentir o chão sob meus pés, como se em ter Dom em meus braços, quente e vivo me trouxesse de novo a vida, a realidade.
- Tudo bem, mãe. Eu estou bem. – Dom tentou me acalmar afastando o rosto do aperto de meus braços. – Tá tudo bem.
- Tem certeza? – Perguntei segurando seu rosto e analisando todo pedacinho dele que meus olhos podiam tocar. – Mas se não fosse nada importante, você não viria para cá. – Completei, o abraçando de novo.
- Não há com o que se preocupar, senhora . – A figura com jaleco se pronunciou com um sorriso. – Sou a doutora Dubeux. – Ela se apresentou, esticando a mão e eu apertei, ainda mantendo Dom próximo a mim.
- O que houve? Não precisa me esconder nada, pode falar a verdade. – Pedi nervosa e ela sorriu.
- Não foi nada sério...
- Eu caí, mãe. – Dom a interrompeu. – Estava jogando futebol e caí.
- O trouxeram por precaução, mas não houve nada. – A médica continuou. – Só um galo e uma torção no punho, por isso a tala. – Explicou paciente.
- Quem te trouxe? – Eu quis saber segurando os ombros dele.
- O senhor e senhora Spilner, pais do Tyler. – Ele contou.
- O que é que você estava fazendo com Tyler Spilner sem me contar, Dominic ? – Indaguei séria, sentindo a ansiedade e preocupação se tornarem irritação.
- Bom, Dom já pode ir para casa, é só assinar os papéis de alta e registrar a saída dele, senhora . – A médica se pronunciou. – Se cuide, Dom. Boa tarde!
- Eu posso explicar. – Dom sorriu amarelo, descendo da maca e eu estreitei o olhar como nunca antes.


Ter filhos era uma loucura. Suas prioridades mudam, o que importava antes deixa de importar, como um estalo. Um dia você define sua felicidade em estar em uma viagem com amigos, conhecer lugares novos, gastar dinheiro com pequenos ou grandes luxos ou em um fim de semana romântico com alguém especial. De repente, você passar a ser a pessoa mais feliz do mundo quando vai checar o bebê durante a noite e ele ainda está respirando.
Me lembrava das outras mães dizendo sobre os desafios da maternidade, das partes boas e ruins, me lembrava de cada vez que desdenhei e disse que seria diferente. Besteira. No final, a mãe perfeita não existe, não passa de um ideal romantizado pela mídia e pela sociedade para reduzir a mulher ou colocar sobre nós outro fardo de perfeição inalcançável. O que é real e verdadeiro não são mães perfeitas, mas sim mães que fazem tudo que podem com ótimas intenções. Não se trata de ser a melhor mãe do mundo, mas a melhor mãe que se pode ser.
Amar tanto alguém teria seu lado ruim, obviamente. Não que Dom fosse um filho dos tido como ruim, era o contrário, ele era um ótimo menino, quase nunca causava problemas ou confusão. Mas mesmo assim eu ainda era capaz de me assustar com meu estado, com meus pensamentos e com minhas atitudes quando ele estava em risco ou quando eu achava isso. Perdia a lucidez, era como se um espírito se apossasse, me tornando um tipo de animal feroz e selvagem protegendo a cria. Não combinava com a imagem de chef fria e elegante que eu sempre gostei de vestir. Mas ainda assim, aquela era a melhor parte de mim.
- Você pode me explicar agora o que foi que aconteceu? – Pedi, depois me sorrir me despedindo para uma recepcionista, pronta para atravessar o hospital até a saída.
- Eu juro que não fiz nada errado. – Dom se justificou. – Tyler estava com os pais dele, visitando a casa ao lado da nossa, que está à venda. – Contou. – Enquanto eles conversavam, nós fomos jogar no quintal e eu cai quando fui receber uma bola alta demais.
- Só isso? Tem certeza? – Desconfiei e ele assentiu rápido. – E quem te trouxe até aqui?
- Os pais do Tyler. – Falou ele. – Eles não puderam ficar porque tinham um compromisso, mas ligaram para o meu pai.
- Por que não ligaram para mim? – Perguntei, parando de repente no meio do corredor e o encarando, Dom levantou os ombros.

No fundo sabia o motivo, meu último encontro com Gina não havia sido muito amistoso, não a culpava por não querer falar comigo. Repentinamente me senti mal por tudo que havia dito a ela. Gina desde sempre tentara se aproximar, ser gentil, ajudava com Dom sem que pedíssemos, foi uma amiga quando tive a ideia idiota de apimentar as coisas com . Apesar da péssima ideia ter sido dela, também foi a amiga que precisei naquela fase. Devia um pedido de desculpas, se por acaso meu orgulho me permitisse.
- Dá próxima vez, me ligue. – Ordenei, voltando a andar e Dom voltou a me seguir.
- Mãe. – Ele chamou e eu olhei em sua direção, ainda andando. – Esse é o hospital que seu amigo está?

Senti os ossos congelarem por um instante.
- Por que?
- Eu queria ver ele.
- Não hoje, estou cheia de trabalho no restaurante e além disso, nós já viemos aqui no natal. Não quero aborrecer o com muitas visitas, em outro momento talvez. – Comecei a me justificar, falando rápido demais.
- Mas eu não estava. Por que vocês não me chamaram?
- Você estava com o vovô e a vovó. – Respondi.
- Por que eu não posso ir? – Dom parou no meio do corredor, era definitivamente um péssimo momento para fazer birra.
- Dom. Por favor, não insista nisso, já disse a você que temos que ir. – Sibilei.
- É rapidinho. – Dom sorriu.

Não estava em meus planos ver novamente tão cedo, nem o apresentar a Dom. Naquela tarde havia até mesmo esquecido que ele estava no mesmo hospital e estava feliz por isso. Não precisava de Dom insistindo sem razão para conhece-lo.
- Dom, hoje eu realmente preciso voltar logo. Mas posso trazer você outro dia, okay? – Propus, mas antes de Dom responder, algo chamou minha atenção, me fazendo tirar os olhos de meu filho.
- ! – Matt acenou animado, parecendo um parente que te encontra depois de vinte anos em um aeroporto.
- Matt. – Cumprimentei sem muita empolgação.
- Quem é vivo sempre aparece, não é? – Matt me abraçou, mesmo sem correspondência. – Como você está? E quem é esse carinha? – Perguntou apontando para Dom. – Não. Não me diga que ele é o seu filho. – Matt gargalhou batendo no ombro de Dom. – Caramba, você é idêntico ao seu tio, não é? Caramba! Sua mãe...eu tenho várias histórias...
- Querido, este é Matt Shay. Um amigo dos tempos da escola. – Apresentei sem jeito.
- Dom. – Ele estendeu a mão educado e eu teria ficado orgulhosa se em outra situação.
- Ai ai ai, cumpadre. – Matt imitou um espanhol péssimo. - O que foi isso aí? – Quis saber apontando para o pulso enfaixado de Dom.
- Torci jogando futebol e ainda bati a cabeça. – Dom contou orgulhoso.
- Você joga futebol? – Matt gargalhou jogando a cabeça para trás. – Sabe, eu joguei futebol na minha época. Era o melhor do time.
- Não, não era. – Falei sem pensar.
- Era sim. – Matt se defendeu.
- Não, não era. era. – Repliquei.
- , o seu amigo? – Dom perguntou para mim, animado com a conversa.
- Esse mesmo. – Matt assentiu. – Você já conhece ele? – Dom negou e antes que eu pudesse me pronunciar, Matt começou a o arrastar pelo corredor. – Vamos resolver isso então, ele vai amar te conhecer. Tenho certeza. E você também.
- Matt. – Chamei correndo atrás deles. – Eu sinto muito, mas realmente preciso ir. Trabalho, sabe?
- Ah, entendo. – Matt piscou algumas vezes. – Sinto muito, cara. – Disse, batendo no ombro de Dom, que trancou a expressão em um bico frustrado.

Dom torceu o canto da boca num tipo de sorriso frustrado e baixou o olhar. Eu mantinha os dentes apertados, apreensiva e ansiosa para ir embora, Matt encarou Dom e apertou os lábios pensativo.
– Quer saber, eu acho que tive uma ideia. – Matt sorriu comovido. – Por que você não vai e eu levo ele para casa depois?
- É, mãe. – Dom concordou sorrindo grande e eu me perguntei para onde tinham ido todo sermão sobre não aceitar caronas de estranhos.
- Vai ser bom para ver alguém diferente e eu me responsabilizo, estou de viatura e tudo. – Matt sorriu orgulhoso. – Pode ir tranquila. A mamãe ocupada aí, pode deixar com o tio legal e ir trabalhar.
- Eu não sei. – Tentei ganhar tempo para pensar em uma desculpa.
- Relaxa, . Está decidido, deixo ele em casa ou na casa dos seus pais, podemos dar um rolê de viatura também, mostrar a delegacia...se der tempo podemos até ligar para o Giovanni e tomar um suco. – Matt começou a puxar Dom para o caminho do quarto de .
- É, mãe, vai ser legal. – Dom sorriu para mim. – Você é policial? Tem uma arma de verdade? Eu posso ver? – Pediu a Matt, ignorando minha figura estática no corredor.

Não sabia se era um pesadelo se tornando realidade ou um sonho, não sabia como me sentir a respeito daquela cena e acontecimento. Dom estava indo até , mais um nó na teia complicada que minha vida havia se transformado. Como eu pretendia continuar fiel e casada com fazendo visitas mais que semanais a , apresentando ao meu filho. Não que eu estivesse sendo fiel, já o tinha beijado duas vezes, mas gostava de pensar que o esforço mais que dolorido para me manter longe serviria como penitência para me livrar desse pecado.
Estava parada, congelada em meio a um corredor movimentado, com pessoas que pareciam me atravessar. Inerte, sem saber o que fazer ou como reagir. Devia me manter firme e ir embora, confiando que Matt traria Dom são e salvo? Ou atender a minha curiosidade e ir até aquele bendito quarto para vê-lo com meu filho?
Como reagiria a Dom? Ele diria algo? Estaria curioso para conhece-lo? Dom gostaria dele? Me perguntava essas coisas e muitas outras enquanto me mantinha tão automática que quando percebi, estava há alguns metros da porta de .
A porta estava entreaberta e eu podia ouvir os risos que ecoavam, ocupando aquele canto do hospital. A risada alta e escandalosa de Matt, a gargalhada que as vezes denunciava o início ou quase da puberdade de Dom e o riso harmônio e doce dele. estava gargalhando. Dom estava gargalhando.
Tentei me aproximar, queria com todas as minhas forças ouvir o que falavam.
- Ele nunca teve altura para um quarterback. – Matt implicou com alguém.
- Isso nunca me impediu de ser melhor que você. – devolveu.
- Você e o convencido do Oliver vivem dizendo isso, mas eu fiquei dois anos a mais que os dois no time. Ninguém passava quando eu estava na linha de defesa. – Matt argumentou cheio de si.
- Você fez o último ano duas vezes, Matthew Shay. – lembrou como se fosse óbvio e eu tentei não rir alto. – É claro que esteve por mais tempo no time.
- Você jogou com tio Oliver também? – Dom quis saber.
- Não. – negou e pelo tom de sua voz, de alguma forma, soube que estava sorrindo. – Eu conheci o outro irmão, Giovanni. Ele me ajudava, estudávamos juntos, mesmo eu sendo um pouco mais velho e nos tornamos amigos. – riu e Matt o acompanhou.
- Giovanni sempre foi um Eistein. Mais inteligente que a maioria, por isso sempre estava nas turmas avançadas ou com turmas mais velhas. – Matt lembrou.
- É, uns com tanto e outros com tão pouco. – provocou e ouvi Matt resmungando.

Me aproximei um pouco mais da porta.
- Giovanni não era do time, ele gostava de outras coisas. – continuou. – Depois, por causa dele eu conheci os gêmeos. – As palavras dele fizeram meu coração esquentar. – Seu tio Oliver e sua mãe.

Fez-se silêncio.
- Eles eram diferentes do Giovanni, muito diferentes. Eram populares e descolados. – recordou e Matt concordou com uma risada. – Tinha o Ted também e a Gina. Eles andavam juntos e tinham uma mesa. Oliver não era do time nessa época, não ainda.
- Minha mãe era popular? – Dom perguntou curioso e eu balancei a cabeça, soltando um riso nasalado.
- Sua mãe? – riu também, parecia saudoso. – Sua mãe era super popular. Ela era confiante, inteligente, os professores gostavam dela, os alunos gostavam dela. Todo mundo queria estar por perto.
- Era maluquinha também. – Matt completou e eles riram.
- Vocês não andavam juntos? Você era popular, não era? Era do time. – Dom continuou investigando.
- Eu não ligava muito para essas coisas, e além disso sempre ficava com o pessoal do time e era tímido. Não gostava muito dessa atenção toda. – se explicou.
- Não acredita nele. – Matt interveio. – Ele era popular, vivia rodeado de pessoas também. Só que tinham vários grupos de populares, mas não se engane com esse aqui.
- Só tio Vanni que não era popular? – A pergunta de Dom me fez sorrir de novo.
- Ele não se dava muito bem com os irmãos, acho que não combinava. – Matt lembrou. – Mas todos o conheciam por ser muito inteligente e pelo teatro.
- Dá para ser popular com teatro? – Dom quis saber.
- Como você acha que Giovanni e conseguiam namoradas? – Matt acusou e os três riram.
- Não é bem assim, não era tão fácil. – defendeu, ainda rindo. – Por que pergunta? Não me diga que Giovanni te convenceu a entrar para o teatro também.

Fez-se silêncio novamente, Dom não respondeu e fiquei um pouco apreensiva.
- E você é bom? – perguntou docilmente.
- Eu acho que sim. Eu gosto, mas as vezes tenho vergonha. – Confessou.
- Você é o quarterback, é um cara durão. É de Nova York e Paradise é uma cidade pequena, com certeza todos devem ficar morrendo de medo de você. – falou com delicadeza. – Qual é, você quase veio da Broadway.
- É isso aí! – Matt concordou. – Se alguém implicar com você, chama a galera do time.

Os três riram e eu sorri, feliz e aquecida. Dom parecia à vontade com eles, estavam se divertindo e tranquilos. Talvez aquele fosse o super poder de , fazer com que todos se sentissem a vontade ao seu lado.
- . – chamou e eu me inclinei um pouco para mais perto da porta. – Como o filho do cara dos búfalos acaba no time de futebol e não hockey? – Indagou e eu pude sentir a acidez ocupar todo ambiente.
- Não tem hockey na escola. – Dom deu de ombros. - Ele queria que eu fosse parte da equipe de natação, mas não gosto. Às vezes ele joga futebol comigo, as vezes jogamos hockey também.
- Espera aí, você conhece o marido da ? – Matt perguntou confuso.
- É, a gente se esbarrou. – não deu muita atenção a pergunta. – E você gosta mais de futebol, não é? Aposto.

. Onde você pretende chegar? Perguntei junto a meus neurônios, baixando a cabeça e começando a me preocupar.
- Não, eu gosto dos dois. – Dom respondeu com simplicidade. – Mas gosto mais do teatro, eu acho.

Matt riu entredentes e fez silêncio.
- Olá, . – disse de repente, me fazendo arregalar os olhos e levantar o rosto devagar.

Me revelei, não sabia como tinha me descoberto em meu quase esconderijo, aparentemente ele estava ficando bom nisso. Devia estar com o rosto em chamas, vermelho como uma pimenta e estava morta de vergonha.
- Achei que ia embora. – Matt falou inclinando a cabeça sobre o ombro, confuso.
- É, mudança de planos. – Disse entredentes. – Não quis te dar trabalho. Já que já se conheceram, podemos ir agora?
- Mas mãe, eu ainda não andei de viatura. – Dom choramingou. – E está legal aqui.
- deve querer descansar e já está ficando tarde. – Falei, olhando em seus olhos. – Além disso, seu pai deve estar preocupado com você.
- Eu estou bem, ele pode ficar o tempo que quiser. – pôs lenha e eu o ignorei, estava evitando olha-lo desde que entrei no quarto.
- E você também precisa descansar, foi um baita susto hoje. – Continuei e estiquei a mão, bagunçando os cabelos de Dom.
- Mas está divertido aqui, mãe. – Tentou argumentar.
- Sua mãe tem razão, Dom. – disse depois de um longo suspiro. – Vou continuar aqui, pode vir me visitar quando quiser, fazendo companhia a sua mãe. – sugeriu e eu apertei os lábios, ainda sem encará-lo. – Na próxima te conto algumas histórias sobre o treinador, o que acha?
- Sim. – Dom riu, aproximando-se de e o cumprimentando.
- Vamos, querido. – O chamei.
- Quer ver a viatura antes de ir? Promessa é dívida. – Matt propôs e ele concordou, acenando para , que assentiu depois que Matt sussurrou um “já volto”.
- Tchau, . – Disse sem olha-lo e lhe dei as costas.
- . – Ele chamou, com o tom um pouco mais firme.

Congelei mais uma vez.

🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Aquilo - Silhouette🎵


- Por favor, . – tornou a falar.
- Podem ir na frente, alcanço vocês. – Sorri leve para Dom e Matt, que seguiram seus caminhos.

Stood at the cold face, stood with our backs to the sun. I can remember being nothing but fearless and young
Ficamos no lado frio, parados com nossas costas para o sol. Posso lembrar-me de ser nada além de destemido e jovem



- Achei que tínhamos um combinado sobre não fazer isso, não de novo. – apontou com um pouco de chateação na voz, enquanto eu ainda estava de costas. – Pode pelo menos olhar para mim? Por favor.
- O que você pretende com isso? – Indaguei girando em meu próprio eixo e me aproximando dele, para que pudesse falar baixo e não correr o risco de ser ouvida.
- Não sei do que está falando. – uniu as sobrancelhas, diminuindo o olhar e levantou o queixo, como se estivesse confuso.
- Mas eu sei. – Acusei. – Falar para que meu filho me acompanhe nas visitas?
- É pecado querer que você me visite?
- O que você está fazendo, ? – Perguntei, depois de expirar pesadamente e balançar a cabeça.

We’ve become echoes, but echoes, they fade away, We've fallen to the dark as we dive under the waves (I heard you say)
Nos tornamos como ecos, mas ecos desaparecem, caímos no escuro enquanto mergulhamos sob as ondas (Eu ouvi você dizer)



- Você não levou a sério quando disse que ia estar aqui? Que não ia desistir? – inclinou-se um pouco em minha direção.

Me permiti observá-lo, tinha os cabelos recém cortados, cheirava a sabonete e a barba estava feita. Usava um moletom escuro e parecia saudável, corado e com olhos atentos e alerta.
- Não pretendo usar seu filho, se é isso que te preocupa. – Ele continuou. – Dom parece um bom garoto, gostei dele não só porque é seu filho. Não sou covarde a ponto de usar uma criança contra o casamento dos pais. Mas, se ele quiser me ver mais vezes e com isso eu puder ver você junto...desculpe, , mas não me peça para não o incentivar.

Devil's on your shoulder, strangers in your head, as if you don’t remember, as if you can forget
O diabo está em seu ombro, estranhos em sua cabeça, como se você não lembrasse, como se pudesse esquecer



- Eu não posso estar aqui. Não posso ficar vendo você. É como se eu traísse toda vez que cruzo aquela porta. – Falei nervosa. – Não viria aqui hoje se não tivesse sido quase obrigada.
- Eu sei. – sorriu triste. – E é por isso que preciso me agarrar a qualquer chance de ter você aqui.
- Isso não vai dar certo. Para ninguém. – Me afastei o suficiente para que seu rosto sumisse de meu campo de visão. – Você os viu. Conheceu , conheceu meu filho. Agora me diga, , e seja sincero. O que você faria no meu lugar?
- Eu não posso dizer isso, não sou você. – afastou a manta que o cobria e se arrastou para mais perto de mim. – Não dá para mudar o passado, mas por isso se torna justo condenar o futuro?

It’s only been a moment, it’s only been a lifetime, but tonight you’re a stranger, some silhouette
Foi apenas um momento, foi apenas uma vida, mas esta noite você é um estranho, apenas uma silhueta



- Se fosse eu, há quinze anos atrás te pedindo a mesma coisa. Deixaria Sarah por mim? – Indaguei.

não respondeu de pronto, pareceu pensar, abriu a boca algumas vezes e depois baixou a cabeça.
- Você acha que eu estou fazendo isso porque...porque a Sarah...- Ele não continuou.
- Se tudo estivesse bem, talvez não teríamos essa conversa...talvez nunca teríamos conversa alguma. – Desabafei.
- Ou talvez nos encontrássemos no estacionamento da escola, no mercado ou no seu restaurante. – continuou, ainda de cabeça baixa. – E tudo mudaria, como mudou quando você entrou aqui pela primeira vez.
- Existem muitos talvez e se nessa conversa.
- Você está com medo, é compreensível...- começou a argumentar, mas eu o interrompi.
- Medo? – Ri sem humor. – É simplificar demais.
- Então é isso? – Questionou sem me olhar, parecendo ter entendido o que eu, apesar de dizer, não queria aceitar.
Suspiramos pesadamente, juntos.
- Você escolheu. – Ele entendeu. – Você está me dizendo que já escolheu? - Perguntou.
- Eu aprendi que certas escolhas não têm volta. – Falei, estava certa de que aquela era mais uma vez a escolha certa. – Fiz essa escolha quinze anos atrás, não podia prever o que aconteceria. Não posso voltar atrás hoje.
- Você pode fazer outra escolha agora, nada é permanente. – Ele argumentou.
- A aliança no meu dedo e um garoto me esperando lá em baixo dizem que não.
- E é isso? Mais uma vez... – Fora a vez de rir sem qualquer traço de humor, um riso frio que me fez gelar a alma e arrepiar a nuca. – Agora seria a hora que você se explica e diz que apesar do que sente, precisa fazer uma escolha que julga ser altruísta. Você vai embora e eu fico aqui pensando o que podia ter feito de diferente, remoendo o último ano e rezando para que essa doença apague minha memória ou me mate de vez. Sofrendo como um cachorro, sem nem mesmo entender porquê. Visitando cada momento, analisando, tentando imaginar formar de consertar...se ao menos eu pudesse ir até ela...se eu pudesse contar como me sinto...se tivesse a chance...- Ele riu mais uma vez. – Aparentemente nada adiantaria, não é?

Mordi a boca e respirei fundo, não queria chorar mais uma vez.

Let's go out in flames, so everyone knows who we are. 'Cause these city walls never knew that we'd make it this far. We've become echoes, but echoes are fading away. So, let's dance like two shadows, burning out a glory day
Vamos terminar espetacularmente, para que todos saibam quem somos. Porque os muros dessa cidade nunca souberam que chegaríamos tão longe. Nos tornamos como ecos, mas ecos estão desaparecendo. Então, vamos dançar como duas sombras, aproveitando um dia de glória



- Da outra vez pelo menos tudo fazia mais sentido, dessa vez você mal pode olhar para mim, não é? O que é, ? O que te impede? A culpa ou vergonha?

Não respondi, estava concentrada demais em me manter estável, sem choro. Não conseguiria explicar o caos para Matt ou Dom. A raiva de era justa e eu me achava uma pária, a pior pessoa do mundo por provocar aquilo, merecia a raiva dele, a mágoa. Se alguém merecia ser punido por tudo aquilo, era eu.
- Mas...- hesitou. – Eu não vou implorar de novo. Dessa vez não. – Ele sacudiu a cabeça negativamente. – Também estou cansado. Não quero ser...você fez sua escolha e embora eu tenha dito que iria brigar por você, me referi a brigar com . Não quero ser o homem a te convencer de algo que não queira. Não quero esse lugar, não era o lugar que achei que tivesse, de qualquer modo.


Devil's on your shoulder, strangers in your head. As if you don’t remember, as if you can forget. It’s only been a moment, it’s only been a lifetime, but tonight you’re a stranger, some silhouette
O diabo está em seu ombro, estranhos em sua cabeça. Como se você não lembrasse, como se pudesse esquecer. Foi apenas um momento, foi apenas uma vida, mas esta noite você é um estranho, apenas uma silhueta



voltou a sua posição inicial no leito e apoiou a cabeça nos travesseiros, fechando os olhos e eu pude encara-lo de novo.
- Dessa vez eu não vou implorar, nem pedir que volte ou fique. Não faz sentido. – Declarou. – Não quero ser a pessoa a tornar isso tudo pior. Não precisa voltar, . Também não precisa ficar.

Era merecido, mais que merecido. Mas sentir a dor na voz de me matava, sentir a tristeza, ver seu estado, seu queixo tremendo quando ele tentava segurar o choro, a voz embargada e tudo por minha culpa. Estava sendo estraçalhada.
- Na verdade, eu até prefiro que não venha. – Pediu ele. – Você vem e eu me encho de esperanças, fico imaginando um futuro, pensando em possibilidades...vendo seu rosto todos os dias quando acordo, porque preciso melhorar para você...e então você diz que apesar de gostar de mim, isso não é certo, não pode deixar a vida que tem por mim. Por nós. – Ele continuou de olhos fechados. - Fica meses longe, sem qualquer notícia ou sinal. Então quando sua vida fica tediosa demais, ou precisa de alguma reviravolta para movimentar sua rotina, vem aqui, aparece e eu...- abriu os olhos, ferido profundamente e cuspiu as palavras. – E eu estou aqui. Ansioso. Mal podendo respirar porque você chegou e enfim está comigo. Mas...o que é que eu posso fazer, não é? – O riso frio inundou o quarto de novo. - O destino...talvez seja eu o problema.

It’s only been a moment, it’s only been a lifetime, but tonight you’re a stranger, some silhouette
Foi apenas um momento, foi apenas uma vida, mas esta noite você é um estranho, apenas uma silhueta



- Eu entendi. – Me pronunciei pela primeira vez, esfregando os olhos com as costas das mãos, secando algumas lágrimas teimosas.
- Eu não quero isso. Não é o que eu quero.
- Mas tem que ser assim. - Tentei ser firme, mesmo desmoronando por dentro.

Ficamos em silêncio por alguns instantes que pareceram horas. Então assim seria, alguém sofreria e eu sem querer tinha sentenciado , um inocente que sofria por minha causa. A última pessoa que queria magoar no mundo, o homem que eu estava apaixonada. O homem que eu sempre fora apaixonada. Poupando meu casamento, meu marido e filho eu estava o entregando, sacrificando o único olhar capaz de me trazer paz e segurança, a única risada capaz de me fazer estremecer por dentro. Estava dilacerando um coração cujo as expectativas eu alimentei para depois partir, sem pensar duas vezes.
Não sabia qual era a sensação de perder alguém próximo para a morte, nem qual era a sensação de morrer, mas desconfiava que a dor que sentia adormecer meu corpo era semelhante a estas de algum modo.
- Quando você...quando passar por essa porta hoje...vou me esforçar para esquecer que tudo isso aconteceu. – Alertou ele, com certa expectativa no olhar.- Então se por acaso você não tem certeza ou se...só me diga. Eu só preciso de uma palavra sua. Uma palavra sua ou eu vou ter que descobrir um jeito de te arrancar de mim.
- Eu espero que consiga.

Disse e fui embora. Sem vida.

But tonight you’re a stranger, some silhouette
Mas esta noite você é um estranho, apenas uma silhueta





10

Trinta minutos para meia-noite.
Estava debruçada no parapeito, encarando a noite, ouvindo os sons das muitas festas de réveillon se misturarem em um eco sem sentido. Tinha bebido algumas taças de vinho e estava sozinha, Dom brincava com alguém na sala e estava junto dos outros, comendo e rindo de alguma piada boba. Oliver, magicamente estava de volta. Havia aparecido de surpresa algumas horas antes, com a pele queimada de sol e uma barba digna de um viking antigo, usando dreadlocks que chegavam até quase sua cintura.
As histórias de meu irmão gêmeo pareceram providenciais para distrair a família da minha apatia crônica, todas as atenções estavam voltadas a Oliver e eu podia desaparecer de tempos em tempos sem precisar me explicar. Depois da montanha-russa de emoções que foram os dias desde o natal, não sentia nada. Absolutamente. Eu era um vazio sem sentido, início ou fim. Me lembrava todos os dias das palavras de , de sua voz embargada e de sua expressão triste e decepcionada e morria todos os dias por isso.
Fora tudo muito rápido, em um encontro estávamos dizendo de nossos sentimentos e prometera lutar por mim, para que no encontro seguinte eu destruísse todos seus planos. A sensação que tinha sobre e eu era de que tudo era ao mesmo tempo rápido e lento demais. Como uma história escrita sem pausas, não havia um espaço de tempo em que tivéssemos aproveitado o tempo de paz entre nós. Aproveitado a possibilidade de enfim ouvir sua voz, conversar, coisas simples e que sempre nos foram tomadas.
- Sabia que já é dois mil e quinze em algum lugar no mundo? – Oliver surgiu de repente, deixando um dos braços sobre meu ombro e falando perto o suficiente do meu rosto para que eu me sentisse incomodada com seu hálito.
- Quando foi a última vez que você foi ao dentista? – Indaguei, tentando empurrá-lo.
- E quando foi que você se esqueceu o que é uma festa? – Ele devolveu sorrindo, bêbado.
- Quem esqueceu o que com quem? – Giovanni se aproximou de nós, trazendo duas taças de vinho, uma para ele e outra para Oliver.
- Vocês precisam me atualizar. – Oliver pediu, apoiando as costas no parapeito e erguendo um dos dedos, chamando atenção. – De zero a dez, sendo zero a participando de piqueniques no parque e dez, se mudando para outro planeta e recomeçando a vida outra vez. Onde estamos?
- Onze. – Giovanni ergueu a taça em minha direção, sorrindo e eu franzi o cenho.
- Oi? – Estava começando a perder a paciência com aquele tipo de brincadeira idiota. – Sinceramente...
- , escuta. – Giovanni inclinou-se para mais perto, também estava bêbado e os cabelos já estavam desordenados. – Amanhã vamos ao hospital ver o , pode ir com a gente e não precisa fugir como da última vez.
- Giovanni! – O repreendi, mas percebi pelo vinco entre as sobrancelhas de Oliver que ele havia escutado e que era tarde demais.
- Você fugiu para ver ? ...- Oliver riu alto, jogando a cabeça para trás. – Que malandra.
- Não é bem assim. – Tentei me justificar, balançando a cabeça negativamente. – Foi uma visita de cortesia.
- No meio da noite de natal. – Giovanni continuou a me entregar. – Chegou só pela manhã. De fininho.
- Obrigada, Giovanni! Sinceramente. Muito. Obrigada. – Ralhei irada, apertando os dentes e tentei me afastar dos dois, mas Oliver me seguiu.
- Você está tendo um caso?
- Não, Oliver. Não. – Neguei sem olhá-lo, ocupando outro canto da varanda, dando as costas para os dois.
- Por causa do e Dom. – Giovanni explicou a ele, tentando falar baixo e eu tentei controlar minhas emoções, se demonstrasse qualquer pedaço da raiva que sentia por Giovanni estar contando tudo a Oliver, outros poderiam descobrir também.
- Ah...Então é isso. Por isso está tão amarga. – Oliver percebeu e eu voltei-me para eles, girando em meu próprio eixo e o encarando, sentindo um olho piscar de forma involuntária.
- Não estou amarga. Você não pode falar do que não sabe.
- Claro que está. – Oliver apontou, sorrindo. – Você vive amarga, . É seu estado natural. – Aquilo me feriu de modo inesperado. Abri a boca, tentando dizer qualquer coisa que tivesse potencial de feri-lo na mesma proporção, mas não pude.

No instante seguinte todos se amontoaram na varanda, juntando-se ao trio de irmãos, estava começando a contagem regressiva. Com os olhos ainda presos as írises azuis de Oliver, ferida e chocada por estar ferida, ouvi a contagem e depois os fogos que coloriram o céu, estática, lacônica. Amarga.
Era assim que me viam todo esse tempo?
Era assim que eu era? Amarga.
Talvez fosse, depois dos últimos meses, percebendo todas as minhas estupidezes, sabia que tinham razão. O grande problema não era eu ser alguém amarga, mas sim que todos soubessem, uma vez que eu, em minha inocente arrogância, sempre imaginei saber esconder muito bem aquele fato.
🍁


bateu sem muito jeito em minha cabeça enquanto tateava o despertador que devia estar do lado oposto e que gritava irritante, me acordando do modo mais abrupto possível. Ele resmungou contra o travesseiro, depois ergueu o rosto em minha direção.
- Você está acordada?
- Não se você me deixasse dormir. – Resmunguei enquanto me virava de costas para ele.
- São dez horas. – constatou com voz de sono. – Eu acho que bebi demais. Nunca dormi até tão tarde desde que sai da adolescência.
- Então levante e vá fazer o café, ainda tenho pelo menos duas horas de sono. – Falei, cobrindo o rosto com o cobertor.
- Acho que você devia se levantar também. – sugeriu enquanto se arrastava para fora da cama e abria as cortinas de uma vez, iluminando o quarto por inteiro.
- Por que você me odeia?
- É ano novo, . – Ele sorriu e ao contornar a cama, dirigindo-se ao banheiro, inclinou-se sobre mim e beijou minha testa. – É feriado.

Puxei o coberto mais para cima e xinguei mentalmente todas as gerações por terem criado . Poucas coisas tiravam meu humor como acordar cedo ou não dormir ao menos oito horas de sono. Na noite anterior, depois da queima de fogos, resolveu que seria o dia em que ficaria o mais bêbado possível e depois de duas garrafas de vinho, apagou no sofá. O transito no centro estava péssimo e gastamos duas horas a mais para chegar em casa. Eu estava cansada, com sono e com uma suave ressaca pela noite anterior, enquanto cantarolava uma música qualquer durante o banho do modo mais desafinado possível.
- Me convidaram para uma partida de hóquei no gelo hoje, mais tarde. – contou e eu afastei o cobertor dos olhos, passando a acompanhar seus movimentos, ainda com visão embaçada pelo choque com a claridade. – O pessoal do escritório. – Ele falava com o celular em uma das mãos, enquanto secava os cabelos com a toalha

estava com uma toalha marrom enrolada na cintura e outra sobre o ombro, o abdômen definido completamente a mostra, e o peito parecia ainda mais firme, talvez pelo frio. Demorei algum tempo contemplando a tatuagem acima do peito esquerdo, marcando a pele sobre o músculo definido. Era uma rosa dos ventos, desenhada com a delicadeza de um presidiário e que já começava a adquirir um aspecto esverdeado. Mais abaixo, do lado direito do abdômen, quatro símbolos chineses que eu sabia significar harmonia, virtude, sabedoria e moralidade. Aquela tatuagem era mais antiga, feita na faculdade de modo exagerado para esconder a quase invisível cicatriz de uma apendicite.
Quando se virou para escolher o que vestiria, meus olhos caíram sobre outra cicatriz levemente curva em sua cintura, alguns centímetros de distância do quadril. Era a herança de uma de nossas viagens, quando tivera a brilhante ideia de mergulhar para ver os corais sem qualquer proteção ou um guia.
- O que foi? – Ele sorriu ao me flagrar o analisando.
- Contemplando o que me resta de marido. – Provoquei e ele riu nasalado.
- E te resta muito. – Ele balançou a cabeça, ainda apenas de toalha e se aproximou de mim, sentando-se na beira da cama. – Foi um ano bem intenso.
- É, eu sei bem. – Sorri arregalando os olhos e ele riu de novo.
- Você mudou. – disse, esfregando minhas pernas sobre o cobertor. – Está mais aberta, mais madura, diferente.
- O que posso dizer? Acho que precisava enfrentar algumas coisas. – Dei de ombros, fingindo não estar feliz com sua validação. – Foi bom redescobrir Giovanni, meus pais, Oliver e essa cidade.
- Eu também gostei. Aprendi a amar Paradise. – sorriu com doçura e meu coração se apertou um pouco. – Estou feliz aqui, com você e Dom, com nossa família.
- É, eu também estou. – Falei, tentando afastar as memórias do último encontro com de minha mente culpada. – Aprendi a valorizar o que nós temos.
- O que nós dois temos é a melhor coisa que existe. É nossa melhor parte. – segurou minhas mãos e eu assenti. – Nós...nossa amizade e companheirismo é maior do que qualquer coisa. Você é a mulher que eu mais amo no mundo.
- Que bom. – Sorri, tentando disfarçar a culpa. – Que bom que nos amamos.
- É, esse ano foi meio confuso e nós...acho que encaramos a realidade dos fatos e eu gostei disso. É a hora de renovar nossos votos por mais um ano. – Ele brincou, beijando minha aliança e me encarando com seus belíssimos olhos azuis, capazes de deixar qualquer mulher de pernas bambas.
- Fala sério. – Rolei os olhos sorrindo.
- , aceita ser minha parceira, companheira e amiga por mais um ano maluco? – Perguntou segurando minha mão esquerda.
- Que pergunta idiota, quem aceitaria isso? – Fingi enquanto me sentava, mas depois sorri fraco. – Eu assinei um contrato. – Pisquei. – Eu aceito, Pertenço a você até que me mande embora, ou que você faleça. – Pisquei, implicando e ele sorriu grande, enquanto eu ignorava o peso invisível daquelas palavras.
- Então temos um pacto. – Ele sorriu, beijou minha mão e depois selou nossos lábios rapidamente.

Continuei com um sorriso manso nos lábios enquanto se afastava cantarolando, para se vestir. Me corroía a hipótese de contar a ele sobre , sobre minha traição e sobre minhas dúvidas. Mas agora, já não havia qualquer sentido em fazer isso, não existia mais a possibilidade de estar com , de escolhe-lo. Minha escolha estava feita e se não fosse , não seriam mais ninguém.
Não era como se eu estivesse com um grande prejuízo. Estava bem com , éramos felizes, parceiros. Ele era um homem inteligente e absolutamente atraente, poderia me esforçar para aproveitar mais década ao seu lado. Talvez precisasse aceitar aquela vida e deixar de me lamentar, esquecer para não ser sempre presa e torturada por lembranças que nunca poderiam ser revividas. O sorriso de direcionado a mim e por minha causa, suas piadas, seus olhares, seu toque, seu beijo. Tudo que eu mais queria no mundo e que conscientemente havia negado. Era como se meu maior desejo tivesse se realizado e eu não desse a mínima.
As palavras de Oliver também ecoavam em minha cabeça. Amarga. Talvez eu realmente fosse ou estivesse me tornando uma pessoa amarga, mas quem era ele ou qualquer um para me julgar. Estava sofrendo muito e em silêncio, sem o benefício de sequer desabafar com alguém. Só uma pessoa poderia me julgar, e infelizmente eu já conhecia seus pensamentos sobre mim.
Mas não podia deixar que isso respingasse em mais alguém, ou me tornar a que partira de Paradise anos atrás. Tinha feito uma escolha e precisava lidar com as consequências dela, feliz ou infelizmente. merecia uma esposa agradável, Dom uma mãe devotada, meu restaurante uma chef profissional e a minha família merecia uma ao menos um pouco mais gentil.
- Pensei em levar Dom ao jogo comigo. – gritou do banheiro. – O que acha?
- Ele vai gostar. – Concordei, levantando-me devagar.
- Preciso evitar que ele se esqueça do hóquei. – riu. – Principalmente se estiver convivendo com pessoas como seu amigo .

Congelei onde estava, sentindo meu sangue coagular por inteiro de uma só vez.
- Ele precisa de boas influencias, isso sim. – continuou. – Aliás, como ele está? Já está pronto para aquela aposta? – Ele quis saber, colocando a cabeça para fora do banheiro e me encarando com olhar doce e expressão leve.
- Eu não sei. – Respondi rápido, assustada e franziu o cenho.
- Como assim?
- Não o tenho visto. – Confessei marmorizada.
- Mas...- hesitou, apoiando o ombro no batente da porta. – Há alguns meses você mal ficava em casa, viva no hospital e agora que ele parece melhorar, você não tem ido mais?

Dei de ombros, fingindo indiferença e fiquei de costas para ele, daquele modo conseguiria disfarçar melhor caso minha expressão me traísse.
- Aconteceu alguma coisa? – Ele se aproximou, mudando o tom suave para um mais severo, inquisitivo e preocupado. – Por acaso ele disse algo a você? Algo que te ofendeu? Porque se for isso...
- Não, . Não. – Respondi firme, erguendo uma mão e o encarando. – Só estou ocupada. Tenho meu restaurante, você e o Dom, minha família e várias outras coisas. Não posso passar tardes papeando no hospital. Nada é mais como antes.
- Tudo bem. – assentiu com suavidade e expirou com calma. – Tudo bem, se é assim, tudo bem.

🍁


Depois do almoço, foi para seu jogo de hóquei levando Dom consigo. Minha cabeça estava tão culpada e pesada que já nem conseguia entender o que realmente me afetava e o que só causava efeito pela consciência pesada. Desde o natal tudo que antes era confusão, parecia mais claro. A escolha estava feita e não havia mais como voltar atrás e talvez fosse por isso que minha infelicidade me angustiava tanto.
Amava e em momento algum aquilo foi uma mentira, sabia que ele me amava também e me apoiaria sempre. Perceber seu corpo, relembrar das cicatrizes e das tatuagens me mostravam que aquele homem me era querido e que apesar dos apesares, me atraía de alguma forma. Amava nossas histórias, poderia contar cada uma delas por horas sem me cansar, amava seu jeito despreocupado e centrado ao mesmo tempo. Me encantava com sua aptidão para coisas naturais e esportes e, sabia, que se precisasse de conselhos sobre mercado financeiro e academia, polo aquático ou pesca, ele era a pessoa certa. Éramos íntimos, conhecíamos o corpo um do outro, os gostos e desgostos, conhecíamos feridas antigas, traumas. Só eu sabia de seu terrível pavor de esquilos e só sabia das minhas teorias mais bizarras sobre o mundo e de como eu odiava estar na presença da maioria das pessoas.
E tudo sempre me trazia a mesma questão, por que eu não podia estar feliz ao lado dele?
Por que não podia ficar satisfeita? Feliz?
era o homem dos sonhos de qualquer mulher heterossexual, e isso fazia com que eu me sentisse ainda pior. Era como se não ficasse satisfeita nem com o melhor, como se eu fosse a pior das ingratas. Talvez fosse mesmo. Será que aquilo só acontecia comigo? Ter alguém perfeito por perto, mas se sentir incapaz de se apaixonar?
Não pude continuar em minha sessão de auto piedade, a campainha estridente fez minha cabeça doer e me incomodou a ponto de fingir não estar em casa deixar de ser uma opção segura. Felizmente, de modo rápido pude por fim naquele barulho horroroso e quando a porta foi aberta, revelou um Oliver mais limpo, menos bêbado e barbeado, com olhar ansioso e que sorria apertando os lábios.
- Oi, . – Ele cumprimentou incerto.
- Oi. – Respondi e Oliver me abraçou de modo repentino, em sufocando um pouco.
- É bom de te ver, estava com saudades. – Oliver sussurrou contra meu ombro.
- Passamos a noite juntos, Oliver.
- Eu sei. Eu sei. – Ele balançou a cabeça, afastando-se. – Mas eu estava bêbado demais para dizer isso.
- O que aconteceu? O que está fazendo aqui? – Quis saber eu, enquanto abraçava meu próprio corpo por causa de uma rajada repentina de vento frio que nos atingiu.
- Eu vim me desculpar. – Disse ele e eu uni as sobrancelhas, confusa. – Sobre ontem. Giovanni me contou o que aconteceu e eu...não quis dizer aquilo. Não quero começar um ano com essa energia ruim entre nós. – Eu expirei um riso sem humor e balancei a cabeça negativamente. – Olha, eu sei que não sou um cidadão modelo, só bebi um pouco e falei coisas sem filtro.
- Tudo bem, Oliver. – Assenti uma vez.
- É isso? Vai me perdoar tão fácil? Não vai nem me chamar para entrar ou me contar o que realmente aconteceu enquanto eu estive fora? – Ele riu, insensível e piadista como quase sempre. Sentia falta de Giovanni nesses momentos.
- Eu não estou no clima de receber visitas, nem de falar sobre essas coisas. – Confessei desviando o olhar.
- E é por isso que vou ficar. – Meu irmão sorriu grande e passou pelo pequeno espaço entre eu e a porta. – e Dom estão em casa?
- Não. – Respondi chocada, ainda estagnada na porta de entrada.
- Me diga, quando é que isso começou exatamente? – Oliver começou a perguntar, depois se jogou em um dos meus sofás, cruzando as pernas e apoiando as mãos atrás da cabeça.
- Não sei do que está falando. – Desconversei, me unindo a ele e sentando-me em uma das poltronas.
- Eu já sabia que você tinha uma queda pelo , mas me surpreendi com as coisas que o Vanni deixou escapar ontem. – Oliver torceu os lábios em um bico e arqueou uma sobrancelha. – Embora ele tenha se negado a repetir hoje de manhã.
- Não existe nada para ser dito, Oliver.
- Você está com a mesma vibe escura e pesada de quando voltou para Paradise no ano passado. – Ele acusou. – Essa coisa mal resolvida, essa energia pesada. Quase vejo raios e trovões também. Dá para ver no seu olhar, no seu tom de voz. – Neste momento, rolei os olhos. – Mas eu não entendo, quando chegou aqui você odiava tudo e todos, não queria ficar na cidade. Só que isso mudou, quando eu fui viajar, você estava diferente, solar e ainda um pouco melancólica, mas estava bem. O que mudou?
- Nada mudou. – Garanti firme, tentando manter a comporta da minha culpa bem fechada.
- Ah, por favor, . – Oliver rolou os olhos desta vez, depois se sentou e aproximou-se de mim. – Eu sou seu irmão gêmeo. Podemos não ser tão ligados quanto os outros gêmeos, mas eu sinto o que você sente. É como o reflexo de uma mesma pessoa dividida em dois.

O olhar de Oliver parecia ter algum poder sobre mim, como se eu não pudesse esconder nada dele. Mas ao mesmo tempo, estava extremamente segura, como se desabafasse comigo mesma, com um reflexo no espelho, como dissera ele. Depois de dois segundos com os olhos de meu irmão presos aos meus, não pude mais segurar e baixei os ombros, baixando junto todas as minhas defesas. As lágrimas começaram a rolar por meus olhos de modo descontrolado, como uma represa que se rompe, jogando água para todo lado, sem qualquer chance de ser contida.
- Caramba. – Oliver arregalou os olhos, mas logo se sensibilizou e tentou se aproximar mais para me abraçar de modo desajeitado.
- Eu estraguei tudo. Acabou. Estraguei tudo mais uma vez. – Desabafei entre soluços.
- Do que está falando? Você e ?
- Não. – Neguei com a cabeça. – Eu não pude deixa-lo...o Dom...não podia. – Tentei explicar enquanto chorava. – Não era justo.

Eu simplesmente não conseguia conter as lágrimas, conter meus sentimentos, minha culpa, minha tristeza e pesar por ter magoado justamente quem mais amava. O olhar de no final, a proteção de naquela manhã. Me perguntava por que as coisas não poderiam ser mais simples pelo menos uma vez. Não queria muito, só que não precisasse fazer aquela escolha e já a tendo feito, mesmo que de modo inconsciente, que não tivesse que sofrer tanto com aquelas consequências.
Estava infeliz, era claro.
Mas nem mesmo sabia porque estava infeliz, já não compreendia o que sentia, porque sentia ou como sentia. Meu único desejo era parar de existir por algum tempo, para não precisar pensar, decidir ou fazer nada. Como se congelada esperando o momento certo, recuperando as energias extenuadas até aquele momento.
Devagar, enquanto Oliver me afagava as costas, consegui controlar o choro e quando percebeu isso, meu irmão voou até a cozinha, voltando instantes depois com um copo de água.
- Aqui. Vai se sentir melhor. – Disse ele entregando-o a mim.
- Desculpe. – Pedi tentando recuperar o fôlego. – Acho que havia muito reprimido em mim.
- Eu imagino. – Ele me encarou com olhar cheio de compaixão e sorriu leve, apertando os lábios. – O que houve entre você e eles?

Respirei fundo e afastei o olhar, encarando todos os quatro cantos da sala, organizando os pensamentos antes de dizer qualquer coisa, e decidindo se queria dizer.
- Fiz uma escolha errada quando sai de Paradise, as consequências dela voltaram para me assombrar. – Falei por fim, secando os olhos com as costas das mãos.
- Você vai precisar ser um pouco mais clara, . – Oliver pediu.
- Tudo começou quando sai daqui há mais de quinze anos, uma sucessão de erros e fugas que não funcionaram. Você pode fugir da verdade, dos seus sentimentos, mas isso não significa que eles não vão nunca bater à porta. Que vão desaparecer.
- Você está gostando mesmo do ? – Oliver uniu as sobrancelhas, confuso.
- Sempre foi o . – Declarei, deixando que aquelas palavras tomassem vida na minha voz pela primeira vez. – E sempre será.
- Uau. – Oliver expirou espantado. – Mas, e então? Você e o se separaram? Vai contar a ele? Por isso você fugiu no natal?
- Fugi porque não consigo ficar longe do . – Me levantei, tentando organizar os fios de cabelo desgrenhados e Oliver me encarou atento. – Mas não posso me separar do . Não seria justo com ele e com Dom, fiz a minha escolha.
- Espera aí. – Meu irmão também ficou de pé, me encarando enquanto abria e fechava a boca, ainda em silêncio. – Eu fiquei confuso. Você acabou de falar que gosta de outro cara, mas divórcio não é uma opção? O que vocês vão fazer? Relacionamento aberto ou pior? Ficar em um casamento sem amor?
- Eu amo o e ele me ama, não se trata disso. – Dei-lhe as costas, encarando uma das janelas. – As escolhas já estão feitas, Oliver, não há como voltar atrás.
- Isso não te soa nem um pouco absurdo quando diz em voz alta? – Ele se aproximou de mim, segurando meus ombros com as duas mãos e olhando firmemente em meus olhos. – Você está com um homem e gostando de outro. Não acha isso um pouco errado?
- Eu vou superar. Isso vai passar.
- Irmã. – Oliver respirou mais fundo e fez uma breve pausa antes de falar. – Já se foram mais de quinze anos. – Falou com certo pesar.
- Não há mais o que ser feito, Oliver. – Neguei devagar com a cabeça. – Está feito.
- E você infeliz. Não acha que com o passar dos anos, sua infelicidade nesse casamento possa se transformar em amargura e rancor, até que você culpe de não ter escolhido ?
- Só há um culpado na história, só uma pessoa a ser odiada. Eu.

🍁


Os primeiros dias do ano foram mornos e parados, nenhuma coisa nova ou emoção inesperada. Estava de volta a rotina do restaurante, que tinha o movimento um pouco reduzido por causa das festas. Dom estava envolvido em mil planejamentos junto a Oliver e , aproveitando a neve, enquanto Giovanni e sua família passavam pequenas férias junto a família de Susan, em uma cidade chamada Westing City.
Depois do pequeno incidente de Dom, Gina e nossa amizade naufragada surgiam em minha mente com muita frequência. Principalmente quando eu buscava refúgio de outras memórias infinitamente mais dolorosas.
Por isso eu estava decidida, após uma noite cheia no restaurante, resolvi ir até a casa dela. Ainda era muito cedo, mas se fosse para a casa, desistiria da ideia e aquela não era a ideia. Precisava me desculpar, não queria ser a babaca de sempre e parte da mudança devia ser reconhecer meu erro com Gina. Ainda não entendia porque sempre me armava em sua presença, nem a razão de ser tão reativa e dura, mas aquilo já estava passando dos limites.
Quando Gina abriu a porta, depois de minhas quatro batidas, não escondeu sua surpresa e reticência.
- Oi, Gina. – Cumprimentei sem jeito.
- . O que você quer? – Perguntou sem se importar em soar ríspida.

Sorri fraco, arqueando uma sobrancelha e respirei fundo.
- Me desculpar com você. – Disse e ela se espantou.
- Estou te ouvindo. – Gina torceu os lábios e ergueu o queixo, com o mesmo olhar que devia direcionar aos filhos quando lhe contavam coisa suspeita.
- Eu fui uma babaca. Sou uma. – Admiti sem pensar muito. – Você tentou ser gentil, sempre. Ajudando com Dom e tentando se aproximar de mim. Não sei lidar com essas coisas, eu acho. Fui injusta e uma pessoa horrível, me arrependo.
- Sabe, , você nunca foi uma pessoa muito fácil de amar. – Ela devolveu e eu me encolhi. – Sempre fechada, dura, crendo que não precisava de ninguém e que podia controlar qualquer coisa. Tão concentrada no que acontecia com você que era incapaz de pensar em como outros se sentiam. E quando fazia, era só para pensar em como se sentiam sobre você. Você é uma vaca egoísta, cheia de si, que pensa que o mundo para de rodar se não for por você. – Ela acusou erguendo o dedo em minha direção.

Meus olhos estavam arregalados e ombros encolhidos, não sabia o que dizer, nem mesmo esperava aquela reação. Mas do mesmo modo surpreende que Gina tinha me atacado antes, ela simplesmente cessou. Expirou profundamente, fechou os olhos e juntou as mãos na frente do corpo.
- Pronto. Agora sim. Me sinto aliviada. – Ela disse e eu estreitei o olhar, ainda mais confusa. – Meu terapeuta diz que não posso ficar guardando tudo que penso. Uma vez que disse tudo que penso sobre você, posso aceitar seu pedido de desculpas.
- Espera. O que?
- Eu te desculpo por ser uma grande babaca, vaidosa e egoísta, . Por ser grossa, mal educada e péssima amiga.
- É me sinto até melhor agora. – Falei sarcástica, ainda chocada, encarando Gina.
- Ah, cala a boca. – Ela sorriu. – Um café? Você está com uma cara péssima.

Gina me puxou para dentro antes que pudesse responder e quando percebi, já estava em sua cozinha, sentando-me em uma cadeira alta e sendo servida com uma xícara grande de café preto. Espalhadas pela mesa estavam mamadeiras, pequenos talheres de criança e tigelas com frutas picadas. Gina também se serviu com uma grande xícara de café e se sentou de frente para mim.
- O que te fez vir aqui a essa hora? Alguém inventou que eu estava com câncer e ficou com a consciência pesada?
- Até parece que eu tenho consciência. – Rolei os olhos e ela sorriu. – Precisava agradecer por ter levado Dom ao hospital.
- já fez isso. – Contou depois de beber um pouco de seu café. – Seu marido é muito educado.
- É, ele é. – Assenti sorrindo fraco.
- E Dom? Como está?
- Bem. Oliver voltou para a cidade, ele está matando a saudade. Muitos passeios e esportes na neve.
- Não me diga que é por isso que Tyler vem me atormentado porque quer patins novos, é?
- Vamos inaugurar uma colônia de férias, em breve mais informações no blog do Oliver. – Brinquei e ela riu alto.
- E as coisas com ? – Gina quis saber e eu franzi os lábios, mas ela maneou a cabeça, como se aquilo fizesse parte do pacote das desculpas e eu não pudesse fugir de qualquer pergunta feita por ela.
- Eu desisti daquela história de apimentar as coisas. – Confessei depois de um suspiro. – Eu e somos parceiros, amigos, sempre foi bom assim e não precisamos que isso mude.
- Você provavelmente vai se levantar assim que eu perguntar, mas aqui vai. Você está feliz, ?
- O que? – Por muito pouco não coloquei para fora o café que já havia bebido. – Por que essa pergunta?
- Não me leve a mal, mas é que você fala com tão pouca emoção. Não me parece feliz. E eu digo isso de forma geral, parece uma daquelas atrizes novas, interpretando um papel sem muita verdade. – Ela se corrigiu.
- Estou bem. – Respondi encarando a xícara. – Só estou cansada. Mas você precisa se decidir, ou a mau humorada ou essa aqui. – Brinquei, tentando disfarçar o que aparentemente estava explícito demais.
- Precisamos com urgência criar uma terceira versão. – Gina riu alto e tentei acompanha-la, mesmo que fingindo. Mais uma vez.

🍁


Depois da manhã com Gina, que fora agradável e reconfortante, apesar de cansativa por precisar fingir emoções mesmo falhando significativamente. Eu havia ido para casa e dormido o sono dos justos, tomado um banho e voltando ao restaurante, apenas para conferir se tudo estaria no lugar para a folga. Era segunda-feira e eu me recusava a abrir o restaurante em segundas-feiras, minha equipe agradecia e eu também.
Os finais de semana eram fortes apesar das festas e da metade da cidade estar fora, aproveitando a neve no interior. Durante as noites geladas, o salão ficava vazio na maior parte do tempo, nós contávamos piadas e jogávamos cartas, com a equipe reduzida. Talvez fosse uma boa ideia para os negócios investir em entregas, principalmente para os dias frios. Parte de ser uma empresária era pensar sobre aquelas coisas, precisava de conselhos de sobre aquele assunto, com urgência.
Pensava nisso enquanto empurrava a porta, entrando na casa silenciosa e escura, já era noite e e Dom deviam estar jantando com meus pais ou com Oliver.
Mas o destino é galopante.
Assim que coloquei os pés para dentro de casa, a luz fraca e trêmula que escapava da sala de jatar captou minha atenção. Por alguns segundos, pensei que a casa estava em chamas e congelei no lugar. Nunca tinha sido elogiada por uma boa velocidade de reação, mas assim que meu corpo voltou a responder meus comandos, larguei a bolsa no chão e corri em direção ao fogo e assim que alcancei a sala, congelei mais uma vez.

🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Are You Leading Me On – Kiernan McMullan🎵


De pé, atrás de uma das cadeiras, estava . Meu marido vestia uma camiseta escura e sorria, o cabelo estava cortado e o cheiro de seu perfume ocupava o cômodo. A mesa estava arrumada, posta para dois. Iluminada por velas em meus castiçais caros que tinha muito ciúmes, haviam flores também, rosas brancas no aparador atrás de e tulipas sobre a mesa, minhas favoritas.
- Uau. – Foi só o que consegui dizer.
- Oi, . – sorriu, caminhando com firmeza em minha direção. – Estava te esperando.
- Bom saber, por um instante pensei estar invadindo o jantar de outra pessoa. – Ironizei, ainda chocada e ele riu alto.
- Eu estava refletindo sobre o nosso último ano. – começou a dizer, tocando e acariciando minha bochecha. – Foram tantas novidades, tantas questões enfrentadas. E claro, a rotina, que quase sempre é uma vilã. Eu resolvi te lembrar, ou pelo menos tentar lembrar a razão pela qual estamos aqui, mesmo depois de todo esse tempo. – Aquelas palavras foram como socos no estômago.
- , eu...- Tentei dizer, mas ele me beijou. – É sério, eu...- Hesitei. – Não mereço isso. Não mereço que faça isso, nem mereço você.
- Pssssi. , nenhum de nós é adolescente, não precisamos fingir isso. – Ele falou, tomando meu rosto em mãos e olhando com doçura em meus olhos. – Nossa relação é muito mais que só um casamento e sabemos disso, então só vamos aproveitar a viagem. Minha mãe sempre diz que nós somos traiçoeiros, por isso temos que nos lembrar sempre do porquê, para seguir em frente.
- Por que está me dizendo isso agora?
- Se lembra do nosso primeiro encontro? – Ele sorriu, se afastou e puxou uma cadeira.
- O que? O que tem a ver? – Uni as sobrancelhas, mas dirigiu a mim um olhar imperativo, pedindo para que eu me sentasse e eu obedeci.
- Depois de insistir milhões de vezes, você aceitou. Venci pelo cansaço. – Ele riu entredentes, ocupando o lugar ao meu lado.
- É. Você se matriculou no mesmo curso de verão que eu e inventou para o professor que eu era tímida e sofria de ansiedade social, e que apenas conseguiria me sentir à vontade se você fosse minha dupla nas atividades. – Lembrei.
- Eu odiava aquelas aulas. Discussões intermináveis sobre Virginia Woolf.
- Era um curso de verão sobre ela, . – Eu gargalhei.
- Você podia ter gostos mais fáceis de imitar. – Ele deu de ombros, ainda sorrindo. – Mas eu escolhi justamente a garota que tinha aula de literatura no verão e que ouvia música indie, tendo o verão de Nova York para aproveitar.
- O que? Homicídios, poluição e músicos de rua? – Ironizei.
- Não se esqueça dos pombos e dos ratos. – ergueu um dedo.
- Não é tudo a mesma coisa?

Nós dois rimos.
- Bons tempos. – suspirou, segurando minha mão.
- Meses depois eu estava grávida, dividindo um apartamento no Bronx com um labrador. – Impliquei e ele riu alto de novo.
- Se lembra da vizinha de porta, a senhora com o cachorrinho?
- A que era apaixonada por você? Sim. Como poderia esquecer dela. – Assenti. – Nunca consegui tirar da cabeça o dia em que ela bateu na nossa porta com o roupão aberto, pensando que só você estava em casa.
- Uma boa mulher. – zombou e eu belisquei sua costela. – Era boa com os animais, é o que eu quis dizer.
- E tinha o estúdio no andar de cima, lembra? Eles fumavam tanto que nos deixavam chapados apenas pela fumaça. – Lembrei saudosa.
- E claro, as crianças correndo no corredor todo domingo de manhã. – sorriu. – Aquele prédio nem mesmo tinha escadas de incêndio.
- Era um buraco. – Eu ri de novo. – E o encanamento vivia entupido. Como passamos dois anos naquele lugar?
- Pela força do dinheiro. – fez uma breve pausa e depois sorriu. – Ou a falta dele.
- Foi uma subida e tanto. Bronx para o Upper West Side, em dez anos. – Lembrei, segurando sua mão.
- Sabe que lá, as vezes eu sentia falta do Bronx? – declarou e eu riu, incrédula.
- Foi um bom pedaço de chão, mais de dez anos. – Suspirei o encarando e ele piscou.
- Foi sim.


11

Meses depois…

Um dia depois do outro.
Era isso que pensava toda manhã, o primeiro pensamento que chegava a minha mente. Só precisava sobreviver a aquele dia e então mais um seria vencido. Alguns eram piores que outros, alguns eram mais fáceis e passavam mais rápido, outros eram arrastados e insuportáveis. e eu estávamos mais unidos intelectualmente, ele e Giovanni me auxiliava com questões burocráticas e de planejamento do restaurante, por isso passávamos mais tempo juntos agora, embora não como um casal. E a vida, de todo modo, continuava a mesma.
Ele tinha seus amigos, os jogos de hockey, poker e polo e os fins de expediente em bares, e eu tinha o restaurante, minha família e agora, Gina. Estávamos próximas e conversávamos sobre muitas coisas, as vezes até tomávamos café juntas. Me distraía por algum tempo e era uma boa aquisição. Não tinha me arrependido de deixá-la entrar em minha vida, muito pelo contrário. Me flagrei algumas vezes sugerindo que ela e sua família comprassem a casa a venda ao lado da nossa, para que nossos encontros fossem facilitados.
Com exceção da questão que sempre me povoava a mente e atormentava meu coração, responsável por toda dor diária que sentia, a vida estava boa. Tinha amigos, família por perto, sucesso no trabalho e tentava me ocupar com isso, evitando que sobrasse qualquer tempo em que eu pudesse pensar sobre ELE.
Desde da última despedida, antes de dormir e durante o dia, era preciso muito esforço para não pensar em . Era vergonhoso como eu tinha ido e voltado tantas vezes, reconciliações, fugas, depois outra reconciliação e então dias depois uma promessa de nunca mais voltar, só para estar lá de novo. tinha razão, eu o estava usando como escape, como um passatempo na minha vida monótona.
Depois da nossa última e definitiva conversa, outra culpa era sempre frequente em meu cotidiano. Desde o ano novo, me torturava por ser rude, austera e ainda mais fechada com Giovanni, Oliver e todos os outros. Por estar deprimida com toda aquela situação, estava descontando nas pessoas que de algum modo me lembravam daquele problema. Giovanni ainda o visitava e era amigo dELE, Oliver constantemente fazia questão de me lembrar o quão infeliz eu estava.
Não era uma tarefa fácil simplesmente ignorar, esquecer tudo que minha mente criava. Todos os cenários e filmes criados em minha cabeça, onde eu nunca havia saído de Paradise, onde tudo era perfeito e eu feliz. Essas fantasias ainda me geravam culpa, mas nos momentos a sós, enquanto bebia vinho e fechava os olhos, sentindo o vento fresco da tarde me envolver, era o único momento em que eu vivenciava um pouco do que podia ser a felicidade plena. Fugindo para um mundo construído por minha imaginação.
Felizmente, estava tão ocupado com sua própria vida que não parecia notar a plasticidade de nosso contexto familiar. A realidade sobre a vida é que não importa o quão próximo alguém esteja, seus pais, filhos, maridos ou esposas, as pessoas só te notam no fundo do poço ou em outro universo se aquilo as afetar. Enquanto cada um consegue manter seu pequeno universo a salvo, não existe tempo a ser gasto explorando se os universos da pessoa ao lado estão indo bem. Uma multidão de pessoas angustiadamente juntas, e ao mesmo tempo, tão tristemente isoladas.
Sempre refletia sobre essas questões quando estava sozinha ou durante jantares, momentos em família. Todos tão ocupados com suas questões, com seus próprios problemas, eu poderia estar tendo um caso e ninguém notaria. Do mesmo modo que estava, nos últimos oito meses, deprimida e irritadiça e ninguém havia percebido. Mas talvez, e só talvez, todos estavam tão acostumados com meu mau humor e personalidade babaca, que já não podiam perceber diferença. De todo modo, eu tinha uma grandíssima parcela de culpa.
- Tudo certo, chef? – Charles se escorou no balcão do bar, onde eu estava sentada encarando papéis e divagando sobre as pessoas e as relações que estabelecemos.
- O que? – Franzi o cenho, tentando voltar minha atenção para o momento presente.
- As ideias. Os pratos novos no cardápio que sugerimos. – Ele apontou com o olhar para algumas folhas a minha frente, inclinando-se sobre o balcão.
- Ah. – Assenti, me lembrando de mais uma tarefa em que não conseguia me concentrar. – Eu vou fazer isso.
- Você está bem? – Charles arqueou uma sobrancelha, estreitando o olhar e me analisando.
- Estou perfeitamente bem, por que a pergunta?
- Eu e o pessoal estávamos falando. – Ele começou a dizer e eu estreitei o olhar, ameaçadoramente, mas Charles se manteve firme. – Percebemos que está desatenta, sem empolgação. Ontem você não conseguiu terminar um crème brûlée.
- Por favor, Charles. – Me coloquei de pé. Chocada e irritada com aquele assunto, se não tivesse certeza sobre ser processada, teria dado um soco em Charles. – Se lembre de duas coisas. – Rosnei erguendo a mão e mostrando a ele dois dedos. – Primeiro, eu sou . Segundo, você é o sous chef. Nada mais. Não é um restaurante barato onde se arma um complô na cozinha, boicota o chef para subir mais depressa.

Falei rápido e lhe dei as costas, mas ele continuou a falar.
- Eu sei quem você é! Todos nós sabemos! – Charles argumentou com tom mais alto. – E esse é o problema. – Eu parei de andar, girando em meu próprio eixo para encará-lo. – Viemos aqui para trabalhar com a brilhante , mas nos últimos meses parece que a substituíram por um pedaço de carne. Que aliás, talvez tivesse mais vontade de estar aqui.
- Cuidado com o que fala, Charles. – Fui em sua direção. – Ou vai terminar o dia assinando sua demissão. – Alertei, apertando os dentes, estava com raiva, acuada, traída, nervosa, tudo ao mesmo tempo.
- É assim? – Ele expirou um riso frio. – Essa é a brilhante . Tudo antes foi uma máscara esfarrapada. Até que demorou. Tudo era mentira, então? Tudo que ouvimos desde o início, sobre a razão de estarmos aqui, a importância da equipe...tudo se resume ao estrelismo de uma chef frustrada?
- O que foi que disse? – Indaguei sentindo meu corpo ser movido pela raiva, e àquela altura o salão antes vazio, já estava ocupado pela equipe.
- Você ouviu, . – Charles balançou a cabeça, agora usava seu tom normal e parecia desapontado. – Você ouviu.

Rapidamente, meus olhos alcançaram os rostos expectadores daquela cena idiota, todos pareciam ostentar olhares tão desapontados quanto os de Charles. Pela primeira vez em muito tempo, me senti desamparada naquele lugar, não me sentia parte daquilo, como se o restaurante, meu restaurante não me quisesse mais ali. Todos aqueles olhares acusadores gritavam o quanto estavam decepcionados comigo, o quanto eu os havia desapontado.
Em minha vida, poucas coisas pareciam tão estáveis quanto o Eau de Mer, mas talvez já não fosse mais assim. Só percebi que não estava respirando quando senti alguma dor, tentei inspirar, mas o ar parecia ser insuficiente. Precisava sair dali e ir para fora, respirar, sair do foco daqueles olhares duros e acusadores.
- Parece que o problema sou eu. – Desdenhei, tentando disfarçar meus reais sentimentos.

Sobre o balcão do bar, junto aos papéis que devia estar estudando, estavam minha bolsa e um avental. Sem olhar para Charles ou para qualquer um da equipe, caminhei até o balcão e peguei a bolsa e o avental. Depois, voltei-me para Charles e atirei o avental sobre ele, sem qualquer cuidado.
- Parabéns pela promoção. – Ironizei e saí pela porta da frente, o mais rápido que pude.

Precisava de ar, precisava de espaço, precisava entender que diabos tinha acabado de acontecer. Atravessei a rua em direção à praia e comecei a andar sem prestar atenção para onde ia. Tudo a minha volta era um borrão, pelo nervosismo ou pelos olhos marejados. Estava fora de controle.
Não sabia o que sentir, nem nomear o que estava se passando pela minha cabeça. Tudo parecia distante, fora do lugar, inalcançável, enquanto eu estava à deriva, tentando tocar e juntar o que me pertencia, o que me constituía como pessoa. Meu casamento, que antes de retornar para a maldita Paradise, parecia estável e confortável, agora ficava cada dia mais frio e angustiante. , que antes estava soterrado entre as dores mais profundas, agora me causava dores lancinantes por minha própria culpa. O restaurante, que devia ser um sonho, já parecia não ter espaço para mim. Não os culpava, estava sempre tão distraída com todos os acontecimentos da vida pessoal, tão irritada comigo mesma e frustrada, que todo o resto parecia não ter qualquer importância. Tudo era cinza, sem gosto, sem vida. Os meses haviam se passado como um piscar de olhos, e ao contrário do que todos diziam, o tempo não havia curado nada.
Não era justo.
Eu tinha feito a escolha certa, tinha escolhido ficar com e aquilo era o certo e justo a se fazer. Então por que é que eu ainda estava sendo punida? Por que não podia esquecer de uma vez e seguir em frente? Por que eu não tinha direito de ser feliz?
Fazer aquelas perguntas à Deus, universo, seja lá para quem, intensificou meus sentimentos, tornando impossível conter as lágrimas. Era um dia nublado e com vento forte, felizmente as ruas estavam vazias e ninguém poderia testemunhar meu colapso. Abracei meu corpo com força, tentando sentir alguma coisa que não fosse raiva ou dor, enquanto lágrimas salgadas rolavam sem qualquer controle.
Não era justo.
Não entendia porque mesmo depois de abrir mão da coisa que mais quis na vida, continuava sendo punida de forma tão cruel. Talvez fossem meus instintos, mas quando percebi, estava no píer, no final da praia. Do píer era possível enxergar as colinas verdes, salpicadas de cinza e preto, dos túmulos mais antigos do cemitério da cidade. Atrás, os restos de uma grande igreja velha, que estava em ruínas desde a minha infância. Quanto mais andava, mais distante ficava do antigo ancoradouro e da faixa de areia. O píer invadia o mar o suficiente para que no passado fosse usado para embarque e desembarque de navios grandes.
Está só ali. De um lado as colinas do cemitério, do outro o verde acinzentado do mar agitado pelo vento, criando paredes de espuma branca onde as ondas se chocavam com violência contra a estrutura de madeira do píer velho e do quebra-mar, mais afrente e quase completamente escondido pela força do oceano. Tudo era silencioso, mas ao mesmo tempo confuso e barulhento, como estava minha mente. Me aproximei das cordas bambas que no passado deviam ter servido de proteção, mas que talvez pelo trabalho das ondas, estavam agora tão úteis quanto um garfo para comer sopa.
De pé, olhando para baixo, tentava ver algum sentido em toda aquela confusão. Estava tão envergonhada pelo que acontecera no restaurante, duvidaria se em algum momento conseguiria olhar nos olhos daquelas pessoas novamente. Charles. Ele tinha razão, eu estava desatenta, não queria estar no restaurante, preferia morar em minha cama, sem ver ou falar com ninguém, e não fazia qualquer questão de esconder isso. Estava, aos poucos, destruindo tudo que havia construído. Pedra por pedra. Talvez o problema fosse eu, talvez se desde o início não tivesse feito escolhas erradas, nada daquilo teria acontecido, ninguém teria sofrido.
As ondas agitadas batiam com violência contra o píer, vez ou outra respingando sua espuma branca e gelada sobre mim. Seria fácil resolver tudo aquilo. Se caísse no mar, não teria mais dor, não teria mais que lidar com os olhares decepcionados, nem destruiria mais nada. Não causaria mais sofrimento, não teria que viver com aquele monstro insuportável que devorava aos poucos minha alma.
Nada importava. Nada mais tinha cor. Tudo ficaria melhor sem mim.
Todos sobreviveriam, não precisavam de mim em suas vidas, ninguém precisava. E também, já não importava. Nada importava. Não sentia mais nada. Só precisava dar mais um passo. Um passo e tudo estaria terminado. Terminar nos braços do oceano seria poético, um final dramático e sofrido, mas enfim era o final.
- ! – Alguém gritou e tentei ignorar. – ! Hey!

Em instantes, a mão firme de alguém se apertava ao redor do meu braço, atraindo meu olhar vazio. Era Matt.
- Não me ouviu chamar você? – Ele perguntou, mas sua voz era abafada pelo som das ondas, mal podia ouvi-lo.
Balancei a cabeça negativamente e Matt me puxou pelo braço, afastando-me da beira.
- Vem. É perigoso ficar tão perto em um dia como esses. – Alertou. – O píer balança demais, pode te jogar no mar.

Não respondi.
Matt cobriu a cabeça com o capuz de seu casaco, se protegendo do vento e me analisou, sem tentar disfarçar. Meus olhos ainda estavam no verde acinzentado do mar e no céu pesado que denunciava uma tempestade galopante.
- O que está fazendo? – Matt quis saber. – Por que está aqui?

Ergui as sobrancelhas sem muita ênfase, balançando a cabeça negativamente e devagar.
- Vamos, você está gelada. Vamos tomar um chocolate quente. – Disse ele, abraçando meu corpo e guiando-me, enquanto eu olhava para trás, para onde instantes antes teria sido minha sepultura eterna.

🍁


Estávamos sentados em uma mesa nos fundos da cafeteria, longe da porta e encostada a vidraça, que nos oferecia vista para a rua calma e para a viatura de Matt, estacionada ao lado de fora. Aquela cafeteria era onde nos reuníamos nos tempos de escola, depois das provas ou quando só queríamos passar um tempo longe dos pais. Ali aconteciam os primeiros encontros, na escola, não havia um casal sequer cujo o primeiro encontro não tivesse sido no Leo’s.
O lugar permanecia igual, o mesmo de mais de quinze anos atrás. Como uma fotografia, uma viagem ao passado. As mesas de madeira avermelhada um pouco gastas, o estofado azulado que continuava gasto pelo tempo, adotando tons brancos desgastados. O balcão com suas estufas de vidro e seus pãezinhos, bolos e rosquinhas, o cheiro de canela, embora nenhum café, bebida ou comida servidos ali levasse canela na composição. E claro, os atendentes, que em nossa adolescência já eram pessoas com mais de sessenta anos e que por obra de alguma força atemporal, continuavam ali.
Matt bebia um café puro, tentando disfarçar sua curiosidade e hesitação, olhando para mim por sobre a xícara, tentando me analisar. Enquanto eu encarava sem muito ânimo uma xícara de chá de camomila que ele havia pedido para mim.
- Você devia tomar um pouco. Vai te fazer sentir melhor. – Pediu ele.

Eu assenti e levei a xícara a boca, fingindo beber. Matt parecia preocupado, me encarando como devia encarar um suspeito em uma situação de perigo. Olhos atentos, vigilância, poderia ser um pouco assustador se já não o conhecesse e soubesse de sua natureza tranquila e gentil.
- Se lembra de quando nós vinhamos aqui? Tomar suco de limão e comer sanduíche de frango? – Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu leve, tentando me animar um pouco e eu assenti. – Bons tempos...as vezes eu ainda faço isso, para relembrar os velhos tempos.
- Por que? – Quis saber eu.
- Ah...- Matt ponderou por alguns instantes. – Por que me traz lembranças boas. Uma época sem preocupações, sem essa loucura que é ser adulto e todas as responsabilidades. Eu tenho boas lembranças, gosto delas.
- Mas para que se lembrar de algo que não se pode mais ter?
- Não sei. – Matt recostou-se ao assento. – Minha mãe dizia que é preciso lembrar de onde veio para saber para onde vai. Acho que gosto de me lembrar da minha versão adolescente, para garantir que minha versão adulta faça a coisa certa.
- E como você sabe qual é a coisa certa?

Matt não respondeu imediatamente. Me olhou e abriu a boca duas vezes, sem dizer qualquer palavra, depois olhou para fora e tomou mais um pouco de seu café.
- Por que você estava no píer? – Ele indagou sem se importar em fazer rodeios.
- Tentando fazer a coisa certa. – Respondi.

Matt não respondeu de novo, mas dessa vez suspirou e encarou sua bebida por tempo demais. Pensei que talvez ele não dissesse mais nada, foram muitos minutos em silêncio, sem que sequer me encarasse. Resolvi provar o chá, até que era bom.
- Como está o Dom? – Matt quis saber, ainda com olhos baixos.
- Bem, na escola. Está no time de futebol e no clube de teatro. – Contei sem muita empolgação.
- É um bom garoto. – Matt comentou sem jeito. – Olha, eu não tenho nada com isso. – Começou a falar depois de um longo suspiro. – Mas o píer não é conhecido por ser um lugar de calma e felicidade. Se está acontecendo alguma coisa, ou se eu puder ajudar...
- Está tudo bem, Matt. – Respondi encarando a rua do lado de fora.

Matt me analisou, procurando qualquer sinal em minha expressão que pudesse usar como argumento. Por fim, falhando, ele suspirou de novo e esticou a mão sobre a mesa, segurou minha mão e a apertou.
- Eu sempre estou por aí, okay? – Ele ergueu as sobrancelhas, me olhando nos olhos e eu tentei sorrir. Não queria que alguém se preocupasse e estivesse vigiando meus passos, por isso precisava manter a postura de sempre.
- Eu agradeço, Matt. Mas só estou estressada, precisava pensar em silêncio, sem os gritos da cozinha de um restaurante. – Sorri, inclinando-me um pouco sobre a mesa. – Mas agradeço a preocupação. Acho que é melhor eu ir, já está ficando tarde.
- Eu te acompanho. – Afirmou ele, jogando algumas notas sobre a mesa.
- Não precisa, meu carro está logo ali. – Garanti sorrindo do modo mais tranquilo que conseguia.
- Você pega depois, eu insisto. Por favor. – Matt enfatizou e eu assenti, me esforçando para manter o personagem.
- Oba, sempre quis saber como é andar no banco da frente de uma viatura.

🍁


Estava em casa.
Depois de um trajeto silencioso e com um sorriso plástico no rosto, enfim estava em casa. Depois de um banho quente, resolvi comer qualquer coisa. Era estranho, há menos de algumas horas, se não fosse a aparição repentina de Matt, não teria nunca mais tomado um banho quente, nunca mais entrado em casa. Nunca mais comeria algo feito por mim, nunca mais estaria naquela cozinha.
Ouvi a porta da frente ser aberta e os passos pesados de Dom anunciarem sua chegada e um aperto dolorido tomou meu peito. Se eu estivesse no fundo do mar agora, Dom chegaria e não encontraria ninguém, ou seria recepcionado por uma notícia que certamente o marcaria para sempre.
- Oi, mãe. – Ele cumprimentou, entrando na cozinha e deixando a mochila jogada em um canto. – Nossa, eu estou morrendo de sede. – Dom sorria enquanto abria a geladeira.

Olhando-o ali, só conseguia pensar no que estava prestes a fazer. Fui capaz de sacrificar uma das coisas que mais queria no mundo para o bem de e Dom, mas agora, estive prestes a desmoronar a vida dos dois. Assistindo Dom tomar seu suco de laranja, sorrindo e tranquilo, não podia conter as várias imagens de seu precioso rosto triste, e do que podia acontecer caso minha quase tentativa tivesse tido sucesso.
- Querido, venha aqui. – Pedi, indo até ele e o abraçando com força.
- Mãe, você está me sufocando. O que foi? Aconteceu alguma coisa?
- Não. Não aconteceu nada. – Garanti, aliviada.
- Você é estranha as vezes, mãe. – Dom riu. – Você pode ir na escola na quinta-feira? É dia da profissão dos pais e eu contei que você tem estrelas Michelangelo.
- Michelin. – Corrigi, sorrindo fraco e sentindo o cheiro de seu cabelo.
- Isso. É. Você é a única mãe que tem isso. – Ele disse e eu sorri. – Vai ser muito legal.
- Tenho certeza que sim. – Assenti emocionada e Dom percebeu, afastando o rosto de mim para me olhar melhor.
- Está chorando? O que aconteceu? – Perguntou preocupado e eu sequei uma lágrima solitária que escorreu com as costas da mão.
- Nada, querido. Não se preocupe. – Dom estreitou o olhar. – A vida as vezes é muito complicada, mas isso é coisa de adulto. Não se preocupe com isso. Certo? – Pedi, acariciando seu rosto.
- Você quer ver filme? A gente faz pipoca e assisti filme. Podemos pedir pizza também. – Ele sugeriu prestativo. – Você pode escolher o filme.

A cada palavra de Dom, me sentia mais culpada e mais grata por Matt ter aparecido de repente naquele píer.
- Obrigada, querido. Seria ótimo. – Sorri e depois lhe beijei a fronte. – Eu amo você.
- Também te amo, mãe. – Dom declarou e me abraçou de novo, com um pouco mais de força.
🍁


Divisores de água. O divisor de águas costuma ser uma situação, evento, fato que representa uma mudança importante no rumo dos acontecimentos, sejam eles históricos, sociais ou pessoais: um filho costuma ser um grande divisor de águas na vida de uma mulher. E de fato, a chegada de Dom fora o maior divisor de águas para mim, na forma com que eu me enxergava o mundo, no modo como via a vida e todo o resto. E talvez ele estivesse sendo um divisor de águas mais uma vez, ou melhor, permanecendo como um divisor de águas.
Naquela tarde, olhando a água turva e agitada do mar, nada pareceu ter qualquer importância. Muito pelo contrário, tudo parecia não ter qualquer relevância. A carreira, família, casamento e até mesmo Dom. Talvez essa fosse a pior parte, me odiava por não ter pensado nele. Por ter considerado deixa-lo sozinho, não acompanhar sua vida, sua formatura, seu casamento, seus filhos. Que tipo de mãe seria se o deixasse? Me odiava por isso, mesmo não tendo feito, apenas por ter considerado.
O convite de Dom para assistirmos filmes, como sempre fazíamos juntos, fora talvez minha tábua de salvação. O abrir de olhos, o suspiro que precisava para entender que por pior que as coisas estivessem, eu não podia simplesmente me entregar. Desde que aquela criança nascera, minha vida não era vivida apenas por mim, mas por ele. Quando tudo estava escuro e perdido, depois de minha partida para Nova York, fora Dom que me trouxe de volta a luz, e agora, a maternidade e Dom me salvavam mais uma vez. Talvez não tivesse nascido para ser a chef do Eau de Mer, talvez não tivesse nascido para ser a esposa de , ou o amor de , mas sem qualquer dúvida, tinha nascido para ser a mãe de Dom. Isso me salvava, era o meu respiro, a única parte boa em mim, incorrupta e segura.
Mesmo em todo caos, todo desastre, era a Dom que devia me agarrar. Talvez em nossa relação, conseguisse a força que precisava para seguir em frente mais uma vez. No olhar dele, no sorriso dele, ou no jeito com que seu lábio inferior ficava projetado enquanto dormia, aquela era minha força. Naquele corpo pequeno e frágil de criança quase adolescente estava a minha razão de viver. Não , não , não o restaurante, a carreira, amigos ou família, a resposta era Dom. Sempre foi, só demorei a perceber.
Acariciei o rosto sereno de Dom, que dormia tranquilo no sofá, decidida e fortalecida, sentindo-me consumir por uma energia que há muito tempo era estranha a mim. Levantei-me devagar, estava na varanda, lendo um livro e fui até ele, depois de pegar o celular e as chaves do carro. Não me importei em trocar de roupa ou coisa do gênero, tinha muita urgência no que fazer e nenhum instante podia ser perdido.
- Preciso resolver uma coisa. – Avisei e ele ergueu o olhar para mim.
- O que? Agora? São quase dez horas.
- É. É muito urgente. – Enfatizei, unindo as sobrancelhas.
- Tá legal. Já que parece que sua vida depende disso. – Ele suspirou. – Volta hoje?
- Eu preciso voltar. – Garanti.
- Vou te esperar acordado. Tenha cuidado. – Ele sorriu de canto e eu assenti, correndo em seguida para a garagem.

🍁


A vida é cheia de ironias, cheia de contradições. Pela manhã você é uma pessoa, e a noite, pode já ser outra completamente diferente. Mais cedo naquele mesmo dia, havia estado no Leo’s com Matt Shay, tomando chá de camomila após uma frustrada quase tentativa de suicídio. Agora, passava de dez e meia e eu estava no Leo’s mais uma vez, sentada na mesma mesa, tomando limonada e com o olhar ansioso pregado a porta, apressando Matt com a força do pensamento.
Não demorou para que ele chegasse, me procurando com olhar preocupado, e quando me viu, rapidamente ocupou o assento a minha frente.
- , o que aconteceu? – Perguntou, dispensando uma garçonete que se aproximava de nós.
- Você disse que eu podia contar com você. – Fui direta, afastando o copo de limonada e Matt assentiu. – Eu acho que preciso de ajuda.
- O que houve? Aconteceu alguma coisa? Se meteu em alguma coisa? – Ele quis saber com olhar agitado.
- Você sabe o que é, Matt. Por favor, não me faça dizer em voz alta. – Implorei com o olhar e ele respirou fundo, apertou os lábios e baixou a cabeça.
- Eu sei.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, sem que pudéssemos nos olhar nos olhos.
- Soube assim que te vi.
- Como foi parar lá? Ninguém deve ir para aquele lugar há anos.
- Estava no hospital visitando . – Senti um arrepio gelado percorrer meu corpo com a menção a aquele nome. – O médico. Rafael. Me disse que achava que você não estava bem, me pediu para conferir. Ele me disse onde ir.
- Rafael? Como ele soube? – Indaguei chocada e Matt apenas levantou os ombros.
- Que bom que ele disse. – Matt suspirou, apoiando as costas no assento e eu assenti.
- Obrigada. Por ter...você sabe. – Hesitei. – Nunca vou conseguir agradecer o suficiente.

Matt assentiu e sorriu de canto, um sorriso contido, mas que parecia aliviado de algum modo.
- Quando isso começou? – Ele quis saber, depois de algum tempo em silêncio.
- Eu não sei, acho que alimento esse monstro no sótão há anos. – Confessei encolhendo os ombros e olhando para baixo. – Foram más escolhas, e nunca quis lidar com elas, só ignorar tudo. É a minha forma de lidar com toda essa bagunça.
- Acho que não funciona muito bem, pelo menos não por muito tempo. – Matt comentou.
- Eu achei que se me ocupasse, não sobraria tempo para sentir ou para sofrer e então, tudo desapareceria. Mas não é assim que acontece. – Cobri o rosto com as mãos, dizer aquilo em voz alta ainda era estranho e constrangedor. – Você acha que é perfeitamente capaz de controlar o caos, até perceber que não. Então, sem que saiba como, começa a se afogar e não existe forma de voltar a superfície.
- Existe sim. – Matt interveio, aproximando-se e tocando meu antebraço, atraindo minha atenção. – Existe. Tem muita gente por você aqui. Tem seu marido, Dom, Oliver e Giovanni, a mim. – Ele falou e eu ri entredentes.
- Obrigada, Matt, mas as vezes isso não significa nada. Por mais que deva. – Falei.
- E Dom? Ele não significa?
- É por ele que estou aqui. – Disse com firmeza. – Quando cheguei em casa hoje, quando o vi e me dei conta do que quase estive prestes a fazer com ele...me odiei com todas as forças. Mais do que tenho me odiado todo esse tempo.

Matt mudou de lugar, ocupando o assento ao lado do meu e me abraçando de lado.
- Vai ficar tudo bem. Estou com você. – Garantiu. – Eu conheço uma pessoa, ela pode te ajudar. É uma ótima psicóloga. Você vai gostar dela. Vai ficar tudo bem. – Matt segurou meu rosto e olhou em meus olhos. – Como nos velhos tempos, vou cuidar de você. Vai ficar tudo bem. Estou com você. – Afundei meu rosto em seu peito e me permiti chorar, colocar toda aquela angústia para fora. – Estou aqui com você.

🍁


Depois do meu colapso, fiquei reclusa por dois dias em casa. Sem ir ao restaurante ou qualquer contato humano que não fosse com ou Dom, Matt apareceu quatro vezes nos dois dias, preocupado e solícito, como me lembrava dos tempos da escola. Na noite em que o procurei, ao voltar para casa, me esperava na varanda, curioso sobre meu paradeiro e sobre a razão do meu rosto inchado de chorar.
Contei a ele.
Contei sobre a situação no restaurante, sobre o humor instável, sobre a ausência de contorno e a intensa sensação de vazio inexplicável. Obviamente omiti tudo sobre e minha cena no píer. Não precisava de mais alguém vigiando meus passos e perdendo o sono por minha causa. me acolheu, como em todas as outras milhões de vezes, me incentivou a procurar a terapeuta indicada por Matt e me apoiou no que decidisse fazer dali em diante.
Estava tão cansada de tudo, escolhi apenas dormir. Descansar e tentar me recuperar, não era um plano ruim, podia ajudar.
Os dois dias que seguiram foram silenciosos, e Dom apareciam com frequência ao meu lado, perguntando sobre como eu estava, se precisava de algo. Eu sempre respondia que não, e então, eles ficavam parados em silêncio, do meu lado. Sem dizer qualquer coisa, apenas ali, oferecendo companhia e uma espécie de apoio silencioso.
No terceiro dia, resolvi tomar um banho pela manhã e levar Dom a escola, já bastava e sabia que além de mim, ninguém mais conseguiria me tirar daquele quarto escuro. Fora uma grande surpresa para os dois, e depois de mil recomendações de , conseguimos sair de casa. O caminho fora completamente ordinário, comentários sobre o clima e o trânsito, as aulas do dia. Precisava daquele momento com Dom para conseguir a força necessária para vencer aquele dia. Só assim teria alguma chance.
Depois de deixa-lo na escola, resolvi visitar Ted, já havia algum tempo em que não ia ao cemitério. Por muito pouco não estava agora lá de modo permanente, então pensei que seria justo vê-lo, conversar. Ted sempre fora um de meus confidentes mais sensatos, seria bom ouvi-lo um pouco.
O cemitério estava vazio, só podia ouvir a algazarra de uma revoada de andorinhas barulhentas, o céu azul do início da manhã, combinado com o vento fresco montavam um dia bonito. As árvores balançavam vez ou outra, quando um vento um pouco mais forte as atingia, mas nada conseguia tirar a calma silenciosa do lugar. Caminhei devagar até o túmulo de Ted, lendo algumas lápides pelo caminho, prestando atenção nas datas de nascimento e falecimento nas escrituras, direcionando meu foco às que pertenciam a mães. Logo cheguei a meu destino, e somente lá, ao me sentar junto a lápide, pensei que podia ter trago flores.
- Espero que não se importe, mas esqueci das flores. – Contei sorrindo, cruzando as pernas e relaxando os ombros. – Já faz algum tempo desde a última vez que vim até aqui, e sendo sincera, nem me lembro quando foi. Acho que preciso te atualizar. – Hesitei por um instante. – Se bem que, você morreu, deve saber tudo que acontece. Você é quem devia me atualizar.

Sorri fraco, pensando no quanto queria saber o que Ted sabia, principalmente sobre uma pessoa específica.

- Eu fiz besteira. Fiz uma besteira muito grande. – Confessei. – Teve toda essa coisa com , um dia eu ia até lá e estávamos bem, no outro eu aparecia e dizia que não podia ficar com ele. Dias depois, eu voltava e o ciclo recomeçava. Na verdade, dizendo em voz alta, acho que minha vida é cíclica de alguma maneira. Eu me frustro e fujo, tenho uma decisão difícil a tomar e fujo. Não tenho me importado muito com o que fica e essa é a verdade. Minha primeira fuga deu origem a tudo isso, não é bizarro? – Eu ri. – Não posso dizer que perdi , porque nunca o tive. Mas sofro como se tivesse. É difícil. – Suspirei profundamente, tomando coragem para dizer o que precisava. – Você deve me odiar, mas pensei em acabar com tudo. O que é ridículo, principalmente pensando no meu filho e, bem...pensando em você.

Toquei com a ponta dos dedos as inscrições no túmulo de Ted.
- Você teria dado tudo para não deixar seu filho sozinho, eu sei. E eu, quase escolhi isso, quase deixei meu menino aqui, sozinho, por escolha própria. Por opção única e exclusivamente minha. – Expirei profundamente, sentindo certo tipo de paz me envolver, embora não soubesse de onde vinha. – Talvez isso seja o acumulado de todos esses anos fugindo. Tentei me tornar alguém melhor e acho que de fato consegui. Me reconciliei com meu irmão, com meus pais e até Gina agora é minha amiga de novo. Mas não parei de fugir, não parei de me esconder e talvez esse seja o problema. Ou um dos problemas. Eu não sei, parece coisa de adolescente querer se jogar no mar por causa de um amor que não deu certo. – Eu sorri, porque era idiota e porque mal podia acreditar quando dizia em voz alta. – Mas o que posso fazer? Talvez não seja só por causa de , talvez seja uma junção de coisas que sequer sei nomear.

Fiz silêncio.
Uma andorinha pousou tranquila na lápide, como se eu não estivesse ali e eu a observei por algum tempo. A plumagem branca do peito parecia macia, em contraste com o azul quase metálico de seu dorso, os olhinhos escuros e profundos que pareciam conseguir ler mentes. Como um daqueles pássaros de desenho animado que entende e fala com humanos. Era bonito, mas um pouco bizarro.
- Vou entender que essa andorinha que parece me julgar é um sinal de que me escuta, Ted. – Brinquei, apoiando o tronco nos braços esticados, apoiados ao chão. – Quase estive aqui, sendo sua vizinha. – Falei, olhando ao nosso redor. – Nunca vou conseguir agradecer o suficiente a Matt por ter me salvado. A vida tem dessas coisas, sabe? E agora, estou viva ainda, preciso lidar com meus problemas. O restaurante, minha família, preciso ir à terapia também, o que é bem estranho para mim. – Sorri. – Mas é o certo. Preciso garantir que Dom não fique sozinho, se não por mim, por ele. Sempre por ele.

🍁


Foram algumas horas com Ted, ora falando trivialidades, ora em silêncio observando a paisagem silenciosa, a beleza da natureza, a simplicidade da vida acontecendo mais abaixo, na cidade. Sentindo o cheiro da relva, ouvindo o som dos pássaros, o som das ondas se quebrando na costa rochosa, o chacoalhar das árvores. Sentia certa paz ali, como se não precisasse lidar com todas aquelas coisas que sentia, como se pudesse apenas existir, sozinha, sem pensar em mais nada, sem sentir nenhuma angustia ou dor.
De algum modo, estava mais confortada, um pouco mais motivada a seguir. Minha primeira sessão de terapia estava marcada e aquele era um grande passo para resolver as coisas. Estava cansada de fugir, cansada de correr e sempre voltar ao mesmo lugar, de sempre voltar para a mesma ilha deserta depois de semanas de nado.
Quando alcancei os portões do cemitério, a fachada do hospital se iluminou. Lembrei de Matt e de sua confissão sobre como soubera de mim, como havia me encontrado naquela fatídica tarde. Estava cansada de fugir e me esconder, e precisava, queria muito saber como aquele médico esquisito e enigmático sabia que não estava bem.
Já dentro do hospital, o primeiro lugar em que procurei foi o grande jardim, e para minha surpresa, lá estava ele, passeando de modo despreocupado, analisando um canteiro de margaridas amassadas.
- Rafael. – Chamei-o, aproximando-me dele e o médico voltou seu olhar para mim e sorriu alegre.
- . – Celebrou. – Bom ver você. Sabia que viria.
- Sabia? Como? – Arqueei uma sobrancelha, desconfiada.
- Intuição. – Ele respondeu, depois balançou a cabeça e sorriu. – Brincadeira, estive com o detetive Shay, foi só juntar as peças.
- Como você soube? Como sabia que eu...como? – Indaguei sem rodeios e sem me importar em soar educada. Ele sorriu sereno, e pediu, com um aceno que eu o seguisse. Obedeci.
- Sabe, , a vida é aleatória na maioria das vezes. As infinitas possibilidades de escolha que se entrelaçam todos os dias. Tomar suco de laranja em vez de café numa manhã de quarta-feira pode gerar consequência inimagináveis. Nossos atos e ações interferem no universo de milhões de maneiras, todas aleatórias. Nem mesmo o mais poderoso ou o mais inteligente dos homens é capaz de prever ou controlar a aleatoriedade da existência humana. Mesmo em ambientes controlados, você pode oferecer três caminhos a alguém, e isso não vai impedir que se crie um quarto, quinto. É curioso. – Ele dizia enquanto caminhávamos ao redor do pequeno lago na área externa do hospital. – Só existe uma lei que parece sempre funcionar. Tenho desprendido certo tempo pensando nisso, formulando teorias. Pode-se dizer que é o que chamam por aqui de hobbie - Rafael sorriu. – Podem existir mil caminhos, as vezes mais longos, mais curtos, mais rápidos ou mais lentos. Infinitas possibilidades de jornadas, mas com sempre o mesmo destino. Voltando ao exemplo que dei, ofereço, por exemplo, três caminhos a você. Três caminhos que levam a mesma coisa. Você não escolhe nenhum dos três, mas cria um quarto, quinto, sexto caminho completamente diferente. Talvez estes caminhos sejam mais lentos, mais difíceis, mas no final, vão levar ao mesmo lugar.
- Desculpe, mas eu não estou entendendo o que isso tem a ver com minha pergunta. – O interrompi e ele riu entredentes.
- Aí está o sétimo caminho. – Ele continuou sorrindo e eu franzi o cenho, explicitando minha impaciência. – Havia algum tempo que não a via aqui, pensando em nossas conversas sobre nosso amigo e notando o estado dele, imaginei que algo não estivesse bem.
- O que houve com ? – Indaguei alarmada.
- Pode vê-lo, se quiser. – Rafael me fitou sorrindo. – Vai ser bom, talvez para ambos. – Disse e eu encarei o chão, respirando devagar.
- Isso não explica como sabia onde Matt poderia me encontrar. – Falei depois de algum tempo em silêncio.
- O píer. O chamam de farol dos afogados, não é sem razão. Talvez esteve fora da cidade por muito tempo para se lembrar. – Rafael piscou com simplicidade. – Foi por precaução. No fundo, eu sabia que nada aconteceria.
- Não. – Declarei, parando de andar e o médico girou o corpo para me olhar. – Se Matt não tivesse aparecido...eu...
- Quantas vezes você olhou para a água antes de pular?
- Não sei, eu...- Respondi confusa e ele sorriu, aproximou-se e tocou meu ombro.
- Você não queria ir, por isso não foi. – Disse ele em tom sereno. – Pare de criar um caminho novo toda vez que se aproxima na linha de chegada, . Continue, é só isso. Continue.

Ele piscou e eu o assisti partir, dando-me as costas e desaparecendo ente outros pacientes e médicos. Deixando-me perdida, ainda mais confusa e à deriva em minha própria cabeça.
Os encontros com aquele médico sempre criavam dúvidas, teorias e incertezas. Abalavam meu estado de espírito e as certezas nas quais estava firmada. O que ele queria dizer com aquilo? Que caminhos eu estava criando? Caminhos para onde? E como ele poderia saber o que teria acontecido se Matt não aparecesse naquele píer, se nem eu mesma sabia?
Estava parada, congelada, com mil questões brotando em meu cérebro e me impedindo de pensar com qualquer pouco de clareza. Queria respostas quando entrei naquele hospital, mas só tinha recebido mais perguntas. Mais dúvidas.
Respirei fundo, não adiantaria ficar ali, encarando o nada e tentando buscar algum sentido nas palavras tortas do médico. Precisava caminhar, precisava seguir e ir em frente. Ficar presa aos enigmas de Rafael era parte dos ciclos que lutava para sair, não podia deixar que se repetissem. Passei as mãos nos cabelos, tentando me organizar enquanto os organizava e voltei-me para o hospital, precisava sair dali o mais depressa possível.
Talvez fosse sobre esse tipo de acontecimento que Rafael se referia em seu discurso sobre a imprevisibilidade da vida.
Sentado, sob a sombra de um freixo grande demais para ocupar aquele lugar, estava ele, me encarando tão chocado quando eu devia estar. Não devia vê-lo, não devia estar ali, não devia ser fraca mais uma vez e dar início a tudo de novo. Não podia estar acontecendo. Parada ali, com os olhos conectados ao dele, mal conseguia respirar. Parte de mim gritava de necessidade, de urgência, precisava de mais do que de ar, mas outra parte queria correr, fugir dele e de tudo que representava. Não queria repetir tudo outra vez, provocar mais dor a quem mais amava. Talvez nem mesmo quisesse falar comigo, talvez depois de tudo, ele me odiasse.
Queria fugir, fugir como todas as outras vezes, mas sabia que assim como sempre fazia, eu voltaria, no meio da noite, ou em outro momento inapropriado. Era hora de enfrentar minhas escolhas, estava cansada de fugir. De esconder. Dei o primeiro passo em direção a ele, tentando ser firme e segura. estreitou o olhar rapidamente, como se surpreso por minha atitude. Depois do primeiro, os outros passos foram fáceis, fáceis como andar em nuvens, e quando estava perto o suficiente, ficou de pé.
Mal podia crer no que estava vendo.
estava de pé, diante de mim, era a primeira vez que o via assim, a primeira vez que o via quase como antes, bem. Ele estava apoiado a com uma pequena bengala, mas estava de pé, a menos de um metro de distância. Sentia uma mistura de alívio, alegria, hesitação e saudosismo. Congelei onde estava, sentindo todas aquelas emoções me atingirem como ondas fortes em um mar de ressaca. Meus olhos embaçaram um pouco, o suficiente para que eu percebesse estar prestes a chorar e então, ele veio até mim. Acabando com a distância pequena que ainda existia entre nós e me abraçou.


🎵 Dê play na música e coloque para repetir se necessário for. You Are The Reason – Calum Scott🎵



me abraçou com força, trazendo-me junto a seu peito, sem ressalvas ou cuidado. Pela primeira vez em muito tempo eu sentia seu cheiro, o calor de seu corpo, a sensação de seu corpo junto ao meu. Me sentia segura. Salva. Era o que precisava. Sempre fora o que precisei. Seus braços era o lugar seguro que precisava habitar.
Quando percebi, estava chorando.
Talvez de alívio, talvez enfim permitindo que todo aquele medo e tensão se esvaíssem de vez do meu coração. ainda mantinha seu abraço apertado, uma mão estava em minhas costas e outra, afagando meus cabelos. Ele estava em silêncio, apenas ali. Mesmo sem dizer qualquer coisa, sua presença era mais reconfortante do que qualquer palavra que alguém pudesse dizer.
- E-eu sinto muito. – Disse eu, entre meio um soluço e outro, mas não disse nada, apenas me apertou um pouco mais. – Me desculpe. Vo-você tinha razão, eu sempre faço isso. Sempre...
- . – Ele chamou com seu tom sereno, segurando meu rosto para que eu o olhasse nos olhos. – Não precisa se desculpar comigo. Você pode fazer o que quiser comigo, eu sou seu. Para fazer o que quiser.
- ...- Fechei os olhos, culpada e sentindo dilacerada por não ter direito de me sentir feliz em ouvi-las.

Era tortura demais.
- Não importa o que aconteça. – Ele continuou e eu ergui os olhos para vê-lo. – Eu não consigo deixar de gostar de você. Eu tentei. Tentei muito nesses meses, mas não funcionou, nada funcionou. Então eu desisti. Percebi que pertenço a você, mesmo que você não pertença a mim. Isso não vai mudar. E desde que você esteja viva e que eu possa ter um pouco de você, mesmo que a distância, é o suficiente para mim.

tinha os olhos cintilantes e estreitos, as sobrancelhas juntas enfatizavam o quão profundas e sérias eram aquelas palavras. Mas com a menção a estar viva, fechei os olhos, sentia vergonha. Uma vergonha dolorosa.
- Eu sinto muito. – Falei sem olhá-lo.
- Eu sinto. – falou. – Não devia ter te pressionado, eu sempre soube sobre o . Quando Matt me contou sobre...- fechou os olhos, parou de falar e encostou sua testa a minha. – Eu não sei o que faria...quis ir até você, mas não pude. Não sei o que faria se perdesse você para sempre assim.
- Eu sinto muito. Estou tão envergonhada. – Confessei, cobrindo o rosto com as mãos.
- Não há do que se envergonhar. Por favor. – afastou minhas mãos com delicadeza, tomou-as e as beijou. – Por favor. Eu estou muito aliviado que está aqui, não sei o que faria se não estivesse. E me odeio muito por talvez ser parte nisso, por ter causado isso.
- Não, ! Não. – Neguei rápido, tocando seu rosto. – Não é culpa sua. Talvez não seja culpa de ninguém. Eu só não suportava mais causar dor as pessoas que amo e...nem conviver com as minhas escolhas.
- Olhe para mim, . – sorriu fraco. – Me salvou, não me causou dor. A única dor que sinto em relação a você é de não ter feito escolhas melhores no passado. Mas mesmo assim, você me salvou. Me deu um motivo para querer acordar todo dia. Uma razão para continuar vivendo, quando tudo parecia me convencer do contrário. Você me salvou. – acariciou minha bochecha com o polegar, enquanto olhava em meus olhos. – Confie em mim, . Você me salvou, me deixe tentar fazer o mesmo agora. Se estou aqui hoje, você é a razão.
- eu...- O rosto de povoava minha cabeça, não queria repetir mais uma vez o discurso de despedida.
- Não estou pedindo para que deixe , não posso pedir isso. Por mais que seja o que mais quero no mundo, prefiro que você me escolha porque quer e não porque estou pedindo. E desde que esteja feliz e viva, mesmo que isso me dilacere em milhares de modos diferentes, eu ainda ficaria feliz. – Ele disse. – Só quero me deixe ficar perto. Que, por favor, me deixe ficar perto de algum modo. Não me afaste agora, principalmente depois disso. Eu vou enlouquecer se tiver que ficar longe de você sabendo que precisa de...- hesitou.
- De você. – Completei.



12

Participação Especial: Rena como Uyara Houston



- Como posso te ajudar? - A psicóloga perguntou.

Fora preciso de o dobro da coragem que imaginava ter para entrar naquela sala e começar a falar qualquer coisa, desde meu nome, idade e qualquer outra informação banal. Era estranho me ver em uma sessão de terapia, me abrindo, falando de mim, principalmente quando o assunto era meu colapso. Tinha certeza que precisava estar ali para enfim resolver aquela situação e sair da confusão que estava, das repetições terríveis e angustiantes. Talvez, se quinze anos atrás tivesse tomado esta decisão, tudo poderia ter sido diferente.
Respirei fundo e esfreguei as mãos nas pernas antes de responder.
- É uma boa pergunta, eu acho. - Sorri fraco. Estar ali de fato, mesmo com a motivação e apoio de todos aqueles rostos que me esforçava em lembrar a cada segundo, era muito difícil. - Eu acho que preciso de ajuda. Eu sei que preciso, na verdade. Eu…- Hesitei, tentando respirar com mais calma. – Eu fugi por muito tempo da minha própria confusão, mas acho que não foi suficiente. - Confessei um pouco sem jeito.
- Que bom que já sabemos que fugir não foi o suficiente. - A psicóloga, Uyara Houston, assentiu. - Por que não me conta de onde fugiu?
- Não sei se foi de um lugar específico. - Ponderei por alguns instantes, recostando-me de modo mais relaxado a poltrona, tentando pensar antes de responder. - Acho que foi de mim. Das minhas escolhas. Ou melhor, da consequência delas. É idiota dizer em voz alta, parece que tudo isso é baseado em um drama adolescente, sobre uma rejeição nos tempos da escola, e isso é tão ridículo…- Ri entredentes, envergonhada. - Sou uma mulher casada há quinze anos, com uma carreira e um filho, mas que sofre por que foi rejeitada no colégio? É vergonhoso.
- A sua rejeição no colégio te fez fugir? – A Houston cruzou as pernas, ainda com olhar preso a mim. - E para onde você foi? Ou melhor, ainda está no mesmo lugar?
- Em resumo, eu tenho dois irmãos. Um irmão gêmeo, Oliver, na época da escola éramos uma dupla inseparável, Oliver e eu vivíamos colados. Tínhamos dois outros amigos, Gina e Ted, éramos do mesmo ano e tínhamos as vidas perfeitas. - Sorri saudosa, lembrando-me um pouco daquela época. - Essa coisa de líderes de torcida, jogos de futebol, como nos filmes. Meu outro irmão, Giovanni, era mais velho que nós. Era inteligente, obediente e tinha saúde frágil e por isso eu sempre achei que ele fosse o favorito dos nossos pais, que fosse o ser humano mais chato da face da terra. Oliver, nossos amigos e eu sempre zombamos dele por isso. Mas Giovanni tinha um amigo, . Assim que eu o vi, que vi o pela primeira vez, me apaixonei por ele. Sabe quando essas coisas acontecem? Você não explica ou entende, só acontece. Quando percebe, está tão apaixonada que seu mudo gira em torno daquela pessoa, no sentido mais literal da coisa. Como um tipo de ligação de vidas passadas ou sei lá. Sem explicação.

Ajeitei a postura e cruzei as pernas, tentando editar o filme da minha vida, e contar os fatos relevantes da história a psicóloga. Poderia falar por horas do quanto era incrível e lindo, mas não era o foco ali.
- Mas o era amigo do irmão que eu detestava, isso não ajudava. E eu sempre ficava paralisada quando estávamos no mesmo espaço, não conseguia dizer uma só palavra. Nunca pude me declarar, nunca consegui, mas sempre sofri em silêncio por isso. Tentei esquecê-lo, tentei me interessar por outras pessoas, mas não funcionava, tudo parecia feito de plástico, entende? Sem cor. E um dia, perto da formatura, descobri que ia se casar com a garota perfeita que namorava há anos. O chão se abriu e eu fui engolida. Foi horrível. Não sei descrever em palavras como me senti. E a única saída que encontrei foi fugir, ir embora da cidade e nunca mais olhar para trás, tentar esquecer e tudo e qualquer coisa que me fizesse lembrar dele.
- Então, deixe-me ver se consegui entender. - Ela cruzou as duas mãos sobre o colo, com os olhos conectados aos meus. - O foi o amor que você disse que sofreu rejeição e por causa dele você se mudou da cidade, correto? – Eu assenti. - Mas se nunca falou com ele, como isso caracteriza uma rejeição para você?
- Viu como tudo é ridículo? – Sorri sem jeito e passei as mãos no cabelo. - Eu sempre o amei, desde o primeiro momento que o vi, mas depois ele conheceu alguém e se apaixonou. Mesmo antes disso, eu não tinha coragem de me aproximar, de me declarar. Talvez rejeição não seja a palavra certa, acho que está mais para falta de coragem. Não tive coragem para me declarar, em vez de enfrentar o que sentia, dizer a ele ou então conviver com a felicidade dele, escolhi ir embora. Deixei meus amigos, minha família, fiquei quinze anos sem qualquer contato com essa cidade, a não ser através do meu irmão ou dos meus pais. – Dizer aquilo em voz alta, agora, me parecia o maior absurdo dos absurdos. Não conseguia entender como eu fora capaz de simplesmente cortar laços, sumir da vida de todos que amava e que me amavam sem nem mesmo me despedir ou pensar em como se sentiriam. – Talvez eu seja uma pessoa amargurada, na verdade acho que sou. Não me declarei, nem pude conviver com a felicidade alheia, precisei fugir e deixei um rastro nada agradável por onde passei.
- Certo, chegamos em um consenso, não diria rejeição, diria frustração. Não são grandes opostos, na verdade muitas pessoas confundem. – Ela sorriu. - Mas então, quinze anos se passaram, e agora, como está o ?
- Você não acreditaria, parece coisa de filme. Se não fosse a minha vida, não sei se eu mesma acreditaria. – Sorri fraco. - Quando fui embora, acabei conhecendo um cara, ele estudava engenharia. Gostava dele, mas não era apaixonada. Acabei engravidando e nos casamos. Quinze anos depois, ele recebe uma proposta de emprego irrecusável aqui em Paradise. Voltei com ele e com nosso filho, Dom. Voltei para descobrir que no tempo que estive fora, Ted morreu, ficou doente e sua noiva o abandonou. O reencontrei ano passado, em meio a uma crise terrível, sem qualquer prognóstico bom.
- Como você se sente ao vê-lo assim? Depois de tantos anos, e em uma situação de saúde complicada, e sem a noiva que o fazia feliz, motivo pelo qual você fugiu. Como está se sentindo agora que está perto?

Sentia-me um pouco angustiada, havia tanta coisa para ser explicado, tanto que ela não sabia. As idas e vindas, o processo de cura de , meu mergulho de cabeça naquele sentimento que fingia não alimentar enquanto o visitava todos os dias. Os beijos, a culpa, a traição, a viagem, sua recaída, o desejo de separação, minha outra fuga, depois o retorno, o natal passado, a culpa mais uma vez e nosso distanciamento. Não sabia como contar tudo aquilo enquanto respondia às perguntas da psicóloga.
- É que aconteceu tanta coisa desde então, que a forma com que me sinto sobre já mudou centenas de vezes. – Contei tentando facilitar seu entendimento, mas perdida em como fazer isso. - É uma história longa demais, com muitas idas e vindas.
- Ele é o motivo que te trouxe aqui?
- Seria fácil dizer que sim, mas acho que não é verdade. – Confessei torcendo os dedos das mãos que estavam descansando no colo. - Estou aqui porque…- Continuava muito difícil dizer aquilo em voz alta. - Estou aqui porque há alguns dias quase me atirei no mar. Um amigo, o detetive Shay, me encontrou bem a tempo e…bom, aqui estou eu. – Sorri tentando disfarçar, mesmo não tendo certeza sobre o que exatamente queria disfarçar. - Quando cheguei em casa, encontrei meu filho e percebi o que estava prestes a fazer. Me odeio por ter considerado deixá-lo sozinho. Me odeio mil vezes por isso. Por pior que seja, por pior que esteja me sentindo sobre tudo, a única coisa que realmente importa a mim é o Dom, e quase acabei com isso também.

A psicóloga ficou em silêncio por alguns instantes, parecia me analisar, ou devia pensar no quanto tudo aquilo era besteira. Talvez pensasse no quão longe eu tinha ido por um delírio adolescente.
- Você quer falar sobre o acontecido? Quer me contar como aconteceu?
- É muito acumulado. - Ri entredentes, de modo nervoso, depois respirei fundo. - Bom, acho que…quando eu reencontrei , tudo virou de cabeça para baixo. Em resumo, tudo que achei estar soterrado, voltou com força total, e embora de alguma forma ele correspondesse, eu continuo casada. Então eram idas e vindas, estávamos íntimos em um dia, no outro me sentia culpada e me afastava, depois não conseguia ficar longe e me aproximava mais uma vez, pedia desculpas. E então tudo se repetia. Eu não podia me separar, mas não tinha forças para ficar longe do . – Contei a ela, sentindo-me um pouco mais leve a medida com que cada palavra saía pela minha boca. - Até que depois do natal, deixou claro que queria ficar comigo e tivemos uma discussão. Ele se aborreceu e eu quis morrer por magoar justamente quem mais... – Hesitei. Estando com e tendo Dom, me parecia errado dizer que era quem eu mais amava. – Desde então, tudo perdeu a cor, nada tinha ou tem sentido. Uma das únicas coisas estáveis que tinha era meu restaurante e eu meio que perdi isso também. – Dizer tudo em voz alta também me lembrava do caos em que estava morando, de tudo que estava destruindo. - Quando percebi, estava no píer, encarando as ondas agitadas, a um passo de me lançar para elas.
- O que você queria quando estava no píer? – A psicóloga perguntou.
- Parar de sentir dor. – Respondi sem hesitar.
- E agora, a dor aumentou?
- Eu não sei. - Respondi encolhendo os ombros. - Acho que quando consegui pensar com um pouco de clareza, me lembrar do meu filho…as coisas pareceram fazer algum sentido. Quero dizer, não importa o tamanho da dor que sinta, nem a quão perdida esteja, eu vivo pelo Dom e por isso é tão absurdo que tenha pensado em acabar com tudo. Ele é a resposta, faz sentido? – Ergui os olhos, procurando seu olhar.
- Eu não estou aqui para dizer o que faz sentido, . – Disse ela. - Essa resposta é você quem tem, você me disse que conseguiu pensar com clareza e entendeu que vive pelo seu filho. Então não tem mais vontade de acabar com a dor da mesma forma?
- Eu não poderia. Se não por mim, pelo Dom. – Fiquei de pé, com as mãos na cintura, sentia-me agitada, talvez por encarar o que havia feito e pensado, talvez por ter tudo exposto a outra pessoa. - Eu acho que ele tem esse poder, a maternidade tem esse poder. Não importa quão terrível as coisas estejam, ser a luz no final do túnel, uma razão para continuar vivendo. E sendo sincera, é por isso que vim aqui. – Suspirei pesadamente e voltei a me sentar na poltrona confortável do consultório no centro. – Eu não quero que isso aconteça de novo, eu não posso fazer isso com meu filho ou com , , Matt e os outros. Eu preciso de ajuda.
- Você não quer isso com os outros, mas me disse que as consequências das suas escolhas te colocaram nessa situação, não acha que já se sacrificou demais? Não quer fazer com os outros, mas o que está fazendo com você?

🍁


O que eu estava fazendo por mim?
A pergunta feita pela psicóloga ecoava em minha mente desde a sessão de terapia. Sempre que me distraía fazendo qualquer coisa, meus pensamentos vagavam até aquela questão, que martelava sem pausa. Não era uma resposta fácil.
Pensando desde o início, voltar a Paradise não fora por mim, fora por . Visitar no hospital, passar todos os dias com ele, fora por mim, única e exclusivamente. não se comunicava com mais que expressões faciais e piscadas, não poderia usar nada disso como argumento para validar sua necessidade da minha presença. A viagem que fizemos fora por , mas também pelo bem da nossa família. O retorno a e o beijo fora por mim, a ideia de separação, por mim. A dúvida e a desistência, por e Dom, embora por decisão única e exclusiva minha.
Era estranho pensar desse jeito, fazia parecer que todas as escolhas sobre meu casamento, desde o princípio não foram tomadas porque eu quis, mas sim porque era o melhor a se fazer, mais cômodo. Sair com o bonitão da faculdade? Era o que devia fazer, certo? Me casar com ele quando engravidei era o certo pela criança e para ficar protegida, não é?
Me perguntava se todas as decisões, se tudo sobre e eu era assim. Decidido por comodidade e não por realmente querer. Como se minha vida fosse decidida sem importância, como se dissessem “já que não há muito o que ser feito, façamos desse modo, todo mundo fica feliz. ” Era estranho.
Tentava pensar nas decisões tomadas conscientemente e que envolvessem , mas só conseguia pensar em férias, decisões pequenas sobre como organizaríamos a casa, quais cores as paredes teriam, onde passaríamos o feriado de quatro de julho, quem queríamos ou não em nossa casa, quando ele poderia sair para jogos e quando não. Talvez a única grande decisão tomada juntos e em consenso fora a de não ter mais filhos depois de Dom, mesmo tendo a questionado nos últimos tempos.
Enquanto isso, me fazia ser impulsiva e tomar decisões importantes de modo inconsequente e inesperado. Quando ele estava na equação eu tinha certeza de que queria estar ao seu lado. Toda decisão tomada ou quase, que o envolvia, era unicamente porque eu queria que fosse assim, sem considerar ninguém mais, apenas a minha vontade. O que também era estranho, me via agindo como uma adolescente outra vez. Com meu esposo, eu estava acomodada e com meu antigo amor, inconsequente, bela mistura, , pensei.
E se, de algum modo, e não fossem certo para mim? Com eu não fazia coisas por mim, mas sim por ele e pensando em todos, menos em mim mesma. Com , eu voltava a ser a adolescente, pensando unicamente em mim e em minhas vontades e necessidades momentâneas. Será que nesses momentos é que muitas mulheres decidem passar a vida sozinhas, para se redescobrir?
Precisava falar sobre aquilo com minha psicóloga.
Queria uma luz, queria perguntar o que é que ela pensava a respeito, se eu estava certa em meu pensamento ou apenas procurando uma forma de escapar, criando outro caminho para fugir da consequência de minhas ações.
Me lembrei da fala de Rafael, sobre criar novos caminhos e sorri. Médico maluco, pensei.

🍁


Estava na porta dos fundos do restaurante, era meio da tarde e ainda estava fechado para o jantar. A equipe estaria sozinha, ajeitando tudo para a noite e a cozinha em algumas horas viraria o caos na Terra. Sentia uma tonelada de vergonha me esmagar, mas desde que saí pela porta, depois da pequena discussão com Charles, dias atrás, que tinha certeza de que devia voltar e me desculpar. Aquele tipo de chef não era o tipo que queria ser, não era o tipo que eu era.
Ainda não estava pronta para assumir a cozinha, talvez precisasse de alguns dias para me organizar e retomar a vontade de estar ali, a vontade de cozinhar. Amava o que fazia, entendia que cozinhar era um dom, que era de certo modo levar amor através do paladar, mas mais que isso. Era aguçar os sentidos, tomar a alma de alguém através de texturas e sabores, lembranças ativadas pelo paladar e olfato. Não podia ser displicente com a cozinha e não seria mais uma vez.
Respirei fundo e abri a porta devagar, era possível ouvir um burburinho agitado, algumas pessoas riam de uma piada qualquer, enquanto se movimentavam de um lado para o outro, limpando, organizando, preparando tudo.
Aisha, uma das cozinheiras foi a primeira a me ver, era árabe, de olhos sempre atentos e profundos. Ela me encarou sem sorrir e então olhou para o lado, onde Charles estava escorado, desatento, conversando com algumas outras pessoas. Quando Charles e os outros me notaram, a cozinha caiu em um silêncio sepulcral, e o resto dos funcionários que estavam no salão vieram ver o que estava acontecendo. O circo estava armado mais uma vez.
- Oi, pessoal. – Cumprimentei olhando para eles, tentando manter a postura firme e forte que havia planejado.
- . – Charles respondeu com um aceno de cabeça. Os olhos verdes estavam me analisando, a feição jovem e bonita estava séria, como se alarmada. No cabelo, a bandada verde afastava a curta franja dos olhos.
- Eu vim aqui para falar com vocês. – Disse eu e todos se entreolharam, talvez ansiosos, esperando uma represália da minha parte.
- Estamos todos aqui. – Charles avisou depois de conferir, olhando para trás.

Houve um silêncio constrangedor.
Entre a decisão e planejamento, e o falar literal, havia muita coisa e eu mal conseguia pensar sem gaguejar, minha voz soaria tão trêmula quanto um liquidificador.
- Eu...- Hesitei e tentei limpar a garganta mais uma vez. – Eu primeiro gostaria de agradecer. Agradecer por apesar de tudo, terem estado aqui e fazerem o Eau de Mer continuar de portas abertas. – Respirei fundo mais uma vez. - Sempre soube e disse que o que mantinha um restaurante aberto não era o chef, mas sim a equipe, e estava certa.

Alguns membros da equipe assentiram, ou acenaram com a cabeça para mim, outros se mantinham imóveis, me analisando.
- Depois, queria me desculpar. Me perdi e não fui capaz de perceber. – Falei sincera. – Estava passando por um processo complexo e difícil na minha vida pessoal, não é uma boa fase, mas felizmente já foi pior. Eu deixei que isso atingisse tudo na minha vida, deixei que afetasse minha saúde, minha vontade de viver, meu trabalho...- Disse correndo os olhos pela cozinha de modo saudosista. – Deixei que afetasse vocês. Ninguém está imune a isso e eu não fui uma boa profissional, não percebi. Charles estava certo e vocês também. Não queria mais estar aqui, não queria cozinhar, só queria estar na minha cama e me afundar nela tão profundamente até que desaparecesse. – Confessei e percebi algumas pessoas trocarem olhares. – Mas nada justifica. Eu me arrependo e sinto muito pelo modo como agi, o que falei ou não falei. Sinto muito. Vocês merecem respeito e merecem uma chef que esteja à altura de vocês. Charles tem sido assim há muito tempo. Bem antes do meu surto. Fico feliz em saber que estão em boas mãos.
- O que quer dizer? Não vai voltar para o restaurante? – Peter, o maître, quis saber.
- Eu vou, em algum momento. – Expirei profundamente. – Agora ainda preciso melhorar, preciso voltar a ser a chef que sempre fui, mas preciso me curar de outras coisas antes. Na hora certa eu volto. – Sorri fechado. – Mas não podia esperar mais para dizer essas coisas.

Sorri de canto, olhei mais uma vez para cada rosto ali e acenei, balançando a mão. Algumas pessoas responderam e então, dei as costas e saí pela mesma porta que havia entrado. A porta dos fundos do restaurante dava em um beco, que por sua vez, levava até uma área afastada e vazia da praia, no início, onde não havia areia, apenas pedras e uma mureta de ferro de proteção. Comecei a caminhar até lá devagar, até ouvir meu nome sendo chamado enquanto atravessava a rua.
- Sim. – Respondi antes de me virar, e quando o fiz, encontrei Charles. – Charles.
- Podemos falar? – Ele perguntou, ainda sério.
- Claro. – Assenti e nos dirigimos até a mureta, onde nos encostamos e ficamos observando o mar esverdeado se desmanchando em espuma quando batia contra a costa rochosa.
- Foi legal o que você disse lá dentro. – Ele falou depois de algum tempo em silêncio.
- Foi a verdade e o mínimo.
- Achamos que nos demitiria, ou fecharia o restaurante. – Confessou ele e eu ri abafado.
- Posso ter agido como uma babaca, mas não sou uma. – Olhei-o e sorri de canto. – Você tinha razão em tudo que disse. Sem tirar uma vírgula sequer. E se serve para alguma coisa, depois daquilo eu percebi que precisava de ajuda. Tentei me jogar na baía antes, mas isso é outro assunto. – Charles arregalou os olhos e abriu a boca, chocado, mas eu sorri e o balancei, apertando seu ombro. – Ânimo, Charles. As coisas acontecem.
- Eu...eu não fazia ideia...sinto muito. – Ele tentou dizer. – Se soubesse não teria...
- Isso não é necessário, está tudo bem. – Tentei amenizar. – Como disse, estou me tratando e vou ficar bem. As coisas se acertam.
- Como você consegue falar assim? Como consegue...
- Agora eu vejo uma luz no final do túnel, acho que é por isso. – Sorri mais uma vez, não queria preocupa-lo. – Além disso, nas últimas semanas eu meio que tirei muito peso das costas e vir aqui, falar tudo que falei para você e a equipe, foi libertador.
- Sentimos sua falta aqui. Não é a mesma coisa sem você. – Charles declarou sorrindo fraco.
- Não sei se já te disso isso, mas você é bom, Charles. – Falei olhando em seus olhos, tocando seu ombro. – Vejo isso em você. Você é forte, criativo, talentoso, tem liderança nata. Durmo mais que tranquila por saber que é você quem está no comando. Você é melhor que eu, não vai demorar para que todos percebam isso.
- ...- Ele riu balançando a cabeça negativamente.
- É a mais pura verdade e logo o Eau de Mer não vai comportar mais você.
- Isso é você avisando que vai me demitir? – Ele brincou.
- Só se eu fosse muito burra. – Nós dois rimos. – Eu até sou, mas não profissionalmente. Só estou fazendo previsões óbvias de um futuro próximo.
- Só tem lugar para um chef temperamental e com estrelismo no Eau de Mer, e é você. – Charles implicou franzindo o nariz.
- Charles, Charles. – Balancei a cabeça negativamente e o abracei sorrindo. – Vai descobrir, assim como eu, que não se pode fugir do destino.

🍁


- Não é chocante como o centro de Paradise sempre seja cinza e tenha cheiro de carbono e óleo diesel? – Oliver perguntou para Giovanni e para mim, depois de tomar um pouco mais de seu drink colorido. – Parece que estou no cenário de algum filme sombrio de herói.
- O nome disso é urbanização, Oliver. O progresso do mundo. – Giovanni respondeu sem muita empolgação. – Do alto das suas cabanas em ilhas exóticas você não enxerga, os macacos e onças pintadas atrapalham.
- É chocante que você seja o mais inteligente de nós, Giovanni. – Oliver uniu as sobrancelhas, incrédulo. – Onças pintadas? Vai dizer que há ursos polares na Antártica? Macacos no Centro de São Paulo? Que América e Estados Unidos da América são sinônimos?
- Será que vocês dois podem tomar seus drinks em silêncio como dois adultos normais? – Eu intervim, impedindo a resposta de Giovanni. – Isso devia ser uma tarde agradável.
- Não há chance de ter uma tarde agradável quando o Giovanni está por perto, . – Oliver bufou e Giovanni arremessou uma bolinha de guardanapo em sua direção.
- E o que vai fazer? Chorar? – Vanni continuou. – Posso colocar a mamãe na discagem rápida para você.
- Giovanni! – Eu o repreendi. – Quando você se tornou o Oliver? Por favor, é um homem de quarenta anos.
- Trinta e cinco. – Ele ergueu um dedo, corrigindo-me.
- Em dois mil e treze você tinha essa idade, não é? – Oliver implicou e Giovanni o encarou sério.
- Você esqueceu como os números funcionam? – Meu irmão mais velho resmungou, depois voltou-se a se concentrar em sua bebida. – Depois, o burro sou eu.
- Giovanni fez aniversário em fevereiro, Oliver. – Eu o lembrei.
- Não. Claro que não. Eu não estava aqui. – Ele respondeu tocando o peito.
- Você estava em Jalisco, aproveitando o sol do outro hemisfério. – Vanni rolou os olhos.
- Ah. – Oliver encarou o nada, depois pareceu encontrar a lembrança em sua cabeça. – Mas...se eu não estava aqui, de quem foi o aniversário que comemoramos naquele restaurante temático horrível? Que só tocava músicas sobre Nova York e serviam comida de rua?
- . – Giovanni e eu respondemos ao mesmo tempo, ambos com expressivas caretas de reprovação.
- Isso foi em maio. – Vanni lembrou. – Depois ele quis que fossemos a um jogo de hockey no gelo, e no final da noite, ele vomitou no meu carro.
- Obrigada, Giovanni, por me garantir outras lembranças sobre aquela noite, como se as que já tenho não fossem vergonhosas o suficiente. – Bufei remexendo minha bebida com o canudo.
- A culpa não é minha, é do seu marido. – Giovanni uniu as duas palmas das mãos e apontou para mim, sentada a sua frente.
- Já que mencionamos o marido. – Oliver começou a falar depois de terminar seu drink. – Eu posso tocar naquele nosso assunto secreto? – Sussurrou, inclinando-se sobre a mesa. Giovanni e eu nos entreolhamos confusos. – O que é? Sabemos bem do que estou falando. – Oliver sorriu como uma criança que acaba de descobrir onde os doces estão escondidos.
- Não, na verdade não. – Giovanni e eu dissemos ao mesmo tempo, mais uma vez.
- Ah, qual é!? – Oliver protestou. – O vocês sabem quem...o outro...
- Outro? – Giovanni franziu o cenho.
- É, sabe...aquela coisa proibida...
- Que coisa proibida? – Fora minha vez de perguntar.
- . – Oliver falou, entediado com nossa dúvida.
- Oliver! – Eu o repreendi e Giovanni desviou o olhar.
- O que é? Estamos só nós aqui. Reunião de irmãos. O clube. Nosso clube secreto.
- E? Isso é um assunto pessoal. – Falei tentando não parecer muito culpada, o que surpreendentemente foi fácil.
- Nós vamos fingir que ninguém quer falar disso? É sério? – Oliver bateu com os dois dedos indicadores na mesa, olhando para Giovanni e eu. – Vamos fingir?
- Não quero ser desagradável. – Giovanni ergueu a mão, pedindo fala. – Mas eu concordo com Oliver. Só dessa vez.
- Certo, quando estiverem a sós os dois, falem sobre isso. – Disse de modo ríspido, cruzando os braços sobre a mesa.
- . . . Qual é o problema? Somos seus irmãos mais velhos. – Oliver tentou me abraçar de lado, esticando um braço até que alcançasse meus ombros. – Queremos saber tudo sobre seu novo namorado.
- não é...- Retorqui, mas assim que me lembrei de onde estávamos, baixei o tom de voz. – não é meu novo namorado! Eu sou casada!
- Okay. É você quem diz. – Giovanni apertou os lábios e encarou sua bebida.
- Não comecem!
- Está aí uma coisa que não entendo em vocês. – Oliver recostou-se de modo mais confortável na cadeira. – Vocês complicam demais as coisas.
- Complicar demais? – Arqueei uma sobrancelha incrédula. – Isso significa não ser displicente. Ser responsável.
- Com quem exatamente? – Fora vez de Oliver arquear uma sobrancelha. – Você está apaixonada por outro homem. – Tentei protestar, mas antes que conseguisse abrir a boca, Oliver já tinha seu dedo apontado para o meu rosto. – E não ouse negar. Somos gêmeos, eu sei. Você está apaixonada por outro homem, que pelo que sei, é livre e desimpedido. – Ele continuou. – Enquanto perde tempo com , que perde tempo com você, uma mulher que não o ama.

As palavras de Oliver bateram forte em mim, como um soco no estômago.
- Mas eu amo o .
- E eu amo você e o Oliver, mas nem por isso deixei de me apaixonar pela Sue. – Giovanni disse usando seu melhor tom patriarcal e austero, me encarando como se pudesse ler minha alma.

Fiquei em silêncio.

🍁


Em junho o clima estava ótimo, era verão e o balneário estava movimentado e cheio de turistas com suas roupas de banho e máquinas fotográficas. Era sábado e todos restaurantes, bares, cafés e qualquer outro estabelecimento comercial estava lotado. O trânsito era uma confusão pior que nos dias normais, na beira da praia estavam estacionados trailers, motorhomes e dezenas de carros de cores e modelos mais variados.
Paradise era uma cidade grande em extensão, mais muito polarizada. Seu centro cinza, a selva de concreto concentrava o foco da urbanização. Quando éramos adolescentes, todas festas boas e coisas interessantes para fazer ficavam no centro. Os mais ricos viviam em arranha céus, acima das nuvens de poluição do bairro e dos inúmeros moradores de rua e da violência urbana. No centro ficava o porto, as docas, os grandes armazéns, e na faixa de mar que sobrava, uma praia poluída por minério de ferro, com pequenas pedras no lugar da areia.
Alguns quilômetros ao sul, cruzando a ponte, quanto mais ao sul, mais azul o céu ficava e mais limpo o ar. As praias eram mais extensas com areia quente e dourada, a água era azul e um pouco mais quente, com palmeiras ao redor de toda orla. Não haviam prédios com mais de três andares e cinquenta anos na orla. Sendo justa, não haviam prédios altos e modernos em lugar nenhum. Aquela área da cidade era uma península, ligada ao continente por uma ponte, na parte do centro, e com as montanhas por terra.
Os moradores eram os mesmos desde sempre, as casas também, todos terrenos tinham o mesmo espaço e a única coisa que fazia com que aquela parte da cidade não parecesse um filme dos anos setenta, eram as construções na parte mais alta da cidade. Casas modernas, exatamente iguais e quase sempre compradas por novos moradores, vindos de outros estados. Ali morávamos e eu.
Estas casas eram quase sempre de cores neutras, com jardim bem feito, fachada de vidro e exibiam uma arquitetura minimalista e cara. O resto da península era de casarões antigos, sobrados e casas de praia, com cerca de madeira, jardim amplo e antigas. Aos poucos, pela qualidade de vida, baixa densidade demográfica e segurança, aquela parte da cidade se tornou a zona mais nobre e agora, a mais cheia de turistas e barulho durante os verões.
Devia ser bom para jovens e para solteiros, mas não nos encaixávamos em nenhuma das categorias. Naquele sábado, teria tarde de poker com o pessoal do trabalho e eu, ainda afastada do Eau de Mer, que estava absurdamente lotado, resolvi que seria uma boa ideia tentar algo diferente. Depois de travar uma verdadeira luta para sair da cama, decidi que queria fugir da repetição de meus ciclos e depois da conversa com a terapeuta e com Oliver e Giovanni, estava curiosa para ficar ao lado de mais uma vez. Queria analisar o que sentia, pensar nos efeitos que a presença dele me causava, estando consciente para entender o que sentia.
Para evitar qualquer momento íntimo demais ou outra crise de consciência e fuga, estava levando Dom comigo. Não faria mal, e desde o último encontro dos dois, aquela ideia não deixava minha cabeça.
- Seja educado, está bem? – Pedi mais uma vez, conforme nos aproximávamos de , sentado, distraído à sombra de uma árvore qualquer, jogando pão para os gansos no lago.
- Eu sei, mãe. – Dom bufou, rolando os olhos. – Você já disse umas mil vezes.
- Eu convenço pela repetição. – Pisquei e ele bufou de novo.

Nos aproximamos de devagar e quando estávamos perto o suficiente, ele pareceu nos notar e sorriu. Meu dia ganhou mais cor.
- . – tinha o semblante leve, os cabelos pareciam ter sido cortados recentemente e a barba estava feita. Ele usava uma camiseta vermelha e aparentava estar mais forte, devia ter engordado alguns quilos. – Dom. É bom ver vocês.
- É sim. – Eu assenti sorrindo e Dom acenou com uma mão. – Como você está? – Perguntei, aproximando-me mais um pouco.
- Bem, eu acho. – ainda sorria. – Consigo fazer a barba sozinho agora. Logo vou conseguir andar por aí sem ajuda e quem sabe jogar futebol. – Brincou, piscando para Dom.
- Você ainda joga futebol? – Dom perguntou boquiaberto, e eu apertei seu ombro, numa tentativa falha de repreendê-lo.
- Estou um pouco enferrujado, mas isso é uma coisa que vem daqui e daqui. – disse, tocando com dois dedos sua própria testa e depois o peito. – Se não tirar desses lugares, nunca esquece.
- Ainda estamos falando sobre futebol? – Tentei brincar.
- Isso é sobre qualquer coisa que se goste na vida. – olhou para mim de modo significativo. – Se não tirar da cabeça e do coração, não importa quanto tempo passe, não muda.

Engoli em seco e desviei o olhar rapidamente, sabia do que ele falava. Ao menos achava que sabia.
- Quando você melhorar, a gente podia jogar. – Dom se desvencilhou de mim, ocupando o lugar vago ao lado de , no banco de ferro onde se sentava.
- Não precisamos esperar, eu ainda consigo fazer ótimos arremessos. – argumentou, concentrando-se em Dom.
- Eu não sei não. – Dom fez careta, apontando com o olhar a bengala que usava.
- Ah, isso? – Ele acompanhou seu olhar e ergueu o objeto. – Você se espantaria com o estrago que posso fazer, mesmo com essa coisinha aqui.
- Você devia tentar hockey, então.
- Você e seu pai estão recebendo alguma coisa da liga para fazer propaganda, não estão? – sorriu.
- Você não gosta de hockey? – Dom arregalou os olhos e riu alto.
- Eu sou tradicional, gosto do bom e velho futebol. – falou saudoso. – Sou da época em que todo mundo da cidade torcia pelos Sharks e queriam jogar no time. Muito antes de termos vencido o St. Louis Rams no super bowl de dois mil e dois? Vinte a dezessete. Ótimo jogo aliás.
- Está brincando? – Dom estava chocado e animado, e eu, feliz por estar ouvindo , e interessada em suas histórias.
- Não mesmo. – Ele riu, apoiando-se de forma mais confortável ao banco. – Eu tinha acabado de assinar com o Paradise Sharks e estava no time, era um sonho jogar no time da casa. – Ele começou a contar. – Talvez tenha sido um dos melhores momentos da minha vida.
- Espera. – O interrompi de modo brusco. – Você jogou num time de futebol profissional? Você venceu um super bowl?
- É, . – franziu o cenho. – Achei que soubesse.
- Eu...- Não consegui terminar.

Sabia que jogava quando estávamos na escola, depois, na faculdade também, mas nunca soubera de seu passado brilhante. Era estranho que o homem que havia morado em meus pensamentos por quinze anos fosse diferente do real. Não em tudo, mas em algumas coisas. Nunca soube sobre a vida profissional de , o que não era uma surpresa, principalmente considerando que antes de meu retorno, tudo sobre a cidade era bloqueado da minha vida.
Às vezes me flagrava pensando sobre como vivia, o que fazia antes de adoecer, como seria sua vida depois, se se recuperasse, mas tudo sempre fora tão abstrato...
- Você tem tipo, o anel? – Dom voltou a falar, empolgado.
- Tenho. Tenho o anel e toda a parafernália. – contou saudoso. – Foram bons tempos.
- Eu não acredito! Mãe, por que nunca me disse que seu amigo era um jogador de futebol de verdade? – Dom me olhou.
- Eu não...não sabia. – Confessei ainda atordoada e sorriu de canto.
- Eu não acredito no que estou vendo aqui! – Uma voz empolgada nos atravessou. – Grande ! – Matt Shay me abraçou pela cintura, de repente. – É bom ver você. – Sussurrou ele em meu ouvido.
- E aí! – o cumprimentou com um sorriso de canto e um aceno de cabeça.
- E olha o que temos aqui, sargento Dom . – Matt cumprimentou Dom com um abraço. – Já cresceu desde a última vez que te vi. Logo vai estar pronto para a prova da polícia.
- Por favor, querido, não dê ouvidos ao Matt. – Pedi, tentando disfarçar meu estado, ainda atônita.
- Que isso! Pode me dar ouvidos sim. Eu sou bem legal e tenho conselhos muito responsáveis. – Matt rebateu.
- O tempo passa, mas Matt Shay segue iludido. – o provocou.
- Você sabia que o já ganhou um super bowl? – Dom indagou, ainda super animado e chocado com a revelação.
- Se eu sei? – Matt fez um barulho engraçado com a boca e rolou os olhos cenicamente. - Eu estava lá. Assisti ao jogo, assisti todos os jogos. – Matt contou, mas sempre buscando o olhar de e sorrindo de forma contida.
- Uau! Isso é muito legal! – Dom riu.
- E o Matt ainda acha que vai te convencer a ser policial só por te deixar ver a viatura? – zombou.
- Olha, eu posso não ter um anel, mas eu tenho uma viatura muito maneira. Eu sou a lei. – Shay se defendeu.
- Você está de viatura? – Os olhos de Dom brilharam quando ele encarou Matt, que assentiu. – Eu posso dar uma volta?
- Está vendo, ? Quem precisa de um anel?
- Dom...- Tentei chama-lo.
- Mãe, por favor. Da outra vez eu não pude dar uma volta. – Dom pediu, projetando o lábio inferior.
- Matt acabou de chegar, querido.
- Não é um problema. – Matt apoiou as mãos aos ombros de Dom. – Eu quero é ficar longe desse metido. – Apontou com o queixo para , que sorriu. – Vamos, Dom. Vamos tirar onda por aí.

Dom não pensou duas vezes, apenas acenou e se foi, quase que saltitante, ao lado de Matt Shay, que felizmente, tinha a sensibilidade de disfarçar qualquer momento constrangedor entre nós, relacionado ao meu estado de saúde.
Gastei alguns segundos os observando partir, até que percebi os olhos de sobre mim, lembrando-me de que ainda estava ali corporalmente.

Dê play na música e coloque para repetir se necessário for: I Don’t Deserve You – Plumb



- Ele parece bem. Dom. – comentou e eu assenti.
- Ele gostou daqui e se adaptou bem. - Falei e ficamos em silêncio por mais alguns instantes, até que eu ocupasse o lugar onde antes estivera Dom. – Às vezes penso que não conheço você. – Confessei encarando o chão. – Jogador de futebol.
- É. – riu abafado, e me imitou, baixando a cabeça. – Mas já faz muito tempo. – Ele enfatizou.
- Como...por que ninguém nunca disse nada? Por que nunca me disseram nada? – Quis saber, erguendo o rosto e buscando seu olhar.
- Não sei responder a segunda pergunta, mas quanto a primeira...- respirou profundamente. – Ninguém fala disso desde que fiquei doente. Acho que talvez se sintam culpados, envergonhados...eu não sei. Como se fosse um tipo de tabu. Não vamos falar com ele sobre o que ele poderia ter sido. – finalizou sua imitação com uma risada amarga.
- Eu sinto muito. – Falei e ele apertou os lábios. – Desculpe.
- Tudo bem. Não precisa fazer isso, eu...eu já aceitei. – sorriu fraco.
- Acho que de qualquer forma, continua como se não te conhecesse. – Repeti sorrindo, tentando amenizar um pouco o clima. Sentia-me mal por , queria abraça-lo e dizer o quanto gostaria de ter estado ao seu lado quando aquelas coisas aconteceram.
- Não entendo. – Disse ele, voltando a me olhar.
- Eu acho que acabei de perceber que não sei nada sobre você. – Confessei sorrindo. – Conheci através dos meus irmãos e isso já faz muito tempo. Mas eu era uma adolescente...e sabe como são essas coisas, cheia de expectativas, se apaixonando por invenções, idealizações perfeitas e fantasiosas.
- Pode me conhecer agora. – Disse ele, segurando minha mão de repente.
- Seria um prazer. – Sorri grande e torceu o canto dos lábios num sorriso e ficamos em silêncio por mais alguns instantes. – Então...- Ri fraco, interrompendo nosso contato visual. – Você era famoso.
- Eu não diria isso. – sorriu sem graça. – Tá, legal. Talvez um pouco. – Admitiu sorrindo leve.
- O que aconteceu depois da escola? – Perguntei curiosa.
- Depois da escola... – Ele repetiu e pareceu pensar um pouco antes de responder e voltou a encarar o chão. – Eu fui pra faculdade. Depois fui anunciado como a mais nova contratação dos Sharks e no ano seguinte vencemos o super bowl. Dois anos e meio depois, comecei a me sentir mais cansado e mais fraco, não importava quanto exercício fizesse ou o quanto descansasse. – Enquanto contava, a feição de se escurecia. – Até que um dia, no primeiro lance do primeiro jogo dos playoffs, cai em campo e não conseguia me levantar. – riu amargo mais uma vez. – Depois tudo aconteceu absurdamente rápido enquanto o tempo parecia passar devagar demais.
- Deve ter sido difícil. – Falei e fora minha vez de segurar sua mão, torceu os lábios num sorriso educado e entrelaçou nossos dedos, sem me encarar.
- Tem sido difícil. – Ele corrigiu. – Mas as coisas tem melhorado.
- Posso perguntar uma coisa? – Pedi depois de alguns instantes e ele assentiu. – Quando deixei Paradise você estava noivo, porque não se casou? Que-quero dizer, é que...é que eu sempre soube que você rompeu depois que ficou doente. – sorriu.
- Eu estava noivo, mas...não tinha certeza se era o que queria, então adiamos. – Contou ele, deixando-me perplexa. – E ano após ano, adiávamos. Sarah era boa, mas não para mim, eu acho.
- Espera, você...você está dizendo que não se casou? Que estava noivo, mas que não se casou? Nunca pensou realmente nisso? – Questionei exasperada.
- Não. Acho que cedemos a pressão da família, eu não sei. – deu de ombros. – As coisas foram acontecendo, primeiro a faculdade, depois a carreira. Não quis dar um passo tão grande sem pensar bem. Depois que adoeci, não podia pedir para que ela ficasse.
- Por que você não me disse isso naquele dia? Quando perguntei se você a deixaria por mim se fosse o contrário?
- Isso muda alguma coisa? – me olhou.

Não respondi.
Ele tinha razão. Como o passado tinha sido não influenciava no nosso momento atual. Talvez se eu tivesse esperado um pouco, se tivesse mantido qualquer ligação com a cidade e com as pessoas...tudo poderia ter sido tão diferente...
Não conseguia não me odiar por pensar no quanto havia perdido por minha própria culpa. Podia ser diferente, poderia ter estado ao lado de durante seus piores momentos, não magoaria , talvez nem o conhecesse...mas em consequência disso, Dom não existiria e aquela ideia me causou um intenso desconforto.
- Já pensou em como a vida é irônica? – atraiu minha atenção outra vez. – Se tivéssemos tido uma chance de conversar antes, antes de você ir para Nova York, talvez tudo tivesse sido diferente. E se talvez, durante alguma viagem com o time eu tivesse entrado no bar certo, ido ao restaurante certo em Nova York, nós nos encontraríamos lá.
- Será que isso é um sinal do destino? Um sinal de algo que não seja para acontecer? – Pensei alto e riu pelo nariz.
- , depois de todas as chances que o destino nos deu e desperdiçamos, depois de cada corredor sem saída que levava ao mesmo lugar. Acha mesmo que tudo isso era um sinal negativo? – Eu o olhei. – Meu antigo treinador costumava dizer que se você interrompe o curso de um rio, ele vai encontrar outro caminho até o mar.
- É engraçado...eu...alguém me disse algo parecido. – Lembrei-me.
- Eu aprendi a ter fé durante esse tempo aqui, com nada mais do que o presente para me agarrar. – Disse ele. – Talvez, se tudo tivesse acontecido como achávamos que iria...se eu tivesse me casado com Sarah, poderíamos nos encontrar em Nova York, ou aqui, despretensiosamente...mas independente de como tenha sido, as coisas aconteceram dessa forma e eu acho. – Ele sorriu. – Acho não, tenho certeza, que esse rio vai encontrar seu caminho até o mar.
- e eu...- Tentei falar.
- Foram anos sem qualquer esperança e eu suportei, o quanto acha que posso aguentar enquanto vejo uma luz no fim do túnel?



13

- É verdade, eu juro. – ria enquanto contava. – Houve uma entrega da chave da cidade, desfile pelas ruas. Meu rosto esteve estampado em cada outdoor de Paradise, a cada dez quilômetros.
- Eu não acredito que Giovanni e Oliver nunca fizeram essa fofoca útil. – Eu tentava recuperar o ritmo da minha respiração, afetada pelas risadas com a história de quando o time de futebol com sede em Paradise havia vencido o Super Bowl.
- Acho que Giovanni teria contado se tivesse tido chance. – me alfinetou de forma sutil e eu o encarei com as sobrancelhas erguidas. – Só estou dizendo. – Ele piscou.
- Eu acabei de receber uma bronca? – Sorri fraco, cruzando as pernas e virando o corpo, ficando de frente para .
- Eu não seria tão atrevido. – Ele piscou e sorriu. – Mas é que Giovanni é meu amigo, sei que ele sentia falta de você. Sempre falava disso, sobre como estava orgulhoso do seu sucesso na selva de pedra, com seus restaurantes famosos. – Contou ele. – Seu marido bonitão...
- Eu não...Giovanni nunca me disse nada disso. – Sorri fraco, depois de empurrar pelo ombro por causa do olhar sugestivo que me direcionara ao falar do meu marido. Estava também surpresa com aquela informação e com a repentina participação de nos problemas da família. – Mas por que está me dizendo isso agora? – Indaguei depois de alguns instantes em silêncio. – Giovanni e eu estamos bem, melhores que nunca.
- Eu sei disso, ele me contou da última vez que veio aqui. – assentiu com a cabeça. – Eu fico feliz em saber, aliás.

Houve um breve silêncio, onde tudo ouvido eram as conversas distantes de outros pacientes que tomam sol, ou o som da água sendo remexida quando os patos mergulhavam suas cabeças.
- Você acredita mesmo nisso de que tudo é traçado? Que nosso destino é conhecido por alguém por aí, no universo? – Perguntei pensativa e me encarou um pouco confuso, com uma pequena ruga entre suas sobrancelhas.
- Eu acho que a vida sempre nos ensina alguma coisa. – Falou de modo despretensioso, encarando o lago e arremessando na água uma pedrinha que não o vi pegar. – Algumas coisas acontecem e podemos não entender no momento, mas depois elas se explicam sozinhas. As coisas acontecem por uma razão e eu acredito muito que a vida, Deus ou seja o que for que acredite, sempre nos dá chances para fazer a coisa certa. O que é seu sempre vai encontrar um caminho até você.

Antes que pudesse responder, Matt e Dom estavam de volta sorridentes e Dom tinha a camisa um pouco suja com o que parecia ser chocolate. Os dois vieram até nós, felizes e conversando como duas crianças no intervalo da escola.
- Mãe, nós fomos até a delegacia, depois passamos na praia, depois tomamos sorvete. – Dom contou agitado, enquanto Matt cumprimentava . – O Charles estava lá.
- Não na delegacia, eu espero. – Sorri, abraçando Dom pela cintura.
- Não, na praia. – Ele respondeu rápido.
- Charles? – me dirigiu um olhar curioso.
- Meu sous chef, é brilhante. – Contei, ajeitando os cabelos de Dom. – Tem tomado conta do restaurante enquanto descanso.
- E cozinha que é uma beleza. – Matt complementou.
- Espera. – Eu o encarei chocada. – Não me diga que foi ao meu restaurante sem eu estar lá.
- Foi uma coincidência, mas está aprovadíssimo. – Matt ergueu o polegar.
- Com uma coincidência ele quer dizer encontro. – entregou e Matt baixou a cabeça, envergonhado.
- Um encontro? – Eu ri. – Bom, deve ter sido dos bons. O Eau de Mer é bem romântico.
- Não foi bem um encontro, o exagera. – Matt tentou explicar. – Era um jantar com uma colega do trabalho.
- Um jantar de policiais em um restaurante francês chique. – provocou, cruzando os braços sobre o peito. – O que houve com o café e as rosquinhas?
- Você sabe que isso é um estereótipo, né? Ninguém come rosquinhas na delegacia. – Matt defendeu afetado.
- Espera, você acha o meu restaurante chique? – Perguntei, voltando-me para , que ergueu os ombros. – Você disse, disse restaurante francês chique.
- Eu só ouço boatos, . Só boatos. – estalou a língua, sorrindo de canto.
- Meu pai. – Dom disse de repente.
- Não, não acho que seu pai tenha contado. Quando esteve aqui só falaram de futebol e hockey. – Sorri distraída, ainda com olhos presos a expressão sarcástica de .
- Não, mãe. – Dom tocou meu ombro, chamando minha atenção. – É o meu pai. Bem ali. – Mostrou, apontando com um dedo a figura de a alguns metros de nós.

Fiquei de pé pelo susto.
A última pessoa no mundo que esperava ver naquele hospital era , meu marido. Minha mente fervilhou ao pensar nas milhões de razões que poderiam ter o trazido até ali. Talvez tivesse descoberto sobre e eu, talvez de alguma forma ele soubesse e estivesse ali a nossa procura, para acabar de vez com tudo.
Estava de pé, empalidecida, segurando com firmeza os ombros de Dom, sentindo o olhar quente e agitado de Matt e o olhar defensivo de , que corria de mim para . Nós três estávamos assustados com aquela aparição, embora talvez, por razões diferentes. estava deixando o interior do hospital sorrindo, parecia ainda não nos ter notado, mas ao seu lado estava Joy, a terapeuta de e única mulher capaz de me despertar ciúmes. Franzi o cenho ao reconhece-la, e toda ansiedade e medo que sentia desapareceram enquanto me perguntava o que diabos os dois faziam juntos.
Dom se desvencilhou de mim e correu até o pai, pegando-o completamente de surpresa. Graças a proximidade, pudemos ver Joy prender a respiração e arregalar os olhos, pareceu a imitar.
- Agora deu ruim. – Matt assoviou, preparando-se para apartar uma possível briga.
- Oi. – me cumprimentou com um sorriso confuso ao se aproximar. – O que está fazendo aqui?
- O que você está fazendo aqui? – Indaguei séria.
- Eu dei uma carona para a Joy e resolvi aproveitar e ir ao banheiro. – Ele se explicou, mas meu semblante não se alterou.
- Claro. Joy. – Assenti com olhar duro.
- E aí, cara. – Matt inclinou-se para apertar a mão de .
- Bom ver você. – respondeu, sorrindo para Matt. - . – Cumprimentou educado.
- . – ergueu o queixo, depois, com ajuda de sua bengala, ficou de pé, ao meu lado. – Aproveitando o final de semana!?
- É, acho que você entende. – respondeu, alinhando os ombros e baixando as sobrancelhas rapidamente, enquanto o encarava.
- Não tanto quanto gostaria, mas eu sinto que as coisas vão melhorar. – devolveu, ele mantinha o queixo erguido, olhos estreitos e parecia analisar com cuidado, sério. – Tenho sentido bons ventos para o meu lado.
- Aposto que sim. – Meu marido estalou a língua na boca, de modo irônico. - Não sei se contaria com isso, sabe como funcionam os ventos. – pareceu adotar a mesma postura combativa. – Em um minuto eles parecem estar a favor, e no outro...
- Eu sou um bom marinheiro, você ficaria surpreso com o tanto de tempestades que enfrentei. – devolveu, aproximando-se de um pouco mais. – Mais ainda com o número de vezes que passei delas sem despentear o cabelo.
- Já estou velho demais para qualquer coisa me pegar de surpresa. – torceu o canto dos lábios em um sorriso de desdém, aproximando-se também. – E ocupado demais para me surpreender com esse tipo de coisa.

E ali estava ela, brotando repentinamente, sem qualquer aviso ou gatilho, o espírito de competição entre e . Matt e Joy estavam confusos, Dom entretido com qualquer coisa aleatória perto do lago, enquanto os dois homens se encaravam de olhos estreitos.
- Estou vendo que já consegue ficar de pé. – tornou a falar, mas não em um tom amistoso.
- Já ouviu aquele ditado, sobre fazer você mesmo? – respondeu sorrindo de canto, provocador.
- Para isso é preciso bem mais do que só ficar de pé, não sei se ainda se lembra como é.
- Quer me ajudar a lembrar? – e estreitaram um pouco mais a distância entre os dois, para nosso total espanto.
- Acho melhor irmos embora. – Sentenciei, tentando chamar a atenção deles. – Se não tiver mais nada o que fazer aqui, . – Enfatizei olhando para Joy, ainda estava irritada com aquela situação toda, embora não soubesse bem o que exatamente me irritava.
- É, acho que o horário de visitas até acabou. – Matt concordou.

Toquei sutilmente o braço de e ele enfim me olhou, afastou-se de e voltou a se sentar, com Matt ao seu lado. procurou meu olhar, depois buscou o de sua nova amiga, que sorriu para ele de modo tenro, afagando seu ombro. A troca de olhares entre os dois me despertou algo estranho, diferente, não era exatamente ciúmes, estava mais para um tipo de sensação. Pareciam ligados, Joy sorriu de canto quando a olhou e depois os dois me encararam, como se esperassem minha reação.
- Eu só...só vou me despedir do e Matt. – Avisei apontando para trás. – Dom, querido, venha se despedir, estamos indo. – Chamei ao me aproximar dos dois que estavam sentados.
- Está tudo bem? – Matt foi o primeiro a perguntar.
- Não é para mim que deve fazer essa pergunta, Shay. – Torci os lábios, apontando com o olhar.
- Tchau, tio Matt. – Dom se aproximou, abraçando Matt sem muito jeito. – A gente pode fazer isso de novo outro dia?
- Claro, carinha. É só ligar. – Matt sorriu aberto. – Não para a polícia, para mim.
- Bom ver você, Dom. – sorriu e apertou o ombro de Dom. – Na próxima te conto mais sobre o futebol. – Disse ele e Dom o abraçou, pegando-o desprevenido. – Tchau. – sussurrou sorrindo e a cena dos dois aqueceu meu coração brevemente.
- Obrigada por essas coisas com o Dom. – Sorri para Matt e ele sorriu de volta, dando de ombros.
- Você volta? – perguntou quando Dom se afastou de nós, seu olhar parecia preocupado.
- Vocês dois precisam parar com essa rixa idiota. – Reclamei séria. – Não tem qualquer cabimento.
- Ter tem, você sabe. – maneou a cabeça. – Mas você volta?
- Sempre volto. – Respondi e ele sorriu com os olhos. – Não sorria, eu estou irritada com você também. Adeus.

acenou, depois me assistiu dar os passos até .
- Vamos agora. – Pedi sem muito jeito e , que já havia se despedido de Joy, assentiu. – Adeus, Joy.
- Hey, . – chamou antes que nós nos afastássemos, fazendo-nos girar para encará-lo. Sobre ele estavam três olhares chocados e o olhar incrédulo e impaciente de . – Cuide muito bem dela, ela vale a pena.
- Da minha esposa? – devolveu, enfatizando o pronome possessivo. – Pode dormir tranquilo, é o que eu faço.

🍁


Participação Especial: Rena como Uyara Houston



- Então, , como foi sua semana? – A psicóloga, Uyara, cruzou as pernas ajeitando a postura na cadeira ao meu lado.

Pensei um pouco antes de responder, tanta coisa havia acontecido que era difícil decidir o que contar, por onde começar. Depois de respirar fundo e tentar limpar meus pensamentos, pensei ter encontrado o fio da meada.
- Acho que surpreendentemente boa. – Sorri, relaxando no divã. - Acho que pensei sobre tudo e consegui alguma força para tratar assuntos pendentes. – Confessei ainda pensativa. - Embora difícil, estou conseguindo sair da cama todos os dias. Não voltei ao trabalho ainda, mas fui ao restaurante, me desculpei pelo meu comportamento com a equipe, agradeci pelo comprometimento... – Hesitei tentando me lembrar de todos os detalhes importantes o suficiente para serem mencionados. - Conversei com Charles, meu sous chef, é um bom…
- Que acontecimento? - Uyara me interrompeu.
- Ah, claro. – Lembrei-me que ainda não havia contado tudo sobre aquele fatídico dia. - No dia do meu colapso, meu sous chef tentou falar comigo sobre a equipe estar preocupada, sobre eu não ser mais a mesma. Tive um ataque de raiva, acho que me senti acuada e culpada por terem percebido que eu estava mal, não sei bem. – Expirou ainda sentida pela forma com que havia reagido. - Me irritei, briguei, o acusei de tentar me boicotar para tomar meu lugar e atirei o avental nele, dizendo que ele estava sendo promovido. Não voltei lá até essa semana.
- Você concorda com o fato de acharem que não é mais a mesma? – A psicóloga olhou para mim, parecia me analisar e eu hesitei por um instante.
- Sim. – Sorri nervosamente. - Eu estava fora de controle. Cozinhar é mais do que só um trabalho, é afeto, é amor, dom. Estava sendo irresponsável, tratando a cozinha como um fardo. Por isso ainda não posso voltar, não enquanto não estiver pronta e com vontade de cozinhar.
- E não há o menor problema nisso. – A psicóloga voltou a falar. - Você precisa voltar quando sentir que está preparada, e então deixará de ser um fardo e voltará a ser amor, deixe que as coisas fluam de maneira natural. - Comentou ela e eu assenti. - Quais foram os assuntos pendentes que criou forças para tratar, além do restaurante?
- Saí com meus irmãos, foi bom. – Listei enquanto refazia mentalmente meus passos durante a semana, tentando me lembrar dos fatos relevantes, com os olhos presos ao teto. - Depois resolvi ver o . – Contei e me ajeitei no divã, sentando-me. Aquela era a parte que queria realmente compartilhar, que precisava contar para que a psicóloga me ajudasse a entender. - Sabe, eu percebi que minha vida é um ciclo e que eu tenho repetido este ciclo várias e várias vezes. Eu fujo do , fico longe e então algo acontece que me leva direto para ele. Cedo de novo e fico ao seu lado, me abro para o que sinto, depois a culpa me corrói e eu o abandono, parto seu coração. – Contei, falando tão rápido que duvidava que ela conseguia me entender. - Eu pensei sobre o que disse, sobre o que tenho feito para mim e…e de algum modo parece que…- Hesitei mais uma vez, depois tossi limpando a garganta. - É que eu andei pensando nas decisões que tomei que envolvessem o , mas só consegui pensar em coisas banais, como em férias, decisões pequenas sobre a nossa casa ou onde passaríamos o feriado de quatro de julho, quando ele poderia sair para jogos e quando não. E eu sei que são decisões normais de todo casal, mas é que talvez a única grande decisão tomada juntos e em consenso fora a de não ter mais filhos depois de Dom e isso tudo ainda é muito confuso para mim. Ao mesmo tempo que penso isso, penso que ter ficado ao lado dele também foi uma escolha minha. Mas decidido por comodidade e não por realmente querer, como me casar ao ficar grávida e essas coisas. Não quero também que pareça que não o amo, é meu parceiro, amigo, companheiro e eu o amo profundamente. – Declarei, desesperada por compreensão e por uma resposta.
- Mas também ama o ? – A psicóloga esfregou as mãos nas coxas.
- Eu sempre amei. – Confessei com um sorriso leve. - Sempre foi o e isso nunca mudou. Mas assim como fiz essa reflexão viajada sobre o , também fiz sobre o . O me faz viver e decidir tudo de modo inconsequente. Tudo que fiz em relação a ele foi porque eu quis, mas esse sentimento desperta em mim algo irresponsável, sem pensar em limites, vivendo pelo momento. – Falei e busquei o olhar da terapeuta. - Até pensei se não seria o caso de…sabe? Nenhum dos dois ser bom para mim.
- Eu não consigo entender a relação do ser irresponsável, com sem pensar em limites e viver pelo momento. – A outra comentou enquanto gesticulava com as mãos. - Por que elas estão relacionadas para você?
- Quando eu reajo as coisas, quando penso e tomo atitudes que envolvem o , eu não penso nas consequências ou em qualquer outra coisa. Não pensei no meu filho, não pensava em nada, apenas no momento e no que sentia. me faz ser impulsiva e tomar decisões importantes de modo inconsequente e inesperado. Quando ele está na equação eu tenho certeza de que quero estar ao seu lado. E aí, toda decisão que penso em tomar e que o envolve é unicamente porque eu queria que fosse assim, sem considerar ninguém mais, apenas a minha vontade – Narrei. - O que também era estranho, me via agindo como uma adolescente outra vez. Principalmente porque mais da metade de tudo que decidi e pensei, nem mesmo interferiu, porque não conseguia falar.
- , acho que precisa assumir algumas responsabilidades que te cabem. - Uyara respirou fundo antes de continuar. - Não se trata do , se trata de você. Você tende a querer viver o momento, porque nunca viveu. Não pensa nos limites, pelo fato de em todo momento precisar pensar, o filho, a casa, o marido. Tudo que foi reprimido dentro de você nos últimos anos, parece estar se revelando, e ao meu ver, a questão toda é você estar perdendo o controle e não gostar. – Sorriu ela, enquanto eu ouvia tudo completamente pasma. - Me diga, porque é ruim viver o momento? Por que é errado, aos seus olhos, não viver o que tem vontade?
- Por que eu não sou uma adolescente, tenho um filho, responsabilidades. – Respondi depois de alguns instantes, completamente desconfortável com as indagações dela e sem saber o que responder.
- Viver o momento não tira suas responsabilidades, o que te faz pensar que tira?
- As minhas decisões? – Respondi um pouco nervosa, ela parecia não entender do que eu estava falando.
- É o que você acha? – Devolveu a psicóloga e eu apenas a encarei, paralisada.
- Talvez você tenha razão. - Expirei pesadamente alguns minutos depois, encarando os pés. - Talvez eu esteja me comportando como uma adolescente porque não vivi esse amor adolescente com o . Ignoro minhas responsabilidades e vivo como se não tivesse que pesar as consequências porque talvez eu não tenha amadurecido o suficiente para isso. - Ponderei.
- Ou talvez seja você que esteja se cobrando uma postura que acredita ser a correta. – Interveio a psicóloga. - Não quer dizer que é falta de maturidade, ou que esteja fugindo de suas responsabilidades. Quer dizer que você precisa de uma pouco de flexibilização, que você pode amar intensamente o , e que fazer loucuras vivendo os seus desejos, e ainda assim, ser uma chefe renomada e uma mãe exemplar. Uma coisa não anula a outra, . Por que precisa abdicar de uma coisa para ter a outra?
- Como assim? - Ri sem humor, ajeitando-me ao divã. - Eu preciso. – Minha voz falhou, estava tão atordoada com aquelas questões que mal sabia o que responder. – Quer dizer, eu não posso…eu preciso abdicar, certo? É como uma boa mãe e esposa faria, não é? É como minha mãe faria. – Tentei argumentar.

Uyara não respondeu, ficou em silêncio deixando-me perdida com o eco de minhas palavras, enquanto me encarava. Aquela sensação era péssima, sentia-me exposta, e ao mesmo tempo confusa, assistindo certezas cristalizadas serem quebradas como castelos de areia que desmancham quando a água do mar os atinge.
- Quem foi que decidiu o que uma boa esposa e boa mãe fariam ou não fariam? Uma boa mãe não espanca seu filho, não o deixa com fome ou é negligente. – A psicóloga começou a enumerar nos dedos. - Uma boa esposa é uma mulher que cuida do marido? Que entende seu papel na família? Ou que é respeitosa? Quem deu o parâmetro, ? Quem decidiu que deve ser assim? E mais, porque você precisa concordar com a pessoa que estipulou isso?
- Porque é o certo. – Falei com a voz como um sussurro, e o olhar perdido. - Minha mãe é assim, minha avó era, até minha amiga Gina é. Eu não posso…eu não…eu nem sei mais o que estou falando. - Admiti enfiando os dedos nos cabelos e percebendo que talvez, só talvez o buraco em que estava era bem mais profundo do que achava.
- Eu compreendo sua aflição, , e está tudo bem se sentir assim, não tem nada de errado. – Falou ela, distraindo-me de mim. - Você vive repetindo as palavras, eu não posso, não é certo fazer isso...me pergunto o que você queria fazer, o que poderia ser tão ruim para que você reprimisse com tanta força.

Eu ri sem qualquer traço de humor, depois ergui os olhos.
- Eu acho que isso, viver um relacionamento com , isso é o que eu sempre quis, o que sempre fantasiei, desde menina. Acho que depois que deixei essa cidade, internalizei, cristalizei que nunca aconteceria e agora eu tenho essa chance. – Confessei enquanto pensava no que responder. - realizou minha maior fantasia se declarando para mim e sempre dizendo que não vai desistir. Isso é tão inacreditável…- Parei um pouco, aquela situação ainda era chocante para mim, ainda me surpreendia como tudo tinha acontecido entre nós. - Houve uma coisa que aconteceu e que não falei ainda. – Falei, havia um ponto que ainda precisava falar, ou mal dormiria. - Estou dizendo essas coisas para você e pode ser que faça algum sentido, porque fez sentido para mim.
- O que aconteceu que não falou? Quer me contar?
- E se eu estiver fugindo de novo? - Perguntei a si mesma e para a psicóloga. - Quando visitei , nós conversamos e eu percebi que mesmo com esse sentimento dentro de mim há mais de décadas, não o conheço. Me apaixonei por quando éramos adolescentes, através dos meus irmãos, do que via a distância e das minhas projeções. Continuei apaixonada por ele, embora reprimindo com toda força, e em minha cabeça, hoje ainda era apaixonada pelo mesmo adolescente do meu passado e tudo que achava e pensava que ele era. Mas descobri um pouco sobre ele, nada idealizado, mas detalhes reais de seu passado, da sua história e de quem ele é. E percebi que não o conheço. - Confessei sorrindo fraco e baixando os ombros. - Me pergunto se eu sou apaixonada pelo real ou pelo que idealizei por mais de quinze anos. Ou, se tenho medo de descobrir e isso responde a sua pergunta, sobre a razão de eu reprimir tudo com tanta força. E se eu não gostar dele de verdade, e tudo isso, todo esse furacão que transformei a minha vida e a dele, for por nada? E se eu só amo uma lembrança?
- Todo mundo em algum momento da vida idealiza alguém, . – A psicóloga respondeu. - Existem alguns traços no ser humano que jamais vão ser modificados por completo, podem ser moldados, aperfeiçoados, mas nunca completamente. A essência pode ainda ser a mesma e você precisa conhecer esse mais velho, maduro, entender quem ele é. Já parou para pensar que o fato de nunca ter superado, foi justamente por não ter sido resolvido? Por nunca terem vivido de fato o que queriam? Tudo que é inacabado volta, e se você fugir dele de novo, jamais vai superar o sentimento que tem.
- Mas será que é tudo real? Ou é só...só porque não vivi e reprimi? – Indaguei.
- O que acha de descobrir a resposta dessas perguntas?
- Como? Como eu posso descobrir? – A olhei.
- Vivendo, querida. – A psicóloga sorriu empática. - É a única forma de descobrir as coisas.

🍁


Depois de sair da sessão com a psicóloga, fui até o cemitério. O céu estava azul, sem qualquer sinal de nuvens, mas o dia era fresco, a brisa marítima balançava as árvores e fazia com que ondas grandes se quebrassem contra o paredão de pedra mais abaixo e contra o píer, que era possível ver dali de cima. Era um dia bonito e calmo, do tipo de dia que mães aproveitam levando seus filhos ao parque, e que solteiros aproveitam para andar de bicicleta na orla e nadar um pouco. Estava sentada junto ao túmulo de Ted, não porque queria vê-lo ou visita-lo, mas porque queria me afastar de tudo e refletir as milhões de coisas que haviam surgido durante a conversa. Aparentemente, apesar de sentir orgulho de minhas autoanálises, o olhar profissional podia ir bem mais longe e algo levantado por ela, em especial, não saia da minha cabeça desde então.
Pensava no ideal de mãe perfeita.
Desde o princípio havia adotado a bandeira da não romantização da maternidade, sem maquiar ou fantasiar, fingir que era algo bom e prazeroso o tempo todo. Inicialmente, por causa da pressão social e da idealização materna, fora complexo e difícil entender que eu poderia detestar ser mãe, mas amar meu filho. Odiava o fato de que por mais que fosse presente, todas as cobranças e culpas sempre recaíam sobre a mãe.
sempre fora antenado, atento a tudo, e, apesar de inicialmente não ter pensado ser uma boa ideia ter um bebê, abraçou a causa junto a mim de modo delicado e firme. Ele se levantava durante a noite quando Dom tinha cólicas, trocava fraldas, cozinhava, algumas vezes o havia levado junto para aulas na faculdade. era um homem diferente da maioria e tinha ciência do tamanho de meu privilégio. Mas apesar da realidade dentro de casa ser agradável, do lado de fora era excruciante.
Sua família nunca perdia qualquer mínima chance de me alfinetar. Em suas cabeças afundadas em romantização e com sérias pitadas de machismo, era um grande absurdo que cuidasse do bebê durante as noites, enquanto eu trabalhava, ou que ele trocasse fraldas e cozinhasse enquanto eu descansava. Uma mulher envenenada contra seu próprio gênero pode fazer mais estragos do que dez homens.
Os comentários, olhares e piadas eram sempre cansativos, estressantes e me faziam questionar nosso estilo de vida, como se estivéssemos errados e eu fosse culpada, uma mãe ruim. Junto a essa culpa, também trazia o sentimento de detestar ser mãe. Só queria dormir um pouco e o bebê parecia não parar de chorar nunca.
Nos primeiros meses, vivia estressada, cansada, com fome, eram condições extremas e por isso temia fazer algo ruim em algum momento de maior estresse. Lembrava-me das cenas de mães felizes e bonitas dando banho em seus filhos como se aquilo fosse a coisa mais preciosa, o melhor momento de seus dias e me culpava por não ser assim. Não ficava feliz em ter que dar banhos em Dom, não ficava feliz quando chorava de dor ao amamentar nas primeiras semanas, nem ficava feliz por não dormir sequer três horas por noite ou por não conseguir ir ao banheiro. Se existia algo que não sentia naquele momento, era felicidade.
Obviamente amava meu filho, embora naquela época não tivesse tanta certeza. Mas era difícil me desvencilhar e organizar todos aqueles sentimentos dentro de mim. A culpa por não estar bela, boa e amorosa como imaginava que devia estar, a preocupação com cada soluço diferente que o bebê dava, as caraminholas que minha sogra e outras pessoas colocavam em minha cabeça sobre o bebê não estar saudável, bem alimentando ou sobre meu leite não ser forte o suficiente.
Não era fácil.
Mas depois de passado, as coisas se acertaram e assim como antes, nossa rotina da porta para dentro era ótima. Criar nosso filho a nossa maneira, livre para experimentar a vida, oferecendo a ele todo suporte emocional que precisava estava sendo uma experiência fantástica. Dom era um garoto incrível e meu amor por ele justificava todo início caótico.
Mas depois da conversa com Uyara, algo havia mudado de lugar. Eu estava cedendo à pressão social e idealização da mãe perfeita? Por que viver o que queria viver com ou quem quer que fosse, me faria uma mãe ruim?
A segunda pergunta parecia ter uma resposta mais simples, porque provavelmente a resposta era . Me preocupava sobre como seria para Dom crescer com pais divorciados, me preocupava com a maneira com que isso refletiria em sua vida. Talvez, se não fosse isso, minha decisão sobre meu casamento fosse um pouco mais simples.
Meu Deus, o que estou pensando...
Estou mesmo concebendo que se não fosse por Dom, eu já teria me separado de ? Balancei a cabeça, incrédula com os lugares para onde meus pensamentos me levavam. Não, não é tão simples. Também amo o , embora de modo diferente, ainda o amo. Respirei fundo, encarando a relva verde do cemitério. Certo, é óbvio que tinha feito a escolha em meu coração e talvez fosse burrice negar para me sentir melhor. Era , sempre fora .
Ao mesmo tempo, por qual eu estava apaixonada? O adolescente e que existia apenas em minha imaginação ou o real, que agora estava do outro lado da rua, no hospital? Era algo que precisava descobrir com urgência. Não queria responsabilizar por minhas expectativas, tampouco desmanchar um casamento de anos sem sequer conhecer bem o motivo para isso.
Ironicamente tudo parecia ter uma resposta única: tempo.

🍁


Depois de refletir um pouco sobre tudo, resolvi visitar a razão daquele furacão: . Não era como se eu pudesse evitar, estava perto, queria vê-lo, queria desesperadamente saber mais sobre ele, sua vida e seu passado. Precisava descobrir por qual eu estava apaixonada, o real ou idealizado. Gostaria de trocar algumas palavras com doutor Rafael caso o encontrasse, mas o médico parecia ser tão talentoso em desaparecer quanto era em fazer seus enigmas indecifráveis e confusos.
estava no jardim outra vez, sentado perto do lago. Nos últimos tempos, parecia ficar mais do lado de fora do que dentro de seu quarto, o que era bom, talvez significasse que sua alta estava mais próxima do que o esperado.
- Tenho certeza que muitas pessoas devem confundir você com a pessoa que alimenta os patos. – Brinquei aproximando-me dele e ergueu os olhos ao ouvir minha voz.
- Não sabia que fazia essa linha, . – Ele devolveu, com um dos olhos fechados. – O que tem contra alimentadores de patos?
- Nada, na verdade. – Dei de ombros, sentando-me ao lado dele. – Uso muito foie gras no restaurante, sou grata, na verdade.
- Meu Deus, alguém devia chamar um órgão de proteção aos animais. – Ele balançou a cabeça negativamente e nós rimos. – Que bom que veio. – Disse depois de algum tempo.
- Já é parte da rotina.
- Devo me preocupar com seu marido aparecendo aqui de repente? – provocou olhando para os lados teatralmente.
- Você precisa parar de provocá-lo como um homem das cavernas. – O repreendi torcendo os lábios.
- Eu? – riu sem humor. - Não é como se eu fizesse sozinho.
- Por favor, . Não vamos fingir que eu não estava aqui e não vi exatamente o que aconteceu. – Pedi, voltando minha atenção para o lago.
- Certo, desculpe. – Pediu ele depois de alguns minutos em silêncio, rendido. – Eu acho que sinto ciúmes. – Confessou e eu o encarei pasma.
- Ciúmes? Você? De Mim?
- Por que o espanto? Você sabe melhor que ninguém o que eu sinto, acho que é normal ter ciúmes da mulher que eu amo e não posso ter. – Falou arqueando uma sobrancelha.
- Você sempre escolhe a guerra, não é? – Falei, inclinando-me para frente e cobrindo o rosto com as mãos, depois enfiei os dedos nos cabelos, estava cansada.
- Eu sou sincero. – falou rápido, olhando para frente. – E você sabe disso, sabe e concorda. Concorda e corresponde, porque está aqui.
- Vamos ter essa conversa mais uma vez? – Suspirei cansada.
- Não, apesar de você achar que sempre escolho a guerra, escolhi a paz sobre esse assunto. Não vou te pressionar ou tentar entender os motivos que tem para não se separar, embora sempre pense no assunto quando estou só. – Confessou ele.
- Se te consola, os motivos, na maior parte do tempo são nebulosos até para mim. – Cedi, procurando os olhos dele, era justamente da paz e segurança que eles transmitiam que precisava.
- Talvez seja porque você está tentando encontrar motivos que não existem.
- Ou porque são motivos não tão óbvios. – Suspirei.
- A terapia ajuda nisso? – Ele perguntou e eu sorri, baixando a cabeça.
- Eu acho que sim, tem ajudado a entender porque eu vivo nesse ciclo sem fim. – Contei. – Também está me ajudando a me priorizar, pensar no que é melhor para mim. Me permitir.
- Preciso mandar uma garrafa de alguma coisa boa para essa psicóloga, assim que possível. – brincou, sorrindo leve.
- Estive com ela hoje, falamos sobre você e . Ela acha que eu sou um pouco impulsiva quando se trata de nós dois, porque no resto da minha vida, em todos os outros espaços eu nunca pude ser. Sempre tive que pensar nas consequências, nos limites.
- Eu faço você se sentir...ser impulsiva? – quis saber pensativo.
- Não, eu sou impulsiva. Não é sobre você, ela disse que é sobre mim e sobre essas cobranças todas. – Contei a ele. – Falou até sobre um ideal de mãe perfeita. Disse que viver o momento, fazer o que eu quero realmente fazer não me impede de ser uma boa mãe.
- Imagino que quando diz de viver o momento, seja sobre mim de novo. – Ele tentou entender.
- É. É tudo sobre você, sempre foi. – Assumi.

De algum modo, me sentia pronta, aberta e queria falar, queria conversar sobre meus sentimentos de modo honesto. Dizer tudo a , já que ele era sempre a primeira pessoa para qual sempre queria contar tudo. E ouvia atentamente, concentrado e realmente interessado no que eu tinha a dizer.
- Eu acho que não deve ser fácil pensar no que quer fazer do seu lugar. – Disse ele depois de algum tempo. – E talvez eu esteja até sendo um pouco egoísta nesse sentido. Você tem o Dom, um casamento de anos e o , infelizmente, não me parece um cara ruim.
- É uma forma de pensar. – Concordei. – Mas eu acho que essa é a resposta fácil. – me encarou com o cenho franzido. – Acho que gosto de pensar que não consigo dar esse passo, seja para o seu lado ou para o do , ou para o meu, que seja...por causa do meu filho, principalmente.
- Tem uma segunda resposta? – uniu sua mão a minha. – O que está pensando?
- Acho que tenho medo. Acho que no final de contas, embora diga que tudo sempre seja sobre outras pessoas, é sobre mim. Sobre o que eu me sinto pronta ou não para fazer. Sobre o que eu vou ter que abrir mão.

não disse nada.
Não sabia como ele havia entendido aquilo, nem mesmo se ele havia entendido, mas assim que terminei de dizer, ele me puxou para junto de si e eu me aninhei em seus braços. Ouvia seu coração, sentia o calor de seu corpo e seu cheiro, talvez fosse daquilo que precisava para me encontrar.
De certo modo, tinha dado um passo importante, horas antes havia sentenciado que a razão pela qual não podia me decidir era Dom, mas no fundo, era uma mentira. Dom sobreviveria, assim como milhares de outras crianças de pais divorciados. e eu poderíamos tentar uma convivência amigável se fosse o caso. Mas não era sobre Dom, sobre ou sobre . Era puramente sobre o que eu não estava disposta a perder.

🍁


O cheiro do molho picante de tomava toda a casa, era quase como uma tentativa de homicídio. O cheiro sempre fazia meu nariz arder, impregnava no cabelo e parecia deixar a cozinha mais oleosa do que a de um restaurante na noite de ação de graças.
Mas era noite de jogo e meu marido tinha como tradição comer qualquer coisa com seu molho picante durante os jogos. Queijos, tacos, azeitonas, salame ou até batata frita, tudo era servido junto a seu molho mágico com ingredientes secretos. Talvez nunca quis me contar a receita porque sabia que eu, como profissional, nunca mais deixaria que ele entrasse em casa com os ingredientes.
Qualquer que fosse a razão para aquilo, a tradição perdurava desde a faculdade e nem o próprio Wayne Gretzky em pessoa seria capaz de convence-lo do contrário. Nos playoffs parecia ficar ainda mais enlouquecido e aquele era o motivo do meu colapso.
- Alguém quer sair e comer uma pizza? – Quis saber eu, encostada a porta, com os braços cruzados sobre o peito, enquanto contemplava Dom e ajeitarem a sala para o início do jogo.
- Está falando com a gente? – perguntou sem me olhar.
- Eu não vou comer seu molho picante com receita vinda da área cinquenta e um. – Neguei com a cabeça.
- Qual é, ...- pôs as mãos na cintura. – É tradição. Não vamos comer pizza. – Ele hesitou. – Ou melhor, podemos comer pizza, desde que seja com meu molho.
- Vou ligar para o Giovanni e Oliver, não me espere acordado. – Avisei, pescando minhas chaves.
- Está atrasada. – piscou, passando sorridente por mim para abrir a porta. – Oliver e Giovanni vem ver o jogo aqui. – Ele sorriu e ao abrir a porta, vimos meus irmãos saltando do carro com cervejas nas mãos e uniformes de time.
- Eu odeio você. – Resmunguei e ele riu animado.
- Irmã! – Giovanni beijou minha testa assim que passou pela soleira da porta. – Cunhado! – Celebrou abraçando como um urso.
- Oliver, o trato era torcer para o Buffalos. – fez careta ao ver o uniforme azul dos Rangers que Oliver usava.
- O que importa é participar. – Oliver ironizou, beijando o rosto de e passando por ele, dirigindo-se a Dom e em seguida o erguendo no ar, como costumava fazer.
- Mudei de ideia, acho que vai ser um jogo bem divertido. – Pisquei e sorri para provoca-lo, depois voltei para a sala.
- Vamos, ! O jogo já vai começar! – Giovanni chamou, já ocupando um lugar no sofá.
- Estou pegando meu molho. – Avisou ele da cozinha.
- Espera, esse cheiro horrível vem da cozinha de vocês? – Oliver franziu o nariz quando se aproximou.
- Cara...- Giovanni riu enquanto cobria o nariz. – Parece que você cozinhou o uniforme de treino de um time inteiro aí.
- É, eu sempre digo que é péssimo. – Concordei abanando o rosto.
- Agora eu entendo porque ninguém gosta de cunhados. – resmungou. – Oliver vem assistir ao jogo com o uniforme do rival e Giovanni fala mal da minha comida.
- E ninguém pode culpa-los por isso. – Eu impliquei.
- Alguém deveria pedir uma pizza. – Oliver sugeriu.
- Com muita urgência. – Vanni concordou rindo pelo nariz.
- Eu posso ligar? – Dom ficou de pé em um pulo.
- Claro, querido. – Assenti. – Sabe, Vanni. Você deveria comprar a casa a venda ao lado da nossa, eu ia amar ter mais alguém para atormentar além de mim.
- Posso pensar a respeito. – Ele brincou. – É tão chique e cara quanto a sua?
- Não, por favor. Eu volto para Nova York andando se isso acontecer. – protestou.
- Não seja bobo, . – Oliver o abraçou pelo ombro. – Giovanni não precisa comprar a casa ao lado, se eu posso simplesmente me mudar para o seu quarto de hospedes. – Provocou sorrindo e arregalou os olhos.



14

– Certo, eu já entendi que não posso confiar em você. Ninguém que tenha um bom caráter não gosta de The Office. – falou, fingindo estar realmente atingido enquanto eu ria alto, jogando a cabeça para trás, sentindo o sol esquentar a pele.
– Eu não disse que não gosto, só disse que não acho que sejam tão engraçados. – Tentei me defender.
– Qual, é? Você realmente assistiu? São brilhantes, , a frente do nosso tempo. Humor genuíno.
– Vindo de alguém que está longe de tudo que tem de mais novo sobre a cultura, não é a melhor pessoa para me julgar.
– Eu sou, mas é claro que sou. – Ele me encarou, chocado, voltando seu rosto em minha direção. – Se alguém aqui pode te julgar, sou eu.
– Okay, já entendi que te decepcionei nisso, mas vamos prosseguir. – Pedi, já impaciente. – O que gosta de ouvir?

Ele suspirou, encarou os próprios pés e sorriu fraco, como se estivesse tímido e precisei me segurar muito para não beijá-lo.

– Faz tanto tempo que não ouço música que acho que nem sei mais. – confessou, esticando uma mão até que alcançasse a minha, permitindo, sutilmente, que seus dedos tocassem os meus. Não entrelaçando os dedos, apenas permitindo que a pele se encontrasse um pouquinho, causando em mim aquele choque tão delicioso. – Mas eu gostava de Queens, Ramstein, Red Hot Chili Peppers, Offspring.
– É sério? – O fitei, surpresa, unindo as sobrancelhas. – Nada de músicas sobre praias e surf e essas coisas? Ou sobre futebol?
– Ah, por favor, eu não sou um estereótipo. – rolou os olhos, do mesmo modo que fazia quando ainda estávamos no início de tudo aquilo, e não pude conter o sorriso bobo que se formou em meus lábios. – O que foi? Por que está sorrindo assim? – Ele perguntou ao notar, sorrindo também, me analisando com olhos estreitos.
– Não é nada. – Eu sacudi a cabeça. – É só que...você rolou os olhos, me lembrei de quando fazia isso no início. – sorriu e baixou a cabeça, fechando os olhos.
– Parece que já tem uma eternidade. – Confessou ele.
– E de fato tem.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, talvez, assim como eu, estivesse revisitando as memórias daquela época, lembrando do percurso até ali. Estávamos caminhando do lado de fora, perto das margens do lago, aproveitando o sol da manhã enquanto nos conhecíamos melhor. Respirei fundo, tentando criar coragem para perguntar o que realmente queria saber sobre aquele assunto.

– Você se lembra daquele dia? – Perguntei em um fio de voz, enquanto permanecia encarando o chão.
– Que dia? – Ele fingiu estar confuso, mas quando torci os lábios frustrada, ele sorriu ladino e balançou a cabeça negativamente, voltando a encarar o chão. – Sobre o dia que você voltou? – riu abafado e assentiu positivamente com a cabeça. – Cada segundo.
– Mas como é possível? – Falhei em conter minha curiosidade deselegante. – Eu me lembro de como...
– De como eu estava péssimo? Horrível? Cheirando a urina, vômito e digno de pena? – me interrompeu, depois soltou um riso doído, que me cortou por dentro. – É, eu também me lembro dos detalhes sórdidos.

Não soube o que dizer, nem pude dizer qualquer coisa.

– Eu estava com tanta vergonha...queria gritar, chorar, sentia raiva. – Confessou e a medida com que falava, sua voz ia embargando e seu rosto era atravessado pela sombra da dor, parecia não conseguir ou querer me encarar. – Me lembro de não te reconhecer imediatamente. Achei que fosse só mais alguém, mas aí você segurou minha mão e eu vi seus olhos, sua voz...acho que me fez lembrar do passado, de tudo e...– hesitou, parou de andar e olhou para o alto. – Não sei explicar, nem sei se existe uma explicação, mas naquele momento tudo mudou. Era como se eu precisasse de você, embora preferisse morrer a ser visto por você, obviamente, naquela situação.
– Eu nunca...nunca imaginei. – Falei eu.
– Acho que faz parte. – deu de ombros, voltando a andar, deixando a expressão despreocupada e serena de quase sempre. – Não sei se tem uma explicação para isso tudo, também não estou preocupado em encontrar, mas fato é, algo mudou naquele dia.
– Eu queria ter vindo antes, queria ter estado aqui antes. – Revelei, sentindo o coração apertar. – Queria ter estado ao seu lado durante tudo isso. – Expirei profundamente, encarando os pés, enquanto sentia o olhar quente de sobre mim. – Se não tivesse ido embora...se eu tivesse ficado aqui...
– Hey, . – chamou minha atenção para si, segurando meu rosto e olhando em meus olhos com um sorriso leve nos lábios, enquanto tentava me acalmar com os diferentes tons de azul de seus olhos. – As coisas aconteceram, não dá para mudar. Eu não reclamo. Eu tenho você aqui agora e isso é o que importa. – Assenti em silêncio. – Mesmo que não da forma que gostaria. – Ele estalou a língua e piscou, fazendo careta, maneando a cabeça. – Por exemplo, agora, eu daria qualquer coisa para beijar você. Consigo sentir seu cheiro daqui, vejo seus lábios, estamos tão perto que posso sentia sua respiração, mas não posso fazer nada além de olhar. – sorriu um pouco triste. – Admirar e imaginar como deve ser poder fazer isso sempre que tiver vontade.
– Ainda acha que o que aconteceu antes, eu ter ido embora, não tem relevância? – O desafiei, arqueando uma sobrancelha.
– Existem advogados de divórcio aqui ou em Nova York. – piscou os dois olhos, como se estivesse se divertindo com aquele pequeno ataque. – Não é ter ido embora de Paradise que me separa de você, é você amar tanto três pessoas que não resta amor para você mesma.

🍁


Nos últimos meses, constantemente me perguntava o real motivo de ter me casado com . Sabia que não era por paixão, mas não tinha certeza se não era por comodismo ou pela paz que me relacionar com ele transmitia. Há alguns anos ouvi alguém dizer que o amor é calmo, não causa borboletas na barriga, e que isso, na verdade, é um sinal de ansiedade. E era óbvio, não me deixava ansiosa, muito pelo contrário. Mas a falta de sentimentos intempestivos era por comodismo, desinteresse e falta de paixão na relação, ou porque éramos bons juntos?
De certo modo, e eu éramos amigos e vivíamos assim, como um casal de amigos com benefícios. Eu o amava, mas será que o amava mesmo? Do jeito certo? Será que o que sentia por era amor ou apenas uma projeção ansiosa e fantasiosa? Como eu saberia?
Não pude conter o sorriso idiota que se formou em meus lábios, percebendo o quanto uma mulher da minha idade podia ser imatura quando se trata dos assuntos do coração. Era bobo, ridículo, mas adoraria ter alguém para perguntar como é, como saber se gostamos ou não de alguém, na realidade. Tinha a psicóloga, era óbvio, mas gostaria de alguém mais próximo que isso. Naquele momento, uma irmã mais velha seria interessante, mas eu infelizmente só contava com um irmão mais velho.
Por essa razão eu estava na rua, no centro de Paradise, recostada ao meu carro, com dois copos grandes de café, esperando que meu ocupado irmão saísse de seu escritório chique e viesse me encontrar. Por fim, depois de mais de vinte minutos de espera, Giovanni saiu pela porta automática com um sorriso grande e seu cabelo preto milimetricamente penteado para trás. A quantidade de gel para cabelo usado por ele devia ser suficiente para abastecer pelo menos dois salões de cabelo por uma semana.

– Alguém morreu? Você precisa de um favor? Beijou outra vez? – Ele tentou supor, apontando para mim e piscando ao pronunciar a última pergunta, e eu rolei os olhos.
– Às vezes me esqueço porque Oliver era meu irmão favorito, mas obrigada por me lembrar. – Ironizei e ele me abraçou de lado, tomando um dos copos de café da minha mão e dando um gole, enquanto me guiava pela calçada.
– Sinceramente, , você me ama e eu nem preciso me esforçar. – Vanni se gabou. – O que tem nesse café? Baunilha? – Indagou torcendo os lábios numa careta.
– Feliz ou infelizmente, você é uma das pessoas mais sensatas e estáveis que eu conheço. – Falei.
– É bom enfim ter o reconhecimento merecido. – Ele sorriu e eu quase pude ser seu ego se inflando como um balão sobre nossas cabeças. – Tem certeza que não tem baunilha aqui?
– Como vai a Sue e minha afilhada? – Perguntei, tomando coragem para abordar o assunto que realmente era de interesse.
– Bem, sua afilhada agora consegue dormir a noite toda e eu durmo a noite toda, então, todos felizes. – Giovanni piscou, tomando mais um pouco de seu café, enquanto me arrastava pela rua num abraço desengonçado. – E Dom, e ?
– Sinceramente, você não pode segurar seu humor sádico? Nem um pouquinho? – Eu o encarei com olhos estreitos, mas ele deu de ombros e gargalhou. – Todos estão bem.
– E você? – Giovanni mudou seu tom, tentando me acolher um pouco.
– Confusa. – Suspirei. – Como sempre.
– Quando não se está confuso sobre nada, ou é porque morreu ou porque alcançou o nirvana. – Meu irmão falou, com ar filósofo. – E sabemos que você está bem distante dos dois.
– Você hoje resolveu me estressar, não é? É pessoal?
– Não, só estou tentando descontrair. – Ele parou de andar e me puxou, deixando-me a sua frente. – Eu sei que tudo isso é muito pesado, só estou tentando relaxar.
– Me lembre de te agradecer mais tarde. – Ironizei, voltando a andar, e enfim tomando um pouco do meu café, que já estava morno. Giovanni em seguiu.
– O que aconteceu?
– Eu me sinto andando em círculos. – Confessei cansada. – Na última sessão com a psicóloga tivemos uma conversa franca sobre muitas coisas, depois com ...mas parece que a cada dois passos para frente, dou um para trás.
– Do que está falando? – Perguntou ele, franzindo o cenho.
– Entendi que não me separo de ou encerro tudo com porque tenho medo do que eu vou perder no processo, e não das consequências disso para os outros. Eu sempre achei que fosse porque não queria causar dor, mas por fim, não quero me causar dor. Pode me chamar de egoísta agora, acho que cabe.
– Não vou. – Ele negou e eu o encarei. – Você tem uma escolha difícil, se não se preocupasse com o que está perdendo caso escolha um ou outro, seria burra. Aí sim eu me preocuparia.
– O problema é que eu sei disso, mas constantemente me encontro confusa sobre meus sentimentos, pelos dois.
– Calma. – Giovanni parou de andar e eu me virei para encará-lo. – Depois de tudo isso – ele agitou o dedo indicador no ar. – não sabe o que sente por eles?
– É mais difícil do que parece, okay? – Me defendi. – Eu tenho medo de estar apaixonada por uma versão do que só existe na minha cabeça, até estou trabalhando nisso, tentando conhece-lo melhor agora. Mas também não sei exatamente o que sinto ou não sinto pelo .
– Você sabe, . – Giovanni riu pelo nariz. – Sabe sim, só não quer admitir para si mesma, porque no momento que fizer isso, vai ter que tomar uma decisão.

Eu o encarei com olhos arregalados, impactada.

– Não me olhe assim, é a verdade e você sabe.
– Giovanni, eu...
– Você sabe, no fundo sabe. Quando deita a noite, sabe que ali, ao lado do não é o seu lugar. Se não fosse assim, não estaríamos tendo essa conversa, não teria fugido tantas vezes para encontrar o . Você saiu no meio da noite, no natal! – Ele lembrou de modo acusatório. – Você sabe o que sente, exatamente. Sabe porque quando deixa de vê-lo, você definha, fica péssima. Da última vez que se afastaram, até no restaurante você pediu um tempo. E ele também ficou péssimo, horrível, de dar pena.
– Você já tem um lado então. – Compreendi.
– Eu só estou dizendo o que é claro para mim. – Vanni deu de ombros. – E você, bem no fundo, sabe que eu tenho razão.

🍁


Respirei duas vezes antes de passar pela porta do salão. O restaurante estava fechado, era cedo, e embora todos já tivessem sido avisados quanto ao meu retorno por Charles, ainda me sentia uma intrusa. Era complicado para meu ego aceitar entrar no meu restaurante de cabeça baixa, aceitando meus erros e sabendo ou imaginando o que se passava na cabeça da equipe sobre mim. O respeito e liderança eram fundamentais dentro de uma cozinha, se minha equipe não me respeitasse mais, não visse em mim a líder que precisavam, tudo estaria perdido, e era isso que mais temia.
Respirei fundo e abri a porta de uma vez.
Primeiro, o estranhamento, depois o som confuso, os aplausos, assovios e estouro de balões. Levou alguns segundos até que eu conseguisse me dar conta do que estava acontecendo e enfim sorrir, relaxando os ombros.

– Bem-vinda de volta, chef! – Charles celebrou, aproximando-se de mim, seguido pelo resto da equipe.
– Eu não mereço vocês. – Sorri emocionada, enquanto os abraçava. – Vocês realmente são a melhor equipe que já tive.
– Nós fizemos até bolo. – Charles contou, apontando para trás.
– Eu não acredito. – Baixei os ombros. – Vocês...
– Estamos felizes em te ter de volta, . Você fez falta, é a alma do Eau de Mer, sem sua presença aqui, nada faz sentido. – Charles falou, tocando o peito de modo respeitoso.
– Eu preciso discordar, não sou a alma do Eau de Mer, mas sim o Eau de Mer faz parte da minha alma. – Falei tocando uma das mesas próximas. – Entendi isso. Sem mim aqui, vocês conseguiram manter o que o restaurante tem de melhor e é isso que importa no final. Seja comigo no comando da cozinha ou o Charles, ou qualquer outro, o que importa é que a equipe não seja apenas uma equipe, que a comida servida aqui não seja apenas comida, do tipo que se encontra em qualquer esquina. Que seja o tipo de comida que preenche o coração. Esse restaurante, vocês...obrigada. – Agradeci, tentando olhar no rosto de cada um presente ali.
– Ela voltou! – Alguém gritou no fundo, fazendo com que todos rissem alto.

🍁


A vida não ficava mais simples com o tempo, nem as decisões ficavam mais fáceis ou óbvias, ao menos não para mim. Com aquela idade, dramas com relacionamento não deviam fazer parte da minha vida, era a hora de me preocupar com o filho pré-adolescente, com drogas, com a amante do meu marido e com insatisfação na carreira. Mas a vida não era simples, nem tinha um roteiro a ser seguido por todos.
Às vezes, em algumas noites, quando estava deitada insone, ao lado de , assistindo seu peito subir e descer enquanto respirava sereno, me flagrava em intensa crise existencial. Desejando ardentemente que tudo fosse mais simples, ou melhor, que eu conseguisse resolver com simplicidade, sem toda aquele drama de novela mexicana que estava acostumada. Talvez criar tempestades em poças de água fosse da minha natureza, e agora, eu havia descoberto odiar isso.
Estávamos em um jogo de futebol do colégio, Dom, Ted e o filho de Gina estavam em campo, e durante o intervalo, acenavam para nós com muita animação. Estávamos todos juntos na arquibancada, como nos velhos tempos. Da direita para a esquerda estavam, Gina, eu, Giovanni e sua esposa Sue, e nossa mãe. Imediatamente a nossa frente, o esposo de Gina, que segurava nossa afilhada nos braços, Oliver e nosso pai.
Era como uma viagem ao passado, onde a qualquer momento eu veria surgir do vestiário, com seu uniforme de número sete, cabelo loiro despenteado e sorriso manso, cumprimentando a todos de modo despreocupado e tímido com um hang loose. De repente era como se eu estivesse de volta ao ensino médio.

Dezoito anos antes...




As arquibancadas estavam lotadas, provavelmente toda Paradise estava presente naquele jogo, era uma das semifinais. A cidade estava trajada das cores do time, azul e branco, e tinham as costas estampadas pelo número sete de . Na entrada do estádio havia um grande outdoor com a figura de estampada, com os dizeres: melhor quarterback do estado. Gina estava em campo, agitando seus pompons e apresentando as coreografias das líderes de torcida, , Ted, Oliver e Giovanni, por sua vez, assistiam tudo da arquibancada.
encarava as pessoas ao seu redor, vendo o grande número de garotas com blusas calça jeans e se perguntando porque havia tido a maldita ideia de vir de minissaia.

– Olha, . Seu namorado chegou. – Ted cutucou a amiga, apontando com o queixo para o time, que entrava em campo devagar. – O Matt Shay. – Provocou ele, assim que viu a expectativa nos olhos dela.
– Onde está a Natalie? – devolveu, e Ted rolou os olhos.
– Também não precisa ofender. – Reclamou ele e em seguida abraçou a garota pelos ombros. – Você devia contar ao Matt que é apaixonada pelo amigo dele, que vai se casar e ter um filho chamado Arthur.
– Dá para chegar para lá? Vão achar que estamos juntos. – Acusou , ainda com os olhos presos aos jogadores, tentando encontrar o seu favorito. – Eu não tenho nada com Matt, não preciso dizer nada. – Ela deu de ombros.
– Não surta, quarterback loiro gatão vindo em nossa direção, três horas. – Avisou Ted de repente, baixando a cabeça, e sentiu as pernas amolecerem e o ar faltar.

tentou não encarar, mas bem mais rápido do que imaginou, ele já estava perto. segurava o capacete em uma das mãos e a outra se apoiava à grade, sorrindo, com cabelo bagunçado e vestindo o uniforme do time.

– Que bom ver você, amor, já estava sentindo sua falta. – brincou quando Giovanni se aproximou do gradeado.
– Cala a boca. – Respondeu. – Só porque é o capitão, acha que todo mundo veio ver você. – Giovanni retrucou e riu, baixando a cabeça.

Em seguida, correu os olhos pelas pessoas atrás do amigo, com a sobrancelha arqueada e o sorriso nos lábios. nunca soubera o que aquela expressão significava, mas amava quando ele a usava. Quando os olhos de passaram pela irmã de Giovanni e Oliver, desviou o olhar, sem muito interesse e voltou a conversar baixinho com o mais velho, para infelicidade de .

– Sabe, ele de perto nem é tão bonito assim. – Ted comentou ao perceber a expressão frustrada no rosto da melhor amiga.
– Eu sou invisível. – suspirou frustrada, ainda com os olhos pregados ao jogador. – Sou uma droga de pessoa invisível.
– Por que? Por que o amigo do time do seu irmão não te nota? Por favor, , todos querem sair com você, mas você vai ignorar e surtar por causa de um cara? E ele ainda tem namorada. – Lembrou Ted.
– Mas eu não me importo com os outros caras, Ted. É o , sempre vai ser. – Choramingou ela. – Eu sei. Não me pergunte como, mas eu sei.
– O nome disso é adolescência, acredite, eu também acho que eu e a Megan Fox somos almas gêmeas.
– Não é sobre isso, e não é assim. – Protestou. – É diferente. Eu sei.
Ted rolou os olhos, mas continuou fixada a conversa do irmão com o quarterback, imaginando quando seria enfim notada por ele, ou quando e se, no futuro, sua história de amor teria um final feliz.

Fim


? – Senti Gina me cutucar, e pela forma que me encarava, não devia ser a primeira vez que tentava chamar minha atenção.
– Desculpe, eu viajei no tempo. – Contei sorrindo.
– Não me diga, parece que a qualquer momento vou colocar meu uniforme e ajudar as líderes de torcida. – Gina confessou. – Do que você se lembra?
– De tudo. – Falei eu.
– Era fantástico a época perto dos jogos, a energia, os hormônios...eu sinto falta. É uma das poucas coisas da adolescência das quais sinto falta.
– Às vezes ainda me sinto na adolescência, então não sei se existe algo de que sinta falta, mas definitivamente, os jogos eram ótimos. – Concordei sorrindo.
– E as festas após, melhores ainda. – Gina riu alto e eu a acompanhei.

O jogo estava parado, era o intervalo, mas felizmente os garotos da casa estavam vencendo por uma boa diferença e todos estavam empolgados. e Giovanni faziam previsões sobre a carreira esportiva dos garotos, pensando em possíveis times para a faculdade, enquanto Oliver analisava as líderes de torcida e seus movimentos.

– Me sinto com dezessete outra vez. Poderia jogar com eles se me deixassem. – Giovanni falou empolgado, voltando-se para mim.
– Vanni, por favor, você não jogava, nunca jogou. Não jogue o nome da nossa família na lama agora, depois de velho.
– Qual é?! Eu aprendi muito com , sabia? – Ele argumentou e eu rolei os olhos.
– Não sei se já te disseram, mas a teoria é bem diferente da prática. – Falei. – E acho que preferia voltar ao hospital a te ver jogar. Posso perguntar isso para ele dá próxima vez que o ver. – Impliquei e Giovanni rolou os olhos, voltando sua atenção para o campo.

Dezoito anos antes...


Giovanni

– Que bom ver você, amor, já estava sentindo sua falta. – riu ao se aproximar, apoiando-se a grade que separava o campo da arquibancada.
– Cala a boca. – Respondeu Giovanni, fingindo não se divertir com a provocação do amigo. – Só porque é o capitão, acha que todo mundo veio ver você. – Falou e viu rir baixando a cabeça. – Soube que esse time mandou o quarterback do último time que enfrentou para o hospital. Como você está de ervilha congelada em casa? – Implicou, fazendo piada sobre compressas geladas, enquanto corria os olhos pela arquibancada.
– Sua irmã está com o Weiss? – Sussurrou , e Giovanni franziu o cenho.
– O que? Quem? Ted Weiss? – O mais velho negou com a cabeça. – Não, claro que não. Qual é a sua? Sua namorada está logo ali atrás com as líderes de torcida.
– Preocupado em não ser o único que faz meu coração bater mais forte, Giovanni? – provocou.
– Eu não vou te acobertar se for trair sua namorada com a minha irmã. – Avisou Giovanni, erguendo um dedo em direção ao jogador.
– Relaxa. – sacudiu a cabeça negativamente e baixou o olhar. – Ela nem sabe quem eu sou. E eu sou um homem fiel.
– O que? ? Não sabe quem você é? – Giovanni gargalhou com deboche, enquanto voltava a olhar, sutilmente, os outros dois s reunidos logo atrás.
– Eu seria um bom cunhado para você, sabia? – voltou a provocar.
– Mais uma dessas e nunca mais te ajudo em prova nenhuma. – Repreendeu Giovanni, rolando os olhos.
– Vocês franceses são muito bravos. – Implicou outra vez. – Pense nos bebês bonitos que teríamos, pense nisso antes de dormir. – pediu rindo, enquanto se afastava, de costas, em direção ao resto do time. – Imagine isso quando se deitar essa noite, querido.

Fim


– Hey, sabe do que me lembrei? – Giovanni chamou-me de repente.
– Estou curiosíssima. – Ironizei para provocá-lo e ele rolou os olhos.
– Lembra daquele ano em que o jogou e vencemos? Acho que foi o último ano dele na escola.
– Sim. – Sorri baixando o olhar. – Me lembrei desse mesmo dia. Parece que fui transportada para ele.
– Ele podia estar aqui hoje. – Giovanni falou um pouco mais emocionado. – Não consegui parar de pensar nisso desde que chegamos. Ted, ...eles tinham que estar aqui hoje, assistindo esse jogo e lembrando de coisas constrangedoras juntos.
– Não gosto quando fala de assim. – Disse eu, abraçando meu próprio corpo quando um arrepio me tomou. – Como se nunca mais fosse...como se fosse como o Ted.
– Desculpe. É só que...é difícil para mim olhar para o lado e não ver meus dois melhores amigos. – Confidenciou ele. – Olhar para o campo e ver o filho de um deles, passar lá fora e ver a placa com o nome do .
– Ei. – Tentei acalentar meu irmão, afagando seu ombro e olhando em seus olhos. – Ted está aqui, eu tenho certeza disso. E , de alguma forma também, embora esteja fisicamente no hospital. Além disso, não é o fim da linha, podemos tentar traze-lo nos próximos jogos. – Sugeri e Giovanni sorriu fraco.
– É, podemos. – Ele concordou e eu assenti, sorrindo na intenção de consola-lo. – Tudo isso é muito irônico, sabia? Você e ele. – Disse Giovanni e eu franzi o cenho, confusa.
– Do que está falando exatamente?
– Estou falando de vocês dois. Há uns dezoito anos atrás estávamos no mesmo lugar, prestes a ver o jogar, enquanto ele fazia piadinhas sobre você, e agora você e ele...
– O que disse? – Eu o interrompi. – Que piadinhas?
– Naquele dia, naquele jogo que te falei...
– Na semifinal daquele ano, sim, sei. – O interrompi outra vez, ansiosa.
– É, isso. – Giovanni sorriu saudoso. – Ele me perguntou se você estava com o Ted e ficou fazendo piadas sobre vocês dois terem filhos bonitos. – Contou e eu o encarei de olhos arregalados, era chocante como aqueles detalhes ainda mexiam comigo. – Me lembro dele me provocar, perguntando se eu estava preocupado em não ser mais o único que fazia o coração dele bater mais forte.
– Você não está falando sério, está?
– Por que eu mentiria sobre isso?

Não consegui dizer nada, apenas ergui os ombros, chocada com aquela nova informação e confabulando o quão tudo seria diferente se eu a tivesse antes. Dezoito anos antes.

– É a ironia da vida, . A porra de uma sádica ironia. – Giovanni suspirou.

– Como estão as coisas em casa? – Gina perguntou, me pegando de surpresa e tirando minha atenção de meu irmão.
– Bom. Tudo okay. Indo. – Respondi rápido, Gina arqueou a sobrancelha um pouco desconfiada, mas nos instantes seguintes pareceu ignorar.
– Que bom, eu fico feliz. É bom isso de estar bem em casa, feliz. – Disse ela. – parece feliz, animado. Você também parece bem disposta.
– Eu estou, eu acho. O restaurante vai bem, voltei para lá. – Contei e ela assentiu sorrindo. – Acho que em faz bem trabalhar, apesar de quase não ter tempo para viver. Entro no início da tarde e só saio na manhã seguinte.
– E em que momento você vive? – Quis saber ela.
– É uma boa pergunta. – Admiti sorrindo. – Mas consigo levar Dom a escola todo dia, vejo no hospital e as vezes consigo escapar durante o dia para ver meus irmãos ou meus pais.
– E quando você namora?
– Como assim?
– Ora, . Perguntei em qual momento do dia você namora, fica com seu marido super lindo americano e aproveita os músculos dele.
– Ah. – Abri a boca, mas não consegui encontrar qualquer resposta.
! – Gina me encarou horrorizada, como se tivesse acabado de tomar conhecimento de minha ficha policial.
– É que é complicado, somos muito ocupados. – Tentei justificar.
, você tem um problema. Dos grandes. – Gina acusou, cruzando os braços na frente do corpo, ostentando um olhar de reprovação que não via desde a escola.

🍁


Estávamos a caminho de casa, Dom dormia no banco de trás após uma vitória mais que saborosa, dirigia e eu encarava a paisagem, dividindo minha atenção entre os dois assuntos principais da tarde: a lembrança de meu irmão sobre e a indagação de Gina. Ao lado de , tentava me esforçar para não pensar nas possibilidades que aquela fala de teria me dado se acaso minha versão de dezoito anos atrás soubesse de sua existência. Felizmente, a pessoa com quem gostaria de falar sobre aquilo estava longe, provavelmente em sua cama de hospital, assistindo os melhores momentos dos jogos do dia. Mas ao meu lado estava meu marido, parte importante do outro grande questionamento que se formava em minha cabeça.

. – Chamei e ele murmurou algo parecido com sim, enquanto trocava de faixa e entrava em um cruzamento. – Você...você se lembra a última vez em que...– hesitei e ele me olhou, esperando que eu terminasse. – A última vez em que nós dois...
– Que nós dois o que?
– Namoramos. – Usei a mesma palavra que Gina usara anteriormente, porque por alguma razão desconhecida, estava com vergonha de dizer qualquer outra.
– Foi...– começou a falar com alguma segurança, as hesitou e pensou um pouco. – Nossa, você me pegou.
– É, eu sei. – Suspirei, voltando a encarar a janela e ficou em silêncio por alguns instantes, um desconfortável silêncio.
– Mas por que está pensando nisso agora? Quero dizer, a gente tem trabalhado demais, são tantas coisas...depois de anos de casamento o sexo não é o mais importante. – Ele tentou argumentar e parecia realmente confiante.
– Não me lembro da última vez que beijei você. – Falei sem rodeios, sem encará-lo e se calou. – Não me lembro se faz duas horas ou duas semanas.
– Isso é muito...não é como se fosse...– riu nervosamente, talvez incomodado ao também se dar conta daquela verdade. – Não tem tanto peso, não somos um casal de namorados apaixonados.
– Giovanni beija Sue o tempo todo. – Lembrei. – Meus pais se beijam toda vez que vão se separar, mesmo que seja para ir ao mercado ou se deitar mais cedo.
– Você está...incomodada com isso? – Sondou ele, baixando o tom de voz. – Podemos rever.
– É só...estranho. – Falei e assentiu, em silêncio, talvez tão absorto naquela descoberta quanto eu.

🍁


O quarto estava iluminado e a porta entreaberta, estava sentado na cama, de costas para a porta, com as pernas para fora, os pés tocando o chão. Usava um suéter vermelho vivo e os cabelos pareciam recém cortados. Parecia concentrado em alguma coisa, pensativo.
Perdi algum tempo contemplando aquela visão até bater à porta e avisar que estava ali. Quando fiz, me olhou por sobre o ombro e sorriu. Aquele sorriso. O sorriso que tinha poder de transformar meu dia, independente como estava sendo, em o melhor dia da minha vida.

– Você veio. – Ele disse e eu sorri.
– Vim. Eu sempre volto, você sabe. – Falei ao me aproximar, sorrindo, mas de modo mais contido.
– É bom, porque hoje eu preciso de você. – ergueu as sobrancelhas assim que me aproximei, colocando-me a sua frente. – E só de você.
– Você está me preocupando.
– Quer saber a boa nova? – Perguntou com um sorriso fraco nos lábios, e seu olhar denunciava o quanto estava desconfortável com aquela situação, qualquer que fosse.
– Por favor, me diz logo. – Pedi e segurei sua mão, aproximando-me mais.
– Talvez eu venha a ter alta nas próximas semanas. – Contou e meu rosto se iluminou. – Mas não tenho certeza, e não sei se é uma notícia tão boa assim.
. Claro que é! – Argumentei. – Você fora daqui, podendo voltar para a sua vida. Fora desse quarto de hospital.
– Mas aí está, . – Ele suspirou, baixando a cabeça. – Para que vida exatamente? Eu estou aqui há anos, não tenho para o que ou quem voltar. Meu noivado acabou há anos, a mulher que eu amo é casada com outra pessoa, não tenho família ou um emprego. – Franzi o cenho enquanto ele mencionava aqueles pontos. – E não me olhe assim, eu não estou sentindo falta da Sarah, mas não é como se tivesse outra opção. E também não se trata disso. – suspirou outra vez, mais profundamente. – Eu não sei nem mais quem eu sou. Há um ano eu achei que fosse morrer, estava pronto para isso, e então tudo mudou. E agora eu nem tenho uma vida para qual voltar.
– Eu sei que pode ser difícil, mas vamos tentar olhar pelo lado positivo...– Tentei dizer, mas ele me interrompeu depois de uma risada ácida.
– Não, não sabe, . – sacudiu a cabeça negativamente. – Me desculpe se estou sendo grosseiro, não é nada com você, é só que ninguém sabe o quanto pode ser difícil. Ninguém sabe. Vocês viveram nesses anos. Bem ou mal, mas viveram. Eu estou aqui há tanto tempo que já nem me sinto parte do mundo. – riu fraco. – Joy disse que vai trabalhar firme comigo, me ajudando na organização, na adaptação, planejando o que vou fazer depois da alta. Mas não é tão simples.
– O que você precisa que eu faça? Disse que precisava de mim. – Retomei sua fala, já que não fazia ideia do que mais podia dizer naquela situação.
– Eu só preciso de você perto de mim, sem isso eu acho que vou enlouquecer. – enfiou as mãos no cabelo e apoiou os cotovelos nos joelhos. – Eu tô apavorado. – Ele riu nervoso.

Não fazia ideia de como ajuda-lo, e embora feliz com sua possível alta, conseguia compreender sua angustia em retornar para um mundo onde já não se fazia parte há muito tempo. voltaria para uma realidade completamente diferente, como um tipo de viajante do tempo, ou alguém que acorda de um coma profundo após anos. Não sabia bem como ajuda-lo, por isso apenas me aproximei e o abracei forte, sentando-me ao seu lado.

– Você não está sozinho. Tem a mim, Giovanni, Matt. Vamos ficar com você o tempo todo, e isso vai ser só uma fase, você vai ver. Assim como as fases boas, as ruins também passam. – Tentei acalentá-lo.

não disse nada, ficamos ali, abraçados por tempo suficiente e até que sentisse tanta câimbra nos braços que já não os pudesse movê-los. Aí então, me puxou para sua cama e nos deitamos lá, como já havíamos feito em outras situações igualmente complicadas. Sentir sua respiração era bom, ouvir de perto o ritmo de seu coração, mesmo sabendo de sua angustia. Gostaria de pedir para que confiasse em mim, de que tudo seria resolvido e que eu ficaria ao seu lado, mas ele tinha razão, não poderia fazer muito enquanto casada com outra pessoa. Não que estar casada me impedisse de ajuda-lo, mas talvez, agora, diante do leque de possibilidades que se abria com sua alta, me resolver comigo mesma se tornava cada vez mais urgente.

– Sabe de uma coisa? – Falei tentando mudar de assunto. – Estive num jogo do time da escola nesse final de semana. Dom jogou.
– Como ele se saiu? Bem? Qual foi o placar final? Contra quem?
– Calma, uma pergunta de cada vez. – Eu falei e ele riu. – Ele se saiu bem, é um quarterback de nome, segundo Giovanni. Mas o ponto alto da noite não foi exatamente o jogo, embora eu esteja cheia de orgulho do meu filhote.
– Não me diga que você quis relembrar os velhos tempos e foi a uma daquelas festas que acontecem depois. – Os olhos de brilharam de agitação, me encarando.
– Não, que horror, não tenho idade nem para festas universitárias, imagine para as do colegial. – Eu ri e ele me acompanhou. – Na verdade, enquanto estávamos lá, eu e Giovanni nos lembramos do mesmo jogo, dezoito anos atrás.
– Dezoito anos atrás...– pensou um pouco. – Eu ainda jogava pela escola há dezoito anos atrás. Ganhamos naquele ano, era meu último ano. – Lembrou ele.
– Do que você se lembra das semifinais? – Sondei, apoiando o queixo em seu peito, admirando seus olhos.
– Tudo. – Garantiu orgulhoso.
– Tudo?
– Tudo, claro. Eu me lembro de cada segundo daquele ano como se fosse ontem. – Ele sorriu animando-se.
– Se lembra da conversa que teve com Giovanni antes do jogo começar? – Perguntei e ele foi pego desprevenido. Primeiro uniu as sobrancelhas, pensou um pouco e depois sorriu, fechando os olhos, e usou uma das mãos para cobrir o rosto.
– O que você andou aprontando por aí, ? – Perguntou envergonhado.
– Eu não fiz absolutamente nada dessa vez. – Sorri, divertindo-me com sua reação. – Mas pelo visto, você tem alguma culpa.
– Não, não é culpa. É meio que um flagrante. – Ele riu baixo. – O que exatamente Giovanni te contou?
– Então era verdade, ele tinha mesmo algo a me contar. – Acusei empolgada.
– Não precisa ser tão gentil e fingir só para me deixar com menos vergonha, . – disse, sarcástico.
– Não, não fique com vergonha. – Pedi, tentando afastar sua mão de seu rosto e enfim olhar em seus olhos. – Fiquei brava no início, por Giovanni ter esperado dezoito anos para me contar, e depois, fiquei feliz.
– A culpa não é só dele. É de todo mundo. – falou.
– Achou mesmo que eu pudesse estar com Ted Weiss?
– Ah, não sei...só quis saber. – Contou sorrindo. – Vocês viviam grudados, eu tinha curiosidade.
– Você? Você mal me olhava , como podia ter curiosidade. – Lembrei.
– Mas é que eu me sentia intimidado, ou ficava com mais vergonha que o normal.
– E também tinha uma namorada.
– Ah, claro. Verdade. Parte importante em tudo isso. – Ele sorriu, abraçando-me mais forte.
– Tudo podia ter sido tão diferente...
– Não, não vamos voltar a isso agora. – pediu, puxando meu queixo em sua direção. – Ficar pensando no passado e no que não deu certo, ou que podia ser diferente não vai levar a gente para lugar nenhum. Vamos nos concentrar no futuro. Até porque, se antes eu já não tinha chances contra o , agora como um sem teto desempregado, tudo piorou. – Brincou.
– Não seja bobo, isso nunca vai acontecer.
– Eu ser um sem teto desempregado? – Quis saber ele.
– Não, você não ter chances.



15

– Como foram as compras? – Perguntei a Charles assim que o vi entrando na cozinha, amarrando sua já patenteada bandana preta na testa, afastando a franja dos olhos.
– Bem. – Ele ergueu os ombros e assentiu com a cabeça. – E eu encontrei aquele fornecedor de trufas que esteve aqui semana passada no mercado, ele disse que vai mandar um brinde na próxima entrega. – Contou.
– Tomara que seja vinho, eles também produzem vinhos perfeitos. – Uma das cozinheiras, Aisha comentou sorrindo enquanto preparava alguns legumes.
– É mesmo? Nunca soube disso. – Falei eu, ocupada fatiando um pedaço grande e quase congelado de filé mignon.
– Parece que eles trabalham com trufas, vinhos e pães. – Ela completou. – Um cara com quem saí trabalhava na fazenda deles.
– Dá para aproveitar alguma coisa? – Perguntei sugestiva, arqueando as sobrancelhas em sua direção.
– O namorado da Aisha ou da fazenda? – Charles implicou sorrindo, passando por trás dela e Aisha atirou um pano de prato em sua direção.
– Dos dois. – Respondi, divertindo-me.
– Ele não era meu namorado, de jeito nenhum. – Ela negou enfaticamente. – Foi só um encontro, mas o vinho era ótimo.
– O que acha de conhecermos o lugar? Quem sabe um novo fornecedor de vinhos da região...acho que seria interessante. – Sugeri, pensando alto.
– Claro, vou adorar fazer uma visita ao meu principal concorrente. – Charles provocou Aisha outra vez, soprando sua orelha ao passar por ela outra vez.

Mas, antes que eu pudesse me divertir mais com suas brincadeiras e também os provocar, Peter, o maître, chamou-me ao salão.

– Não se matem antes de abrirmos hoje. – Pedi, distanciando-me dos dois e me aproximando do maître, enquanto limpava as mãos em um pano que estava preso ao meu avental. – Algum problema?
– Seu marido está no salão. – Contou ele e eu estreitei o olhar e uni as sobrancelhas.
– Meu marido? Tem certeza? – Perguntei com um sorriso confuso.
– Sim, eu disse que ele podia entrar, mas ele preferiu esperar sentado no salão. – Falou ele e eu ergui as sobrancelhas, respirando fundo, e agradeci com um aceno.

Ao entrar no salão, encontrei como Peter havia descrito. Ele estava sentado em uma mesa frente a uma grande janela com vista para o mar, em um dos cantos do salão, perto da parede com revestimento de pedra. Tinha as mãos unidas sobre a mesa e parecia distraído olhando o movimento do lado de fora, as poucas pessoas caminhando despretensiosas na beira da praia, o vento frio de um dia nublado balançando as palmeiras centenárias que margeavam a avenida e o mar ressacado com sua espuma violenta e branca. Não era comum que deixasse seu trabalho no meio da tarde para me procurar, e com sinceridade, não me lembrava se alguma vez ele já havia feito algo parecido em nossos muitos anos de relacionamento. Instantaneamente temi por Dom, mas em situações onde nosso filho era o problema, preferia ligar e não se sentar sereno no salão.

– Que surpresa. – Falei ao me aproximar dele, atraindo sua atenção. – É bom te ver, mas espero que esteja tudo bem. Não tenho uma boa impressão quando você está fora do trabalho no meio da tarde. – Brinquei e ele sorriu, ficando de pé para me cumprimentar.
– Para tudo se tem uma primeira vez. – Sorriu e beijou-me rapidamente, depois de me abraçar, quase que como só por conveniência.
– Posso pedir para alguém trazer alguma coisa? Posso preparar alguma coisa para comer também. Quer? – Indaguei ao me sentar, queria que também se sentisse confortável, afinal, ele era dono de metade do Eau de Mer.
– Seria bom, eu acho. – Concordou e eu, rapidamente, busquei Peter, que assim como outros tinha olhos cumpridos para o salão, fiz um sinal com a mão e o maître prontamente compreendeu e se afastou levando os outros curiosos consigo. – Atrapalho? – quis saber.
– Não, não. – Respondi balançando a cabeça e ele assentiu sorrindo fraco. – Só estávamos adiantando algumas coisas para o jantar, mas nada urgente.

Fez-se silêncio, eu batia os dedos na mesa, enquanto analisava o salão e vez ou outra cruzava seu olhar com o meu. Quando isso acontecia, erguíamos as sobrancelhas e sorriamos de lábios apertados, como quem cumprimenta semi-conhecido quando o encontra na rua.

– Está bem bonito aqui. Aconchegante. – comentou.
– É, esse espaço é perfeito. Foi construído para ser o restaurante. – Sorri, também admirando a beleza da construção e assentiu com um aceno. – É bom estar de volta, estou me readaptando a equipe.
– E como tem sido?
– Ótimo. Muito bom, na verdade. – Sorri de canto. – Eles são muito competentes, muito bons. Não precisam de mim, são ótimos.
– Que bom, eu fico feliz. – sorriu fechado, mas o suficiente para que seus olhos se apertassem.
– Obrigada.
– Não por isso. – Ele acenou com a cabeça.

Fez-se silêncio outra vez. Mais longo e mais desconfortável que o primeiro.

– E você? O escritório? Alguma notícia daquela promoção que tinha comentado? Sobre a sociedade?
– Não, nada palpável ainda. – Falou ele. – Ao que parece eles estão se preparando internamente para isso, mas nada veio a público. Pelo menos nada oficial. – riu e eu o acompanhei.
– As notícias via rádio corredor são quase sempre confiáveis. E mais rápidas
– Eu concordo com isso, concordo totalmente. – assentiu.
– Pois é, não é?

Rapidamente, Peter se fez presente, servindo a nós sucos e dois Croque-monsieur caprichados e bem empratados, e então rapidamente se afastou. e eu bebemos um pouco, sem pressa, antes de provar o sanduíche.

– O batizado já está chegando, não é? – falou após limpar a boca com o guardanapo, depois de uma grande mordida em seu sanduíche.
– Ah, é. Sim. – Assenti falando com a boca cheia. – Quase me esqueci. Acho que vou ligar para a Sue, perguntar se ela precisa de algo.
– Você já falou do jantar na nossa casa? – Ele perguntou, sem me encarar.
– Sim, Giovanni disse que não se oporia a isso nunca, até porque, se fosse na casa deles, ele teria que cozinhar. – Contei sorrindo, me lembrando da conversa que havia tido com meu irmão alguns dias antes.
– É, ele é bem esperto. – sorriu mais uma vez.
– Muito...

Era estranho, como se repentinamente ele estivesse ali só para pôr o papo em dia. Seria natural, pensando em nossa rotina pesada, imaginava que casais fizessem esse tipo de coisa, pausas durante a tarde para comer e conversar um pouco. Mas em nosso contexto, nos moldes da nossa relação e personalidade, aquilo parecia forçado. Talvez ele estivesse ali tentando se reconectar, conversar, acabar com a sensação esquisita que nos rodeava desde o dia do jogo. Era o que eu teria que fazer também, como uma esposa comum, fiel e apaixonada, mas naquele ponto e momento da vida, já sabia que não era exatamente um modelo de esposa e não estava em pânico, surtando ao encarar essa realidade.
Enquanto comíamos em silêncio, trocávamos olhares e sorrisos pequenos pelo simples fato do silêncio parecer estranho, não havia conforto ou paz e era nítido, principalmente por ser a primeira vez em que eu percebia aquilo. também parecia perceber, ele parecia estar tão desconfortável quanto eu, sem saber que assunto puxar ou sem conseguir relaxar. Pela primeira vez era desagradável, incômodo, estranho, e aparentemente nenhum de nós sabia o que fazer com aquela sensação. Pela primeira vez em todos aqueles anos eu me sentia tensa e desconfortável ao lado de .

🍁


No dia seguinte a ida de ao restaurante, fiz o que qualquer pessoa ajuizada e sensata não teria feito, fui visitar . Já estava cansada de fingir não querer estar lá, de lutar contra vontade, sabia que apenas por visita-lo e por ter as conversas que tínhamos estava traindo . Mas não me importava, aparentemente, ocupava meu tempo o suficiente para que não me restasse tempo algum para pensar ou refletir sobre minhas ações, ignorava e fingia não me importar com suas consequências, mentindo para mim mesma e para todos. Me sentia má por isso, mas pela primeira vez em muito tempo, não me importava.
Felizmente, em breve teria outro encontro com minha psicóloga, e então tudo isso passaria a ser problema dela.
Cheguei ao hospital relaxada, mãos no bolso, sentindo o vento bagunçar meu cabelo. Era cedo, sete em ponto e os corredores do hospital estavam calmos e silenciosos, a maior parte dos pacientes ali deviam estar dormindo, assim como eu devia. Ao entrar em um dos corredores, meu corpo quase se chocou com um corpo um pouco mais baixo e marcante bigode escuro, apesar de rosto jovem. Aqueles olhos cheio de inquietação e mistério que muitas vezes encarei, e que por muitas vezes me deixaram ainda mais perdida.

– Doutor. – Sorri aberto e ele fez o mesmo.
. Já faz algum tempo que não nos encontramos por aqui, mesmo estando sempre nos mesmos lugares. Nós dois. – Ele se divertiu e cruzou os braços na frente do corpo, enquanto eu prendia a respiração.
– Sobre isso, eu...– Hesitei, mas ele pareceu curioso, então depois de suspirar, tentei continuar. – Eu sei o que pensa, e sei que provavelmente desaprova minha postura. Certamente não é algo que me orgulho, mas é...
– Espere, do que está falando? – Ele interrompeu com sobrancelhas unidas.
– Bom, os seus conselhos...as nossas conversas. Não se lembra? – Perguntei e ele apertou mais os olhos e inclinou a cabeça, pensativo. – Bússolas e rosas, você me disse para me deixar ser guiada pela bússola do amor, e para parar de criar um caminho novo toda vez que me aproximo na linha de chegada. Eu sei que deve se horrorizar com o que faço, por eu ser casada e mesmo após todas essas idas e vindas continuar aqui, me alimentando da energia de ... – Rafael me interrompeu de novo.
, você é realmente alguém extraordinária. – Ele sorriu, um pouco chocado, um pouco surpreso e parecendo achar graça em tudo aquilo. – De todas as coisas que disse, das milhões de possibilidades de interpretações, você criou uma nova, que quase não passaria pela cabeça da maioria das pessoas na sua situação.
– Eu não estou te entendendo. – Foi minha vez de ficar confusa.
– É intrigante toda essa situação. – O médico começou a andar, dando-me as costas sem qualquer aviso, mas e eu o segui, ansiosa. – Estou curioso, . Como você está?
– Bem, eu acho. – Respondi franzindo o cenho, sem me importar em ser simpática.
– Soube que seu filho e seu marido estiveram com .
– É, isso aconteceu. E não foi por culpa minha, juro. Eu jamais provocaria essa situação. – Me expliquei, de alguma forma eu tinha certeza que aqueles olhinhos podiam enxergar através da minha alma e descobrir todos meus segredos.
– Não pensaria isso de você. – Ele olhou para mim ao dizer. – Mas é como já conversamos: infinitas possibilidades.
– Doutor, me desculpe a franqueza, mas estou de saco cheio de suas metáforas e enigmas. – Falei por fim, parando de andar e ele fez o mesmo, girando o corpo para me olhar. – Não estamos em um filme, isso não é uma história cheia de moral, transformadora. É a minha vida e eu só fico confusa com todas essas palavras que não dizem nada, mas que você finge conter todos os segredos do universo. – Desabafei, mas ele continuava me olhando sereno, com um suave sorriso nos lábios, pouco se importando com minhas palavras.
– O que quer saber, ? É só me perguntar e eu vou dizer, como sempre. – Falou em tom sereno.

Por alguns instantes, não soube o que fazer, havia tanto e ao mesmo tempo, não havia nada específico que quisesse saber. A não ser que ele fosse algum tipo de divindade com todas as respostas do universo.

– Você...bem...eu, quero... – Minha voz falhou enquanto eu lutava para não perder minha postura. – Mas queria que me explicasse todas as suas metáforas. As sobre rosas, sobre engrenagens e bússolas, e também sobre previsibilidade e caminhos. – Ordenei e ele sorriu, como quem sorri para um criança.
– Desculpe, , mas isso eu não posso fazer.
– Como não? Você disse que falaria se eu perguntasse.
– Tudo que já disse, foi dito. Quem precisava ouvir, ouviu. Não é essa versão de você que precisa ouvir, eram suas outras versões que precisavam e elas já escutaram. Mesmo se eu pudesse repetir com exatidão todas as palavras ditas, você as compreenderia de modo diferente porque é uma pessoa diferente agora. Suas emoções também são diferentes, você não sente o que sentia naqueles momentos e tudo isso alteraria sua compreensão. – Rafael sorriu e se aproximou de mim, tocando suavemente meu ombro. – Além disso, você não as quer compreender agora porque entendeu mal o que eu disse. Você busca em mim uma validação que não posso te dar.
– Não estou não. – Fora minha vez de interrompe–lo. – Eu nunca entendi o que você queria dizer.
– Entendia, claro que sim. – O médico voltou a caminhar, como se completamente despreocupado. – Talvez só não esteja acostumada a entender as coisas como entendeu. Ou talvez, sua antiga versão tenha entendido coisas que hoje, você enxergue como equivocadas, mas já não há como mudar.
– Não entendi mal, você quem disse. – Acusei enquanto o seguia, sentindo o coração acelerar com aquelas palavras. – Você me disse para seguir a bússola do amor, e eu entendi. Estou casada com e continuo.
– Apenas nessa frase você transferiu a mim a responsabilidade de duas escolhas importantes. É a minha vez de te perguntar, . – Rafael parou de andar assim que chegamos em frente a uma grande janela, com vista para a baía, em um corredor amplo, iluminado e completamente vazio. – Por que tem tanto pavor de fazer suas escolhas ao ponto de se guiar pelas palavras de alguém que só encontra aleatoriamente pelos corredores de um hospital, e de quem você sequer sabe o segundo nome?

Aquela pergunta me pegara desprevenida. Gostaria de dizer que ele estava enganado, mas sabia que não estava, sabia que ele tinha razão, e talvez isso fosse pior. Quando e porque comecei a considerar a opinião de um homem qualquer desconhecido e com claros problemas mentais?

– Eu...– Suspirei antes de continuar, após um longo silêncio. – Já fiz escolhas ruins demais, não confio na minha capacidade de fazer escolhas boas para a minha vida. – Confessei baixando a cabeça.
– Sabe, se me permite fazer outra analogia simples...– Disse ele, apoiando-se ao peitoril da janela. – Você tem um filho. Quando ele, por escolher mal, sai de casa sem um casaco num dia frio, ou se fere...
– Essa eu entendi. – O interrompi de novo, com um sorriso sarcástico. – O fato de ter uma escolha errada no passado não quer dizer que no futuro todas serão ruins. Mas seu argumento não é tão bom, doutor. Veja só tudo que tenho feito, foram quase todas escolhas ruins.
– E quantas delas você decidiu sozinha? – Ele me olhou nos olhos ao perguntar e eu respirei fundo outra vez, ignorando sua pergunta e o imitando, apoiando-me ao peitoril.
– Metade das minhas escolhas são boas para manter meu casamento, mas ferem . A outra metade são melhores para , mas me fazem trair minha família. – Pensei alto após um longo suspiro.
– Bom, reduzimos seus dezessetes caminhos para apenas dois. – Ele sorriu, erguendo dois dedos em minha direção. – Agora me diga, parte é bom para , parte é bom para . Qual parte é boa para você?
– Eu...eu não sei. – Neguei com a cabeça, sentindo aquela pergunta me atingir mais fundo do que deveria.
– Não saber e não ter coragem de dizer são coisas diferentes, . – Rafael alfinetou, endireitando a postura e eu me senti duramente atacada. – Pare de se esconder atrás da imaturidade de uma garota de dezessete anos. Acaso você não tem maturidade maior que a dela para tomar decisões? Precisa deixar que ela, que já nem mesmo existe mais, escolha para você?
– Nossa, essa doeu. – Admiti e ele sorriu grande.
– Talvez da próxima vez você prefira que volte a falar de flores e bússolas. – Rafael piscou, girou em seus calcanhares e se foi, sem se importar em se despedir ou com o efeito de suas palavras em mim.

🍁


– Isso é o meu livro? – Foi a primeira pergunta que fiz a assim que passei pela porta de seu quarto, ao flagrá-lo com o que reconheci sendo um dos livros que havia deixado em seu quarto.
– Desculpe, carcereiro. – rolou os olhos, sem nem mesmo desviar o olhar do livro para mim. – Não sabia que não podia ler os livros que estão no meu quarto. – Ironizou ele, enfatizando o pronome possessivo.
– Mal-humorado...– Impliquei num sussurro, aproximando-me dele e me sentando em sua cama.
– Quem te deixou entrar aqui? Ninguém te ensinou que é falta de educação chegar tão cedo na casa de alguém? – Ele dizia enquanto me puxava para junto de si e me aninhava em seu peito, sem se distanciar um centímetro sequer do livro.
– É que a noite ainda não terminou para mim. – Sorri, abraçando seu corpo e escondendo meu rosto em seu peito. – Não é cedo para uma leitura tão concentrada? Não devia estar fazendo como pessoas normais? Dormindo? Ainda não são sete e meia.
– Que bom que não estou, não é, ?! Detestaria você me espiando dormir.
– Ei! – Me afastei um pouco para protestar, mas gargalhou e me puxou de volta.
– Eu sou um homem difícil.
– E de péssimo humor. – Completei. – Não sabia que atletas gostavam de Jane Austen.
– Bom, primeiro, não sei se notou, amor, mas não sou exatamente um atleta há pelo menos uns anos. – começou a listar, enquanto eu sentia as bochechas esquentarem ao ouvi-lo dizer a palavra amor se referindo a mim. – Segundo, eu sempre fui uma pessoa das artes também. Não sou um estereótipo. E terceiro, além de linha e agulhas de tricô, um livro sobre uma mulher com Alzheimer precoce, só me restou minha nova melhor amiga: Jane. – Falou, batucando os dedos na capa dura do livro.
– Se soubesse poderia ter trazido outros.
– Não, eu...– hesitou num movimento quase involuntário e percebi, mesmo que sutilmente, seu tom oscilar.
– O que foi? – Me sentei, olhando para seu rosto, na tentativa de desvendar suas emoções. – O que há de errado em eu te trazer livros? – Perguntei em um meio sorriso.
– Não é isso. – respirou fundo, apoiou o livro aberto no peito, desviou o olhar algumas vezes e engoliu em seco, parecia buscar boas palavras.
– Então o que é? – Perguntei, acompanhando o ritmo de sua respiração através dos movimentos do livro sobre seu peito.
– É que eu não fico confortável sendo dependente. Nunca fiquei. Não precisa me trazer coisas. Não precisa se incomodar comigo. – Disse ele e eu inclinei a cabeça sobre o ombro.
– Não é um incômodo, . Na verdade, é exatamente o oposto disso, seria um prazer. – Falei enquanto alcançava sua mão e a segurava.
– Eu imagino, mas é que eu não me sinto bem assim. Todo esse tempo aqui, toda essa coisa...já me sinto inútil, não queria me sentir mais que isso. – confessou com um suspiro triste, sorrindo de lado e meu coração se despedaçou.
– Você não é um inútil, . – Tentei convence-lo. – Só estava doente. Agora, tudo está melhor e você vai retomar sua vida, dar início a uma vida nova depois desse tempo aqui.

Ele não respondeu, apenas assentiu com a cabeça e fechou o livro, deixando-o na mesa ao lado de seu leito e apertando de volta minha mão.

– Estava no restaurante? Como as coisas estão indo?
– Não acredito que está mudando de assunto assim. – Falei sorrindo incrédula, e ele também sorriu, só que culpado.
– Não estou, é só que o assunto acabou. Não? Você tem alguma coisa além para falar? – Ele perguntou ainda sorrindo e coçando a nuca com a mão livre.
– Você não quer falar disso, entendi. – Assenti, desviando o olhar.
– Ah, não. Não me olha assim. – Pediu, me puxando para junto dele. – É que eu não quero gastar meu pouco tempo com você falando de coisas chatas e pra baixo. – Explicou enquanto beijava minha testa.
– Vou fingir que engoli sua desculpa péssima, . – Falei, me esforçando para não sorrir enquanto ele me abraçava.
– Não, não...vamos sorrir, vamos lembrar de coisas constrangedoras...falar mal dos médicos...mas por favor, sorria...– Pediu enquanto me fazia cócegas. – Por que o fica com a parte boa de ter um relacionamento e eu com a ruim?
– Ou! – Protestei de novo.
– Tudo bem, exagerei. Me desculpe. – beijou-me a testa outra vez, e ficamos abraçados em silêncio, confortavelmente.

Por mais que adorasse a presença de e dificilmente conseguisse ter na cabeça outra coisa além dele quando estávamos juntos, as palavras do médico ainda ecoavam com força. Doía porque ele tinha razão, eu amaria culpar outra pessoa por tudo aquilo, adoraria dizer que graças as palavras equivocadas de Rafael, fiz novas escolhas ruins e que se tudo aquilo estava acontecendo, a culpa era dele e não minha. Se ele me explicasse e acaso eu tivesse compreendido de forma equivocada seus mistérios, poderia me escorar nisso.
Mas já não adiantava mais, como ele mesmo havia dito. Já estava consumado e não era possível voltar no tempo. Eu, melhor que ninguém sabia disso. Por alguma razão, ao contrário de todas as outras vezes, as palavras do médico pareciam estar fazendo sentido para mim. Quanto a compreensão de suas falas malucas e duais, quanto a minha capacidade de fazer escolhas a qual questionava de modo inconsciente o tempo todo. Rafael estava certo, e apesar de já estar fatigada de ouvir o discurso sobre escolher o que é melhor para mim e não para os outros, a culpa ainda me consumia. Mas, talvez algo em mim estivesse mudando, já que pela primeira vez aquelas palavras realmente pareceram fazer sentido.
Não como das outras vezes, mas um sentido diferente. Decidir o que era melhor para mim, não para ou , seria comprar junto todas as consequências positivas ou negativas. Eu sabia não estar pronta para isso, mas também não estava pronta quando havia feito a mesma escolha há alguns meses, escolhendo e abandonando no hospital. Aos poucos me dava conta de que já tinha feito aquela escolha, mas de modo indireto. Quando resolvi deixar tudo que me remetesse a , escolhendo salvar meu casamento, trazendo na bagagem a ideia idiota de ter outro filho, havia escolhido . E o que aconteceu depois? Durante?
Talvez já tivesse feito a escolha, mas continuava fugindo de faze-la realmente. Seja por medo de julgamentos, medo das consequências ou...parei de respirar subitamente ao me dar conta de que talvez, tivesse muito medo de descobrir o que eu seria se não fosse a esposa de . Afinal, quem era ? Profissionalmente, uma chef renomada, a mãe de Dom, irmã de Giovanni e Oliver, filha e esposa de . Mas além disso, não fazia ideia de quem era eu. O que eu seria se não fosse a do , ou se seria interessante a se não tivesse todo aquele drama sobre escolher a ele ou não. E assim eu entrava em outro problema, entre os milhões que já enfrentava.

– Você dormiu? – Ele sussurrou depois de algum tempo.
– Não. – Sorri fraco, tentando disfarçar meu súbito desespero. – Só estava pensando.
– Sobre o que?
– Sobre uma conversa que tive com seu médico hoje, antes de ver você. – Contei sem pensar muito, não mentiria para .
– Alguma novidade? Devo me preocupar? – A musculatura dele se enrijeceu, e seu timbre se tornou mais sério.
– Não, não...só...o de sempre. – Sorri, tentando tranquiliza-lo.
– Como assim?
– Sabe como é o Rafael, ele sempre tem suas metáforas, seus exemplos cheios de mistérios e que ninguém nunca entende. – Disse eu, sorrindo fraco enquanto me lembrava da figura estranha do médico.
– Do que está falando, ? – franziu o cenho.
– Ele não é assim com você? Nunca fez nenhum enigma ou deu conselhos?
– Não. – me encarou sem entender sobre o que eu estava falando. – Qual é mesmo o nome?
– Rafael, mas não sei seu o segundo nome. – Falei, lembrando de quando ele havia enfatizado.
– Mas eu não tenho nenhum médico com esse nome. – Contou e fora minha vez de franzir o cenho.
– Como não? – Indaguei sorrindo. – No dia que cheguei aqui, Rafael me recepcionou, ele quem me contou sobre seu estado, ele quem me disse que estava melhorando. Também foi ele quem vi quando você piorou. – A medida com que eu falava, unia mais suas sobrancelhas e sua testa se enrugava mais e seus olhos azuis se estreitavam. – Nós temos conversado sobre tudo isso...ele tem me dado conselhos sobre a vida e...e nós dois.
– Tem certeza que esse é o nome?
– Absoluta. Já faz mais um ano que o conheço. Ele é baixo, tem um bigode estranho, cabelo escuro e liso, mas é branco como leite. – O descrevi para , não era possível que ninguém naquele hospital não reconhecesse o médico por seu primeiro nome.
– Desculpe, , mas não me lembro de ninguém assim. – pediu, confuso e incerto. – Mas são tantos deles o tempo todo, não consigo me lembrar de todos, nem se quisesse. – Ele sorriu, tentando ser gentil.
– É, pode ser. – Assenti, mesmo achando toda aquela situação estranhamente bizarra.
– Vamos esquecer do médico enquanto você me conta que conselhos ele te deu sobre nós. – pediu, sorrindo como uma criança a espera de uma sobremesa e eu sorri de volta, permitindo que meu coração esquentasse.
– Nós falamos hoje sobre escolhas, ele diz que eu tenho que fazer minhas próprias escolhas e não transferir a responsabilidade para outras pessoas por ter medo de errar. – Confessei sem pensar duas vezes e uniu as sobrancelhas outra vez.
– Ele deve ser psiquiatra, não é? Já viu aquele filme, A Ilha do Medo? – Sugeriu de modo sombrio.
, ainda não enlouqueci. – Protestei adotando um tom mais sério.
– Eu sei, mas não acha esse cara bizarro também? Isso não se passou pela sua cabeça? Nem uma vez? – Ele quis saber, mas eu apenas franzi os lábios em uma careta de desaprovação. – Okay, continue. Não vou interromper mais.
– É isso, não teve mais. – Completei dando de ombros. – Ele só me disse que não posso me esconder atrás dos erros de uma adolescente.
– Eu estou curioso. Posso perguntar do que exatamente vocês estavam falando?
– Bem, nem eu sei ao certo, são tantos assuntos e acontecimentos...mas acho que é sobre eu ter medo de fazer algumas escolhas, porque acho que minhas escolhas vão sempre dar errado. Baseando esse argumento nas escolhas que fiz há mais de quinze anos atrás. – Contei a ele, aproveitando que era uma das poucas pessoas com quem me sentia confortável e acolhida ao falar sobre aquelas coisas.
– Espera...– Ele pensou por alguns instantes, encarando nossas mãos e nossos dedos entrelaçados. – Quando você diz que tem medo de fazer escolhas agora, por medo de repetir a escolha ruim que fez no passado...sobre qual escolha estamos falando, exatamente?
– É sério? – Arqueei as sobrancelhas. – É uma pergunta séria?
– Não me diga que é...– parou de falar quando se deu conta, e então respirou fundo algumas vezes, outra vez pareceu tentar escolher bem as palavras. – , você precisa seguir em frente. – Falou sério.
– O que? Do que está falando? – Endireitei a postura, assustada com suas palavras.
– Você está se culpando por uma escolha que fez há mais de quinze anos? , isso não é nem justo. Há dezesseis anos atrás nós éramos pessoas diferentes, fizemos as escolhas que pudemos fazer, baseado no conhecimento e maturidade que tínhamos na época. Você foi para uma cidade grande, se formou, construiu uma carreira brilhante, teve um filho, se casou. Como isso pode ter sido uma escolha ruim? – tinha o rosto um pouco mais próximo do meu ao falar, e embora seu tom fosse empolgado, ele falava baixo, quase que num sussurro.
– Mas eu...você..., nós já tivemos essa conversa, e se me lembro, sua resposta foi bem diferente. E eu...– Tentei falar, mas fui interrompida.
– Se você tivesse ficado em Paradise naquela época, talvez estivesse frustrada, em uma vida pequena perto do que você poderia ter. Talvez, assim como antes, ninguém tivesse coragem de se aproximar e nós ficaríamos sem trocar uma palavra qualquer. Talvez não, talvez tudo fosse diferente....mas mesmo assim, você seria a esposa de um moribundo em estágio terminal, sem qualquer perspectiva de vida. As possibilidades são inúmeras e é injusto colocar na sua versão adolescente o peso disso. – Não consegui conter o riso enquanto o ouvia. – Por que...o que? Por que está rindo?
– Não achei graça, na verdade nem sei o que dizer, mas é que o médico me disse a mesma coisa. Sobre a vida ser imprevisível e ninguém conseguir compreende-la, mas que independente dos caminhos que escolher, seja o fácil ou difícil, eles sempre vão levar pro mesmo lugar.
– Como agora. – Disse ele e eu fiquei confusa outra vez. – Eu acho que isso é como uma segunda chance. Quando éramos jovens, éramos inseguros, imaturos, não conseguimos ir pelo caminho mais fácil. Então você se mudou, eu fiquei doente e anos depois nós nos encontramos no caminho mais difícil, mais cheio de obstáculos.
– Foi isso que ele quis dizer, eu acho...– Me dei conta. – Mas ele disse que eu conseguia criar outro caminho além dos óbvios.
– Eu concordo, você é teimosa. – Fiz careta quando ouvi suas palavras. – Quer dizer, já foram tantas idas e vindas que pareceu uma década.
– Eu acho que acabei de entender o que ele quis dizer quando falou de caminhos e bússolas. – Pensei alto, somando as palavras de as de Rafael e as minhas próprias conclusões.
– Por isso disse que você precisa seguir em frente, . Não podemos mudar o passado, nem se esconder nele. Você não fez uma escolha ruim naquela época, pelo simples fato de que para ter feito uma escolha ruim, você precisaria saber todas as opções de escolhas que poderia ter feito e seus resultados infinitos. Você precisa se perdoar e deixar para lá. Perdoar a sua versão de dezessete anos, ela era só...só uma menina. Hoje você é uma pessoa adulta, não pode culpar uma menina para sempre.
– Você não pensa? – Perguntei olhando em seus olhos depois de algum tempo em silêncio, absorvendo suas palavras. – Não se culpa em momento algum por não ter feito algo diferente?
– No início, sim, mas eu entendi há algum tempo que isso não adianta. Eu só tenho a possibilidade de fazer qualquer coisa hoje, o passado já passou. É você quem me disse que vou começar uma vida nova, lembra? – Ele arqueou uma sobrancelha.
– Às vezes acho que penso demais nisso tudo. – Confidenciei após um longo suspiro.- É como se a minha vida girasse em torno desse filme. Quando eu era adolescente isso era minha vida, me mudei e passei quinze anos afastada dos meus amigos e da minha família, sendo uma pessoa amarga porque não conseguia seguir em frente. – Enquanto falava me encarava com semblante sério, prestando atenção em cada sílaba. – E agora, aqui, tudo é sobre isso. Como se eu vivesse em um ciclo eterno que não se rompe.
– Eu...eu fiquei um pouco confuso aqui. – Ele admitiu, sorrindo fraco e sem humor. – Não entendi se isso é algo bom ou ruim, nem onde quer chegar.
– Eu também não sei, . – Respondi ficando de pé e começando a caminhar pelo quarto. – É que eu acabei de me chocar com a realidade de que minha vida basicamente se resume a esse enredo de novela mexicana.
– A vida de todos, . A minha pelo menos, também. – Falou ele.
– Isso não te angustia?

não respondeu, mas seu silêncio foi uma resposta. Nos encaramos por algum tempo, em silêncio.

– Desde quando você conhece esse médico? – quis saber após o silêncio desconfortável.
– Conheci no dia que nos reencontramos aqui no hospital. – Contei. – Eu estava em choque quando saí e ele me acompanhou, me explicou seu caso. – Narrei enquanto buscava a velha cadeira, que há meses não ocupava para me sentar. – Desde então eu o encontro pelos corredores, mas sempre falávamos de você, atualizações médicas. Até o dia que me afastei e você ficou pior. – Lembrei, sentindo um certo aperto, e vi estreitar o olhar rapidamente. – Ele me acalmou, me deu alguns conselhos e desde então temos tido essas conversas...pouco convencionais.
– E te ajuda? Te ajuda em todas essas coisas? – Ele perguntou.
– Não tenho certeza. – Sorri sem humor. – Se me perguntasse ontem, eu diria que não, que só me deixam confusa. Mas acho que entendi hoje que essas conversas...acho que eu procurava uma resposta simples demais diante de toda essa complexidade.
sabe dele?
– Não. – Respondi rápido, enquanto enfiava os dedos nos cabelos, tentando relaxar. – Mas Rafael...ele sabe de nós três. Sabe de , você e eu. – Ao ouvir, ergueu as sobrancelhas surpreso.
– Vocês realmente falam sobre tudo, uh?! – expirou pesadamente, recostando-se em seus travesseiros.
– Nunca cheguei a contar literalmente, eu acho. – Eu sorri fraco, erguendo os olhos para ele. – Mas ele sabe, de algum modo, parece que ele sabe de tudo. Sabe o que é melhor para mim, inclusive, mesmo quando nem eu estou pronta para admitir.

🍁


Estava em mais uma sessão de terapia, encarando o teto enquanto as palavras da psicóloga, unidas as de e Rafael ecoavam em minha cabeça, não dando espaço para qualquer momento de silêncio.

– Parece que quanto mais eu ando, quanto mais me aprofundo, acabo voltando ao mesmo lugar. Sempre sou a sofrendo e angustiada por questões que envolvem estar apaixonada por alguém que não posso ter. – Falei depois de um suspiro. – Até mesmo minhas conversas com , tudo isso é sempre igual. E eu sei que aos poucos algumas coisas fazem sentido para mim, mas o pior disso é que cada vez que eu resolvo um problema, dois nascem no lugar.
– Você fala sobre estar apaixonada por alguém que não pode ter, mas eu não consigo ver qualquer esforço para se afastar do . – A psicóloga interveio. – E com isso eu me pergunto se você não quer mesmo estar apaixonada por ele.
– Eu acho que já saí dessa fase. Sei que estou traindo , mesmo sem tocar , mesmo que apenas pense nele ou fale com ele. Por isso estou tentando não pensar sobre, ocupando meu tempo com outros problemas, com trabalho. – Suspirei outra vez, cruzando as mãos sobre o peito. – E para ser sincera, acho que cansei de me importar.
– Outros problemas? Você quer falar sobre os outros? – A psicóloga arqueou uma sobrancelha.
– Tudo isso é um problema. – Sorri, girando o rosto para vê-la. – A culpa, saber o que eu quero, mas não ter coragem para fazer, não saber quem eu sou fora desse casamento. Tudo isso.
– Você já tentou refletir sobre quem é fora do seu casamento? Já tentou identificar a e somente ela?
– Ainda não tive tempo, me dei conta disso hoje pela manhã, no hospital. É sobre isso que me referi quando disse de ter vários problemas novos aparecendo. Será que eu nunca vou ter paz?
– Você não procura paz, como pode desejar tanto por ela se não a procura? – A psicóloga foi direta, fazendo-me unir as sobrancelhas, espantada. – Você parece procurar os problemas, para mim. Sabe que vive uma paixão dificultosa e ainda assim permanece indo ao hospital, fala sobre trair seu marido e não resolve a situação do matrimônio. Você corre atrás dos seus próprios problemas. – Abri a boca, mas não consegui dizer nada, pasma com a acusação dela.
– Não, não é assim. – Neguei me sentando. – Eu não procurei me apaixonar pelo , só aconteceu. E é muito mais difícil me separar do que pode parecer. Você é por acaso casada? – Indaguei, sentia-me acuada. Era óbvio que não buscava meus problemas, por acaso qualquer pessoa em juízo perfeito se colocaria em uma situação como aquelas?
– Sim, de fato pode ter acontecido, mas permanecer é uma escolha, . Você está vivendo o que deseja viver. – Ela ajeitou a postura e me encarou. – Eu não sei qual a relevância da sua pergunta, mas sim, eu sou casada.
– Como pode ser uma escolha se os problemas só me atravessam? Se a cada vez que supero algo, descubro algo errado ou alguma parte de mim que precisa de conserto? – Questionei ainda irritada.
– Você escolhe estar próxima ao , escolher permanecer com ele, quando diz que é impossível. – A psicóloga continuava se mantendo firme em seu tom e palavras, enquanto eu queria chorar e fugir correndo. – Escolhe viver um casamento infeliz e não descobrir quem você é. Coisas que precisam de conserto, todos nós temos, minha querida. Isso é viver e amadurecer, mas é necessário se posicionar.

A parte ruim de buscar ajuda, terapia, se descobrir e se curar é que não se trata de um processo bonito. Era como se me expusessem o tempo todo, arrancando sem pena cada camada de pele que tinha, expondo todas as minhas vulnerabilidades, todas as minhas dores, que eram remexidas por estranhos. E doía. Como doía.
As palavras de Rafael haviam sido como seda perto das de e das palavras que agora ouvia de minha psicóloga. Como eu poderia estar escolhendo tudo aquilo? Me mantendo em meio a um furacão por opção.
Talvez fosse verdade, talvez eu fosse uma dramática narcisista que precisava estar no auge do drama para que a vida tenha algum sentido. Talvez eu gostasse daquilo, da instabilidade e do caos. Talvez não soubesse amar diferente, em paz. Dividida entre dois homens, enquanto culpava uma adolescente de dezessete anos por minhas escolhas atuais.
Eu tinha sérios problemas.
Tudo voltava a ser sobre mim, e apenas sobre mim. Aparentemente não se tratava de ou de , nem mesmo sobre Dom, era sobre mim. Sobre meu incrível potencial de estragar a tudo e a todos. em sua melhor pior versão.



16

O fim de semana tinha chegado rápido, principalmente porque a última semana havia sido de um grande e completo borrão. Depois da última sessão de terapia estava sem qualquer animo para conviver socialmente. Não tinha visitado , e passar tempo com ou com meus irmãos era entediante, qualquer conversa no trabalho além da necessária era desgastante também. Como se eu estivesse consumindo tanta energia tentando compreender aquela situação que não me restava nenhuma para fingir ter uma vida normal.
Não sabia como estava me sentindo, não era capaz de nomear com nenhum dos sentimentos que conhecia. Poderia resumir tudo em cansaço, mas achava ser uma palavra curta demais para compreender todo contexto, todas as camadas daquele dilema interminável.
Para completar minha falta de sorte, minha família havia decidido por se reunir para fazer hambúrgueres e passar um tempo de qualidade. Teria inventado uma terrível crise de enxaqueca se pudesse, e pela expressão de quando saímos de casa naquele domingo de manhã, tive certeza de que ele pensava a mesma coisa.
Depois de sua visita ao restaurante as coisas permaneceram as mesmas, continuávamos ocupados e distantes, fingindo que nada estava acontecendo, fingindo que tudo estava perfeitamente bem, como sempre fizemos. Mas desta e pela primeira vez, percebia que se esforçava um pouco mais do que as outras vezes, como se algo realmente o incomodasse. Pensei em questioná-lo várias vezes, mas a ideia de encontrar outro problema me afastava. Já tinha dilemas demais nas mãos para resolver, não precisava que me trouxesse mais um. Queria aproveitar o fato de que havia paz em casa, talvez minha mente a imitasse e silenciasse também, era o que eu pensava e rezava para que acontecesse. Por isso, por mais que fosse uma situação incômoda e que tivesse curiosidade, por mais que amasse e quisesse saber o que o incomodava, não queria perguntar.

– Você devia imitar a e abrir uma hamburgueria, . – Giovanni falou, ainda de boca cheia. – Eu serei um cliente mais que fixo.
– Uma franquia nacional, não é? – Ele entrou na onda, sorrindo distraído, enquanto montava outro hambúrguer.
– Ele tem planos ambiciosos. – Giovanni arqueou as sobrancelhas duas vezes, sorrindo. – Você diz uma lanchonete e ele já pensa em ser o novo Ray Kroc do McDonalds.
– Pense grande, Giovanni...esse é o segredo. – Meu pai completou, piscando um olho, mordendo seu hambúrguer em seguida.
– Se continuar assim, em breve vai ser dono do bairro inteiro. – Vanni brincou.
– Bem, a casa ao lado da nossa está à venda, então...– maneou a cabeça, como se realmente considerasse aquela opção.
– Não, por favor, o que faríamos com duas casas iguais? – Protestei, entrando no assunto. – É melhor um chalé nas montanhas ou um apartamento no Centro.
– Apertado demais, além disso você vai viver com as buzinas, os sons dos vizinhos barulhentos e as sirenes de ambulâncias e polícia. – Sue negou com a cabeça. – Fora a poluição e as luzes daqueles outdoors gigantescos.
– Você devia comprar aquela casa, Vanni. – Meu pai apontou para meu irmão com o dedo engordurado. – Uma casa maior, com quintal para as crianças.
– Mas só temos uma filha. – Sue lembrou confusa.
– Ainda, querida... ainda...– Minha mãe soprou, cheia de segundas intenções, fazendo com que meu irmão e sua esposa arregalassem os olhos.
– A média é um neto por filho, mãe. – Giovanni disse, girando na cadeira para olhar para nossa matriarca. – Cobre Oliver agora.
– Não falo sobre isso com ele, tenho medo do que ele pode responder. – Ela respondeu.
– Como assim? – franziu o cenho.
– Ela tem medo de que ele tenha filhos ilegítimos por aí. Pelo mundo todo. – Nosso pai sussurrou, nos fazendo rir alto.
– É, eu não duvido. – Giovanni concordou, trocando um olhar cúmplice com , enquanto Sue e eu observávamos de olhos estreitos.
– Dom. – chamou nosso filho, que assistia TV na sala, mostrando a ele seu hambúrguer, recém feito. – Vem comer. Agora.
– O que está passando na TV de tão interessante? – Giovanni quis saber assim que Dom entrou na varanda, onde nós estávamos.
– Reprise do jogo de ontem, de futebol. – Respondeu Dom, sentando-se ao meu lado na mesa, com seu hambúrguer em mãos.
– E como vai o futebol na escola? – Meu pai quis saber.
– Legal. – Dom assentiu, mastigando um pedaço de seu lanche. – Eu escolhi jogar com a sete, igual ao .
– Sério? – Giovanni sorriu, esticando-se para bagunçar os cabelos de Dom. – Então o West Canaan Coyotes tem um quarterback camisa sete outra vez? – Perguntou e Dom assentiu, sorrindo.
– Não tinha me contado isso, querido. – Comentei, abraçando os ombros de Dom.
– Nem para mim. – também disse, mas não estava sorrindo.
– É, eu decidi nessa semana. – Dom deu de ombros. – disse que me daria dicas se eu quisesse, e eu vi os troféus dele lá na escola. O pessoal do time não acreditou quando eu contei que ele era amigo da minha mãe.
– Mais que amigo da sua mãe. – Giovanni se empolgou e eu senti o chão sumir sob meus pés. – Ele também é meu melhor amigo, desde sempre. – Falou e eu voltei a respirar. – E quando ele sair daquele hospital, vai estar aqui de novo, comendo com a gente.
– Com a benção de Deus. – Minha mãe concordou.
– E ele está para sair? – sondou, mas estava de costas para nós, virando os hambúrgueres na churrasqueira.
– Está, está sim. Até que enfim. – Meu irmão sorriu feliz, depois de dar um longe gole em sua caneca de cerveja. – Ele deve receber alta em algumas semanas. ainda precisa se organizar, tudo é muito diferente agora... quero dizer, pouco mais de um ano atrás ele estava para morrer e agora vai receber alta. – Giovanni riu.
– É, bem curioso...– suspirou.
– Você ainda o tem visitado, ? – Sue perguntou, inocente.
– Sim, quando é possível. – Respondi rápido. – Não tenho tido muito tempo. O restaurante e tudo mais.
– É chocante, não é? – A esposa de meu irmão continuou. – Como ele estava antes de você chegar e como está hoje em dia.
– Antes de eu chegar? – Repeti confusa.
– É, antes...ele estava desenganado pelos médicos, e hoje está ótimo, sarcástico como sempre.
– Mas o que isso tem a ver com a ? – entrou no assunto.

Sue abriu a boca e fechou, por umas duas vezes, confusa e sem saber o que dizer, depois expirou.

– Nada, é só...o marco temporal. Tudo foi na mesma época. – Justificou ela, sem graça.

🍁


Estávamos de volta ao lar, nos aprontando para dormir depois do dia com minha família. não estava em seu humor comum há alguns dias, mas algo parecia o ter incomodado ainda mais naquela tarde. Claro que havia a opção de ser uma impressão, coisa da minha cabeça, mas ele parecia mais quieto, pensativo, depois da conversa sobre . Com a escorregada de Sue, que inocentemente me havia colocado em uma situação tensa com meu marido, não sorriu tanto mais, e em vários momentos o flagrava me observando de soslaio.
Estávamos no nosso quarto, nos preparando para dormir. já estava em sua cama e eu me demorava passando hidratante e penteando o cabelo, sem muita pressa. De algum modo, era como se sentisse que havia algo no ar e quisesse retardar o encontro com de alguma forma.

. – chamou, enquanto eu ainda estava no banheiro.

Depois de um longo suspiro e de encarar meu reflexo pálido no espelho enfumaçado, fui ao seu encontro, no quarto.

– Sim.
– Sem rodeios. – Disse ele, sentando-se na cama. – Aconteceu alguma coisa entre você e ?
...– Hesitei, sem saber o que dizer. – Acho que não entendi sua pergunta.
– Perguntei se algo aconteceu entre você e . – Ele repetiu, ficando de pé.

Respirei profundamente e fechei os olhos, tentando procurar uma resposta, mesmo que não soubesse onde.

– No passado, quando erámos adolescentes... ele era muito próximo ao meu irmão. Tive uma paixão platônica. – Confessei, não era mentira, mas não era toda a verdade.
– Platônica? – expirou um riso fraco e frio, e eu assenti com firmeza.
nunca olhou para mim, e quando saí de Paradise ele tinha uma noiva.
– Ele está apaixonado por você agora? – Indagou e eu franzi o cenho, incrédula e atacada com aquela pergunta.
– De onde...– Expirei cansada. Não por , mas por mim, por estar cansada de mentir. – Devia perguntar sobre os sentimentos de para o , não para mim.

não esboçou qualquer reação, apenas continuou a me olhar.

– Você está apaixonada por ele?
– Eu fiz uma escolha quando saí de Paradise há dezesseis anos, fiz uma escolha quando me casei com você. – Falei, sentia-me apertando os dentes, como se dizer aquilo em voz alta trouxesse um tipo de rancor. – E desde então, tenho tentado seguir este caminho. Com você. – Disse com firmeza, olhando em seus olhos.

assentiu.

🍁


Giovanni assoviava distraído, segurando um copo de café gelado com leite e bolinhos, caminhando quase saltitante pelos corredores do hospital. Alguns dias haviam se passado desde a tarde de hambúrgueres com minha família, e haviam alguns dias desde minha última visita a também. Sabendo disso, meu irmão mais velho resolveu que seria uma ótima ideia me buscar no restaurante naquela manhã para uma visita dupla a ele.
Não que fosse uma tortura visitar , mas depois dos últimos acontecimentos com , pensava que minhas idas ao hospital poderiam ser evitadas. Matt Shay era uma figura presente nos meus dias, e sempre recebia notícias de transmitidas por ele, conseguindo controlar minha ansiedade.

– Bom dia, flor do dia! – Giovanni saudou animado ao entrar no quarto de sem bater.
– Quando vocês vão aprender a bater? – rolou os olhos, terminando de vestir uma camiseta azul, com péssimo humor. – Ah......– Ele sorriu ao me ver, relaxando um pouco.
– Oi, . – Sorri, aproximando-me dele e o abraçando, enfim, depois de tempo demais.
– Eu sei que não sou o mais interessante a você, mas poderia pelo menos fingir que está feliz em me ver. – Giovanni resmungou. – Trouxe café.

gargalhou, jogando a cabeça para trás.

– Não seja ciumento. – Disse ele. – Você sempre vai ser meu favorito.
– Falso. – Giovanni rolou os olhos e entregou o café o bolinho a .
– O que a dupla dinâmica veio fazer aqui? – Ele quis saber enquanto provava o café gelado.
– Giovanni queria te ver. – Respondi, sentando-me na antiga poltrona, perto do leito.
– Está vendo como você valoriza a pessoa errada, ? – Meu irmão voltou a falar, dolorido.
– Você casou antes que eu tivesse qualquer chance. – sorriu, piscando de modo doce para ele.
também, mas isso não te impediu. – Vanni falou enquanto roubava um dos bolinhos de .

uniu as sobrancelhas confuso, prendeu a respiração e girou o rosto, olhando para mim, alarmado.

– Tudo bem. – Eu sorri e balancei uma mão em sua direção. – Ele sabe. Oliver e Giovanni sabem.
– O que? Surpreso por eu saber de mais um segredinho que o meu melhor amigo não se importou em me contar? – Ironizou Giovanni.
– Gio, eu...– começou a falar, hesitante.
– Relaxa. – Meu irmão deu de ombros. – Estava na cara. Ela sempre foi apaixonada por você, e você sempre foi um descarado...era questão de tempo.
– E você está bem com isso? – sondou com cuidado.
– Se estou feliz em saber que meu melhor amigo está ficando com a minha irmãzinha? Não. Se acho estranho que meu melhor amigo internado em um hospital esteja ficando com minha irmãzinha casada? Pra caramba.
– É que...– tentou dizer. – Foi uma coisa meio...inesperada.
– Relaxa, nesse caso, eu não tenho opinião. – Giovanni deu de ombros outra vez. – O que me importa é minha irmã feliz.
– Eu ainda estou aqui, caso não tenham notado. – Tentei chamar a atenção deles, completamente envergonhada pela situação. – Não estamos tendo um caso, Giovanni. Não é assim.
– É, ela tem razão. – concordou.
– Claro, vamos fingir que não sabemos o que está realmente acontecendo aqui. – Ele torceu os lábios sarcástico e deu de ombros. – Não vim aqui por isso, então não me importa.
– E por que você veio? – quis saber.
– Comecei a organizar suas coisas, as que estavam na minha garagem. – Contou, atraindo nossa atenção. – Pensei em separar algumas casas e te mostrar, algumas opções. Sei que por você, ficaria naquele trailer velho perto do lago, mas é para isso que servem os amigos, não é? Não quero que volte ao hospital por causa de tétano.
– Que trailer? – Eu quis saber.
– Um trailer. Acredita? – Giovanni me encarou. – Ele queria sair do hospital para morar num trailer.
– Não tem nada de errado com meu trailer. – protestou. – Vou ficar bem lá, confortável.
– Um jogador que já venceu o Super Bowl, astro do time e da cidade. – Giovanni negou com a cabeça. – Não posso te deixar fazer uma coisa dessas.
– Ex-jogador, Gio. Ex-astro. – expirou balançando a cabeça negativamente. – Essa realidade não é minha mais. Há muito tempo.
– Não diga isso. – Falei apertando o ombro de . – Sua vida não acabou, você agora vai começar uma outra fase.
– Ela tem razão. – Giovanni concordou. – Pense que agora você vai entrar em outra fase, como se tivesse aposentado do esporte.
– Mas eu não me aposentei, Giovanni. Não posso fingir que esses anos todos aqui, preso nesse quarto, não aconteceram. Não dá para fingir que vou aproveitar a aposentadoria depois de uma longa carreira jogando futebol. – falava mais alto, mais emocionado e ficou de pé, nos olhando enquanto falava. – Não posso fingir que não fiquei aqui, assistindo a vida de outras pessoas passarem. Que não vi as pessoas se casando, tendo filhos, seguindo a vida, vivendo momentos bons e ruins, enquanto eu virava parte da mobília desse quarto. Eu não sei mais como é sair para comer e escolher um restaurante, não sei mais como é pedir uma comida e ela ser ruim, não sei como é poder ter um encontro. Não sei como é envelhecer. Eu estou aqui, como se tivesse sido congelado há mais de quinze anos atrás e tivesse que sair daqui em um mundo totalmente diferente. Meu melhor amigo agora é casado, pai... meu outro melhor amigo é um detetive condecorado, a mulher que eu amo está casada e tem uma família. As poucas pessoas da minha família que eu tinha já morreram, enquanto eu estava aqui, preso no mesmo lugar. – desabafou. – Não me peça para fingir que tive uma vida nesses quinze anos, Giovanni. Porque eu não vivi, só existi. – expirou, cansado. – E cá entre nós, isso são coisas bem diferentes.

🍁


Nossa casa estava cheia. Era final da tarde, e depois de um longo dia, do batizado de nossa pequena afilhada, filha de Sue e Giovanni, oferecemos um almoço. Talvez fosse bom para tentar devolver ao espaço o clima amistoso e familiar de antes. Eu estava organizando a louça na lavadora, enquanto Giovanni fazia a filha dormir na cozinha, como desculpa para roubar alguns doces da geladeira.
O resto da família estava no quintal, aproveitando o poente e o vento fresco daquela época do ano. Dom e estavam com meus pais e Sue, Oliver ainda estava viajando e não fazíamos ideia de quando ele voltaria. Matt e Gina e sua família haviam ido à igreja também, mas não a minha casa, e não se sentiu bem o suficiente para assistir ao batizado, seria sua primeira vez fora do hospital. Talvez não estivesse seguro o suficiente ainda, talvez não quisesse afrontar , talvez ainda não estivesse pronto para encarar a realidade. Sua nova realidade.

– Já que estamos sozinhos. – Vanni se aproximou, sussurrando. – Algum problema entre você e ?
– Não que ele tenha me contado. – Respondi, respirando fundo e expirando, fazendo com que meus ombros subissem e baixassem. – Por que pergunta?
– Não sei, parece que tem uma coisa no ar. – Disse ele. – Sabe? Um desses dias em que o vento parece soprar do lado contrário? Que tem algo fora do lugar?
– Não, não sei. – Devolvi confusa, o encarando.
– Pode ser só impressão minha. – Ele deu de ombros.
– Ah, aí está você. – Sue se fez ser ouvida, colocando-se dentro da cozinha. – Estamos de saída, vamos dar uma carona para os seus pais. – Avisou ela.
– Se você manda, eu obedeço. – Giovanni sorriu.

Meu irmão e eu nos juntamos aos outros, que já estavam na sala, se despedindo com abraços e beijos molhados demais. Dom, depois de se despedir dos tios e avós, foi para o quarto, enquanto e eu os acompanhamos até a porta, os assistindo partir da varanda da frente.

🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Joel & Luke – Love’s to Blame🎵


– Que dia...– Suspirei cansada, me sentando no primeiro degrau da varanda.
– Foi um dia bem longo. – expirou um sorriso fraco, sentando-se ao meu lado. Depois de alguns muitos dias, era a primeira vez que o via sorrindo para mim, mesmo que não fosse um de seus melhores sorrisos.
– Acho que deixei de sentir meus pés logo após o almoço. – Sorri de volta, aproximando-me dele.
– Só me perguntava quando é que eles iam embora. – Ele riu abafado, inclinando a cabeça e apoiando os braços aos joelhos, cruzando os dedos das mãos enquanto nós riamos. – Eu... – expirou, ainda com um sorriso fraco nos lábios. – Eu preciso te dizer umas coisas.
– Claro, pode falar. – Assenti, compreensiva, abraçando-o de lado. – O que foi?
– Eu amo você. – Declarou, me olhando nos olhos. – Amo desde o primeiro momento que te vi, eu acho. – Sua confissão o fez rir abafado, e a mim também. – E há muitos anos não sei como é viver sem amar você. Sei que você também me ama, talvez essa seja uma das coisas na vida de que nunca duvidei. Eu sinto isso. – segurou uma das minhas mãos com gentileza e firmeza. – E é por isso que não é justo que a gente continue se enganando desse jeito.
– O q-que? ? – Gaguejei, sorrindo confusa. Não fazia ideia do que poderia dizer, mas aquilo não estava entre as possibilidades, nem entre as mais remotas. – O que está falando?
... – soltou o ar devagar, girando o corpo para que ficasse de frente para mim. – Eu amo você, te conheço melhor do que ninguém, e também não sou cego. Sei que mexe com você como ninguém nunca mexeu, como eu nunca mexi... não vou e nem posso te prender mais. – Disse ele, e quando abri a boca, mesmo que nenhuma palavra pudesse sair dela, ele me impediu e continuou. – E tudo bem, okay? Não estou te culpando. – sorriu fraco. – Eu e você, nós somos parceiros de vida e nada no mundo nunca vai poder mudar isso. Nós sempre vamos ser uma família, você, eu e o Dom. Mas apesar disso, apesar de todo amor que temos, mesmo nós dois sendo parceiros um do outros e tendo mais intimidade do que muitos casais jamais vão ter na vida, não nos pertencemos. Você não me pertence.

Não conseguia controlar minhas reações, era como se meu corpo estivesse no automático, lidando com a crise, enquanto eu apenas assistia, como se fosse um tipo de filme. Não conseguia reagir, pensar, dizer, protestar...só chorar. Me afastei um pouco, inclinando o tronco para trás, mas ainda me olhava e segurava minha mão. Apesar de seu semblante triste, ele parecia sereno, não chorava e tinha o tom de voz calmo e suave de sempre.

– Entendi isso quando vi a forma com que você olha para ele, e como ele olha para você. Entendi quando percebi que nós nunca nos olhamos daquele jeito. – levou minha mão aos lábios e a beijou com delicadeza. – Eu estou feliz por você. Feliz por ver você apaixonada pela primeira vez, e por alguém que também parece estar apaixonado por você da mesma forma.
, eu...– Tentei dizer, mas não conseguia, os soluços do choro se embolavam as palavras.
– Nada no mundo pode separar nós dois. – Ele declarou, me puxando para um abraço e beijando o topo de minha cabeça. – Já me sinto parte da sua família, e isso nunca vai mudar no que depender de mim.
– Eu nunca... nunca quis te magoar. Eu sinto muito. Não queria que as coisas...se eu pudesse ter evitado...
– Eu sei. Eu sei. – sorriu, mas pelo seu tom de voz, percebi que ele poderia estar chorando também. – Mas te conheço o suficiente para saber que você não daria esse passo sem mim. Sua capacidade de se anular por alguém que ama ainda me assusta. – Ele tentou rir. – Eu vi você nesse tempo todo, vi o quanto tudo do te afetava, assisti todas as suas mudanças. No início acho que não quis ver, nosso casamento sempre foi muito cômodo para nós dois. – Confidenciou. – Depois eu vi, mas não quis lidar, e agora já não podemos mais fechar os olhos para o que aconteceu e acontece. Ainda não é tarde demais, para nenhum de nós.

De súbito, as palavras do médico voltaram a minha memória, assim como um rosto do hospital.

– Joy? – Perguntei, erguendo o rosto para encará-lo e sorriu.
– Acho que ela me ajudou a entender muitas coisas, sobre o que sentia e como sentia. Me fez me perguntar se nosso casamento era o que devia ser. É uma boa mulher. – Admitiu ele. – Mas eu juro, nunca nada...
– Eu acredito. – O interrompi, secando o nariz com as costas da mão.
– Acho que agora nós merecemos isso, ser feliz. – me olhou e eu assenti.
– Eu também fui feliz com você. Muito. – Disse eu.
– Eu sei. – sorriu e encostou sua testa a minha e eu o abracei pelo pescoço. – Você vai ser sempre uma das mulheres da minha vida, mesmo que não do jeito que imaginávamos.
– O que vai ser de mim sem você?
– Você consegue. – Ele riu abafado. – Você não é a que saiu daqui há dezesseis anos atrás, mas também não é a que chegou. Você amadureceu, cresceu, é uma mulher forte. Consegue superar qualquer coisa. E eu sei que tem alguém que deve ansiar muito para estar aqui, do seu lado. – tocou meus lábios com o seu com carinho e paciência. – Além disso, resolvi comprar a casa do lado. Não vou a lugar nenhum.
– Obrigada. – Sorri ainda chorando. – Você... obrigada. Foi corajoso, acho que não teria... nunca conseguiria fazer. – Confessei.
– Você está livre, . – sorriu afagando meu rosto com o polegar e tornando aquele momento real ao me chamar por meu nome de solteira.
– Eu te amo. – Declarei.
– Eu te amo. – Ele respondeu.

se levantou e entrou, enquanto eu, sentada na pequena escada da varanda, tentava voltar a realidade.
Era o fim? Depois de semanas agindo de modo estranho, depois da indagação sobre ? Seria assim? Simples e rápido?
Amava , e dizer que não sentiria falta de sua presença era mentira. Amava quando ele trazia café na cama, amava sua paz, amava suas piadas ruins e seu péssimo planejamento de viagens, amava como ele coçava a nuca quando estava concentrado, como roía as unhas quando assistia a um jogo de hockey. Amava seus ombros, os olhos verdes e como ele sorria quando estava verdadeiramente feliz. Amava e isso era uma das razões por não ter escolhido desde o princípio.
E agora, não o teria por perto, não teria seu apoio e companheirismo. Por mais culpada que estivesse diante tudo aquilo, e irritada por estar me sentindo daquela forma justo quando havia conseguido tudo que tanto quis, mas não tive coragem de fazer, sentia dor. Agora estava livre para viver com tudo que sonhara desde sempre, mas do outro lado, parte minha estava deixando de existir. Talvez fosse o luto. Luto pelo casamento que acabou, pela bolha de conforto ilusória que havia se criado entre nós.
Luto pela família que tomava outra forma, luto pela presença frequente que perderia, luto pela . Era como se estivesse em uma cena de crime, assistindo ao corpo estirado de alguém, e aquele alguém era eu. Uma versão de mim que por dezesseis anos foi a que vi no espelho. . A esposa. A havia passado por muita coisa. Ela tinha amadurecido, tinha ido ao fundo do poço e depois retornado, tinha sido mãe, tinha tido milhões de experiências boas e ruins. Mas estava deixando de existir, e quem existiria no lugar dela?
E ?
Era isso, ele apenas tinha entendido que nossa situação já não era a melhor há muito tempo e decidido por um fim? Será que eu o tinha magoado? Será que ele imaginava que entre e eu...que tivesse acontecido mais coisas do que apenas olhares diferentes? E como minha família, meus pais reagiriam? E Dom? Como contaríamos a ele? Como nós passaríamos por aquilo?
Talvez eu mesma nunca tivesse coragem de tomar aquela decisão, e agora, diante dela, estava apavorada.
Também estava dividida.
Dividida entre o luto, a dúvida, o medo do novo e a preocupação com Dom, mas havia alívio. Um grande alívio por não precisar mentir, não precisar esconder ou me sentir a pior das pessoas por magoar e ao mesmo tempo por não ser capaz de tomar uma decisão. Parte minha estava em paz, aliviada. Sempre foi , sempre foi ele e sempre seria ele. Em todos os tempos verbais, com todas as circunstâncias, possibilidades, dores e amores. Em voz alta e letras maiúsculas, porque era o coração gritando desesperado por ele, para estar ao lado dele. Era , em alto e bom som.
E agora poderia ser ele, sem culpas, sem medos, para sempre. Se ele ainda me quisesse.

🍁


A noite parece passar incrivelmente rápido quando se está fora de si.
Nos dias em que algo acontece e te faz perder a noção da realidade, perder o contorno. Como se por um tempo você fosse só um bolo de moléculas, jogado em qualquer canto, perdendo a noção do que é real e do que não é. Escondendo-se no fundo, no buraco mais profundo da mente, imaginando que ali nada pode lhe fazer mal.
Uma vez, no nosso aniversário de cinco anos de casamento, e eu fomos a Belize, ele queria muito conhecer Turneffe e o sumidouro gigante. Um buraco no meio do mar com 300 metros de largura e 125 metros de profundidade, de aparência assustadora. Amei os passeios de escuna, as praias de água transparente e Dom amou a vida perto do mar. Por uma semana, era como se fossemos uma versão moderna e mais bem equipada de Richard e Emmeline, em nossa própria lagoa azul.
Quando chegou a vez de conhecer o sumidouro, eu estava apavorada, era um vazio imenso sem qualquer noção de onde terminava e do que exatamente havia lá embaixo. Enquanto isso, estava eufórico, ansioso para praticar mergulho naquelas águas, animado para provar um pouco daquela adrenalina e ter histórias para contar.
Quando achei que não podia nem mesmo estar perto daquele lugar, mesmo de barco, segurou minha mão e sorriu. Me lembrava de seu sorriso e da sensação como se tivesse acontecido duas horas atrás. Ele apenas disse, o que eu faria da vida se não pudesse viver essas coisas?
Me lembro de achar idiota, mas de sorrir em seguida. Aquele era . Se havia um buraco gigante e inexplorável no mar, certamente ele estaria entre os mais ansiosos para desbravá-lo, se houvesse a chance de sermos mais felizes e completos fora do nosso casamento, ele seria a pessoa a arriscar tudo. Era parte dele ser assim.
Vi a noite passar através da janela como se fosse um filme, enquanto reproduzia em minha memória cada viagem, cada momento em que havíamos nos divertido plenamente. Como fazem aqueles quando perdem alguém, lembrando de cada momento e ansiando que alguém lhes pergunte sobre a pessoa falecida, apenas para que possa contar o quão bom ela era. não tinha morrido, eu tinha. Não do jeito que se espera ou se imagina, mas de um jeito diferente. havia partido, e talvez, ela já tivesse partido há muito tempo. Talvez ela estivesse ligada a fios no hospital, e aquele fosse o golpe de misericórdia, o “você precisa deixá-la partir” que muitas famílias em negação escutam em volta a leitos de hospital.
Uma fase, uma era que se findava. Agora talvez ela, a antiga , pudesse descansar, sem culpas, sem o peso do passado, sem toda aquela bagagem que a encarcerava. Talvez, e só talvez.

– Bom dia, irmã. – Giovanni colocou a cabeça para dentro do quarto, capturando minha atenção.
– Vanni...o que está fazendo aqui? – Perguntei, me sentando, apoiada aos travesseiros.
me ligou, ele me contou tudo. – Meu irmão expirou e sentou-se ao meu lado.
– Não sei onde ele dormiu.
– No sofá, ele disse. – Contou. – Como você está?
– Eu não sei dizer. – Assumi. – Estou confusa.
– Ele me disse que foi uma conversa franca e carinhosa, que vocês...que terminaram de um jeito bom. – Vanni segurou uma das minhas mãos com gentileza.
sempre foi melhor do que eu merecia que fosse. – Sorri fraco ao admitir. – Ele disse a verdade, e talvez por isso seja tudo tão confuso.
– Do que está falando?
– Só não sei o que sentir diante disso. Diante do fim do meu casamento. – Soltei o ar que devagar esmagava meus pulmões, era difícil organizar as palavras. – Encarar essa realidade, a tudo que vem com ela, direta ou indiretamente.
– Já contaram ao Dom? – Giovanni quis saber.
– Não, não sei como fazer isso.
– Ele é um garoto esperto, vai lidar bem. – Meu irmão tentou me acalentar. – E agora, chega de fingir, você vai poder viver a vida que queria, ser feliz.

Eu não respondi, apenas continuei encarando o vazio, com olhos vagando perdidos pelo quarto. Giovanni se aproximou de mim, sentando-se ao meu lado na cama, apoiando as costas a cabeceira e me abraçando, beijando minha cabeça.

– Se lembra do que me disse no último natal? – Eu não respondi. – Você disse que estava cansada de se sacrificar em silêncio. De fechar a porta para tudo que sempre quis, porque algumas vidas poderiam ser atingidas no caminho. – Lembrou ele. – Você está livre agora, . Não precisa mais se conter ou se prender, se privar de viver uma vida boa e feliz.
– Mas o que vou fazer agora? – Ergui os olhos para ele.
– Eu achei que isso já tivesse claro para você desde o início. – Giovanni riu.
– Não, porque não foi quem me impediu de estar com desde o início. – Confessei. – Foi eu mesma. Nunca tive coragem de encarar, de sair da vida que eu conhecia, mesmo vendo o quanto queria a outra. Sabia que amava mas que estava apaixonada por , e mesmo assim não tive coragem de deixá-lo. E agora não sei o que fazer, porque não sei o que sobrou. Não sei quem sobrou dentro de mim. Eu era uma pessoa, e agora não tenho mais certeza sobre quem eu sou fora disso tudo. Fora do , fora do casamento, sem precisar me esconder e fingir.
– Tá na hora de você parar de fugir do destino, . – Giovanni falou sério. – Do que você tem tanto medo? De não ser como você imaginou e perder o interesse? De não funcionar e você e não darem certo?
– De não eu não ser o bastante.



17

Na vida, você nunca sabe como vai reagir a alguma coisa até que finalmente vivencia a tal coisa. Secretamente – nos momentos em que não estava culpada – sempre imaginei como seria estar livre para viver o que sonhava com . Idealizava estar ao lado dele desde que era adolescente, sempre imaginava como seria poder viver e pôr em prática tudo que tinha fantasiado. Mas ao contrário do que esperava ou idealizava, no justo momento onde me via realmente livre, encarar era exatamente o que não queria fazer. O que igualmente me gerava culpa.
Me perguntava se em algum momento eu teria alguma paz. Alguma chance de dormir e acordar sem me sentir péssima por qualquer coisa que fizesse. Talvez aquilo fosse um sinal de que precisava voltar a visitar a psicóloga.
Depois de dois dias em casa, encarando o teto e evitando qualquer contato social, era preciso retomar a vida, ou pelo menos tentar. Afinal, estava divorciada, ou me divorciando, e milhares de pessoas passavam por aquilo o tempo todo. Não queria ser a pessoa frágil de quem os outros tem pena, a esposa que desmorona após a separação. Principalmente porque não ocupava aquele lugar. Mas se sabia disso, porque ainda me sentia desse jeito?
Ainda não havíamos dito nada a Dom, e sendo sincera não fazia ideia se ele estava percebendo algo ou não. Mais um item para minha autoflagelação, mais uma coisa que me fazia sentir culpada. Mães deviam fazer tudo por seus filhos, enquanto eu, não conseguia sequer sair da cama para ver se ele estava bem ou não. Em vez de oferecer suporte a ele, quem necessitava de atenção e suporte era eu. Isso me deixava irada comigo mesma. Me sentia culpada e mal, perdida após o anúncio de divórcio de , e não conseguir ficar bem e forte para que Dom não sentisse a separação me matava, eu me odiava.
Me odiava igualmente – e isso também me causava culpa, principalmente por sentir igual – por . Depois de tudo eu devia estar feliz, devia ter corrido até ele e contado a notícia, avisado que enfim poderíamos ficar juntos, mas não conseguia. Por culpa ou medo, ou os dois juntos, ou por talvez ter pensado que me separar não era realmente o que queria. Ou era, já não tinha tanta certeza uma vez que havia se tornado real. E se eu tivesse feito a escolha errada? E se tudo fosse apenas uma fantasia adolescente não realizada? E se eu fosse apenas uma pessoa caprichosa e manipuladora, que usa as pessoas como peões para satisfazer seus desejos?
Neguei com a cabeça e suspirei. Estava mesmo ficando maluca por pensar aquelas coisas, cavando um buraco cada vez maior, rumo a autodestruição.
Fechei a porta da frente e estava caminhando devagar até a garagem, tentando me convencer de que ir ao restaurante era o certo a se fazer e que eu conseguiria cumprir aquela tarefa tão simples. Foi quando percebi que a casa a venda, ao lado da nossa – agora minha – estava aberta e lembrei-me da conversa de , sobre morar ali. Não tentei conter o impulso que me levou a atravessar o jardim e parar na soleira da porta da frente da casa. Feliz ou infelizmente fui notada rapidamente por , que parecia analisar a casa junto a um homem de terno e casaco grosso, apesar da tarde fresca. Devia ser o corretor de imóveis.

. – sorriu fraco ao me notar, pedindo uma pausa para o homem de casaco grosso e indo até mim, na soleira da porta. – Indo para o restaurante? – Ele perguntou, equilibrado e simpático como sempre.
– Você está bem? – Perguntei de forma dura, sem rodeios e o vi unir as sobrancelhas e mexer os lábios sem proferir qualquer som, depois sorrir.
– Eu... acho que sim. Estou. E você? – Ele quis saber, um tanto atordoado.
– Eu não. Eu estou destruída. – Admiti esticando os braços.

me analisou por dois segundos, depois apertou os lábios em uma linha fina e respirou fundo.

– Por que não se senta um pouco? – Indicou um pequeno sofá de vime trançado que estava na varanda e eu obedeci. – Por que está assim? Tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar?
– Não me diga que você não está se sentindo estranho, mal ou culpado? – Perguntei, novamente sem me importar em ser educada. Estava falando com meu ex-marido agora, podia abrir aquele precedente.
– Um pouco, mas... – Eu o interrompi.
– Como? – Indaguei angustiada e cansada. – Como você está lidando com tudo isso sem querer se atirar no fundo da baía por ser um lixo de ser humano? – me analisou por mais tempo do que da outra vez.
– Eu não me sinto um lixo de ser humano. – Disse ele e em seguida se inclinou em minha direção. – , você tem visto a sua psicóloga?
– Não depois que você quis o divórcio. – Neguei, apoiando os cotovelos nos joelhos e enfiando os dedos no cabelo, bagunçando o pouco que havia conseguido arrumar antes de sair.
– Achei que estávamos de acordo com essa parte. – falou, projetou o lábio inferior e maneou a cabeça, confuso.
– Sim. Eu sei. – Assenti. – Mas eu... eu já não sei de mais nada. Eu tô apavorada. – Confessei choramingando e senti a mão quente de sobre meu ombro, e quando o olhei, ele sorria.
– Bem-vinda ao time. – piscou. – Eu confesso que esperava que a essa altura você estivesse fazendo planos de viagens com . É até um pouco bom para minha vaidade. – Ele sorriu outra vez. – Mas eu também estou com medo. É uma fase nova, depois de anos, mudar de vida, recomeçar. Assusta.
– Eu me sinto tão culpada... o Dom...
– Acho que ele não percebeu nada. Tem duas noites que você mal sai do quarto, duas noites que eu durmo no sofá da sala, e ele nem parece notar. – analisou. – Acho que de alguma forma isso diz um pouco de como é a nossa família. Ou de como as coisas já não estavam boas.
– E eu não percebi... – Falei eu. – Que espécie de mãe eu sou? Meu Deus...
– Ei, ei... não é por aí, . – segurou minhas mãos e olhou em meus olhos. – A gente pode tentar, mas não dá para proteger os filhos da vida. Dom vai lidar com isso da melhor forma que puder, e nós vamos estar por perto para ajudar. Nosso casamento pode ter terminado, mas nossa família não. Lembra?
– Eu sei. – Assenti, fungando. – Mas ainda me sinto culpada.
– Ele não vai ser o primeiro filho de pais separados, nem o último. – sorriu.
– Você tem razão. – Concordei, tentando me recompor, juntando os cabelos e fazendo um nó desarrumado. – E a casa? É boa? Sabe, eu posso sair também... – Tentei argumentar, mas me interrompeu.
– Não, não é uma possibilidade. A casa é sua, você fica lá. Vou ficar bem aqui do lado. As casas são idênticas, não vai dar para sentir saudades. – sorriu erguendo as sobrancelhas.
– Que pena, não vamos ter a emoção do divórcio litigioso com a exposição de todos os nossos podres? – Brinquei, tentando tirar a concentração de do meu provável e inevitável colapso.
– Que podre meu você queria expor? – correspondeu, sorrindo e erguendo uma sobrancelha.
– Não sei, são tantos... – Dei de ombros, me colocando de pé e esticando a coluna. – Devíamos fazer uma daquelas festa de descasamento. Ouvi dizer que é uma tendência agora. – Sugeri e gargalhou.
– Claro, eu escolho a boate. – Disse ele.
– Bom, preciso trabalhar agora. – Falei ao me afastar. – Sou uma mulher divorciada com um filho adolescente.
– É realmente uma história inspiradora. – riu outra vez, apoiando o corpo na soleira da porta e cruzando os braços sobre o peito. – Bom trabalho, .
– Valeu, . – Acenei com uma mão, mas balançando apenas os dedos.
– E . – chamou e olhei para trás. – Passe longe da baía, okay? – balançou a cabeça uma vez, e apesar de sua voz mansa, seu olhar gritava que era uma ordem séria.
– Culpada. – Sorri. – Pode ficar tranquilo. Eu volto pro café da manhã. – Garanti antes de entrar no carro, gastando alguns segundos para observá-lo ali, parado, me observando também. – Eu volto mesmo, não vou te deixar ficar com a coleção de louça chinesa. – Falei, e ele riu. Acenei outra vez e entrei no carro.

🍁


– Que droga! Merda! – Xinguei ao perder o ponto do molho branco pela terceira vez. – Quanta incompetência.

A noite estava agitada, salão cheio e longa fila, noite cheia de reservas. Não era um dia em que podia me dar ao luxo de estar com a cabeça longe. Todo chef ama a casa cheia, mas não em um dia em que está sem seu brilho. Tudo que queria era me esconder sob alguma mesa e fingir ter desaparecido, não queria socializar, ver qualquer pessoa ou cozinhar. Joguei o molho estragado no lixo e dei início ao preparo da quarta tentativa.

– Acho que nunca vi esse salão tão cheio quanto hoje. – Charles comentou ao se aproximar de mim.
– Não converse comigo agora, preciso me concentrar para não perder o ponto desse também. – Pedi.
– Ui. – O sous-chef assoviou. – Dia difícil, patroa?
– Qual é a sua dificuldade de compreender uma ordem simples? – Perguntei enfezada e Charles ergue as mãos, rendido, se afastando um pouco em seguida.

Mais alguns poucos minutos e enfim o molho estava pronto e perfeito, enquanto eu respirava aliviada. Já me dedicando ao preparado da massa de madeleines que seriam servidas junto a um sorbet de pistache e limão.

– Você está fazendo madeleines ou treinando para a próxima edição do UFC? – Charles se aproximou outra vez, se inclinando para me olhar por sobre meu ombro.
– Nunca te disseram para não perturbar uma mulher irritada? – Indaguei, arqueando uma sobrancelha, mas sem interromper minha atividade.
– Disseram, mas eu não sou bom em seguir conselhos. – Charles deu de ombros. – O que tá pegando?
– Divórcio. – Respondi sem rodeios e Charles riu.
– Engraçadinha. – O sous-chef manteve os olhos sobre mim enquanto esperava que eu dissesse o real motivo do meu estresse, mas quando não fiz, Charles perdeu a cor. – Meu Deus. Perdão.
– Tudo bem. – Falei dando de ombros. – Só não desmaie na minha cozinha.
– Eu sinto muito. Mesmo. – Charles tocou o peito ao falar. – Você e ...– Ele hesitou.
– O quê? – Ergui os olhos para ele e arqueei uma sobrancelha outra vez. – Não faça rodeios, só diz o que quer dizer.
– Eu ia dizer que foi inesperado. – Charles suspirou. – Mas não foi muito, não é? Depois daquele dia que ele esteve aqui...
– Você precisa aprender o limite saudável entre o que dizer e o que não dizer. – Uni as sobrancelhas, um pouco magoada e Charles perdeu a cor outra vez. – Você ficou me espiando?
– Em minha defesa, todos ficamos. – Justificou ele. – Ficamos preocupados com você, e naquele dia deu para ver que as coisas não pareciam bem.
– Sabe, Charles, você me deixou muito melhor agora. – Ironizei, voltando a prestar atenção as Madeleines. – Te agradeço.
– Perdão. Eu não sei ser muito sensível. – Ele falou, inclinando-se um pouco em minha direção. – Sou treinado a trabalhar com sangue frio sob a pressão de várias pessoas gritando comigo enquanto eu preciso gritar com várias pessoas, então...
– O que mais você viu? – Perguntei, sentindo-me invadir pela curiosidade.
– Nada demais, eu juro. – Ele voltou a se justificar. – Só que parecia que vocês não sabiam o que fazer, ou o que falar. Parecia estranho. – Charles se aproximou um pouco mais outra vez. – Me desculpe se estou sendo intrometido, mas é que depois daquela conversa que tivemos...
– Que conversa? – Quis saber eu.
– Aquele lance... o do... sabe? – Charles hesitou, inclinando a cabeça sobre o ombro a cada palavra dita. – De se atirar na baía.
– Ah...
– Você está bem? Com isso do divórcio? – Ele perguntou me olhando nos olhos. – Sabe que pedir ajuda não é uma fraqueza, e você...
– Leclerc, não quero me matar. – Falei de uma vez. – Tá legal? Talvez falte pouco para eu me tornar paciente fixa da ala psiquiátrica de algum hospital, mas suicídio ainda não.
– Eu só...– Charles tentou dizer.
– Eu sei o que está tentando fazer. – Sorri, colocando uma das mãos sobre seu ombro. – Você é um bom amigo. Mas eu estou bem, não completamente. Depois que estourar o limite do cartão de crédito de talvez me sinta melhor.

Eu ri e Charles me acompanhou.

– É a vida, Charles. – Suspirei antes de voltar a me concentrar na massa de madeleines. – É a vida, ela acontece. E não dá para fugir do destino, aparentemente.

🍁


E cá estava eu, caminhando pela orla sem um destino certo após uma noite agitada no restaurante. Algumas pessoas passavam por mim, algumas voltando de festas, outras fazendo sua caminhada matinal, mesmo sendo pouco antes das cinco da manhã. Me sentia como anos atrás, quando deixei Paradise, sentindo prazer em me afogar de trabalho, fazendo turno duplo se pudesse, apenas para não voltar para a casa.
Não queria encontrar a realidade que havia deixado, os problemas, as coisas que tinha que enfrentar. Queria continuar naquela cozinha, cozinhando de modo automático. Quando o restaurante fechou e não consegui pensar em desculpas para me manter dentro do escritório, do salão ou da cozinha, ou até mesmo do estacionamento, resolvi que precisava caminhar pela praia antes de voltar. Primeiro, porque não queria voltar, sabia que meu impulso seria voltar para a cama e me esconder entre os lençóis e não podia continuar tendo aquela postura. Segundo, porque se estivesse ocupada não teria que tomar qualquer atitude. Nem sobre Dom, sobre ou sobre ninguém.
Gostaria de poder sumir. Não morrer, mas parar de existir por um período, pausar o universo. Queria tempo para lidar com tudo, entender tudo, sobreviver a tudo, mas a vida era dinâmica. Aquilo talvez fosse uma das coisas que mais me angustiava naquele momento, o fato de que tudo continuava girando e girando, sem que eu conseguisse parar para pensar, entender ou lidar com meus sentimentos. Sentia que precisava de tempo, de silêncio sem a cobrança invisível que eu me mesma me imputava sobre dar conta de agradar as pessoas a minha volta.
Quando percebi estava no píer outra vez.
Sorri ao contemplar a ironia da vida, ou o meu inconsciente que parecia querer, literalmente, morrer para o problema. As colinas do cemitério começavam a ser iluminadas por um sol que timidamente despontava de trás delas, ao contrário da outra ocasião fatídica. O mar, que naquele dia era verde acinzentado e agitado pelo vento, agora era azul e calmo, se arrebentando de modo preguiçoso contra a estrutura do píer. Gaivotas sobrevoavam o quebra-mar, e pousavam sobre as pedras descobertas pela maré baixa. Tudo era silencioso e calmo, diferente daquele fatídico dia.
Dizem que nada nunca acontece duas vezes da mesma maneira, e eu podia concordar. Não tinha em mente as mesmas coisas que tinha naquela ocasião, mesmo que o foco do problema permanecesse o mesmo:eu.
Estando ali, de pé no píer, fechei os olhos e inclinei a cabeça, ouvindo os pássaros agitados no quebra-mar e sobre as rochas, ouvindo o som ritmado da arrebentação das ondas. Respirando no mesmo compasso que a movimentação das águas.
Devia ficar por ali, sozinha, até o próximo turno no restaurante. Sem pensar em qualquer coisa, sem encarar pessoas, sem precisar tomar decisões definitivas que poderiam mudar o curso da minha vida para sempre. Agora já não podia transferir a responsabilidade para mais ninguém, era comigo, só comigo. Abri os olhos, ainda com a cabeça inclinada, assistindo as ondas formarem espumas através das frestas das tábuas de madeira que formava o píer. Ao fundo, junto ao som das ondas, alguém parecia falar, talvez corredores ou jovens voltando de uma noitada. As ondas espumavam e era bonito ver, a água parecia mais gelada que o habitual, mas o esverdeado das ondas tornava atrativo. Pensei sobre dar um mergulho antes de voltar para o restaurante.
A voz pareceu ficar mais alta, mas ainda não incômoda, até que alguém me sacudiu pelo ombro, fazendo-me virar para trás de repente.

– Ei. – Protestei ao reconhecer o rosto e uniforme de Matt Shay. – O que foi? Quem morreu?
– O que você está fazendo aqui? De novo. – Ele falava sério, do jeito que devia falar quando abordava suspeitos.
– Vendo as gaivotas. – Apontei para cima, falando com uma simplicidade quase infantil, depois de afastar do rosto as mechas de cabelo que o vento teimava em tirar do lugar.
– Gaivotas? – Matt estreitou os olhos, confuso.
– É, gaivotas. – Dei de ombros, afastando-me dele para sentar perto do guarda-corpo. – Quem te mandou dessa vez? , , Rafael ou meu sous-chef?
– Ninguém. – Respondeu ele se juntando a mim. – Faço rondas aqui de vez em quando. Não se chama farol dos afogados sem motivo. – Matt ergueu os ombros. – O que você realmente está fazendo aqui, ? – Ele insistiu.
– Já disse, vendo as gaivotas. – Repeti. – Você já leu aquele conto sobre pássaros da Lídia Jorge? – Perguntei e ele negou com a cabeça. – Do professor que queria contar os pássaros.
– O que isso importa?
– Nada. – Respondi. – Só me lembrei dessa história. – Dei de ombros, voltando a olhar para as ondas espumando embaixo do píer. – Eu gosto de praias. De histórias sobre praias. É um mistério excitante.
– Você está bem? – Matt me olhava como deviam olhar para alguém em colapso, mas não me sentia em colapso, e era a primeira vez em muitos dias.
– Sim. – Apontei para o céu outra vez quando uma gaivota fez um voo rasante sobre nós. – Como eu disse. Gaivotas.
– Por que está aqui e não em casa?
– Larguei o restaurante agora há pouco e resolvi andar um pouco para desestressar. – Contei torcendo o nariz. – Você não teria um pedaço de pão ou biscoito na viatura, não é?
– Não. – Respondeu. – Vem, vou te levar para a casa. – Chamou ele, ficando de pé.
– Não, eu estou de carro e não quero ir embora agora.
– Eu não vou sair e te deixar aqui sozinha. – Sentenciou e eu o olhei com a cabeça inclinada sobre o ombro.
– É a segunda vez que preciso dizer isso hoje. – Bufei, apoiando as mãos aos joelhos e erguendo os ombros. – Não vou me atirar na baía, Matt, pode ficar tranquilo.
...
– Eu só me divorciei, não é o fim do mundo. – Falei eu, recostando-me ao guarda-corpo. – Ao menos ainda não.
– Como assim se divorciou? – Matt voltou a se sentar, me olhando com olhos arregalados.
– É, pois é. pediu o divórcio uns dias atrás.
– Como você está? – Quis saber ele. – já sabe?
– A não ser que tenha contado, não. – Dei de ombros.
– Como não? – Pela forma com que Matt me olhou, parecia que havia confessado um crime hediondo.
– Pode não tornar meu divórcio em algo sobre o ? – Pedi sem pensar. – Ele nem está aqui.
– Mas ele está lá. – Matt apontou para o hospital, na direção das colinas do cemitério. – Ele devia ser a primeira pessoa a saber.
– Sabe o porquê das gaivotas, Matthews? – Me coloquei de pé, sentindo-me invadir por uma chateação e raiva que não sabia estar carregando. – Elas não querem que eu faça isso ou aquilo. Não me cobram ou não me lembram de como eu devo viver minha vida para tornar a de outras pessoas mais fácil.

Matt me olhou, mas não disse nada, apenas ficou sentado me observando em total silêncio.

– Pela primeira vez. Talvez eu não queria pensar no , nem no , nem nos meus pais, ou nos meus irmãos ou até no meu filho. Eu só quero olhar a droga das gaivotas. – Falei exaltada, apontando para dois pássaros que nos sobrevoavam.
– Eu acho que...– Matt ficou de pé e começou a falar.
– Eu não quero saber o que você acha. Hoje não. – Neguei de modo duro, fazendo com que ele hesitasse e maneasse a cabeça. – Pode ficar aqui se ficar em silêncio, se quiser mesmo me vigiar. Mas do contrário, pode só me deixar em paz por algumas horas com a porcaria das gaivotas?
– Okay. – Respondeu ele, sentando-se novamente e erguendo as mãos, como quem se rende. – Okay.

🍁


Depois de passar em casa, certificando meu ex-marido de que ainda estava viva e sã, e depois de um longo banho quente, cedi. Dirigi o mais devagar que pude, mas logo estava sentada na poltrona confortável da minha terapeuta, esperando que ela ocupasse seu lugar e desse início a sessão. tinha razão, eu devia vê-la outra vez. E também sabia disso, mesmo que não quisesse remexer e falar sobre o problema. Por minha vontade, passaria o resto do dia no píer, vendo o mar e assistindo os voos das gaivotas.
Passei, naquele momento, a entender porque algumas pessoas cometem pequenos delitos propositalmente para passarem um tempo na prisão. Eu faria isso se não tivesse relativa fama e se isso não fosse manchar minha carreira. Mas se a estada na prisão estava fora de cogitação, a ida para alguma clínica parecia uma proposta bem tentadora.
Sai dos devaneios sobre a fuga da minha realidade quando a psicóloga tossiu, chamando minha atenção.

– Já faz um tempo, não é? – Ela perguntou, sorrindo com elegância.
– Eu não tinha o que falar. – Menti, cruzando as pernas e flexionando e estendendo o punho.
– E agora você tem? – A psicóloga se recostou a sua poltrona clara e de aparência macia.
– Meu marido. – Fiz uma breve pausa, lembrando a mim mesma de corrigir. – Bem... – Hesitei e tossi, tentando fazer a voz soar mais limpa e firme. – pediu o divórcio alguns dias atrás. Achei que seria um bom momento para voltar.
– É mesmo? – Ela sutilmente ergueu as sobrancelhas, mas sua expressão logo voltou para a transparência rotineira. – E por que razão?
– Ele andava estranho, acho que as peças começaram a se juntar na cabeça dele. Também percebeu meus sentimentos por e os dele por mim. E tem uma outra pessoa, alguém por quem ele se interessou e que o fez questionar se nosso casamento era como devia ser. – Ergui os ombros, enquanto meus olhos vagavam pela sala. – Nós recebemos minha família em casa, e então no fim da noite ele disse e nós conversamos.
– E como você está com essa decisão? – Perguntou ela, cruzando as pernas.
– Culpada. Confusa. Feliz. – Respirei fundo, devagar, soltando o ar pela boca e depois dirigindo o olhar para a psicóloga. – E culpada de novo.
– De onde vem essa culpa? Pelas nossas conversas, a separação sempre foi algo que você acreditou que facilitaria sua história, ou não? – Quis saber ela e eu sorri, talvez como algum tipo de psicótica, já que ela anotou algo em sua prancheta.
– Eu achei também. – Assenti sorrindo, e encolhendo os ombros. – Acho que sempre achei que o que impedia que eu estivesse com ELE era meu casamento sem paixão com . Mas talvez eu só quisesse arrumar uma desculpa para não dizer sim. Sim para o e para essa vida que poderia...posso ter com ele. – Admiti, expirando devagar sob o olhar atento da psicóloga. – Eu me odeio por isso, por não estar feliz como acho que devia estar. Eu devia estar feliz, ter contado ao e estar celebrando que agora temos essa chance, mas é isso justamente o que não quero fazer.

Apoiei os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos, tentando organizar meus pensamentos para conseguir dizer qualquer coisa produtiva.

– Eu me odeio por fazer isso com ele, por não estar agora com ele. Desde que e eu conversamos, eu só consegui ficar no meu quarto, encarando o teto, destruída por um casamento que eu parei de respeitar no momento em que pisei em Paradise. – Ri entredentes, erguendo a cabeça, mas sem encarar a psicóloga. – Como eu posso estar sofrendo? Sendo a divorciada que desmorona com a separação, se há pouco tempo eu quase me separei? Se eu já tinha até mesmo beijado outra pessoa e traía com ele todos os dias? – Ri com amargura outra vez. – E mesmo assim, ridiculamente, me sinto e comporto desse jeito.
– Não sabia da existência de um manual sobre como uma mulher deve reagir no divórcio, . – Disse ela, atraindo meu olhar. – E não há nada de errado em se sentir perdida, desamparada com sua separação. E se tentasse não se julgar, mas sim acolher seus sentimentos atuais?
– Mas eu não entendo, não me perdoo por sentir assim. Não depois de tudo que fiz com , não é justo. E ele está bem, aparentemente. Decidiu que eu fico na nossa casa e ele vai comprar a casa ao lado para ficar perto do Dom. Ele está bem. sempre foi uma pessoa melhor, mais corajoso... e eu assim? Não é justo. Eu não devia estar nesse lugar, porque eu não mereço esse cuidado...não mereço que ele se preocupe comigo como fez e tem feito...
– Me parece que você é seu principal algoz. – Pontuou a psicóloga. – Mas se não te crucifica, sendo que tomou a decisão por perceber seus sentimentos, porque você o faz?

Não consegui responder, apenas neguei com a cabeça.

– Ainda tem o Dom. – Voltei a falar. – Não contamos nada para ele. Por uns dois dias eu fiquei prostrada na cama. Mães deviam fazer tudo por seus filhos, enquanto eu não conseguia sequer sair da cama para ver se ele estava bem ou não. Em vez de oferecer suporte a ele, quem necessitava de atenção e suporte era eu. Do meu irmão, do . Eu me odeio por isso também, por ser uma péssima mãe...
, você é a mãe do Dom, mas também era a esposa do , também é a filha de alguém, a irmã de alguém, a empresária... são muitos papéis. Não é possível simplificar tudo dessa maneira, como se fossem caixas separadas que não afetam umas às outras. Você diz de regras sociais, de papéis sociais...do que se é esperado para uma mãe, para uma esposa que traiu e se separou em seguida. Mas te pergunto, será que é tudo simples assim? Preto e branco?
– Eu sei que não, mas mesmo não sendo, as coisas são como são. – Falei eu. – Dom precisava de mim, a família dele está se desfazendo e eu não pude sequer estar presente.
– Acredito que mais uma vez você esteja presa em uma moral que tentando tratar da vida real com a simplicidade que alunos da quarta série resolvem problemas de matemática. – Disse a psicóloga. – Pelo que já conversamos, não é a primeira vez que você fica em seu quarto, mais indisposta. Por que dessa vez é diferente? E você disse que Dom ainda não sabe, então não está finalizado, você ainda pode estar presente para ele durante o processo da separação. Você só se ausentou por alguns dias, o processo vai levar mais tempo que isso.

Abri a boca duas vezes, mas não soube o que dizer.

– Dom tem o pai também, que nos momentos em que você não estava conseguindo oferecer muito, segurava a barra. Isso é o que você sempre disse nas nossas sessões.
– É, o ... ele tinha essa proximidade com o Dom...e agora eu tirei isso deles. – Ri outra vez, com amargura.
– Você tirou? – A psicóloga arqueou uma sobrancelha. – Pelo que disse, foi uma decisão dos dois e levantada por , entendi errado? – Neguei com a cabeça. – E também disse que será vizinho de vocês. Você não pode assumir a responsabilidade do sofrimento de todos para si, , nem achar que precisa resolver todos os problemas. Não já chega de estar em segundo plano? Não acha que é o momento de assumir o protagonismo da sua própria história?
– Eu meio que fiz isso. – Expirei um riso abafado. – O que me gera culpa igual. Mas estou escolhendo não pensar nisso.
– Como assim?
– Como eu disse, acho que depois de tudo eu devia estar feliz por ter facilitado as coisas e tomado a decisão que eu não tive coragem de tomar.
– E não está? – Ela indagou, trocando a posição com que as pernas estavam cruzadas.
– Eu não sei como me sinto em relação a... – Admiti em voz alta pela primeira vez. – Encontrei Matt hoje, aquele amigo policial. Ele se chocou por eu ainda não ter contado ao e também se surpreendeu por eu estar como estou. – Contei, puxando os fios mais rebeldes de cabelo e tentando prendê-los em um coque frouxo. – Não sei se isso é porque sou só uma pessoa caprichosa, que gostou de brincar com . Que gostou do sabor de ter o objeto de desejo da adolescência entregue, apaixonado, e no fim das contas, não queria me separar do . Talvez eu só estivesse me divertindo, talvez não fosse real... – A psicóloga me interrompeu.
– Você acha que não era real?
– Se era, por que eu não estou com ele agora?
– Isso é uma resposta que só você tem, . – Ela sorriu com empatia. – Mas ao tentar responder essa pergunta, se lembre que ao contrário do que diz, não foi apenas a vida do Dom que mudou. Você foi casada por anos com um homem, e agora está se divorciando. Deixa de ser , para voltar a usar seu sobrenome de solteira. Você tem toda essa vontade, essa expectativa com e de vida desde que chegou aqui. Agora tudo é uma possibilidade. Um universo delas. Você está fora da sua zona de conforto, precisando encarar fatos que jogou para baixo do tapete por dezesseis anos. Talvez para responder essa pergunta, você precise lembrar ou conhecer quem é a pessoa que está do outro lado do espelho, ouvir o que ela quer, respeitar seus sentimentos e o tempo dela.

🍁


🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. OneRepublic – Let's Hurt Tonight🎵


– Está pronta? – indagou ao se sentar ao meu lado no sofá da sala pela terceira vez, depois de andar em círculos por dois minutos. – A gente pode tratar disso em outro momento, se quiser...
, atualmente eu mal sei meu nome. – Suspirei, massageando as têmporas. – Eu só quero paz.
– Então tudo bem, a gente... – Ele hesitou, respirando fundo. – A gente resolve isso rápido, é melhor.

Enquanto hiperventilava suando frio, Dom enfim entrou em casa, voltando da escola de carona com Gina. Primeiro ele hesitou, franzindo o cenho ao nos encontrar sentados no sofá no meio da tarde. parecia ter corrido uma maratona pelo suor que escorria em seu rosto e marcava a camisa social que usava, e eu tinha no rosto a enxaqueca que me torturava, causada pela ansiedade do momento.

– O que foi? – Dom quis saber ao se aproximar de nós. – Aconteceu alguma coisa?
– Não. – respondeu rápido, com um riso nervoso. – Na verdade sim. Aconteceu.
– O que? – Dom hesitou, um pouco alarmado.
– Será que poderia se sentar aqui um pouco, querido? – Chamei, sorrindo sem mostrar os dentes. – Precisamos conversar.

Dom deixou que a mochila escorregasse dos ombros até atingir o chão e se juntou a nós, sentando-se no sofá, entre e eu.

– O que foi? Eu não fiz nada de errado. – Se defendeu, olhando do pai para mim.
– Não é nada com você, não é uma bronca. – sorriu, tentando parecer calmo, mas sua pálpebra tremeu de modo involuntário.
– Então o que foi? – Dom olhou para mim e depois para , e então de volta para mim. – Meu pai está passando mal?
– Ele está meio nervoso, mas é porque essa conversa é importante. – Sorri assentindo com a cabeça e concordou com um aceno, respirando fundo e sorrindo. – Acho que você consegue compreender o que o seu pai ia dizer. O que nós dois temos para dizer... – Olhei para Dom, atraindo seu olhar com minha fala e dirigindo a um olhar divertido, sentindo-me estranhamente relaxada.
– É, acho que você pode conduzir. – aceitou, enxugando a testa suada com a manga da camisa, passando o antebraço na testa.
– Seu pai e eu somos amigos, você sabe. – Comecei a falar e Dom assentiu. – E isso é bom, um casal precisa ser amigo. Mas as vezes, com o tempo, o que casais sentem pode se transformar em amizade, e... – Dom me interrompeu.
– Vocês vão se separar? – Perguntou com simplicidade, olhando de para mim.

empalideceu e eu arregalei os olhos, surpresa e sem saber o que dizer.

– Eu... nós... – Gaguejei. – Sim. – Respondi em um suspiro.
– Eu sei que deve ser difícil entender... – começou a falar, mas Dom interrompeu outra vez.
– Não é não. – Negou ele, balançando a cabeça. – Metade dos meus amigos tem pais divorciados.
– Espera, então é isso? – Estreitei o olhar. – Tranquilo assim, querido? Não quer perguntar nada, ou...
– Eu quero. – Dom ergueu o nariz e me olhou. – O que vai acontecer comigo? Com quem eu vou ficar? Vou ter que voltar para Nova York?
– Como assim? Você vai... você vai ficar com a gente, parceiro. – o abraçou, beijando o lado de sua cabeça. – Eu vou morar aqui do lado, ser vizinho da sua mãe. Você pode escolher, se quiser ficar aqui, ou na casa do lado. Você vai ter um quarto nos dois lugares, se quiser.
– Você vai morar aqui? – Dom ergueu os olhos para o pai. – Vou continuar te vendo? Não vai embora?
– Não, Dom. É claro que não. – o puxou para um abraço mais forte, e olhou para mim, e eu subitamente entendi o que seus olhos queriam dizer, porque estava sentindo a mesma coisa. – A gente vai continuar junto. Nós três.
– Nada vai mudar, querido. – Falei eu, afagando sua cabeça. – Você, eu e seu pai ainda somos uma família, só não seremos casados mais.

Dom se afastou um pouco de e me olhou, depois olhou para o pai outra vez.

– Promete? – Perguntou à nós dois.
– Prometo. – Respondi erguendo o dedo mínimo.
– Prometo. – repetiu e repetiu o gesto, sorrindo para Dom, que nos imitou. – Nós somos essa família, você é meu filho, é filho da sua mãe e isso nunca vai mudar. – Eu amo você. – Declarou , beijando Dom na testa.
– Você é muito amado, querido, e sempre vai ser. – Falei eu, repetindo o gesto de e beijando Dom também. – Eu amo você. – Declarei e ergui o olhar, esticando uma mão para segurar a de . – Amo vocês dois. – Sorri e retribuiu, apertando minha mão com carinho.

🍁


🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Bastille - Oblivion🎵


Estava eu encarando a porta do quarto de .
Fazia cerca de vinte minutos que estava ali, e naquele tempo já tinha sido abordada por duas enfermeiras, perguntando se precisava de alguma coisa. Gostaria de responder que sim, que se elas tivessem uma injeção de coragem, eu estaria pronta para receber. Mas não deviam ter, não existia algo assim. Ao menos não físico.
Sabia que era o correto, falar com , contar a ele. Era certo que ele soubesse através de mim sobre minha nova situação. Não sabia o que dizer, e tremia em pensar no que poderia responder caso ele pedisse para ficar com ele de modo definitivo. E ainda era estranho pensar que não quisesse, que não estava pronta para pular em seu colo e viver a vida que não pude ter vivido anos atrás. Ainda me gerava muita culpa, mas depois da conversa com a psicóloga, resolvi que só daquela vez tentaria me colocar em primeiro lugar, fazer o que quisesse fazer, sem me sentir egoísta ou má por decidir a meu favor.
Com essas coisas em mente, respirei fundo e bati na porta duas vezes, anunciando minha entrada e depois empurrei devagar. estava sentado, lendo, usando um suéter vermelho e calças escuras, o cabelo penteado parecia molhado, a barba por fazer, e parecia agora estar com peso mais adequado à sua altura. Os ombros pareciam um pouco mais fortes, assim com os músculos do rosto, que agora cobriam o que antes era delineado pelos ossos de sua face.
ergueu os olhos e uniu as sobrancelhas numa espécie de confusão ressentida, não pareceu, à primeira vista, feliz ao me ver, mas surpreso.

. – Ele fechou o livro, pousando-o sobre o colo e ajeitando a postura, mas ainda mantendo as sobrancelhas grossas unidas sobre os olhos azuis que, naquele momento, a mim eram indecifráveis.
– Olá, . – Sorri de canto, rápido, aproximando-me dele devagar. Minha postura não demonstrava tanta confiança, mãos na frente do corpo, segurando a bolsa, ombros curvados e encolhidos.
– Achei que não te veria mais.
– O quê? Por que? – Perguntei confusa.

não respondeu, apenas manteve seu olhar em mim, como quem diz que a resposta é óbvia, não precisa ser explicada. Uni as peças do quebra-cabeça, certamente Matt ou Giovanni já tinham trago a boa nova. Não culpava por se chatear comigo, ao contrário, lhe dava total razão.

... – Hesitei, expirando cansada e coçando a nuca. – Eu...
– Primeiro eu me ofendi por ser o último a saber. – Ele começou a falar. – Achei que seria a primeira pessoa que você buscaria caso algo assim acontecesse. Depois, tentei enxergar as coisas pelo seu ponto de vista, mas mesmo assim, não consegui entender o que poderia ter acontecido para você me evitar. Não me contar.
– Na verdade, meus pais serão os últimos a saber. – O interrompi e riu com frieza, afastando os olhos de mim e encarando a parede a sua frente. – ... – Tentei chamar sua atenção, esticando a mão sobre o leito, tentando tocar a mão de . Primeiro ele olhou para a minha mão, depois se afastou mais.
– Você ainda está usando a aliança. – Observou, tornando a sorrir. – Isso foi algo que você também quis? O divórcio? Ou...
– Você está magoado, tem razão de estar. – Falei, sem responder sua pergunta, não queria dizer como realmente me sentia sobre o divórcio. – Deve estar confuso, chateado comigo e com como as coisas desenrolaram. Mas eu estou tentando fazer o que consigo. – Fiz uma breve pausa, atraindo seu olhar ressentido. – Faz alguns dias que e eu conversamos, só conseguimos contar ao Dom ontem à tarde. Eu sei que você esperava, que todos esperavam que eu me comportasse de um jeito específico com a separação, mas não é tão simples. Eu também me sinto culpada por isso. Eu estou confusa, perdida, culpada... me sinto péssima todos os dias. – Desabafei com a voz um pouco alterada pela emoção.

mantinha os olhos sobre mim, mas sem expressar qualquer emoção que eu reconhecesse.

– Minha vida ficou de cabeça para baixo desde que cheguei em Paradise, desde que reencontrei você. – Voltei a falar. – Eu amo o , amo a vida que construímos, nossa família, nosso filho. Ele sempre foi o meu melhor amigo. – A expressão de se transformou ao ouvir essas palavras, como se atingido por uma pontada de dor torturante. – Eu nunca o amei como amei você, ou estive apaixonada perdidamente por ele. Mas eu o amo, e eu, por quinze anos, amei a minha vida, a minha versão de mim mesma. A agora tudo se foi. O , eu mesma, eu estou completamente fora da minha zona de conforto e não sei nem mesmo quem eu sou fora dela.
– E o que você espera que eu faça? – alterou um pouco seu tom de voz, estava um pouco mais nervoso.
– Nada, . – Expirei um riso cansado. – Eu não espero que ninguém faça nada. Só...só estou cansada. Gostaria de tentar fazer alguma coisa por mim agora. De não pensar sobre como os outros se sentem, sobre como eu devia agir. Eu só queria um tempo. – Deixei que meu corpo caísse na poltrona ao lado do leito de , enfiando os dedos no cabelo, respirando cansada. – Só queria um pouco de paz para organizar minha cabeça.
– Talvez isso tudo não seja sobre você e eu. – tornou a falar depois de algum tempo em silêncio. – Talvez seja sobre você. E só você. – Seu tom ainda era ressentido e dolorido.
– Eu preciso descobrir o que sobrou de mim depois de tudo isso. – Ergui a cabeça, olhando-o nos olhos. – Preciso descobrir quem é .

não respondeu, mantinha a cabeça baixa e os olhos presos no colo. Fiquei de pé e caminhei em sua direção.

– Não vou e não posso pedir isso, mas se você tiver paciência... – Falei ao me aproximar, diminuindo a distância entre seus rostos, apoiou sua testa na minha e abraçou minha cintura.
– Eu não entendo. – Ele sussurrou.
– Eu também não. – Confidenciei. – Eu não sei como devia me sentir, mas acho que não devia me sentir como me sinto. Devia ser mais fácil agora. Mas eu só queria não pensar. Queria que o tempo parasse e que eu tivesse tempo para entender o que está acontecendo com a minha vida e comigo.
– Você tem todo o tempo que precisar, . – Disse ele, acariciando minhas costas. – Só me diga que no final de tudo isso, vou ter você.
Eu amo você, . – Declarei, unindo nossos lábios, e pela primeira vez não senti culpa, nem nenhum dos sentimentos ruins que me atormentavam nos últimos dias. E então sorri. – Nenhuma força do mundo ou tempo, ou barreiras podem mudar isso.
Eu amo você, . – Declarou. – E desde que seja para estar com você, eu espero o tempo necessário. Estive aqui por todos esses anos sem a esperança de ver você e de ter você. Agora que sei, que já vi e vivi, que já senti você ao menos um pouco, essa faísca poderia aquecer o meu coração para suportar por mais quinze anos. – Garantiu ele, beijando-me com delicadeza. – Mas eu espero que não seja tanto assim. – sorriu e eu o imitei.
– Era só o que eu precisava ouvir. – Falei eu, segurando seu rosto com as mãos. – E sentir.

me puxou para outro beijo, segurando-me com força junto a si. Pela primeira vez, despreocupados caso alguém nos visse.



18

Alguns dias depois...



Era como se estivéssemos de volta ao passado, anos dois mil ou coisa parecida, talvez até antes, anos noventa – para ser justa. Estava sentada no banco traseiro do carro de Giovanni, no banco do carona estava Matt Shay, atrás, ao meu lado, Oliver – que tinha chegado de repente naquela manhã – e Gina. Todos cantavam As Long As You Love Me do Backstreet Boys a sua própria maneira (ruim), enquanto eu assistia sorrindo. Não podia negar que realmente era divertido vê-los daquele jeito, a mãe devotada e séria senhora de família, o hippie com síndrome de Peter Pan, o executivo de negócios e o policial condecorado. Todos cantando músicas da época da adolescência como se estivéssemos em um tipo de túnel do tempo.
Aquilo também me fazia pensar sobre as palavras de , sobre todos terem seguido suas vidas e sobre o que lhe esperava após a saía do hospital. Talvez se estivesse ali, apesar dos esforços que tinha certeza que seriam feitos para que ele se sentisse em casa, ficasse deslocado. Não teria assunto para conversar, não poderia falar sobre o estresse do trabalho, sobre as últimas férias, sobre como a esposa o irritava ou sobre a escola dos filhos. Ele ainda seria o cara de vinte e poucos anos que tinha vencido um Super Bowl. Olhá-lo daquele ângulo me fazia mudar de perspectiva.
Me perguntava sobre como devia ser para ele toda aquela situação, toda a nossa situação?

– É isso. – Anunciou Giovanni. – Acho que a gente chegou. – Falou e os ocupantes do carro comemoraram, exceto eu. Estava mais curiosa do que animada.

Gina, Oliver, Vanni e Matt saíram do carro em um pulo e eu os acompanhei respeitando minha própria velocidade. Estávamos ali para acampar. Me lembrava daquele parque, era do outro lado da montanha onde havíamos ido para comemorar o aniversário de há dois anos. Onde conheci o piloto e sua esposa e quando teve sua primeira piora depois que nos reencontramos. Já fazia tanto tempo em que estava presa naquele labirinto torturante que ainda me surpreendia quando fazia as contas de quanto tempo havia se passado – ou perdido.
O chão de terra batida denunciava que no verão muitos trailers ocupavam aquela área, mas naquele dia, apesar do clima ameno, era baixa temporada e estávamos só nós. O chão que não era de terra batida, era coberto por cascalho grosso, que costumava fazer os pneus deslizarem se não tivesse cuidado. Haviam algumas mesas de madeiras espalhadas e um grande lago. Era um lago fundo e de águas escuras, quase ninguém se atrevia a nadar ali, mas era bonito e por isso atraía muita gente para sua margem.

– Parece que não mudou nada, não é? – Giovanni falou saudoso, parando ao meu lado e admirando o lago também.
– É como era dezoito anos atrás. – Sorri fechado, admirada com como o lago parecia uma fotografia.
– Nem tanto, agora tem placas dizendo que a água é imprópria para banho por causa da poluição. – Ele deu de ombros e maneou a cabeça, tentando trazer graça ao seu comentário. – Mas é bonito mesmo assim.

Eu ri e balancei a cabeça negativamente e depois baixei o olhar, encarando os pés calçados em tênis brancos demais para aquela atividade.

– Vem, vamos montar acampamento. – Ele incentivou, começando a andar. – Como nos velhos tempos.
– Vanni. – O chamei enquanto o seguia. Gina, Oliver e Matt estavam mais a frente, carregando nossas coisas, eu estava de mãos vazias.
– Não, não vai conseguir convencer ninguém a passar a noite em um hotel. – Ele negou balançando a cabeça. – Viva a experiência, . Se reconecte consigo mesma.
– Dormir em um hotel não seria mesmo má ideia, mas não é isso. – Falei e ele olhou por sobre o ombro.
– Então o que é? – Perguntou interessado e atencioso.
– Você... – Hesitei sem jeito, sentia estar insuportavelmente repetitiva. – Você disse aquilo no jogo, sobre o perguntar sobre o Ted e eu. – Vanni ergueu as sobrancelhas, como quem se prepara para se defender ou para dizer não a alguém. – Por que nunca me disse?
– Que o meu melhor amigo tinha perguntado sobre seu amigo e você? – Meu irmão parou de andar e riu abafado, sem humor. – Porque eu contaria isso naquela época?
– Você sabia que eu tinha interesse por ele.
– Assim como toda a escola, mas... eu não sei, . – Giovanni parecia nervoso, desconfortável e mal podia me olhar nos olhos. – Não é culpa minha, eu não podia imaginar.
– Vanni, eu não estou te culpando. – Falei tocando seu ombro e atraindo seu olhar outra vez. – Não é sobre isso. – Neguei com a cabeça. – Só... eu só queria tentar entender as coisas pela perspectiva do . Pra variar.
– Desculpa, eu... – Ele expirou pesadamente, balançou a cabeça e encarou o chão. – É que as vezes eu fico pensando que... se...
– Não, irmão. – Sorri, abraçando-o de lado e voltando a caminhar em direção aos outros. – Pensar e remoer as atitudes do passado são suficientes para um só dos irmãos, eu. E se ajuda, eu estou tentando parar com isso, então, não comece agora.
– Certo. – Ele sorriu.
– Enfim vocês. – Gina falou mais alto quando nos viu se aproximar. – Eu não vou montar essa barraca sozinha. – Disse apontando para mim. – , o dever te chama.

🍁


Quando terminamos de montar as barracas já passava das duas da tarde. Os rapazes tinham saído para buscar lenha e duvidávamos muito que voltariam com alguma madeira seca para fogueira. Enquanto isso Gina e eu usávamos um aquecedor a bateria para aquecer sopas prontas para mais tarde. Gina falava sem parar sobre as lembranças que tinha da época da escola, de quando passávamos um fim de semana inteiro acampando, bebendo vodca e cerveja sem que nossos pais soubessem e tendo experiências movidas pelo excesso de hormônios da juventude.
Ela se lembrava de tudo com um saudosismo quase invejável, e mais uma vez fiquei curiosa para entender como a vida tinha funcionado em Paradise sem mim. Mais especificamente a vida de uma certa pessoa.

– Como foi depois da escola? – Perguntei interrompendo seu monólogo e ela me olhou como se surpresa por eu estar a escutando. – Digo, vocês continuaram se vendo, fazendo coisas juntos ou...
– Tiveram alguns encontros da nossa turma. – Ela lembrou com um sorriso leve nos lábios e se juntou a mim, sentando-se sobre um pequeno tronco. – Mas cada um seguiu para um lado. – Gina deu de ombros pensativa. – Mas aqui é Paradise, não há muita gente nova, então... Ted e Giovanni começaram a andar juntos. Não sei como se conheceram melhor, se trabalhavam juntos ou o quê. Só sei que sempre que encontrava o Ted, ele tinha várias histórias novas e elas envolviam seu irmão.
– Isso é tão inesperado... – Sorri e ela me imitou, assentindo com a cabeça.
– E aí veio a Natalie e seu irmão também conheceu a Sue... – Gina parecia pensar. – Eu era a única garota, estava noiva e não conseguia vê-los com muita frequência ou participar dos seus assuntos. Acho que por isso gosto tanto da ideia de ter você de volta aqui. – Ela piscou e apertou meu joelho com carinho, eu sorri. – E assim a vida seguiu. – Ela suspirou. – Depois os casamentos, os filhos na escola... sempre nos encontrávamos nas feiras, nos festivais na cidade ou nos jogos do time da escola. – Gina riu e se levantou, dando alguma atenção as sopas.
– Mas e antes? – Tentei retomar o assunto. – Por que algumas pessoas não se casaram, não é? Como o Matt ou o meu irmão...
– Ou o . – Ela completou e assim que disse, dirigiu a mim um olhar estreito que sabia ter me pego de guarda baixa. Eu engoli em seco e permanecei imóvel.
– Não sei do que... – Tentei desconversar, balançando a cabeça devagar.
, por favor. – Gina rolou os olhos e sorriu, voltando a se sentar ao meu lado. – Eu já sei que você tem estado com há décadas. – Ela contou e eu prendi a respiração. – Paradise não é Nova York, é uma cidade pequena. E é muito fácil virar notícia quando uma das personalidades mais famosas do estado, que está no hospital sem muitas visitas há anos, começa a receber visitas da filha perdida de Paradise e que tem alguma fama também.

Passei a língua na bochecha e baixei a cabeça, estava envergonhada e chocada. Nunca tinha se passado pela minha cabeça aquela questão, que devia ter alguma fama e que eu, de forma diferente, também era conhecida. Sair da cidade grande e me mudar para Paradise me deixou sem perspectiva. Em minha compreensão, eu era conhecida por todos em Paradise não por ser a , chef de cozinha com estrelas Michelin, mas sim por ser a , nascida e criada naquelas praias.

– E como disse a você no dia que nos reencontramos... – Gina voltou a se aproximar, ostentando um olhar empático no rosto. – Minha prima trabalha no hospital, é conhecido... eu tenho acesso fácil a fofocas sobre ele.
– Eu não sei o que dizer. – Neguei com a cabeça, ainda sem conseguir encará-la.
– Não precisa dizer nada. – Gina deu de ombros, se sentando e apoiando o peso do tronco nos cotovelos, apoiados aos joelhos. – Mas se quer perguntar sobre ele, é só perguntar. Somos amigas, não somos? – Ela sorriu de modo doce e eu assenti fraco.
– Eu só... só fiquei curiosa. – Não era uma completa mentira.
– Bem, o foi para a faculdade depois da escola. – Gina suspirou e pareceu tentar se lembrar de toda informação que tinha sobre ele. – Acho que depois que ele saiu da escola não o vi por um tempão. Soube que depois que ele tinha assinado com o time da cidade e me lembro de como era insuportável o trânsito em todo dia de jogo. – Ela rolou os olhos, se divertindo com as recordações. – Se lembra das placas com o rosto dele por toda a cidade? – Eu assenti, animada com a história, nunca tinha ouvido alguém contar sobre daquele jeito antes. – Então, elas se multiplicaram pelo estado. Todo dia de jogo na cidade, o estado inteiro parecia vir para cá. Se você tivesse um restaurante aqui na época, ficaria rica. – Ela gargalhou.
– E depois? – A incentivei, sem pensar sobre estar dando mais bandeira do que devia ou não.
– Bem, isso durou uns bons anos. – Lembrou-se sorrindo. – Meu marido sempre ia aos jogos, eu até fui em alguns também. Oliver, Giovanni, Ted e Matt também. Sempre via os cinco pela cidade quando estava por aqui, mas era raro, ele já estava famoso e importante e rico.
– Sempre me choca como não fiquei sabendo a respeito de nada disso. – Eu balancei a cabeça, incrédula em como o destino podia ser tão caprichoso ou eu tão desatenta. – Como nunca nos esbarramos, como eu nunca o vi depois de sair da cidade.
– Você nunca foi do tipo que acompanha esportes, então... – Gina deu de ombros. – Lembro que as pessoas da escola sempre conversavam sobre o casamento dele, sobre como esperavam ser convidadas. Eu inclusive. – Ela riu pelo nariz. – Na nossa cabeça, seria a chance de conhecer famosos.
– Mas o casamento não aconteceu. – Completei eu.
– É, depois de algum tempo, sendo sincera, todo mundo duvidava que fosse acontecer. – Ela balançou os ombros e arqueou as sobrancelhas. – E aí, acho que uns anos depois dele ganhar o Super Bowl, de repente ele ficou doente. Lembro que foi uma super comoção, todos ficaram tristes, pessoas choraram no estádio quando ele anunciou que não jogaria mais. – Gina adotou um tom sombrio.
– Deve ter sido um momento horrível. – Senti arrepios ao imaginar a cena, pensando em como tudo devia ter sido sofrido e aterrorizante para . Enfrentar o fim prematuro de uma carreira brilhante, principalmente por um motivo tão grave.
– E foi, mas depois passou. – Gina ficou de pé outra vez para conferir as sopas. – Depois ele voltou a ser o , de Paradise, da escola. A aura mágica sumiu aos poucos, até desaparecer completamente.
– É, eu confesso que é difícil vê-lo assim. – Comentei pensando alto. – Como o famoso jogador de futebol. Acho que sempre vou vê-lo como o cara da escola e isso é estranho. É como se eu conhecesse e fosse... – Me interrompi no momento em que percebi o que estava prestes a fazer. – E fosse amiga do adolescente, não da pessoa que ele se tornou.
– Isso é bobagem. – Gina sacudiu uma das mãos em minha direção. – Não é o mesmo caso, mas é bobagem. Eu por exemplo, sempre vi e vou ver meu esposo como o turista perdido que esbarrou em mim na praia e derrubou todo o meu sorvete. Eu olho para ele hoje, adulto, perdendo cabelos e com algumas rugas, mas só consigo ver o garoto por quem me apaixonei anos atrás. – Ela contou com um sorriso no rosto. – Você. Você por exemplo, . – Gina se aproximou e apertou meus ombros, olhando em meus olhos. – Eu não vejo a ranzinza, séria e antissocial, famosa chef de cozinha quando olho para você. Eu vejo a , a minha amiga intensa e que queria aproveitar tudo que a vida lhe podia oferecer, mesmo que tivesse consequências ruins. – Eu sorri.
– Nem eu consigo me lembrar dessa mais. – Confidenciei a olhando e meditando suas palavras.
– Pois deveria. – Gina piscou e me empurrou levemente. – Ela era bem animada e boa de conviver. – Implicou, inclinando-se para retirar as sopas do aquecedor enquanto eu ria e sacudia a cabeça. – Sabe do que acabo de me lembrar? Disse que não me lembrava quando vi pela última vez desde a formatura dele, mas me lembro sim. – Ela começou a falar sem pausas e de longe consegui ver a aproximação de meus irmãos e Matt. – Me lembrou quando ele chegou naquele bar, naquele que a gente adorava ir. Ele parecia sem jeito, perdido, talvez por estar de volta a cidade depois de se formar. Ele estava usando uma camisa de flanela azul e estava chateado.
– Bar? Que bar? – Eu ri perdida e confusa nas palavras de Gina, já podia ouvir a risada alta e inconfundível de Matt.
– O bar. – Ela ficou de pé e me encarou. – Na sua despedida. No bar, na sua festa de despedida que eu e Ted organizamos. Ele estava lá.

As palavras de Gina caíram como uma bomba aos meus pés.
Infelizmente não pude reagir ou perguntar mais, meus irmãos e Matt chegaram como uma avalanche de risadas e histórias sobre como tinha sido o processo de cortar lenha.
Então, ele tinha ido a aquele bar? Por que ele tinha ido? Por que ele estava chateado? Por que estava naquele bar e por que infernos eu não o tinha visto?
Por que nossas histórias não se encontraram ali?

🍁


Como se novamente de volta a nossa adolescência, estávamos sentados em volta a uma pequena fogueira, queimando marshmallows e rindo de qualquer aleatoriedade que saía da boca de Matthew Shay sem ordem ou sentido. Para mim já era o suficiente, as interações sociais, a contação de histórias. Não era apenas porque estava morrendo de vontade de voltar a cidade, ir ao hospital e perguntar a porque ele tinha ido naquele bar naquela noite. Estava cansada de rir, formigas me incomodavam e estava frio, minha testa doía.
Certamente acampar depois dos trinta não era uma ideia tão boa quanto era acampar aos vinte. Ao mesmo tempo, me forçava a parecer feliz e sociável porque sabia que o motivo daquela pequena viagem era eu. Giovanni não deixaria Sue com sua pequena filhinha para se embrenhar no mato porque amava fazer isso, nem Gina deixaria os filhos e o marido porque acampar era sua paixão. Talvez Oliver e Matt, mas Oliver era um andarilho sem casa, Matt era atlético, policial, devia estar acostumado com aquilo.
De qualquer modo, apesar da minha bateria social estar esgotada, tentava rir sempre e manter contato visual, acenava com a cabeça e até tentava repetir algumas piadas para que tivessem a sensação de que eu estava realmente participando do assunto.
Em um breve momento, quando Matt se afastou para urinar nas árvores, Gina e Oliver lutavam para espetar mais marshmallows nos palitos, Vanni se aproximou de mim e se sentou ao meu lado. Sorri fechado e ergui as sobrancelhas, numa espécie de cumprimento.

– Fiquei pensando sobre o que a gente conversou. – Ele começou a falar. Tinha os pés no chão e estava sentado sob o saco de dormir, ao meu lado, separou os joelhos e os abraçou, encarando a fogueira.
– Que parte?
– Acho que eu me sinto um pouco culpado, talvez pudesse ter colocado vocês dois juntos quando a gente ainda era... livre. – Ele suspirou.
– Não tinha como você saber. – Eu dei de ombros, desviando o olhar para os meus pés. – Eu tinha uma queda por ele, mas ele estava namorando, depois noivo...– Eu ri, tentando amenizar o tom sério de meu irmão. – A responsabilidade sobre ele e eu é apenas nossa.
– Mas... as vezes ele dava... – Isso me chamou atenção e o olhei depressa, com olhos um pouco arregalados, mais do que o indicado para quem quer ser sutil. – Dava uns sinais, umas brincadeiras.
– Devia ser só umas brincadeiras, implicância de amigos. – Falei eu, mas naquele ponto não acreditava nas minhas palavras. – Essa coisa de namorar a irmã.
– Talvez. – Giovanni projetou o lábio inferior, pensativo.
– Você sabe porque ele foi no bar, na noite da festa de despedida que o Ted e a Gina organizaram para mim? – Perguntei de repente, pegando Giovanni de surpresa, ele estreitou o olhar e uniu as sobrancelhas.
– Isso já faz tanto tempo, ... – Ele negou com a cabeça e ergueu os ombros. – Desculpa, mas nem me lembrava que tinha ido a essa festa.
– Tudo bem. – Sorri triste e balancei a cabeça positivamente.
– Mas eu lembro de uma vez, quando ele foi jogar em Nova York pela primeira vez. – Giovanni riu pelo nariz e negou com a cabeça, depois fechou os olhos e inclinou a cabeça. – Ele estava empolgado e feliz com o contrato, veio em casa me visitar e contar que jogaria em Nova York. – Voltei a olhá-lo com curiosidade. – Ele perguntou se você ainda estava por lá, que ele talvez fosse precisar de uma guia. Lembro da expressão dele, sorrindo como um safado e arqueando as sobrancelhas.
– Essa expressão devia ser patenteada. – Eu ri, me divertindo realmente.
– Ele sempre fazia perguntas sobre você. – Vanni negou com a cabeça outra vez e riu abafado. – Quando o Dom nasceu, estávamos jogando golfe e ele estava de férias. Recebi uma foto dele e acabei mostrando ao . – Giovanni ergueu os olhos e passou a encarar as copas das árvores, como se nelas estivesse sendo exibido algum filme ou coisa do gênero. – Ele falou que era bonito, só uma pena não ser filho dele, mas que ainda havia tempo. Eu sempre levei isso como uma brincadeira, uma implicância... mas talvez não fosse. – Giovanni me olhou, de modo sugestivo demais para não atravessar minha alma.
– Talvez. – Eu ergui os ombros e sorri apertando os lábios, um sorriso de lamento. – Mas não dá pra mudar o passado, não é?

Giovanni não respondeu, ficamos em silêncio encarando a fogueira. Gina agora conversava com Matt sobre o trabalho na polícia e Oliver tecia comentários sobre como funcionavam as leis nos países que costumava visitar, isso nos dava um pouco de paz. A mim e Giovanni. Por isso decidi recomeçar.

– Eu queria saber mais sobre ele. – Falei eu, atraindo a atenção do meu irmão mais velho. – Queria saber como ele era, como foi a vida dele. Queria tentar entender como tudo isso tem sido para ele também. Acho que fiquei tão presa no vórtice que é a minha vida, que me esqueci de tentar me colocar no lugar do outro principal interessado. – Sorri fraco e Giovanni assentiu.
– Ah, ... o ... – Ele sorriu, tinha o rosto mais sereno e tranquilo. – era o que você deve se lembrar da época da escola. Ele era quente, um sol, todo mundo amava ele. Acho que por ser tão bom e talentoso, mas sempre muito humilde, generoso e gentil, por isso todo mundo amava ele. – Giovanni fechou a expressão outra vez. – Por isso é tão ruim que ele tenha ficado tanto tempo só recebendo visitas minhas e do Matt.
– Eu concordo.
– O cresceu na liga rápido. – Giovanni voltou a falar e o brilho nos olhos retomou seu lugar. – Ele chamava atenção por ser bom, mas também pela postura madura. Era concentrado, durante os jogos ele não demonstrava nenhuma emoção, era impassível. Mas fora, nas entrevistas ele sempre tinha aquele sorriso torto, o jeito tímido... era só o . – Vanni apertou minha perna e sorriu. – Ele sempre foi e quis ser só o . Mesmo famoso, mesmo com muita grana, mesmo tendo todo o destaque... continuava valorizando as coisas simples.
– Fico pensando sobre como deve ser pra ele, essa situação toda. – Eu disse e Giovanni ouviu com atenção. – Do meu ponto de vista e do , eu sei. Mas do dele, eu sequer sabia sobre o passado dele. Os anos que fiquei fora são páginas em branco. Não sei quem ele se tornou para entender como tudo isso atravessou o de hoje, do presente.
– Não sei se sou a melhor pessoa para falar disso. – Giovanni ergueu um ombro. – Sou seu irmão, adoro o , amo o ... mas, o sempre foi uma pessoa simples, direta e que achava que a vida era simples. Se ele queria uma coisa, ele queria aquela coisa, sem complicação. Ele não era do tipo que usa pessoas, ou que se diverte com superficialidade. Ele voltava para cá nas férias, saía com os mesmos amigos, nunca ouvi qualquer coisa sobre outra mulher que não fosse a Sarah. – Ele lembrou e em seguida riu pelo nariz. – A não ser você, é claro.
– Como acha que seria se ele não estivesse doente, quando eu voltei pra cidade? – Perguntei e Giovanni refletiu por algum tempo, em silêncio.
– Acho que vocês se encontrariam por aí, a cidade é pequena. – Falou pensativo. – Você tem um restaurante novo, então ele viria para cá, com ou sem a Sarah. Ou nas festas de família ou qualquer evento assim. Provavelmente ele não falaria com você, a menos que fosse obrigado. Mas ia surgir despretensiosamente em cada lugar que estivéssemos juntos. – Giovanni riu. – Talvez ia tentar mostrar a você que é bom, ou se aproximando do Dom, ou oferecendo ajuda em alguma coisa, ou tentando desbancar o em alguma coisa.
– Ele meio que já fez isso. – Contei e Giovanni me encarou curioso. – Entre o e o há uma nuvem pesada e cheia de raios e trovões. Eles se provocam gratuitamente desde o primeiro dia em que se conheceram, como se fossem dois adolescentes de times rivais. – Enquanto eu falava, o sorriso nos lábios de Giovanni aumentava. – Você sente o cheiro da testosterona no ar.
– Isso me choca um pouco. – Giovanni comentou, digerindo o que eu havia dito, mas depois sacudiu a cabeça. – Na verdade não choca. É a cara dele fazer isso.
– O quê? Ele é competitivo? – Arqueei uma sobrancelha.
– Ele quer você, você quer ele, mas o está no caminho. – Vanni deu de ombros. – é um cara e tanto, difícil não se intimidar. Só mesmo sendo alguém como , com o olhar dele para o mundo. Fora que, a gente é homem, é assim. – Giovanni riu e eu o empurrei pelo ombro. – Eu não sei como deve ser para ele isso, mas acho que talvez, depois de tudo que perdeu, ter a hipótese de uma vida com você seja o que o curou.
– Como assim?
não se importou com a grana ou com nada disso, ele não liga muito para coisas. – Ele tornou a falar com o olhar perdido nas árvores. – Ele valoriza momentos, pessoas. Ele perdeu muita gente, perdeu planos de vida, perdeu os sonhos, perdeu o que ele fazia e que o fazia feliz, que era jogar. Perdeu a chance de ser livre e de viver a vida, enclausurado naquele hospital por anos. – Giovanni tinha os olhos úmidos. – Quando o vi pela última vez, antes de você chegar, ele parecia pronto para ir. Eu achei que era uma boa ideia também. Me lembro de ir até lá nos últimos meses e não o ver mais. Olhava em seus olhos, mas o não estava ali, não parecia estar. Era quase como um corpo sem vida.

As palavras de meu irmão me trouxeram muito peso ao coração, comecei a sentir a respiração ficar mais curta e mais dificultosa.

– Na última vez, falei que ele sempre seria meu irmão e que ele podia ir. Que podia descansar. – Giovanni levou as costas de uma das mãos ao rosto, secando uma lágrima rápida que teimou em escapulir. – Eu nem... – Ele riu sem humor, um riso embargado. – Que droga... – Xingou baixo enquanto ria e tentava conter as lágrimas teimosas. – É só que... eu deixei ele lá e fui para casa, esperando a notícia que pensei que chegaria a qualquer hora. E lembro de me amaldiçoar por não ter ido vê-lo o tanto quando deveria, por não ter coragem de estar lá com ele. – Giovanni riu com amargura outra vez. – Pelo menos acho que ele não se lembra dessa última parte, não é?

De súbito de lembrei das palavras de enquanto caminhávamos na beira do lago, do lado de fora do hospital. As palavras dele sobre se lembrar de tudo no dia em que nos encontramos. Se ele se lembrava daquele dia, quais eram as chances de não se lembrar desse dia também?

– Não é? – Vanni parecia buscar pela minha confirmação e repetiu a pergunta, já que eu não a tinha respondido da primeira vez.
– Acho que não. – Menti, sorrindo fraco. – Acho que não. – Assenti e sorri de canto, abraçando meu irmão, que ainda secava algumas lágrimas.

🍁


No domingo de manhã já estávamos todos de volta a Paradise. A noite fora insuportável e todos, menos Oliver, estávamos de péssimo humor pela manhã. Nenhum de nós havia dormido e estava mais frio do que o normal para aquela época do ano, fim de setembro. No carro havíamos feito um juramento, só voltaríamos a fazer aquilo se chalés estivessem no pacote, e os chalés seriam inspecionados e escolhidos por Gina e eu, para garantir que nada semelhante a aquilo acontecesse novamente. Todos estavam de acordo.
No carro até conseguimos rir de nossa situação desastrosa, o que era bom.
Mas ao contrário de meus amigos, não eram só as condições insalubres daquele acampamento que me tiraram o sono. Em minha cabeça, naquela noite, só havia um rosto e milhares de perguntas que eu ansiava em fazer a ele. Não que fosse raro ou estranho a mim o fato de ter em minha cabeça o tempo todo. Mas graças a Gina e Giovanni, agora eu estava em posse de várias informações novas que atiçavam ainda mais minha curiosidade.
Por isso, quando meu irmão me deixou em casa naquela manhã, sabia que Dom estava com meus pais, seguro. E assim meu plano era apenas um, me trocar e ir ao hospital, precisava vê-lo mais que tudo no mundo.
ainda não havia se mudado e quando cheguei o cumprimentei rapidamente, ele parecia organizar suas coisas. Coisas antigas que estavam no closet esquecidas há tempos, que já haviam sido esquecidas em Nova York e que apenas mudaram de lugar, mas que permaneciam intocadas, em caixas lotadas de poeira e todo tipo de ácaro Nova Yorquino.
Deixei-o ali e me apressei para o banho, e quando saí não o encontrei e agradeci mentalmente por isso. Ainda era difícil vê-lo por aí, não queria ter que explicar para onde ia com tanta pressa após passar a noite acordada em um acampamento malsucedido. Mas o destino é galopante, como sempre.
Assim que passei da soleira da porta e alcancei a varanda, acenou e veio em minha direção. Ele estava prestes a cruzar o jardim, em direção a sua nova casa, mas achou que devia voltar e me cumprimentar, ou o que quer que quisesse fazer. Eu estava impaciente e tinha um terrível problema, uma grande dificuldade para esconder ou disfarçar emoções negativas.

– Vai sair? – Ele sorriu ao se aproximar.
– É, preciso resolver uma coisa e depois pegar o Dom na casa dos meus pais. – Falei rápido, balançando as chaves do carro na mão, evidenciando minha pressa.
– Tá. – assentiu, ele tinha uma das caixas de poeira e ácaros nas mãos e sorria. – Eu achei umas coisas, acho que pode querer ver. São lembranças legais. Queria ficar com essas, se não se importar. – Ele ergueu um ombro. – Queria te mostrar para ver se não quer algo. Acho que podemos dividir essa herança. – Ele riu balançando a caixa e a poeira palpável se moveu no ar.
– Pode ficar, eu não vou querer nada. – Estiquei uma mão, afastando e sua caixa tóxica. – Se não mexi nela nos últimos cinco anos, é porque não tem nada aí que seja mesmo relevante. – Neguei com a cabeça e gargalhou, jogando a cabeça para trás.
– Não seja tão ranzinza. – Ele falou, se divertindo. Alegre demais para um recém divorciado. – São lembranças legais. Olha só. – colocou a caixa sobre uma cadeira de balanço que tínhamos na varanda, bem sobre o estofado branco. Nesse ponto não tinha certeza se minha irritação era devido a privação de sono, estar me impedindo de sair, ou pelo estofado da minha cadeira. – Tem muita coisa legal aqui. – Ele começou a remexer a caixa como se fosse um tesouro. – Uma conta com o nosso primeiro endereço. – A medida com que falava, ele erguia o item. – O ticket de estacionamento do nosso primeiro encontro. O ingresso do jogo que não fomos porque você entrou em trabalho de parto. Uma foto minha no Disney World, seu boletim da faculdade, um panfleto da inauguração de um dos restaurantes que você trabalhou, o ingresso para outro jogo que não fomos. – riu ao olhar para o segundo ingresso. – Olha só, do mesmo time. A gente perdia muito dinheiro com ingressos de coisas que não íamos.
– Isso porque você é um comprador compulsivo de ingressos de jogos de hockey. – Rolei os olhos, me divertindo com aquele momento e até achando curioso o tanto de pequenas lembranças que podiam caber dentro daquela caixa empoeirada.
– Mas esses nem mesmo são de hockey. – sacudiu os ingressos diante meus olhos. – Eu não compraria nunca ingressos para ver Paradise Sharks contra os Giants. – negou com a cabeça, procurando os outros ingressos. – Ou para ver o Paradise Sharks de novo, contra os Jets? – Eu neguei com a cabeça e cruzei os braços sobre o peito. – E olha que curioso, dois jogos contra esse Paradise Sharks. Eu aposto que quem comprou esses ingressos não foi eu. – provocou sorrindo.
– Claro, o que eu mais fazia em Nova York era visitar meu passado. – Rolei os olhos enquanto ria. Mas ao pronunciar a última palavra, uma onda estranha me abateu. – Espera. O que disse? Qual o nome do time?
– Paradise Sharks. – repetiu, lendo os ingressos. – Por que nós compramos isso? E o pior, porque guardamos isso se nenhum e nós gosta de futebol? – Tomei os ingressos das mãos de , precisava ver com meus próprios olhos para acreditar. – O primeiro eu sei, foi quando Dom nasceu, por isso não fomos, mas não me lembro de quem foi a ideia horrível de ir ao jogo...
– Era o Super Bowl. – Falei congelada, incrédula com o que estava vendo, com o que o destino estava colocando diante meus olhos. – Era a final. O time de Paradise na final, na final do Super Bowl. – Dizia eu para mim mesma, enquanto assistia.
– Agora faz um pouco de sentido, porque os shows na final são sempre ótimos. – Ele deu de ombros e voltou a remexer a caixa.
– Eu ia. – Continuei a falar baixinho comigo mesma, estava tão chocada com aquela descoberta, incrédula e com um pouco de raiva, ao mesmo tempo que uma sensação estranha de alívio. – Eu ia. Íamos estar lá, na final. Eu ia ver. – Rapidamente erguei o olhar e encarei . – O outro jogo. Por que não fomos? – Perguntei com urgência.
– Não sei, não me lembro. – Ele me encarou confuso. – Antes de agora, nem me lembrava de já ter comprado ingressos para futebol na vida.
– Tenta se lembrar, sua memória é ótima. – Pedi e comecei a olhar os ingressos manchados pelo tempo. – Esse jogo aconteceu dois anos depois do Dom nascer. Dois anos depois do primeiro.
– Não sei, . – sorriu sem jeito. – Realmente não sei, já faz muito tempo. Não deve ter sido nada importante, já que não nos lembramos. Talvez a babá não pôde ir. – Ele deu de ombros. – Por que se importar com isso?
– Eu só... – Expirei, como podia contar a ele sobre o que aquilo realmente se tratava? – Eu só queria saber o que aconteceu em dois de novembro de dois mil e quatro. – Suspirei, desistindo. tinha razão, era muito tempo para se lembrar de algo que nós sequer valorizávamos na época.
– Espera. – endireitou as costas e olhou para mim, tinha um dos olhos fechados, pensativos. – Não foi quando saiu o resultado das eleições? O Bush foi reeleito?
– Não sei, foi? – Eu estava confusa. – Mas o que isso tem a ver com o jogo?
– A gente resolveu sair da cidade, ir para o Canadá. – lembrou, sorrindo animado por ter conseguido solucionar o enigma. – O prédio era lotado de fanáticos políticos e nós queríamos passar uns dias de paz. Você estava sobrecarregada com o trabalho e o Dom tinha acabado de passar alguns dias no hospital por causa de alguma virose maluca.
– Claro. – Tudo se iluminou de repente. – Me lembro de quando saímos do hospital, as pessoas na rua, as confusões... – Aos poucos todas as peças daquele quebra-cabeças interminável pareciam voltar aos seus lugares. – Como eu pude me esquecer?
– Não é tão grave esquecer o dia exato da alta de um filho do hospital. – riu, voltando a olhar para a caixa.
– Eu mudei de ideia, quero esses ingressos. – Falei rápido e ele riu.
– Viu, só? Eu disse que ia querer algo. – maneou a cabeça. – E ainda tem muito mais disso por aí.
– É só isso. – Neguei abraçando aos quatro pedaços de papeis manchados e quase apagados pelo tempo. – Eu só preciso disso. – assentiu e deu de ombros. Parecia animado demais com a caixa para notar meu estado, tão fora do centro. – Eu tenho que ir agora. – Não dei chance a ele de se despedir.
– Bom dia para você também. – Ele acenou da varanda, confuso com a minha pressa.

Não havia tempo para explicar ou justificar. Não havia vontade para estar em outro lugar a não ser naquele quarto, com o homem que não me saia da cabeça há mais de vinte anos.

🍁


– Por que você foi ao bar naquela noite? – Foi a primeira coisa que perguntei ao entrar no quarto de . – Na noite da minha festa de despedida.

uniu as sobrancelhas e tinha a boca entreaberta, parecia tão surpreso por minha chegada repentina e entrada sem avisar, quanto pela pergunta. Ele piscou duas vezes e balançou a cabeça, atordoado, estava de costas para a porta e me encarava por sobre o ombro, estava de frente para a janela. Vestia moletom e o cabelo estava grande, um pouco despenteado, a barba por fazer.

– Oi, . – Ele saudou em tom tanto repreensivo pelo modo com que eu havia entrado em seu quarto, quanto assustado.
– Só, por favor... – Me aproximei, ignorando a expressão perdida dele, colocando-me a sua frente. – Só me responda. Por que estava lá? – balançou a cabeça e repuxou o lábio superior, ainda mais confuso. – Ted e Gina organizaram uma festa no bar quando eu fui me mudar para Nova York. Foi quando você voltou a cidade, depois da formatura. Você estava usando uma camisa de flanela azul e... – Eu estava sem fôlego, falando rápido. apertou meu braço, tentando me trazer de volta ao meu centro.
– Por que está perguntando sobre isso? – Ele tentou me olhar nos olhos e perguntou falando baixo, com voz calma.
– Você não se lembra? – Meus ombros caíram, talvez tivesse construído um pequeno castelo de expectativas durante a noite e o trajeto até ali. Imaginando e fantasiando mais do que o adequado, ou saudável. – No bar, naquela noite. Na noite que fui embora, você esteve lá. Não esteve? Não se lembra. – O olhar inexpressivo de me fez cair em mim e expirei frustrada. – Não se lembra, não é?

umedeceu os lábios e me olhou em silêncio, sentia seu olhar em mim enquanto eu varria o chão com os olhos, tentando entender o que estava acontecendo dentro da minha cabeça.

– Lembro. – admitiu sério e quando o olhei, ele apertou os lábios e desviou o olhar. – Eu me lembro sim.
– Não entendo... – Balancei a cabeça devagar, agora era eu quem estava perdida. – Por que nunca me disse? Por que estava lá?
– O que isso muda? – Ele perguntou erguendo um ombro e afastando-se um pouco, me dando as costas. – Por que está falando nisso agora?
– Porque importa para mim. – Eu respondi, seguindo-o e assistindo se servir com um pouco de água. – Por que não quer me responder? Por que estava lá naquela noite?

apoiou as mãos na janela e inclinou a cabeça, esticando a coluna.

. – Chamei-o, não me lembrava de usar daquele tom com ele, mais sério e direto. Pelo modo lento com que se endireitou e evitou me olhar, percebi que havia algo errado. – . Por favor.
– Não é nada. – Ele deu de ombros e se afastou, voltando para junto de seu leito. – Só não...eu sei lá, ... – Ele expirou pesadamente. – Não tinha motivos para falar disso. Tudo já é confuso e ruim o bastante.
– Por que? – O segui, aproximando-me dele, ficando ao seu lado, perto do leito. – E por que estava lá naquela noite? – Perguntei outra vez e fechou os olhos antes de responder. Tentei atrair sua atenção, mostrar que era eu quem estava ali, apertando seu ombro com carinho.
– Estava na cidade, por causa das férias da faculdade. – Ele começou a falar e inclinou a cabeça, encarando os lençóis brancos, parecia incapaz de me olhar e aquilo era muito estranho se tratando de e eu. – Queria sair com Giovanni e Matt, mas eles tinham um compromisso. A surpresa de despedia. – riu fraco ao pronunciar a última frase. – Eu... eu pensei que... eu queria ver você antes. – riu outra vez, de lado, envergonhado e sem me encarar, um pouco dolorido talvez. – Queria ver, talvez falar um oi, me apresentar, antes que fosse embora. – Ele fechou as mãos em punho e com uma deu socos leves no colchão, como se para passar o tempo. – Mas eu demorei, não tive coragem de sair do carro e... quando cheguei no bar você já tinha ido. – Ele suspirou e sorriu fraco. – Eu queria tentar, só tentar uma vez. Se não desse em nada, você já ia se mudar mesmo, então seu irmão não ficaria muito bravo.
– Eu... – Balancei a cabeça negativamente outra vez, estava confusa. – Por que nunca me disse? Mesmo depois de tudo que já falei e acusei você? Por que nunca me contou?
– Porque você vive falando sobre erros do passado, sobre as escolhas. – girou seu corpo em minha direção, agora me olhava nos olhos, mas parecia nervoso, chateado. Talvez nervoso por eu ter descoberto sobre aquela parte de nossas vidas. – Sobre o que podia ou não ter sido. Não queria que soubesse que desperdicei uma chance. Eu me odeio por não ter ido até lá, não ter entrado naquele maldito bar. Não queria que soubesse que eu... de alguma forma...

Ele não terminou.
expirou pesadamente e baixou a cabeça, encarando o chão e então se afastou. Não fazia sentido para mim que ele escondesse aquilo por aquele motivo, principalmente quando no passado o acusei injustamente de que se Sarah ainda estivesse em sua vida, as coisas seriam diferentes. Tinha razão, pensar nas minhas escolhas erradas havia me consumido por muito tempo, mas talvez fosse bom que eu soubesse de algo assim da parte dele. Ou, só serviria para alimentar mais meus lamentos. De qualquer forma, não entendia sua omissão quanto a aqueles fatos.
Antes de refazer a pergunta que estava em minha mente, porque ainda não estava satisfeita, joguei sobre o leito os dois pares de ingressos que trazia nos bolsos.
apertou os olhos rapidamente, surpreso, olhou dos ingressos para mim e depois de novo para os ingressos, até enfim os recolher e trazer para perto dos olhos. Quando ele os leu, era como se não conseguisse acreditar nas informações contidas ali, ele passava de um para o outro, com olhar concentrado e estreito, o vinco entre as sobrancelhas e os lábios sutilmente projetados. Ele tinha essa expressão quando estava contrariado, confuso, pensativo, ou irritado em silêncio.

– O que é isso? – Indagou sério.
os encontrou quando estava separando as coisas para sua mudança. – Respondi, estávamos tensos e eu não entendia a razão para estarmos assim. – Todas as oportunidades durante os anos da escola e em Paradise. – Comecei a lista e me ouvia com olhar arisco, desconfiado. – Você foi ao bar naquela noite. Por duas vezes e eu compramos ingressos para assistir você jogar e não fomos. Sem mencionar os quase encontros que ainda não sabemos que aconteceram.
– Aonde quer chegar? – Ele indagou me olhando nos olhos, parecia um pouco preocupado agora, talvez por causa do meu tom.
– Aqui. – Respondi tocando o leito. – Aqui. Por que aqui? Por que depois de todos esses anos, aqui?
– Porque você precisava me salvar. – Ele respondeu, olhando-me nos olhos.
– Eu estou cansada de pensar. – Falei eu. – Não quero chorar pelas estradas em que não andamos, não quero chorar por sinais não vistos.
– Era para ser. – segurou meu rosto com as mãos e olhou em meus olhos. – Devia ser assim.

Entendendo metade do caminho, vendo a luz iluminar onde antes havia uma escuridão assustadora e vertiginosa, eu o beijei. Beijei por todos os encontros que não tinham acontecido, por todas as oportunidades perdidas, por todas as vezes em que havíamos fugido do destino, ou que nossas escolhas tinham nos desviado um do outro.

🎵 Dê play na música aqui, se necessário coloque para repetir. Beirut - Elephant Gun🎵


Sentia a mão quente de desenhar pequenos círculos sobre meu ombro, estávamos deitados em seu leito. Depois de nos beijarmos outra vez, ficamos em silêncio e nos deitamos juntos. Havia muito para se pensar e estava construindo a crença de que pensava melhor se tinha os braços de em torno de mim. Queria perguntar e conversar sobre muitas coisas com ele, mas também não queria perder a conexão, perder o silêncio confortável. Temia que ele se distanciasse como da primeira vez.

– Ainda está acordada? – perguntou depois de respirar fundo, indo contra meu silencioso pacto.
– Estou, só estou... refletindo. – Falei, aninhando-me a ele mais confortavelmente.
– Sobre o quê?
– Tenho muitas coisas na cabeça agora, muito o que pensar e digerir. – Respondi fechando os olhos, aproveitando o calor de seu corpo.
– É nessa parte que você diz que precisa de um tempo e vai embora de novo? – A pergunta de e seu riso que tentou disfarçar o que parecia ser ressentimento me fizeram erguer o tronco e o encarar. Ele não piscou, nem mudou de expressão. – Só quero saber para me preparar.
– Por que achou que era uma boa ideia esconder de mim sobre a noite no bar? – Eu quis saber, estreitando um pouco o olhar.
– Não escondi, . – se sentou, mas manteve o contato visual. – Tem muita coisa sobre o que já aconteceu e que você não sabe. Isso era só mais uma delas.
– Por que hesitou em me responder quando perguntei, então? – Eu insisti. nunca tinha tido aquela postura antes, estava curiosa sobre o que a tinha despertado.
– Já disse a você. – Ele deixou o tronco cair novamente e fechou os olhos. – Eu desperdicei a chance, não queria que ficasse triste ou que ficasse...
– Você não está vendo o que aconteceu, não é? – Sorri fraco, sem humor e abriu os olhos e me encarou perdido. – Parece que não entendeu o que tudo isso diz. Porque eu perguntei, ou porque trouxe esses ingressos para te mostrar.
– E por que foi? – se sentou outra vez.
– Nós já podíamos ter nos encontrado antes. No jogo, no primeiro, eu estava grávida e não fomos porque foi quando Dom nasceu. – Comecei a contar, parecia realmente intrigado. – Se eu fosse para aquele jogo, se te visse com Sarah, disputando e vencendo as finais, comemorando com a sua noiva...
– Você ia ter certeza, mais uma vez. – completou, parecendo enfim entender.
– Provavelmente iria encontrar um país diferente para viver. – Falei tentando fazer graça e pareceu pensar por alguns instantes. – Se me visse com , esperando um bebê.
– Eu já sabia sobre você, seu bebê e o . – negou rápido, sem se importar com seu tom. – Não fazia diferença. – Eu assenti. – E no segundo jogo, por que não foram? – Ele tornou a perguntar após algum tempo em silêncio.
– Dom adoeceu, a cidade estava uma loucura por causa das eleições. – Contei, colocando os cabelos atrás da orelha. – Fizemos uma viagem de última hora.
– Foi minha última temporada. – pensou alto. – Meu último jogo em Nova York. – Os olhos dele vagavam pelo quarto, como se assimilasse aquelas ideias, pensando sobre o que podia ter acontecido ou não.
– Tivemos esses quase encontros tantas vezes...mas nos encontramos aqui, em Paradise. – Eu falei e ele voltou a me olhar. – É como se de algum modo, a resposta fosse essa cidade, ou algo que só tem aqui. Por ser aqui onde tudo começou.
– Eu já tinha voltado para Paradise há anos, . – ergueu os ombros, falando baixo. – E sempre estava aqui.
– O que quer dizer?
– Não é sobre Paradise. – Ele negou, erguendo as sobrancelhas. – É sobre você. Sempre foi.






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