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Última atualização: 02/11/2024

Prólogo - Fantasmas do Passado

O sangue não jorrou quando a lâmina afiada atravessou por detrás do corpo do homem, mas a poça vermelha que crescia lentamente aos seus pés começaria a atrair olhares curiosos dentro de instantes.

Essa, porém, não era uma das preocupações da mulher.

Se fosse, ela não teria investido contra um dos soldados do mais alto escalão do reino em praça pública, em pleno sol do meio dia. Se fosse, teria escolhido um canto afastado ou um beco qualquer, numa das ruas escuras e esquecidas aos arredores do palácio. No cair da noite, provavelmente. Longe dos pescadores, das famílias e dos comerciantes. Aos olhos de taberneiros, bêbados e bardos, apenas, espalhados aqui e ali, servindo mesas, bebendo e dando palinhas de suas canções nos alaúdes bem afinados.

Não. Um bom espetáculo precisava contar com o público. Precisava de caos. E a pirata demorou tempo demais planejando cada segundo daquele momento para não ter a atenção de todos focada em si.

No momento certo, no entanto.

Por isso, foi um golpe rápido e limpo, entre as costelas e a coluna. Preciso o suficiente para matar, mas não sem antes proporcionar vários instantes de agonia intensa e silenciosa. Ele não conseguiria emitir qualquer som, lamentação ou pedido de socorro para alertar o povo à volta de forma imediata. E isso proporcionava tempo suficiente para observar e aproveitar cada centímetro do rosto expressivo dele. Da falta de reação momentânea ao ser atacado pelas costas até a compreensão do que aquilo se tratava, ao vê-la se exibir à sua frente, em toda sua glória. Então o choque, raiva, desespero e finalmente a dor. Explícita nos tremores involuntários do rosto e do corpo, nos olhos que perdiam o brilho de vida gradativamente e nos lábios finos, que se retorciam em palavras não ditas, impedidas de soarem pelo fluido que subia à garganta.

Mas ela queria ouví-las. Queria que ele implorasse pela sua vida, mesmo sabendo que não o faria.

— William — as sílabas dançaram em sua língua, lentas e prazerosas. — Tem noção do quanto esperei por isso?

O homem fez menção de tentar falar algo, mas a pirata rapidamente levou o dedo indicador aos seus lábios, silenciando-o. Um leve balançar de cabeça em gesto negativo foi seguido de uma risada baixa.

— Não gaste suas últimas palavras antes da hora, se é que tem alguma para isso — a chama dos olhos verdes da mulher estava cravada no azul opaco dos dele. Seu corpo sustentava o peso do outro, para que se mantivesse de pé enquanto ela falava. — Como é estar no lugar dele? Chegou a passar pela sua cabeça que um dia suas ações voltariam para te assombrar? Para te causar exatamente o que você causou no passado?

O monólogo foi brevemente interrompido pela tosse engasgada de William. Agora, sangue escorria de sua boca, trilhando um caminho pescoço abaixo até pingar no chão. Ele tinha poucos segundos de vida e ela, apenas alguns instantes para meter o pé dali.

— Você não conseguiu me matar naquele dia, soldado, por sua própria incompetência. Essa foi a sua ruína. Eu sou a sua ruína — uma pausa rápida se deu num suspiro. — Mas você conseguiu tirar tudo que eu tinha e amava. Tudo que importava para mim — pronunciada entredentes e de forma lenta, a frase era quase um rosnado. — Agora, eu vou retribuir o favor — diminuindo sua voz para um sussurro, ela se aproximou do ouvido dele: — Uma pena não estar mais aqui para testemunhar. Que meu rosto fique gravado como a última coisa que você viu em vida, .

Então, sem nenhum pesar ou hesitação, a pirata se colocou às costas do homem outra vez, como no início. Retirou num gesto bruto a lâmina cravada em seu corpo, fazendo com que o sangue esguichasse e pintasse todo o redor, incluindo suas vestes e rosto. E, sendo empurrado com um chute dela, William finalmente caiu de joelhos, se entregando ao destino que o esperava sem relutar. Ele ainda se agarrava a um último fio de vida, porém. Desperto o suficiente para ouvir as palavras finais de sua assassina.

Mas a atenção dele não era a única; o baque surdo de seu corpo caindo fez uma multidão apavorada e um alvoroço finalmente se formarem ao redor. Aquela era a atenção que queria, que esperava. Do povo.
Consequentemente, também, dos outros soldados que já corriam em sua direção para capturá-la.

Sessenta segundos.

— Isso foi um acerto de contas — a mulher gritou com calma para todos que tiveram coragem o suficiente de parar para ouví-la; o sorriso largo tingido com a cor do sangue do inimigo sendo exibido em vitória. — Mas foi só o início de algo bem maior. Não vou parar por aqui, tenham certeza.

Quarenta e cinco.

— Esse homem me deu um propósito, e eu não descansarei até cumprí-lo. Então, por ele, deixem que meu nome ecoe por Willhye.

Vinte segundos, se quisesse de fato escapar dali.

— Deixem que Syrena saiba que voltará. E que quando o fizer, será por ela.

Não havia mais tempo.

Eu sinto muito — antes de se lançar à multidão, pôde finalmente escutar as palavras daquele que caíra aos seus pés. E, se não soubesse que a sua própria vida estava em jogo e dependendo daquela fuga, teria congelado no lugar.

Teria parado para encarar os olhos dele, uma última vez. Ou para prestar atenção em quem estava berrando em cima do corpo sem vida, chorando como se uma parte de si tivesse morrido junto. Talvez até mesmo para rir dos gritos de “Peguem-na” “Não deixem-na escapar” “Fechem o porto e revistem os navios!”. Mas tudo parecia ecoar no vazio enquanto corria para longe.

Ao longo do tempo, tinha ouvido diversas últimas palavras de inimigos. Súplicas, barganhas, ofertas. Nenhuma delas tinha sido um pedido de desculpas. Nenhuma delas carregava sinceridade. Isso sequer passaria pela sua cabeça.

Tinha se preparado para muitas coisas que poderiam acontecer em seu momento triunfal, mas não para aquilo.

Não foi um impedimento de seguir com o plano até o fim, porém. Muito menos algo que fizesse com que ela se arrependesse de, finalmente, ter sua vingança.
Mas até estar longe o suficiente e diferente o suficiente para olhar para trás sem preocupação, o coração bateu forte no peito. William , o homem mau que havia sido palco de seus pesadelos por tantos anos, tinha lhe dito que “sentia muito” como último ato em vida.

Um delírio, talvez. Dele. Dela.

Podia ter imaginado, não é? Ou poderia ter de fato acontecido. Uma frase desesperada, fruto dos famosos trinta segundos de toda a vida que passam diante dos olhos, talvez. Um falso arrependimento, movido pelo medo de arcar com seus pecados lá embaixo, quem sabe.

Não importava, de fato. Era tarde demais para sentir muito.

Mas após agradecer com um sorriso simpático a liberação de um dos soldados para a partida de seu navio, depois uma longa revista e interrogatórios respondidos com: “Não vi para onde ela foi”, “Não passou por aqui”, “Vi uma mulher correndo para lá!” optou pelo silêncio, deixando de lado a comemoração de sua vitória junto à tripulação para manter seus pensamentos, dúvidas e raiva para si mesma e para a imensidão do oceano, que aguardava a próxima aventura.



Capítulo 1 - Mau Presságio

A taverna era pequena e simples; um cubículo marrom e mofado, com alguns lampiões de velas acesas nas vigas altas – falhando em sua única função de trazer claridade ao ambiente –, e mesinhas mancas aqui e ali, espalhadas pelo chão que rangia ao andar. Havia também uma estante isolada caindo aos pedaços ao fundo, onde poucas garrafas de bebidas diversas já pela metade se faziam presentes em suas prateleiras de madeira empenada e quebradiça.

Obviamente, a luta pela sua tomada foi patética. Se é que fosse possível chamar aquilo de luta.

Durou apenas alguns minutos e não sobrou muito além de alguns bêbados correndo para longe enquanto tropeçavam nos próprios pés, intimidados pela presença de e sua tripulação. Aquela definitivamente não seria das melhores histórias para se contar no futuro, mas, ao menos, a pouca adrenalina da invasão e batalha – por pior que essa tenha sido – nunca era demais.

— Três ilhas — a capitã suspirou, arrastando a ponta da espada no chão enquanto ia até a estante para pegar uma garrafa de rum. — Três ilhas e não teve um único homem ou mulher suficientemente capaz de me entreter em uma batalha. O nível das pessoas decaiu tanto... — com um balançar negativo de cabeça, a voz dela soou exageradamente dramática. — Estão rindo de que, idiotas?

A feição séria que imediatamente tomou conta de sua expressão por ouvir risadas dos marujos trouxe consigo uma lâmina afiada apontada em ameaça para o grupo, mas a marra logo se desmanchou em um sorriso suave que se rendeu à animação da tripulação. Eles não haviam parado de rir mesmo com a repreensão, é claro, mas ela não se importou.

— Certo, seus cães sarnentos, vocês estão perdendo todo o respeito e estão precisando de uma lição bem dada. Mas hoje eu vou deixar passar, afinal, estou de bom humor. Depois eu penso em punições adequadas — as botas já gastas pelo tempo deixaram de tocar o chão quando a mulher tomou um impulso para se sentar no balcão de madeira, que protestou com um estalo. Em seguida, guardando sua espada na bainha, deu um longo gole no álcool da garrafa. — Não ousem se acostumar com isso.

Continuando a beber do rum, se permitiu relaxar a postura e deixar sua atenção vagar para outras coisas além da comemoração dos piratas. Foi assim que, de rabo de olho, a capitã pôde notar uma de suas encarregadas adentrando o lugar pela porta dos fundos. Parecia meio hesitante, querendo passar despercebida, mas se aproximou por fim. E num contraste quase que palpável, na pouca iluminação dos tocos de velas da taverna, a garota definitivamente não detinha metade da animação dos demais. Seus olhos baixos e cenho franzido não combinavam com o rosto bonito e jovem, e, mais do que isso, indicavam apreensão. Medo, até. Foi suficiente para a expressão tranquila de ser substituída por desconfiança, à espera de más notícias.

Elas sempre vinham.

— O que foi, Gem? — O olhar atento para a mais nova procurava por algo ali escondido. — Não deveria estar bebendo e festejando com o resto da tripulação?

— Faz tempo que estamos longe de casa — não foi difícil perceber que aquela frase continha muito mais significado do que aparentava, principalmente por trazer consigo um suspiro contido.

— Bom, qual é o problema? Não é como se um dos comerciantes da nossa ilha fosse aguardar nossa volta com armas à postos. Se for, também, a gente dá conta — dando de ombros, a capitã forçou um tom bem-humorado para amenizar o clima pesado que o comentário trouxe, mas ela sabia que deveria ouvir o alerta.

Gemma nunca se enganava em suas intuições. Pelo contrário; elas já haviam salvado a tripulação mais vezes do que a mulher poderia contar.

— Eu só... estou com um mau pressentimento. E forte — os olhos cinzentos e firmes da garota sustentaram os de com determinação o suficiente para fazê-la ceder e escolher dar ouvidos ao seu alerta, mesmo que a contragosto.

— Certo. Partiremos de volta essa noite, então. Deixe os demais cientes — com a decisão tomada, foi nítido o peso que saiu dos ombros de Gemma, permitindo que ela enfim relaxasse um pouco. — Obrigada por me avisar.

Dando um pequeno sorriso satisfeito, a mais nova curvou levemente a cabeça em resposta à sua superior e então se afastou, juntando-se finalmente aos outros, que entornavam garrafas e mais garrafas de rum – e do que mais achavam pela frente –, enquanto cantavam, animadamente:

Yo, ho! Yo, ho, a vida pirata é assim;
ouro, mulheres, rum à vontade;
velas ao vento, tesouros e saques;
Yo, ho! Yo, ho, não há nada melhor para mim;
em alto mar, quem desafiar, na prancha vai andar!
E seu fim vai encontrar…
Yo, ho! Yo, ho...


Mas era impossível dizer que a breve conversa não acarretou em uma mudança significativa de humor. Primeiramente, da capitã, que foi quem recebeu as notícias. Depois, um a um, ela observou as caretas se formando nos piratas ali reunidos enquanto Gemma avisava-os sobre a partida. Então vieram os protestos, e, sem muito saco para aguentar reclamações ou debater sua decisão, decidiu se retirar, colocando-se em pé com precisão o suficiente para não fazer barulho enquanto saía de fininho da taverna.

Foi uma caminhada rápida. Não havia muito a se cruzar entre o estabelecimento e a orla, e, uma vez lá fora, um suspiro aliviado se fez.

O cheiro da praia lhe recebeu de maneira agradável e o vislumbre dos últimos raios de sol que brilhavam no horizonte foi suficiente para suavizar sua expressão. O mar cristalino contrastava iluminado numa tonalidade bonita de fim de tarde e espelhava as nuvens do céu como suas próprias ondas alaranjadas, trazendo também a brisa da maresia, que batia nos grandes cabelos trançados, – escuros como uma noite sem lua e envoltos por uma bandana carmesim –, e no rosto de pele negra da mulher, que se permitiu sorrir ao ver aquela paisagem paradisíaca.

Apesar de pequena, era uma boa ilha.

Boa, mas nem sequer parecida com aquela que chamava de lar.

A Ilha Roccia era sua verdadeira casa, ela sabia disso. Foi lá que encontrou sua família, seu lugar, e principalmente a si mesma depois de tanto tempo perdida. Não se recordava de outro local que um dia tinha sido capaz de fazer com que se sentisse assim. Tão bem. Tão... viva.

Exceto, talvez, o grande reino de Willhye, antes de tudo acontecer.

Quando ainda era sinônimo de segurança, de amor, de pertencimento. Quando ainda havia alguma coisa por lá para se agarrar. Num passado distante, obscuro e dolorido demais. Enterrado em memórias e aterrorizado por fantasmas que perseguem vez ou outra, sem nada de bom para trazer além de uma nostalgia incômoda e um nó na garganta.

Foi imersa nesses pensamentos que deixou seus olhos verdes vagarem e percorrerem cansados toda a extensão do lugar em que estava, desde a espuma branca que a água deixava na areia quente até a popa de seu navio ancorado mais ao longe, onde as letras douradas entalhadas na madeira e refletidas pelo sol quase posto exibiam o nome "Rogers’ Vengeance"; à dedo escolhido e muito significativo para a mulher. Era sempre difícil se deixar levar pelas lembranças que ele lhe fazia recordar, porque, mais do que qualquer coisa, significava uma promessa de retorno ao início.

Um início que, de tempos em tempos, parecia esquecido. Distante demais. Preso em um local amaldiçoado que sentenciou seu passado.

E por mais que fosse quase mais forte do que ela, não queria pensar naquilo agora.

Ainda havia muito para se desbravar naquelas águas selvagens e seu espírito aventureiro pedia por isso. Ilhas, conquistas, tesouros, batalhas. Ela não deixaria nada ficar em seu caminho; quando se cansasse da vida boêmia e decidisse voltar e cumprir com seu destino, o faria. Mas, por hora, não podia deixar de admitir que uma parte dela estava com saudades de casa.

Estavam no mar já há um tempo e o aviso de Gemma veio a calhar, bem ou mal.

Faria bem voltar. Seria uma pequena parada na Ilha Roccia, somente para checar como estavam as coisas desde que saíram... e então poderiam seguir viagem para o próximo destino tão esperado da extensa lista: La Maldita Isla Sangrienta, lugar onde nenhum pirata ousou pôr os pés até hoje, por medo da terrível maldição que a cerca.

Ao menos, nenhum pirata que detivesse um nome como Rogers .

E sua fama não era à toa. Foi ao menor sinal de passos sorrateiros atrás de si que a espada já estava desembainhada, empunhada e pressionada contra o pescoço do homem que havia ousado se aproximar.

— Lute comigo — a voz exibia um tom divertido e desafiador, o que fez com que os olhos de esmeralda da mulher se estreitassem ao analisar o sorriso despretensioso no rosto de seu imediato e adversário no momento.

— Não está planejando um motim, imagino — o tom de desdém se fez presente propositalmente ao responder seu pedido. — Acha que está à minha altura?

— Não — o sorriso se alargou ligeiramente. — E não, também. Mas ao menos posso te garantir mais diversão do que a que teve momentos antes, na taverna.

Agora, a capitã também exibia um pequeno sorriso.

— Pois bem — assim que as palavras foram pronunciadas pela mulher, Benny não perdeu tempo em sumir de sua frente e reaparecer às suas costas, a adaga que detinha em mãos agora pressionada contra as costelas de . — Se pretende usar magia para tornar a luta mais interessante, vou chegar à conclusão que quer me bajular. O que você está querendo?

Sem esperar resposta, entretanto, os pés da capitã, quase como em uma dança, se moveram estrategicamente em um giro para afastar o homem e sua adaga de perto de seu corpo, voltando a ficar frente a frente com ele em posição defensiva e à espera de outro ataque.

— Você nos prometeu La Maldita Isla Sangrienta, agora quer voltar para casa. Não pode esperar que os tripulantes fiquem felizes com a decisão.

Com a resposta, o feiticeiro investiu novamente contra a mulher, que se defendeu sem esforços, iniciando o confronto de lâminas que tilintavam a cada choque.

— Gemma disse que está com um mau pressentimento quanto à nossa ilha. Você sabe que as palavras dela são como profecias, Benny. Ela não erra, nunca errou.

Foi a vez da capitã de investir contra o homem, que se esquivou rapidamente do golpe de sua espada e pulou para trás no último segundo, a tempo de evitar a queda que certamente sofreria se tivesse acertado a rasteira que sucedeu seu ataque.

— Se for esse o caso, não me incomodo de virar, sei lá, uma gaivota, um corvo, uma arara azul ou qualquer outra coisa com penas e sobrevoar a nossa ilha para verificar se ela está, de alguma forma, sendo ameaçada. Evitamos dias de viagem de volta e assim podemos avançar para nosso próximo destino, o que me diz?

O tom manipulador quase fez com que a capitã soltasse uma risada, mas ela se conteve e manteve a atenção focada na luta.

— Ganhe de mim e eu acato seu pedido. Perca e sua punição por me desafiar será não velejar com a tripulação até a Isla Sangrienta — as palavras da pirata, apesar de suaves, eram sérias, soando como uma sentença final.

— Você não me deixaria para trás — o tom dele, por outro lado, era de dúvida, não de certeza.

— Não? — Foi a resposta final antes de se calar e se concentrar no que estava fazendo.

Se a capitã bem sabia, Benny não hesitaria em usar de seus atributos mágicos para ganhar aquela luta, ainda mais depois de sua ameaça. Era com isso, porém, que ela estava contando. havia passado anos lutando contra cada um de seus tripulantes, bem como observando-os lutar uns contra os outros também.

Dizer que sabia cada ponto fraco, forte e trunfo escondido de todos eles não era exagero. E foi exatamente por isso que, ao vê-lo tomar uma mínima distância e se aproximar logo em seguida, com velocidade suficiente para um ataque direto, ela se virou de costas.

Um movimento arriscado e que contava apenas com a sorte de ser um palpite correto.

Mas, como esperado, Benny havia sumido e reaparecido bem em sua frente outra vez, e assim, não foi difícil usar a espada para contra-atacar sua investida de adaga e tomar a dianteira da luta. Uma vez que a capitã cruzou as lâminas e aproveitou da proximidade para, dessa vez, dar uma rasteira bem sucedida, o corpo do feiticeiro caiu na areia e ficou suscetível a um último golpe, o qual ela interrompeu segundos antes de atingí-lo pra valer, deixando que o aço gelado da lâmina apenas encostasse gentilmente em seu pescoço.

— Achei que tivesse dito que seria mais divertido do que foi na taverna — a ironia presente na voz dela fez com que o homem endurecesse a expressão.

Usando o ombro para secar as poucas gotas de suor que escorriam de sua têmpora até o queixo, ela riu. E iria estender a mão para que ele usasse de apoio ao se levantar, mas preferiu se sentar na areia, ao seu lado, por uns instantes.

— Comigo é sempre mais divertido — apesar do tom de flerte, a resposta não soou muito mais alta do que um resmungo contrariado, o que fez com que soltasse uma risada.

— Depois de uma derrota ridícula dessas, o mínimo é baixar a bola — cruzando as pernas, relaxou a postura, encarando-o de esgueio. — Aliás, você precisa, e muito, aprender a se virar melhor com a espada. Pode ser o feiticeiro que for e ter a magia que for, mas também é um pirata. Piratas sabem lutar com espadas. Você não sabe. Ainda vai acabar morrendo por isso.

— Tenho certeza que te teria chorando por mim — ele sorriu, mas tinha levado o conselho a sério.

— Tenho certeza que sonha com isso todas as noites — ela rebateu, revirando os olhos de forma teatral.

Então os dois se mantiveram em silêncio, apenas apreciando a companhia um do outro e a imensidão do mar à frente, — que já começava a se misturar com a cor do céu, — por vários instantes.

Até soltar um suspiro.

— O que está passando pela sua cabeça? — Benny perguntou sem nenhuma cerimônia. — E não adianta falar que não é nada. Vou encher o saco até me dizer.

— Nada — ela respondeu prontamente, mais para contrariar do que qualquer outra coisa.

— foi só o que ele precisou dizer antes que ela se rendesse.

— Eu já deveria ter voltado — falou por fim, com quatro palavras que tinham muito mais significado do que aparentavam.

Ele sabia que sim.

— Um propósito não deixa de ser um propósito só porque o tempo passou, se é o que te preocupa — o homem ofereceu um sorriso. — Willhye vai continuar lá quando decidir voltar e cumprir o que prometeu. Nada te impede de viver antes e ter outros objetivos além do principal.

— Eu devo isso à ele — rebateu de pronte.

— Eu nunca disse o contrário — Benny levantou as mãos em sinal de paz, rindo de leve para amenizar o clima. — Mas é a sua vida. E ele iria querer que vivesse. Que fosse muito mais do que só uma busca incansável por vingança.

— E você é o que, agora? — Perguntou, o cenho franzido em claro sinal de desconforto. — Alguém que fala pelos mortos?

— Não aprendi necromancia ainda, mas eu tenho quase duzentos anos — Benny conhecia bem a mulher à frente e sabia quando era a hora de encerrar o assunto. — A gente acumula mais do que só burrice e experiência ruim ao longo do tempo. Está escurecendo.

— Trace o curso para a Ilha Roccia. Vou reunir o resto da tripulação.

Enquanto a pirata caminhou de volta à taverna, – onde apesar de qualquer revolta em voltar para casa, a comemoração e bebedeira ainda era ouvida muitos passos antes de chegar de fato ao local –, o feiticeiro se levantou e bateu as mãos em suas roupas para tirar o excesso de areia grudada depois da queda, seguindo até o navio. Como ordenado, começou os preparativos para partirem, mas não havia muito a ser feito além de selos de proteção e organização básica. Por esse motivo, Benny apenas aguardou a chegada dos outros, recostando seu corpo na proa e observando as águas escuras do mar iluminadas pela luz da lua e estrelas com a chegada da noite.

E não demorou até que o resto da tripulação abordasse e estivesse pronta para partir. No convés, todos olharam para a capitã, esperando que ela desse as ordens.

— Eu realmente preciso dizer o que cada um tem que fazer depois de todos esses anos?! Vocês são patéticos. Péssimos. Horríveis. Uma decepção — ela os encarou desacreditada. — Vamos logo! Levantar âncora, içar velas, a todo pano para a ilha Roccia, blá blá blá — um gesto de mãos dispensou os marujos, que foram logo à postos.

E uma vez estando todos em suas devidas posições, se destinou à sua própria e tomou o timão, começando a navegar para casa. A ilha Roccia tinha sido escolhida para ser sua morada, dentre muitos fatores, pelo difícil acesso; o mar era agitado e perigoso, e a viagem, longa. Por isso, tinham muitas e muitas horas pela frente, mas se o vento estivesse a seu favor, de onde estavam, conseguiriam atracar em menos de dois dias. E, não diferente do habitual, visto que todas as viagens a bordo do Rogers’ Vengeance eram barulhentas e animadas, – essa um pouco mais devido ao nível alcoólico em que todos se encontravam – as primeiras horas se passaram sem que percebessem, entre conversas e brincadeiras.



Assim se seguiu.

Mais para o meio da madrugada, os piratas se organizaram em turnos para vigília. não saiu do timão e Benny seguia ao seu lado, atento a qualquer coisa que fugisse do controle durante a volta para casa. Connor tinha um alaúde pequeno em mãos, com o qual embalava a tripulação em uma melodia, e Nasher estava firme no alto da plataforma do Ninho do Corvo, os olhos focados no horizonte. Anne Marie se recostava em um dos mastros, intercalando sua atenção na bússola, – preocupada em mantê-los na direção certa –, e na música. Damien caminhava para lá e pra cá com barris e baús, armazenando os saques e mantimentos no porão.

Os demais cumpriam suas funções enquanto alguns se deslocavam para o alojamento, para finalmente descansar um pouco. Entre eles, estava Gemma.

A mais nova se deitou em uma das redes à contragosto; sua mente estava barulhenta demais para se entregar logo ao sono. Todas as vezes em que a sensação de que algo ruim estava por vir chegava, ela não conseguia relaxar até que finalmente se visse imersa na situação. Até enfim ter respostas.

E o que mais incomodava a garota dessa vez era que, mais do que todas as outras vezes, nada estava claro. Era somente uma pontada no estômago, um nó na garganta, uma angústia crescente que avisava e insistia que algo estava errado. Que algo grande viria a acontecer, e que talvez não estivessem preparados para isso. Mas ela não tinha visto nada. Não tinha ouvido, como antes. Sussurros no vento, palavras soltas em cartas pintadas à mão, melodias cantadas ou conversas aqui e ali que a levavam até uma resposta.



Nada. Era apenas uma maldita sensação incômoda e incansável, que, em determinado momento, acabou sendo vencida pelo cansaço do dia.

Então, se transformou em imagens, num sonho turbulento.

O cenário era embaçado, como se houvesse fumaça por toda parte. Talvez de canhões, afinal, havia marrom por ali. Eram muitas cores para processar, de qualquer forma. Tinha o azul do mar e a mistura dele com o tom mais claro de uniformes que, em certas partes, brilhavam em dourado. Aliás, o dourado também estava presente nos grandes pilares enfeitados com gárgulas cinzas e rachadas, no topo. Algo como seda em tom vinho se misturava com o bege envelhecido de mapas. Roxo, prateado e laranja apareciam em flashes muito rápidos. E havia também o vermelho, que manchava o solo que ela pisava. Esse, ora de areia, ora verde. Mas não era somente abaixo de seus pés que essa cor estava.

O vermelho também criava contraste ao se misturar com um tom escuro de pele.

Foi o suficiente para os olhos se abrirem muito mais rápido do que se fecharam, horas atrás. E para os passos barulhentos percorrerem em segundos o caminho do alojamento à cabine principal, a qual Gemma não se deu ao trabalho de bater antes de entrar.

— Syrena irá mandar tropas para invadirem e tomarem a ilha — recebeu a mensagem entre uma piscada pesada e outra, o olhar se tornando atento e a postura se endireitando à medida em que as palavras eram ditas pela mais nova.

Elas soavam distantes aos ouvidos de ambas. Quase irreais.

— Que bom que estamos voltando, então — foi a resposta, que ecoou depois de um longo período de silêncio. — Chegaremos muito antes deles e teremos tempo para nos preparar — a capitã prosseguiu, sem apresentar em sua expressão qualquer preocupação, apesar de a notícia tê-la pego de surpresa. — Mas você sabe disso. Então, por que seu corpo está tremendo por inteiro?

Gemma sempre fora centrada e calma; era preciso um baque enorme para desestabilizá-la daquele jeito. A notícia de que uma possível invasão e batalha estava para acontecer não era grande coisa. Não para deixá-la ofegante, suando, e com o rosto brilhando em lágrimas as quais a pirata fazia esforço para não derramar. Não para não conseguir encarar a mulher à frente ao forçar a voz a soar mais alta do que um sussurro.

— Você acaba morta, .



Capítulo 2 - As Ordens da Rainha

O sol do meio dia estava alto no céu. Seus raios fortes, quentes e brilhantes irradiavam de forma imponente toda Willhye, fazendo de seu antro, o grande palácio, – com suas altas torres e paredes esculpidas em desenhos que já marcavam gerações – uma visão de tirar o fôlego. O ouro dos adornos e das esculturas nos pilares era tão resplandecente quanto aquele que brilhava acima, mas, embaixo de tudo aquilo, a terra era fina.

E alguns esqueletos soterrados há tempos estavam para ser desenterrados.

Dentro da morada da realeza, os passos apressados e barulhentos que preenchiam o que na visão de era um inacabável corredor, somados à feição séria e ao maxilar tensionado que exibia em seu rosto, denunciavam seu nervosismo ao se aproximar da maior e mais importante sala do deslumbrante palácio. Era a primeira vez, desde que havia conseguido um cargo alto na corte, em que sua presença era solicitada repentinamente por Sua Majestade. E ele não sabia o que esperar com isso.

Teria cometido algum erro? Esquecido alguma tarefa? Ela pediria sua cabeça como punição?

Ninguém era chamado em presença da mulher há muito tempo. As ordens delegadas aos soldados eram passadas por superiores na grande hierarquia presente no reino, tornando desnecessária a participação direta da soberana. Então por que ele, sendo tão invisível em meio à tantos outros mais importantes naquele lugar, estaria sendo convocado?

As dúvidas que rondavam sua mente não o deixavam em paz. E elas só aumentaram ao finalmente estar em frente à grande porta de madeira maciça, onde deixou duas batidas para anunciar sua presença antes de adentrar o aposento.

— Com licença — a voz grossa e firme, apesar de tudo, não falhou em se fazer presente no ambiente. — Mandou me chamar, Majestade?

— por estar de costas, a reverência em respeito foi vista pelo reflexo dos vidros límpidos de uma das janelas. A mulher não se preocupou em encará-lo diretamente, apesar disso; seus olhos se mantiveram perdidos no mar agitado. — Sim, mandei. Tenho uma tarefa importante a solicitar, e depois de muito ponderar, creio que talvez você seja a pessoa certa para cumprí-la.

Os segundos que se passaram em silêncio após aquelas simples palavras, para ele, pareceram horas.

Claro, podia soltar um suspiro aliviado por não ser algo ruim como previa, mas toda a tensão anterior foi transformada num choque nada sutil. Nem em seus sonhos mais profundos esperava receber uma proposta importante tão cedo; afinal, mesmo seu irmão, sendo um dos homens mais requisitados para missões da corte em sua época, havia levado anos para conquistar confiança e servir diretamente a uma ordem superior. Estar recebendo uma proposta dessas tão cedo quase parecia errado. Nem sequer fazia um ano de sua promoção.

Mas não se recusa uma oportunidade, e por isso, as sobrancelhas grossas erguidas em surpresa voltaram para seu natural tão logo quanto se puseram acima uma vez que o homem se propôs a responder àquilo. Positivamente, é claro, apesar de toda estranheza.

Ele não conseguiu, no entanto. Antes de qualquer palavra poder ser pronunciada, a rainha se virou para encará-lo, e isso travou seus lábios e postura.

O rosto de traços finos e bem desenhados de Syrena era emoldurado por cabelos loiros que caíam em cascata pelos ombros. Sua expressão, apesar de séria, tinha em destaque olhos gentis de um azul tão vibrante que quase pareciam uma parte capturada do oceano lá fora. As vestes, como sempre muito bem feitas e bonitas, – moldadas e costuradas sob medida para ela pelas modistas da corte –, estavam no momento compostas por um vestido seda vinho adornado por detalhes rendados em tom cru na cintura. não deixou de notar também que rubis tão vívidos e brilhantes quanto a cor do tecido finalizavam o caimento do mesmo, contrastando e realçando a pele bem clara da mulher.

Ela era bonita; um tipo de beleza dificilmente igualada além de incomum, que conseguia fazer até mesmo olhos atentos se perderem para poder encontrá-la. E, de certo, essa poderia ser sua maior característica, não fosse pelo fato de uma única coisa ser capaz de atrair ainda mais atenção para si: sua idade. A rainha Syrena parecia uma moça em muitos aspectos, o que por si só era uma arma e um lembrete. Nenhuma vez, em toda a história de Willhye, a coroa havia descansado sob uma cabeça tão jovem.

Muito menos permanecido nela por tanto tempo.

A jóia ancestral, porém, estava há tantos anos adornando seus cabelos claros e impondo-se acima de todos que parecia apenas algo certo, feito para ela, como se fosse uma parte de seu corpo. Era uma sorte que a mulher houvesse se adaptado tão bem ao trono, especialmente depois da morte do rei, seu marido, antes mesmo que completassem um ano de união.

A doença que surgiu de forma súbita levou-o à morte às pressas, fazendo com que o fato ficasse marcado como uma terrível tragédia por todo o reino.

— Ficarei honrado em serví-la, Majestade — encontrou sua voz novamente depois de vários instantes, mas as palavras soaram mais convictas do que quando ele adentrou o local. Fruto, talvez, da expectativa já criada antes mesmo de saber qual seria sua tarefa.

— Acredito que esteja muito bem familiarizado com o nome — Sem cerimônias, Syrena se pôs a andar de um lado para o outro. Aquele simples nome, ela sabia, seria capaz de desconcertar o homem à sua frente.

E assim como imaginou, não tardou a ver a reação. A mão direita do soldado se fechou em punho e sua feição séria se tornou enraivecida, com linhas de expressão se franzindo em claro desprezo. Ele deveria estar surpreso por ouvir aquele nome ser pronunciado tantos anos depois do ocorrido. Deveria até mesmo estar feliz ante a perspectiva do que estava por vir com aquela introdução às ordens que se seguiriam.

Mas o único sentimento a surgir dentro de si foi o ódio.

E, mais do que ele, a vingança.

Vingança a qual o homem alimentava desde que viu seu irmão ser assassinado pela mulher.

— Não poderia esquecer esse nome nem se tentasse, Majestade — apesar do que sentia por dentro, ele desfez a expressão enraivecida brevemente exibida e se pôs sério e impassível outra vez, esperando o desenrolar da conversa.

— Essa mulher é uma criminosa procurada pelo reino desde que desapareceu seis anos atrás, como imagino que bem se lembre — Syrena não pôde deixar de colocar um tom de pesar em sua frase em respeito à , mesmo que não se importasse de fato com o ocorrido.

Claro, havia perdido um de seus melhores homens, mas não gastaria seu tempo lamentando por isso uma vez que o relógio estava correndo e a oportunidade de fazer a culpada pagar por aquilo finalmente surgia à sua frente. Então, ela prosseguiu:

— O assassinato de seu irmão foi uma perda muito grande para Willhye. Foi, também, o primeiro dos crimes de . Desde então, ela é uma desertora. Pirata — a última palavra foi pronunciada com nojo perceptível na voz da rainha.

— Estou ciente — ainda sem demonstrar emoção, por mais que o ódio que sentisse o corroesse, esperou que a mulher finalizasse seu monólogo e fosse direto ao ponto antes de dizer qualquer outra coisa.

— Para sua felicidade… ou assim suponho, sua localização finalmente foi reconhecida. E este é o motivo de ter lhe chamado — um longo suspiro escapou de seus lábios rosados. — Tenho conversado muito com meus conselheiros a respeito disso e voluntários para essa missão não faltaram. Mas acredito que, por ter uma rixa pessoal e sentimento de vingança dentro de si, talvez você seja a pessoa ideal para liderar essa missão.

A mulher andou novamente pela sala, os passos, dessa vez, em direção à , diminuindo a distância estabelecida entre os dois no início da pequena reunião. A diferença de altura entre eles era perceptível, uma vez que o homem, com seu porte militar, – resultado de longos anos de treinamento intenso, – era muito mais alto e corpulento do que ela. Essas características, porém, se tornavam quase insignificantes se comparadas à imponente presença e poder que Syrena exalava.

Com o silêncio do soldado perante suas palavras, ela continuou:

— Não posso deixar de ter a preocupação, porém, de que o sentimento que te motive a cumprir essa tarefa com afinco seja o mesmo a lhe tirar o sucesso, se deixar suas emoções superarem o profissionalismo. Veja, estou lhe oferecendo essa oportunidade porque preciso de alguém para assumir o lugar que Willian deixou, e também porque sei o quanto almeja encontrar aquela que o tirou a vida — apenas assentiu minimamente com a cabeça ao ouvir isso. — Mas quero que tenha em mente que a punição adequada será decidida e executada por mim, e assim sendo, suas ordens são apenas para contê-la e trazê-la de volta para o reino como prisioneira. Os que a seguem não me importam, fica a seu critério o que fazer.

O silêncio que se seguiu por vários instantes depois disso seria absoluto se não fosse pela respiração pesada do homem, que não falhava em denunciar seu descontentamento com as condições da missão proferidas pela rainha. Ele sabia que aquela era uma oportunidade única e não iria recusá-la, mas esperava poder ter a sua vingança uma vez que a encontrasse. Esperava poder fazer, com suas próprias mãos, a culpada por ter destruído sua família pagar pelos seus atos com a vida.

Em vez disso, teria que encarar a assassina de Willian frente a frente, quase que de mãos atadas, apenas seguindo ordens de capturá-la.

— Mas — os olhos do soldado, uma vez opacos ante à decepção, voltaram a encarar Syrena com certo brilho de expectativa. — Minha única exigência é que faça dela sua prisioneira. O que precisa fazer para conseguir isso e até mesmo o estado em que ela se encontrará ao chegar aqui é… irrelevante — o tom divertido e ao mesmo tempo cruel que permeava suas palavras abria uma grande brecha para interpretações variadas, e foi nisso que se agarrou, os lábios se curvando de maneira quase imperceptível em um sorriso. — Não falharei, Majestade. Não deixarei que meus sentimentos atrapalhem meu sucesso — foi com imponência que, depois de muito tempo sem falar, o homem fez sua convicção ser demonstrada naquelas palavras.

— É o mínimo esperado — Syrena voltou a se afastar, caminhando outra vez em direção à janela que observava antes de a conversa começar. Ela deixou seu olhar se perder ali por uns segundos, como se buscasse por algo. — está na Ilha Roccia. Um dos comerciantes do lugar aproveitou seu período de ausência para fugir e comunicar isso à corte — um pequeno sorriso curvou o canto dos lábios da rainha por uns instantes. Ele logo sumiu, no entanto, e ficou se perguntando se teria imaginado. — Ao que parece, ela vem querendo aumentar o que julga serem suas ”posses”; pequenas ilhas pouco habitadas e derivados, possíveis rotas de fuga e esconderijos. Mas sua localização fixa é lá, desde o começo. Um lugar quase fora dos mapas. É fácil de entender o motivo de conseguir passar despercebida por todos esses anos.

Havia raiva na última frase, e a inquietação da mulher perante toda a situação ficou clara quando, mais uma vez, o barulho de seus saltos foi ouvido ecoando pelo ambiente enquanto ela caminhava. Dessa vez, seu destino foi a mesa central de sua sala, onde um mapa aberto continha uma tachinha amarela indicando a localização do destino almejado.

— Além de longe, a rota até lá é extremamente difícil. O mar é traiçoeiro e as rochas enormes e pontudas que circundam o local são famosas por afundar navios. Você levará ao menos seis dias para chegar até lá, sendo otimista. Para cumprir suas ordens, acredito que precise de menos do que isso, o que te dá um total de quinze dias ao todo, entre ida e volta — seu dedo indicador deslizou pela parte azul do papel, demonstrando a rota marítima a ser seguida. Segundos depois, as unhas começaram a tamborilar pela madeira. — Dezesseis, se for necessário contar imprevistos na rota ou na execução da tarefa, o que acredito não ser. É um homem cético, ?

— Cético? — As sobrancelhas se franziram por uns instantes ao ser pego de surpresa por aquela questão: — Não estou certo ao que se refere nessa pergunta, Majestade.

— Sereias — os olhos azuis da mulher voltaram a encarar os dele; o tom quase de mesma cor, mas não de mesma profundidade, se cruzando. Havia um brilho diferente ali, que quase tão logo quanto apareceu, se foi. — Há uma baía tomada por elas no meio do caminho. Sereias são criaturas difíceis de se lidar, já que fazem questão de afogar marinheiros que cruzam seu caminho, hipnotizando-os com seu canto e beleza surreal.

— Eu não... — o soldado não sabia bem o que responder perante àquela pergunta e as informações que a seguiram, por isso, a mulher fingiu não perceber suas palavras, retomando sua fala quase a ponto de interrompê-lo em suas dúvidas.

— Ao mesmo tempo em que são um perigo mortal para você, podem servir como trunfo, se souber como usá-las a seu favor — o canto esquerdo dos lábios de Syrena se curvou outra vez em um pequeno sorriso enquanto sua mão direita se dirigiu até uma das gavetas acopladas à mesa, tirando dali um colar de pérolas negras. — Sereias, muito além de sua beleza, têm poderes incríveis. Pode imaginar como isso atrai as mais variadas pessoas, principalmente aqueles… ratos do mar. Esse colar pertenceu a uma delas. Ela foi capturada por piratas, e meus homens entraram em um embate com os mesmos para soltá-la e devolvê-la ao mar. Infelizmente, a criatura não sobreviveu, mas em retribuição e agradecimento, nos seus últimos minutos, nos deixou isso.

Finalizando a história, a rainha entregou a jóia para , que segurou-a e analisou cada uma das pérolas ali presentes. Por mais que fosse uma narrativa fascinante, a resposta para a pergunta anterior da mulher era "sim"; ele era cético. Criaturas marinhas místicas estavam muito além do que um dia ele ousou acreditar, uma vez que, tendo velejado algumas vezes, nenhuma delas cruzou seu caminho.

No entanto, não iria recusar algo que talvez, apenas talvez... pudesse ajudá-lo em sua viagem.

— O nome dela era Ella. Lembre-se disso. Use isso — era nítido que a conversa agora já se encaminhava para o final. — Quero que parta amanhã cedo, portanto tem o resto do dia de hoje para se preparar. Reuni uma tripulação altamente treinada e preparada para lhe acompanhar nessa missão, porém não tenho como disponibilizar a quantidade necessária de homens para compor o todo. Irei deixar que complete as lacunas com pessoas que sejam de sua confiança, então escolha sabiamente. Está dispensado.

Ainda sem acreditar em tudo que havia ouvido nos breves instantes de conversa com Syrena, com uma reverência em respeito e agradecimento, o homem deixou os aposentos.

O fato de ter liberdade para escolher algumas pessoas de fora para compor sua tripulação, não se limitando apenas aos soldados da corte, – o que o homem sabia ser nada além do que um teste de sua capacidade de liderança e lealdade à coroa – deu a alguns trunfos. Ele tinha muitos contatos em vários lugares e sabia de pessoas que adorariam a oportunidade de sair para uma boa caça aos piratas.

Entre eles, um alguém em particular, muito peculiar, que lhe devia um favor. Mas este seria o último a ser chamado. Primeiro, ele começaria por um amigo de anos, o qual sabia que bastaria pronunciar a palavra chave para fazê-lo topar a aventura.

Filho de falecidos marinheiros, – estes, assim como seu irmão, assassinados por piratas – Frank, de certo, conhecia muitas histórias de pescador. Por esse motivo, não duvidava que ele acreditasse em sereias e demais criaturas, o que ajudaria na possível parte da missão em que, eventualmente, cruzariam com elas. Além do mais, o homem poderia facilmente ser definido como um "pau para toda obra", já que também tinha habilidades em luta corporal e perícia em algumas armas.

Seria bom, de várias formas, tê-lo ao seu lado nessa tarefa.

E com o tempo correndo, foi pensando nisso que seus passos o levaram para fora do grande palácio. Sabia exatamente onde procurá-lo e, enquanto o fazia, caminhando pelas ruas calmas de Willhye, o soldado deixou seus pensamentos vagarem até aquele dia em que sua vida havia mudado drasticamente.

Willian sempre havia sido, para , um exemplo a ser seguido. O mais velho parecia invencível aos seus olhos; voltava vitorioso de todas as missões que recebia e cumpria seus deveres com excelência. Tinha também a total confiança da rainha, e isso, de fato, era o mais notável, uma vez que o mérito era quase impossível de ser alcançado. Ele havia construído sua imagem e feito com que o nome de sua família fosse conhecido e respeitado por todos no reino, se tornando, assim, alguém quase intocável.

Um soldado perfeito.

Talvez, por isso, ninguém imaginasse que sua vida seria tirada tão facilmente e de forma tão abrupta, em praça pública e em plena luz do dia. havia visto acontecer. E ele se lembrava de cada detalhe.

Da vívida imagem da espada afiada atravessando seu peito enquanto o mais velho caía de joelhos numa poça de seu próprio sangue, a vida se esvaindo dos olhos arregalados em surpresa;

De como a assassina se vangloriou do ato e riu em cima do corpo, dizendo algumas palavras sobre a rainha que não fez questão de prestar atenção, estando mais preocupado em gravar seu nome, seu rosto e correr em sua direção junto aos soldados que a cercavam;

Da tristeza e do ódio que sentiu, entre gritos desesperados e um choro incessante, implorando para que seu irmão continuasse vivo, para que voltasse para ele;

Sobretudo, do jeito que a mulher desapareceu como se nunca, de fato, tivesse estado por ali. Ela era como um fantasma, um anjo da morte, que tão logo quanto veio e cumpriu seu objetivo, se foi sem deixar rastros.

— Você tá um caco — a voz tão bem conhecida fez tudo aquilo desaparecer, trazendo o homem antes perdido em pensamentos de volta ao mundo real. — Perdeu o rumo de casa? Acho que nunca te vi tão avoado.

— Frank — franziu o cenho, olhando rapidamente ao redor e se dando conta de que já há um tempo havia deixado as ruas nobres para trás, estando agora na parte mais esquecida e pouco frequentada da cidade. — Ah, eu estava procurando por você.

— Por mim? A que devo a honra desse nobre soldado visitar a ralé? — A ironia em sua voz era carregada, bem como o sorriso que apareceu, indicando a brincadeira. — Pensei que havia se esquecido daqueles menos afortunados.

— Isso tudo é saudade? — O soldado devolveu, balançando a cabeça. — Andou se metendo em confusão de novo, hm? — O motivo da alfinetada era claro, visto que haviam alguns hematomas aqui e ali no rosto do amigo, bem como vários rasgos em suas roupas simples, as quais fez questão de apontar, olhando-o de cima a baixo.

A diferença entre eles se dava apenas nesses quesitos, porém. Os dois tinham a mesma estatura, Frank perdendo apenas por alguns centímetros. O porte físico também não ficava muito atrás, visto que da mesma forma que treinava como soldado, nas estalagens do reino, seu amigo o fazia por conta própria, em brigas de rua e coisas do tipo.

— Como se esse não fosse meu jeito de ganhar a vida, meu amigo. Sabe, nem todos têm privilégios de ser da alta classe, andar por aí com roupas de luxo e encher o bucho num palácio como você — a expressão forçada de tristeza que Frank colocou em seu rosto fez rir.

— Ah, para com isso, você não tem essa vida porque não quer. Já lhe foi oferecido um cargo na corte como soldado. Você recusou — com essas palavras, Frank acabou dando de ombros e rindo também.

— Claro, imagina só ser um engomadinho como você. Tô fora — o desdém fez revirar os olhos e começar a andar, indicando ao outro para que lhe acompanhasse. — Por que veio aqui? — Vou te explicar. Tem alguma taverna por aqui para bebermos enquanto isso? O assunto é longo.

Com um aceno breve de cabeça, Frank começou a guiar o caminho, cumprimentando algumas pessoas pelas ruas em que passavam. , por sua vez, não deixou de notar que aquela região era realmente diferente dos arredores do palácio com os quais estava acostumado; enquanto por lá passavam mulheres bonitas, bem vestidas e educadas, acompanhadas por homens nobres e quase sempre algumas crianças, ali, a grande maioria se resumia a miseráveis e causadores de confusão puxando uma briga a cada esquina.

— Ah, não pareça tão surpreso. Faz muito tempo que você não vem pra esses lados, mas as coisas continuam como da última vez. Chegamos — a voz de Frank se fez presente para tirar de seus devaneios outra vez. Agora, os dois estavam em frente a uma pequena taverna, onde não hesitaram em entrar e buscar uma mesa mais afastada. — Então? Qual é o assunto tão importante? — Eu vim te recrutar para uma missão — a expressão curiosa do homem se transformou em desconfiança ao ouvir aquelas palavras, mas o soldado continuou antes de poder ser interrompido: — A rainha Syrena encontrou o paradeiro da assassina de Willian e me deu a incumbência de ir até ela.

Frank ficou alguns instantes em silêncio até conseguir processar a informação e recuperar a fala. Ele conhecia a história, assim como todos no reino. Havia cartazes de procurado com o rosto da mulher por todo o canto e o mistério de seu sumiço era comentado até os dias atuais, quase sendo uma lenda passada de pai para filho.

— Estou ouvindo — com um gesto para que ele prosseguisse, o homem se pôs atento a cada palavra.

O fato de a taverna estar cheia de pessoas cantando, brigando e rindo alto facilitou a conversa dos dois a passar despercebida. A última coisa de que precisavam era mais atenção atraída para eles, não fossem as roupas da corte que usava mais do que suficientes para isto. O soldado então contou todos os detalhes da missão e explicou o porquê de querer Frank nela, não deixando de notar a animação surgir nos olhos dele em partes específicas da narrativa.

Quando finalmente terminou, esperou por uma resposta.
A mesma veio quase que de imediato, sem hesitações:

— Piratas e sereias. Que tipo de homem eu seria se recusasse uma aventura dessas? Você sabe que eu topo — os dois sorriram ao mesmo tempo com isso. — Você disse que a rainha te deixou escolher sua própria tripulação, por isso veio até mim. Sou exclusivo ou tem mais alguém em mente? — Além de você, vou chamar Blanche, a caçadora de recompensas, e um... amigo, digamos assim. Por que? — achou sua resposta antes que ela fosse pronunciada, acompanhando o olhar de Frank até uma das serventes da taverna.

— Bom, se estiver disposto a aceitar sugestões... aquela é a Mia. Ela e sua irmã, Amália, costumam ganhar todas as brigas em que entram. Além disso, enquanto uma é especialista em explosivos e boa navegadora, a outra é uma arqueira incrível. Ambas têm suas desavenças com piratas. Talvez sejam de grande ajuda.

— Interessante. Faça a oferta e veja o que elas têm a dizer. Meu tempo está acabando e eu preciso falar com os outros. Estejam no porto ao amanhecer — o soldado finalizou, se levantando e deixando alguns trocados em cima da mesa pelo que havia consumido.

Sem esperar alguma resposta de Frank, com um aceno, ele saiu do local às pressas e recomeçou a caminhar pelas ruas, agora mais escuras com a chegada do crepúsculo.

sabia que seria uma tarefa um pouco mais difícil chegar até Blanche, então, tomou seu caminho até uma pequena casa, ainda mais afastada e esquecida aos olhos do reino, onde sabia que encontraria aquele que pretendia chamar desde o começo.

Com três batidas, ele esperou até que a porta se abrisse, e quando ela o fez, o soldado sorriu para o homem que ali apareceu.

— Veio cobrar seu favor, imagino — a voz soou sem muita emoção, mas era possível distinguir uma pontinha de curiosidade em meio ao desinteresse.

— Você pode recusar se quiser, mas imagino que não irá, uma vez que ouvir a proposta — diferente de Pogue, homem o qual analisava cada expressão do soldado que bateu à sua porta, demonstrava sua animação nas palavras.

— Não preciso, as notícias correm rápido por aqui. Eu sei do que se trata. E sei que a rainha não ficará feliz se souber que me chamou — o homem não evitou uma risada amarga. — Então, estarei no navio antes do amanhecer para lhe evitar problemas. Espero que esteja certo de que é isto que quer em retribuição ao que fez por mim.

Deixando de lado a surpresa com o fato de não precisar pronunciar uma sequer palavra para que o feiticeiro à sua frente soubesse do que o assunto se tratava, o soldado balançou a cabeça em afirmativo.

— Estou certo — respondeu firme enquanto o encarava. Não havia sequer uma ponta de dúvida ou hesitação em sua voz.

— Que assim seja, então — a porta estava para se fechar outra vez, mas Pogue pronunciou uma última frase antes disso: — Imagino que tenha muito o que fazer, então não perca seu tempo em uma busca pela caçadora de recompensas. Ela estará lá também. Vou me encarregar disso.

Com a porta se fechando em sua frente, , com o cenho franzido em algumas questões não pronunciadas, assentiu em agradecimento e deu as costas, começando a caminhar de volta ao palácio. As horas restantes até o nascer do sol seriam de grande ansiedade para o início da missão mais importante de sua vida.



Capítulo 3 - Guerra Declarada

Sentir a areia macia e a espuma das águas geladas do mar tocando seus pés descalços sempre havia sido algo relaxante para a , mas naquele momento, nem mesmo a melhor das sensações conseguiria calar os pensamentos que insistiam em rondar sua mente ou acalmar seu coração, que batia no mesmo ritmo das ondas que quebravam firmes nos rochedos.

Desde que havia sido acordada no meio da noite anterior para receber o aviso de Gemma, o sono e o cansaço deram lugar à inquietação e êxtase, e por esse motivo, assim que atracaram, a mulher deixou ordens para uma revista completa na ilha – mesmo sabendo que sua tripulação nada encontraria –, e rumou ainda na madrugada para se sentar na orla da praia, observando o horizonte escuro enquanto processava as informações repentinas. A chuva fina que caía não a incomodava; estava imersa demais em seu próprio mundo para notar qualquer coisa além de suas lembranças.

Se anteriormente havia qualquer dúvida sobre retornar ao início, agora não mais.

A menção de Gemma à rainha, da qual há muito não ouviam falar, fez tudo voltar à tona: tudo o que perdeu, tudo o que havia passado. Todas as memórias de sua infância roubada e arruinada pela soberana; sua casa, sua felicidade, sua família.

não havia se esquecido de sua promessa, ela não poderia.

Havia jurado para si mesma desde os treze anos de idade que faria aquela mulher cair, que faria com que ela pagasse por tudo. Havia baseado sua vida nisso, lutando e se fortalecendo dia após dia para cumprir com sua palavra. Todas as coisas que tinha aprendido sozinha em seu longo e difícil caminho serviram de motivação e agora seriam postas à prova. Ela estava prestes a entrar em uma batalha para defender sua ilha, sua tripulação, e sua vida.

Mas era exatamente esse o motivo do sorriso que estampava seus lábios naquele momento.

Não planejava que as coisas acontecessem dessa maneira, mas um presente a estava sendo entregue de bandeja: tropas reais estavam indo à seu encontro. Ela não precisaria voltar ao palácio para poder dar continuidade ao que havia começado seis anos atrás. Pelo menos, não por agora. Aquele seria seu segundo aviso à Syrena, e sabia que a mulher o receberia e entenderia: se a quisesse morta, teria que pegá-la pessoalmente, e não mandar encarregados fazerem o seu trabalho sujo.

Essa guerra estava declarada há muito tempo, e a pirata estava um passo à frente.

Sempre esteve.

Ela devia isso ao seu pai. E cumpriria com sua palavra, independente de qual fosse o custo.

Com uma chama de determinação surgindo – mesmo que ainda imersa nessa maré de memórias –, só se deu conta de que o sol já se fazia presente quando os olhos de esmeralda puderam vasculhar claramente cada canto do horizonte, em busca de um navio ao qual sabia precisamente quanto tempo demoraria a chegar. Se chegasse. Tinham tempo suficiente para se preparar. E o canto dos pássaros da ilha dando lugar ao som do tilintar de espadas se cruzando foi sua deixa para se levantar, tirar a areia das roupas, calçar suas botas e caminhar de volta ao navio para reunir sua tripulação. Tinha um aviso a dar e nenhum segundo a perder.

— Capitã, agora que já passamos uma noite inteira sem sinal de problemas por aqui e seu bom humor voltou, a julgar pelo sorriso no rosto, devo presumir que podemos traçar o curso para La Maldita Isla Sangrienta, certo? Obviamente, devo também presumir que poderei acompanhá-la, já que, mesmo eu tendo perdido aquela luta, você é uma capitã extremamente benevolente, não é? — A voz sugestiva de Benny se fez presente tão logo a mulher se juntou ao local onde seus marujos lutavam.

— Muito pelo contrário — o homem quase engasgou ao ouvir essas palavras, mas antes que pudesse protestar, continuou: — Meu bom humor se dá pelo fato de que a rainha Syrena pretende invadir nossa ilha.

E a pirata teve que se segurar para não rir dos olhares confusos direcionados à ela depois daquela afirmação. Todos a encaravam sem entender o significado de suas palavras, uma vez que a mulher tinha dito aquilo com a tranquilidade de alguém que comentava sobre o clima.

— Ela ficou louca? — A pergunta veio de Celeste, que treinava com Nasher num pequeno confronto de espadas. O mesmo deu de ombros, mas o cenho franzido indicava uma resposta positiva.

— Talvez eu tenha bebido demais noite passada e acabei ouvindo errado. Ou não devo ter acordado direito ainda — Connor levou sua mão direita até a altura da cabeça, usando o dedo indicador para cutucar o ouvido.

— É uma ótima brincadeira, capitã. Sério, eu estaria rindo se você também estivesse, mas agora estou começando a me preocupar com a sua saúde — o feiticeiro voltou a falar em tom divertido, mas mudou sua expressão ao perceber que depois desses comentários, não mantinha mais a leveza em seu rosto.

— Agora escutem aqui todos vocês — a voz séria ecoou, fazendo os cochichos se calarem e toda a atenção se voltar para suas palavras: — Na madrugada de ontem, enquanto roncavam como porcos e curavam a ressaca com uma bela noite de sono, Gemma veio até mim e alertou que tropas reais estão sendo enviadas para cá. Eu não sei como aquela mulher descobriu nossa localização, mas de qualquer forma, temos seis dias até que os soldados cheguem. Essa é a distância de Willhye até aqui.

A informação foi como um balde de água fria.

O clima descontraído de segundos atrás havia mudado completamente ao perceberem que aquilo realmente não se tratava de uma brincadeira. E não demorou, também, para que os cochichos recomeçassem. Dessa vez, porém, a surpresa e preocupação eram explícitas nos mesmos.

Ignorando-os, retomou a fala e fez com que a tripulação se calasse outra vez:

— Eu não vou mentir, nós teremos uma batalha dura pela frente. Aquela mulher não brinca em serviço e também não poupa esforços para atingir seus objetivos. Estejam avisados que "piedade" e "misericórdia" são palavras que não existem em seu vocabulário — a postura firme da capitã fazia dela uma verdadeira líder. Ela mantinha o foco de visão se alternando entre cada um dos presentes enquanto falava: — Eu sou o alvo dela, não vocês. Mas de qualquer forma, eu não duvido que os soldados tenham ordens para abrir fogo contra qualquer um que entrar em seu caminho até conseguirem chegar a mim.

— Não espera que fiquemos fora de cena enquanto você luta sozinha, espera? Porque não vai acontecer — a forma que Celeste se impôs antes mesmo de terminar de ouvir suas ordens fez dar um meio sorriso.

— Não, nós vamos lutar como uma tripulação, como a família que somos. Eu sei que nada do que eu diga vai impedir vocês, e não era isso que eu pretendia, para começo de conversa — uma sobrancelha se ergueu ao encarar a menina, que acabou relaxando os ombros ao ouvir aquilo. — Mas não vou aceitar que contestem a ordem de que, se eu for abatida e capturada, não devem tentar me salvar. Devem abandonar a batalha e fugir, porque a vida de vocês vale mais do que a minha — fazendo uma pausa dramática, ela encarou os marujos. — Assim podem dar continuidade ao meu legado — completou de maneira convencida e com uma piscadinha, tentando amenizar o clima.

Mas é claro que não deu certo, já que uma série de protestos indignados se iniciou automaticamente, vindo de quase todos ali presentes. já esperava. Benny e Gemma, inclusive, eram os que mais gritavam; os dois se alteraram rapidamente ao ouvir aquela recomendação.

— Calem a boca! — O grito da capitã se sobrepôs à todas as vozes, fazendo-as silenciarem de imediato. — Eu disse que não aceitaria contestações. Essas são as suas ordens e quero que as cumpram, estejam satisfeitos ou não com elas. Uma vez que eu estiver fora de cena, presumo que eles não irão mais atrás de vocês, então não testem a sua sorte tentando bancar os heróis e fujam — depois de passear seus olhos sobre todas as caretas ali exibidas, ela prosseguiu: — Eu não pretendo me render e muito menos ser abatida facilmente. Pelo contrário, tenho certeza que podemos ganhar essa batalha, porque nós temos a vantagem. Eles estarão em território desconhecido, mas nós conhecemos essa ilha como a palma de nossas mãos, o que faz com que nossa posição e plano de ataque sejam extremamente superiores. Temos também o elemento surpresa, afinal, eles não sabem que nós sabemos de sua vinda.

A expressão fechada que detinha em seu rosto foi se abrindo em um novo sorriso à medida em que ela viu seus marujos, mesmo contrariados, aceitarem suas recomendações sem mais protestos. Com isso, a mulher começou a caminhar e diminuir a distância entre ela e sua tripulação.

Estando cara a cara com o feiticeiro, – que ainda mantinha em seus traços bonitos uma feição emburrada –, ela recomeçou a falar:

— Além disso, a magia está do nosso lado — Benny acabou por retribuir o sorriso de sua superior ao ouvir isso, fazendo uma pequena reverência. — Cada um de vocês é especialista em alguma coisa, e eu digo isso com propriedade, porque em nossos treinos, vencer não foi tarefa fácil. Gemma, assim como suas previsões, eu nunca vi você errar um alvo com suas flechas — a pirata abaixou a cabeça, um pouco envergonhada com o elogio. — Celeste, posso dizer de maneira agradecida que aprimorei meu combate corpo a corpo graças a você. Connor, você... bom, você consegue fazer muitas coisas explodirem. E também é ótimo com armadilhas — o clima começou a se amenizar entre a tripulação, que agora ria e se encorajava com os comentários de . — Nash, você luta muito bem com espadas, mas sua especialidade em ervas e pomadas para curar ferimentos é incrível. Isso vai ajudar a todos. Você é uma parte importantíssima nessa batalha, todos vocês são. Tenham isso em mente — um a um, todos foram sendo citados, e isso fez com que a determinação estampasse seus rostos. — Nós vamos ganhar. Agora, seus inúteis, parem de perder tempo e comecem a se preparar! Não estou vendo seus corpos suados de esforço e muito menos sentindo o cheiro desagradável que isso traz. Ao trabalho!

Uma vez que os marujos – agora animados e ansiosos pelo confronto –, se dispersaram entre treinamentos e preparativos, a capitã deu as costas e adentrou à cabine de seu navio, caminhando até um dos cantos e sentando-se no chão de madeira. Sozinha, ela desembainhou sua espada e a apoiou em seu colo, correndo rapidamente o olhar por toda a extensão da lâmina de aço até por fim se demorar no cabo. Ali, incrustradas na madeira, se encontravam três pérolas; duas delas da cor natural – as quais o poder já havia sido utilizado anteriormente –, e uma completamente negra e brilhante, símbolo da magia que ainda continha. Era engraçado como, os olhos de qualquer um, elas pareciam apenas uma decoração desnecessária para uma arma. Para , porém, o significado ia muito além.

Com um sorriso melancólico, a mulher deixou seus pensamentos à levarem para anos atrás, quando ainda era uma garotinha. Mesmo crescendo na corte, ser uma das nobres donzelas que exibiam seus vestidos bem feitos e bons modos pelos corredores do palácio em busca de cortejos dos soldados nunca foi seu forte: ela sempre se interessou muito mais por armas e batalhas do que pelos bailes e banquetes que Syrena promovia, motivo pelo qual insistia todos os dias para seu pai ensiná-la a lutar.

E era difícil para ele resistir ao sorriso pidão e divertido da pequena, motivo pelo qual ela ganhou sua primeira espada. Os dois trabalharam juntos na mesma, pois, além de um grande soldado, Rogers era um excelente ferreiro.

"Você não vai conseguir levantar essa espada tão cedo, . Já olhou para o tamanho dos seus bracinhos? Vai precisar treinar muito duro se quiser fazer isso." As palavras tão distantes pareciam ter sido ditas ontem.

quase podia escutar as batidas do martelo em cima do aço quente da lâmina enquanto se lembrava dessa conversa.

"Por favor, papai, me ensina! Você vai ver, um dia eu ainda vou conseguir te derrotar!" Era motivo de felicidade, para o homem, notar a determinação que transbordava dos olhos verdes de sua filha.

"Por que você quer tanto aprender a usar uma espada? Brincar com as crianças da sua idade não é mais divertido?" Rogers perguntava levando uma mão ao ombro de , mesmo já sabendo a resposta.

"Claro que não, eu quero ser como você, papai. Eu quero ser poderosa e fazer você se orgulhar."

"Você já é o meu orgulho."

Soltando um suspiro enquanto encarava o vazio, a capitã sentiu uma lágrima quente escorrer pela sua bochecha.

— Ah, pai, se pudesse me ver agora — a mão direita subiu ao rosto para secá-lo. — O que será que pensaria?

Foram os passos que soaram pela escada de madeira, se aproximando cada vez mais da cabine, que fizeram a mulher se recompor e levantar rapidamente, guardando a arma na bainha presa à cintura outra vez.

— Atrapalho? — A pergunta suave veio de Gemma, que detinha uma expressão tão leve quanto sua voz.

— Não. Eu só estava pensando em algumas coisas — respondeu se aproximando. — Algum problema?

— Nenhum. Tem um minuto para conversarmos? — Com o aceno positivo da capitã, a menina sorriu e indicou a saída do navio. — Quero te mostrar uma coisa.

As duas então começaram a caminhar pela ilha. O tempo já havia melhorado; a chuva rala que antes caía deu lugar ao sol, que agora se fazia presente em todo seu brilho e calor.

— Então? O que quer conversar? E o que quer que eu veja? — perguntou depois de uns instantes em silêncio, olhando de relance para a pirata ao seu lado.

— Você está nervosa com a batalha? — Sem parar de andar para encarar sua superior, Gemma iniciou o assunto. — Sabe que não precisa, e nem consegue, mentir pra mim.

— Nervosa não é a palavra — a resposta veio rápida, sem precisar ser elaborada. — Eu estou ansiosa. Mas de qualquer forma, não é Syrena que vem para lutar comigo, são seus soldadinhos. Isso estraga um pouco a expectativa — as duas riram juntas com o comentário.

— Não importa, quando nenhum deles retornar, ela vai entender o recado. E então, quem sabe, ela não resolva vir pessoalmente — Gemma sorriu, agora encarando diretamente a mais velha. A paisagem à frente das duas começou a se fechar entre árvores e arbustos mais robustos, o que fez a capitã franzir um pouco o cenho. — Você disse que conhecíamos a ilha como as palmas de nossas mãos, sim? Descobri esse lugar recentemente. E, bom, aqui há um pequeno truque que podemos usar a nosso favor.

Se embrenhando no meio de toda aquela vegetação, elas acabaram, depois de uma certa dificuldade, chegando até um pequeno lago bem escondido. Não havia muita iluminação ali, afinal, as copas das árvores eram grandes a ponto de não deixar os raios de sol penetrarem no lugar. A capitã nunca havia estado ali antes e tampouco entendia a razão de estar agora, o que resultou em um olhar confuso lançado para a mais nova. Isso fez com que ela soltasse uma risada e tirasse de um dos bolsos um par de luvas de couro, as quais vestiu logo em seguida.

— Quer me explicar o que está fazendo? — perguntou impaciente ao ver Gemma pegar uma das várias flechas guardadas na aljava que sempre carregava nas costas. Sem responder, a garota caminhou até a beira do lago e tirou de lá um sapo, deslizando a ponta e todo o resto da extensão de madeira da flecha pelas costas do anfíbio.

— Eu descobri esse lugar com o Nash — as bochechas ficaram rosadas por uns segundos. — E, bom, acontece que ele não entende só de plantas. Esses sapos têm um veneno paralisante. Ele não mata, mas a pessoa atingida não consegue se mover por uns bons minutos, talvez até mesmo por uma hora completa — percebendo que a capitã não havia falado nada depois da explicação, a menina se virou e deu de cara com uma expressão surpresa, e talvez até mesmo orgulhosa, de sua superior. — O que foi?

— É difícil de acreditar que aquela garotinha que veio me pedir abrigo quando nem eu mesma tinha para onde ir cresceu tanto assim — o comentário veio com uma risada.

— Ah, corta essa, . Eu cresci graças à você, que mesmo “não tendo para onde ir", me levou junto — era possível sentir a sinceridade nas palavras de Gemma, mesmo a garota estando envergonhada quanto ao comentário.

— Não poderia deixar você passar pelas mesmas coisas que eu passei — deu de ombros. — Sabe, viver como pirata, roubar e fugir de homens e inimigos é.. bem melhor do que servir e vender seu corpo para eles em troca de umas moedas para conseguir sobreviver.

— Você é uma sobrevivente, . Uma guerreira. Além do mais, é a mulher mais incrível que eu já conheci — Gemma voltou a se aproximar da mais velha depois de guardar as flechas embebidas em veneno novamente em sua aljava. — Mesmo chegando depois de muita coisa, eu trilhei boa parte do seu caminho junto com você, então posso dizer isso com propriedade. Não foi à toa que depois de treinar completamente sozinha e se destacar em vários navios você conquistou o seu próprio, bem como sua tripulação e seu título de capitã. Todos que te seguem fazem isso porque gostam de você, porque são leais a você. Não porque tem uma dívida ou foram obrigados, com suas cabeças ameaçadas, caso não o fizessem.

— Ah, cala a boca — apesar da repreensão, um sorriso se abriu no rosto de . — Estamos prestes a entrar em uma batalha épica e você me vem com sentimentalismo? Preciso de uma garrafa de rum — as duas então começaram a trilhar o caminho de volta para o navio, rindo do comentário. — Gemma... você se lembra da história das pérolas? — a mais velha voltou a perguntar depois de uns instantes em silêncio.

— Claro que sim. O que tem? — o olhar curioso encarava a expressão pensativa que estampava o semblante de .

— Acha que conseguiríamos o apoio das sereias? Sabe, elas podem ser de grande ajuda nessa batalha — a capitã parou de andar, encarando-a em expectativa.

Gemma demorou uns instantes para considerar a pergunta, como se estivesse analisando a situação como um todo antes de respondê-la.

— É algo difícil de responder. São criaturas muito complexas e ao meu ver, não há motivos para entrarem em uma batalha para nos ajudar. Não sabemos quantas delas existem, se há algum lugar específico do oceano em que se concentram e muito menos se existe uma hierarquia, um reino, ou algo assim entre elas. Mas... se tiver a sorte de achar uma, o que por si só já é uma tarefa muito difícil, e conseguir contar a sua história, fazendo com que ela acredite em você, talvez haja uma possibilidade de ficarem do nosso lado. Afinal, é uma escolha óbvia — a garota olhou para a espada da mulher. — Você tem algo para provar que o que diz é verdade.

assentiu em um gesto simples e então voltou a focar seu olhar na trilha à frente, movendo seus pés outra vez. O resto do caminho foi silencioso; as duas estavam muito absortas em suas próprias questões para conversarem entre si. E não muito tempo depois, já de volta à frente do navio, Gemma acenou em despedida e partiu para o meio da ilha, visando os próximos preparativos para a batalha. , por sua vez, ao ver todo o resto da tripulação concentrada em seus próprios afazeres, se afastou, dirigindo-se até a orla da praia – onde esteve mais cedo – e escalou uma das grandes pedras que cercavam a extensão do lugar. Por sua localização precisa e alta, de cima da mesma, a mulher tinha um grande campo de visão do vasto oceano à frente.

— Ótimo. Agora, como é que eu vou contatar uma sereia?! — A pergunta baixa para si mesma foi acompanhada de um suspiro; não havia uma resposta para aquela dúvida, então, sua única opção foi sentar e esperar.

nunca havia tido contato direto com uma das criaturas, o que dificultava ainda mais o seu plano que, àquela altura, já começava a parecer impossível, para além de maluco. A única coisa que a capitã sabia sobre elas é que eram donas de grande beleza e de grande poder. Seu pouco conhecimento vinha das histórias de seu pai. E ele sempre as contava com entusiasmo, afinal, não era só pelo mar que tinha um grande fascínio, era também por todos os seres que nele viviam, principalmente os mágicos.

Saber que sua maior paixão tinha sido o motivo de sua ruína fazia o sangue da mulher ferver.

Soltando mais um suspiro, não pôde evitar de deixar os pensamentos vagarem, outra vez naquele dia, para sua infância. Gemma tinha razão, ela tinha algo para provar que sua história era verdadeira.

"Eu tenho uma surpresa para você" A menina, um tanto mais velha, parou de treinar com sua espada e correu para os braços de seu pai com um grande sorriso.

O homem, porém, apesar de feliz por ver a filha depois de quatro dias fora em uma missão real, mantinha uma expressão um tanto avoada no rosto.

"Papai, que bom que você voltou! Um presente? O que é?" tentou pular para alcançar a mão fechada que pairava bem acima de sua cabeça, cruzando os braços com uma careta emburrada ao não conseguir.

"É algo muito especial" O canto dos lábios de Rogers se curvou em um sorriso um tanto triste. "E importante".

Os joelhos do pai então foram ao chão, onde ele se sentou logo em seguida, de pernas cruzadas, esperando que fizesse o mesmo. Quando ela o fez, a mão antes fechada em punho se abriu em sua frente, revelando ali três pérolas completamente negras e brilhantes.

"Pérolas?! São bonitas... diferentes. Onde conseguiu?" O dedo indicador da garota rolou-as na palma do homem, os olhos de esmeralda analisando-as em curiosidade.

"Foi um presente de uma sereia. Elas são mágicas." A curiosidade então se transformou em surpresa e entusiasmo. "Escute, , as coisas na missão não correram muito bem, e por isso eu quero que fique com essas pérolas. Estamos correndo perigo agora, e estou certo de que elas vão te proteger quando chegar o momento."

O tom empregado nessas palavras fez outra careta aparecer no rosto da garota. Essa, porém, demonstrava sua preocupação no cenho franzido e olhos semicerrados.

"O que aconteceu, papai? Por que estamos em perigo?"

"A rainha Syrena não aceita falhas, , você sabe. E eu... acabei falhando de propósito nessa missão. Não poderia cumprir uma ordem que fosse contra meus propósitos. Mas isso vai trazer consequências, é uma questão de tempo até que..."

— Atrapalho? — A pergunta, dessa vez vinda de Benny, fez os devaneios sumirem, trazendo a mulher de volta à realidade em um sobressalto. — Oh, eu não queria te assustar. Está tudo bem?

— Não — a resposta simples veio acompanhada de um pigarreio. — Quer dizer, não, não atrapalha e sim, está tudo bem.

— Não estava planejando se jogar, espero. Eu já estava achando que você não estava em plena consciência ao estar feliz pela invasão na ilha... o olhar de peixe morto em cima de um penhasco, agora, me preocupa ainda mais — o tom descontraído fez a capitã rir de leve e negar com a cabeça.

— E eu estava reconsiderando te levar para La Maldita Isla Sangrienta quando tudo isso acabasse, mas vejo que vou ter mesmo que te deixar por aqui — uma sobrancelha foi ao alto com a provocação. Então se levantou, tirando a areia das vestes e encarando o feiticeiro. — A não ser... não saberia, por acaso, como chamar uma sereia, não é?

— Por acaso, eu saberia sim — o tom de desdém ao encarar a superior com um sorriso malandro se fez presente na frase. — Há pouquíssimas coisas que um feiticeiro de quase duzentos anos não saiba fazer.

— Então eu ficarei honrada de ter sua ilustre companhia em nossa próxima aventura — a capitã lançou uma piscadinha para o homem à sua frente, seguida de uma reverência e uma risada. — Certo, então, como eu faço isso?

— Ah, você não faz — o sorriso da mulher se transformou em uma careta, mas Benny logo tratou de continuar a frase: — Só há duas maneiras de chamar uma criatura dessas, e as duas envolvem magia. Uma delas é por meio de uma canção, que deve ser entoada por uma bruxa. A outra é por meio do sangue de outro ser mágico, que, para sua sorte, está bem aqui em sua frente.

E com toda pose e alguns passos para ficar à beira da grande pedra, o feiticeiro tirou de sua bota uma adaga, fazendo um corte na palma da mão e deixando que as gotas de sangue escorressem e pingassem abaixo, se misturando às águas escuras e agitadas que se chocavam contra os rochedos.

— Só isso? Não precisa dizer nada do tipo "Ó, ilustres e lindas criaturas, eu as invoco com esse sacrifício de sangue"? — O olhar que Benny lançou para a fez rir outra vez, dessa, com mais vontade. — Poxa, estou decepcionada, achei que teria todo um ritual...

— Vou deixar você sozinha, capitã "rituais de invocação". Elas logo vão aparecer. Boa sorte — o sorriso ladino que apareceu uma última vez no rosto do homem foi retribuído por sua superior, que se adiantou até o extremo da pedra, ansiosa para o que veria em seguida.

E, assim como o feiticeiro havia dito, não muito tempo depois do chamado um brilho prateado ladeou as ondas, uma, duas, três vezes, até sumir. Por uns instantes, as águas ficaram calmas, como se aquilo não tivesse passado de um reflexo da lua que agora estava alta no céu.

O que veio a seguir, porém, foi de surpreender: da superfície, algo começou a emergir.

Os cabelos pretos, cheios e volumosos, esculpiam e emolduravam o – agora totalmente visível em meio ao véu escuro das águas –, rosto de pele muito branca da criatura. Seus olhos, de um violeta nunca antes visto pela capitã, – e ela duvidava que por qualquer outra pessoa no mundo –, contrastavam com todo o resto, deixando óbvio e explícito o fato de que não pertenciam a alguém comum. não pôde ver muito mais do que isso, uma vez que o resto do seu corpo estava submerso no mar. Mas o reflexo prateado que aparecera anteriormente se dava pela majestosa cauda que balançava de um lado para o outro. Ela exibia um brilho ao qual era possível distinguir mesmo em meio à total escuridão.

Era, de fato, uma beleza surreal.

— Você é humana. Mortal. Como conseguiu me chamar? — A voz melodiosa da criatura soava como um cântico, que chamava, atraía. Era quase impossível de resistir à vontade de chegar mais perto. — O que quer comigo?

— Eu... — balançou a cabeça algumas vezes para voltar à realidade, focando sua atenção em seu propósito e ignorando as primeiras perguntas da sereia para ir direto ao ponto, respondendo apenas a última: — Quero conversar sobre uma sereia chamada Ella.



Capítulo 4 - Águas Rasas

Reunir a tripulação, juntar pertences necessários para a partida e finalizar os preparativos para a tarefa foi a parte fácil. Tudo havia saído como brevemente planejado, e agora, a única coisa que restava era a madrugada escura dar lugar aos primeiros raios de sol da manhã para que a missão mais importante de sua vida tivesse início.

Essa foi a parte difícil.

estava impaciente demais para conseguir dormir. Dados os recentes acontecimentos, a mente trabalhava com inquietação para repassar todos os detalhes e imaginar incontáveis cenários do que logo menos viria a acontecer, razão pela qual as horas pareciam se arrastar no relógio de parede enquanto o homem rolava de um lado para o outro na cama. Mais cedo, havia dito para a rainha Syrena, com convicção, que não falharia em cumprir suas ordens. Agora, porém, estando sozinho com seus pensamentos, ele não estava tão certo de que conseguiria manter a sua palavra.

Não seria fácil se controlar.

Uma vez estando em frente à mulher que havia tirado a vida de seu irmão, como poderia não deixar o ódio tomar conta e lhe cegar? Como poderia encará-la, sabendo o que ela o havia feito, estando ciente da dor e da ruína que tinha causado à toda sua família, e não lhe devolver na mesma moeda?

Como poderia não fazer justiça com suas próprias mãos?

Willian merecia ser vingado por alguém de seu próprio sangue. Era o certo a se fazer, pela sua memória e legado. Era o mínimo, afinal, a cena ainda se fazia vívida aos seus olhos, toda vez que os fechava. Mesmo tanto tempo depois.

A espada, o sangue, o choro.

Suas últimas palavras ecoando no vazio, perdidas, desperdiçadas. Ditas para aquela covarde que corria para longe e desaparecia depois do feito, deixando, sem arrependimentos, o corpo sem vida do mais velho e os sonhos e esperanças do mais novo para trás.

Oh, sim, sabia que o que queria fazer seria traição à sua Rainha.

A pergunta que restava e jazia sem resposta era se conseguiria lidar com as consequências que o ato traria, caso decidisse trilhar por esse caminho. E quanto mais pensava nisso, mais o dilema o consumia, guiando-o às mais sombrias possibilidades de sucesso e falha.

Foi em meio à exaustão de tanto remoer essas dúvidas, aliás, que o sono acabou vencendo e permitindo que cochilasse brevemente. Mas nessas poucas horas da madrugada restante, é claro que não teve paz. Como se o inconsciente decidisse lhe pregar uma peça, o soldado embarcou em um sonho turbulento, onde Syrena o alertava sobre a maldição que colocaria sobre ele e toda a tripulação caso sua missão não fosse bem-sucedida. E, não bastando essa hipótese ser ruim sozinha, foi conduzido à um cenário ainda pior, onde, além da punição pelas ordens mal cumpridas, seu destino foi se tornar um pirata.

O resto é história.

Acordando abruptamente com algumas gotas de suor escorrendo pela têmpora, o homem desistiu de fechar os olhos. Ao menor sinal do alvorecer – e agradecendo por esse fato –, se colocou de pé, não demorando a juntar as poucas coisas separadas anteriormente para embarcar e atentando-se em deixar sua aparência apresentável e respeitável, digna de um capitão. Esse era seu posto agora, afinal.

E ao se dar por satisfeito, os olhos se demoraram no espelho.

O reflexo que o encarava de volta, apesar de cansado pela noite quase completamente em claro, parecia orgulhoso nas vestes. O uniforme azul refletido não só representava um grande peso em sua carreira, mas também em seu coração. Antes, ele havia pertencido a Will. Para , era uma maneira de se lembrar que, onde quer que estivesse, seu irmão estaria consigo, acompanhando-o e o protegendo. Se se esforçasse, aliás, conseguiria ouvi-lo dizer essas palavras uma última vez, como tantas anteriormente. Foi por isso que, com um suspiro e um pequeno sorriso, o soldado começou a caminhar para fora de seus aposentos.

Não tinha mais tempo a perder. O sol já clareava completamente o céu e sua tripulação provavelmente o aguardava no porto.

No caminho até lá, entretanto, uma pausa rápida foi necessária. Por mais que já há alguns anos sua relação não estivesse boa, não poderia partir sem a bênção de seu pai. Thomas sempre fora um homem muito amoroso com sua família, cuidando de todos os cinco filhos junto à sua esposa, Margaret. Eles levavam uma vida simples; Thomas era pescador e tinha um comércio local. O trabalho mal sustentava a todos e exigia muito mais do que sua avançada idade permitia, inclusive. Mas independente disso, o patriarca da família nunca chegava em casa ao fim do dia sem um sorriso no rosto e muito amor no peito, agradecido por ter alguém para quem voltar, noite após noite. E apesar de ter muitas histórias para contar, nenhuma chegava aos pés daquela que foi o ponto alto de sua vida; quando o filho mais velho ingressou à guarda real. Seu coração se encheu de orgulho.

Não poderia ter ficado mais feliz pela conquista e por tudo que ela representou, não só para ele, mas para toda a linhagem. Puderam viver bem, depois disso.

Desde o acidente, porém, as coisas haviam mudado.

Thomas havia se fechado em sua própria dor e vazio, tornando-se apático, frio e distante. Era difícil chegar até ele, e esse talvez tenha sido um dos motivos de sua família ter se desmanchado; cada um seguindo seu próprio caminho sem a união e harmonia de muitos anos atrás. Ainda assim, nunca havia deixado de tentar reconquistar o que seu lar um dia fora. O soldado imaginava que se juntar à guarda real, assim como Willian antes dele, pudesse trazer um pouco de alegria para seu pai. O efeito, entretanto, não poderia ter sido mais contrário. Isso os havia afastado de vez.

Thomas não quis mais nenhum contato depois disso.

Reprimindo esses pensamentos, o soldado deu duas batidas na porta de sua antiga casa, esperando que o mais velho atendesse.
Nada. Mais duas. E então mais algumas.
Demorou um tempo, mas a porta se abriu, revelando a imagem de alguém no fundo do poço. As roupas estavam bem sujas; provavelmente não eram trocadas já há alguns dias, e o cheiro também denunciava isso. A barba grisalha por fazer cobria bastante de seu rosto, pôde observar, estendendo-se ao pescoço e até mesmo se emendando com os cabelos emaranhados acima. Seu físico – uma vez atlético por conta de exercícios diários e trabalho árduo – parecia anêmico. O homem estava fraco, os ossos bem aparentes por sob a pele.

Mas tudo isso não se comparava ao olhar quebrado que ele exibia. Era quase possível sentir fisicamente toda a sua dor, por meio daqueles olhos castanhos quase invisíveis no meio das grandes olheiras.

— Pai — a voz soou preocupada, seu coração se apertando ao vê-lo daquele jeito.
. Já faz um tempo — Thomas parecia responder apenas por obrigação, de forma mecânica, sem estar ali realmente presente.
O soldado ponderou as próximas palavras. Não sabia como o homem reagiria perante a notícia de sua partida; talvez se alegrasse ao saber que ele estava indo vingar seu filho mais velho, talvez se afundasse ainda mais em depressão ao relembrar-se de Willian.

— Recebi minha primeira missão oficial — os lábios se repuxaram em um sorriso triste. Ele havia decidido não mencionar nada que pudesse abrir uma ferida. — Vim pedir a sua benção. Não poderia partir sem ela.
— Minha benção não vai te proteger — as palavras eram secas, distantes, mas sabia que nelas, Thomas escondia preocupação. Medo. Talvez algo mais. — De que serve? É inútil.
— Não diga isso. Não é verdade — culpa. Era o que estava escondido ali também. O soldado negou a afirmação do mais velho, umedecendo os lábios e voltando atrás em sua decisão de não mencionar o irmão: — Estou indo vingá-lo, pai. Vou caçar sua assassina e puní-la. Vamos poder viver em paz depois disso.

Uma longa pausa foi feita após essas palavras. O silêncio se instalou ali, tornando o clima do ambiente ainda mais pesado do que no início da conversa. A tensão era quase palpável.

— Piratas. Essa é a sua missão? — Antes sem expressão nenhuma além de desinteresse, agora o homem demonstrava raiva. — Willian não conseguiu se livrar deles. Pelo contrário, morreu por um. Uma. O que te faz pensar que você conseguirá?

Aquilo doeu.

As palavras haviam atingido mais do que ele gostaria de admitir. Haviam pego num ponto sensível. Ele sabia que não chegava aos pés do soldado que um dia seu irmão fora. Não tinha a experiência necessária, e talvez realmente estivesse indo para uma missão suicida e fadada ao fracasso. Mas apesar disso, confiava em si mesmo quando se tratava da importância dessa tarefa, porque sabia que seu ódio lhe daria forças para cumprir seu objetivo, independente das possíveis consequências.

— Eu conseguirei — a resposta veio simples. — Preciso que acredite em mim, pai. Não vou falhar.

Mais uma grande pausa; o olhar vazio do pai esquadrinhando todo o rosto do filho enquanto sua respiração se tornava pesada. E foi num impulso, como se fosse a única coisa a qual poderia fazer, que o mais velho passou seus braços finos e fracos ao redor do corpo de , com lágrimas brotando de seus olhos.

— Não quero enterrar outro filho. Não consigo — era um pedido velado, e se fez ali por vários e vários minutos, até que a voz soasse novamente: — Sei que não posso te impedir, apesar de essa ser a minha vontade — Thomas se afastou de forma meio abrupta após isso, olhando o mais novo outra vez, como se fosse a última. — Você tem minha benção. Apenas... prometa que vai voltar vivo.
— Voltarei vivo — sabia que o pai não acreditaria nisso até que se concretizasse de fato, mas verbalizou, mesmo assim. — E farei a culpada pagar por toda a dor que nos causou. É uma promessa.

Sem dizer mais nada, o mais velho meneou a cabeça em aceitação e se encaminhou de volta para dentro de sua casa. Com isso, o soldado levou uns instantes para absorver o que tinha acontecido ali, mas logo se pôs a correr para o porto. Agora, definitivamente, estava bem atrasado. Não demorou mais que alguns minutos em uma rápida corrida, porém, para chegar ao lugar. E observando o seu redor, constatou que o dia estava bonito, o mar agitado, e quase não havia nuvens no céu por conta do vento consideravelmente forte.

Talvez chegassem à ilha antes mesmo do prazo estipulado.

Esse pensamento junto ao fato de Frank, Amália e Mia estarem aguardando-o no cais e vestindo os mesmos uniformes que o resto da guarda real – que completava a tripulação – usava, fez o humor de melhorar consideravelmente.

Os outros dois convocados não se faziam presentes ali, mas aquilo não preocupou o soldado; ele sabia que Pogue manteria sua palavra.

— Senhores — a voz chamou atenção para si, e todos prestaram continência ao olharem para o capitão. — Nossa missão começa agora. Ao navio! Não temos mais um segundo a perder.

Dadas as ordens, todos começaram a embarcar. O navio que Syrena havia recomendado para a tarefa não continha nenhuma bandeira, brasão do reino, ou elemento que pudesse chamar a atenção para o real intuito de toda a operação. Pelo contrário, era consideravelmente menor do que todos esperavam e se assemelhava a um navio comercial comum, exceto pelo enorme Siren’s Fury marcado em prateado na proa. Era uma boa estratégia; Roccia, sendo uma ilha mercante, deveria receber vários daqueles em diferentes períodos de tempo, o que faria com que eles passassem despercebidos pelos piratas, permitindo uma aproximação segura até terra firme.

Era um ótimo trunfo. Um elemento surpresa.

E uma vez estando reunidos no convés, – mesmo com a âncora ainda cravada no fundo do oceano, impedindo o início do trajeto, – se pôs a falar, se apresentando formalmente, explicando a todos o porquê de terem sido convocados, e o que fariam dali em diante.

— Meu nome é . Serei seu capitão e comandarei essa missão. Acredito que todos aqui estejam cientes de que, atualmente, a maior ameaça do reino são os piratas, um grupo deles em específico. Nossa tarefa é eliminá-los — o olhar focava em cada um dos que ali estavam enquanto as palavras eram pronunciadas. — Muitos de vocês já sofreram nas mãos desses malditos, então, considerem-se privilegiados por fazerem parte dessa tripulação, afinal, estando aqui, poderão se vingar — um sorriso discreto acompanhou o dito. — Não é necessário poupar esforços para acabar com cada um deles, seja como for. Então, minhas ordens são simples: usem a criatividade. Qualquer meio é permitido. Matem todos que entrarem em seu caminho — alguns burburinhos satisfeitos começaram, mas com um pigarrear, tomou a atenção para si novamente, calando-os. — A capitã da tripulação, por outro lado, é minha. Tenho ordens diretas da rainha para levá-la viva de volta ao palácio, o que a torna minha obrigação. Eu me encarregarei de sua captura — o soldado soltou uma risada amargurada. — Não quero que se aproximem dela, não quero que a prendam, não quero ajuda. Vocês terão muitos outros com quem se preocupar — o tom de voz deixou claro que quem não seguisse esses comandos estaria com problemas. — Estarei em minha cabine projetando estratégias de batalha. No mais tardar, os reunirei para novas ordens. Aos seus postos! Levantar âncora, içar velas, toda força à frente rumo à Ilha Roccia!

Ao dispensar a tripulação, que prontamente se colocou a trabalhar, adentrou à cabine, fechando a porta atrás de si. Pensando estar sozinho, acabou se assustando ao notar a presença silenciosa e discreta de Pogue e Blanche no local. Nenhum dos dois vestia o uniforme que os demais usavam, ele pôde reparar, e pareciam imersos demais em seus próprios pensamentos para terem ouvido qualquer coisa dita minutos atrás, no convés. A loira jazia jogada em cima de alguns barris, encarando com desinteresse uma faca a qual brincava, passando-a por entre os dedos, e o feiticeiro, por sua vez, se encontrava encostado em um dos cantos, com braços cruzados e um olhar perdido na paisagem mostrada pela pequena janela que ali havia.

— Então eu estava certo de não me preocupar ao não vê-los aguardando junto aos outros, no porto — a frase saiu quase como um suspiro aliviado, atraindo a atenção de ambos para si. — Suponho que não tenham ouvido as ordens dadas à tripulação?
— Eu disse que estaríamos no navio antes do nascer do sol — a voz calma e desprovida de qualquer emoção de Pogue soou ao mesmo tempo em que os olhos correram preguiçosos para o capitão.
— Quer me explicar o que eu estou fazendo aqui? — Num completo oposto do homem, o tom irritadiço de Blanche se fez, marcante e ameaçador. — Em um momento, eu estava ocupada demais negociando uma boa recompensa por um foragido, e no outro, eu simplesmente apareci nesse navio. O bonitinho aqui se limitou a me dizer "Creio que não preciso gastar meu tempo com explicações. Uma vez que embarcar, tenho certeza que ficará mais do que feliz em ditar as ordens." — deixando muito claro o fato de não estar contente com a situação ao fazer aspas com os dedos durante a imitação, ela se aproximou, guardando a faca no cano da bota.
— Eu quase me esqueci de seu temperamento — parecendo não ligar para o tom imperativo que a mulher usava, sorriu. — Imaginei que ir atrás dos piratas mais procurados de Willhye lhe interessaria mais do que buscar um foragido qualquer. Erro meu.

Uma sobrancelha loira se arqueou rapidamente em curiosidade.

e Blanche se conheciam já há bastante tempo. Os dois tiveram um caso de alguns meses no passado, mas acabaram se separando por conta de suas ambições e trabalhos distintos. Enquanto o homem treinava para se juntar à guarda real, a mulher dedicou seus talentos para trabalhar anonimamente e sem vínculo à rainha, caçando criminosos valiosos por conta própria.

Não se viam há anos desde então.

— Estou ouvindo — o desinteresse forçado em sua voz fez o capitão soltar uma risada antes de repetir o que havia dito aos demais tripulantes. Blanche esperou que terminasse, antes de completar: — Uma caça aos piratas. A tripulação de . Ela vale uma ótima recompensa — as palavras saíram quase cantadas ao verbalizar o pensamento.
— Infelizmente, uma que não está ao seu alcance — a expressão de se endureceu. — Como eu disse, as ordens são para levá-la de volta ao palácio, viva. E eu me encarregarei disso. Não quero que faça nada quanto a ela. Os outros, por outro lado, são todos seus. Pode tentar ganhar algumas moedas por suas cabeças ou colocá-las em sua estante de prêmios. Fica a seu critério.

Os olhos castanhos da caçadora de recompensas analisaram minuciosamente o rosto de , procurando uma brecha em suas ordens. Blanche agia sozinha e pelas suas próprias regras, e a pirata mais procurada do reino estava em questão. Ela não hesitaria em passar por cima de seu capitão para conseguir os montes de ouro que a mulher valia. Mas, de forma óbvia, essa não era uma coisa verbalizaria ou sequer deixaria que o homem soubesse.

— Como quiser — fazendo seu desapontamento soar claro na afirmação, a loira se afastou, dirigindo-se à porta de madeira que levava para a saída da cabine. — Se isso é tudo, espero ficar em paz o resto da viagem. Você me conhece o suficiente para saber que odeio contatos e diálogos desnecessários, então, se puder avisar ao resto de seus encarregados que não me incomodem, ficarei grata. A menos que suas cabeças possam estampar minha estante, também — com uma piscadinha, Blanche se foi.
— Irei me manter fora de vista também, . Trarei problemas a você se alguém da guarda real resolver contar para a rainha sobre minha participação na missão — Pogue se pronunciou depois de todo o tempo em silêncio. — Esse navio tem um porão. Não preciso me esconder porque consigo camuflar a minha presença, mas isso é um saco de manter por muito tempo. Então, se precisar de mim, sabe onde me encontrar.

Sem mais nada a dizer, o feiticeiro saiu da cabine, deixando a sós. A loira havia feito o mesmo há apenas alguns instantes, e assim, foi fácil para o homem alcançá-la e segurá-la pelo pulso, impedindo-a de continuar seu caminho. Somando isso ao fato de estarem há alguns passos de distância do convés principal e o resto da tripulação estar ocupada demais trabalhando em seus próprios postos, a presença e conversa dos dois passaria despercebida.

— Suponho que não seja surdo, então ouviu o que eu disse segundos antes. Quero. Ficar. Sozinha — as três palavras foram verbalizadas de forma pausada, como se as dissesse para uma criança malcriada. — A menos que não tenha amor à vida.
— Perdoe-me por não levar a sério a história das cabeças, mas tenho coisas mais importantes para me preocupar além de suas ameaças vazias — foi breve ao responder, e em sua expressão não havia nada além da serenidade de quem passava um recado. — Consigo sentir sua sede de sangue à quilômetros de distância, assim como sua ambição de capturar a pirata a qual está encarregado. Suas intenções não poderiam estar mais claras em sua expressão, mesmo tentando disfarçar isso ao forçar o desapontamento em suas palavras, quando acatou suas ordens. Ele pode ter acreditado, eu não — o homem cruzou os braços, recostando seu corpo em uma das bordas de madeira do navio.

Uma risada desacreditada arranhou a garganta de Blanche perante a afronta.

— Para começo de conversa, foi você quem me trouxe aqui. Eu nunca disse que queria fazer parte disso — o sorriso que pintava seus lábios finos era quase colérico. — Mas agora que ouvi o propósito de tudo, as coisas se tornaram interessantes. Se espera que eu fique fora de cena depois de ganhar uma oportunidade dessas, está alucinando — ela se aproximou, diminuindo a distância entre os dois numa clara tentativa de intimidá-lo.
— Essa missão ocorrerá exatamente do jeito que ela precisa ocorrer, e por isso, irei impedir que pessoas como você estraguem as coisas. Há um propósito maior sobre tudo, então ande na linha e se comporte — a postura relaxada de Pogue não mudou apesar da aproximação, e suas palavras soaram como um veredito, mesmo sem nenhuma alteração na voz.
— Ou o que? Não recebo ordens de você — a arrogância no tom da loira tornava sua pergunta um desafio, o que fez um dos cantos dos lábios de Pogue se repuxar em um meio sorriso.
— Mas recebe de . Então atente-se a fazer o que ele mandar, e apenas isso. Se fizer algo além, vou garantir que as coisas não acabem bem pra você — o feiticeiro se desencostou para sair dali, indicando que a conversa havia acabado.
Não ouse me ameaçar — numa fração de segundo, a mulher puxou a faca que estava em sua bota e investiu na direção do pescoço do homem, mas a arma não encontrou suporte para se apoiar.

Pogue havia sumido. Sua figura se desmaterializou como fumaça, num piscar de olhos. Blanche estava completamente sozinha.

— O aviso foi dado — a voz vinda do nada causou um arrepio na nuca dela, que engoliu em seco e voltou a trilhar seu caminho, deixando que seus passos soassem com clara irritação no processo.

Frank, debruçado na proa do navio para observar o vasto oceano à frente, teve sua atenção atraída para o som, conseguindo ver de relance a figura feminina – que pisava firme e batia portas com força atrás de si –, sumindo em direção ao porão. Franzindo o cenho ao notar o fato de suas roupas se diferenciarem do uniforme dos demais e de não se lembrar da mulher se fazer presente no cais ou na reunião do convés, ele se voltou para Amália e Mia, que estavam próximas.

— Quando foi que outra pessoa entrou no navio? Pensei que todos que estavam aqui, além de nós, fossem da guarda real — recebendo olhares confusos em resposta, ele continuou: — Acabei de ver uma mulher indo lá pra baixo. Ela não parecia ser da tripulação.
— Quando foi que esse tipo de coisa virou da sua conta? — Mia devolveu a pergunta sem olhar para ele, a atenção voltada para o mapa e a bússola que tinha em mãos.
— Credo. Por que o mau humor, hein? Pensei que estaria animada com a ideia de matar piratas — Frank sorriu, sem levar a pergunta dela como ofensa.
— Não liga pra ela. Esse é o jeitinho da minha querida irmã demonstrar entusiasmo. Se estivesse de mau humor, sua cara estaria bem pior — Amália se aproximou dos dois, sentando-se no chão de madeira. — Quanto à mulher, deve ser só uma servente qualquer ou coisa assim.
— Uau, você não consegue ser mais óbvia? — Mia alfinetou a mais nova, que revirou os olhos. — Eu estou animada, isso não é mau humor. Só respondi sua pergunta de maneira direta. Da próxima vez, dou um sorriso para amenizar — seu olhar se desviou do mapa apenas para dar uma piscadinha para Frank, voltando à posição anterior logo em seguida.
Dando de ombros, o homem continuou a conversar apenas com a mais nova, que parecia mais receptiva e empolgada do que sua irmã quanto à missão. E, pouco a pouco, mais tripulantes começaram a se juntar à conversa, aproveitando que seu capitão ainda não havia aparecido com novas ordens para contarem histórias interessantes e engraçadas, que animavam o ambiente. Imersos no papo, inclusive, nenhum deles percebeu as horas passando. E antes de se darem conta, o sol já havia se escondido no horizonte, dando lugar a uma noite clara e limpa.

Com a chegada da madrugada, porém, o clima mudou.

O vento forte que os levava rapidamente ao destino cessou de forma súbita, desacelerando a viagem. As águas abaixo ficaram mortalmente calmas com isso, fazendo com que o navio pairasse sobre elas sem mais avançar. E essa poderia ser só uma mudança repentina e estranha, mas o nevoeiro denso e extenso que apareceu, envolvendo toda a extensão da embarcação, indicava o contrário. Vários comentários se iniciaram, aliás, quando a luz da lua, que antes iluminava toda a superfície do oceano, começou a bruxulear, se enfraquecendo em meio à neblina e deixando toda a tripulação imersa em uma escuridão desagradável.

Foi em meio a isso que uma brisa gelada tomou o ar, trazendo arrepios aos tripulantes. Talvez de frio, talvez de medo. E, bom, poderia ter escalonado para algo pior em seguida, se todos esses fatores não tivessem preocupado Frank, que correu até a beira do convés e se debruçou sobre ela, forçando a visão para tentar distinguir algo em meio ao véu escuro que era o mar. E conseguiu. Uma movimentação sutil envolta em brilho cintilante chamou sua atenção, e sem esperar um segundo a mais, o homem se dirigiu à cabine de , adentrando a mesma sem esperar resposta depois de algumas batidas rápidas.

— Peço desculpas por interromper, mas acredito que o que tenho a dizer seja algo muito importante — fechando a porta atrás de si, ele se aproximou, respirando fundo e umedecendo os lábios antes de falar: — Quando conversamos na taverna, você mencionou certas... criaturas. Creio que acabamos de entrar em seu território — e explicou o motivo de acreditar nisso ao descrever as mudanças no navio e ambiente. — Isso tudo e... eu vi. Vi uma sereia.

o encarou por uns segundos como se houvesse nascido uma segunda cabeça em seu pescoço. O homem à sua frente parecia maravilhado e entusiasmado demais para estar mentindo, o que resultou em vários segundos necessários para processar a informação. E apesar de todo o seu lado racional gritar que aquilo não poderia ser verdade, ele tinha que acreditar. Pogue era um feiticeiro, não era? Magia era real. Sereias também deveriam ser.

— A rainha Syrena me disse que haveria uma baía repleta de sereias no meio do caminho, mas eu não esperava que chegássemos tão cedo a esse ponto da viagem. Eu não esperava, na verdade, que sequer chegássemos a esse ponto da viagem — um suspiro escapou dos lábios do capitão, que ainda tentava se acostumar àquela ideia.
"Há uma baía repleta de sereias no meio do caminho." Essas foram as palavras? Algo um tanto específico demais para alguém que nunca sai do palácio ter conhecimento sobre, não acha? — e Frank deram um pulo com o susto causado pela voz e presença repentina, afinal, até um minuto atrás, eles estavam sozinhos na cabine. Não fosse por isso, se estivessem atentos, veriam um brilho de divertimento passar pelo olhar de Pogue. Mas este, tão logo veio, se foi. — Sereias não têm um domínio específico, o mar é seu reino. Todo ele. Assim que um navio sai do porto, elas podem sentí-lo. Navegamos à sorte delas, não à nossa.
— Quem é você? — a pergunta de Frank veio de maneira defensiva, e a confusão em seus olhos era clara.
— Não vem ao caso — a resposta veio rápida demais, num corte. — , o que pretende fazer? — O feiticeiro parecia particularmente interessado na resposta.
— Precisamos tentar uma aliança. Eu tenho uma coisa que pode fazer com que fiquem do nosso lado — o soldado disse um pouco avoado, dirigindo-se até a pequena bolsa que levou consigo para o navio e retirando de lá o colar de pérolas negras.

Pogue demorou seu olhar na jóia, analisando-a. Sua expressão era indecifrável, mas havia uma ferocidade ali.

— De acordo com todos os contos e relatos que eu ouvi até hoje, essas criaturas encantam, afogam e devoram marinheiros, pescadores... homens em geral. Como exatamente pretende conversar com elas? — Frank perguntou ao capitão, ignorando sua própria confusão sobre o sujeito que havia aparecido do nada.
— Vou descer ao mar, no barco. Sem armas. Mostrarei que estou em missão de paz. De alguma forma, eu sei que esse colar irá impedir que elas me façam mal — disse com convicção, mesmo sem saber de onde aquilo veio. Um segundo atrás, não acreditava na existência das criaturas; agora, tinha certeza de que não morreria se entrasse em contato com elas. — De qualquer forma..., Pogue, pode me proteger se algo der errado, não pode? — A pergunta soou mais como um pedido suplicante.
— Desde quando eu passei de feiticeiro à anjo da guarda? — O homem franziu o cenho com descrença ao ouvir a pergunta, quase parecendo ofendido. E iria responder, mas seu olhar se dirigiu discretamente a uma das pérolas que perdia seu brilho negro, símbolo de sua magia, e retornava à cor branca natural. — Não vou precisar. Mas se precisa de uma garantia pra se sentir melhor... — deu de ombros por fim, concordando com o pedido.

— Vou com você — o tom de Frank deixava claro que, apesar de todo o respeito que tinha por , não aceitaria um “não” como resposta. — Não posso morrer sem ver uma criatura dessas pessoalmente. Topei essa aventura por isso. Além do mais, todas as histórias que ouvi me fizeram aprender algumas coisas. Posso ser útil.

O capitão apenas meneou a cabeça e saiu de sua cabine, sendo seguido pelos dois. E enquanto Pogue se debruçou na proa do navio para observar, Frank e entraram no pequeno barco, começando a descer até às águas escuras e calmas, onde uma melodia suave e hipnotizante soava.



Capítulo 5 - Histórias e Desavenças

Muitas horas haviam se passado.

Na madrugada, o vento sutil, porém gelado, não parecia fazer efeito no oceano calmo e silencioso à frente. Também não era suficiente para sequer balançar a neblina espessa que permeava o ambiente, apesar de trazer alguns arrepios à pele exposta da pirata.

Não era isso que a incomodava, porém.

Sozinha ali, do alto de uma das grandes pedras que rodeavam a orla da ilha, sob o brilho mínimo das poucas estrelas que salpicavam o céu escuro e em frente à criatura que lhe encarava sem piscar, via seu plano de conseguir a ajuda das sereias ir, quase que literalmente, por água abaixo.

Não que já não estivesse se perguntando o porquê de estar fazendo aquilo, aliás. E se arrependendo, é claro. Não era de seu feitio, afinal. A capitã se garantia em tudo o que fazia; cada embate, cada luta, cada batalha. Houve dificuldades, sim. Algumas quedas, aqui e ali. Várias pedras ao longo de seu caminho, é verdade. Mas ela chutou todas para longe e deu a volta por cima, até agora. Inclusive, tudo relacionado àquela invasão que viria estava a seu favor, não estava? Seria uma luta comum, como qualquer outra. Em sua ilha. Com sua tripulação. Defendendo a sua família e o seu lar.

O único problema era que o sonho de Gemma ainda martelava em sua mente.

“Você acaba morta, ”.

Talvez, por isso, ainda estivesse se humilhando daquela forma.

— Não é mentira — estava longe de sair como uma súplica. As palavras já começavam a soar irritadiças, inclusive. — Eu não teria como inventar tudo isso.

Daryah, como a criatura se apresentou no começo, mesmo se mantendo atenta às palavras da capitã – o que por si só já era algo que excedia expectativas – não parecia inclinada a aceitar qualquer coisa vinda de uma pirata. Pelo contrário; dado o fato de ser quase possível sentir a raiva que emanava de seu ser – fosse pela situação, pelo tema da conversa, ou pela pessoa a qual conversava em si –, era plausível manter a guarda alta e esperar por um ataque a qualquer momento.

A postura defensiva exibida deixava isso bem claro, apesar de sua cantoria melodiosa e poderosa ter cessado para permitir à mulher concentração e foco nas palavras proferidas sem ser atraída para a morte.

Rogers tinha razão sobre elas, afinal.

E não que um dia tivesse duvidado, mas entendia, agora. Para muito além de encantadoras, elas eram traiçoeiras. Enigmáticas. Instáveis. Curiosas. Imprevisíveis. Desconfiadas. Irritantes, talvez.

Havia muitos adjetivos.

E, desde o início do que parecia ser mais um monólogo do que uma conversa, um nome havia sido a única coisa que conseguiu ouvir ser, de fato, pronunciado. De resto, a cauda da sereia, – um ponto de luz balançando despretensiosamente no véu negro da água –, iluminava com seu brilho translúcido um rosto de pele muito branca, envolto pelos grossos cabelos castanhos molhados, e íris de cor violeta, que queimavam com desconfiança. Havia também uma pequena torção nos lábios rosados, pôde perceber, mas essa mínima expressão demonstrada foi o mais próximo de uma emoção humana que a criatura demonstrou.

Irritante, de fato.

A capitã não tinha esperanças de que as criaturas se aliassem à causa dos piratas e fizessem parte da linha de frente da batalha, se fosse para ser sincera. Sua ideia, na verdade, era que elas pudessem auxiliá-los com distrações ou coisas do gênero, e, se isso não fosse possível, que no mínimo se mantivessem afastadas e não lutassem ao lado inimigo. Mas talvez fosse apenas demais esperar poder contar com qualquer complacência de seres tão desconhecidos e peculiares.

Até aquele momento, a propósito, eles não passavam de uma lenda para a mulher.

E não que fosse admitir, mas estar na presença de uma sereia – mesmo que ela estivesse tirando a sua pouca paciência – era, de longe, umas das experiências mais incríveis já vivenciadas pela pirata. Poderia assimilar isso depois, porém. Agora, tinha um objetivo a conquistar. E o fato de não ter nada além da verdade – talvez, com sorte, uma mínima prova dela –, não ajudava em sua situação.

— É fácil empregar um teor triste e melancólico em palavras vazias para fazê-las parecerem reais, mas mentiras e desonestidade são grandes habilidades de natureza humana. Principalmente quando os humanos em questão são piratas. Você pode, tranquilamente, estar manipulando os fatos a seu favor para me fazer ficar ao seu lado em uma batalha que nem mesmo me interessa — tendo se mantido em silêncio até o fim da narrativa, a voz melodiosa da criatura finalmente soou outra vez, envolvendo como uma onda forte. Mas o tom empregado, apesar de rude e incisivo, tinha uma ponta de curiosidade: — Por que eu deveria acreditar no que está dizendo?

Embora tenha acusado de estar mentindo, a afirmação de Daryah quanto ao interesse na batalha tampouco era verdadeira. Assim que ouviu o nome de Ella ser pronunciado pela primeira vez, lembranças de um passado mal resolvido foram desenterradas, e se houvesse qualquer envolvimento dos soldados da rainha – como a capitã afirmava, – no que dizia respeito à captura de sua irmã, catorze anos atrás, a criatura não hesitaria em tomar um partido nessa luta.

Ela só precisava ter certeza da veracidade dos fatos narrados pela mulher.

— Meu pai não costumava dividir comigo os detalhes das ordens que recebia, principalmente ao sair em missões, mas essa foi uma exceção. Ele disse que precisava recuperar para a rainha um objeto perdido no oceano, e que havia uma grande possibilidade de ver uma sereia com seus próprios olhos por conta disso. Eu me lembro de sua animação antes de partir — ignorando a alfinetada, a pirata manteve a postura ao tornar a falar. Seria sua última investida: — Quando ele retornou, parecia outra pessoa. Estava com medo. Era como se soubesse de algo que não deveria. Ele me entregou três pérolas, dizendo que as recebeu de Ella como retribuição pela sua tentativa de ajudá-la a se libertar. Me disse também para guardá-las comigo, porque elas me protegeriam do perigo que estaríamos correndo a partir daquele momento.

Com um suspiro um tanto frustrado por reviver aquelas memórias que remetiam a um momento triste de sua vida – e que na presença da criatura pareciam se intensificar, como se ela propositalmente a forçasse àquilo – desembainhou sua espada para responder, dessa vez de maneira não verbal, a pergunta de Daryah.

A sereia, apesar do gesto inesperado vindo da pirata, o qual, à primeira vista, parecia uma ameaça, não se mexeu ou se deixou intimidar. Ela queria uma prova, afinal. Palavras a mais não bastariam.

apenas esperava que o que tinha além delas fosse suficiente.

No breu da noite e com a distância entre as duas sendo algo a se considerar, porém, era quase impossível contar com as chances de que as pérolas pudessem ser distinguidas em meio à madeira do cabo da arma, mas, como se a natureza lhe fizesse um favor, ao inclinar a espada para baixo, um fraco feixe de luz da lua crescente no céu apareceu por entre as densas nuvens, iluminando a lâmina e refletindo na água o brilho negro de uma das três jóias, símbolo do poder remanescente que ali havia.

O silêncio que se instalou no momento seguinte, enquanto Daryah contemplava tanto a mulher quanto sua espada – em um misto de choque, fascínio e surpresa –, foi suficiente para fazer uma pequena ponta de esperança reaparecer no peito da capitã, que falhava em esconder um sorriso de alívio e vitória. Mas apesar de todas as emoções simultâneas exibidas no rosto da criatura, era precipitado imaginar que o efeito causado houvesse sido positivo, afinal, não havia como a pirata saber quais pensamentos rondavam sua mente no momento.

— Aparentemente, elas protegeram — o comentário feito pela sereia, segundos após se recompor, agora vinha num tom menos hostil do que o empregado em suas últimas palavras. — Mais do que uma vez, pelo que posso observar. Como sabia como usar as pérolas?
— Não sabia. Até hoje, para falar a verdade, eu não sei. Tenho apenas um palpite. Eu só… me agarrei à promessa do meu pai, de que elas me manteriam segura, e quando precisei, foi isso que aconteceu — a resposta honesta de fez a criatura balançar levemente a cabeça em um sinal positivo.

Ficando em silêncio por mais uns instantes e parecendo considerar o que tinha ouvido ali, Daryah balançou a cauda na água, sem nadar, de fato. O movimento fez pequenos redemoinhos surgirem em volta de seu torso emerso, como se o oceano, de alguma forma, respondesse aos seus sentimentos. E naquele momento de introspecção da sereia, se permitiu deixar o objetivo de lado e deslumbrar um pouco a situação, considerando como o que estava vivendo era surreal.

Havia muito mais no mundo lá fora do que o que já tinha presenciado, não é?

— Há uma hierarquia entre nós. Mesmo que eu leve essas informações à minha corte e à minha rainha, não posso garantir que teremos inclinação em te ajudar nessa luta — saindo do torpor, foi a vez da pirata de assentir positivamente com o veredito da sereia, que deixou sua voz soar um tempo depois. — Mas, se te serve de consolo, não ficando ao seu lado, que aparentemente tem a verdade a seu favor, duvido que ficaremos ao de seu inimigo, também.

Essa, porém, era outra afirmação nada verdadeira vinda da criatura. Se realmente tinha aquela verdade ao seu favor, como dizia, seu inimigo estava condenado.

Daryah só não fez questão de deixar a mulher ciente disso.

Assim, sem esperar por uma palavra final de gratidão vinda da capitã, a sereia afundou nas águas geladas do oceano, não perdendo tempo em nadar para longe da ilha enquanto pensava na conversa que acabara de ter. Por mais que odiasse admitir, a história contada por tinha reaberto uma ferida que ainda não havia cicatrizado por completo em seu peito, e o fato de a pirata ter em sua posse um elemento que servia como forte indício da verdade em suas palavras não ajudava no dilema que a criatura agora enfrentava dentro de si.

Até aquele momento, afinal, Daryah acreditava em uma versão diferente dos fatos relacionados à Ella. Mesmo que uma de suas irmãs tivesse presenciado sua captura e insistisse, desde aquele fatídico dia, que o que havia ocorrido era o mesmo que ela acabara de ouvir de .

Claro, as duas poderiam estar mentindo.

poderia ter conseguido aquelas pérolas de outro jeito; roubando, talvez. Era uma ladra por natureza, afinal. Uma saqueadora. Uma pirata. Cheryl, por sua vez, apenas gostava de pregar peças. De mentir, de enganar. Suas brincadeiras inconvenientes formavam um longo histórico que resultava no fato de ninguém mais levá-la a sério.

Mas era muita coincidência duas pessoas que não se conheciam, – dois mundos diferentes – terem a mesma versão dos fatos, com uma história completando os furos da outra.

E era exatamente por esse motivo que havia uma voz na cabeça de Daryah insistindo que ela havia cometido um erro grave em não acreditar em sua irmã, tantos anos atrás.

Talvez devesse ter deixado a cisma de lado só por aquela vez, e tê-la dado um voto de confiança, uma chance de ser ouvida. Talvez devesse ter levado em conta o apelo de sua narrativa, a tensão em sua voz que tremia ao relatar o ocorrido, ou, quem sabe, o brilho de seus olhos, que não pareciam mentir. Mas foi apenas difícil demais crer que logo ela, dentre tantas mais honestas ou, ao menos, mais fáceis de serem levadas a sério, poderia estar falando a verdade todo esse tempo.

Se estivesse, toda a vingança buscada pelas sereias contra os piratas ao longo dos anos, afundando vários navios e se alimentando da carne de seus tripulantes, havia sido em vão. Elas teriam perseguido e punido gerações de pessoas erradas, movidas pelo ódio de um ato que não haviam cometido.

E com isso, deixando os verdadeiros culpados impunes.

Pela primeira vez, Daryah duvidou de seu próprio julgamento. E isso, para ela, era um fardo pesado demais para se carregar. A justiça era um dos principais pilares que regiam sua vida, afinal. Sem ela, o que restava?

— Não é irônico o fato de, depois de tanto tempo, aparecer alguém contando uma versão dos fatos relacionados àquele dia muito parecida com a minha? — Imersa demais em sua autodepreciação, Daryah tomou um leve susto quando a voz de Cheryl, quase como se houvesse sido invocada, arrancou-a de seu torpor, verbalizando tudo aquilo que a mais nova pensava segundos atrás.

— Vejo que ainda não perdeu o costume de ouvir conversas que não te incluem — a falha em aplicar um tom rude no comentário foi rebatida por uma risada ácida de sua irmã mais velha. — Acho que já te disse o quanto é feio bisbilhotar assuntos particulares.

Cheryl não parecia preocupada em negar que havia mesmo ouvido cada palavra da conversa entre sua irmã e a pirata.

Com as cores vivas presentes em sua cauda e cabelos ruivos ondulados se destacando mais do que os corais bioluminescentes do fundo do mar, – que traziam certa luz à escuridão das profundezas, – a sereia se aproximou, exibindo um sorriso de deleite em seus lábios cheios. Muito diferente de Daryah, tanto em aparência quanto em personalidade, Cheryl lembrava uma chama ardente que se alastrava de maneira rápida, tomando conta de tudo e todos antes que qualquer um pudesse fazer algo a respeito para contê-la.

Desde sempre havia sido assim. E isso era motivo de muitas dores de cabeça para todas as outras sereias.

— É quase um insulto você dizer que esse assunto em específico é particular — passeando seus olhos cor de âmbar pelo rosto muito branco de sua irmã, a ruiva soltou uma pequena risada. — Estou curiosa. Por que a palavra da pirata vale mais do que a minha?

Daryah não segurou um suspiro cansado perante a pergunta, a qual ela sabia conter muito mais significado do que aparentava.

— Não vale — a resposta veio simples. — As duas têm o mesmo peso. As pérolas que ela possui, por outro lado, dão mais credibilidade para sua narrativa — tendo sustentado o olhar da irmã até o momento, a mais nova vacilou ao encará-la para dizer as próximas palavras. — E isso significa, uma vez que o que ela me contou foi o mesmo que você contou anos atrás, que talvez você estivesse dizendo a verdade.

Cheryl sabia que esse seria o mais perto de um pedido de desculpas que Daryah chegaria. Era mais do que o esperado, mas não era o bastante, de qualquer forma.

Estava longe de ser suficiente.

— Eu nunca escondi minha falta de apreço pela Ella e por suas regras estúpidas. Pelo contrário, sempre fiz questão de deixar isso claro até demais. Ainda assim, ela me salvou, mesmo que apenas para cumprir suas obrigações como rainha. O mínimo que eu poderia fazer para retribuir isso era contar à vocês a verdade, para que assim pudessem perseguir e punir os culpados para vingá-la. Em vez disso, vocês decidiram passar uma vida perseguindo pessoas que nada tinham a ver com aquilo apenas pela birra cultivada por mim e pelas minhas brincadeiras inocentes — transformando o tom levemente implicante em algo mais raivoso, a ruiva deixou sua voz soar outra vez. — Agora, finalmente a sua ficha de que eu não brincaria com algo tão sério deve ter caído. Imagino que esteja se sentindo péssima.

Lançando para a mais velha um olhar ressentido, Daryah balançou a cabeça.

— As provas estavam contra você, Cheryl. Tudo estava! — Não suportando mais se afogar na própria culpa, a morena já se afastava para sair dali. — De qualquer forma, não tenho tempo para isso, preciso deixar Pearl ciente de tudo, afinal, cabe à ela o julgamento do que fazer com as novas informações, não a mim ou a você.

— Não acha que isso mudará algo para ela, acha? — Impedindo sua irmã de sair dali e a deixar falando sozinha, a mais velha entrou em sua frente, encarando-a sem esconder o divertimento estampado em seu rosto com a situação. — Não há a menor possibilidade de ela levar as palavras de uma pirata a sério, afinal, ela vem cultivando raiva por eles todos esses anos. Foi bom, inclusive, você ter encontrado a capitã antes dela. Tenho certeza que se fosse diferente, a pobre mulher seria mais um esqueleto inocente no fundo do mar.

Me dá um tempo, Cheryl — perdendo a paciência com a provocação, Daryah voltou a encarar os olhos amarelos de sua irmã; os seus queimando em um misto de emoções negativas — Pearl pode não levar as palavras de uma pirata a sério, mas as minhas ela vai ao menos considerar. Diferente de você, eu não ajo com imaturidade e não dou motivo para desconfiança, o que já é um grande ponto a mais.

— Não muda o fato de que eu estava certa o tempo todo. Mas quem sabe, se você se esforçar bastante para fazer a nossa querida rainha reconsiderar a minha história, Ella não pare de se revirar no túmulo em que está agora — a risada da ruiva foi a gota d'água para Daryah, que, sem responder nada, nadou o mais rápido possível para longe dali.

Apesar da maldade daquelas palavras, que atingiram a sereia muito mais do que a mesma gostaria de admitir, ela sabia que sua irmã estava com a razão. Agora tinha certeza que realmente havia cometido um erro em não acreditar nela tanto tempo atrás. A única coisa que restava para aliviar sua consciência era fazer com que Pearl também visse isso. Havia uma chance de se redimir, afinal.

Elas poderiam considerar a oferta de aliança de e lutar ao seu lado.


Capítulo 6 - Dúvidas e Conflitos

"O encanto das sereias sob os homens é praticament'e impossível de ser quebrado", as palavras distantes de Frank martelavam em um aviso incessante, de algum lugar fundo na mente de . "A única chance de sobrevivência é se agarrar à pior memória que possui, ao fato mais cruel e doloroso já vivenciado e ao sofrimento que lhe persegue até hoje, porque isso é real. Sua dor é real. Qualquer outra coisa, além disso, é apenas uma ilusão."

Mas era apenas difícil demais se concentrar naquela memória quando Willian estava ali, logo à sua frente, com um sorriso caloroso nos lábios e os braços abertos prontos para lhe receber em um abraço acolhedor e saudoso, que há tanto não sentia.

Não é real. Willian está morto. Você estava lá quando aconteceu.

Mas nem mesmo o lado racional que insistia em se fazer presente, e que por uns segundos até mesmo era capaz de trazê-lo de volta à realidade, fazendo-o ter ciência de seu corpo quase totalmente submerso na água gelada, – embora o homem não se lembrasse como ou o porquê de estar naquela situação –, era tão forte quanto a sensação de paz e felicidade extrema que experimentava ao ver seu irmão ali, bem em frente aos seus olhos, outra vez. Vivo.

conseguia senti-lo; o toque gentil do polegar em sua bochecha, que limpava as lágrimas quentes de saudade que escorriam pelo seu rosto, era verdadeiro. Também conseguia ouvi-lo; a voz emotiva e embargada que o chamava, claramente dizendo que havia voltado para casa, que havia voltado para ele, estava ali.

Ela dizia que ele não precisava mais se preocupar ou se sentir perdido, porque não estava mais sozinho.

Como aquilo poderia ser só uma ilusão? Era real demais. Seu peito ardia em chamas pela emoção. Seu corpo formigava dos pés à cabeça ao se permitir aconchegar nos braços do irmão mais velho. Seu coração parecia queimar com tão boa sensação.

Ou seriam seus pulmões?

A falta de ar que começou a se fazer presente levou embora todo aquele mundo perfeito em segundos, trazendo a realidade dolorosa à tona a medida em que turvava a figura esguia e sorridente à sua frente, fazendo-a se transformar em algo diferente a cada instante em que as células de seu corpo imploravam por oxigênio. Num piscar de olhos, o sorriso de Willian se desfez em uma careta de dor, enquanto o sangue escorria de seu peito perfurado pela lâmina afiada de uma espada. A risada da pirata ecoou por detrás do corpo. o estava perdendo, novamente. E perdendo a si mesmo, também. Dessa vez, porém, em um sentido literal.

Todo o êxtase se transformou em desespero. Mas esse foi o momento em que o homem conseguiu ver a verdade por trás do véu da ilusão.

Nos segundos de agonia, onde a vida se esvaía de seu corpo enquanto se afogava, a imagem de seu irmão tomou a forma de uma bela mulher, com o rosto a apenas alguns centímetros de distância do seu. As mãos grandes e firmes, antes apertando seu corpo em um gesto acolhedor, agora ele via com clareza; eram delicadas e femininas, tinham membranas entre os dedos, e o puxavam suavemente para o fundo do mar, em um abraço da morte.

Não fosse isso suficiente, logo abaixo, no lugar onde pernas humanas deveriam estar, uma cauda brilhando em vermelho e prateado agitava a água escura.

Então, subitamente, se lembrou.

As palavras de aviso de seu melhor amigo haviam sido proferidas enquanto o pequeno barco descia pela lateral do navio, rumo ao oceano calmo. Antes de elas serem processadas por completo, porém, um cantarolar melodioso soou, envolvendo-os. O mundo ao redor parou de existir, e qualquer coisa senão aquela voz angelical ou a criatura que a possuía não significava nada para os dois homens. Por esse motivo, não houve medo ou sequer hesitação quando tentáculos verdes e grossos – aparecendo sutilmente por entre o véu negro da água enquanto os dois estavam ocupados demais com a majestosa sereia – se enroscaram na madeira do barco, partindo-o em vários pedaços e deixando ambos, assim, à deriva. Tampouco houve incômodo quanto à água gelada em que se afundaram ao não terem mais onde se apoiar. A distância que tomavam de seu navio, nadando para chegar mais perto da criatura, era igualmente irrelevante.

Não, nada disso importava. Ela era a única realmente digna de toda sua atenção. Em toda a sua beleza e poder.

Com os grandes cabelos negros cacheados ornados por uma coroa de algas incrustada de flores e conchas coloridas destacando a pele tão branca, juntamente aos olhos que se assemelhavam à dois grandes e brilhantes rubis vermelhos, a sereia não precisou de mais do que dois segundos para fazer com que e Frank caíssem em seu encanto. Dois homens, duas abordagens diferentes; foi fácil para ela adentrar às memórias felizes do primeiro, seduzindo-o assim com o que ele mais queria em vida: a promessa de sua família perfeita unida novamente. O desejo de ter seu estimado irmão de volta para que isso fosse possível.

E teria dado certo, se ao invés de se entregar e ceder à morte, – deixando seus pulmões que clamavam por ar serem invadidos pela água em um suspiro final – o soldado não tivesse lutado contra o aperto da criatura para alcançar uma jóia que havia chamado sua atenção, ao escapar de seu bolso e começar a afundar ao seu lado. , em seus últimos segundos de vida, se agarrou ao sentimento de que o colar o protegeria e também às palavras de Pogue; de que não seria necessária a sua intervenção. O olhar sugestivo do feiticeiro para a peça foi suficiente para que o homem tivesse a certeza de que, de alguma forma, ela seria sua salvação. E assim, quando seus dedos tocaram na única pérola branca em meio às pérolas negras, se segurando, em sentido literal, à última esperança remanescente, um clarão forte surgiu.

Com ele, a sereia foi empurrada com tudo para trás em uma pequena explosão de água, que, assim como a havia afastado, havia feito emergir.

E da superfície, com o peito subindo e descendo de maneira bruta e descompassada em desespero e necessidade de oxigênio, o soldado olhou ao seu redor, procurando por Frank. O mesmo, para seu alívio, se encontrava parado ao seu lado, com um olhar perdido e confuso na direção onde a criatura havia sido lançada.

Apesar dessa expressão, porém, nada além disso parecia ter acontecido com ele; seu rosto ainda estava seco e sua respiração normal.

— Frank? — A voz fraca e arfante chamou pelo amigo. — Você... você está bem?

— Onde ela está? O que fez com ela? — As sobrancelhas se franziram em ainda mais confusão, como se o homem lutasse contra sua própria mente para entender o que estava acontecendo.

— Esqueça a sereia, precisamos sair daqui — falou, olhando novamente ao seu redor. Dessa vez, procurava pelo navio.

Em meio à toda aquela neblina que os rodeava, entretanto, era difícil conseguir visualizar qualquer coisa além do vasto oceano em que estavam. E a consciência do frio e da água gelada que agora os atingia com tudo, fazia seus corpos tremerem. Eles não podiam mais ficar ali, era fato. Por isso, forçando a visão o máximo que conseguia, ao longe, o soldado pôde enxergar a silhueta da embarcação.

Envolta dela, porém, havia uma coisa muito maior; os mesmos tentáculos que quebraram o pequeno barco que os levou ao mar. Eles se enrolavam por toda a extensão do navio.

— Gostaram do meu bichinho? — Melodiosa, a voz da sereia voltou a soar. agarrou as pérolas do colar em sua mão com mais força, nadando para perto de Frank em um gesto de proteção. — Ele é inofensivo, até que eu peça para não ser. Apesar do meu pedido, porém, ele não conseguiu seguir minhas ordens de afundar o seu navio. Sabem me dizer o porquê?

Emergindo suavemente em meio às águas enquanto nadava para mais perto dos dois homens, a criatura sorriu. Seu torso nu, coberto apenas pelos volumosos cabelos, agora era visível sob a escuridão da noite. E recebendo apenas olhares assustados em resposta, – no caso de Frank, o desejo e paixão se sobressaindo ao medo –, a sereia riu.

— Cavalheiros, acredito que não seja gentil e honroso da parte de vocês deixar uma dama falando sozinha — os olhos vermelhos faiscavam à medida que a mulher falava, se aproximando sutilmente enquanto isso. — Vamos começar pelo começo. Meu nome é Pearl. Consigo ver que há muita magia cercando vocês, tanto no navio quanto aqui — seu olhar se direcionou às pérolas na mão do soldado, que mesmo submersas, emitiam um brilho característico. — Isso é interessante. Posso saber o que queriam vindo até mim?

— Eu quero fazer amor com você a noite intei... — as palavras de Frank foram interrompidas quando ele se deu conta do que estava dizendo.

o lançou um olhar indignado, o qual fez a sereia rir mais uma vez.

— Não o culpe, eu precisei usar outra abordagem com ele. Não há memórias muito felizes em sua mente para serem revividas, então fiz com que ele se apaixonasse por mim — a criatura deu de ombros e os rodeou enquanto nadava. — Estou perdendo a minha paciência.

— Pearl — finalmente encontrou sua voz, dirigindo-se à sereia da forma mais amigável possível. Ele sabia que qualquer palavra errada poderia ocasionar outro ataque. — Nós viemos pedir a sua ajuda.

Agora, além da expressão divertida que ela mantinha em seu rosto, as sobrancelhas se arqueavam em curiosidade e ironia.

— Não consigo imaginar um motivo que o faça pensar que isso seria provável, ou sequer possível — a criatura encarou diretamente o soldado, parando de nadar. — Por que eu ajudaria um homem que veio, de tão bom grado, se encontrar com a morte? Nunca ouviu as histórias ou é apenas ingênuo o suficiente para não levá-las a sério?

— Nem um, nem outro. Para ser sincero, eu não acreditava em nada disso momentos atrás — a frase saiu mais para ele mesmo do que para ela. — Mas o que interessa é o assunto que quero tratar com você — pigarreou, sustentando o olhar da sereia. — Sou um soldado de Willhye, e minha rainha me enviou em uma missão de captura da pirata mais procurada do reino.

— Não há piratas por aqui — Pearl cantou, com um sorriso maldoso estampando seus lábios. — Eu e minhas irmãs nos encarregamos de afundar e matar todos os que ousam navegar em nossos oceanos.

— Por causa de Ella, imagino — respondeu em mesmo tom, o que causou um chiado irritadiço na criatura.

A expressão de Pearl mudou imediatamente ao ouvir aquele nome, seu cenho se transformando em algo raivoso, monstruoso. As unhas da mão que foram rapidamente ao pescoço do soldado se tornaram grandes e afiadas, semelhantes a garras, segurando-o e apertando com força em ameaça. Frank, observando a situação, travava uma guerra interna entre interferir e ajudar seu amigo ou apenas admirar a beleza da criatura, quase implorando para estar no lugar de .

— O que e como sabe sobre Ella? — Seu tom deixava bem claro que um movimento ou palavra em falso seriam o fim para o homem.

— Sei que foi morta por piratas — a voz saiu sufocada em meio à dificuldade de respirar. — E que deu essas pérolas mágicas em retribuição ao esforço dos soldados da rainha para libertá-la — a mão que agarrava o colar subiu rente ao corpo para deixa-lo visível.

Afrouxando o aperto no pescoço do soldado, Pearl demorou seus olhos na jóia. Então, soltando-o por completo, a criatura levou a mão até ela, analisando pérola por pérola, todas reluzindo com a magia que ali havia.

— Estou ouvindo — deixando a raiva dar espaço para a curiosidade quanto ao que o homem tinha para falar sobre a falecida sereia, Pearl se afastou, mantendo sua atenção na narrativa.

— Eu não sei muito, não era um soldado oficial na época, mas meu irmão sim — se recompondo, iniciou a narrativa, dizendo para a criatura as exatas palavras que Syrena havia dito para ele: — Eles estavam em rota comercial; Willhye tem muitas ilhas com as quais mantém relações de compra e venda de produtos variados. Depois que finalizaram as negociações, no caminho de volta, o navio real cruzou com um navio pirata, e então os soldados observaram aqueles homens puxarem para a superfície, em uma grande rede, uma sereia. Além de terem ordens da rainha para abater qualquer um que representasse ameaça ao reino, eles não deixariam que mais esse crime passasse impune. Então o confronto começou.

Pearl mantinha sua expressão impassível enquanto ouvia a história de , mas seus olhos atentos não deixavam escapar nenhuma oscilação na voz ou algo que indicasse uma mentira.

— E então? — Ela incentivou, esperando o final da narrativa.

— E então o embate saiu do controle. O navio de Willhye era um pequeno navio comercial, não teve estrutura suficiente para acabar com o navio pirata. Não conseguiram salvar a sereia, e muitos homens morreram, mas os sobreviventes que conseguiram voltar para casa, meu irmão entre eles, de alguma forma milagrosa, ou mágica suspirou, digerindo suas próprias palavras, como se custasse a aceitar esse último fato. — Foram protegidos do confronto, mesmo com a embarcação em frangalhos. Eles entregaram esse colar para Syrena, e explicaram que nos seus últimos momentos, Ella os entregou a jóia, dizendo que ela os protegeria.

Syrena? — Dessa vez, havia algo diferente nos olhos de rubi da criatura. Mas tão logo quanto apareceu, se foi.

— Conhece nossa rainha? — O soldado perguntou, surpreso e um pouco confuso.

— Não — a resposta veio rápida demais. — Sereias não tem contato com o reino humano. De qualquer forma, supondo que eu esteja disposta a ajudar, para o que exatamente você precisa da minha ajuda?

— Você disse que não há piratas por aqui, mas está na ilha Roccia. Ela é a mulher que eu preciso levar de volta ao reino para ser punida por seus crimes. Meu pedido é para que, caso haja qualquer confronto marítimo no caminho, vocês sejam nossas aliadas. Da mesma forma que, se por algum acaso ela e sua tripulação consigam escapar, vocês impeçam — não havia qualquer indício de que a criatura estivesse disposta a aceitar a oferta, até que usou sua última cartada, a qual a sereia não pôde recusar: — O homem responsável pela captura e morte de Ella foi Rogers, pai dessa mulher.

Ainda mais do que antes, agora Pearl não hesitava em esconder a raiva que borbulhava de cada parte de seu corpo. Sua respiração estava alterada; era como se ela se concentrasse para não agir imediatamente, como se lutasse contra seus instintos de destruição. O clima hostil era quase palpável, e os tentáculos verdes que antes envolviam o navio de se soltaram, vindo rapidamente em direção aos dois homens e à sereia.

Mas, surpreendentemente, eles não representavam uma ameaça.

— Sua viagem até Roccia será tranquila. Levarei essas informações para minhas irmãs e nós entraremos em um consenso do que fazer quanto à isso — a criatura deu seu veredito para o soldado. — O Kraken devolverá vocês em segurança ao navio.

Ao mesmo tempo em que as palavras foram ditas, os tentáculos se enroscaram no corpo de e Frank. O primeiro – apesar de apavorado por ter o corpo sustentado por um Kraken – suspirava aliviado pelo resultado positivo da conversa e por ter sobrevivido. O segundo protestava em sons e gestos por se afastar de Pearl.

— Me leve de volta! Eu quero ficar perto dela! — O homem choramingava enquanto dava alguns socos nas escamas da criatura. — Não vá embora!

Pearl, mesmo em meio à toda raiva que sentia, não escondeu um sorriso quanto as palavras de Frank. Sua resposta, entretanto, foi direcionada ao soldado.

— O efeito vai passar em algumas horas, mas não posso garantir que ele ainda não se lembre de mim depois disso — ela cantarolou, sumindo pelas águas escuras enquanto o Kraken os colocava em segurança na proa do navio.

Depois de toda a confusão, a sereia se afastou da embarcação, nadando para longe e pensando na história que havia contado. No meio do caminho, porém, ela foi interceptada por uma de suas irmãs, Daryah, que vinha à seu encontro.

— Pearl — sua voz urgente indicava que algo estava errado, o que deixou a rainha das sereias preocupada. — Nós precisamos conversar.

Mais ao longe, vinda de outra direção, com um sorriso sugestivo no rosto e os cabelos ruivos esvoaçando em meio às águas escuras, Cheryl também se aproximou.

— Nós definitivamente precisamos conversar.


Capítulo 7 - Escolhendo Lados

Mal o sol havia trazido seus primeiros raios ao horizonte, pintando-o em tons de laranja, rosa e lilás, e o silêncio da madrugada, que antes pairava sob as águas geladas e escuras do fundo do oceano, já era quebrado pelas vozes alteradas de uma discussão que ressoava por quase todos os sete mares.

Até mesmo as ondas, tantos metros acima, pareciam se agitar e castigar os marinheiros que tinham a má sorte de passar por ali.

Não sendo isso algo rotineiro, – visto que a primeira e única vez que as sereias entraram em uma briga dessas proporções havia sido quatorze anos atrás, no dia da captura e morte de Ella, – toda e qualquer criatura, com exceção do grande Kraken que tinha seus tentáculos verdes ao redor da rainha em um gesto protetor, se distanciava rapidamente do local onde a reunião acontecia, querendo evitar o caos ao qual sabiam que iria se instalar em questão de tempo.

— Não havia dois navios naquele dia e não houve um embate. Eu estava lá, eu vi, eu participei. Quantas vezes terei que repetir que Ella foi capturada por soldados do reino, e não por piratas? O homem está mentindo — com o desdém de costume, Cheryl insistia em defender seu ponto. — Ele fez uma ótima narrativa, devo admitir, super bem elaborada e com a dose certa de drama. Eu daria uma nota dez pelo esforço, mas faltou uma coisinha chamada "veracidade" para ficar completo. Coisinha essa que, surpresa! A pirata tem.

Daryah não evitou um suspiro cansado com o tom da irmã, mas sustentou o olhar decepcionado da rainha para reforçar as palavras da ruiva, saindo em sua defesa:

— Se houvesse acontecido um embate entre dois navios naquele dia, Pearl, nós teríamos ouvido os canhões — com a voz mansa, ela prosseguiu: — Além do mais, o fato de soldados entrarem em uma briga com piratas para salvar uma de nós não faz sentido algum. O que eles teriam a ganhar com isso?
tinha um colar de pérolas negras. Vocês sabem que esse era o dom de Ella, e ela não teria dado tanta magia para qualquer um. Faz sentido que tenham tentado salvá-la — Pearl começou, não evitando de carregar a voz com desprezo ao continuar: — Não posso acreditar que a esteja defendendo, Daryah. Há um motivo para não termos comprado a história de Cheryl naquele dia — os olhos vermelhos faíscavam em raiva por ser contrariada.
tinha pérolas negras, também — a voz saiu em mesmo tom e nenhuma hesitação. — E, uau, uma bandeira preta com uma caveira no centro jogada ao mar no exato ponto onde a captura aconteceu, esse é o seu grande motivo para não acreditar em mim. Foi colocada ali para culpar os piratas, minha querida rainha. Daryah está me defendendo porque sabe que eu estou certa. Você também deveria saber — retomando a atenção para si, a ruiva completou: — E pare de se referir a mim como se eu não estivesse aqui.
— Três pérolas de uma pirata contra um colar inteiro delas de um soldado. A conclusão é simples e óbvia; vejo claramente o cenário onde a mulher as tenha roubado. Você está tão desesperada para que eu acredite em você a ponto de esperar que o fato de uma pirata contar a mesma versão da sua história me convença de que ela é verdadeira, Cheryl? — A rainha não segurou uma risada, dirigindo seu olhar para a mais nova. — Isso só te descredibiliza ainda mais.
— Pearl — Daryah deixou as palavras soarem outra vez, controladas, quase apreensivas: — Fui eu quem ouvi a história da pirata, e posso afirmar que cada palavra dita foi sincera. Se havia uma mentira ali, nem mesmo ela poderia saber, afinal, não foi ela quem vivenciou o fato ocorrido. Tampouco o soldado. Os dois tiveram a história passada à eles por terceiros, bem como as pérolas.

Um grande silêncio se fez presente no ambiente enquanto as sereias se encaravam. A tensão era quase palpável, afinal, as opiniões divergiam. Pearl não parecia inclinada a aceitar o lado oposto, e Cheryl, igualmente, não parecia querer dar o braço a torcer. Daryah, por ter sido o pilar daquele pequeno confronto, – uma vez que trouxe à tona a versão da pirata, enquanto sua rainha tinha ouvido a do soldado –, tentava mediar a discussão para que elas não chegassem ao ponto de tomar lados opostos em uma possível guerra.

Antes que ela pudesse falar qualquer coisa a mais, porém, outra das irmãs reunidas no embate interveio.

— Pearl — se houvesse qualquer barulho presente naquelas águas, naquele exato instante, a voz não seria ouvida por conta do tom calmo e suave. Astrid, até agora, não tinha sentido necessidade de entrar no confronto. Suas opiniões se mantiveram neutras até o momento, onde achou plausível deixar o silêncio de lado e se posicionar:
— Talvez você devesse considerar ouvir o lado contrário. Ouviu uma das versões, mas há outra. Para uma decisão tão importante, é necessário saber a história por um todo.

A mais nova não costumava se meter em discussões, fossem elas as oficiais da corte ou apenas entre suas irmãs mais chegadas, sendo essas as que debatiam no momento. Acima disso, detestava qualquer tipo de conflito, e por não suportar vê-las brigando, decidiu fazer seu ponto ser considerado na tentativa de dar um fim àquilo.

— Nós não precisamos ajudar um lado ou o outro. Apesar de Ella ter sido capturada por um humano, e de Cheryl insistir que foi um soldado enquanto você tem certeza de ter sido um pirata, não soubemos com a devida certeza na época e ainda não sabemos nos tempos presentes. Além do mais, os que estão em guerra agora não tem culpa dos erros de seus antecessores — Astrid prosseguiu enquanto as outras ouviam, caladas, cada palavra: — Talvez tenha chegado a hora de darmos um fim nisso. Nessa vingança que já tem anos e que, com essa história, acabou se provando errônea — pausando apenas por alguns segundos após o dito, a sereia finalizou: — E Daryah está certa, afinal. Se chegar ao ponto de escolhermos, sim, um lado, precisamos ter a confirmação, dessa vez, de que é o certo. E você não pode dar um veredito ouvindo apenas um deles.

Apenas o som das respirações alteradas pela raiva pôde ser ouvido por um longo período de tempo depois das falas de Astrid, mas, por fim, um suspiro longo se deu, junto à quebra de postura defensiva de Pearl.

— Vocês estão certas. Para fins diplomáticos, irei ouvir também o lado da pirata — a rainha disse em sentença, dando o braço a torcer. — Duvido que seus argumentos me convençam, de qualquer forma. Mas concordo que seja necessário, ao menos, dar a ela uma chance de ser ouvida e julgada.

Em meio às reações de alívio de suas irmãs, a rainha deu a discussão por encerrada, se afastando, juntamente ao Kraken que a acompanhava, do grupo reunido, – que agora já se dispersava, deixando-a sozinha.

E enquanto nadava rumo à ilha Roccia, Pearl não pôde evitar de deixar os pensamentos vagarem até as lembranças que tinha de Ella.

A antiga rainha sempre havia sido um exemplo a ser seguido; era benevolente, justa, inteligente. Desde que havia assumido o trono, muitas eras atrás, não houve problemas na corte marítima que não fossem prontamente resolvidos por ela.

Exceto por um.

Ella havia criado uma grande rivalidade com Cheryl depois de banir, por crimes contra a coroa, sua irmã caçula, Syrena.

As duas eram inseparáveis, e desde que a sentença de exílio havia sido decretada, Cheryl nunca mais foi a mesma; parecia ter dedicado sua vida para fazer a da rainha e a das outras sereias um inferno, quase como em retribuição ao fato de ter perdido a única pessoa com a qual se dava bem.

Era irônico pensar que foi justamente para salvá-la que Ella havia sido capturada.

Naquele dia, segundo a história da ruiva, um navio de Willhye se aproximou de seus domínios. Muitos soldados se aglomeraram na proa, ansiosos, extasiados, curiosos para ver as tão belas criaturas que seus mitos, lendas e histórias contavam. Sangue mágico foi derramado na água no intuito de convocá-las, e como Cheryl era a mais próxima do local, foi ela quem atendeu ao chamado. Assim que emergiu, porém, os soldados não hesitaram em lançar uma rede de pesca ao mar, acertando-a em cheio antes que ela pudesse usar seus poderes para se defender.

Ella chegou segundos antes de a tragédia ser completa, impedindo que a ruiva fosse capturada, mas colocando-se como consequência em seu lugar durante o processo.
Desde então, o trono e as responsabilidades da coroa foram passadas para a segunda na linha de sucessão, Pearl.

Por conta disso, já há algum tempo ela não subia à superfície em plena luz do sol. Como rainha, a sereia tinha muitos assuntos para tratar em sua corte, – a qual se localizava nas profundezas do oceano, um lugar iluminado apenas pelos corais, peixes e criaturas bioluminescentes – e isso lhe consumia quase todas as horas do dia, além das energias para fazer qualquer coisa que não fosse descansar em seu tempo livre.

Esse fato fez o cenho se franzir ao submergir há alguns metros da ilha Roccia; os olhos incomodados com a claridade – que a trouxe de volta de deus devaneios – demoraram a se acostumar.

Era uma visão que valia a pena, porém. Tudo ali era bonito, embora a sereia tivesse certeza que apreciaria muito mais a vista se seus nervos não estivessem tão aflorados com a conversa que teria logo em seguida. Ou, ao menos, se essa conversa fosse com outro alguém que não detivesse o título de “pirata”.

Suspirando pesadamente por odiar o fato de estar ali a contragosto, mas permanecendo firme apenas em consideração ao pedido de Astrid, – e mantendo uma pontinha de divertimento com o que estava por vir por conta de ter o Kraken ao seu lado, ao qual sabia que traria terror à –, Pearl começou a entoar uma melodia suave no intuito de chamar a capitã.

O primeiro a ouvir seu chamado, porém, foi Benny.

O feiticeiro, estando junto aos outros piratas em uma reunião que havia organizado para passar as estratégias de batalha, se pôs em alerta.

— cortando a mulher antes que ela pudesse finalizar sua última explicação, Benny disse: — Perdoe-me a interrupção, mas há alguém solicitando sua presença na orla da praia.

Uma sobrancelha da mulher foi ao alto com a fala repentina, e em seu cenho uma expressão levemente confusa apareceu, mas esta logo se desfez quando o canto da sereia finalmente a atingiu.

— Estão dispensados por hora. Passarei as últimas ordens quando voltar — anunciou para a tripulação, se pondo a caminhar para o local de destino.
— Vou acompanhá-la — Benny se adiantou, colocando-se ao lado da capitã. — Ela não é como a sereia de antes. Tem uma presença e energia muito mais hostil.
— Eu sei me cuidar sozinha — a mulher sorriu, direcionando seus olhos aos do homem, que se mostrava apreensivo. — Além do mais, tenho uma tarefa importante para você.

Aproximando-se dele, sussurrou baixo ao seu ouvido. E recebendo um sorriso brincalhão em resposta, seguido de um sinal positivo com a cabeça e uma pequena reverência, a capitã riu suavemente.

— Estarei de volta antes que perceba — o homem informou, dando alguns passos à frente para cumprir a ordem recebida. — Tente não morrer de saudades — já de costas para , a qual sabia estar revirando os olhos com o comentário, ele completou: — E tome cuidado.

Sem esperar resposta, Benny se lançou ao ar, o corpo agora não mais humano, mas sim pequeno e penudo: um corvo, tão negro quanto um céu noturno sem estrelas ou lua. Olhando uma última vez para sua superior antes de se concentrar em sua tarefa, ele grasnou, deixando claro que não apreciava a ideia de deixá-la sozinha com a sereia. O feiticeiro sabia, porém, que era o único que poderia cumprir a tarefa de ir até o navio inimigo para coletar informações. Assim sendo, não demorou em focar-se no caminho à frente, voando com velocidade em busca de seu objetivo.

Em determinado ponto, entretanto, Benny decidiu mudar sua forma outra vez.

Por estar sobrevoando o vasto oceano – que se mostrava relativamente vazio, exceto por alguns barcos de pesca aqui e ali – o homem achou plausível transmutar seu corpo para o de um peixe-agulha. Não seria incomodado por predadores nessa forma e poderia chegar ao destino mais rápido, uma vez que sua velocidade nadando seria superior à voando.

E algum tempo mais tarde, – sem saber precisar exatamente o quanto, mas tendo ciência da distância percorrida –, Benny finalmente se aproximou do navio, que, a um primeiro instante, não parecia ser o certo, julgando pelo fato de o mesmo não ter nenhum emblema real ou sequer um tamanho condizente com o que a missão exigia. Deixou esses fatos de lado, porém, ao imaginar que essa poderia ser exatamente a intenção da rainha; um ataque surpresa.

O feiticeiro então recuou alguns metros, se pondo fora da vista de olhares curiosos para se transformar novamente no corvo negro e assim poder se aproximar da proa sem ser notado. Se fosse, porém, a única desconfiança dos tripulantes seria quanto ao fato de, como nas histórias, a ave representar um mau agouro, uma predição de morte.

Esse pensamento o fez rir. Ou o mais próximo de uma risada que um corvo poderia chegar.

Pousando então em um dos mastros do navio, Benny, com seus olhos afiados de pássaro, esquadrinhou tudo e todos ali. Fazia um reconhecimento geral da tripulação: quem era o capitão e quantos eram os seus encarregados, como se vestiam, como lutavam, e, principalmente, qual o seu nível de ameaça. Neste último quesito, ninguém parecia passar da média.

Algo, porém, – ou melhor dizendo, alguém –, chamou sua atenção logo em seguida.

Parecendo surgir do nada, como se no segundo anterior ele não estivesse presente ali, o feiticeiro não demorou a reconhecer seu semelhante, sentindo o sangue mágico correndo por suas veias quase como o aroma de um perfume forte sendo carregado pela brisa. De mesma forma, o rival também o identificou, os olhos humanos claros se demorando nos miúdos e negros do corvo.

— a voz do homem soou, sem emoção, junto a duas batidas na porta da cabine do navio. — Tenho uma coisa para lhe mostrar.

Imaginando que seu disfarce havia sido comprometido, Benny ameaçou voar para longe dali, mas um olhar cúmplice do feiticeiro rival o impediu. Algo escondido ali deixava implícito que, qualquer que fosse a coisa que precisava mostrar ao seu capitão – ou assim o pirata concluiu, uma vez que estando dentro da cabine principal, o homem só poderia ter esse posto –, não tinha relação com a sua espionagem.

Curioso, Benny se manteve no local.

E assim que se fez presente no convés, o feiticeiro se pôs a falar outra vez:

— Estamos perto da ilha Roccia. Por conta dessa proximidade, consigo usar minha magia para dar a você e à tripulação uma visão panorâmica da ilha — antes que o capitão pudesse falar, ele continuou: — Acredito que até mais além do que isso. O alcance desta magia não é exatamente preciso, mas podemos ter, com ela, a ciência de quantos iremos enfrentar, e, caso eles estejam treinando ou fazendo algo nesse momento, uma prévia de suas habilidades.

Contendo um grasnado contrariado, – e tentando entender o motivo de o rival estar falando e fazendo aquilo bem em sua frente, deixando-o ciente de que seus inimigos teriam informações sobre a sua tripulação da mesma forma que ele estava tendo sobre a dele –, Benny se manteve atento à demonstração de poder de Pogue.

Em sua mente, porém, as dúvidas acerca dessa e de outras questões não paravam de rondar. Por que ele não tinha contado ao seu capitão sobre a espionagem? Por que estava contribuindo com informações preciosas de sua magia e habilidades tão abertamente quando sabia que havia um inimigo a bordo? E, acima de tudo, por que parecia estar agindo como um aliado?

Benny deixou os questionamentos de lado quando as imagens da ilha Roccia se formaram à sua frente. Era, de fato, uma visão panorâmica e imprecisa do lugar, mas, aos poucos, Pogue conseguia captar os locais de posicionamento dos piratas. Gemma, perto das árvores, analisando qual ponto seria melhor para se fixar. Celeste e Nash em campo mais aberto, treinando com espadas e adagas. Connor, mais ao longe, mexendo de forma suspeita no chão.

— Com essas informações, pode posicionar melhor a tripulação — diferente da primeira frase, que havia sido dita desprovida de qualquer emoção, essa foi pronunciada pelo feiticeiro com uma ponta sutil de sagacidade. — Amália com seu arco e flechas, Frank com combate mais direto, Mia e seus truques explosivos…

E então as intenções de Pogue ficaram claras para Benny: ele queria passar informações.

Estava agindo como um aliado.

Em nenhuma situação aquilo fazia algum sentido para o pirata, mas ele não iria recusar o ouro entregue de tão bom grado. Ao menos, é claro, que aquilo fosse uma armadilha. Falsas informações para confundí-lo. Era possível, claro. Fazia mais sentido do que o rival estar ajudando. Mas seu instinto dizia o contrário. De alguma forma, sentia poder confiar no homem.

— Onde está a ? — perguntou, a voz entredentes.

Pogue então mexeu as mãos, fazendo, junto ao gesto, as imagens da ilha se mexerem também, mudando de foco. Na orla da praia, a imagem da capitã, mostrando-se cautelosa ao conversar com a sereia – fato ao qual o capitão reagiu de forma exasperada, deixando o descontentamento e a raiva claros em sua expressão –, apareceu.

Depois disso, tudo aconteceu muito rápido.

Na mesma imagem, tentáculos verdes apareceram em foco, atacando a mulher assim que ela desembainhou sua espada. Sendo jogada longe, caiu na areia, os olhos queimando em ódio ao encarar a sereia e a criatura que a cercava. riu, satisfeito, ao mesmo tempo que Benny, dessa vez, não evitou um grasnado alto.

Sem esperar um segundo a mais ou se importar de ter atraído a atenção para si, – mesmo as caretas confusas da tripulação indicando que não precisava se preocupar em ter sido descoberto – ele partiu dali para Roccia, em disparada. Fez o caminho de volta muito mais rápido do que deveria ser possível para um pássaro normal, – o que, de certa forma, ele não era, mesmo – com o peito subindo e descendo em raiva e preocupação.

E quando a ilha já se fazia presente em seu campo de visão, os olhos esquadrinharam a orla, procurando pela sereia. Ela já não estava mais ali, mas permanecia no local, a raiva podendo ser sentida de longe.

Benny então se aproximou, não pensando duas vezes em transmutar seu corpo para a forma humana para prestar suporte à superior. Contava com o fato de que Pogue agisse realmente como um aliado e não mostrasse essa visão para seu capitão, afinal, se o fizesse, também se entregaria como traidor.

— O que aconteceu aqui? Você está bem? — Por conta do esforço do vôo, sua voz saiu cansada e arfante, fato que fez a mulher dar um sorriso de canto.

— Dois dedos quebrados. Nada demais — deu de ombros ao falar, focando os olhos de esmeralda nos castanho-mel do homem. — Voltou rápido por que? Por acaso pressentiu que eu precisava de ajuda? Trocou de posições com a Gemma?
— Quase isso — respondeu devolvendo no mesmo tom petulante. — Recebeu um não? A sereia tinha uma presença hostil. Se não me falha a memória, acredito que eu tenha lhe alertado sobre isso.
— Não precisamos da ajuda daquela piranha — bufou, contrariada. — Vamos. Quero saber tudo o que descobriu.

já se adiantava para adentrar à ilha, mas uma risada alta vinda do mar chamou sua atenção.

— É um ótimo apelido para ela — uma cabeleira ruiva se fez presente, emergindo das águas cristalinas iluminadas pelo sol — Se bem que, pobre das piranhas. Enfim — vendo as expressões intrigadas que e Benny exibiam, Cheryl sorriu: — Espero que esteja desdenhando apenas da ajuda dela, porque eu pretendo lutar ao seu lado nessa guerra.


Capítulo 8 - Uma Troca Inesperada

A expectativa de quanto à batalha havia melhorado consideravelmente depois de ver, por meio da magia de Pogue, – cuja única mudança desde a primeira e única vez que o soldado a havia visto foi ganhar traços mais adultos – ser atacada pela sereia com a qual ele havia tentado uma aliança no dia anterior. Aquilo, em sua visão, significava que mesmo que a criatura tivesse dado a oportunidade de a pirata se defender, seu lado não havia sido considerado, e isso, por sua vez, levava à conclusão de que as sereias estariam ao seu lado na guerra.

Somar isso ao fato de poder posicionar seus homens de acordo com as breves habilidades que havia visto da tripulação dos piratas fez com que suas estratégias de batalha fossem organizadas com um sorriso vencedor no rosto.

Um sorriso que não durou muito, porém.

Enquanto passava à sua tripulação quais seriam suas posições na ilha – Amália, com seu arco e flechas, contra a pirata que também portava um; Frank e Blanche na linha de frente, os dois experientes em combate direto contra os inimigos que atacariam em um primeiro momento; Mia, mais afastada, se encarregando de procurar pelo navio inimigo e Pogue na retaguarda, usando sua magia para auxiliar os que precisassem, – o chão de madeira do convés abaixo de seus pés começou a tremer e balançar muito mais brutalmente do que normalmente acontecia em viagens, a menos que estas fossem realizadas no meio de uma tempestade.

Não era o caso.

Indo até a proa na tentativa de entender o que estava acontecendo, o soldado pôde ver, de relance, um brilho alaranjado passando como fogo pelas águas. Mas não foi isso que chamou sua atenção. Não, o que o surpreendeu – ou melhor dizendo, chocou – foi o fato de pedaços de madeira estarem flutuando para longe, sendo carregados pelas ondas. Pedaços de madeira do seu navio, que estava destruído em vários pontos, como se houvesse sido atingido por diversos tiros de canhão.

Eles estavam afundando.

A causa disso, naturalmente, era Cheryl.

A sereia rondava o navio rapidamente, atirando sua saliva ácida no casco e deixando que a mesma corroesse a estrutura, fazendo com que grandes quantidades de água entrassem e alagassem as partes internas. O caos que se instalou no convés chamou sua atenção e foi motivo de risadas: , tentando controlar o desespero, gritava ordens aos tripulantes, empenhando-se em achar um jeito inútil de contornar a situação.

— Cheryl — com um suspiro teatral e uma revirada de olhos, a ruiva se virou, interrompendo o que fazia para encarar Pearl, que devolvia seu olhar desdenhoso com uma fúria extrema: — Eu acabei de voltar de Roccia. Ouvi a pirata e decidi que ficaremos neutras nessa batalha. O que pensa que está fazendo?
— Afundando o navio — a mais nova respondeu de forma óbvia, podendo ver, por conta disso, a rainha se segurar no último fio de paciência que ainda lhe restava para não avançar em seu pescoço. — Atrapalho? Achei que já estivesse mais do que claro que eu não ligo para o que você decide ou deixa de decidir. Não ligo para as suas ordens e não pretendo obedecê-las. As outras podem abanar o rabo e se abster da luta como você ordenar, se quiserem, mas eu vou escolher o meu lado nessa luta.

Principalmente se isso contraria você.

Foi a gota d’água, para a mais velha, escutar aquelas palavras.

Ignorando qualquer bom senso, – ou maneira de se portar, como seu posto exigia –, Pearl partiu para cima de Cheryl, as mãos, antes delicadas, tomando uma forma animalesca, com garras no lugar de unhas. Seus olhos brilhavam com o vermelho mais intenso que a ruiva já vira, chamas de raiva queimando ali como duas brasas ardentes, distorcendo o rosto bonito junto aos dentes afiados que chiavam em um som perturbador.

Histórias e lendas humanas geralmente descreviam sereias como belas criaturas, antes de as mesmas mostrarem quem realmente eram. E era exatamente dessa segunda maneira que Pearl se mostrava agora: um demônio sem alma; uma criatura canibal horrenda que tinha sede de sangue, ódio e prazer em matar.

Cheryl não estava tão diferente.

Sem se deixar intimidar com a ameaça iminente, mesmo com o aperto da rainha em seu pescoço cortando a pele e dificultando sua respiração, a ruiva usou os espinhos de sua cauda em um golpe rápido para arranhá-la na bochecha, cuspindo ácido no lugar logo em seguida. Com a distração do ataque, elas se afastaram uns metros, e foi nesse meio tempo que a mais nova pôde ver alguns soldados afundando junto ao navio, os corpos se debatendo enquanto imploravam por oxigênio.

— Já que você está tão neutra nessa guerra, não vai se importar com isso, hm? — A provocação causou outro chiado raivoso em Pearl, que voltou sua atenção para o que acontecia logo acima.
— Você acabou de me obrigar a tomar um lado nessa batalha, Cheryl. Se vai trair sua família, sua corte e sua rainha para ajudar os piratas, então está banida. Não vou perder o meu tempo lutando com você porque isso não me cabe. Faça do seu lugar aquele em que os ladrões, saqueadores e assassinos estão — a voz era amarga, carregada de nojo. — A partir de agora, somos dois polos opostos nessa guerra.

Com um último olhar de ódio direcionado à irmã, Pearl convocou o Kraken, que surgiu, segundos depois, com seus tentáculos gigantes se agitando quase em sincronia com a raiva da rainha.

— Que assim seja — Cheryl passou a língua entre os dentes, deixando um sorriso de escárnio aparecer ali. — Meu trabalho aqui está feito, de qualquer forma. Eu te desejaria boa sorte, mas eu quero mais é que você se foda.

Segurando um grito de raiva, Pearl deixou que Cheryl se afastasse, agradecendo por esse fato. Se a ruiva ficasse ali por mais um segundo que fosse, a rainha sabia que não hesitaria em arrancar fora a sua cabeça. Por isso, fechando os olhos com força e tomando uns instantes para respirar fundo, ela se focou no que pretendia e precisava fazer. Já havia perdido muito tempo; um tempo precioso que resultou na morte de muitos soldados da tripulação de .

Não estava disposta a deixar que a parte sobrevivente perdesse aquela guerra.

Assim sendo, a sereia nadou em velocidade, junto ao Kraken, até a superfície, correndo os olhos rapidamente pela extensão do navio que ainda estava emersa. Havia uma considerável parcela de homens desesperados ali, – incluindo o capitão e seus soldados mais próximos –, o que fez Pearl suspirar, um alívio egoísta em suas próprias razões adicionado ao ato. Deixando isso de lado e analisando suas opções, ela chegou a uma conclusão simples: usar a força da criatura para sustentar o que sobrou da estrutura do navio, além de inútil, seria mais trabalhoso e tomaria mais tempo, então, sem fazer alarde ou anunciar sua presença, a rainha apenas ordenou ao Kraken que levasse seus vários tentáculos ao convés e enrolasse-os sorrateiramente pelo corpo das pessoas – que, tão imersas em seu desespero e terror, quase nem notaram o fato em um primeiro momento.

— Irei levá-los até a ilha. Vocês tem alguns segundos para pegar as armas que restaram. — A voz se dirigiu ao capitão, que encontrou seu olhar segundos depois de ser içado pela criatura abissal. Havia gratidão em meio ao medo. — À essa altura, já devem saber que não têm mais o elemento surpresa. Com certeza Cheryl alertou os piratas, que agora os esperam. Ao menos estão vivos e poderão lutar.

Sem dizer mais nada, uma vez que todos os sobreviventes estavam bem seguros e presos aos tentáculos, Pearl mergulhou, sumindo da vista dos tripulantes e conduzindo o Kraken até Roccia. Não foi uma viagem longa; em menos de uma hora, – a noite no céu já despontando em decorrência ao sol que se punha –, chegaram em terra. E após deixar todos em segurança na orla da praia, a rainha dispensou a criatura, que mais do que depressa voltou para a fenda mais profunda do oceano.

Olhando uma última vez para a ilha, a sereia pôde ver o rosto abalado por tantos eventos sucessivos e repentinos de todos ali, junto às suas respirações ofegantes.

, se afastando dos demais, caminhou em sua direção, os pés parando no limite das ondas na areia.

— Não sei como agradecer — ele disse de maneira sincera, os olhos gratos sustentando os ainda raivosos da rainha.
— Não me agradeça, apenas aproveite a segunda chance que lhe foi dada. E não conte com mais ajuda do que isso — Pearl respondeu, não de maneira rude, mas direta. — Essa guerra é entre humanos, não espere que eu me envolva outra vez.

Sem esperar resposta, ela sumiu por entre as águas escuras, deixando o capitão, um tanto atônito, para trás. Ele, porém, se forçou a recuperar rapidamente as rédeas da situação. A sereia tinha razão: não poderia desperdiçar o que lhe foi oferecido, e para isso, precisava agir imediatamente. Em voz baixa, porém firme, reuniu a tripulação em um círculo e se pôs a falar:

— Entendo que o acontecimento de minutos atrás tenha abalado nossas estruturas e confiança para a guerra que se sucederá. Agora não é hora de lamentar as perdas, porém. — Um suspiro levemente irritado escapou de seus lábios: — Estamos em território inimigo e nossa mente precisa estar focada em vencer essa batalha. Aqueles que perderam suas vidas em razão do ataque da sereia sabiam dos riscos e vieram aqui para vencer os piratas e vingar suas perdas, então, venceremos por eles. Os honraremos. Mais do que isso, estamos em serviço ao nosso reino, e à nossa rainha. Isso tudo é maior do que nós, por isso, precisamos dar o nosso melhor para sairmos vitoriosos. Não será fácil, mas eu acredito em vocês.

As estratégias foram reorganizadas e repassadas rapidamente.

Não poderiam atacar em grupo porque, apesar de ser mais fácil, isso chamaria mais atenção; tentariam então, em vez disso, separar duplas e seguir caminhos diferentes para cobrir terreno. Não poderiam, também, esperar até o amanhecer, porque, apesar de com ele ser possível ter uma visão melhor do lugar, sabia que os piratas não hesitariam em acabar com todos ali enquanto revezavam turnos para descanso.

Atacariam, então, à luz do luar, sem perder tempo.

Podiam também contar com a magia de Pogue na retaguarda, mas não ter mais o elemento surpresa tornava a tarefa muito mais complicada para os soldados: antes, o fato de poder surpreender os adversários com a chegada e ataque repentino era um trunfo. Agora, porém, o jogo havia se invertido e os movimentos estavam contra eles.

Precisariam ser extremamente cautelosos.

Com a calada da noite, a ilha parecia deserta. Mesmo com os olhos e ouvidos atentos ao redor, os únicos sons possíveis de serem ouvidos por ali eram o uivo do vento e o farfalhar das folhas das árvores que este produzia. Algumas corujas camufladas no escuro se preparavam para caçar, os assobios emitidos por elas soando como um alerta de perigo. Fora esses pequenos detalhes, porém, não havia nenhum indício de que o lugar era habitado. Os piratas estavam muito bem escondidos. Aguardando, sabia que sim.

Por isso, o mais silenciosamente possível, , usando apenas um gesto de cabeça e mãos, dispensou seus tripulantes. Os mesmos, em duplas, como o ordenado, começaram a se embrenhar pela ilha, dando início à caça aos inimigos.

Tomando sua própria direção, o capitão seguiu.

A espada era empunhada com força, os olhos eram atentos tanto à sua volta quanto onde pisava e a guarda estava alta para qualquer ataque que pudesse sofrer. Estava focado em seu objetivo: precisava achar . Assim que chegasse até ela, aquela guerra estaria ganha, disso ele sabia.

Pogue, mantendo uma certa distância, seguia logo atrás dele.

O feiticeiro, mais do que qualquer um, sabia que a luta do capitão seria difícil, uma vez que sua oponente não era uma qualquer: ela tinha uma forte reputação e uma trilha de corpos deixados para trás para comprovar isso.

E apesar de ter dito que não queria a ajuda de ninguém, Pogue tinha a intenção de o ajudar, contrariando suas ordens por seus próprios propósitos.

Enquanto o soldado seguia um longo caminho sem incidentes, o primeiro de sua tripulação a encontrar um pirata foi Frank. Uma pirata, para ser mais preciso. E ela não estava sozinha. Para a sorte do homem, nem ele. Ao seu lado estava Mia, portando duas adagas já a postos para serem usadas. Os quatro se encararam apenas por alguns instantes antes de iniciarem um confronto. Nash, sem hesitação, partiu pra cima da mulher, a lâmina de sua espada defendendo habilmente os golpes da rival, que sem muita dificuldade, também se defendia de seus contra-ataques e investidas.

Levou uns segundos até Frank sair de seu torpor inicial causado pelo fato de o homem decidir atacar Mia ao invés de ir pra cima dele próprio, de igual para igual. Aquilo não fazia sentido para ele. Era covardia.

Sua reação tardia, porém, não o impediu de se defender de um soco desferido pela pirata, bem a tempo de evitar que ela o acertasse em cheio no rosto.

— Se eu fosse você, não perderia tempo ficando surpreso com nossa falta de modos — a mulher falou, sacando uma espada de lâmina média da bainha em sua cintura. — Não se preocupe, eu dou conta de você, não preciso lutar com ela pra ter uma chance. — Odeio acabar com a sua empolgação, mas eu não gosto de machucar uma mulher — de forma um tanto desajeitada, ele deu um passo para trás e olhou-a de baixo a cima. — Ainda mais uma tão bela. Mesmo sendo uma criminosa — completou rápido, assumindo uma postura defensiva.

Foi a vez de Celeste parar por alguns segundos, encarando-o.

— Eu já não esperava muito dos soldados da rainha, mas isso é ainda pior do que eu imaginava — um suspiro escapou de seus lábios e um sorriso se abriu ali logo em seguida. — Tudo bem, ao menos você facilita o meu trabalho — sem esperar uma reação, a pirata partiu pra cima do homem.

Frank não impediu que sua expressão se fechasse em uma carranca ao ouvir as palavras dela. Diferente do que a mulher pensava, não estava ali a serviço da rainha, tampouco era um soldado da corte. Estava apenas ajudando um amigo. Não teve tempo para contestá-la, porém, pois precisou pular para trás antes que a rasteira que ela tentou lhe dar fosse certeira.

Com isso, se afastou da pirata, postando-se logo atrás da mesma com um giro rápido. Agora, havia uma adaga em sua mão direita, a qual ele pressionava levemente em suas costelas.

— Eu não sou da corte, pirata. Também não acredito que suas habilidades dependam de espadas, caso contrário seus golpes seriam feitos com ela — Frank cuspiu as palavras, se lembrando, com a arrogância com que a mulher se portava, o porquê de odiar aquele tipo de gente. Tinham matado seus pais, afinal. Ela poderia não ter nada a ver com o fato, mas não deixava de ser farinha do mesmo saco. — Se quiser continuar assim, vou acabar te vencendo pelo cansaço. E acredito que há maneiras mais honrosas de ser derrotada — Frank abaixou o tom de voz para completar, perto dela: — Não que eu ache que honra seja algo que você conheça.

Com o comentário, o sorriso que Celeste exibia se transformou em uma risada baixa. Antes de responder, porém, ela usou seu cotovelo esquerdo – o lado contrário de seu corpo ao qual o homem pressionava a lâmina – para atingir seu abdômen. Com o golpe repentino, Frank afrouxou o aperto na adaga, o que possibilitou a mulher fazer um giro nos próprios pés e se postar de frente pra ele, agarrando seu pulso e apertando o mesmo até a lâmina cair.

Ao mesmo tempo, apontou sua espada para seu pescoço.

Frank não deixou de pensar que revidar aquilo seria fácil; alguns socos em pontos específicos deixariam Celeste debilitada. Ao invés disso, porém, as mãos do homem foram ao alto em sinal de rendição, mesmo que já estivesse pensando em outra maneira de contra-atacar no processo.

— De fato — ela confirmou as palavras dele com desdém. — Não conheço. Mas se é ela que está te impedindo de lutar de igual para igual comigo, é uma pena pra você. Porque pra mim, vencer alguém pelo cansaço não conta como vitória. Sorte minha que eu consigo pensar em diversas outras maneiras, soldadinho.

Se antes Frank se forçava a não atacá-la por ser fiel a seus princípios, agora sua raiva o obrigava a deixá-los de lado. Piratas. Piratas tinham matado sua mãe, não haviam poupado-a por ser mulher, então por que ele deveria o fazer?

Não o faria.

A mão direita levada ao alto segundos antes agarrou a lâmina da espada com força. Segurando-a como apoio, sem se importar com o corte fundo que ela causava, ele empurrou a mulher para longe com um chute.

— Você não me conhece. Não sabe nada sobre mim — as palavras saíam entredentes. Os olhos sustentavam os dela com raiva explícita. — Mas tem razão, eu não preciso de honra para lidar com ratos.

Jogando a espada longe, Frank se pôs em posição de ataque, chamando-a para briga.

Ratos? — Celeste perguntou, fingindo estar ofendida. — Mas segundos antes eu era "uma bela mulher". O que aconteceu? Não gostou do apelido? — A provocação foi feita com desdém. — Ao menos agora você deixou as coisas interessantes.

Mais uma vez, a pirata partiu pra cima de Frank, golpes ágeis por conta de seu corpo esguio e leve sendo desferidos com rapidez.

Celeste tinha a vantagem de usar isso ao seu favor em contrapartida com os atributos físicos do homem, que era mais lento por conta de seu grande porte. Isso, somado ao fato de conhecer o terreno, fazia a tarefa de Frank se defender dos seus ataques algo quase impossível. Ele aproveitou uma única brecha, porém. Quando a pirata usou sua mão direita para desferir um soco direcionado ao seu rosto, o homem se desviou apenas inclinando o corpo para trás, e com a posição trocada rapidamente num movimento de pés, foi fácil de agarrar as mãos de Celeste e imobilizá-las para trás, contra suas costas.

Derrubando-a no chão, ainda imobilizada, ele utilizou um dos braços para pressionar seu pescoço, sem muita força a princípio.

— Alguns ratos são até bonitinhos, mas não deixam de ser ratos — a voz ofegante por conta da rápida briga devolveu a provocação anterior. — Eu disse que não gosto de machucar mulheres, mas sua gente não pensou nisso quando se tratou da minha mãe — com as palavras, a pressão no pescoço da mulher se intensificou. — Você não merece piedade. Vai ser um desperdício…

Gemma, que mantinha sua posição de vigilância em cima de uma grande árvore mais ao centro da ilha, teve sua atenção tomada pela confusão. Ao ver a situação de Celeste, a arqueira não demorou em apontar uma flecha para o homem que a imobilizava, com a confiança de que, mesmo com a grande distância, conseguiria acertá-lo.

Antes de poder dispará-la, entretanto, uma presença repentina quase a fez cair do galho em que se apoiava.

— Não é muito gentil da sua parte atacar alguém pelas costas — o tom de voz não continha nenhuma emoção. Parecia entediada: — Olhe, os reforços já chegaram — Pogue apontou o dedo para indicar Nash, que depois de deixar Mia inconsciente, já se adiantava para ajudar a pirata imobilizada por Frank. — Ah, não adianta apontar isso para mim, não vai funcionar.
— Quem é você? Como subiu aqui? — A pergunta fez o mago revirar os olhos. Mas mesmo com tantas dúvidas acerca de como não percebeu o inimigo escalando uma árvore alta daquelas, Gemma prosseguiu, ainda apontando o arco para ele: — A não ser que tenha reflexos sobrenaturalmente rápidos, não entendo porquê está dizendo que não vai funcionar.

A arqueira atirou a flecha na direção de Pogue, que, dando uma pequena risada com a ironia, a pegou no ar, antes que a mesma atingisse seu peito. Ao notar o sorriso convencido da mulher, ele falou:

— Tenho bons reflexos, mas não era a isso que eu me referia. O veneno não vai funcionar em mim — ele explicou, girando a flecha nos dedos, sentindo apenas um formigamento com o ato. Com um lançamento, ele a devolveu, mas a menina evitou tocá-la, deixando-a cair no chão abaixo. — Nem em você… mas não parece saber disso. Interessante, não era algo com que eu estava contando.

Pogue suspirou pesadamente enquanto se aproximava de Gemma, a expressão no rosto dela exibindo surpresa e confusão. Com seu silêncio, o feiticeiro prosseguiu:

— Nada pessoal — de sua mão direita, uma pequena luz azul brilhou. A mesma foi lançada em direção ao rosto da garota, fazendo-a piscar pesadamente. — Não sou seu inimigo, mas não espero que entenda. Não agora.

Gemma acabou caindo no sono segundos depois. Sem controle de seu corpo, ela desabou do galho, despencando em queda livre até o chão da floresta. Pogue, logo em seguida, desceu da árvore em um pulo, aterrisando com gentileza no chão ao lado da garota, que havia quebrado o pé com o impacto. Dando de ombros, ele voltou a seguir seu caminho, alcançando bem a tempo de vê-lo prestes a se encontrar com alguém. Mantendo certa distância, o mago cruzou os braços ao ver que o confronto se iniciaria, mas não fez nenhuma menção de intervir logo de cara, porque não era aquela batalha que interessava, mesmo que não soubesse disso.

Com um suspiro, ele esperou.

O capitão, por sua vez, continuou caminhando pela floresta, ainda mais cauteloso ao notar a presença repentina de um inimigo. Com o escuro e a vegetação alta dificultando sua visão, ele não conseguiu identificar em um primeiro momento quem era a pessoa ali escondida, mas ao prestar atenção em sua silhueta e analisar a pose com que se portava, ele teve certeza de que se tratava justamente de quem estava procurando. Seria capaz de reconhecê-la em qualquer lugar.

Não conseguiu conter um sorriso. Ainda mais por notar que ela parecia distraída.

deixou a espada a postos, firmando seu aperto no cabo e aguardando uma brecha para se movimentar e aproximar-se mais. Andou pela vegetação em passos silenciosos até estar no máximo há alguns metros de distância, e, ao vê-la se emparelhar com uma árvore, encontrou sua oportunidade. Avançou com toda força, na intenção de chocar seu ombro contra o corpo dela e fazê-la bater no tronco. O ataque, entretanto, não foi bem sucedido. A mulher notou a aproximação, e, em um giro rápido, mudou sua posição, saindo da frente do tronco e virando o golpe de contra ele, fazendo-o se chocar contra a árvore ao invés disso; a ombreira de sua armadura lascando a madeira com o impacto.

Se afastando dele uns passos e olhando-o de cima a baixo, a pirata riu.

— Então é você o soldado que veio para me capturar — a voz saiu cantarolada, um sorriso estampando as palavras — É o capitão, eu presumo. Se não, essa luta não me interessa.
— Lute em silêncio, — o nome foi pronunciado com nojo e raiva explícitos enquanto ele se recompunha, assumindo uma postura defensiva. — Me poupe de se dirigir a mim, não quero ouvir suas palavras, só quero matá-la.

não esperava por uma luta justa e nem fácil. era uma pirata, afinal. Uma com o nome muito bem conhecido.

— Ah, isso realmente não é do meu feitio — ela ameaçou atacar, mas apenas trocou o pé de apoio — Me matar? Duvido que Syrena tenha ordenado que fizesse isso. Além do mais, onde estão seus modos? Não vai se apresentar, soldado?
— Achei que piratas gostassem mais de um bom duelo do que de bater papo — tentou controlar sua raiva.

A conversa fiada o estava tirando do sério.

A mulher era uma assassina, mas parecia mais inclinada a falar sem parar do que a enfrentá-lo, e isso soava quase como uma ofensa. Tinha ciência de que ninguém antes havia sequer chegado perto de capturar a tão temida , mas sua reputação não o impediria de tentar. Não poderia agir de forma imprudente, porém, então aproveitou a falta de ação da pirata para prestar atenção em sua linguagem corporal e procurar um ângulo para atacá-la e desarmá-la. Ela não parecia tão bem posicionada; mais do que isso, era quase como se não estivesse realmente acostumada a lutar com espadas.

Mas esse detalhe poderia ser apenas um truque.

— Eu tenho incrível capacidade e talento de fazer os dois ao mesmo tempo — ao dizer isso, se lançou à frente, a espada em mãos atacando o homem e iniciando o confronto direto. — Por que você foi escolhido para liderar a missão, hm? É o melhor soldado do reino?
Cala essa boca — a voz saiu em um rosnado alto enquanto defendia as investidas. Não conseguia parar de pensar em seu irmão ao atacá-la, o sangue borbulhando em suas veias no processo.

Em um movimento rápido, conseguiu brandir sua espada contra o ombro direito da pirata, arrancando uma careta de dor da mesma. Ela não perdeu tempo para revidar, mas parecia perdida em seus movimentos com a lâmina.

— Não me respondeu. Por que você foi escolhido? — usava mais de sua agilidade do que de sua força, uma vez que o seu adversário era mais alto e mais forte, o que complicava a luta. — Não que eu esteja reclamando, é uma bela visão um homem como você, nesses trajes engomadinhos, lutando comigo.

O comentário dela fez qualquer resquício de paciência que o soldado ainda mantinha ir pelos ares.

— Acho que você matou todas aquelas pessoas de tédio, porque claramente não sabe nem mesmo como segurar uma espada — fez uma careta exasperada com o comentário, mas mordeu o lábio antes de rebater qualquer coisa, quase como se tivesse que se conter e guardar para si o que iria falar.

Aproveitando-se disso, avançou novamente, com mais determinação e sem economizar na força, mirando o abdômen, coxa, e por fim, brandindo um golpe rápido na mão em que a mulher segurava a espada, aproximando-se para tentar desarmá-la antes que a mesma pudesse soltar outra gracinha. Ela, por sua vez, conseguiu rebater algumas investidas, mas o soldado tinha obtido sucesso em atingi-la em vários pontos. Sangue escorria de um corte fundo em sua barriga, e por conta da dor, seu corpo foi ao chão. Vendo-o avançar para desarmá-la, ela se segurou mais firmemente ao cabo, apontando a lâmina em sua direção e brandindo-a várias vezes na tentativa de afastá-lo.

A luta ensinada na guarda real não era somente sobre espadas, era sobre como neutralizar seu inimigo o mais rápido possível.

Então, ao vê-la praticamente sacudir a espada em sua frente para o impedir de se aproximar, fez exatamente o que ela queria, se esquivando para o lado. Nesse movimento, achou o ângulo perfeito para finalizar a distância e bater com o cabo de sua própria espada na mão já cortada da mulher, vendo sua arma voar uns metros para longe com isso.

— A tão temível . Não é possível que tenha sido tão fácil assim te derrotar — uma risada amarga arranhou sua garganta ao ver a mulher caída daquele jeito. Tanto tempo almejando uma vingança e ela tinha durado apenas alguns minutos.
Não foi — as palavras, vindas de algum lugar atrás de uma das grandes árvores da floresta, fizeram um calafrio percorrer a espinha de . Confuso pelo fato de o tom de voz ser exatamente o mesmo do da mulher à sua frente, ele se virou, dando de cara com uma segunda .

Diferente da primeira, porém, essa mantinha uma pose completamente diferente; mais confiante, mais defensiva, mais autoritária, como se realmente soubesse o que estava fazendo e o momento exato de atacar. Os olhos frios também não passavam despercebidos.

— O que… — começou, se colocando em posição defensiva e estado de alerta instantaneamente, mas foi cortado antes de continuar a falar.
— Benny, quer me explicar no que é que você estava pensando? Aliás, não, não explique. Suma daqui antes que eu mesma mate você — ignorando o soldado, a pirata ordenou com a voz firme, a raiva por presenciar aquela situação explícita no tom.

O homem encarou a situação que se desenrolava ainda confuso, mas observou a primeira , Benny, como a verdadeira o havia chamado, se levantar, dar um sorriso sem graça, e se afastar rapidamente.

— Um impostor, é claro — concluiu por fim. — Eu deveria imaginar que alguém com uma reputação tão conhecida como você não poderia lutar mal desse jeito.

A atenção da mulher se voltou completamente para o soldado, que a encarou ao fazer aquele comentário. não segurou uma risada, principalmente ao vê-lo chutar a espada caída no chão em sua direção, como se a desafiasse para uma luta à sua altura.

— Lisonjeiro de sua parte. E esperto também, já que parece saber com quem está lidando — as palavras dançaram em sua boca. — Mas eu luto com a minha própria espada — desdenhou de seu desafio ao desembainhar sua arma, girando-a uma vez antes de apontá-la para o homem. Começou a se aproximar então, sem deixar de sustentar seu olhar. — Então é você o soldado que veio para me capturar — ouvindo uma risada ao longe e imaginando o motivo da mesma, a mulher revirou os olhos, fazendo uma anotação mental de repreender Benny por toda aquela situação. — Vamos lutar.

Sem esperar reação ou resposta, a mulher se calou e avançou para ele, iniciando o confronto.

Já há alguns metros longe dali, mancando enquanto andava por conta de todos os machucados sofridos na batalha com , Benny parou em um certo ponto para desfazer a magia de transmutação e usar o resto de suas forças para se curar. Antes que pudesse fazer isso, porém, uma mulher loira o interceptou, apontando uma adaga diretamente para o seu peito, o que o fez recuar uns passos, em alerta.

— a diversão em sua risada causou uma careta em Benny, que agora estava desarmado e exaurido por conta de sustentar a magia por tanto tempo. — É uma pena que esteja tão debilitada. Fugiu de um confronto antes de morrer com dignidade? Piratas são tão covardes. Acho que todo mundo estava esperando mais de você.

Blanche umedeceu os lábios e riu novamente, se aproximando dele, que insistia em manter a forma de por saber que, assim que a mulher percebesse que não se tratava dela, iria atrás da verdadeira. E sua capitã não precisava enfrentar dois oponentes ao mesmo tempo.

— Eu não… — Benny se forçou a falar, mas acabou se interrompendo por conta de uma tosse repentina. Estava perdendo muito sangue, não aguentaria muito mais. Não naquela situação.

Mas não poderia se transformar. Não poderia fugir. Devia isso à . Era isso que os tripulantes deveriam fazer por seus capitães, não era? Sabia que ela não hesitaria em dar a vida por ele.

Ele faria o mesmo.

— Ah, não preciso ouvir suas últimas palavras, o dinheiro que você vale não é suficiente pra eu me prestar a esse papel. Deixe que eu acabe com seu sofrimento de forma rápida — dito isso, a loira avançou com a adaga em punho, cravando-a com força no abdômen da mulher à sua frente.

Sem conseguir se defender, Benny apenas recebeu o golpe, sentindo o mundo à sua volta começar a girar e escurecer, até não ter mais forças para sustentar suas pernas e cair com um baque seco no chão.



Capítulo 9 - Quebra de Um Mundo Perfeito

A luz do sol ardia as pálpebras da mulher à medida em que a mesma começava a recobrar a consciência.

O preto foi se clareando e dando lugar à uma borrada vegetação abundante, que de forma lenta se mostrou em meio aos olhos semicerrados se forçando a abrir, lutando contra a vontade de permanecerem assim por mais tempo. Sua cabeça doía em vários pontos, o principal sendo a nuca, onde – mais do que uma pressão incômoda como aquelas que geralmente apareciam depois de muitas garrafas de rum –, parecia ter sido atingida em cheio por um golpe certeiro.

Ao tentar levar a mão até lá num gesto automático, entretanto, seu corpo não quis obedecer ao comando simples. Era como se seus braços estivessem pesados demais para executarem essa tarefa.

Não, era mais do que isso.
Eles não estavam pesados; estavam presos.
A percepção disso foi suficiente para fazer a capitã despertar por completo, os olhos se arregalando de maneira rápida e esquadrinhando todo o local à volta, bem como a si mesma, apenas para ter a confirmação do que já imaginava: estava amarrada à uma árvore. Seus pés e mãos estavam completamente imobilizados por cordas que a prendiam sem deixar aberta uma possibilidade para fuga. imediatamente começou a se mexer na tentativa de se livrar das amarras. Como ela tinha deixado aquilo acontecer? Não havia baixado sua guarda nem por um segundo. Pelo contrário, havia investido rapidamente contra o soldado, não deixando uma brecha sequer para ele se defender ou escapar do confronto.

Não sozinho.
Obviamente tivera ajuda.
Mas a mulher não conseguia se lembrar como ou por quem havia sido atingida. Nem sequer havia chegado a concluir o primeiro golpe antes de desmaiar.

— Pode tentar se soltar o quanto quiser, não vai adiantar. Você perdeu. Está acabada — os passos foram ouvidos antes de a voz se fazer presente. O homem estava atrás da pirata, mas logo se pôs à sua frente, encarando-a com um olhar de satisfação, apesar do brilho de raiva que se escondia ali.
— Acabada? Estou longe disso. Mas parabéns pela pequena vitória. Suponho que agora tenha que me levar até o palácio de Syrena? — Apesar de sua situação de clara desvantagem, não deixou nada além de calma transparecer em seu semblante. — Oh, espere. Você não tem um navio.

Isso foi suficiente para fazer a expressão de raiva, antes escondida e controlada nos olhos do soldado, ficar clara em todo o seu rosto. Ele não lutou para esconder o ódio que sentia, e não poderia se quisesse; o sangue corria rápido por suas veias, seu coração batia forte e ele respirava com força. Já havia se contido demais para não matar a mulher enquanto a mesma estava desmaiada e frágil. Todo o desdém explícito em suas palavras, agora, só piorava sua situação; por mais de uma vez, teve que lutar contra o impulso de sacar sua adaga e deslizá-la pelo pescoço dela, fazendo-a sangrar até morrer.

— É por isso que vai me dizer a localização do seu. Estou te dando a oportunidade de cooperar antes de matar um de seus tripulantes. Caso a despreze, não vou hesitar em, além de fazer isso na sua frente, te deixar desmaiada e amarrada durante uma semana enquanto meus homens e eu fazemos uma busca pela ilha. Vai ser até melhor... assim você vai poder pagar em pequenas parcelas pelo que fez — o esforço que o soldado fazia para não deixar suas atitudes superarem seu profissionalismo era realmente grande. Ele precisava se controlar, não podia deixar que ela entrasse em sua cabeça e o fizesse colocar tudo a perder.

Diferente dele, porém, cujas emoções eram mais do que explícitas, a situação desfavorável em que se encontrava não a intimidava ou sequer fazia com que esboçasse outra reação senão divertimento. A pirata já havia passado por maus bocados o suficiente para se deixar intimidar por um único homem, e por esse motivo, ela não evitou uma risada sutil quando a ameaça foi proferida por .

— Eu poderia cooperar se acreditasse que tem alguém da minha tripulação como refém para poder me chantagear. Eles devem estar bem longe daqui a uma hora dessas — as palavras dela eram convictas, afinal, suas ordens haviam sido claras. — Além do mais, uma semana não é suficiente para os seus homens acharem meu navio ou os tesouros dessa ilha. Tampouco é suficiente para me fazer temer com a possibilidade de falta de água ou comida. Está subestimando minha capacidade de sobrevivência em situações complicadas.

Seu jeito petulante e o fato de querer se sobressair mesmo estando imobilizada só irritavam ainda mais. O homem abaixou o rosto, aproximando-se do dela, e então deu um sorrisinho, tão sádico quanto poderia ser:

— Pouco me importa sua fama e seus tesouros, . Você é uma prisioneira, agora. Não tem mais nada disso. E garanto que sei muito bem como testar suas capacidades de sobrevivência — seu rosto retomou a expressão séria. — A essa altura, seus homens já estão sendo açoitados e mortos. É uma pena que eu não possa fazer o mesmo com você, apesar de estar considerando descumprir minhas ordens só para ter esse prazer.

O sorriso presunçoso não deixava de estampar os lábios de enquanto a pirata ouvia o soldado à sua frente a ameaçar. Ao mesmo tempo, seus olhos de esmeralda esquadrinhavam despretensiosamente todo o seu rosto, analisando sua linguagem corporal. As emoções que queimavam no olhar de não eram nada como as que se lembrava de seus captores e adversários do passado; havia algo ali, escondido por trás de toda aquela raiva controlada. Algo sombrio. Algo pessoal.

Algo familiar.

Aquilo tudo não se resumia apenas a uma missão, não para . Isso havia ficado claro para a capitã assim que eles se encontraram. Era muito mais do que uma caça às bruxas – ou, no caso, aos piratas – era sobre ele. Era sobre vingança. A mulher só precisava entender como se encaixava nisso. Não se lembrava dele, e era difícil para ela esquecer um rosto.

Ainda mais um tão marcante.

Depois dos segundos que gastou para chegar à essa conclusão, e aproveitando-se do silêncio do homem, que havia finalizado seu monólogo, voltou a falar:

— Você chegou aqui sabendo meu nome, então deve saber dos meus feitos e do que eu sou capaz. Não sou a pirata mais temida e procurada do reino atoa, soldado — o ego inflado era explícito nas palavras. — Por outro lado, eu ainda não tive a honra de saber o seu nome. O homem que conseguiu me vencer e me amarrar em uma árvore. É algo grande, sabe. Embora, claro, perca um pouco do mérito por não ter conseguido isso sozinho e ter precisado apelar para a trapaça.
— Quer mesmo me acusar de trapacear quando nem mesmo foi você quem iniciou nosso confronto na floresta? — A pergunta saiu entredentes, quase em um rosnado. — Oh, eu não sabia que Benny estava se passando por mim, peço desculpas por isso. De qualquer forma, eu sou pirata. Trapaça, para mim, é como respirar — o sorriso se alargou mais. — Não imaginei que estivesse se esforçando para se igualar. Uh, cuidado, talvez pegue gosto pela coisa — , então, se divertindo com o descontrole do homem, completou: — Mas me diga uma coisa, soldado. Que feito meu foi capaz de deixar um homem como você tão desestabilizado? Eu com certeza devo me orgulhar dele, só preciso saber, ou melhor dizendo, me lembrar, qual foi.

Ao ouvir a provocação da pirata, deixou que os últimos resquícios de paciência aos quais se agarrava fossem para o espaço. Caminhou uns metros até onde tinha deixado suas coisas e pegou um trapo velho e sujo que havia jogado ali. E, voltando para a frente da mulher, colocou-o em sua boca com excesso de força, passando um pedaço de corda em volta de seu rosto para fixá-lo.

A expressão desdenhosa ainda era perceptível em seu semblante, apesar disso.

— Eu cansei de você. Vamos testar sua “capacidade de sobrevivência em situações complicadas”. Quem sabe não decida dizer onde está o seu navio.

Aproveitando que os braços de estavam amarrados para trás, com a omoplata tensionada, o soldado fez pressão no exato lugar até escutar o estalo de seu osso. A capitã soltou um grunhido de dor com o ato do homem, sua expressão deixando de exibir o sorrisinho petulante por uns segundos para se tornar enraivecida. Apesar disso, porém, não houve mais nenhuma emoção demonstrada; estava familiarizada até demais com a dor para aquilo afetá-la da forma que almejava.

Seu rosto, inclusive, balançou em negação ao mesmo tempo em que uma sobrancelha foi ao alto, em desafio. Palavras não foram necessárias para verbalizar o "é só isso que consegue fazer?" explícito na expressão.

Levando aquilo como um incentivo, não parou por ali. Aproveitando-se da proximidade, observou seu semblante por alguns instantes antes de agir novamente. Então, levou a mão até seu rosto e empurrou sua cabeça contra a árvore com toda a força.

— Vamos ver quanto tempo você aguenta apanhar antes de desistir. Ou morrer. Sua companheira... esqueci o nome daquela piratinha suja... não durou mais do que dois minutos na minha mão — um sorriso se abriu em seu rosto ao ver que o blefe tinha causado uma reação diferente na capitã.

Sem dar tempo da mulher reagir, – o que não aconteceria de qualquer forma, uma vez que além de presa, a mesma também não poderia falar qualquer coisa que fosse –, continuou com a tortura.

Primeiro, desferiu alguns socos em seu abdômen, sem medir força. Os golpes fizeram-na gemer de dor e encolher o corpo, mas os olhos verdes ainda o encaravam com a mesma determinação. Ele sacou então uma lâmina, deslizando-a pela linha da cintura da mulher, deixando cortes superficiais na pele, que faziam o sangue manchar suas roupas.

Então, vendo que depois disso o semblante de era quase suplicante para que ele parasse, assim o fez.

— Já está pronta para falar? — Perguntou por fim, segurando o queixo da pirata, retirando o trapo e a corda de sua boca enquanto obrigava-a a olhar pra ele. — Onde está o navio? — Sua mão desceu do queixo para o pescoço, onde apertou, começando a sufocá-la.

Não esperava que ela lançasse outra expressão desdenhosa com isso.

— Precisou só desse olhar pra te convencer a parar? — a risada saiu um pouco entrecortada pela falta de ar e dor, mas a mulher não deixou sua pose de lado ao instigá-lo: — Isso definitivamente é pessoal. Vamos, soldado, me diga o que foi que eu fiz pra você. Isso tudo não é só pela rainha. Quem eu matei, que tanto te afetou? — àquela altura, ela sabia. Os olhos azuis raivosos eram familiares demais, traziam memórias demais.

Mas ela queria ouvir ele dizer.

— Suas mãos estão sujas com o sangue do meu irmão — sem aguentar mais provocações, cuspiu a resposta em um tom baixo, carregado de ódio.
— Minhas mãos estão sujas com o sangue de muitos homens — arqueou novamente uma sobrancelha ao dizer aquilo, desafiando-o a completar de uma vez.
— Willian — o nome foi pronunciado com mais pesar do que raiva dessa vez, e com isso, pôde ver um brilho se acender nos olhos verdes da pirata.
— Vai ter que ser mais específico se quiser que eu me lembre dele — umedeceu os lábios, um sorriso de canto aparecendo ao completar, com outra provocação: — Não tenho o costume de desenhar o rosto das minhas vítimas ao lado de seus nomes em meu diário de bordo.

Não havia mais paciência ou controle restantes em para impedi-lo de matá-la ali e agora. Por isso, investindo novamente contra a mulher – dessa vez com a adaga, levada diretamente ao seu pescoço –, ele disparou, aos gritos:

— Não ouse dizer que não se lembra dele! Não ouse dizer que ele foi só mais um entre tantos, porque você fez questão de deixar o fato de ele ter sido o primeiro claro para uma multidão inteira! — Com o sorriso da mulher se aumentando ao ouvir suas palavras, a pressão da lâmina em seu pescoço também aumentou, cortando superficialmente a pele e fazendo um filete de sangue escorrer corpo abaixo. — É claro que eu me lembro dele — as palavras eram venenosas. tinha a ciência de que poderia morrer ali, mas não iria sem antes confirmar o seu feito: — Nunca me permitiria esquecer da sensação da minha espada cravada em seu peito enquanto a vida se esvaía daqueles olhos aterrorizados.

estava a ponto de ter uma síncope.

A mão que segurava a adaga tremia, tamanho era o ódio que sentia. Estava cego com a vontade gritante de tirar a vida da mulher e por um fim naquilo, e assim o faria, sem se importar com as consequências. Para o inferno com as consequências! Que fosse banido daquele reino, que desertasse, que nunca mais voltasse. Não importava.

Ele arrancaria dela o motivo daquela morte. Ele sabia que havia um. Algo no jeito que a mulher falou era orgulhoso demais, rancoroso demais, e ele conhecia bem o tom.

Soava como se ela estivesse narrando sua própria vingança.

— Como foi que você desapareceu? Como conseguiu se camuflar tão bem à multidão a ponto de fugir de mais de cinquenta guardas? — cuspia as perguntas, sua voz animalesca demonstrando toda a raiva e mágoa há muito guardada.
— Magia — respondeu quase em mesmo tom, algo raivoso dentro dela vindo à tona também, porém não se sobressaindo à superioridade que ela insistia em demonstrar.
— Magia — ele repetiu em um rosnado, esperando que a mulher continuasse a frase, dando um sentido à mesma.
— Pérolas de uma sereia — um sorriso pequeno se repuxou nos lábios da capitã ao ver as sobrancelhas do homem se juntarem em confusão e, talvez, surpresa. — Ella. Um presente dado pela própria para o meu pai, por ele ter tentado salvar sua vida.
Está mentindo. A rainha Syrena disse que Ella foi uma sereia capturada por piratas, e que seus soldados, em um embate contra eles, a salvaram. — a raiva tornou a aparecer no rosto levemente surpreso do homem, ao mesmo tempo em que a lâmina voltou a fazer pressão no pescoço da pirata. — Mesmo sendo tarde demais, já que seu pai a matou.

Não poderia hesitar. Não por conta de mentiras dissimuladas proferidas por ela para manipulá-lo.

— Claro que disse. Afinal, sua rainha é uma vadia mentirosa — uma risada de escárnio arranhou a garganta da mulher — Meu pai era um oficial da corte, não um pirata. Syrena deu ordens aos seus soldados para que saíssem em viagem e capturassem para ela um objeto místico, algo com poderes. Algo pertencente às sereias, não uma sereia. Ele estava escalado para essa missão, e ela foi sua última, porque ao voltar, sem cumprir suas ordens, seu irmão o matou a mando dela.

Foi a gota d’água.
, acusar Willian de algo tão grave assim, para , foi apenas demais.

Sem hesitar, deixando toda a raiva acumulada que sentia desde o dia em que havia visto o irmão ser assassinado tomar conta de seus movimentos, em um gesto rápido, o soldado deslizou a adaga pelo pescoço da mulher.

Ou assim teria feito, se sua mão não tivesse sido agarrada e impedida por Pogue.

— o capitão quase brandiu a lâmina para o próprio amigo por conta da interrupção. — Não coloque tudo a perder.
O que pensa que está fazendo? Você já atrapalhou a minha luta antes que ela sequer pudesse ter um início, sendo que minhas ordens expressas eram para que me deixassem lidar com ela sozinho. Agora isso? O que está querendo, Pogue?
— Te mostrar que uma história não tem só um lado. Eu posso comprovar que o que ela está dizendo é verdade. Ou mentira — o tom do feiticeiro continha uma urgência a qual o capitão nunca tinha ouvido. — Apenas confie em mim. Há um feitiço que permite acesso às memórias de alguém.

Depois de vários instantes em silêncio, considerando a possibilidade apresentada, balançou a cabeça em afirmativo, ainda que a contragosto. Seus ombros relaxaram e a mão que segurava a adaga se abaixou.

— Vamos logo com isso — o capitão resmungou, dando espaço para o que quer que seu amigo fosse fazer. — Quando o feitiço comprovar sua mentira, não há consequência no mundo que me impeça de matá-la.
— Tente qualquer coisa e eu não o impedirei dessa vez — o tom de aviso direcionado à pirata indicava que Pogue não estava brincando.

Com um aceno de mãos do feiticeiro, as cordas que prendiam os braços e pernas de se afrouxaram e caíram no chão, deixando-a completamente livre. Ela caiu da árvore sem muita sutileza, dados os machucados que o soldado a havia causado. — O feitiço não vai comprovar uma mentira — a mulher acenou com a cabeça, se levantando e esfregando os pulsos vermelhos pelo aperto das amarras. — Porque estou falando a verdade.
— Faça um corte na palma da mão — Pogue ordenou antes que outra discussão se iniciasse, jogando a adaga de para ela, que habilmente a pegou no ar. — Não precisa ser grande, apenas superficial já... — antes de concluir a fala, já passava a lâmina na mão, deixando ali um grande corte, que fez bastante sangue se derramar ao chão.
— Dor não me incomoda. Aprendi a viver com ela há muito tempo — a resposta foi dada sem emoção, acompanhada de uma risada em mesmo tom. A pirata então jogou a adaga de volta para o feiticeiro, que a entregou para em seguida.
— Faça também. Depois disso, dêem as mãos — as instruções foram dadas enquanto ele intercalava o olhar de um para o outro, parando no soldado para continuar: — Quando o sangue de vocês entrar em contato um com o outro, você poderá acessar as memórias dela.

hesitou, olhando com desprezo e nojo para a mulher, que já estendia a mão para o mesmo. Era possível ver várias cicatrizes mais claras em sua extensão, que contrastavam com a pele escura. Seus dedos também eram repletos dessas marcas, mas continham vários anéis as camuflando.

— Você não vai sair viva daqui — ele então fez o que Pogue havia instruído, mas diferente da pirata, o corte havia sido pequeno e superficial, deixando apenas umas gotas de sangue brotando dali.
— Seu medo de descobrir que tudo o que acreditou até hoje não passa de uma mentira é patético. Mas me dá prazer pensar que quem vai destruir sua concepção de realidade perfeita sou eu. Nada melhor do que a visão de mundo de uma pirata para abrir os seus olhos da realeza.

Bufando, estendeu sua mão, agarrando a da mulher com força.

Assim que se tocaram e a conexão foi estabelecida pelo sangue, todo o ambiente ao redor dos dois começou a mudar. A parte da ilha em que estavam, rodeada de árvores e folhagens espessas que camuflavam sua presença e os escondia, deu lugar ao interior de uma pequena estalagem. Ali havia apenas uma forja, poucos armários feitos de uma madeira já muito gasta e vários protótipos de espadas jogados pelo chão.

Rogers estava aflito.

Seus joelhos encostavam no chão em um dos cantos escuros onde conversava aos sussurros com sua filha. não aparentava ter mais muito mais do que onze anos, uma garotinha que, sem entender o que acontecia, apenas olhava para ele em busca de uma explicação.

"Por que viemos pra cá essa hora, papai? Estou com sono. Alguém pediu espadas no meio da noite?" Ela reclamava enquanto coçava seus grandes olhos verdes com uma das mãos, a outra sendo segurada fortemente pelo pai em um gesto de proteção.
", eu preciso que você me escute com atenção. Há alguns dias eu te entreguei aquele presente, se lembra? As pérolas. Você vai precisar delas agora." Sua voz tremia, mas ele se esforçava para manter-se forte por ela.

O homem olhava para todos os lados, ansioso, desconfiado. Sabia que não teria como escapar do que estava para acontecer, mas precisava proteger sua filha, então prosseguiu, focando sua atenção novamente na pequena:

"Está com elas, certo? Sei que você gosta de brincar aqui, portanto, conhece esse lugar melhor do que qualquer um. Vai ser como esconde-esconde. Você vai se esconder e não pode sair até eu dizer, não importa o que aconteça."

, agora, encarava preocupada o mais velho. Não entendia a situação ou o porquê de ele estar lhe pedindo aquilo, mas balançou a cabeça em concordância, indo, imediatamente, para o único dos armários que continha um fundo falso.
Quase antes mesmo de conseguir se esconder completamente, passos pesados soaram.
A chama de uma vela solitária iluminava apenas parcialmente o rosto da pessoa que adentrava a estalagem, e dali de dentro do móvel, observando tudo apenas por uma pequena fresta, era ainda mais difícil da pequena ver o que se passava.

— Não achou que poderia se esconder aqui, achou, Rogers? Depois da sua casa, esse era o lugar mais óbvio para o qual poderia ter vindo. Pensei que teria que perseguí-lo, que teria que caçá-lo, mas ao que parece você não se empenhou em fugir ou tornar meu trabalho difícil. Por que? — A voz não escondia o divertimento.
— De todas as pessoas que um dia imaginei capazes de deixarem seus propósitos de lado para servirem à ela, você ficava no fim da lista, Willian. Quando foi que se deixou ser corrompido desse jeito? — O ferreiro devolveu a pergunta, sem se deixar intimidar.
— Ah, Rogers. Parece ser realmente muito difícil para você entender que em um reino, há uma rainha. Há uma hierarquia. Há ordens. Ficar de vigia e se manter calado, era só isso que você precisava fazer. Mas por algum motivo, decidiu agir por conta própria... — um suspiro de negação escapou dos lábios do homem. — Acha que está acima de Syrena para se recusar a cumprir suas ordens? Acha que pode ditar e seguir o que você quer e acredita, baseado apenas em sua moral e seus princípios? Por isso nunca foi um soldado digno do respeito dela, por isso não foi muito mais do que um simples ferreiro, recrutado como Criado-De-Bordo na falta de alguém melhor.
Eu fui para aquela missão com as ordens de pegar um objeto mágico e levá-lo ao palácio. Um objeto que pertencesse às sereias, não uma sereia! — A raiva e ressentimento eram explícitos nas palavras. — Quando a capturaram, eu tentei argumentar, mas fui dado como traidor. Todos os tripulantes se voltaram contra mim, me prendendo da mesma forma que prenderam a criatura. Você incluso nisso. Você sabe o que aconteceu naquele dia, Willian. Não posso acreditar que compactue com isso.
Capturar… matar… era apenas uma criatura irrelevante. Você fala como se isso me importasse, Rogers. Não deveria importar para você. — O tom sonhador de Willian fazia o mais velho esboçar uma careta. — Tudo que eu sempre quis foi um cargo alto na corte, e consegui isso seguindo ordens. Eu nunca colocaria tudo a perder por um traidor. Não pela minha rainha.
Ela é muito mais do que uma rainha para você, não é, ? Você era um homem bom, no começo — Rogers falava com certo pesar na voz. — Tinha princípios, tinha honra, nunca sequer pensaria em matar uma pessoa inocente, ou qualquer outra criatura que fosse. Agora mesmo, nessa situação... se fosse antigamente faria de tudo para salvar um companheiro e mandá-lo apenas para a prisão ao invés de concordar… não, ainda mais do que isso... em executar uma pena de morte! Como foi que mudou tanto assim?
Claro que ela é muito mais do que uma rainha, ela é a mulher da minha vida. Não que isso seja da sua conta — o mais novo começou a se aproximar do ferreiro, a espada em punho balançando despretensiosamente com o movimento. — Eu cumprirei qualquer coisa que ela me peça. Vamos acabar logo com isso…
Você está enfeitiçado, Willian. Quando cair em si, será tarde demais.

Ignorando essa frase do ferreiro, Willian prosseguiu, se aproximando ainda mais:

Agora, antes de eu ouvir você implorar por sua vida e lhe deixar dizer suas palavras finais como ato de misericórdia, onde é que está a sua filha? Syrena disse que eu deveria acabar com você sem deixar suspeitas ou testemunhas, isso inclui, obviamente, a menina. Ela sempre foi uma pedra no sapato para a rainha, sabia? Ter que conviver com a filha bastarda de seu falecido marido, sem ter uma herdeira digna de seu sangue para herdar o trono... Não consigo imaginar o horror. Ao menos uma coisa boa você fez. Criou-a longe da corte, fazendo-a preferir ficar nesse lugar asqueroso com você.
escolheu crescer longe dos grandes eventos do palácio e da corte por conta própria, apesar de tudo isso ser dela por direito. Minha menina sempre se interessou mais por armas e batalhas do que pelos bailes e cerimônias que Syrena promovia. — Rogers olhou para o homem à sua frente de cima a baixo. — Foi a melhor escolha que ela poderia ter feito.
Por direito? — A risada agora tinha um tom carregado de desdém. — Bastardos não tem direito a nada. Onde está a garota? — O soldado reforçou sua pergunta. — Não quero me demorar aqui mais do que o necessário. Estou te fazendo um favor, se for pensar bem. Você e sua filha não precisarão ficar separados depois que eu te matar. Ela irá logo em seguida.
Você nunca vai achá-la. Desista. — Foram suas palavras finais. O ferreiro estava decidido a não falar mais nada.
Não quis se esconder, mas escondeu a garota. Certo, terei um pouco de diversão. Se essas são suas últimas palavras... — Willian apontou a espada para o peito do homem, que se manteve impassível, não se deixando intimidar mesmo em seus últimos instantes.

Rosnando com o fato do mais velho não implorar por sua vida ou sequer exibir alguma emoção de medo ou arrependimento, o soldado cravou a lâmina em seu peito, errando um ponto crítico de propósito.
, ainda escondida, ouvindo e observando toda a cena, não conseguiu conter um grito ao ver seu pai ser atingido.

Tem razão, eu nunca vou achá-la. — Uma risada irônica e maldosa soou quando a atenção foi atraída na direção do som — Aproveite seus minutos de agonia para repensar suas atitudes enquanto eu acabo com a garota também.

Willian, então, caminhou para o móvel. Abriu as portas do mesmo, arrancando o fundo falso com brutalidade; a espada já preparada para atingir .

Não encontrou ninguém ali, porém. O armário estava vazio.

Atônito e confuso, o soldado pensou ter imaginado aquele grito. Mas como poderia?

Onde ele está, Rogers? — Cuspiu as palavras, a raiva explícita no semblante. — Não pode se esconder pra sempre! — As palavras agora eram direcionadas para a garota, onde quer que a mesma estivesse.

Sem nenhuma resposta ou movimentação perceptível no ambiente, voltando seu olhar uma última vez para o homem que se afogava em seu próprio sangue, Willian deixou a estalagem pisando firme, enquanto buscava pelos arredores.

Ela, por sua vez, ainda encolhida no móvel, surpresa pelo fato de o soldado não tê-la visto, – com as pérolas apertadas firmemente na mão que tremia, e chorando de medo –, esperou mais uns instantes, até concluir que ele já estava longe o suficiente.

E então correu para o corpo do pai.

Papai! Papai, por favor não me deixe, papai! — A voz engasgada pelo choro saía desesperada. — Eu não posso viver sem você, papai. Não morra, não morra!
… — Rogers tossiu entre as fracas palavras. — Não há mais tempo pra mim aqui… eu… sinto muito. Você é forte, vai conseguir passar por isso. Você precisa fugir… — Era nítido que o homem não aguentaria muito mais do que alguns segundos, então, juntando toda a sua força restante, ele prosseguiu: — Isso era da sua mãe — ao abrir a mão, ele estendeu para a filha um anel. — Um dia você vai entender… até lá, seja forte, lute, sobreviva, e acima de tudo… nunca se esqueça que eu amo você.

A imagem tornou a voltar para a realidade quando quebrou a conexão, soltando brutalmente a mão de . Se afastando dele, com os olhos marejados e o peito subindo e descendo rapidamente, ela tentou processar o que tinha acabado de ver.
Da mesma forma, desejou nunca ter visto aquilo. A imagem de seu irmão como um homem justo e honrado tinha sido quebrada justamente pela pessoa que lhe tirara a vida, e naquele momento, por mais que sentisse uma raiva descomunal da pirata, conseguiu entender seus motivos para assassiná-lo.

Capítulo 10 - Na Mesma Moeda

Memórias são coisas perigosas. Principalmente aquelas há muito esquecidas ou reprimidas por conta de um trauma.

se lembrava claramente daquele dia.

Se lembrava da vívida imagem de Willian chegando na estalagem e matando seu pai. Se lembrava de seu desespero e agonia ao assistir a cena do homem cruel tirando a vida da única pessoa que ela tinha, deixando-a órfã, sozinha. Se lembrava do soldado indo em sua direção, naquele pequeno móvel, quando a mesma não conseguiu segurar um grito de pavor e tristeza. E de ele não a achar, mesmo ela estando bem em frente aos seus olhos.

Se lembrava também de ele ir embora, frustrado, deixando o mais velho agonizando no chão.

Mas não se lembrava de muitas partes da conversa de Willian com seu pai, principalmente daquela revelação. O choque havia apagado qualquer coisa que não fosse sua dor, mas ao revivê-la, a pirata pôde prestar atenção nos detalhes do que eles haviam dito.

E aquilo a havia atingido mais do que ela gostaria de admitir.

— Willian matou seu pai, por isso você o matou. Vingança — as palavras amargas ecoaram de um lugar distante. A mulher não conseguia focar toda a sua atenção nelas, afinal, seus pensamentos martelavam mais alto em sua cabeça do que qualquer coisa que pudesse dizer. — Seu pai adotivo, na verdade. Filha do rei… quem diria. Mas a julgar pela sua cara, essa informação parece tê-la chocado. Não se lembrava disso, ? Ou está encenando porque não queria que ninguém soubesse? Foi esse o motivo de fugir e se revoltar?

As perguntas eram mais um consolo a si mesmo do que um insulto à capitã, afinal, o homem estava, tanto quanto ela, tentando processar todas as informações que tivera nos últimos instantes.


— Isso não significa nada — as palavras saíram em um sussurro enquanto encarava a floresta com um olhar vazio. — Não muda nada.
— Pogue, amarre-a de novo. Eu não confio nela. Independentemente de qualquer coisa, essa aí ainda é uma prisioneira e uma assassina — sem esperar que o feiticeiro cumprisse suas ordens, começou a caminhar floresta adentro.

continuava imersa em seu torpor. Ela havia descoberto, ao mesmo tempo que , uma coisa que trouxe seu mundo abaixo.

Como poderia ser filha do rei? Nem sequer havia o conhecido. O homem estava morto quando nasceu. Sua mãe também; morta no parto. Rogers nunca havia falado muito sobre a mulher, todo seu passado era um grande borrão. E descobrir aquilo tudo agora, em meio a uma guerra, em um momento crucial ao qual já estava em desvantagem, era ruim. Muito ruim. havia sido forte para muitas coisas a vida inteira, tinha aprendido com a dor a como sobreviver e superar obstáculos dos mais diversos, mas ter a revelação de que o homem que a criou não era realmente sua família de sangue parecia um pouco demais.

Inconscientemente, ela levou sua mão direita ao peito, onde um anel pendia, pendurado à corrente de ouro que o sustentava.

Era o único anel que a mulher carregava perto do coração, diferente dos outros, que serviam apenas para enfeitar seus dedos, como qualquer outra jóia sem muito valor. Analisou-o por uns instantes, prestando mais atenção em seus detalhes naquele momento do que jamais havia feito.

Em sua frente, um desenho delicado do brasão real atrelado à uma coroa se mostrava.

Dentro dele, por sua vez, estavam as palavras: "Sempre minha rainha, Morgana ", marcadas em uma caligrafia bonita.

Era um anel de compromisso. De casamento.

Balançando a cabeça em negativa várias vezes e forçando-se a sair de seu torpor, deixando aquilo tudo para uma outra hora, se deu conta do cenário atual: sumia em meio às árvores, já longe dali. Por isso, levantando-se em um movimento brusco e ignorando a presença de Pogue, – que, por sua vez, parecia ter ignorado as ordens de seu capitão –, ela gritou:

Não ouse dar as costas para mim! Não importa. Nada disso importa! De quem eu sou filha ou qualquer coisa relacionada à minha infância ou passado é irrelevante! Rogers era meu pai. Ele me criou, ele me amou, ele me deu tudo. Ele foi tudo para mim. E ela me tirou isso. Seu irmão me tirou isso! — Sua respiração estava alterada, o peito subindo e descendo rapidamente. O olhar se direcionou para o feiticeiro, que observava a situação com uma expressão impassível. — Você sabia. De alguma forma, você sabia. E quis mostrar isso para ele — ela cuspiu as palavras. — Sabe que a rainha é a inimiga dessa história. Não só a minha, mas a de vocês também.

balançou a cabeça novamente, um sorriso de descrença se abrindo em sua expressão ao mesmo tempo em que olhava para a direção onde havia caminhado.

Deu então vários passos, lançando-se à frente:

— Seu covarde! Seu irmão foi corrompido por ela. Se deixou virar seu cachorrinho, cumpriu as ordens daquela tirana sem pensar no certo ou no errado! A melhor coisa que eu fiz foi tê-lo matado. E eu vou fazer o mesmo com você!

Durante algum tempo, tudo o que conseguia ouvir era um zumbido chato que insistia em deixá-lo anestesiado para o mundo exterior. Quando os gritos da pirata começaram a fazer sentido em sua mente, porém, ele voltou a passos rápidos em sua direção. Jogou-a contra uma das árvores próximas e, com a mão destra, puxou sua adaga, firmando-a contra o seu pescoço. Deixou a lâmina afiada fazer outro corte superficial em sua pele e o sangue quente escorrer em suas mãos. A canhota agarrou seus cabelos, puxando-os para trás para que ela entendesse bem o que diria a seguir.

— Se você falar mais uma palavra sobre Willian, eu juro, ... minha missão aqui com certeza já perdeu o sentido, e ao inferno com a rainha, mas eu enfio essa adaga tão fundo no seu crânio que jamais vou conseguir recuperá-la — tão repentinamente quanto a pegou, o soldado se afastou, soltando-a, com o ódio que lhe queimava por dentro explícito no olhar.

Então, foi a vez dela de avançar contra ele.

A mão direita se fechou em punho e atingiu-o tão rápido no queixo que não teve tempo de evitar o golpe. o encarava com o mesmo sentimento, o verde de suas íris ardendo em brasa e deixando claro que, mesmo desarmada e sob a advertência do homem que portava uma lâmina, ela não deixaria suas palavras se tornarem ameaças vazias.

— Você queria ser igual a ele, não queria? Tenho certeza que ele deve ter sido um exemplo para você a vida inteira. Sinto muito, soldado, mas a perfeição não existe — rosnou as palavras, ignorando qualquer aviso racional da sua mente de que aquilo poderia resultar em sua morte. — Willian era podre. Se rebaixou a uma pessoa sem honra nenhuma, sem princípios, sem escrúpulos, e matou um homem bom e inocente em troca de aprovação, de promessas, de sexo com aquela vadia! Iria matar uma criança também. Se você, depois de ver a verdade sobre ele, ainda quiser vê-lo como um herói, ótimo! Isso mostra o tipo de pessoa que você também é. Me mate, eu o desafio. Mas mantenha o mínimo de decência, respeito, honra, ou o que for que tanto faz questão de dizer ter, e lute de igual para igual comigo!

sabia que seria suicídio ir para cima do soldado desarmada e machucada. Com o corpo debilitado pelos golpes anteriormente sofridos, uma luta física seria muito mais complexa, e nem de longe uma opção em circunstâncias normais.

Aquela não era uma circunstância normal, porém.

Era tudo o que ela tinha, e também o que o momento exigia. A desvantagem, de maneira nenhuma, impediria sua determinação. A adrenalina que corria por seu corpo era como um anestésico e um estimulante, e era com aquilo que contava. Era só o que precisava. E , nesses segundos que se passaram, olhou fundo nos olhos da mulher, como se analisasse seu pedido e tudo dito antes dele.

Como se considerasse.

Por maior que fosse a raiva que ainda sentia de tudo que já tinha passado em vida, e principalmente das palavras proferidas por ela, entendia de onde aquilo vinha.

E ela teve sua vingança, afinal. Por que ele não poderia ter a dele? Mesmo que agora as razões fossem outras. Não tinha o que vingar de Willian; não, ele não havia se provado digno de vingança, como sempre imaginou. Ainda assim, por conta do ato da pirata, ele havia visto sua família se desmoronar; seu pai se afundar em depressão, seus outros irmãos sumirem no mundo, e sua mãe sem nunca mais sair de casa para aproveitar um dia de sol.

Quantas outras vidas inocentes, diferente da de seu irmão, ela teria tirado? Quantas famílias teria arruinado?

Não demorou para tomar sua decisão.

Empurrando-a com um chute, o soldado guardou sua pequena lâmina e sacou a principal, puxando a espada longa da bainha. Girou a arma algumas vezes e se preparou, esperando a pirata se levantar.

— Você fala demais e luta de menos, princesa.

Levou apenas alguns segundos para montar um plano de ataque, e com ele, a mulher não hesitou sequer um instante para se levantar e empurrar o ombro contra o tronco da árvore, colocando-o no lugar. A dor, apesar de excruciante, foi prontamente ignorada, servindo apenas como combustível para o que viria a seguir. E não sendo essa o bastante, a provocação vinda soldado só aumentou sua vontade de pular no pescoço dele. Avançando e desviando de uns golpes desferidos, a pirata se aproximou, e ao ver uma brecha neles, – quando não se firmou ao brandir a lâmina –, aproveitou para levar sua mão até o aço frio, segurando-o com força, sem se importar com o corte que aquilo causaria.

Já estava cheia deles, de qualquer forma.

Com um rosnado abafado, afastou a arma, usando então o joelho para atingir no meio das pernas. O grito que escapou dos lábios dele foi suficiente para fazer um sorriso de escárnio se abrir. Com a com a dor no ponto sensível, o homem ficou desnorteado. Então, rapidamente, tomou a adaga de sua cintura, sem nem precisar pensar para desferir dois cortes fundos no soldado, um em cada coxa. Ao recebê-los, se desequilibrou, soltando a arma no processo para poder se apoiar ao cair de joelhos na areia.

Nesses segundos, a espada foi chutada para longe. também se livrou da adaga.

Ao inferno com as armas, ela o mataria com suas próprias mãos.

Aproveitando-se do fato de o homem já estar caído, usou o joelho outra vez para atingir com força seu maxilar, dando então um chute em seu peito para empurrá-lo de costas ao chão. Nos segundos que se passaram, a pirata se deleitou com a cena, mas não demorou a montar em sua cintura. A mão boa foi levada ao pescoço do inimigo, enforcando-o. Com a cortada, cuja palma sensível não dava tanta estabilidade, começou a desferir alguns socos. Seu corpo inteiro doía com o esforço, mas não havia dor no momento que fosse mais forte que seu desejo de matá-lo.

, por sua vez, não se deixaria derrotar tão facilmente. O mesmo desejo de sangue que ela sentia também o movia, afinal.

Por isso, mesmo com a dor infernal do golpe baixo da mulher, e vendo alguns pontos pretos em sua visão dado o fato de ser atingido diversas vezes no rosto, ele se focou na única vantagem que ainda tinha: seu tamanho e força. já estava machucada, seus golpes começavam a desacelerar, e não seria difícil, para ele, virar aquela investida contra ela. Assim sendo, o soldado agarrou um punhado de areia do chão e jogou em sua direção. Então, com um grunhido de esforço, empurrou o rosto dela para o lado com uma das mãos e, utilizando o quadril como alavanca, conseguiu girar o corpo até inverter as posições. Uma vez livre e no controle da situação, em cima do corpo da pirata, segurou ambos os pulsos acima de sua cabeça, prendendo-os no chão com a canhota. Com a expressão séria transbordando ódio visível no olhar, o soldado levou a mão destra até seu pescoço, da mesma forma que ela fazia segundos atrás, apertando-o até escutar o som do ar faltando em seus pulmões. Ao mesmo tempo, o homem fez pressão para baixo com seu quadril para mantê-la totalmente imobilizada.

O peito de implorava por oxigênio, mas por mais que ela se debatesse, tentando tirá-lo de cima, com metade do corpo preso abaixo ficava difícil de qualquer movimento defensivo ser executado. Ainda assim, o olhar não se atrevia a desviar nem por um segundo das íris azuis dele, as mesmas focadas em matá-la sem nenhuma hesitação.

viu seu fim ali.

O aperto, porém, se afrouxou quando uma nova figura se fez presente no ambiente, atraindo as atenções. Nesses míseros segundos de distração, quando o soldado desviou seu olhar, aproveitou para levantar seu tronco com tudo e dar uma cabeçada nele, o desorientando outra vez. Ouviu o som do osso do nariz se partindo, e com a vantagem, a pirata não demorou para golpeá-lo com a força que lhe restava, uma vez no maxilar, e outra novamente abaixo, com o joelho. Ela se recompôs rapidamente então, empurrando-o para longe de seu corpo e colocando-se de pé, cambaleante, mas pronta para se lançar até a espada e terminar o serviço.

Todo e qualquer esforço que fazia, porém, foi cessado ao ver, de dentro de um saco, a cabeça de Benny ser retirada pela loira que chegou ao local da luta.

quase desejou que tivesse obtido sucesso em matá-la.

Dessa forma, não estaria sentindo o mundo desabar sob seus pés ou a dor excruciante em seu peito, para muito além de física, que queimava e se estendia por todo corpo, borrando sua visão em lágrimas de tristeza, descrença, ódio e mais um milhão de emoções que sufocavam-na bem mais do que as mãos que envolviam seu pescoço instantes atrás. E mesmo sendo apenas por um segundo, a pirata sentiu que encarava aquela cena há horas.

Em câmera lenta.

Com o mundo à sua volta sendo um mero detalhe desimportante. E era. Estava anestesiada, perdida. O choque a prendia ao chão, fazendo-a crer que qualquer tentativa de dar um passo à frente faria seus joelhos cederem.

Não duvidava disso.

O mesmo choque em que se encontrava, porém, estava estampado nos olhos castanhos da mulher que segurava a cabeça de Benny, encarando-a totalmente confusa e assustada, como se estivesse observando um fantasma. Foi ali que a pirata soube que aquela era sua vantagem e sua única chance de vingá-lo. Por esse motivo, engolindo e suprimindo qualquer sentimento que a atrapalhasse, ela correu. Correu até a espada de , para onde sabia que ele também estava indo. Correu como se a sua vida dependesse disso, deixando a adrenalina fluir por cada pedaço de seu corpo porque ele, naquele momento, não importava mais. Nada além da loira existia para a capitã. Nada. Mesmo que o descuido de focar apenas naquilo pudesse causar seu fim, – afinal, estava em um cenário de três contra um –, isso não impediria que a mulher tirasse a vida de quem tirou a de seu marujo, seu amigo, sua família.

Benny estava com ela desde o começo; não conseguia imaginar uma vida onde ele não estivesse presente.
Ao agarrar a espada, os passos de , atrás de si, cessaram. Mas não fez questão de se virar e conferir o porquê; pelo contrário, com toda a ira em que se encontrava, a pirata avançou para Blanche, que, atordoada e confusa, apenas deixou a cabeça do feiticeiro despencar de suas mãos ao tentar sacar a adaga em sua bota.

Não houve uma luta, porém. Não houve sequer esforço.

Blanche, tendo sido pega duas vezes de surpresa; – uma pela visão do "fantasma" que acabara de matar estar bem vivo à sua frente, e duas pelo fato de o mesmo fantasma avançar em sua direção –, não teve tempo de se defender. Direcionando seu olhar para Pogue, como último ato em vida, ela pôde ouvir algumas palavras ressoarem em sua mente.

Oh, eu avisei que se você fizesse algo além de seguir as suas ordens, as coisas não acabariam bem. Te prometi isso, hm?

A espada empunhada por atravessou o peito da loira, fazendo, do furo ali aberto, sangue esguichar e respingar em todo o redor, manchando o chão de areia dourada, as mãos, roupas e até mesmo o rosto da pirata. E da mesma forma que havia sido com Willian, errou um ponto vital de propósito. Queria que ela agonizasse. Queria que ela visse. Que sentisse. Por isso, puxando a arma de volta quando a mulher caiu de joelhos, agarrou os cabelos loiros também manchados com o líquido carmesim e os puxou para trás com violência; encarando os olhos escuros de Blanche enquanto a lâmina agora deslizava forte e lentamente por toda a extensão do pescoço, dando a ela o mesmo fim que a mulher havia dado à Benny.

Na mesma moeda.

Com o cadáver à sua frente estatelado ao chão, deu dois passos para trás, soltando a espada e encarando a cabeça de seu amigo. Permitindo que suas pernas finalmente cedessem, um grito de agonia e tristeza arranhou sua garganta, seguido de um choro desesperado.

, – que havia sido impedido de se mover por conta da magia que o prendeu no lugar segundos antes de conseguir agarrar a capitã –, assistiu estático ao show de horrores protagonizado por ela. Com o estômago embrulhado, então, se forçou o máximo que pôde para encarar Pogue, que ainda o mantinha preso.

— Agora você é aliado dela? Traidor! Não me importo mais com a rainha, não me importo com nada! Mas ela precisa pagar pelo que fez. E eu vou matá-la — protestou com raiva visível tanto no olhar quanto no tom de voz. — Me solta, porra!

Pogue mantinha sua expressão impassível, como sempre. Não havia uma sobrancelha arqueada, cenho franzido ou torção de lábios sequer em seu rosto; era impossível captar qualquer emoção transmitida por ele, afinal, ele nunca as deixava escapar, fosse a forma que fosse.

Algo em seus olhos, porém, denunciava que não estava tão descontente assim com a morte de Blanche.

Diferente da calma do feiticeiro, entretanto, se debatia contra a mágica que o prendia, tentando se forçar em direção ao homem enquanto se alterava em protesto com a situação. Pogue sabia, porém, que se libertasse o soldado, ele não hesitaria em matar , que por sua vez estava fragilizada e com a guarda baixa.

E isso era algo que não poderia acontecer por enquanto.

— suas palavras mansas se fizeram presentes em contraste com a gritaria de raiva do soldado. — Não sou aliado da pirata — um suspiro cansado escapou de seus lábios. — Sua raiva está te cegando, e você não está vendo a situação como um todo — dando uma pausa rápida, Pogue continuou: — Blanche era sua subordinada. Tinha ordens explícitas para não atacar a capitã, uma vez que a sua missão era capturá-la e levá-la de volta ao reino. Se nada do que viu em relação à Willian tivesse de fato ocorrido no passado, ela teria colocado tudo a perder ao passar por cima das suas ordens e matar a pirata. Você voltaria para o reino com uma missão falha, sem prestígio ou honra, e poderia até mesmo ser dado como traidor.

Por mais que soubesse que Pogue tinha razão, não conseguia não se sentir traído por ele. O sangue continuava fervendo, mesmo que não pudesse se mover. Na verdade, agora estava mais irritado por estar preso do que por qualquer outra coisa.

Me solta, porra! — Repetiu e tentou fazer força com os braços e com as pernas, até que finalmente se viu livre do feitiço do amigo. Não por esforço próprio, mas porque ele o havia liberado. Se esticou um pouco, sentindo a dor muscular resultante, e andou em sua direção, encarando-o de perto, momentaneamente esquecendo da pirata em liberdade: — Felizmente ela morreu, então. Mas agora não tem mais jogos, não tem mais feitiços para me prender ou para me mostrar a memória de ninguém, não tem mais nada, a não ser que eu peça. Pelo o que eu me lembre, você também é meu subordinado.

O feiticeiro sustentou seu olhar, mantendo a expressão impassível enquanto ouvia.

, por sua vez, deixou o ombro esbarrar no dele para caminhar na direção de .

Antes que o soldado o desse as costas, porém, ele disse:

— Há uma pessoa culpada pela morte de Willian. Acredito que você seja inteligente o suficiente para saber quem é — ao final, Pogue deixou que ele se afastasse, indo até a mulher.

Ficando há alguns metros de distância, o capitão falou, em tom de ordem:

— Você, pirata. Temos que conversar. — não se mexeu ao ouvir as palavras distantes do homem atrás dela.

Elas não faziam sentido.

Não importavam. Eram um eco no vazio, carregadas pela brisa da maresia que chegava com um gosto amargo à garganta. Não traziam mais raiva, não chacoalhavam seus ossos, não borbulhavam seu sangue, não causavam efeito.

Ali, seu luto era maior.
Ali, tinha perdido uma das únicas coisas que lhe restavam.
Ali, tinha perdido o propósito. A guerra.

Tinha perdido tudo.

Que dissesse o que queria. Que lhe atacasse por trás. Que colocasse um fim naquilo. Algo dentro de si quase implorava para que o fizesse, mesmo.

Assim não teria que sentir o maldito coração batendo, sangrando no peito em um aperto que ela duvidava que um dia passaria. Assim não precisaria encarar a realidade de viver outra manhã, e outra, e outra, sem aquele que desde sempre havia sido seu ombro direito, seu companheiro, a pessoa cuja qual lhe deu um Norte naquela vida perdida.

Em outras circunstâncias, a mulher teria se levantado e encarado o soldado. Teria discutido. Teria continuado a lutar. Mas, não. seguiu de joelhos na areia manchada de sangue, de costas para o inimigo, encarando a cabeça daquele que horas atrás ainda estava vivo.

Vivo e lutando. Por ela.
Para que ela não perdesse aquela luta.
Não deveria perder. Seu sacrifício não poderia ser em vão.

Talvez, por isso, tenha reunido forças para se apoiar no cabo da espada e se levantar.

Talvez, por isso, tivesse deixado seus pés lhe moverem até próximo do homem muito mais alto. Talvez, por isso, tivesse lhe encarado nos olhos, mesmo que os seus estivessem opacos, vazios e molhados, distantes das chamas ardentes que eram instantes atrás.

Talvez, por isso, tivesse feito a voz arranhada e quebrada soar, contra a vontade, pouco mais alta que um sussurro.

— Não temos nada para conversar.

aproveitou a proximidade para desarmá-la, segurando a espada com a destra enquanto a canhota segurava um de seus antebraços.

— Só vou pegar o que é meu. E acredite em mim... eu adoraria terminar o que comecei, mas não vale a pena. Você só foi usada por uma pessoa mais poderosa e ainda mais diabólica que você.

Então, o soldado se afastou sem muita delicadeza, empurrando-a para trás ao mesmo tempo em que dava um passo na direção oposta, sem dar as costas para ela.

não revidou ao ser desarmada pelo homem, apenas soltou a espada e deixou que ele a tomasse. Ao ouvir suas palavras, ficou quieta, mas assim que o homem se afastou um passo, a pirata não hesitou em dar um à frente e virar um soco firme na cara dele.

— Eu não fui usada, eu matei uma pessoa que foi — as palavras foram ditas sem nenhuma emoção. — Em algum lugar aí dentro, você sabe disso. Mas não se preocupe, sem um navio, você vai ter muito tempo nessa ilha para pensar sobre.

Foi a vez dela se afastar, sumindo por entre as árvores e deixando o homem sozinho.



Continua...



Nota da autora: Sem nota.



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