Lembro-me bem do que aconteceu naquele dia. Eu usava um vestido azul e sapatos pretos brilhosos, que foram a maior pedra em meu caminho na hora de correr. Mas nem isso serviu para me parar. Eu estava cansada, e a única coisa que eu queria era me esquivar de todos que tentavam me consolar. Desde aquela época minha relação com minha mãe resumia-se a um desastre, e depois do que ela me disse, senti vontade de fugir para algum lugar em que não precisasse vê-los nunca mais.
A mãe gritara, e eu a odiava em cada momento no qual ela fazia isso. Suas palavras me feriram, e prefiro não repeti-las; prefiro mantê-las naquela caixa de nossa consciência onde elas quase caem no esquecimento.
Se há algo da qual me lembro também, é da terrível sensação de correr com lágrimas escorrendo pelo rosto. Nunca fizera isso outra vez depois daquele dia, pois nunca mais deixara que algo me fizesse tão mal. Isso, provavelmente, por causa do que minha avó me dissera - e do que me mostrara.
Como em todos momentos de tristeza, naquela data corri para seu quarto de costura. Encaixei-me no espaço debaixo de sua mesa de costura e lá chorei. Repeti as palavras de minha mão em um sussurro e passei certo tempo procurando um bom motivo para o que ela me disse. Adivinhe só, em vão. Nada me ocorreu.
Apenas quando a mesma avó chegou no quarto, abaixou-se lentamente ao meu lado e estendeu a mão para mim, deixei as lágrimas de lado. Nenhuma palavra foi necessária, dado que foi ela que sempre me acolheu nos momentos de brigas.
“Você não deve ficar triste. Sua mãe disse aquilo sem pensar.” sua voz baixinha e doce anunciou. Eu podia não acreditar em nenhuma palavra daquela frase, mas concordei com a cabeça. Sentia-me na obrigação de mostrar que confiava nela. “Tudo bem. Você já está grandinha, não está? Oito anos. Acho que está pronta para conhecer um lugar.”
Ao fim de sua frase, ela me guiou até uma porta nos fundos da casa. Eu sabia que lugar era aquele. O jardim. Minha avó nunca permitira que alguém entrasse lá; preferia cuidar de tudo com as próprias mãos, plantar, regar, colher e admirar. Ela escolhia quais as mudas estariam em cada canteiro, fazia arranjos e nos dava de presente. E agora, eu o conheceria. Oh, como eu ansiava pelo dia em que pudesse pisar naquele jardim. Correr na grama verde, colher maçãs das árvores e fazer meus próprios arranjos de rosas.
Quando a avó abriu a porta, não tive coragem de soltar o ar de meus pulmões. A imensidão viva e colorida em minha frente me deixara paralisada, e somente com a ajuda da senhora consegui entrar no local. Ela sentou-se em um banco ornamentado, fitando-me enquanto eu colhia flores cor-de-rosa, vermelhas e brancas. Fiz questão, naquele momento, de escolher as mais bonitas rosas. Juntei-as em uma cesta e entreguei o arranjo para a avó. Era minha forma de agradecer por ter me mostrado aquele lugar mágico. Vendo meu encanto, minha avó prometera no mesmo instante que aquele era nosso lugar secreto. Sempre que algo ruim acontecesse, nos encontraríamos ali e deixaríamos que a magia criada pelo local nos acolhesse.
Depois disso, minhas visitas à casa da avó Genevive se tornaram mais frequentes, e tudo era motivo para que fugíssemos até nosso Jardim Secreto.
O nosso jardim, que foi cenário de tantas histórias que ela me contava. O mesmo jardim no qual ela usava seu pente entalhado para engomar meu cabelo, cantarolava sua música preferida e me dizia "Esta canção que eu canto é só para você. O amor compôs o tema e o poema para você." O mesmo jardim, que depois de tanta coisa, foi tirado de nós.

~**~


Anos depois.
“Alice, eu preciso que vá para casa.” minha mãe anunciou no telefone. Sem nem mesmo esperar o fim da frase, revirei meus olhos e gesticulei para Charlotte, mostrando que não era nada demais.
“Eu não posso, mãe, acabei de chegar na festa.” resmunguei em resposta, encarando o relógio de madeira pendurado na parede. Era a festa de Samuel Smith, filho do meio da família mais rica da região - e, diga-se de passagem, meu colega de classe. Muitos diziam que ele era louco por mim, e ao contrário de todas as meninas, isso não era importante para mim. Estava ali exclusivamente para estudar e me livrar da marcação cerrada de minha mãe. Oh, não, eu definitivamente não passaria mais tempo obedecendo às ordens dela. Por anos fui mantida longe de festas e qualquer tipo de contato social, mas agora eu me recuso a ser afastada da diversão pela minha mãe. Ela está em outra cidade, e não pode fazer nada para me tirar dessa festa.
“Em meia hora Mitchell vai estar aí, e é bom que esteja esperando ele lá fora. Quando derem oito horas em ponto você vai estar naquele carro, está entendendo?” a voz fria de minha mãe estava de volta, e fazendo algo que era típico. “Aconteceu algo grave e eu preciso que você vá para casa. Sem mais, Alice.”
Foi a última coisa que ouvi antes do inacabável ruído da linha telefônica. Ela desligou. Lá estava eu, com dezessete anos, morando praticamente sozinha em uma cidade até então desconhecida, e ainda tendo que obedecer às ordens da mamãe. Ridículo, patético.
Segui no mesmo instante para fora do salão de festas, felizmente escoltada por Charlotte, sentindo-me frustrada dos pés a cabeça. Minha amiga inclusive tentava me consolar, dizendo que se algo grave acontecera, eu tinha razão em voltar para casa - e juro que tentei colocar isso em minha mente. Foi com o mesmo sentimento de frustração que entrei no carro e segui até o apartamento em que eu e duas outras amigas moramos - acompanhadas, é claro, da mãe de uma delas.
“Alice” Mitchell, motorista que me leva de um lado para o outro da nova cidade, chamou meu nome com cautela, impedindo que eu abrisse a porta do automóvel. “Seus pais queriam te dar essa notícia, mas acharam que fosse melhor alguém falar com você pessoalmente. Por mais que eu não seja exatamente próximo de você, eu estou acompanhando sua família há um bom tempo, então…” seus olhos, que até então me fitavam pelo espelho fixado no teto do carro, se fecharam. “Sua avó Genevive. Ela se foi, pequena.”
Por alguns momentos, nada passou em minha cabeça. Nenhum pensamente foi forte o suficiente para formar alguma ideia clara, e talvez por isso eu tenha demorado em cair em lágrimas.
“Eu… eu só a trouxe aqui para que pegue algumas roupas, algo que tenha valor, talvez. Vou te levar para casa.” Mitchell continuou, agora se virando para olhar diretamente em meus olhos. “Se precisar de ajuda…” tentou, mas não deixei que terminasse sua frase. Sem ser interrompida dessa vez, abri a porta com força e corri até a do prédio. Naquele momento, os pensamentos se formavam e me atormentavam. Qual foi seu último pensamento, a última coisa na qual ela pensou? No momento em que isso passou por minha cabeça, tropecei em um tapete caro que cobria a escada e caí no chão, onde fiquei sentada por um bom tempo, simplesmente chorando.
Algum tempo depois, entretanto, voltei para minha busca. Precisava voltar para lá. Eu estava desesperada atrás de minha bolsa, enquanto arrancava todo e qualquer resquício de que naquela noite pretendi ir a uma festa. Consegui reunir algumas roupas, assim como um único livro que ganhara de presente de minha avó, dizendo a mim mesma que ele deveria estar em casa se assim eu estivesse. A Bela Adormecida, que em minha infância eu lia e cantarolava como se fosse Aurora.
“E aqui está você, somente você. A mesma visão, aquela do sonho que eu sonhei.” a frase esteve em minha mente durante todo o percurso de volta para casa.

~**~


“Nós sabemos que é muito difícil para você, Alice.” meu pai começou, lenta e calmamente. Era o terceiro dia depois da morte de minha avó, e consequentemente depois da minha volta para esta cidade. “Por isso eu pensei que fosse gostar de ficar com uma coisa. Você se lembra da coleção de dedais da sua avó? Está intacta. Se quiser, pode ficar com ela. Eu lembro como passava horas arrumando aquelas coisinhas, limpando e agrupando por diferentes categorias. São todos seus, filha.”
Levantei-me rapidamente e o abracei. Meu pai, a única parte boa de estar de volta - matar a saudade. Ele me entendia, provavelmente a única pessoa, agora que eu perdera Genevive.
“Tenho uma porção de coisas lindas nesta coleção. Posso dizer que eu sou alguém que tem quase tudo.” ela me disse em uma das vezes que me encontrou arrumando seus dedais. “Eu sou totalmente apaixonada por essas delicadezas, que são simples e ainda úteis.” continuou ela, encaixando um dos dedais comuns no dedo indicador e ensinando-me que aquele pequeno objeto servia para impedir que a agulha de bordado a machucasse.
Agora, aquelas caixas e mais caixas de dedais diversos - coloridos, comuns, de metal ou até porcelana, dos mais variados lugares do mundo - eram minhas. O sorriso que se formara em meu rosto, contudo, foi rapidamente desfeito assim que ouvi a voz de meu pai outra vez.
“Mas… tire-os de lá logo, se puder. Estamos em um processo de esvaziar a casa, e em breve os possíveis compradores vão chegar.”
“O quê? Compradores?” minha voz chegou a parecer áspera, tamanho susto.
“Compradores, Alice. Infelizmente, teremos que vender a casa. Sei que faz pouco tempo que sua avó se foi, mas você sabe… nossa situação anda difícil. Além de você, nós temos sete meninos. Sete filhos, Alice, sabe como isso pesa em nosso bolso? E não há jeito de mantermos nossa família, mais essa casa. É enorme e cheia de necessidades.” a voz de meu pai não pareceu melhor que a minha. Eu entendia, entendia que estivesse sendo complicado para ele assumir que não consegue sustentar a própria família, mas senti-me como uma idiota por algum dia ter pensado que um dia essa casa seria minha. É claro, minha egoísta família tiraria um proveito muito mais lucrativo dessa casa. É o que eles sempre faziam, principalmente minha mãe.
“Mas vocês não podem… é a casa da vovó, vocês não podem fazer isso!” insisti, mesmo com a ideia feita de que não poderia impedir isso. Se os compradores estavam para chegar, é porque eles já planejavam isso há tempos. E só em pensar que em algum tempo esses quartos poderiam estar sendo usados por estranhos, que outra família se reuniria naquela sala de jantar e que desconhecidos tratariam do Jardim sem entender o que ele significa para mim, arrepiei-me da cabeça aos pés.
“Eu sei. Eu sei, minha filha, que adora esse lugar, mas preciso que entenda meu lado. Preciso que entenda e faça isso por mim. Entendo que é coisa demais, que veio de outra cidade porque sua avó morreu e agora vai perder essa casa, mas não há mais nada que possamos fazer.”
“Eu… eu posso pelo menos me despedir? Quero ir uma última vez no nosso Jardim. Não deixa ninguém entrar lá, tá?” pedi, passando por ele e abraçando-o brevemente, segui o rumo da porta nos fundos da casa, que me levava ao jardim. Pensando em como deveria ter ficado lá, ignorado as brigas com minha mãe e passado mais tempo com minha avó. Talvez se eu estivesse lá para trazê-la ao jardim, ela melhorasse um pouco, eu não sei. Talvez esse sacrifício para ajudar meu pai não fosse necessário.
Mas quando abri a porta que levava ao paraíso particular, senti minha força sair por cada poro de meu corpo. O estado no qual encontrei o Jardim era deplorável, tão chocante que por alguns instantes não tive a capacidade de me mover. Ele definitivamente não era o que deixei quando viajei para os estudos. Ele definitivamente não era o que eu e minha avó cuidávamos.
Avancei lentamente pelos caminhos de pedra entre os canteiros, avaliando a situação do local em minha volta. Muitas das flores estavam secas, sem cor. As árvores não tinham mais nenhum fruto para oferecer. A magia que me envolvia toda vez que eu entrava aqui sumira.
Não pude impedir que as lágrimas escorressem pelo meu rosto. Sem consolo, ajoelhei-me no meio da grama ressecada e chorei por mais tempo do que consigo contar. Eu sou uma idiota., foi a única coisa a passar em minha cabeça. O jardim está desse jeito porque ela nunca deixaria outra pessoa entrar aqui. Ela não conseguia levantar daquela maldita cama, e eu não estava aqui para cuidar desse lugar. É culpa minha!
Nada me tirou de minha tristeza até que Jonathan, um de meus sete irmãos, apareceu em minha frente. Dentro do Jardim.
“Você tá chorando?” sua voz de criança pediu. Não tinha certeza de quantos anos ele tinha, mas podia chutar entre sete e oito. De fato, não posso ser considerada uma boa irmã.
“O que você está fazendo aqui?” minha voz estava embargada, mas ainda assim compreensível. Em seus olhos, vejo que minhas palavras tiveram o resultado desejado.
“Eu ouvi um choro, e segui o som.” no momento, ele se virava desleixadamente e começava a explorar o Jardim avidamente.
“Você não pode ficar aqui. Você não pode, isso é totalmente errado.” sussurro, levantando-me e puxando-o para fora do local.
“Ei! Essa casa é uma parte minha, você sabia? Eu posso entrar em qualquer canto dessa casa.” Jonathan retrucou, tentando entrar no recinto outra vez.
“Não! Não aqui! Esse lugar é apenas meu e da vovó, vocês não entendem?” insisti, segurando-o na dire contrária do jardim. Mas ele não desistiu, e deu um impulso em minha direção por pura birra. Depois disso, por instinto natural, o empurrei para longe - levando o mesmo a cair. “Oh, desculpa. Desculpa, Jon, eu não queria fazer isso!” logo voltei atrás, porém, por ver que o machucara. Ajudei-o a se levantar e o abracei, para mostrar que não queria fazer aquilo de verdade.
“Tá tudo bem, eu não sou tão fraco assim.” o garoto respondeu, fazendo-se de corajoso. Sorri momentaneamente, considerando a hipótese de levá-lo formalmente ao Jardim. A ideia de que aquele lugar pertencia a mim e minha avó apenas era muito forte em minha mente. Por mais que eu sentisse que ele merecia descobrir as mesmas coisas que eu naquele lugar, tal pensamento não deixava de me atormentar.
Sentei perto da porta que levava ao Jardim, e fiz com que Jon se sentasse em minha frente. “Você entende, não entende? Eu só fiquei nervosa porque sinto muita falta da vovó. E quando eu vi esse lugar desse jeito, destruído, tudo desmoronou.”
“Acho que entendo sim. Eu também sinto falta dela.” meu irmão lamentou, dando de ombros. “Por isso estava chorando? Por que não gosta de ver esse jardim assim?”
“É. Eu… percebi que cresci e nada mais é como já foi.”
“Bom, e por que nós não o arrumamos? Podemos plantar novas flores e você não vai mais chorar.” Jon sugeriu, tão inocentemente que me fez sorrir.
“Esse é um lugar só meu e da vovó, Jonathan. Eu agradeço muito pelos seus esforços para me ver feliz, mas não acho que tenha alguma maneira de recuperar o Jardim.”
“Alice!” resmungou o garoto. Ele não era de desistir fácil, isso eu sabia. “Foi a vovó que te mostrou o Jardim?” depois de me ver concordar com a cabeça, meu irmão prosseguiu “Então você tem que mostrar o Jardim para alguém. Aí quando você estiver velhinha, esse alguém vai mostrar para outra pessoa que goste, e assim vai. Se não, o Jardim vai ser esquecido.”
Danado. Ele sabia me pegar. Sabia que eu não poderia ignorar a ideia de passar meu amor por aquele lugar adiante. Fiquei por alguns minutos encarando as maçãs caídas na grama, pensando em como aquele jardim ainda podia ser palco de muitas histórias como a minha. Convencida com seus argumentos - mas mesmo assim sabendo que seu único desejo era descolar algumas horas de brincadeiras naquele lugar diferente -, decidi entrar em seu jogo..
“Ah, você está certo. Mas quem poderia eu convidar para cuidar desse jardim?” perguntei, fingindo um olhar sonhador, como se estivesse pensando.
“Convide-me, Alice, eu vou fazer direitinho!” Jon gritou, em um salto em minha direção, que mais tarde se transformou em uma guerra de cócegas.
“Então você quer ser convidado? Bem, é uma grande responsabilidade. Antes de ser aceito, vai ter que fazer uma missão.”
“Missão? Estou ouvindo.” Assegurou com uma determinação que não parecia a de um garoto de oito.
“Bem, se você for atrás de seus irmãos e trazê-los para cá em menos de quinze minutos, todos vocês vão poder me ajudar. Se não, terei uma longa e solitária tarde de arrumação pela frente. Entendido, soldado?”
“Entendido!” e, depois de tocar com os dedos na testa, partiu como um raio na direção dos quartos da casa, em busca dos seis irmãos. Nesse tempo, fui até o depósito e reuni em uma cesta grande os mais variados equipamentos de jardinagem e também sementes de flores. Quando voltei, encontrei Jonathan ordenando para os outros seis meninos que se mantivessem em silêncio até que eu chegasse.
“Soldados” cumprimento a todos, sem evitar que um riso surja depois de vê-los parados em fila, me aguardando. “Essa é uma missão muito importante. Será necessária muita concentração de sua parte. Agora, em fila, entrem no jardim e não se esqueçam de memorizar cada detalhe do desastre. Assim, a sensação de trabalho bem feito no fim será maior.”
Passamos pelo menos uma hora e meia arrumando aquele ambiente. Três dos garotos me ajudaram a substituir as mudas mortas por novas sementes - sendo que me encarreguei de fazer um canteiro inteiro apenas com rosas, as favoritas de Genevive. Os outros quatro cuidaram de substituir os velhos empoeirados por novos e coloridos. Ao fim do trabalho, nos sentamos na grama úmida e admiramos o resultado; estava muito semelhante ao Jardim que conhecera há anos atrás, livre de toda a sujeira e do clima pesado que anteriormente emanava de todos os cantos do recinto. E eu, principalmente, me sentia renovada, já que todos os pensamentos de tristeza e culpa agora pareciam menores. Apenas quando ouvimos ruídos e conversas vindas da parte de dentro da casa, mudamos o foco de nossa atenção.
“Que será?” perguntei, esticando o pescoço na tentativa de captar qualquer som a mais.
“Acho que os compradores da casa. Papai e mamãe vão fazer um jantar aqui para apresentar a casa.” Jasper explicou, deitando-se na grama.
“Oh, eu esqueci.” lamentei, voltando para a tempestade de pensamentos ruins de algumas horas atrás. Naquele momento, a frustração se mostrou vinte vezes maior, já que trabalhamos tanto para reconstituir o Jardim e ele cairia diretamente nas mãos de estranhos. Até que algo passou por minha mente. Estava na companhia de sete pequenos especialistas em bagunça, leais o bastante para aderirem meu plano. Eu estava hospedada com eles, sabia muito bem do que eram capazes.
Tem gente tentando comprar nossa casa., pensei. Bem, nada que um bando de meninos de seis ou sete anos não resolva.
Em um salto, levantei-me. Arrumei a postura para passar seriedade e desatei a falar, tão séria que poderia defender a república sem problemas. “Soldados. Vocês não são o que eu pedi, são frouxos e sem jeito algum. Vou mudar, melhorar um por um.” apenas com a primeira palavra, fiz quatro dos meninos se levantarem e endireitarem a coluna. “Há pessoas más lá fora. Elas querem tirar de nós essa casa! Se fizerem isso, todo o nosso trabalho nesse jardim será em vão! Por isso, lhes digo. Vamos acabar com eles!” no ato, vi uma fileira de sete soldados se formar em minha frente. “Agora, vamos ao plano de batalha. Jonathan, Stefan e Hubert. Vocês seguem até os cômodos que ainda não foram apresentados e fazem a maior bagunça possível. Hugo, Eric, Victor e Jasper, vocês são os encarregados pela bagunça no lado de fora da casa. Quando eles estiverem saindo, vocês fazem um escândalo, espalham sujeira por todo o hall de entrada, não sei. Espantem eles.”
"Entendido, irmã." Eric, o mais novo de todos eles, respondeu. Rumaram então para seus respectivos pontos de ataque, enquanto eu me escondia em um quarto isolado da casa. A única distração chegou quando Jasper apareceu correndo em meu encontro, assustado e totalmente ofegante.
“Eric caiu no lago!” ele gritou, e logo em seguida voltou correndo para a parte externa da casa. Minha respiração congelou. Eu conhecia muito bem aquele lago, sabia que sua profundidade era maior do que a altura de Eric. Enquanto corri atrás de meu irmão, pensei que outra coisa era minha culpa. E, quando finalmente cheguei nas bordas do lago, encontrei pelo menos metade dos meninos em um círculo, encarando algo. Aproximando-me, percebi ser o próprio Eric, e por instinto corri até ele e o abracei.
“Peguem toalhas para ele, por favor!” gritei, mantendo-o perto para aquecê-lo, só então percebendo uma presença desconhecida “Quem é você?”
“Aquele que salvou seu tão estimado garoto” o rapaz alto e de cabelos escuros retrucou, parecendo orgulhoso. Tomo nota, finalmente, de suas roupas molhadas, podendo concluir que ele salvara Eric. Não o conhecia nem fazia ideia de como ele chegara ali, mas ainda assim era grata por meu irmão. “Mas você pode me chamar de Phillip.”
“Ele é meu irmão, não só um garoto. E obrigada, Phillip.” fiz questão de manter o tom educado na voz, por mais que sua expressão orgulhosa me desse vontade de ser o mais rude possível. “Se importaria de me dizer como entrou aqui e… salvou ele?”
“Bom, os meus… pais são os prováveis compradores dessa propriedade. Acontece que eu odeio com todas as forças possíveis esse tipo de janta, então preferi ficar aqui fora. Ouvi a bagunça deles e percebi que o menino estava na água. Só isso.” respondeu, sem diminuir a arrogância na voz.
Percebi que os meninos voltavam com as toalhas que pedi, e depois de enrolar o mais novo nelas e pedir várias vezes se ele estava bem, fiz com que o levassem para dentro da casa e contassem o que aconteceu para o pai. “Você quer comprar essa casa? Bem, então nossa conversa tem seu fim. Obrigada por Eric, aliás.” oh, eu não pude continuar tratando-o com respeito. Ele moraria na casa, ele seria o intruso.
“E por quê?” pediu, pela primeira vez sorrindo.
“Porque o único sentimento que consigo nutrir por alguém que quer tirar essa casa de nós é raiva, e prefiro não sentir isso por quem acabou de salvar meu irmão.” respondi, preparando-me para dar-lhe as costas.
“Pois saiba, você que não quer me dizer seu nome, que sentimentos são fáceis de mudar, mesmo entre quem não vê que alguém pode ser seu par..” anunciou Phillip, parando-me no ato.
“Ora, que bonito. Além de salva-vidas é poeta?” não perdi a chance de dizer, virando-me outra vez e cruzando os braços em sua direção.
“Ah, nenhum dos dois. Não trabalho com poesias nem salvando vidas.” enquanto sentava-se em uma pedra na margem do lago, ele explicou “Foi meu amigo que me falou essa frase, ele é um pouco nerd demais. Um gênio, para falar a verdade, mas que se importa mais com as palavras do que com os cálculos. Eu, não. A minha coisa é a música, o bom e velho jazz.”
“Jazz? Bom, estou surpresa. Você não faz muito o tipo de colocar roupinha engomada e sair pra tocar saxofone.”
“Bem, eu já tentei tocar saxofone, mas na verdade minha praia é cantar. Ainda existem alguns bares de jazz por aí, e neles sou bem-vindo.” naquele momento, no qual falava de algo de seu interesse, Phillip baixou a guarda. Parecia espontâneo e a vontade, sem orgulho algum na voz.
“Canta, é? Ótimo para você, Phillip. Eu vou entrar agora, ver se meu irmão está bem. Você devia procurar alguma coisa seca para vestir. Aqui faz muito frio.” anunciei, dando-lhe as costas de uma vez por todas, sem impedir que um sorriso surgisse em meu rosto. Eu com certeza faria a maior das propagandas negativas para aquela casa.
“Ei! Você ainda não me disse seu nome.”
“Você não está para comprar essa casa? Vai ter tempo para descobrir ele.”

~**~


Chutei sem muita força uma pedra na direção do lago. Desde o acidente com Eric, dois dias antes, apenas eu podia me aproximar de lá. O mesmo dia em que conheci e conversei com o possível comprador da casa, apenas assim colocando em minha cabeça que a casa seria realmente vendida, e que aqueles seriam meus últimos dias ali. Nos dias que seguiram aquele os compradores, Sarah e James Anderson, visitaram a propriedade diversas vezes. Sem nenhum sinal de Phillip.
“Olá, Alice.” a voz do próprio anunciou, fazendo-me pular com o susto. “Como está, Alice?”
“Olá. Estou morrendo por dentro porque você quer comprar essa casa, e você?” respondi, cerrando os olhos em sua direção, sorrindo com sarcasmo.
“Oh, sinto muito. Estou muito desapontado, pois usei de todas minhas táticas para descobrir seu nome e você nem mesmo notou.”
“Realmente não notei, erro meu.” sentando-me em uma das pedras sobre a grama, retruquei. “Todas suas táticas?”
“Eu pedi para os seus pais, no caso.” entregou-se Phillip, sentando-se em outra das pedras. “Sinto muito pela casa. Acho que entendo toda essa coisa de ela significar algo para você, mas meus tios cismaram em comprar ela e nada vai mudar a cabeça deles.”
“Seus tios? Não disse que eram seus pais que estavam aqui pro jantar outro dia?” não pude deixar de notar. Parecendo incomodado, Phillip continuou.
“Bem, são meus tios na verdade. Eu moro com eles desde pequeno. E não me olhe com essa cara, meus pais não morreram em um acidente ou coisa do tipo. Eu fugi de casa quando era menor.”
“Então você mentiu. Mentiu para mim em nossa primeira conversa, que coisa mais feia.” advirto, fingindo um tom ofendido. “Por que você fugiu?”
“Porque os meus pais tinham brigas muito feias, e no fim quem sofria com elas era eu. Isso não acontecia na casa da Sarah e do James, então eles concordaram que era o melhor lugar para mim.”
“E por que eles simplesmente não se separaram?”
“Porque o casamento deles envolvia muito mais coisa. Meus avôs, de ambas as partes, são das principais famílias dessa cidade. Sendo assim, se eles se separassem, seria como declarar guerra entre as famílias.” expôs Phillip, encolhendo os ombros em indiferença, mas mostrando em seu olhar que não sentia isso.
“Isso é triste. Mas pelo menos se dá bem com seus tios, não é? Onde vocês moram?” tentei, a todo custo, mudar de assunto.
“Sim, me dou bem. Nós moramos em uma casa naquela direção, mas a torre da igreja cobre a visão.” Phillip aponta e, de fato, a única coisa que enxergo é a alta e antiga torre o relógio. “E você, por que tão apegada a esse lugar?”
“Porque é a marca viva de que minha avó esteve aqui. Que nós vivemos anos juntas e deixamos nossa marca em algo. Eu amo cada canto dessa casa, cada boneco da coleção, cada xícara, prato e talher nos armários, porque minha avó os amou.”
“A marca viva de que sua avó esteve aqui está em você. Você disse que ama tudo isso pois ela já amou, então consequentemente ama ela. Amar ela faz com que ela esteja viva em você.” Phillip comentou, o olhar tão vago quando o meu devia estar.
“E você ainda diz que não vive de poesia.”
“Talvez essa seja outra das mentiras que eu contei ontem.”
Naquele momento olhamos um para o outro e sorrimos. De fato, a segunda conversa parecia bem mais promissora do que a primeira. Trocamos algumas outras palavras, nada mais que isso. A frase que ele dissera parecia boa demais para não ser considerada o fim da conversa, e talvez por isso preferi cortar todos os assuntos. Não pude seguir com o plano, contudo, quando o vi assustar-se com um sapo que pulara em sua direção. Toda a imagem de garoto maduro e com os pés no chão que ele passara caíra em mil pedaços.
“Mas o que é isso? Esse lugar por acaso é no meio do mato?” a voz modificadamente aguda proferiu. Apenas depois de minutos em que não pude parar de rir, respondi.
“É só um sapo, não vai engolir você.”
“Começa por um sapo. Depois são lobos, hienas, leões da montanha. Todos eles podem me engolir.” retrucou ele, rindo comigo.
“Oh, é claro, leões da montanha. Até porque estamos em uma região muito montanhosa!”
“Nunca se sabe. E esse sapo podia ser venenoso, você sabia?”
“É claro que podia, Phillip.” revirei meus olhos, esticando as pernas e balançando a cabeça em sua direção. Não sabia exatamente o que sentia por ele naquele momento, mas sabia que o fato de ele ter salvado meu irmão já não era o único motivo pelo qual eu não conseguia odiá-lo.

~**~


Semanas Depois
“Você vai ficar muito tempo fora?” Eric perguntou, sentando no sofá cinza em meu lado.
“Apenas tempo suficiente, pirralhinho.” murmurei em resposta, arrumando uma das caixas de dedais em cima de outra.
“Suficiente? Para quê?”
“Ah, esquece. Você vai cuidar de todos os seus irmãos, não vai?” desviei do assunto, enchendo seu peito de orgulho ao ser colocado no posto de irmão mais maduro.
“É claro que vou. Mas só se você prometer que volta logo.” expôs Eric, encostando os cotovelos nos joelhos.
“Eu vou voltar, Eric. Antes que você perceba vou estar de volta.”
“Ainda não entendi por que está indo, Alice.”
“Para estudar, ou você acha o quê? Vou enfiar a cara nos livros. Ainda mais agora que perdi duas semanas de aula.”
“Tudo bem. Você é inteligente, não precisa ficar com medo” disse o garoto, sorrindo, enquanto segurei sua mão e o levei para junto dos outros.
Estava voltando para a sala dos entulhos, antiga área de pintura de vovó, quando notei uma presença rara.
“Alice” Phillip, que naquela semana só aparecera uma vez na casa e até então não trocara nenhuma palavra comigo, expressou.
“Phillip” aproximei-me dele, tendo que desviar dos móveis cobertos de plástico que se espalhavam pela sala de estar. A mudança começara e eu não estava nada pronta para testemunhá-la. “Seus tios estão animados mesmo. Nem três semanas e já estão de malas prontas.”
“Ah, é. Isso porque você não viu quando temos que viajar no natal.”
“Estou falando sério. Não acreditei em você quando disse que eles estavam determinados a comprar essa casa, achei que encontrariam alguma melhor. E você nem tentou fazer a cabeça deles, não é? Podia ter ajudado.”
“Sinto muito, Alice, meus poderes se limitam ao jazz e à ocasional poesia.” comentou, esticando os braços em frente ao corpo.
“Não estou pronta para perder o jardim. Não acho que possa viver sem ele.” respondi, mais como um comentário para mim mesma do que para ele.
“Jardim?”
“É, o dos fundos da casa. Vai dizer que ainda não foi lá? Minha avó me levou lá e essa é provavelmente a maior razão pela qual não aceito que essa casa seja vendida. Por isso vou voltar para Dover.”
“Para onde? Você vai sair daqui?”
“É, vou sim, para Dover. Vou estudar, tentar esquecer tudo isso. Esta cidade, na verdade, faz a gente se acomodar. Eu sei muito bem pra onde estou indo e sinto que qualquer dia vou chegar.” recitei para ele, sem muito compromisso. Seu olhar admirado foi o que chamou minha atenção. “Que foi? Também sei puxar uma poesia quando quero.”
Em retribuição ao meu modesto comentário, Phillip aproximou-se de mim e tocou seus lábios nos meus. Nada que possa ser considerado um grande beijo, mas suficiente para fazer-me inteira em confusões. Não tivera grandes conversas com ele, apenas algumas palavras trocadas - mas que, sem dúvidas, o apresentaram como um garoto interessante e com gostos privilegiados. Mesmo assim, não sabia exatamente o que sentia por ele. Só sabia que era muito forte, e fazia meu coração disparar.
Quando finalmente nos afastamos, falei exatamente o que passou em minha cabeça.
“Por que você fez isso?”
“Porque você citou poesia. Foi merecido.” depois disso, Phillip beijou-me outra vez, mas com um pouco mais de calma. Assim que voltamos às nossas posturas normais, abri minha boca para repetir a pergunta, mas o garoto se adiantou e respondeu calmamente. “Precisa de um motivo?”
Não respondi, mas fiquei pensando em possíveis respostas por um bom tempo. “Não devia ter feito isso. Eu vou embora amanhã e você me beijou, me fez pensar um monte de coisas, isso é idiota.”
“Você vai viajar amanhã? Por que não me disse?”
“O que você esperava, que eu ficasse aqui vendo isso?”
“Eu esperava que você tivesse me dito antes de eu te beijar!”
“Eu não sabia que você ia me beijar, se isso ainda não está óbvio.”
Parei em um súbito. Não, eu ia embora no dia seguinte e ele me beijara; agora, eu estava prestes a começar uma briga.
“Como não? Você não pode simplesmente não ter notado que…” Phillip estampava algo entre confusão e ansiedade no rosto, nada muito diferente de como eu pensava estar.
“Não fala. Não termina a frase. Se você disser o que eu pensei, vai ser ainda pior.” e, depois de respirar fundo, levantei-me, segui para fora da casa e fiz uma nota mental de que aquela era outra das coisas que eu deveria esquecer. A última coisa que eu precisava no momento era outro motivo para ficar.

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Anos Depois.
Rotina. Acordar, tomar banho, café, sair de casa, voltar porque esqueci algo, chamar um táxi, correr da chuva até chegar no táxi, correr da chuva até chegar na porta do trabalho, subir as escadas por causa do medo de elevadores, sentar na cadeira barata em meu escritório tão barato quanto e digitar. Minha rotina tornou-se um ciclo vicioso e sem espaço algum para divertir-me. Naqueles tempos, costumava dizer que ser adulto é uma maldição, e que malditas fossem as crianças que sonhavam em crescer logo. A rotina ocupava espaço demais de meu presente, talvez por isso não tinha tempo para magoar-me lembrando do passado.
Era, de fato, uma seguidora da teoria do “o que passou, passou”, mas não por escolha própria. O único dia fora de minha rotina em seis meses começou como todos os outros, como era de se esperar. Eu estava entre 6. chamar um táxi e 7. correr da chuva até chegar no táxi quando tudo mudou.
Graças ao asfalto molhado e as botas de salto alto, tive uma imensa dificuldade em chegar ao outro lado da rua, onde o táxi me aguardava. Tendo isso, em um escorregão mais forte e violento, um de meus saltos altos quebrou e me fez cair no meio da rua. A única coisa que me deixou mais desesperada do que a ideia de não conseguir levantar foi o som das buzinas do táxi que vinha em minha direção.
Aquele definitivamente não era o táxi no qual eu queria entrar.
As luzes estavam a ponto de me cegar quando senti algo me puxar pelas costas, jogando-me para fora da zona de perigo.
“Você tem algum problema?” a voz soou familiar, mas não a ponto de ser reconhecida. Enquanto tentei regular minha visão, fiz uma busca rápida por minha memória para descobrir o dono de tal voz, sem nenhum resultado.
Apenas quando meus olhos embaçados voltaram a enxergar, reconheci o velho Phillip em meio à confusão.
“Phillip, o que você…” comecei, mas enquanto o homem ajudava-me a levantar, senti a necessidade de fazer a pergunta “Ainda vai dizer que não vive salvando vidas?”
“Ainda vai dizer que tem condições de morar sozinha em uma cidade assim?”
“Isso é um detalhe.” limpei as mangas de meu casaco e segui para a calçada outra vez. “O que está fazendo aqui?”
Phillip olhou em volta ansioso, parecendo tão desconfortável quanto no dia em que me beijou. “Você se lembra do que me disse naquele dia antes de vir para cá? As suas palavras foram “eu não acho que possa viver sem esse jardim”. Se você não pode viver sem o seu jardim, Alice, eu não posso viver sem você. Então eu vim até aqui com minha cara de otário e minha mania de salvar as pessoas para dizer isso para você. Terminar minha frase, a que você nunca deixou que eu terminasse. E, é claro, te convidar para sair.”
“Phillip… e-eu estou chocada. Sabe de uma coisa? Eu deveria estar trabalhando.” não consegui pensar em nenhuma outra frase. Aquele maldito garoto sabia como me deixar sem jeito, e sem palavras também.
“É sério? Eu vim até Dover cinco anos depois para encontrar você e dizer isso, e você quer ir trabalhar?”
“Desculpa, eu… fiquei sem palavras. Talvez eu possa faltar o trabalho hoje, mas é só uma hipótese.” respondi “Vem cá, eu tenho que trocar esse sapato, sobe comigo.”
Depois de três lotes de escadas, fiz com que Phillip se sentasse no sofá em frente à televisão, enquanto segui até o quarto e encontrei outro par de saltos.
“Então, o que tem feito?” ouvi sua voz ao longe, enquanto procurava o par ideal dentro do armário.
“Bem, eu agora trabalho em um jornal. Tenho uma coluna semanal.” contei-lhe, voltando para a sala de estar. “Você? Continua no jazz?”
“É, eu dou um jeito. Sabia que as pessoas subestimam muito o jazz hoje em dia?”
“Não, não sabia. Phillip, eu não acredito que veio até aqui. Quero dizer, nós nos falamos três vezes. E… faz tanto tempo. Eu sinceramente achei que não se lembrasse de mim.”
“Isso quer dizer o que, que você se lembrava de mim?” pediu Phillip, um olhar desafiador que quase me levou ao riso.
“Isso quer dizer que eu quero entender como tudo isso começou.”
Tudo bem. Tudo começou quando Deus enviou um anjo para falar com Maria.”
“Phillip!” naquele momento, não pude evitar a risada. Como ele conseguia falar tanta besteira em um momento assim? Para mostrar que estava realmente na intenção de ouvir a história, sentei ao seu lado no sofá.
“Oh, você devia ter sido mais específica no seu tudo. Tudo bem, lá vai. Sabe o dia em que eu resgatei o seu irmão e você me recebeu com cinco pedras na mão? Depois daquilo, eu decidi que ia tentar me aproximar de você. Pra ser sincero, eu tenho um pensamento formado sobre pessoas como você, que recebem todo contato externo na defensiva.”
“É? E qual é esse pensamento?”
“De que eles escondem muita coisa interessante. Eu estava determinado a descobrir o que você escondia. Só que você começou a falar comigo e eu notei que não poderia ter pensamento algum formado sobre você, Alice, porque você era diferente de todos. Você conseguia ser dura com as pessoas, mas ainda assim sem julgar elas. Protetora, mas não possessiva com seus irmãos. Apegada aos detalhes caseiros, que nem a casa da sua avó e o jardim. E, para não deixar passar, muito bonita. Em vários sentidos. E aí, quando eu beijei você na esperança de ter algo, você disse que estava indo embora. Eu segui, por mais que um pouco frustrado. Tive namoradas e todas foram decepcionantes, porque para elas a única coisa mais importante que elas mesmas era qual a roupa usariam no dia. Então, cinco anos depois, decidi procurar seu pai e ele me disse onde você mora.” contou, falando lentamente e com voz clara, como que estivesse recitando um poema.
“Isso é loucura…” murmurei, sentindo-me realmente tocada pelo discurso. Nunca ouvira algo assim e até aquele momento a experiência estava sendo ótima. “Sabia que eu também tenho um tipo de teoria, que está mais para meta? Não me apaixonar por alguém que não conheço. Acontece que as circunstâncias nas quais você apareceu na minha vida foram suficientemente desconfortáveis para que eu criasse uma opinião negativa sobre você. Sabe, o garoto que vai comprar a casa? Só que nos outros dias, você se mostrou até que interessante. Mudou minha opinião sobre você mesmo em um piscar de olhos. Acho que por esse motivo você se tornou a exceção da minha teoria.”
“Então eu não fui o único atingido pela maldita paixão a primeira vista?” Phillip pediu, imitando uma voz dramática e gesticulando exageradamente.
“É, podemos dizer isso. Algo poético para duas pessoas tão poéticas quanto.”
“Ah, agora eu não me sinto tão otário.”
“Você sempre vai ser otário, Phillip, só está mais arrumadinho.”
Como o esperado, Phillip puxou-me para perto dele e beijou-me intensamente. Suas mãos passearam por minhas costas, cintura e cabelos, enquanto as minhas aconchegavam-se em seus ombros. No momento em que nossos pulmões já não funcionavam direito, ansiando por ar, separamo-nos e encaramos um ao outro.
“Você quer sair comigo, Alice?” perguntou, encostando sua testa na minha. A questão obviamente soou boba, tendo em mente as declarações de pouco tempo antes. Mas, pelo o que me lembrava dele, Phillip gostaria de seguir todos os passos desse clichê que era nossa “relação”.
Eu quero ficar bem aqui. Mas se seu instinto conservador do jazz insistir, posso pedir alguma comida e fazer disso um super-encontro romântico.” sugeri, sorrindo.
“É muito mais a sua cara, então eu aceito.” depois disso, discutimos por um bom tempo sobre qual restaurante de comida chinesa contatar. Finalmente decididos, pedimos duas porções de yakisoba e três de banana caramelada do Shuang.
Enquanto esperávamos a chegada, conversamos sobre todo tipo de aleatoriedade, inclusive sobre o jardim. Phillip contou que seus tios não davam muita bola para aquele lugar, então apenas pediu para que um jardineiro tomasse conta dele.
Assim que o interfone tocou, anunciando a chegada do almoço, desci até a entrada do prédio. Não posso falar por alguém se não eu mesma, mas naquele momento tive certeza de que meus vizinhos podiam sentir o maravilhoso aroma dos temperos típicos.
“Super-encontro romântico. E então, você surge pela porta com dois embrulhos do Shuang. Acho que é a realização dos meus sonhos.” Phillip comentou, admirando a cena.
“O que você esperava, luz de vela e Bethoven ao fundo?”
“Eu prefiro Frank Sinatra, mas tudo bem.” assim, nosso almoço foi regado por cantorias de seu estilo favorito de música e uma televisão posta no mudo. “Esse yakisoba é o melhor do universo.” disse Phillip, enrolando um pouco de massa e colocando na boca sem cuidado.
“E você parece um ogro comendo.” não pude deixar de comentar, rindo e tomando um gole de refrigerante.
“Ei, que é isso? Essa caixinha que não está colaborando!” protestou o rapaz, limpando os lábios com as costa da mão, o olhar indicando que fizera aquilo de propósito.
“Que horror, Phillip!” gritei, rindo e o levando a fazer o mesmo. Aquela fora a menos engraçada coisa que poderia acontecer, mas eu provavelmente estava sem jeito demais para ter outra reação. Estava comendo yakisoba com refrigerante de cola na sala de meu apartamento, cantando Rehab na companhia de Phillip. Bizarramente inesperado.
“Eu esqueci um detalhe.” começou, olhando-me por cima do como de plástico “Não tenho onde dormir, e nem dinheiro para hotel.”
“Você já veio com o plano feito, não foi? Para eu ter que fazer uma boa ação e deixar você dormir aqui na casinha do gato.” respondi, fazendo-me de difícil, e apontei para o mini castelo no qual Callyope, a gata branca, aconchegava-se.
“Na verdade, vim com esperança de você já não estar com outro cara. A casa do gato é apenas uma consequência.”
“Claro que sim. Apenas por causa disso, você será promovido de castelo do gato para sofá!” anunciei, fingindo animação extrema. Phillip apenas balançou a cabeça com um ar convencido em resposta.
A tarde foi passando. Guardamos as bananas carameladas para mais tarde já que o yakisoba fora mais do que suficiente para nos deixar satisfeitos. Ficamos procurando por algo para assistir na televisão, deixando por fim em um canal de séries e acompanhamos alguns episódios de uma comédia. Com a chuva que aumentara lá fora, acabei pegando mais cobertas e almofadas para o sofá, e antes que percebesse, estávamos abraçados rindo das piadas sem graça. Depois da sobremesa, que aconteceu depois das três da tarde, acabei pegando no sono - o qual vinha evitando por causa dos textos que precisava terminar. Dormi ao seu lado, e também ao lado de bananas carameladas e almofadas de bichinho. Bizarramente inesperado pela segunda vez no dia. E ainda assim, perfeito.

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Acordei com uma sombra em minha frente. Meu primeiro instinto foi de empurrar o que quer que fosse para longe, mas graças à pouca luz que entrava pela janela, consegui reconhecer a silhueta de Phillip perto de meu rosto - e descobrir que fora acordada, na verdade, por um beijo seu.
Lentamente, Phillip afastou seus lábios dos meus e me fez sorrir.
“Injusto, eu devo estar horrível.” murmurei, cobrindo meu rosto com uma das almofadas - a de elefante. “Péssima imagem que você vai ter do nosso super-encontro romântico.”
Ele se afastou rindo, e então pegou um potinho com dois doces dos que sobraram do dia anterior. Sentou-se ao meu lado e estendeu a mão para que eu o acompanhasse comendo o café-da-manhã.
“Que horas são?” pedi, mordendo a ponta da unha sem força.
“Quase nove, você dormiu um monte. Estava cansada?”
“É, acho que sim. Eu não dormia há dois dias por causa de uma matéria que não conseguia terminar.” expliquei e o beijei de leve na bochecha.
“Bem, você não acha que visitar seu jardim te inspiraria? Você pode pedir uns dias de folga e vir comigo…” começou, mas dessa vez o alvo de meu beijo foi sua boca. Intenso e nem tão calmo, como das outras vezes. Naquela hora, porém, soube exatamente como me sentia sobre Phillip.

Depois.
Contos de fadas são conhecidos por seus finais felizes. Casamentos, filhos, castelos, anões ou sapatos de cristal. São clássicos imortais e que encantam a todos que os assistem ou leem, independente da idade ou época em que viveu.
Acredito veementemente que cada um vive seu próprio conto de fadas. Todos têm suas próprias bruxas, príncipes e principalmente finais felizes. O meu, fico alegre em lhe contar.
Mas, ao contrário da vida das princesas, meu final feliz não se deu na época do casamento. Ele aconteceu, sim, mas vivi muitas outras coisas boas que me levaram ao verdadeiro final.
Pouco depois de subir ao altar com Phillip, alguns anos após sua visita inesperada, descobri estar esperando nosso primeiro filho. Era uma novidade para a qual não nos julgávamos realmente preparados, então os tios de Phillip aceitaram nos ajudar durante os primeiros meses. Sendo assim, os dois moravam comigo, Phillip e o pequeno Thomas na antiga casa de minha avó.
Thomas foi criado com cuidado e rodeado por meus irmãos. Os mais velhos, como Hubert, chegavam a levar ali os próprios filhos para brincar no Jardim com o primo. No Jardim. Parece loucura, levando em conta que a casa já não pertencia à minha família, dizer que foi naquele lugar que criei meus filhos.
Sim, mais de um. Quando achávamos que tínhamos nos estabilizado e finalmente liberamos James e Sarah do trabalho de nossos “ajudantes”, nos deparamos com a segunda gravidez. Daquela vez, depois de um ano e meio da chegada de Thomas, demos olá para a pequena Genevive. Quando a peguei em meus braços e levei até o Jardim pela primeira vez, senti a mesma sensação de quando lá pisara aos sete ou oito anos de idade. Minha avó estava viva naquele lugar, recebendo seus netos assim como me recebeu. E, os vendo crescer tão felizes como eu naquela grama verde, envelheci ao lado de Phillip e o amei cada vez mais.
Agora, estou sentada em uma cadeira que há certo tempo não balança mais. Phillip está em meu lado, e minha mão trêmula escorrega para perto da sua. Peter, filho de nossa Genevive, está em seu colo, dormindo agitadamente. Nossa família está espalhada pelo Jardim. Enquanto Thomas mostra para um dos sobrinhos como plantar novas rosas, Genevive descansa perto da macieira. Sinto que esse é meu final feliz perfeito. Assim me sinto, afinal de contas. Feliz.
Percebo que a mão de Phillip se move sutilmente em encontro à minha. Mesmo depois de nos casarmos, termos nossos filhos e até netos, somos os mesmos. Podemos não usufruir da mesma energia e beleza de antes, mas sei que nosso amor não mudou. Estamos velhinhos, mas estamos juntos. Isso faz do meu o melhor final feliz.
Não entendo o motivo, mas as perguntas que me fiz há muito tempo agora voltam à minha mente.
Qual foi seu último pensamento, a última coisa na qual minha avó pensou? Nesse momento, gosto de pensar que foi o mesmo que o meu. Nosso Jardim Secreto.

FIM



Nota da autora: (11/04/2015)
Hola, cariños! Aiaiaiai, eu estou orgulhosa de ter finalizado essa fic. Eu tive essa ideia alguns dias antes do anúncio do challenge, e quando notei que se encaixava perfeitamente nas exigências, não pude deixar de escrever. Espero que tenham gostado de ler, que tenham aproveitado desse conto de fadas moderno tanto quanto eu.
Bom, eu tenho uma lista enorme de agradecimentos. Eu sei que pode ser chato ler isso, então vou colocar o mais importante primeiro: obrigada, você que leu. Como sempre digo, toda e qualquer pessoa que lê algo meu tem um espaço em meu coração, e com você não será diferente.
Tenho também que dizer um obrigada do tamanho do mundo para minha Luiza. Talvez ela não tenha notado na hora, mas o momento no qual ela me mostrou o jardim da avó dela, contou todas aquelas histórias da infância, e caminhou comigo pela grama foram extremamente inspiradores. Sem aquela visita, eu não teria pensado em muitos dos detalhes dessa história.
Obrigada, também, Bia e Clas. Vocês ficaram o tempo todo ouvindo meus momentos de fangirl com a descoberta desse challenge e merecem todo o amor do mundo por isso.
O que vem agora não é só um agradecimento, mas também uma dedicatória. Para minha avó, que nunca precisou de jardim algum para me consolar ou fazer que os momentos em sua casa fossem os melhores. Que nunca deixou de lado a bondade na voz ou no olhar, nunca saiu da minha mente ou do meu coração. Pra você, vó, que deve estar na melhor poltrona do céu, o maior obrigada que eu poderia dar para alguém.



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