Querido Diário (de Bordo)


Challenge #18

Nota: 8,5

Colocação:




Oi, er, meu nome é . Sei que é estranho estar fazendo isso (me sinto uma babaca, confesso), mas se eu não quiser enlouquecer vou realmente precisar dedicar meu tempo a um diário. Bom, tenho 25 anos e sou médica. Você deve estar pensando "nossa, que novinha" (não, você não está porque é um diário e diários não pensam), mas passei com 17 anos em medicina e cá estou, formada há quase três anos. Eu andei meio enrolada com a residência, mas estou acabando cirurgia geral e dou plantões desde que me formei. Além de mim você precisa conhecer o (que vai me zoar até a morte quando descobrir que estou fazendo um diário, a propósito, posso te chamar de livro de anotações? Fica menos infantil, se é que me entende), ele é meu melhor amigo. Nos formamos juntos, graças ao intercâmbio que atrasou em um ano sua formação, e fomos pra residência juntos também. Ele é o mais amor do mundo, seu cabelo é curto e despontado, os olhos são e ele beija bem demais. é meio porra louca, vive tudo intensamente, emenda plantões, quando resolve beber não se contenta enquanto não vê o fundo da garrafa, sai do hospital direto para a balada e quer mudar o mundo. Eu sou o seu oposto. Faço tudo com calma, planejo bem, bebo pouco, respeito intervalo entre plantões, mas confesso que amo uma boa festa e também quero mudar o mundo. Foi por causa dessa ideia de mudar o mundo que vim parar aqui, escrevendo em um livro como se ele fosse meu melhor amigo da vida.
Deixa eu dar um contexto geral para que você me entenda melhor: o mundo está ao contrário. Estamos quase nos encaminhando para uma quase terceira guerra mundial e o louco do meu melhor amigo resolveu nos (sim, eu disse nos) inscrever para um programa de voluntariado médico. Esse programa nos encaminha para diferentes lugares, a gente fica um período em cada um desses lugares e ajuda como pode, compartilha saberes com profissionais da saúde de várias outras partes e tenta fazer com que a Terra seja um lugar mais habitável para todos.
- , são só alguns meses - ele falou tentando me fazer um carinho, eu ainda estava atônita olhando para o notebook a minha frente - Fala comigo, anjo.
- , tudo o que eu mais quero no momento é arrebentar a sua cara em um milhão de pedaços. Como é que você me inscreve num negócio desses e não me avisa?
- , eu não achei que você ia se importar tanto. Vai ser legal.
Quando eu estava me preparando para gritar a enfermeira me chamou, um paciente acabara de ser admitido no andar. Olhei para o a minha frente com a cara mais feia que pude e sai. Não falei com ele o resto do plantão, mesmo quando eu estava entediada no estar médico. Ele não merecia minha compaixão, merecia? Peguei o computador e abri meu e-mail, fiquei alguns momentos lendo o e-mail que explicava como o programa para qual fui aceita funcionaria.
Era algo parecido com o "médicos sem fronteiras", só que o tempo em cada uma das cidades escolhidas era menor, além de que os inscritos viajariam por quatro continentes. Em cada etapa da viagem a equipe seria alterada, para que houvesse uma maior troca de aprendizados (o que parece ser bem inteligente na minha humilde opinião) e em toda troca de país a equipe seria montada através de um sorteio, devendo conter: 2 médicos, 5 enfermeiros, 1 fisioterapeuta, 1 assistente social, 1 dentista e 2 psicólogos. Era pré-requisito que todos soubessem, além da língua-mãe, inglês e mais um idioma (o meu é o espanhol: hola, que tal?), estivessem formados há no mínimo um ano, tivessem disponibilidade de tempo, podendo ficar fora do país de origem por até dois anos e indo para lugares diferentes dos listados caso fosse necessário. Outra coisa legal é que seriamos enviados para alguma cidade do nosso próprio país antes de sairmos mundo a fora. No fundo confesso que a ideia maluca do poderia ser bem interessante.
Fui para a casa - sem coragem de olhar o roteiro - e me joguei embaixo do chuveiro, tentando disseminar a tensão do dia. Fiquei bons minutos sob a água quente, sentindo todos os meus músculos relaxarem, sai do banho, me enfiei em um roupão felpudo (presente do ) e não consegui chegar até a cozinha. A cama me atraiu muito mais. Acordei com o saindo do banheiro, enrolado na toalha da cintura para baixo, com o tórax, abdômen e cabelos úmidos e o cabelo molhado, deixando pingar algumas gotas. Eu nunca vou me conformar com o quanto esse homem consegue ser bonito, oh Lord. Agora você deve estar se perguntando porque o está na minha casa, dentro do meu quarto, tendo recém usado meu banheiro. Eu te explico: a gente mora quase juntos, ele tem o próprio apartamento (que quase sempre está fechado, diga-se se passagem) e só usa para fins, hm, sexuais. Então ele fica no meu apartamento o tempo todo, fazemos compras juntos, dividimos as despesas e tudo mais. Só que não namoramos, a gente fica quando tem vontade (beijar não é a única coisa que ele sabe fazer bem, querido diário, mas estou vermelha de escrever isso, então sem mais detalhes, obrigada!) e podemos ficar com outras pessoas sem ressentimentos (ele faz isso com mais frequência que eu, confesso). Ele é meu quase namorado, se é que isso existe. "Mas, , porque vocês não namoram?", namorar é muito complexo, diário, dá trabalho e dor de cabeça. Acho que gosto do exatamente por ser fácil, por ser leve e (quase) sem obrigações. Na verdade temos obrigações, são elas: ele deve lavar a louça toda vez que eu cozinhar; toddy não entra nessa casa; algumas vezes eu esqueço as calcinhas penduradas no banheiro, mas ele não pode reclamar disso; a toalha molhada jamais deve ficar em cima da cama; quando a Clarissa não vem cada um lava e passa as suas roupas; as únicas mulheres que podem entrar nessa casa são as que eu convido (ele tem o próprio apartamento para isso); eventos sociais que possam envolver família perguntando dos "namorados" ele deve me acompanhar e perguntas da família dele sobre o casamento são sempre dispensadas com "algum dia (risada irônica)".
- ? - ele me chamou já vestido - ainda está brava comigo?
- Um pouco menos - murmurei fechando os olhos com o braço - Já viu para quais lugares vai?
- Ainda nem abri o meu e-mail - senti seu nariz no meu pescoço - Desculpa mesmo, não sabia que você ficaria tão brava - mão no meu cabelo - devia ter perguntado antes de nos inscrever - beijo no meu pescoço - Você me perdoa, anjo?
- Adoro quando você tenta me seduzir para se desculpar, - passei a mão de leve no seu cabelo - Agora já pode sair de cima de mim e fazer a janta, que é muito mais eficaz no meu processo de te perdoar.
- Grossa - ele respondeu e saiu rindo da cama e indo em direção a cozinha - Eu deveria te deixar sem comida, ok - ele berrou de lá.
- Faça isso e eu te jogo pela janela - gritei em resposta.
Ele fez macarrão para o jantar e lavou a louça, mesmo não sendo responsável por ela, então foi impossível não desculpá-lo. Fomos abrir o e-mail novamente, para descobrir quais seriam nossas próximas casas e se estaríamos juntos em algum momento da viagem.
- Amazônia, Cidade do Cabo, Helsínquia e Pequim.
- Foz do Iguaçu, Paris, Cairo e Pequim. Uou, nos encontraremos em Pequim, paçoca.
- Já disse como adoro quando você me chama assim? - ele me olhou feio - Saímos daqui duas semanas, anjo.
- É o melhor apelido fofo que achei para você, então não enche.
xxxx
Essas duas semanas foram as mais corridas da minha vida, diário. Por isso fiquei tão ausente, bom, agora estou em um avião rumo a Foz do Iguaçu. A equipe toda já chegou, só falta euzinha, que estou mais de uma hora atrasada graças ao voo que também atrasou. Me mandaram uma mensagem, recebida antes da ordem de desligar os celulares, avisando que a pessoa que iria me buscar precisou voltar para o hotel (e viva a minha demora) então eu deveria pegar um táxi. Dos males o menor. Cheguei em Foz e preciso voar para o hotel. Tem um jantar para que os membros da equipe (por isso a pessoa que estava me esperando me largou no hotel) hoje à noite, então preciso me arrumar. Depois volto e escrevo como foi.
O jantar foi sensacional, na minha equipe todos são brasileiros (lembra o lance de ir para algum lugar do próprio país primeiro?) e só temos dois homens, um fisioterapeuta e um enfermeiro (e que enfermeiro gato, queria uns assim no hospital que trabalho). Todos foram muito queridos e estão completamente empolgados com o projeto. Mais que eu, confesso. Não sou muito boa com descrições, de forma que você terá que se contentar em saber que eu fui com um vestido azul para o jantar, ele era aberto nas costas e contrastava com meu cabelo, que estava preso em uma trança frouxa porque não tive tempo de lavar. Cheguei mega atrasada e recebi diversos pares de olhos na minha direção, todos pareciam curiosos, me apresentei e recebi algumas respostas afirmativas.
- Er, oi. Desculpem o atraso, sou .
Sentei entre dois enfermeiros, o bonito e uma loira extremamente agradável chamada Anahí. Infelizmente não consegui ficar até o final do jantar, a responsabilidade parece um elefante de 5 mil toneladas e me força a fazer tudo do jeito certo. Me despedi com um aceno geral e voltei para o quarto. estava quase sem sinal, mas conseguiu me mandar algumas fotos e várias mensagens empolgadas sobre seu lugar.
Acordei cedo e me arrumei para trabalhar: jeans, camiseta, jaleco (no braço, porque sair de jaleco na rua é uó), tênis e cabelo preso. O mais confortável possível e me surpreendi ao saber que não iriamos para o hospital e sim para um bairro carente inicialmente. Nós dividimos e tivemos um dia puxado de trabalho, conhecendo áreas precárias, mapeando locais com suspeita de proliferação do mosquito aedes aegypt e tentando sermos úteis. Não precisei de muito tempo para entender porque Foz foi escolhida como cidade do projeto, ela se situava em um lugar de fronteira, então haviam imigrantes, doenças não comuns no Brasil e hábitos diferentes dos nossos. Era nisso que trabalharíamos por um mês.
- Sou Cam.
- Prazer, Cam - respondi olhando para o rapaz de olhos e cabelos pretos - Sou . Nos conhecemos ontem, não?
- Sim - ele sorriu - Mas não falei meu nome e como vamos trabalhar juntos achei importante que soubesse - ele deu outro sorriso e só ai eu percebi que havia parado de respirar, seu sorriso era simplesmente incrível e combinava com seu rosto.
Cam era sem dúvidas o enfermeiro mais lindo do mundo. Atendia as pessoas com calma, dedicação e sempre sorridente. Me peguei olhando para ele durante o dia mais do que deveria. Fizemos alguns procedimentos juntos e não fiquei surpresa ao descobrir que ele era uma pessoa incrivelmente divertida. Eu fiquei com a dentista, uma das psicólogas, a assistente social e dois enfermeiros na minha equipe do dia, ao longo do mês revezaríamos os profissionais "únicos". Any também fazia parte da minha turma e mais tarde descobri que ela e o moreno fizeram faculdade juntos.
Cheguei em casa exausta as 20h, me enfiei na banheira (olha que hotel sensacional que reservaram para a gente) e atendi o telefonema do .
- , tudo bem?
- Estou tremendamente cansada e você?
- Eu também. Foi um dia fora do comum, conheci alguns lugares menos civilizados aqui e estamos pensando em estudar alguns medicamentos naturais típicos.
- Isso seria incrível, a medicina natural é fantástica.
- Nem me fala, anjo. Cada vez mais me encanto com o projeto. E o seu dia?
- Fizemos reconhecimento de áreas carentes, estamos pensando em propostas que possam melhorar a condição de vida dessas pessoas, como exemplo uma unidade de saúde móvel que atenda próxima à fronteira. Você sabia que muitas das doenças iguaçuensses vem do Paraguai ou da Argentina? Queremos tentar controlar isso.
- Anjo, isso é muito massa - ele falou realmente empolgado - e quais são os planos para hoje?
- Estou dentro de uma banheira quente. Meus planos terminam aí.
- Seria melhor se eu estivesse nessa banheira com você, . Você sabe que adoro banheiras.
Confesso que fiquei vermelha ao ouvir isso e me subiu um calor só de pensar. ainda me mataria.
- Você é um cretino, - murmurei, ainda tentando me esquivar das lembranças - E seus planos?
- Estou indo para uma espécie de luau, que acho que é mais um ritual.
- E o trabalho amanhã? Você vai se atrasar, .
- Calma, mãe - ele zombou - amanhã só iremos atuar a tarde. Hoje a noite é uma criança.
- Juízo e se cuide.
- Eu amo você, ruiva.
Sai do banho e coloquei um roupão, foi tempo suficiente para a campainha do meu quarto tocar. Abri a porta e encontrei um par de olhos pretos do outro lado.
- Eu sou seu vizinho de quarto e estava sem sono, espero que não se importe com a visita.
- Entra, Cam.
Dei espaço para que ele passasse e seu cheiro veio junto, quase me levando com ele igual nos desenhos animados. O moreno estava todo envergonhado, sentado na ponta da minha cama, fechei a porta e me joguei ao seu lado, ocupando quase que todo o espaço. Cam parecia ter a idade próxima da minha, chutaria uns 23 anos. Seus cabelos eram um pouco maiores que os do , ficando na altura da sobrancelha e sua barba era cheia, fazendo o contorno de seu rosto de forma impecável. Ele vestia uma bermuda de tactel e uma camiseta preta. Conversamos sobre nossas expectativas quanto ao projeto, época da faculdade (foi assim que descobri que ele e Any estudaram juntos) e o que esperávamos do nosso futuro profissional. Cam tinha sonhos lindos, eu me encantava toda vez que ele fala sobre o quanto queria trabalhar na UTI neonatal e sobre o quanto estava estudando para isso. Ele realmente era um pouco mais novo que eu, estava com 22 anos e em breve comemoraria o vigésimo terceiro aniversário. Ficamos jogando conversa fora até a madrugada e o sono chegarem (inclusive sou uma pessoa tão fofa que acabei dormindo e deixei ele falando sozinho). Acordei morta de vergonha na manhã seguinte e não fosse só isso eu estava atrasada. Me arrumei o mais rápido que pude, peguei um suco do frigobar e fui para a van (que estava incrivelmente cheia, apenas me esperando). Mandei um bom dia geral e me joguei no último acento vago. Meu cabelo estava três vezes maior que o normal, dificultando meu penteado - elaboradíssimo - rabo de cavalo; perdi a paciência e o embolei em um coque. Minha cabeça provavelmente iria doer pela falta do café da manhã, meu humor não estava dos melhores e minha equipe foi trocada por uma mais falante e feliz. Meu dia tinha tudo para ser péssimo e, de fato, foi.
Cheguei no apartamento quebrada, tudo o que eu mais queria era o me abraçando para dormir, minha cama e meu chocolate quente (no caso gelado, porque essa cidade é um terror de quente). Eu já estava confortável na cama quando a campainha tocou, não me surpreendi ao ver o Cam do outro lado e sua presença foi a coisa mais reconfortante do meu dia, depois, é claro, do meu pijama azul de bolinhas brancas. Ele me deu um abraço e entrou, estava carregando um monte de coisas nas mãos.
- Senti sua falta hoje.
- Eu estava bem chata hoje - sorri e já estava novamente enfiada no meu lugar na cama - não seria alguém para sentir falta. Ah e desculpas por ontem, acabei dormindo sem querer. Muito mal educada eu.
- , relaxa - ele estava mexendo nos badulaques dele, quando terminou se aconchegou do meu lado na cama - Já tomou?
- O que é isso?
- Tereré. Uma bebida comum aqui do Paraná e do Paraguai também.
Ele me deu o copo de alumínio com um negócio igual aqueles de tomar chimarrão (bomba, descobri depois) enfiado em um monte de erva e com água gelada. Tomei um gole, a boca amargou, tomei o segundo gole e gostei. Tinha um leve gosto de menta na erva e era bem refrescante.
- Aqui em Foz muita gente toma isso com suco de limão, eu prefiro com água gelada.
Ele colocou a água de uma térmica estilizada no copinho e tomou. Agora fazia todo o sentido as pessoas caminhando na rua com umas garrafas diferentes, elas estavam carregando a água do seu tereré. Ficamos conversando até tarde novamente, dessa vez descobri que ele era do Paraná mesmo e foi fazer faculdade em São Paulo, terminou de se graduar e voltou. Estava fazendo mestrado e se interessou pelo projeto logo de cara, se inscreveu sem pestanejar. A Anahí foi parar em Foz do Iguaçu da mesma forma que eu, por acaso. me ligou mais tarde dessa vez, Cam ainda estava lá.
- Boa noite, anjo. Como você está?
- Estou bem e você?
- Tive um dia muito massa. Conhecemos uma tribo hoje, fizemos um trabalho de puericultura com eles. Você acredita que tinha muita criança abaixo do peso?
- Sério?
- Sim. Ficamos impressionados, estamos cogitando a criação de um suplemento ou algo assim que a gente possa ensiná-los a fazer com coisas naturais. Uma das enfermeiras da equipe está vendo isso em conjunto com a assistente social. Ela é um amor.
- Aposto que é ainda mais amor dormindo no seu quarto - reclamei brincando, conhecia o amigo que tinha.
- , quem ouve você falando assim pensa que eu sou um imprestável - ele riu gostoso do outro lado - Mas estou jogando meu charme.
- Cala a boca, - eu ri e ele me acompanhou - Meu dia foi ruim, passou por mim e eu nem vi.
- Oh, anjo, está tudo bem?
- Acho que só agora caiu a ficha - suspirei - Mal se passaram alguns dias e eu já estou com saudades. Imagina até o final do programa.
- Anjo, também já estou com saudades. Mas nos veremos em breve, Pequim nos aguarda. Amo você.
- Eu também.
Cam estava quieto do meu lado, entretido com seu tereré, achei que ele estava meio confuso com o telefonema e envergonhado de perguntar se eu e namorávamos.
- Ei - chamei - tudo bem?
- Estava aqui pensando que se eu fosse seu namorado não ia gostar de saber que tem outro na sua cama.
- não é meu namorado - sorri - e provavelmente tem outra na cama dele. Ah, e os dois devem estar sem roupas.
- Opa, estamos em desvantagem. Acho que temos que mudar isso.
- Cala a boca, Cam - eu ri e lhe dei um tapa.
Acabou que ele dormiu no meu quarto. Essa e várias outras vezes. Tanto é que quando precisamos reduzir o número de quartos ele passou a dividir quarto comigo sem nenhum de nós reclamarmos. não estava muito satisfeito com isso, por que na cabeça dele o Cam estava se tornando meu novo amigo colorido e roubando seu lugar. Outra que não parecia satisfeita era Anahí, ela era muito querida comigo o tempo todo, mas eu percebia que seu real foco era o moreno.
Já estávamos nisso a quase um mês, muitos dos planos idealizados foram abandonados na metade, outros tantos estavam dando certo. Cam estava na "nossa cama" enquanto eu me arrumava, um dos projetos tinha sido concluído com êxito, então iríamos comemorar. Eu estava terminando a maquiagem, que era marrom e preta, arrematada por um batom vermelho. Cam usava uma camisa azul marinho, jeans e tênis; já eu estava com um vestidinho preto e saltos enormes. O moreno me deu a mão para sairmos do quarto sem que eu tropeçasse, na recepção do hotel estavam todos os outros nos esperando. Fomos divididos em alguns táxis e, infelizmente, Any ficou no meu. O fisio, que se chama Rob, foi na frente e Anahí ficou com meio do banco de trás. Ela foi falando e pegando no moreno até o Paraguai, onde festaríamos. A aduana paraguaia fica um pouco antes da chamada ponte da amizade, o controle nessa região da fronteira varia com o humor do policial, não fomos parados e nem nada do tipo. Chegamos a uma boate maravilhosa, com nome na lista e em pouco tempo estávamos no camarote bebendo e dançando. Any dançava para Cam, enquanto todos os outros (inclusive eu) estávamos mais preocupados em beber. Em algum momento eu virei meu olhar e vi a loira dançando juntinho com o moreno, querido diário, confesso que morri de ciúmes e virei uma dose de tequila para esquecer. Uma (quase) péssima ideia.
- Achei que você e o Cam estavam tipo, juntos - Rob falou parando do meu lado.
- Não - eu sorri meio bêbada - a gente só divide o quarto. Ele é um bom amigo, até me ensinou a fazer tereré.
- É? - Rob sorriu - Você parece estar um pouco enciumada de ver a Any com ele.
- Rob - falei e fiz um sinal para o garçom pedindo mais duas tequilas - eu tenho ciúmes até da minha sombra.
- Arriba, abajo, el cientro.
- A dentro - completei quando as tequilas chegaram. Essa sim foi uma péssima ideia.
Rob e eu começamos a dançar. O álcool já estava fazendo efeito sob mim e pelo visto sobre ele também.
- Sugar, yes please - gritamos feito dois adolescentes a letra e continuamos nos remexendo ao som de Maroon5, bem adulto. Eu sei. Mas eu tenho um diário, então quem se importa?
- Eu acho que estou bêbada, Rob - falei caindo no sofá - tipo, muito bêbada.
- Por que acha isso? - ele perguntou ainda com um copo de bebida na mão, eita rapaz forte. Exibi meu melhor sorriso de bêbada e comecei a tagarelar.
- Porque quando eu fico bêbada quero falar em espanhol, mas acaba saindo inglês - reclamei - e eu estou querendo muito falar em espanhol com todas essas pessoas - apontei para pessoas aleatórias - e quando eu fico bêbada quero beijar as pessoas. Eu quero beijar as pessoas agora.
- Quando eu fico bêbado tenho vontade de xingar as pessoas em alemão - ele sorriu - e eu também quero xingar as pessoas agora. Também gosto de beber mais quando eu estou bêbado e falar que estou sóbrio.
- Você está bêbado - gritei - eu estou bêbada. Nós estamos bêbados - falei abrindo os braços e me jogando em cima dele - Não fique muito perto - reclamei - eu realmente posso te agarrar.
Rob fez um biquinho fofo e alguém disse que estava na hora de irmos embora. Fazia tempo que eu não olhava mais para o resto do grupo, não sabia onde nenhum estava e tive uma surpresa grande ao ser chamada para ir embora e encontrar na saída um Cam e uma Anahí emburrados. Quando o táxi chegou o Rob e eu nos enfiamos no banco de trás, Cam veio junto e Any foi na frente com um bico enorme. Não me pergunte o que aconteceu, minha visão de bêbada pode ter visto coisas não reais. Rob estava falando em uma língua que eu não conhecia e ficava todo fofo, parecendo irritado. Antes que me pergunte Rob era quase ruivo, um tom de cabelo mais enferrujado que o meu, tinha os olhos azuis, a barba grande e mais para o escuro que o cabelo e devia ter uns dois metros de altura.
"Eu esypou zinhammdop eçes em alemsaooo" Ele me passou o celular com essa mensagem e eu entendi, não me pergunte como (de novo). Resolvi digitar a resposta, como bela pessoa adepta das tecnologias que sou, ainda mais quando bebo. Peguei meu celular e escrevi em resposta "pwroo uo no see hasblaer fermman hernasn grnam geman", ele pareceu entender e riu, me respondendo em espanhol. Descobri hoje cedo que eu mandei essa singela mensagem para o , que me respondeu assim "Hahahahahahajahagag, tw bwbsdo". Como sei que você não é um diário muito poliglota traduzo: Rob me disse que estava xingando eles em alemão, eu respondi que não sabia falar alemão (pero yo no sé hablar german) e apenas riu e disse que estava bêbado, somos um trio sensacional, não? Eu já não estava tão bêbada quando cheguei (pelo menos era o que eu achava), conseguindo distinguir a cara emburrada do Cam a quilômetros de distância.
- Que foi? - falei mole, tentando parecer sóbria.
- Nada.
- Você está bravo - reclamei e comecei a tirar a roupa para dormir, detalhe que eu nunca me trocava na frente dele. Lembro dele me perguntando o que eu estava fazendo e indo em direção ao banheiro, batendo a porta. Ele esperou o tempo que julgou necessário para eu me trocar, porém quando saiu eu estava na porta do banheiro de roupa íntima esperando ele.
- , por favor - ele falou fechando os olhos.
Olhei confusa e entrei no banheiro, tomei um banho e assim baixei alguns graus da bebedeira. Sai de lá vestida, ele perguntou se eu estava mais sóbria e eu concordei, dessa vez eu realmente estava mais consciente. Deitei do seu lado e me cobri, passando a mão de leve pelo seu braço.
- Fiquei com ciúmes de você e do Rob hoje - ele reclamou baixo, achando que talvez eu não fosse escutar.
- Eu também fiquei com ciúmes da Any. Vocês ficaram?
- Não - ele suspirou - Quase. Ela tentou me beijar, mas eu vi você dançando com o Rob e fiquei bravo.
- Você queria?
- Eu achei que queria, até ver você dançando com outra pessoa.
- Eu queria beijar o Rob, porque eu estava bêbada e você não estava perto, na verdade eu queria te beijar.
- Queria? - ele perguntou me olhando de canto.
- Na verdade ainda quero.
Querido diário, beber não é mesmo uma boa ideia. Porque falei isso e logo em seguida beijei o rapaz, eu não estava mesmo em sã consciência. O desgraçado beijava bem e tinha uma mão tão treinada, que não achei nada mau beijá-lo a noite toda. Super normal beijar seu colega de trabalho, bêbada e de pijama. Quem nunca, não é mesmo? Acordei na manhã seguinte lembrando das coisas que tinha feito e falado, ah a tequila <3
Rob me chamou para ir à Argentina, no Duty Free, mesmo com dor de cabeça e ressaqueada eu fui. Compramos zilhões de coisas, o ruivo também era um amigo incrível. Passamos pela aduana argentina (aqui sim é burocrático, importante lembrar de levar um documento de identificação com foto para lá, ok? Dependendo da entrada que o motorista vai você é parado e obrigado a apresentar tais documentos. Por sorte eu sempre ando com minha CNH no bolso) e voltamos para o hotel.
- Rob, você fala alemão? - ele riu, eu estava lembrando de flashes da nossa conversa.
- Falo. Acho que ontem estava xingando as pessoas no táxi em alemão, mas poderia ser pior.
- Poderia?
- Claro, eu podia começar a xingar todo mundo em francês. Pensa que lindo eu fazendo biquinho para falar "foda-se"
- Você fala francês? - perguntei admirada. Como se o fato dele falar alemão não fosse nada demais.
- Alemão, francês e inglês. Sou muito poliglota, garota.
Rimos e eu xinguei ele em inglês, como se isso fosse a coisa mais legal do mundo. O motorista de táxi com certeza nos amou. Deixamos as coisas nos respectivos apartamentos e fomos turistar, era nossa última semana em Foz. Fomos ao templo budista da cidade, ficava em um bairro mais afastado, próximo ao Paraguai. Sua frente era linda, tinha um buda enorme deitado (que aproveitamos para tirar fotos) e também sua fachada era branca com pilastras vermelhas. Parecia ser formado de três andares, sendo que o último era mais estreito que os outros e abaixo dele ficava um telhado com as pontas curvadas. Me senti muito em paz ali, por mais clichê que isso seja. Tinha arbustos por perto e uma fileira de estátuas de budas na cor amarela. Fiquei realmente maravilhada. Tirei inúmeras fotos com minha polaroide e algumas com o celular, mandei todas para o . Fiz uma pequena prece a Buda, sem saber direito como falar e fomos embora. Pegamos um ônibus de volta e eu nunca me arrependi tanto na vida, para chegarmos no centro da cidade levamos mais de uma hora. Fomos chacoalhando de um lado para o outro em pé, uma maravilha. Admiro quem usa ônibus todos os dias, viu? Acho que todos os protestos que fizeram no Brasil para melhorar as condições do transporte público foram muito válidos e deveriam protestar mais, porque é uma vergonha se locomover numa cidade em um transporte coletivo nesse estado.
Nosso projeto final, o mais importante, consistia em uma prevenção a dengue, zica e chicungunia. Organizamos mutirões para retirarmos a água parada, nebulizações, palestra nos três países (Brasil, Argentina e Paraguai) e usamos das ervas e metodologias paraguaias para desenvolvermos um repelente natural a base de citronela. Era nosso último dia em Foz e de lá iriamos para o mundo. Meu voo era antes ao dos outros membros do grupo, então estávamos no meu quarto fazendo uma festa de confraternização final.
- Vou preparar um tereré - sorri - Nada de álcool para quem vai viajar.
Peguei o copo, a erva e a bomba, fiz do jeito que Cam tinha me ensinado e começamos a passar o tereré de um para o outro. Essa é a tradição, tereré não se toma sozinho (ou se toma, mas não é legal), você tem que compartilhar em uma roda de amigos. Tipo maconha, sabe? O legal é sempre socializar. Quando era 20h a van me levou para o aeroporto, meu voo era as 22h (cidades de fronteira exigem que você chegue duas horas antes, para passar pela alfândega dentro do próprio aeroporto). Entrei na parte de check-in, coloquei minha mala e a mochila na esteira e esperei que elas passassem pelo raio-x. Como você é um diário e essa é a sua primeira vez pegando um voo em cidade de fronteira te explico: há um limite de valor de coisas que possam ser compradas no Paraguai e levadas na mala, por causa da ausência de impostos. Você não pode, por exemplo, levar um milhão de estojos de maquiagem, porque eles entendem isso como contrabando. Há também o perigo do tráfico de drogas, então para embarcar você passa pelo raio-x com controle da polícia federal, se eles acham que tem alguma coisa estranha em qualquer parte da sua bagagem pedem para que você abra. Nos aeroportos "normais" o despache de malas é feito sem a conferência do conteúdo delas, apenas as bagagens de mão passam pelo raio-x, evitando que você viaje com uma arma ou com um desodorante aerossol. O policial não quis abrir minhas malas quando essas passaram, então as peguei na esteira e segui para embarque. Despachei as malas e coloquei minha mochila nas costas, indo para a segunda esteira do dia: malas de mão passam novamente pelo raio-x e você não pode passar com nada metálico: cintos, fivelas, relógios, chaves e celulares vão para uma travessa branca e esteira de novo.
xxxx
No exato momento estou sentada na sala de embarque esperando meu vôo. Faço conexão no Rio de Janeiro e de lá parto para Charles de Gaulle na França, o tempo total de vôo é de quase vinte e duas horas, já estou morrendo só de imaginar. Comprei um café em uma dessas lojas da sala de embarque que quase te cobram os rins, a vida não é mesmo fácil. Aproveitei a cola que estava na minha bolsa e estou colocando todas as fotos que tirei com minha polaroide na suas páginas, para que sejam boas lembranças desse meu primeiro ponto da viagem. Temos fotos lindas nas Cataratas, no templo budista, na mesquita. Ah, Foz tem tantos lugares lindos para se conhecer que estou me prometendo arrastar o para cá nas próximas férias. Falando em , ele está me ligando.
- Ruiva, onde você está?
- No aeroporto, paçoca. E você?
- Já estou na Cidade do Cabo, com calor por sinal.
- Estou indo para a França. Lá está no inverno.
- Era teu sonho ir para Paris, não era?
- Sim - sorri - É a parte do meu roteiro que mais me chamou atenção até agora. Lá parece ser mágico.
- Arrasa, anjo. Te amo e me liga chegando lá, ok?
- Eu também.
Desliguei e olhei para o painel com o horário dos voos, o meu estava atrasado de novo. Cam apareceu assim que eu tinha desligado e ficou feliz ao me ver (por isso voltei a escrever no passado, pequeno amigo. Não consegui te pegar novamente antes de vir parar no Rio de Janeiro). Conversamos um pouco, eu sentiria muita falta dele. Quando o meu vôo foi chamado ele ainda tinha mais uma hora esperando o seu (outro avião atrasado), ele me olhou por alguns instantes e logo em seguida me beijou. Foi um beijo calmo, cheio de sentimentos e com uma saudade já precipitada. Tudo o que eu consigo pensar sobre isso se traduz em uma música do nenhum de nós "esse foi um beijo de despedida, que se dá uma vez só na vida. Explica tudo, sem brigas e clareia o mais escuro dos dias".
- Passageiros com destino a Galeão, Rio de Janeiro, favor comparecer ao portão de embarque C. Essa é a última chamada.
Dei um tchau com as mãos e corri para o portão de embarque. Cam me deu um sorriso e voltou para seu lugar. Sentei na poltrona que me foi destinada, coloquei os fones e fiquei olhando pela janela deslumbrada. A vista era realmente incrível, mesmo a noite. Bom, cheguei no Rio e cá estou. Sentada com cara de tédio vendo pessoas e mais pessoas circulando por aqui, a vida não parece parar nesse lugar. A bateria do meu celular está acabando, preciso urgente de uma tomada, mas pelo visto todas estão ocupadas. Onde raios enfiei meu carregador portátil?
Meu querido, apaguei no aeroporto e acordei sendo chacoalhada por uma menina que eu tinha conversado um pouco (contei que eu estava indo para a França). Ela era uma fofa, pelo sotaque vinha da Escócia e foi bem querida comigo. Cheguei no hotel, com meu francês impecável, e o resto da equipe ainda não tinha chegado. O que não foi um problema, problema mesmo foi eu entrar naquele quarto e descobrir que os meus carregadores não entravam na tomada deles. Oh, céus, porque não mandaram uma lista do que levar no roteiro de viagem? Onde raios eu encontraria um adaptador aquele horário? (Graças aos atrasos e diferença de fuso horário lá era quase uma da manhã) Não pensei duas vezes e sai batendo de porta em porta do corredor, alguns não me entendiam, outros não abriam e quando cheguei no último apartamento um gordinho fofo me atendeu. Por sorte ele entendia inglês e soube o que eu estava precisando.
- Um adaptador - falou feliz - claro que tenho um, querida. Espere um segundo.
Fiquei na porta esperando até que ele conseguiu achar o tal adaptador, que mais parecia uma invenção diabólica prestes a explodir o andar todo. E se ele fosse um terrorista?
- Esse é o adaptador que uso no meu restaurante. Vou precisar dele amanhã cedo, ma petit.
- Tudo bem - sorri para ele - Eu trago amanhã cedo.
- Não, não, não - ele falou rápido, parecia muito mais italiano que francês, confesso - Leva no meu restaurante e toma um café da manhã com a gente.
Eu concordei e voltei para o meu quarto. No dia seguinte providenciaria uma engenhoca daquelas, então tomar café no restaurante dele não parecia má ideia, exceto pelo fato de que eu não fazia a menor ideia que qual era o restaurante e o nome dele.
Abri minha mala para pegar um pijama e adivinhem minha surpresa quando acho lá dentro um embrulho com uma carta do Rob. Meus olhos encheram de lágrimas, ele era mesmo um amor de pessoa, não pensei nada para comprar para ele.
"Querida , você foi uma pessoa que amei conhecer. Sempre brincalhona, querida e ouvindo a todos nós (você virou psicóloga até dos nossos psicólogos). Espero que você alcance voos incríveis nos outros lugares que vai passar! Gostei da sua companhia, Rob.
P.s.: Vou deixar no verso alguns xingamentos em alemão para você usar, ok? Ah, o rio Sena e o Arco do triunfo valem a pena serem conhecidos."
Algumas lágrimas chegaram a cair (inclusive me perdoe pelas páginas molhadas, tá?), apertei o embrulho perto do peito imaginando o que poderia ser. Estava dentro de uma caixinha, fiquei ainda mais curiosa e quase cai para trás quando abri.
Era uma peça de ouro, mas não só isso, era uma peça de ouro que vibrava. E quando fui procurar o preço na internet girava em torno de dois mil reais (a versão simples, que foi a que ganhei, a versão luxo beirava 54 mil). Tive um ataque de risos e mal consegui falar com ao telefone, Rob era fora da casinha.
- Cheguei, . Como você está?
- Com sono e por aí?
- Estou em choque - falei ainda olhando para o objeto - Você não sabe o que ganhei de presente.
- Então me conte - ele sorriu - Odeio ficar curioso.
- Paçoca, eu ganhei um vibrador de presente - falei e percebi que seu tom de voz mudou para me responder, zombando da minha cara.
- Tudo isso é necessidade, ruiva? - Ele ria, odiava esse homem - Até os outros estão percebendo?
- , eu ganhei um vibrador de ouro de quase dois mil reais.
- Que? - ele gritou do outro lado - Quem dá um presente desses? Meu Deus... A pessoa deveria estar transtornada. Dois mil reais.
Eu só sabia rir, enquanto o parecia indignado do outro lado. Desliguei ainda rindo e me permiti dormir. O dia seria longo. O brinquedo erótico ficou na cabeceira da minha cama, dentro da sua caixinha, quem sabe houvesse alguma oportunidade de ser usado.
Acordei cedo e fui para a primeira missão do dia: Encontrar o dono do restaurante que me emprestou a engenhoca. Rodei por três ruas até encontrá-lo, seu restaurante tinha acabado de abrir e o cheiro de café parecia sensacional.
- Bom dia - falei - Lembra de mim?
- Bom dia, menina - o gordinho sorriu - claro que me lembro. Você foi no meu apartamento ontem.
- Sim, aqui está seu adaptador - devolvi o treco e estava pronta para sentar quando ele me convidou para conhecer seu estabelecimento - Venha conhecer meu lugar.
Fui atrás dele, o restaurante era muito meigo. Tinha mesas de madeira envernizada com toalhas azuis, o balcão de pedidos era de azulejo e logo atrás vinha a cozinha, também de azulejo e parecendo uma cozinha de casa. O restaurante era todo em branco com detalhes azuis e vermelhos, sua parede frontal era de vidro, permitindo ver a rua.
- Gostou?
- Sim, muito confortável aqui - sorri - qual seu nome?
- Pode me chamar de Luc e aquele - apontou para alguém que estava empenhado no café - é Pierre e a moça do caixa Amélie.
- Prazer, Luc. Sou .
Luc me deu dois beijinhos no rosto e gritou ordens em francês para Pierre, que prontamente atendeu e minutos depois estava em minha mesa com uma xícara de café e docinhos que nunca saberei o nome. Passei boa parte da manhã no restaurante, conversando sobre amenidades em inglês e quando dei por mim lembrei que precisava comprar o adaptador. O hotel ficava longe de tudo, precisei me aventurar no metrô para conseguir achar uma loja de eletrodomésticos (não sei como classificar um adaptador, desculpa aí, diário). Comprei um tiquet que pelo pouco que entendi se denominava mobilis e podia ser usado durante o dia todo, o que foi bem útil porque me perdi uma centena de vezes antes de conseguir achar o caminho de volta para o hotel. O restante da equipe já tinha chegado, então eu precisava me arrumar para o jantar de apresentação. O escolhido da noite foi um vestido preto de mangas compridas e decote redondo, o hotel contava com sistema de aquecimento, mas ainda assim eu precisava estar agasalhada.
Cheguei no local da recepção e Luc acenou todo contente na minha direção, mostrando que estava ali. Concordei com a cabeça e vi o restante da equipe chegar, cada um de uma parte diferente da Terra e dessa vez a maioria era homem. Todos pareciam muito sérios e isso foi o suficiente para me deixar com ainda mais saudades da minha equipe anterior. Não me prolonguei no jantar, mas fiz amizade com uma colombiana querida. foi bem rápido na conversa, o fuso horário nos atrapalhava muito.
Os dias com a equipe foram torturantes, eu rezava pelo dia da minha folga para poder encontrar Luc. Ramira (a colombiana) sempre ia comigo até seu restaurante, ela era a única amiga que eu tinha feito dessa vez. Todos os outros eram sérios e frios, assim como os franceses em sua maioria.
Combinamos de ir tomar um café as margens do rio Sena, como Rob tinha recomendado. Compramos o tiquet "paris visite", que dava acesso aos pontos turísticos da cidade. O metrô tinha o interior vintage, nas cores caramelo e bege, e muito requintado. Pierre, Luc, Ramira e eu fomos nos sentindo membros da elite, todo abarrotados de roupas (já disse como eu amo o inverno? Casacos compridos, botas gigantes, cachecol, touca, luvas. Isso tudo é incrível demais) e felizes. Tirei muitas fotos e mandei para o . A cara dos franceses era impagável, sério. Sempre focados, comprometidos e com cara de bravos. Sentamos em um café a beira do Sena e eu tive recordações da minha infância, eu era a fã número um de Madeline (Você deveria ter vivido nessa época, querido diário).
Te atualizando: Madeline era um desenho francês de uma garotinha órfã que vivia em um orfanato com mais 11 meninas, sob os cuidados da senhorita Clavel (uma freira muito amor). Passei minha infância toda assistindo isso, estar as margens do Sena me recordava isso, mas me deixava triste por não ser exatamente como eu sonhava. Resolvemos ir ao museu do Louvre. Lord, aquele lugar é incrível! Tem pirâmides, espelhos d'água e uma vista incrível. Dentro você tem algumas opções, como acompanhar musicais, ver exposições, ser levado por guias para ver as peças fantásticas que tem por lá. Não dá para conhecer tudo em um único dia, por mais tentador que isso seja. Aquele lugar é imenso.
Fiz questão de visitar o quadro da Monalisa (hello, quem vai ao Museé de Louvre e não visita a adorável Monalisa?) e confesso que esperava mais. É uma obra linda, mas não tão espetacular (se você fosse um ser humano qualquer estaria me julgando nesse exato momento, diarinho), a sala ao lado tinha outros quadros muito mais legais, por exemplo a obra de Eugène Delacroix "A liberdade guiando o povo". Sempre fui apaixonada por essa obra, desde a época do colégio. "Liberté, Égalité, Fraternité" sempre foi um bordão (vindo da revolução francesa) que defendi. História era uma das minhas matérias preferidas, não sei como fui parar em medicina até hoje. Amo minha profissão, mas eu tinha tudo para ser socióloga, acredite. Continuamos andando e Luc falava animado com a guia, nunca vi alguém tão feliz quanto ele. Em algum piso encontramos a escultura da Vênus de Milo, deusa do amor, da beleza e do sexo (correspondente na mitologia a Afrodite). Tirei inúmeras fotos, era uma estátua de se admirar por horas. E as coisas do Napoleão III? Me senti membro de um filme antigo, feliz e procurando um vestido esvoaçante.
Quase precisei ser arrastada do museu (o arco do triunfo do carrossel fica em frente ao museu) e fiquei atônita quando sai e me deparei com o chão branco. Estava nevando. Pulei nos braços de Pierre, eu estava vendo a neve. Neve de verdade! Lord, como eu esperei para conhecer a neve. Pode me julgar, diário, todas as vezes que sai do Brasil fui para lugares quentes e infelizmente sai poucas vezes. Eu parecia uma criança, pulando por conhecer a neve, os meus três acompanhantes não entendiam quase nada.
- - gritei empolgada ao telefone - eu fiz um anjo de neve.
- Um anjo de neve? - dava para perceber seu sorriso na voz.
- Sim, amor, aqui está nevando. Quero muito fazer um boneco de neve também. E fazer guerra de neve e quero você aqui fazendo isso comigo.
- Anjo, bem que eu queria estar ai. Aqui está quente demais, como era de se esperar, mas está ótimo também.
- Sim?
- Sim. Ainda estamos priorizando projetos com ervas que valorizem a cultura local, buscando quais as funções dos medicamentos naturais, aprendendo sobre rituais. Temos tido boas devolutivas.
- Isso é ótimo - comemorei - Você deve estar amando. Sempre quis se envolver com esse tipo de coisas.
- , você não faz ideia do quanto estou apaixonado por isso. Estou realizado, sabe? - até sua voz era capaz de transmitir o quanto ele estava satisfeito consigo mesmo - E por aí, anjo? Amando a França sim ou claro?
- Paçoca, eu juro que esperava mais. Não que aqui não seja lindo e tudo mais, mas peguei uma equipe muito séria. Não há nada que possamos fazer aqui, como você sabe a saúde aqui é impecável, então estamos tentando aprender os mecanismos de gestão deles, acompanhar consultas. Me sinto na faculdade novamente, hahah - ele riu do outro lado - Eu definitivamente me frustrei.
- Aprender mecanismos de gestão é importante, isso nos ensinará a administrar melhor e criar um melhor plano de saúde.
- Eu sei, bebê, eu sei. Mas é chato - respirei fundo - Ah, e a Monalisa é sem graça. Sou muito mais o Abaporu da Tarsila.
- Você conheceu a Monalisa? - ele perguntou em choque, só aí se dando conta que ela ficava no Louvre - VOCÊ ACHOU A MONALISA SEM GRAÇA? - Ele gritou.
- Sim. Me julgue - reclamei - Sou muito mais eu, tá? Ela é sem graça, os quadros de Delacroix são bem melhores e não são tão populares assim.
- Te amo, anjo - ouvi seu sorriso do outro lado - e estou com saudades.
- Eu muito mais.
Na semana que seguiu (nossa última lá), Paris sofreu um ataque terrorista, então ficamos em estado de alerta, de forma que a equipe só poderia sair quando convocada. Lembra o que eu disse sobre estarmos quase na terceira guerra mundial, diário? Era disso que eu estava falando. Ramira, Luc, Pierre e eu achamos que beber seria uma boa ideia para aliviar a tensão. Mas devo te lembrar que beber nunca é uma boa ideia para mim, sempre fui de beber pouco, então qualquer gota a mais de álcool é capaz de me deixar bem louca, que foi o que aconteceu. Não me lembro de nada do que aconteceu (não me orgulho disso, hahah), então tudo o que for escrito a seguir são relatos de Luc, que foi o mais sensato e bebeu menos que todos nós, prevendo que daria merda.
"Menina, vocês estavam bebendo tequila como se fosse água. Até aí estava tudo bem, ninguém parecia muito alterado (Queria contar para ele que uma dose de tequila já me altera, mas tá). Do nada vocês resolveram que dançar seria uma boa ideia, colocaram todo o tipo de música e mais tequila. 'Vamos brindar a vida' você dizia. Pierre estava dançando como uma diva as músicas pop, Ramira já estava suficientemente alterada e você, toda linda resolveu que queria mandar nudes para as pessoas. Berrou no quarto 'eu vou mandar nudes, vou pedir nudes. Vou mandar muitas fotos pelada' e foi uma briga para tirar o celular da sua mão (porque essa, é claro, era uma ideia muito sensata: me deixar bêbada com um celular na mão. Pense eu mandando nude no whatsapp da equipe que lindo seria. Abençoado seja Luc). Não contente com isso você decidiu que ia mandar mensagem para seu ex (agora lhe pergunto: que ex?), que ele precisava saber que você estava numa melhor, que ele tinha que saber o que perdeu. Que você ia falar que deu a volta por cima e que estava melhor sem ele, foi um trabalho duro arrancar o celular de fato da sua mão. (Adendo: eu nunca namorei, o mais próximo disso é . Quero muito saber para quem eu ia enviar essa mensagem de ex que superou tudo, morrerei sem saber. Ou da próxima vez que eu ficar bêbada autorizo que me deixem mandar a mensagem, só por curiosidade, hahahha). Depois disso vocês voltaram a dança, você tentou beijar meu homem (cara feia do Luc) e eu só percebi porque ele começou a gritar escandalizado 'sai daqui sua horrorosa, não vou beijar você. Me larga, sou uma diva do pop' (o que a bebida não faz, minha gente?), fui ajudar Pierre e dizer que ele era só MEU (olhar mortal para mim, que eu realmente entendo!), quando volto vejo que a Ramira te agarrou e você estavam bem loucas dançando e se beijando em cima da cama. Terminamos a noite com você jogada na cama com o Pierre, pedindo desculpas pelo quase beijo, e a Ram vomitando no meu banheiro enquanto eu segurava o cabelo dela". Querido diário: I kissed a girl e não lembro disso, a Ramira muito menos. Meu primeiro beijo em uma mulher e eu não consigo nem me lembrar, oh, vida.
No sábado teríamos nosso jantar final, ele seria feito por Luc (recomendação minha), que me chamou para ajudar. Saímos do hotel dividindo meu guarda-chuva azul de bolinhas, porque a chuva do lado de fora não parava. Luc e eu seguimos cantando até chegar no seu restaurante, nos munimos de avental e touca de cozinha, prontos para começar a fazer a janta. Luc resolveu me ensinar um prato típico da França: escargot. Colocamos os caramujos para ferver, pois, segundo ele, isso eliminava as toxinas. Ele falou algo sobre abate de escargot que eu não entendi, mas a parte do molho entendi bem e foi ao que me dediquei. Segundo o chefe ficou fantástico e nossos convidados iriam amar (o que eu duvidava muito, minha equipe é um porre mesmo). Tiramos inúmeras fotos, inclusive colocamos chapéus de cozinheiro para dar glamour (palavras de Pierre) e ficamos até o escurecer no restaurante.
Luc e Pierre são pessoas sensacionais, opostos como e eu. Pierre é caseiro, gosta de ver filmes e não pensa em abandonar a França por nada. Luc quer viajar o mundo e ir morar na América, abrir seu restaurante no Rio de Janeiro e viver do samba. Os dois namoram há quatro anos e as brigas são sempre essas.
- Pierre treme com a simples ideia de nos mudarmos daqui. Já sugeri Califórnia, Itália, África, Brasil. Ele sempre faz careta e me deixa falando sozinho.
- Eu gosto daqui, - Pierre se intrometeu - Passei minha infância aqui, meus melhores e piores momentos. Deixar esse bairro é muito, imagina ir morar do outro lado do oceano.
- Esse é meu sonho, menina. Morar do outro lado do oceano, viver a vida sob as ondas. Quero muito ir para o Rio, então fica a dica para me convidar- ele me cutucou, Pierre estava de cara amarrada do seu lado. Eu entendia Luc, também tinha esse desejo constante de fazer coisas novas, não é à toa que eu estava ali, perdida na cidade das luzes (é esse o apelido de Paris?). Mas eu era puro Pierre, não teria me enfiado nessa sozinha e custei muito para me abrir a ideia.
- Nós vamos sambar com o Salgueiro, Luc. Espere só.
- Menina, eu morreria. Sério. Esse é meu sonho, ver a maravilhosa cultura brasileira de perto. Tomar uma caipirinha, como vocês falam, junto de uma feijoada. Eu preciso conhecer aquele país maravilhoso - Luc tinha os olhos brilhantes ao falar do meu Brasilzinho, era até emocionante de ver.
Saímos do restaurante de volta para o hotel, uma equipe foi contratada para levar o jantar e Amélie ficaria coordenando tudo. Fui para o quarto me arrumar, investi em um longo verde escuro de mangas compridas e decote arredondado nas costas. Ele descia justo até a cintura e depois se abria, trazendo movimento a peça. Meu cabelo estava todo jogado para o lado em um rabo frouxo (obrigada, Pierre) e meus olhos estavam delineados de preto, contrastando com a boca vinho. Eu estava maravilhosa (hoje não estou modesta, ok?), mandei fotos ao , que retribuiu com uma sua de terno (chega logo, Pequim, para a gente brincar um pouco com o presente que ganhei, hahahaha. Ok, desculpe, diário. Parei, tá?). Eu ia apresentar o relatório final do projeto, confesso que estava tremendo um pouco. Falar em público sempre me deixa nervosa. Fui aplaudida quando terminei, o que me fez ficar vermelha.
- Assim sou obrigada a te pegar novamente - Ramira falou rindo e recebeu uma careta de reprovação de um dos nossos parceiros. Mostrei a língua para ele (nas costas dele, é claro) e depois me sentei ao lado de Ram.
O jantar foi agradável, vez ou outra eu ia para onde os meninos estavam e eles me tocavam para a mesa gritando que meu cabelo ia cair no jantar deles. Quando já estava no meu quarto, dentro do meu confortável roupão, bateram à porta. Era Luc, carregando uma garrafa de vinho.
- Nossa despedida essa noite será com vinho - ele riu - Mas não tente me pegar, menina, que meu homem estará de braços abertos para mim amanhã cedo.
- Você é adorável, Luc - sorri e deixei ele passar.
Conversamos a noite toda, bebendo a garrafa de vinho em doses homeopáticas. Meu vôo era cedo, então arrumei minhas coisas com ele lá mesmo e resolvi que não dormiria. O francês estava emocionado com a minha partida, apesar do povo frio de lá ele era amável e eu também tinha me apegado a ele. Estava sendo difícil deixar cada um dos lugares pelos quais estava passando. Quando precisei de fato me despedir ele me deu um chaveiro, com a inicial do meu nome entre as iniciais do nome dele e de Pierre. Era feito na madeira, as letras eram vazadas e se emendavam. Era esculpido ali.
- Toda vez que você olhar para esse chaveiro quero que se lembre que foi muito amada aqui e que desse lado do mundo há um francês louco para te visitar no Brasil.
- Será muito bem vindo, Luc - eu estava emocionada - Obrigada por todo o tempo aqui, por ter sido tão querido, por ter me ajudado com tudo, sido uma ótima companhia e me ensinado a fazer escargot. Você é encantador. E o chaveiro é lindo.
- Fui eu que fiz, ma petit. Você merecia algo que lembrasse a gente, o quanto foi importante na nossa vidinha pacata.
Eu o abracei, senti que ele tremeu e chorou um pouco. Quando abri a porta Pierre estava do outro lado, com os olhos cheios de lágrimas me esperando para dizer adeus. Meu pobre coração está fraco para tantas emoções, diário.
- - ele falou sorrindo triste - Para te ver eu vou até ao Brasil, menina. Já estou com saudades, mande postais e cartas. Volte logo nos visitar com o tal - ele sorriu - E leia isso quando estiver no avião - ele me entregou uma carta - Você vai fazer falta.
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Demos um abraço triplo e eu sai, deixando um pedaço enorme de mim na França. Era como se meu coração agora também pertencesse a aquele país. Fui deixada no aeroporto e dessa vez o vôo não atrasou. Eu ia para a África e saia dela. Abri a carta do francês magro e alto, chorei como criança lendo e vou deixá-la aqui, para que eu nunca perca.
"Oi, , agora você já deve estar indo em direção ao seu novo destino, Egito não é? eu ainda estou impressionado com esse projeto e com como você é uma pessoa maravilhosa. Eu ouvia você contar as coisas que tem feito e me sentia tentado a fazer tudo isso também (Luc adoraria a ideia), conhecer o mundo, ajudar as pessoas e trabalhar no que amo. Um dia crio coragem e saio por aí, vou te visitar no Brasil e quero conhecer os melhores restaurantes de lá, ok?
: você é incrível. Continue sendo essa pessoa alto astral, dedicada, que se encanta por coisas pequenas (como ver a neve) e transmite confiança só com o olhar. Você é minha médica favorita e eu não ligaria de colocar minha vida nas suas mãos, nem a do cabeçudo do Luc. Treine muito como fazer escargot, porque o seu estava ótimo, mas isso é prática então ele pode melhorar. Não sou muito bom com as palavras, mas saiba que amei te conhecer. Volte sempre, ma cherry! Com carinho, Pierre."
A recepção no Cairo foi calorosa, três enviados foram me buscar e acabamos encontrando outro membro do projeto no aeroporto (eu encontrei, no caso, porque os que foram me buscar também tinham planejado buscá-lo), que foi reconhecido pela camiseta azul com escrito branco que todos recebíamos. Entramos na van e nossos guias estavam empolgados, pelo que percebi um deles tinha alguma relação com o estado, o outro era médico local e a terceira era uma guia turística muito requisitada. Eles falavam sobre o projeto e como estavam felizes com nossa chegada. Confesso que eu estava morta de sono, com o fuso horário bagunçado e nada empolgada.
Fomos deixados no hotel e o jantar de recepção seria apenas no dia seguinte, o que me alegrou internamente. Fui para o meu quarto, tomei um santo banho (ou um banho santo, decida diário, e apaguei). Agora estou aqui, olhando para as opções de roupa que tenho para o jantar dessa noite. Aqui está quente e eu não consigo decidir o que usar. Tenho três opções: uma saia longa azul com uma blusinha branca, um vestido curto estampado ou um vestido longo preto. Eu não sei o que usar!! A campainha está tocando, aguarde um segundo.
Bom, era o Jensen, o rapaz que parece ter alguma relação com o estado, ele veio me desejar boas vindas e acabou me ajudando com a roupa. Estou indo com o vestido estampado, ele tem um decote redondo, manguinhas na metade do ombro, cintura ajustada e saia rodada acima do joelho. O fundo é amarelo e as estampas mesclam entre marrom e vermelho. Prendi meu cabelo em um rabo baixo de lado, coloquei as sapatilhas e desci para a recepção do hotel. A equipe dessa vez era bem dividida, metade homens e metade mulheres. O outro médico era um homem também, muito simpático por sinal e com belos olhos verdes. Essa equipe era muito mais amigável que a anterior, o que fez com que eu me sentisse em casa novamente, fiz amizade com a maioria deles logo no primeiro instante e logo estávamos em uma grande mesa esperando o discurso inicial, que nos daria boas vindas oficiais a África.
Jensen subiu ao palco e se apresentou, disse que fazia parte do governo do Egito e que fora designado para nos acompanhar no projeto, para que pudesse nos auxiliar e aprender o que tivéssemos a ensinar, de forma a unir conhecimentos que seriam repassados aos representantes de outros países afim de melhorar a condição de vida da população africana como um todo. Foi um dos idealizadores do projeto, baseando-se em pesquisas e ideias vindas de outros lugares do mundo. Sua posição no governo do Egito lhe conferia responsabilidades com as altas taxas de mortalidade não só de seu país, mas sim do continente, visto que o Egito tinha uma posição socioeconômica favorável em comparação a Moçambique ou Luanda, por exemplo.
Começamos com o trabalho no dia seguinte, a equipe foi dividida e mandada para dois diferentes lugares. Era provável que em algum momento precisássemos acampar nos lugares de trabalho por serem longe da capital. No primeiro dia a minha equipe ficou responsável pelo atendimento de saúde local, conhecendo os hábitos e formas de atendimento de outros médicos da região. Não foi um dia dos mais calmos, porém também não foi muito atribulado.
- Estou com saudades - falou assim que atendi ao telefone.
- Eu também - suspirei - como está aí?
- Frio, . Muito frio - ele reclamou - E por aí?
- O oposto. Mas estou gostando, o dia foi corrido. Nada muito diferente por hora, mas a gente vai percebendo as peculiaridades dos atendimentos em saúde de cada lugar. Isso é o mais incrível.
- Nem me fala. Aqui é muito diferente de tudo o que eu tinha visto na África, muito mais certinho e eu arrisco dizer que preferi muito mais trabalhar aí.
- Trabalhar aqui é ter o que fazer, né? Na França eu fiquei bem entediada com o que tinha para fazer, confesso.
- E agora eu te entendo - ele riu - E os amores de viagem?
- Sem amores - sorri, mas é claro que ele não pode ver - E os seus?
- Amar eu amo muito, prestar é que eu presto pouco.
- Você é um ridículo - reclamei - Não está jogando seu charme para cima de todo mundo, está?
- Que visão horrorosa que você tem de mim, credo! Não, não estou. Só tenho conhecido pessoas novas, ok?
- Finjo que acredito, Sr. olhos .
- Meu coração é só seu, . Estou esperando o dia que você vai me pedir em namoro, hahahahah.
- Cala a boca, hahahah. Boa noite, . (Sim, aqui é noite, lá eu não faço a menor ideia. sempre dormiu pouco mesmo).
- Boa noite, anjo.
Lembra o que eu disse sobre acampar? Bom, estamos na segunda semana de trabalho e vamos ter de acampar no lugar. Agora são quatro da manhã e eu estou no fundo da van escrevendo loucamente enquanto os outros dormem. Estou com um pouco de medo, diário, nunca acampei na vida e isso seria algo que eu faria com e não com um grupo de pessoas que acabei de conhecer (isso é o que faria, na verdade). O carinha do Estado está vindo junto, já comentei que ele é uma gracinha? Sempre com um sorriso enorme no rosto e todo atencioso, mas, apesar disso ele é bem sério (se é que essa dualidade é possível) e dedicado ao trabalho. Vamos passar a semana junto com uma tribo, fazendo um projeto bem parecido com o de , aprendendo os costumes locais e medicinas naturais que eles usam para combater algumas doenças. Estou empolgada com isso. estaria orgulhoso de mim, aposto.
Chegamos a tribo (que fica bem longe da capital, diga-se de passagem) e as condições eram bem diferentes das vistas até então. Ali poucos falavam inglês, o que me deixava bem perdida. A equipe toda era obrigada a falar inglês, Jensen também e era ele que traduzia o que as pessoas da tribo falavam. A religião predominante por ali era o islamismo, eu estava começando a me familiarizar com isso. A maioria das pessoas por ali falavam árabe, o que me deixou surpresa, eu não fazia a menor ideia disso (sim, sempre fui péssima em geografia, me perdoe).
Nós dividimos e cada um de nós ficou com um dos "líderes" da tribo, os mais importantes no caso. Eu fiquei com Jensen e um rapaz chamado Amouhhu, carinhosamente chamado de Amou. Ele era o mais conhecedor de medicamentos naturais e fez questão de nos apresentar cada uma das plantas que usava, explicando para que servia. Jen traduzia tudo para mim, com toda a paciência do mundo. Amo usava roupas estranhas, não conseguiria descrevê-las nem se quisesse, eram largas, brancas para refletir a luz e possuía alguns amarrios. Só faltava o camelo para ficar um árabe típico, desses que sempre vem a cabeça quando pensamos em árabes.
- Está escurecendo - Jensen falou - é melhor retornarmos.
Concordei com a cabeça e Amou falou alguma coisa, segundo o meu fiel tradutor ele concordou e disse que teríamos que ser rápidos.
Nos juntamos ao resto da equipe, cada um estava pegando sua mochila de viagem (além da pessoal a cedida pelo projeto), fui para a fila e peguei a mochila com meu nome estampado em letras garrafais, além da minha mochila vermelha de sempre. Jensen estava logo atrás, ele tinha quase dois metros de altura (bem próximo de mim, que ostentava meus 1,70 por aí, HAHAH), ombros largos (UI!), pele negra, cabelo quase raspado preto e olhos pretos. Seu corpo parecia ser todo definido, caindo muito bem nas roupas que ele escolhia e seu perfume era algo fora do comum. Jensen, casa comigo? Sabe quem ele me lembra? (Não, você não sabe) O marido da Bailey de grey's anatomy Ben Warren (o ator Jason Winston George), adoro aquele cara, apesar de ele me tirar do sério algumas vezes, confesso. Diário, você deveria assistir essa série.
Abri a mochila de letras garrafais e lá havia uma barraca, um saco de dormir e uma lanterna. Precavidos. Ainda pensando em greys me senti como o Owen Hunt, quando ele servia o exército na série ao lado da Altman maravilhosa. No meio do nada, acampando e servindo ao meu Estado (tudo bem que no Estado alheio, mas tudo serve de experiência, né?). Tive uma pequena guerra com a barraca, precisei que uma das meninas da equipe me ajudasse, tinha pauzinho e lona para todo lado, nada parecia fazer sentido. Uma guria muito solícita me ajudou, seu nome era Carl, muito querida. Vinha da Holanda. Ficamos conversando um bom tempo e logo mais pessoas se reuniram ao nosso redor, fizemos uma roda musical e fogueira. Bem filme americano.
Passamos mais de metade da noite nisso, até que eu resolvi ir para a minha barraca. Me enfiei no saco de dormir (coisa mais estranha da vida), tentei mandar uma mensagem para o , porém ela não chegou. Dormi com o celular no peito e acordei com Jensen me chamando pela manhã, eu estava atrasada. Levantei correndo, peguei um pouco da água do galão e joguei no rosto (Para o banho montaram uma espécie de banheiro químico, só que tínhamos direito a pouca água por pessoa e ela não caia do chuveiro, mesmo porque não tinha chuveiro, vinha em um galão pequeno). Coloquei a camiseta que estava na mochila dada, uma bermuda mole, tênis e um chapéu que também achei no fundo da mochila. Eu estava igual ao Indiana Jones. Continuamos o dia com meu amigo Amou, que era a coisa mais fofa do mundo, apesar de eu não entender uma vírgula do que ele falava. Passamos a nos entender pelo olhar e Jen apenas sorria para nós dois.
A semana passou mais rápido que o esperado, estávamos reunidos para celebrar nosso último dia na tribo (Dear diary, sinto muito por escrever tão pouco às vezes, a rotina acaba sendo corrida demais, então sou sucinta para que você não fique por fora, afinal essa era a intenção inicial, não?), participaríamos de um ritual local.
Esse ritual tinha toda uma dança especial, bebidas típicas e música local. Amou resolveu que eu teria que tocar um instrumento, no caso um chocalho que fazia barulho do lado de fora, porque as bolinhas eram penduradas desse lado. Ele ficou boa parte da noite tentando me ensinar o ritmo: direita, esquerda, esquerda, cima, baixo, centro, roda o corpo. Ríamos toda vez que eu errava, mas na hora da dança consegui acertar (com pequenos desvios de ritmos, confesso) e Amou me abraçou alegre no final do rito. Pelo que entendi era um ritual de agradecimento pelas oportunidades e ensinamentos que compartilhamos nessa semana. Tirei uma foto com todo o pessoal e uma especial com Amou, que mesmo conversando por mímica comigo se tornou um amigo e tanto.
Voltamos para a van e dessa vez Jensen estava ao meu lado, falando alguma coisa que eu não conseguia absorver porque estava com sono. Acordei com a cabeça deitada no seu ombro (e com vergonha disso, diga-se de passagem), ele dormia ao meu lado, sai delicadamente do seu lado e peguei você (hello, diário) para anotar um pouco, minha surpresa foi grande quando caiu um bilhete de Amouhhu de algum lugar ai.
"Vou sentir sua falta, obrigado pela companhia e pelos ensinamentos. Amouhhu"
O recado tinha a versão em inglês e a árabe (fiquei emocionada, confesso), colei junto com nossa foto e me peguei pensando nas coisas que aprendi com ele (porque ensinar foi a coisa que menos fiz, confesso), não só com ele, com todas as pessoas que encontrei no meio dessas viagens. Com ele aprendi como fazer chá para dor de cabeça, dor de barriga (muitas mortes ocorrem por diarreia, esse chá é um método natural de evitar mortes), a sorrir mesmo quando cai o mundo ou o sol está insuportável e finalmente como tocar chocalho em um ritual importante para eles, um ritual de gratidão. Eu sei que Amou nunca verá esse diário, mas quero deixar aqui meu singelo recado de agradecimento: Gratidão, Amouhhu, por tudo o que conseguiu me transmitir, nos reencontraremos um dia!
Dormi e acordei novamente quando estávamos perto do hotel, toda grogue de sono. Jan já estava em pé explicando alguma coisa, que eu peguei pela metade. Pisquei várias vezes tentando entender, ele sorriu e me deu a mão para que eu conseguisse levantar e me encaminhar para o hotel. Saímos de braços dados da van e eu criei coragem para perguntar o que estava acontecendo.
- Querida, só disse que amanhã teremos um dia de descanso. Vamos conhecer alguns pontos turísticos da cidade, vocês merecem isso.
- Ah - suspirei- Estamos chegando perto do fim aqui?
Confesso que fiquei o que mais me afetou nessas viagens foi o tempo. Não há nenhuma regularidade de tempo conforme os lugares que passamos, além de que eu sempre estou em outro fuso e perdida com os dias da semana e com os dias que passamos em cada cidade.
- Quase isso. O trabalho de vocês foi muito bom aqui, vocês e a outra equipe fizeram um trabalho sensacional em pouco tempo. Teremos uns dias para que apresentem tudo isso e logo em seguida vocês podem seguir viagem.
Concordei com a cabeça e me despedi dele na porta do quarto. Assim que entrei no meu refúgio pisei em alguns envelopes enfiados debaixo da porta, cada um de uma parte do mundo. Deixei a banheira enchendo enquanto eu rasgava um por um dos envelopes.
O primeiro era um cartão postal de Cam, ele estava na Grécia, a foto era de Parthenon (um templo localizado em Atenas). Sua mensagem no final era curta, mas fofa: "Achei que você gostaria de conhecer esse lugar. Lembrei muito de você aqui. Sinto saudades, Cam."
O segundo tinha dois postais da Europa, um da torre Eiffel e o outro do Arco do Triunfo: Luc e Pierre. As mensagens também eram carinhosas: "Volte logo, Pierre, a torre Eiffel e eu estamos esperando, má cherry". E "Sinto muito sua falta, você alegrou muito nossos dias aqui. (Luc não para de falar de você). Venha logo nós visitar de novo <3 Pierre".
O terceiro era de Ramira, estava no Brasil (Rio de Janeiro, meu lindo): "O Brasil é maravilhoso. Olha o Cristo ao fundo!!!!!! Tem caipirinha. Ram".
O quarto e último era de Rob, Tóquio: "Tem usado o presente? Não sei o que é isso na foto, mas é bonito (não conheci esse lugar). Saudades! Rob".
Meus colegas de viagem não são uns fofos? Me lembrem de agradecer quando chegarmos a China, ok?
No dia seguinte Jen me acordou cedo, para irmos fazer o passeio (acho que ele tinha medo que eu me atrasasse). Me muni de tênis, chapéu novamente, celular, protetor e fui, feliz e faceira. Durante todo o caminho Jensen me ignorou (de propósito!!!!!), Carl sentou do meu lado e se empolgou falando a viagem toda. Quando chegamos ficamos igual crianças, deslumbrados. Fomos para Gizé, lugar das grandes pirâmides e a esfinge. A holandesa grudou em mim durante todo o tempo, alguns dos rapazes da equipe vinham falar conosco e o cara do governo ficou de cara feia para mim. Odeio sentir que as pessoas estão bravas comigo, principalmente quando não vejo nenhum motivo aparente (ELE PASSOU NO MEU QUARTO ME CHAMAR, TOMAMOS CAFÉ DA MANHÃ JUNTOS. QUAL O PROBLEMA DELE???)
Tentei ignorar aquele que me ignorava, isso deu bem certo até quase o entardecer, quando ele resolveu voltar a falar comigo após o lanche da tarde. estava me ligando, sai de perto do pessoal e fui em direção a Grande esfinge de Gizé, estava cheio de turistas de várias partes do mundo, cada um falando uma língua diferente (e isso me confundia na conversa com o , confesso).
- Meu amor, que saudades - falei quando consegui atender.
- Pequim está chegando, - sua voz soava alegre - Não aguento mais de saudades, sério.
- Eu não duvido, sou mesmo sensacional - brinquei - Como está tudo por aí?
- Ótimo, mas sem muito o que fazer e ai?
- Pelo que entendi nosso projeto foi tão bom que logo estamos liberados, hoje nos trouxeram conhecer as pirâmides. , isso é mais que incrível! É excepcional.
- Anjo, você conheceu tantos lugares lindos nesses últimos dias. Estou guardando todas as fotos, quero voltar em um por um junto contigo.
- Vão ser nossas melhores férias. Muito melhor que as do último ano!
- Com certeza - ele riu - Amo como você se empolga fácil, aposto que está gesticulando e se mexendo para todos os lados.
- Não estou não - menti, mas estava sim e foi em uma dessas minhas mexidas que vi Jensen me olhando - Paçoquita, preciso deligar. Amo você.
- Também amo você!
Guardei o celular no bolso da frente do shorts e vi o rapaz se aproximando.
- Estamos indo - ele falou e não se moveu um centímetro.
- Ok, estou indo - falei e passei por ele. Foi apenas o trabalho de passar e ele me puxou, colando nossos corpos. Sua respiração estava próxima e seus olhos pareciam perfurar os meus.
- Com licença - ele falou, pedindo permissão e eu confesso que só entendi quando ele selou meus lábios de forma lenta, como quem pergunta se poderia. Dei passagem para a sua língua e assim começamos um beijo aos pés da esfinge, meio homem meio não homem. Bem cena de filme, assim como tudo nessa viagem. Terminamos o beijo de forma calma, ele pegou minha mão e saímos com a cara mais lavada do mundo.
Voltamos para o veículo e ninguém pareceu notar nossas mãos entrelaçadas gritando "olhem aqui, olhem como estamos juntas". Respirei fundo, nem com o eu andava de mãos dadas e agora isso? Tentei ignorar minha própria mente e me concentrei na paisagem passando rápida na janela. Sai quase arrastada da van, ainda calada e com a mão de Jen na minha. Paramos na porta do meu quarto.
- Está tudo bem? - concordei com a cabeça - Não parece tudo bem, . Eu te ofendi, fui grosseiro - ele se desesperou - Me desculpe.
- Jen - finalmente tirei minha mão da dele, recuperando minha voz - Está tudo bem. Eu também queria te beijar.
- Então?
- Então que quando saímos de mãos dadas eu me senti acuada - suspirei - Odeio me sentir assim. Odeio parecer exposta e me sinto infantil. E eu odiei que você me ignorou o dia todo para depois me beijar.
- Eu não sabia como agir - ele baixou a cabeça - Não estou acostumado com isso e achei inapropriado - respira fundo - quando vi que não me perdoaria se não te beijasse fui atrás de você.
- Acho que preciso dormir, Jensen - falei confusa. Eu, , estava confusa e assustada. Que novidade! - Boa noite.
Ele saiu sem entender muita coisa. Confesso que eu também não estava entendendo nada. Eu queria isso, não queria? Então porque mudei de ideia? Porque me sinto uma adolescente outra vez? Acho que ele sem querer me intimida e isso não é bom. Me joguei na banheira e falei pouco com , eu estava fora de órbita. Não fazia o menor sentido, fazia?
O jantar final ocorreu de dentro do esperado. Precisei falar novamente, expliquei o porquê era importante aprender medicamentos naturais, qual a implicância disso na população local. Falei também do trabalho de puericultura que fiz com as crianças da tribo e da capital, as diferenças e semelhanças, relacionei quais dos remédios que aprendi poderiam ser usados com as crianças e em quais situações. Houve também um comparativo com as crianças brasileiras e medicinas brasileiras (gracias por ter me passado seu trabalho). No final fui bombardeada com perguntas e elogios, senti que havia cumprido meu trabalho da melhor forma possível. Obrigada, África por ter me proporcionado isso.
Jensen só voltou a me procurar no meu último dia no Egito, pedindo desculpas novamente.
- , posso falar com você?
- Claro, Jen.
- Gostaria de pedir desculpas novamente por aquele beijo na esfinge. Não deveria ter feito isso jamais - ele baixou a cabeça - Vi como você ficou depois, foi inapropriado e desrespeitoso da minha parte.
- Jensen - suspirei e peguei uma de suas mãos, levantando até perto do meu rosto, para que ele me olhasse - Naquele momento eu queria te beijar, depois não sei o que aconteceu e eu me senti péssima. Você não leva toda a culpa, ok? Eu também me confundi - respirei fundo - Eu quis aquele beijo e depois não quis mais. Não sei te explicar.
- Não queria que isso afetasse nossa amizade, como afetou, tivemos um bom relacionamento aqui. Você é energia.
- Me sinto honrada com o elogio - sorri - E perdão por ter deixado afetar, não foi minha intenção. Você é calma, conserve isso e continue exercendo esse trabalho maravilhoso aqui. Foi um prazer te conhecer e trabalharmos juntos.
- Continue com essa energia maravilhosa ajudando as pessoas - ele sorriu - Você vai longe!
Ele me deu um abraço de despedida e horas depois eu estava em um táxi rumo ao aeroporto novamente. China, here we go.
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Cá estou, espremida em um avião novamente, escrevendo. Nunca quis muito ir para a China, eles parecem estranhos (desculpe o preconceito), mas só de saber que estará lá eu já me animo. Não sei quando ele chega, não conseguimos nos falar na última noite. Do meu lado direito tem uma mulher alta, de cabelos curtos e rosas (queria ter coragem para usar meu cabelo assim!) e do outro lado um piá de cabelo preto e olhos verdes. Bem gatinho, confesso. Eu poderia passar horas imaginando uma história para eles, como se conheceram, do que gostam e o que fazem da vida, contudo é feio encarar as pessoas por muito tempo, não é? A criança do banco da frente está com os pais e fica jogando um brinquedo azul para todos os lados, ele já caiu aqui atrás umas cinco vezes e isso me fez lembrar porque fugi da pediatria. O rapaz do meu lado está em um canal de rock, gostei. A mulher em um canal de moda, como essas modelos são magras, Oh Lord. Não conseguiria ser assim nem parando de comer por três anos, sério. Antes e eu brigávamos muito por causa do meu peso, eu sempre achava que estava acima do ideal e ele falava que era coisa da minha cabeça. Hoje em dia paramos com essa discussão, aprendi a me amar acima de tudo, com ou sem dobrinhas (obrigada, , você foi importante nisso).
Cheguei no aeroporto e um carro preto (enorme, diga-se de passagem) veio me buscar. Ele já tinha um passageiro, surpreenda-se ao saber que era o menino gatinho do meu lado no avião. Seu nome é Patrick, assistente social vindo da Califórnia.
Fomos para o hotel e mais um dos nossos já nos esperava, um anfitrião chinês: Zou. Zou é especialista em medicina tradicional chinesa e ficou de nos acompanhar nessa viagem. Ao que tudo indica ele é mais velho (apesar de parecer uma criança) e respeitado, há todo um esquema de hierarquia aqui e ele parece estar em uma posição elevada. Fomos levados para os quartos, nossa jornada começaria dali dois dias. Patrick, ou Patch para os íntimos, me convidou para jantar, éramos os únicos da equipe naquele hotel.
- Sejam bem vindos - Zou falou quando nos encontrou no hotel - Espero que gostem daqui. Os outros chegam até amanhã à tarde.
- Obrigada, Zou - sorri - Qual sua expectativa para o trabalho?
- Quero que saiam daqui conhecendo tudo sobre medicina chinesa. Você é uma das médicas, não é?
- Sou sim. é o segundo médico.
- Vi que vocês aprenderam muito sobre plantas medicinais em alguns dos lugares que passaram, o que achou?
Achei que fiquei assustada com o fato de ele ter lido nossas fichas, mas vou relevar.
- Achei interessante! tem se aprimorado mais nisso que eu, fiz projetos mistos.
- Eu vi. Sua curiosidade ainda vai lhe levar longe - ele sorriu e propôs um brinde, atraindo a atenção de Patch.
O resto do jantar a conversa foi bem tranquila, falamos um pouco das outras partes do mundo. Patch já tinha passado pelo Brasil, foi mandado para Sinop. Zou viajava o mundo aperfeiçoando saberes a pedido do Estado chinês, era um médico de suma importância. Mais tarde descobri que ele tinha 50 anos, enquanto eu quase garantia que sua idade beirava os 30. Voltei para o quarto e o moreno se despediu, entrando na porta de frente com a minha. Rolei na cama um tempo e recebi uma mensagem de , dizendo que já estava a caminho. Meu coração nunca acelerou tanto só de saber que eu o veria novamente. Esses meses foram de longe o maior tempo que passamos separados desde que nos conhecemos.
Eu já estava tomando café quando um homem de quase dois metros, cruzou a porta do restaurante na manhã seguinte. Seus olhos eram verdes e pareciam interrogativos, a barba estava por fazer e o cabelo comprido despenteado. Quando ele levantou a cabeça reconheci que aquele era , meu .
- Senti tanto sua falta - falei indo em sua direção e o abraçando apertado.
- Anjo - ele sorriu e fez um carinho na minha cabeça - eu achei que esse dia nunca mais fosse chegar.
havia emagrecido bons quilos e parecia mais adulto agora. Fomos para o quarto (dia de folga, ainda faltavam membros da equipe), ele acomodou suas coisas, tomou um banho e deitou do meu lado na cama.
- , isso é quase um sonho. Você está aqui - ele me apertou, mostrando que realmente tinha sentido minha falta - Agora essa viagem está perfeita.
Virei na direção dele, podendo acariciar seu rosto. Como eu senti falta daqueles olhos me acalmando.
- , eu não aguentava mais de saudades - sem pudor algum eu o beijei, era quase que uma obrigação fazer isso.
- E o brinquedo que você ganhou, onde está? - Ele perguntou safado enquanto recuperávamos o fôlego.
- Cala a boca, .
Ele ganhou um tapa no braço e devolveu rindo. Patrick foi me chamar para almoçar e se assustou quando o abriu a porta. Passei um tempo explicando que era meu melhor amigo e também estava nessa conosco. Zou já nos esperava com mais membros da equipe e quase caiu de empolgação ao conhecer , seu novo pupilo. O dia de pôr as mãos na massa chegou, o chinês não sabia se ficava comigo ou com na equipe (não, os dois médicos nunca poderiam trabalhar juntos), eis que ele passou a decisão nas nossas mãos, e eu teríamos que decidir quem ficaria com ele. Não somos os tipos de pessoas fofas que dizem: "não tem problema, trabalha você com ele que eu faço outra coisa". Não somos assim nem ferrando! Por isso o fato de nos darmos tão bem surpreende tanta gente.
- Vamos decidir isso de forma justa - falou - Me arranja uma moeda que vamos tirar no cara ou coroa.
- Zou, você tem uma moeda? - perguntei para o homem que nos olhava curioso. Ele tirou uma moeda do bolso (muito linda, inclusive. Uma moeda chinesa tradicional, mas não me pergunte o nome, diário, já te disse que sou horrível com geografia e isso inclui economia, blé.)
- Cara.
- Coroa - respondi.
Nossa sorte era avessa, se eu escolhi coroa e saísse cora quem ganhava era o e vice versa. Cara era o lado com a cara do dragão, coroa o lado com escritos. jogou a moeda para cima, eu peguei no ar e virei no dorso de sua mão (nosso ritual de cara ou coroa, para garantir a sorte de ambos. Não questione!).
- Cara - ele disse num muxoxo - Você vai trabalhar com Zou.
- Quer melhor de três?
- Não, anjo. A sorte está contigo - ele sorriu - Bom trabalho, nós vemos a noite.
Pegamos nosso meio de transporte e fomos atrás do trabalho. Zou trabalhava em uma clínica que possuía ao fundo uma espécie de pomar de plantas medicinais, cada uma com uma utilidade e propriedade, ele ia me explicando a cada folha e eu apenas tentava memorizar. Já estávamos no milésimo tipo de folha (todas iguais na minha opinião) quando ele resolveu que deveríamos atender as pessoas que estavam à procura de ajuda. A primeira paciente era uma menina, Milian, vinte anos, queixa de dores nas costas que pioram ao longo do dia, se estendendo para o braço direito. Eu acreditei que fosse uma coisa, Zou me corrigiu, disse que o problema de Milian era espiritual. Nunca se pode confiar apenas na ciência. Concordei com a cabeça sem entender muito bem.
Ele pegou uma planta verde, comprida, quebrou em três pedaços e moeu um por um com duas colheres de óleo. Colocou um pouco no pescoço, um pouco no braço direito e um pouco na região lombar da menina. Tentei não desacreditar do que ele fazia, mas parecia impossível. Ao final do dia ele havia atendido três pessoas, que saíram renovadas do lugar. Os céus que me desculpem, mas isso não fazia o menor sentido pra mim: problema espiritual, problema de confiança e problema de aceitação. Eu sou acostumada com os problemas de nervos, má postura, psicológicos... Ele estava numa dimensão muito acima da minha.
- Vamos embora andando - Zou disse - Não é muito longe.
Concordei com a cabeça e ele seguiu ao meu lado quieto por alguns segundos.
- , você precisa acreditar mais. Sei que a minha medicina não parece real para você - ele falou calmo - Mas ela é.
- Eu não entendo, Zou. Eu tento acreditar, mas não consigo. Eu não entendo a sua medicina.
- Seu problema é a mente fechada - ele bateu com dois dedos na minha cabeça - Você precisa se abrir as novidades. Não tenha medo. A sua medicina e a minha vão continuar juntas e se ajudando, uma não anula a outra. Quero que me dê uma chance todos os dias, posso lhe provar que não são apenas problemas físicos.
- Vou tentar - prometi e garanti a mim mesma que tentaria de verdade - quero apenas que seja paciente comigo.
O chinês concordou com a cabeça e logo estávamos no hotel. O ainda não estava, de forma que tomei banho e acabei dormindo antes mesmo que ele chegasse. Acordei apenas na manhã seguinte com o barulho do chuveiro.
- Dormiu aqui? - perguntei assim que ele saiu do banheiro, recebi uma confirmação de cabeça em resposta - Por que não me acordou?
- Cheguei tarde, você já estava dormindo. Não quis te acordar - ele estava com uma toalha enrolada na cintura e chacoalhando o cabelo para secar. Oh, Lord, obrigada por essa visão - Como foi ontem com Zou?
- Surreal. Não sei se acredito na medicina que ele propõe.
- Abra a cabeça, anjo. Você pode se surpreender.
Sorri e fui me arrumar, Zou já me esperava. Antes que pudéssemos ir para o trabalho ele resolveu me levar para um templo.
- Não sei no que você acredita, - ele sorriu um pouco - Eu sigo a religião tradicional chinesa. Ela é mista, veio de uma vertente filosófica e consegue me explicar muitas coisas - pausa - Acreditamos em três espíritos: deuses, fantasmas e antepassados. Nós aprendemos com eles e eles servem de inspiração e iluminação.
Concordei com a cabeça enquanto ele ainda falava.
- Somos influenciados por vários pensamentos e ideias, no Brasil chamam isso de sincretismo religioso. Sabe porque eu te trouxe aqui?
- Na verdade não, Zou.
- Para que você ache seu ponto de equilíbrio, equilibre seu chacra, convoque seus antepassados e abra sua mente. Esse é um lugar calmo e silencioso, sempre venho aqui quando preciso de alguma coisa. Você sabia que essa é a nossa religião mais antiga? É nossa crença natal. Alguns acreditam só em buda, outros no islamismo e temos até cristãos. Mas essa é a religião do nosso povo, essa é a religião oficial e trabalhamos para que ela se reerga.
- Você acha que os deuses e antepassados podem me ajudar a abrir a mente?
- Eu sempre acho - ele sorriu - Sempre acho que vale a pena trazer pessoas para cá e mostrá-las um pouco do que eu acredito. Você é uma menina de luz, com energia e potencial - pausa, suspiro - Você só precisa equilibrar tudo isso e será uma ótima médica, conseguirá achar as dores da alma, não apenas do físico. Fale com seus antepassados e eu estarei lhe esperando do lado de fora para prosseguirmos.
Zou me deixou sozinha em um templo com imagens que eu já havia visto em pesquisas na internet. Fechei os olhos e tentei concentrar minha energia como ele havia dito, eu era capaz disso, não? Aos poucos fui me acalmando, adaptando meu ouvido ao silêncio ambiente e então achei que poderia sim tentar seguir os métodos medicinais de Zou, um bom médico não é só aquele que cura feridas, não é mesmo? Ele estava realmente me esperando do lado de fora e parecia transmitir mais paz que antes, seus olhos estavam tranquilos e ele parecia satisfeito.
Atendemos mais pessoas ao longo do dia, ele fazia questão de enumerar quais os sintomas se ligavam a cada parte da alma. Por incrível que pareça eu estava entendendo melhor aquilo, estava melhor com as plantas e acima de tudo estrava tranquila. precisava conhecer aquele lugar.
Passamos a semana toda indo ao templo antes de ir a clínica, Zou sempre tinha algo novo para me contar da sua religião. Aquilo era o ar para ele, simples assim. Sem acreditar em todo aquele sincretismo ele provavelmente não acreditaria em si mesmo, nem nos problemas da alma. Vi raras vezes durante a noite, geralmente nos encontrávamos apenas cedo com um de nós saindo do banho e dando um beijo de bom trabalho. Nada muito longe da nossa rotina no Brasil.
Bom, hoje é domingo e temos o dia de folga. Há um parque nos arredores, e eu resolvemos visitar. Zou vai nos fazer companhia, Patch também. O ainda está no banho e eu, bem, eu estou enrolada no lençol enrolando para levantar.
- Levanta, anjo - ele chamou - Vamos nos atrasar.
- Você é muito chato - falei rabugenta - Mimimi vamos nos atrasar, mimimi tem que levantar.
- Me ame menos e vai logo tomar banho, .
Fui tomar banho e ele estava me esperando na cama quando eu sai do banheiro. Tínhamos pouco tempo de banho graças a política chinesa para economia de água. Coloquei uma legging preta, uma regata comprida branca e tênis de academia. Para o look ficar ainda mais fitness prendi o cabelo em um rabo de cavalo bem alto. Zou nos levou até o templo, apresentando mais sobre sua religião para os meninos, enquanto eu treinava minha respiração e concentrava minhas energias.
- Você está indo muito bem - ele elogiou - Consigo sentir sua energia ainda mais forte.
- Obrigada, Zou.
Fomos em direção ao parque, Zou e na frente conversando, Patch e eu atrás.
- Ele é seu namorado?
- Não - eu sorri - É alguma coisa entre meu melhor amigo e um relacionamento sério.
- Vocês formam um casal bonito.
- Obrigada, Patch. Você namora?
- Não - ele balançou uma das mãos - Terminamos duas semanas depois que entrei no projeto. Ela não conseguiu com a distância.
Concordei com a cabeça. Já tínhamos chegado no parque, ele era enorme e em um dos seus lados havia um estante de bicicletas, que podiam ser usadas para passeio.
- Patrick, vamos dar uma volta de bicicleta?
Ele mal teve tempo de responder e eu sai o puxando pela mão. Bicicleta sempre foi meu brinquedo favorito da infância, todo natal eu queria uma nova porque havia detonado a anterior. Escolhi uma bicicleta vermelha com cestinho e ele pegou uma verde. Sai pedalando na sua frente, mas ele conseguiu me alcançar. Percorremos boa parte do parque lado a lado, até que ele resolveu apostar uma corrida muda comigo. Eu, como ótima competidora que não sabe perder, acelerei com tudo atrás dele. Tivemos uma competição acirrada, eu passei na frente nos quarenta e cinco do segundo tempo e, adivinha só, patona como sou consegui deslizar a bicicleta e cair. Por sorte cai na grama, o machucado foi pequeno e a magrela sobreviveu. Zou e vieram correndo na minha direção, Patch já estava do meu lado rindo.
- Eu ganhei, Patrick - reclamei - com tombo ou sem. E para de rir - lhe dei um tapa no braço, também rindo.
- Machucou, anjo?
- Nada - mexi todas as partes que chegaram ao solo - tá tudo fixo.
Levantei com a ajuda de e Zou continuou examinando meu corpo. Minha calça tinha rasgado um pouco e um fio de sangue corria do joelho, nada demais. "Joelhos ralados curam mais rápido que corações partidos" já dizia o ditado cafona que vi em alguma foto da internet. Não deixei o incidente acabar com nosso dia, ficamos no parque até começar a escurecer, quando decidimos voltar para o hotel.
Meu trabalho com Zou tinha se aperfeiçoado. Eu estava começando a entender mesmo qual era a função da medicina chinesa e sua ligação com a alma e o equilíbrio. Íamos todos os dias ao templo, ele fazia sua oferenda aos deuses, pedia iluminação e eu buscava o equilíbrio, concentração de energias e ampliação da mente. Fazíamos uma dupla perfeita. Certo dia Zou me disse que eu tinha a sorte, eu poderia não saber, mas ela andava comigo para todos os lados e eu também era fruto da luz, poderia iluminar qualquer lugar ou pessoa. Sempre que ele me dizia essas coisas eu me sentia lisonjeada, era como ver meu pai ou um professor querido dizendo que eu era uma pessoa fantástica e especial. Quem não gosta de ser bajulado com palavras bonitas?
e eu sempre chegávamos em horários diferentes, algumas vezes conseguíamos esperar o outro chegar, em outras dormíamos antes e nos falávamos apenas na manhã seguinte. Várias vezes acordei com o seu braço ao meu redor durante a noite e fiquei o olhando dormir, doentio da minha parte, eu sei. Nossos turnos no hospital muitas vezes eram os mesmos, por isso nos encontrávamos em casa com mais frequência. Mas só de saber que ele estaria ali na manhã seguinte eu já sentia meu coração em paz.
Como todos os lugares que fomos, chegamos a reta final da nossa viagem. Era a apresentação final e novamente eu teria que subir naquele palco e falar sobre minha experiência e o que levaria de aprendizado adiante.
- Boa noite - comecei - Me chamo , sou formada há alguns anos em medicina e venho do Brasil. Pequim foi minha cidade final nesse projeto, passei antes por tantos outros lugares que eu gostaria de ter ido e terminei aqui, na China. Um lugar que, confesso, nunca quis conhecer. Todo esse meu preconceito com essa parte de Ásia, desculpem a palavra, felizmente desapareceu. Foi um dos lugares onde mais cresci e pude aprender coisas inimagináveis - eu estava nervosa, era meu primeiro discurso não escrito, mas eu sentia que precisava usar o coração se quisesse transmitir à aquelas pessoas que estavam me ouvindo o que realmente senti e aprendi naquele lugar - A experiência que tive na China conseguiu ser surpreendente de forma positiva, acreditem. Aqui tive um mentor especial, o sr. Zou, ele não quis apenas me ensinar sobre a famosa medicina tradicional chinesa, ele me ensinou a acreditar nela, a ver além da dor física. Ele me ensinou a sentir, e nunca negligenciar, a dor da alma. Zou também foi importante para que eu achasse meu ponto de equilíbrio, concentrasse energia e expandisse horizontes, a mente e a alma controlam tudo, não é? Ele quis ir além, me apresentou a sua religião: aos deuses, fantasmas e antepassados, ele me fez acreditar nisso e querer fazer o bem de verdade, a ajudar de verdade e a curar de verdade - pausa para respirar - Eu cheguei aqui na intenção de aprender um pouco mais sobre a medicina chinesa e medicamentos naturais feitos à base de plantas, eu aprendi sobre isso, confesso, mas de longe essas foram as coisas que eu menos aprendi. Zou foi além e me ensinou muito mais do que eu pedi e merecia. Eu sei que aqui em cima devo falar o que vou levar ao Brasil e digo que levarei daqui: amor, compreensão e gratidão, por último levo meu trabalho com a medicina tradicional chinesa, antes disso preciso levar energia, equilíbrio e paz, que foi o que mais recebi e aprendi nesse lugar. Sintam-se todos abraçados e estou à disposição para responder qualquer dúvida.
Me perguntaram sobre a medicina tradicional chinesa, é claro, mas também quiseram saber mais sobre a religião e o trabalho de Zou.
- Seu discurso foi incrível - ele me abraçou quando terminaram as perguntas - E você está ainda mais linda hoje.
Eu estava com um vestido azul marinho longo, justo na parte de cima, com um decote em v não muito profundo tanto na frente quanto nas costas e a saia frouxa. Meu cabelo estava em um coque, o batom vermelho contrastava com minha pele e o salto preto (que combinava com os olhos) me deixava centímetros maior. e Patch estavam pomposos em ternos pretos, as gravatas azul e verde escuro (respectivamente) arrematavam o look sério.
- Obrigada - sorri - Você está lindo também.
e Patch também falaram sobre seus aprendizados, de forma muito mais técnica que eu.
- Seu discurso foi feito com o coração - Zou falou enquanto aplaudíamos Patch - Fico grato em saber que foi o que aprendeu na minha casa e passará adiante.
- Eu é que fico grata, Zou, porque você acreditou em mim e foi paciente ao me mostrar tudo aquilo que conhecia.
- É a minha vez de falar - ele sorriu - me deseje sorte.
- Sorte - sorri.
sentou ao meu lado e entrelaçou nossas mãos sobre a mesa. Patrick estava recebendo alguns abraços na saída do palco.
- Boa noite - Zou começou - Hoje não tenho muito a dizer aqui, apenas que esse projeto foi uma oportunidade incrível que me somou mais aprendizado que meus anos de vida. Uma companheira minha disse que aqui aprendeu gratidão e isso é o que sinto por esse projeto, por todos os que já passaram por aqui e por aqueles que passarão cumprindo sua missão. Cada um de nós tem uma missão e sozinhos não conseguimos cumpri-la, esse trabalho é a prova disso e nasceu dessa ideia: juntos somos mais fortes. Há um tempo atrás aprendi uma oração, mantra, versinho ou seja lá o que for e essa é a hora certa de compartilhar com todos vocês. Peço que levantem, façam um grande círculo e repitam o que eu disser.
Todos demos as mãos e formamos o círculo pedido, repetindo as palavras dele.
- "Eu uno suas mãos as minhas, uno meu coração ao seu, para que juntos possamos fazer tudo aquilo que eu não consigo, não posso e não quero fazer sozinho". Levem isso com vocês para onde forem e façam esse velho feliz.
Todos aplaudimos e eu confesso que chorei (novidade, não é mesmo? HAHAHAH). me abraçou, também estava emocionado. Não precisamos de palavras para que soubessem que aquilo era exatamente o que o projeto representava para nós. Zou deixou o salão junto conosco, fomos em direção ao nosso quarto, o vôo estava marcado bem cedo.
- Zou - chamei - Quero lhe deixar um presente, ele representa muita coisa para mim e quero que fique com ele, como forma do meu agradecimento por todo o tempo aqui.
- - ele sorriu e continuou esperando, estava no banheiro (já reparou que ele vive lá, diário?).
- Quando estive na África participei de um ritual, aprendi a tocar chocalho - sorri - Era uma cerimônia que representava a gratidão daquele povo pelo nosso trabalho lá e culturas trocadas - peguei o chocalho - Quero que fique com esse chocalho como uma representação disso tudo também.
- Fico emocionado que você ache que aprendeu tudo isso comigo, - ele pegou o chocalho das minhas mãos - mas tudo isso estava dentro de você, sempre esteve. A cada lugar que você passa deixa um pouco da sua luz, ela é importante para os que a cercam. Você traz paz e faz com que gostem de você e acreditem em um mundo melhor. Não sei o que lhe trouxe a esse projeto, mas saiba que deve agradecer eternamente a isso, porque você levou coisas boas a cada um dos lugares nos quais passou. Sua mente é jovem e boa, deixe que ela expanda sempre.
- Vou sentir sua falta, Zou - o abracei - Pretendo voltar assim que possível para cá, ainda há muito o que aprender.
- Quero que você fique com minha moeda, aquela que te deixou trabalhar comigo todos esses dias. É uma moeda rara e antiga, ela pertence a você.
- Não posso.
- Quando você voltar destrocamos - ele sorriu - seu chocalho pela minha moeda.
- Xièxiè.
- Gratidão, . E lembre-se, sempre juntos.
Ele saiu do quarto e eu fui me arrumar para irmos ao aeroporto. Brasil, estou voltando! está dormindo na poltrona ao meu lado, Patch passou no quarto dar tchau antes de irmos embora e disse que logo iria para o Brasil nos visitar. O fuso horário está me bagunçando toda, tanto é que devem ser quatro da manhã em algum lugar do mundo e eu estou aqui, parecendo uma coruja. Resolvi fazer uma lista das coisas que aprendi em cada um dos lugares que visitei:
Foz do Iguaçu: tereré, medicamentos naturais e a falar piá. Rob e Cam, sinto a falta de vocês!
Paris: escargot, fazer anjo de neve, políticas públicas de saúde francesas, que o medo te embebeda (Esse oi vai para você, Ramira. Encher a cara nunca mais) e que adaptadores podem ser trambolhos esquisitos. Pierre e Luc: Vocês são incríveis, a melhor dupla que já conheci.
Cairo: tocar chocalho, como ser parte de uma cerimônia, medicamentos com plantas nativas, acampar pode ser legal e beijar sob um ponto turístico pode não ser uma boa ideia. Aqui deixo um salve para meu querido Amou, você foi uma pessoa maravilhosa todos os dias que passei com você, sempre sorridente e alegre. Obrigada!
Pequim: medicina tradicional chinesa, religião tradicional chinesa (tudo o que era tradicional e chinês eu aprendi, inclusive que eles colocam a cabeça inteira da galinha na sopa, com bico, crista e o que mais houver), Xièxiè (obrigado em chinês) e acima de tudo aprendi a ser grata, bondosa e acreditar mais naquilo que desconheço. Zou, você foi um anfitrião maravilhoso, deve estar cansado de me ouvir agradecer, mas ainda assim: obrigada por tudo. Volto em breve.
Chegamos em casa podres, menos que eu porque havia dormido a viagem toda. Nossa rotina já estava batendo a porta, teríamos mais um jantar do projeto para compartilharmos experiências e retornaríamos ao hospital. Sai do banho e entrei ao seu lado debaixo da coberta.
- - ele falou se aninhando em mim, os olhos refletindo a luz que entrava pela janela - esse tempo longe de você me fez perceber o quanto eu te amo de verdade. Eu me sentia vazio toda vez que chegava no quarto e deitava sozinho - suspiro - faltava você. Eu não sei mais dormir sozinho e não sei dormir com outras pessoas - ele pegou minhas mãos - você é a minha casa, . Eu me senti em casa na China porque eu chegava tarde e você estava ali, deitada do seu lado da cama - ele me olhou - Eu posso deitar em uma maldita cama de casal king size que vou terminar do lado esquerdo encolhido, porque o lado direito é seu, mesmo quando você não está.
"Palavras não bastam, não dá pra entender. E esse medo que cresce e não para, é uma história que se complicou e eu sei bem o por quê" **
- , você pode não acreditar, mas minha casa é onde você está. Você é o meu lar e eu não consigo mais me imaginar longe de você. Não quero que ache que eu estou falando isso só porque foi difícil dormir nesse tempo separados. Isso foi sim, mas não vem ao caso.
- Eu também dormi mal - confessei.
"E quando chega a noite e eu não consigo dormir, meu coração acelera e eu sozinha aqui. Eu mudo o lado da cama, eu ligo a televisão. Olhos nos olhos no espelho e o telefone na mão".
- Casa comigo, anjo.
"Pro tanto que eu te queria, o perto nunca bastava e essa proximidade não dava. Me perdi no que era real e no que eu inventei. Reescrevi as memórias, deixei o cabelo crescer e te dedico uma linda história confessa: nem a maldade do tempo consegue me afastar de você."
- Não precisa ser agora ou ano que vem, mas casa comigo. Vamos fazer isso ser de verdade, sabe? A gente sempre deu certo quase namorando, porque não deixar isso real? Casa comigo? Sem essa de namorar, noivar, casar... A gente inverteu a ordem faz tempo - ele me olhou - Eu te amo tanto, sempre amei.
- ...
- Você é a minha família e a minha casa. Eu estou morrendo de medo de ouvir um não, mas sei o que quero e não estou fazendo por impulso. Você, mais do que ninguém sabe disso...
"Te contei tantos segredos que já não eram só meus, rimas de um velho diário que nunca me pertenceu. Entre palavras não ditas, tantas palavras de amor. Essa paixão é antiga e o tempo nunca passou."
- , você aceita se casar comigo?
......
** Música da cena. Não tinha como adaptar com a proposta do diário (infelizmente), mas precisava dela para fazer sentido então ela veio entre aspas (ou de um rádio imaginário, fica a critério de quem lê, HAHAH)


Fim.





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