Wanderlust Girl


Challenge #18

Nota: 9,6

Colocação:




Sempre gostei de viajar, graças aos meus pais que sempre me levavam junto para explorar o Brasil, até a minha primeira viagem ao exterior.
Prazer, sou Adelaide Garcia, Délia para os íntimos. Parei de viajar quando comecei a faculdade de arquitetura. Não arranjei tempo nem depois que arrumei emprego, por isso sofro de abstinência aventureira, em razão do tempo passado sem conhecer outros ares.
Lugar novo significava novas aventuras, conhecer pessoas diferentes, costumes opostos aos quais estou habituada, acúmulo de experiências, inovar a visão de mundo e uma oportunidade de satisfazer, mais uma vez, a minha sede por viagens, chance a qual eu jamais desperdiçava.
Já disse que sou arquiteta? Acho que sim, e uma bem atrasada, por sinal.

Andava apressada pelos corredores do escritório. Consegui chegar à sala de reuniões, trinta minutos depois do início do sorteio, parcialmente descabelada, diga-se de passagem. Antes de abrir a porta, fiz o que pude para consertar o ninho de passarinho formado em meus cabelos. Ao entrar, observei meus colegas, alguns exibiam expressões de inconformação, outros estavam alegres. Particularmente, a minha chefe, estava sorridente.
- Chegou a atrasadinha. - comentou um de meus colegas, que fazia parte do grupo descontente. - ela nem sequer sabe chegar na hora, isso não parece justo.
- Oi pra você também, Pedro. - ironizei, sem saber ao certo o que estava acontecendo. - no seu lugar, eu pararia de tomar café. Você já é naturalmente amargo.
- Meus parabéns, Adelaide! - anunciou a chefe, assim que ele abriu a boca, provavelmente para fazer mais algum comentário ácido. - você ganhou o sorteio.
- Não! - cobri a boca com as duas mãos, incrédula. - Finalmente alguma coisa boa aconteceu numa segunda-feira, senhor!
As pessoas riram, enquanto eu me sentava.
- Ah, não, não sente ainda. - ela disse, fazendo menção para que me levantasse. - venha comigo para a minha sala.
Seguimos pelo corredor até adentrar o ambiente amplo e bem iluminado, devido às enormes janelas, cuja vidraçaria concedia uma visão muito bonita da cidade do Recife.
- Sabe como funciona o sorteio, não é? - falou, ao sentar-se na cadeira.
- Sei que envolve viajar… - comecei, mas parei, só sabia até ali mesmo.
- Não estava aqui quando expliquei junto ao pessoal da agência? - ergueu uma sobrancelha.
- Ah, cheguei atrasada nesse dia. - abri um sorriso culpado, aparentemente não funcionou porque recebi um olhar de pura repreensão. - o trânsito estava horrível.
- Sei, a culpa é sempre dos outros… - continuava a estreitar os olhos em minha direção, depois se recostou na cadeira e suspirou. - sim, envolve viagens, fizemos uma parceria com uma agência, você sabe. Como somos uma empresa de arquitetura, obviamente, o intuito deste projeto é conhecer monumentos históricos de quatro países diferentes em quatro continentes diferentes, um grande enriquecimento cultural para uma arquiteta.
- De fato. - concordei, cruzando as mãos sobre o colo. - o que eles ganham com isso, se me permite perguntar?
- Ah, nós estamos reformando a sede deles aqui. - abanou o ar, como se não fosse nada - e realmente não era, a empresa era renomada mundialmente - em seguida, abriu a gaveta, tirando um envelope. - aqui estão as passagens e os roteiros de cada lugar. Pegue e aproveite, será um mês, uma semana para cada país.
- Nossa! Faz tempo que não viajo assim. - dei uma breve checada nos papéis, captando apenas o nome China. Apesar de ser um país interessante, nunca foi prioridade na minha lista de visitas. - obrigada.
- Não me agradeça, pois terá de fazer relatórios sobre o que viu nos monumentos e assim, tiraremos proveito dessa oportunidade pelas mãos de alguém que conhece a empresa. - sorriu, levemente. - vi que tem passaporte, o resto dos papéis não são muito burocráticos, em uma semana, estará tudo resolvido. Agora, voltemos ao trabalho, suas férias só começam mês que vem.
- Sim, senhora. - retribui o sorriso, e antes que pudesse me retirar, a chefe chamou. - Sim?
- Pode, por favor, ajeitar esse quadro ao lado da porta? Está um pouco torto… - não estava, mas ela sempre teve essa mania perfeccionista, e como era a minha chefe, não ousei questioná-la, fazendo o que me foi pedido. O quadro feito à óleo exibia uma praia pitoresca, o que era irônico já que a dona detestava água salgada, talvez o mantivesse ali pela sensação de paz trazida, ou por pura estética.
XX

Fiz o possível para conter a ansiedade e trabalhar normalmente, deu certo, é comum que eu não me demore a conseguir concentração. Na saída do trabalho, começou a chover - é claro, por mais perfeita que uma segunda-feira possa ser, alguma coisa desse tipo sempre acontece - sorte a minha ter esquecido meu guarda-chuva no escritório semana passada.
Peguei o metrô e me pus a analisar metodicamente o roteiro. Começava com o Peru - provavelmente, porque era o país mais próximo - em seguida, Egito, Grécia e China. Não me parecia ruim, exceto como já citado, a minha certa hesitação para com a terra natal do Jet Li.
Perdida por entre meus devaneios, quase desci na estação errada.
XX

Passei a semana indo atrás dos documentos que faltavam, consultando a agência com algumas dúvidas, comprando dólares para trocar nos países e resolvendo todas as pendências do trabalho. A agitação foi tão grande que acabei arrumando a mala no dia anterior à viagem.
- Não tem vergonha de ser tão procrastinadora? - repreendeu, a minha nem tão doce irmã mais velha.
- Dá um tempo, Amélia! - eu estava correndo por todos os cantos da casa, me certificando de que havia pegado tudo o que precisava. - acho que peguei tudo…
- Escova de dentes? Meias? Secador? Casaco? - saiu do quarto, continuando a perguntar o que faltava. Peguei protetor solar, casacos extras, minha câmera e um adaptador universal para poder fechar a mala, quando Amélia voltou com um dos nossos sacos de dormir portátil, que usamos ao acampar na Chapada Diamantina.
- O que é isso? - questionei, fechando a mala.
- Saco de dormir, ué. - falou, como se fosse óbvio.
- Eu sei que é um saco de dormir, besta. - a encarei, com as mãos na cintura. - me refiro ao porquê de eu ter de levá-lo.
- Tu vai pro Egito. - deu de ombros. - vai que precisa.
- Bem pontuado. - disse, sarcástica. - Eu vou ao Egito, não quer dizer que vou ficar vagando sem rumo pelo Saara.
Discutimos por, aproximadamente, quinze minutos, até eu convencer a cidadã de que existem bons hotéis no Cairo. Seres humanos e seus esteriótipos sem fundamento.
XX

Levantei disposta, o primeiro destino era Lima, mal podia esperar para por o espanhol em prática novamente - já que era o único país da programação cuja língua nativa falava - estava um pouco enferrujada. Encontrei-me com o grupo da viagem, os guias se apresentaram e nos deram uma espécie de pulseira de identificação. O voo de conexão para São Paulo saiu às duas da manhã. Todos estavam animados, inclusive eu, porém o tédio me alcançou no segundo avião, me fazendo dormir até chegarmos ao destino. Acordei com alguém balançando meu ombro.
- Chegamos. - a garota sorria, parecia ter a minha idade. - A propósito, me chamo Marlene.
- Adelaide, mas pode chamar de Délia. - sorri de volta.
Engatei uma conversa com a nova colega de viagem, enquanto esperávamos nossas malas aparecerem na esteira. Descobri que era fotógrafa e paisagista, nas horas vagas, possuindo um grande apreço pela natureza. Descobrimos, chegando ao hotel, que seríamos colegas de quarto, o destino tem um senso de humor admirável.

Todos os hóspedes deixaram suas malas no hotel para conhecermos a cidade. Visitamos o conjunto da Basílica Menor e Convento de São Franciso o Grande, um maravilhoso complexo arquitetônico projetado por Pizarro. Com o tempo, a basílica foi reformada e hoje é considerada uma obra-prima da arquitetura colonial, o tom amarelo chamava muita atenção. O convento possuía ambientes muito bem decorados, tendo em si várias obras de arte. A última parada antes do almoço foi a Praça Maior, sítio de fundação da cidade, onde se encontravam o Palácio de Governo, a Catedral de Lima, cujo estilo barraco tanto me encantava, o Palácio Arquiepiscopal e o Palácio Municipal de Lima e do Clube da União.

Tiramos muitas fotos, pedi à Marlene que tirasse algumas, já que ela entendia disso melhor do que eu. O sol estava muito quente, então além dos óculos de sol, pus também o meu chapéu fedora de palha, clássico de turista.

Às três horas da tarde, tive uma dor de cabeça muito forte, notei o meu descuido ao ter esquecido os remédios na minha mala de mão. Avisei ao guia que voltaria ao hotel para repousar. Marlene se ofereceu para ir comigo, mas não deixei que arruinasse o resto de seu dia por minha causa. Tomei um táxi e comecei a olhar pela janela, para ver se a dor amenizava. O taxista em nada me ajudou, parecíamos estar em uma perseguição de filme policial. Ele costurava por entre os carros loucamente, vez ou outra, tentou iniciar uma conversa, entretanto deve ter percebido o meu mal-estar.

Após tomar um comprimido de Neosaldina, me encaminhei para o banheiro. Considerei por um momento tomar banho na banheira, porém, devido às minhas desconfianças, achei melhor o chuveiro mesmo. Ao sair, pus um pijama de flanela confortável e comecei a fazer um relatório sobre o dia, como a chefe pedira, adormecendo depois de alguns minutos.
XX

- Délia. Délia. - uma voz distante, chamava. - Adelaide!
- Tô viva, tô viva. - repeti, me levantando um pouco desnorteada, olhei em volta e lá estava minha colega de quarto, parada, ao lado da outra cama de solteiro, com as mãos na cintura.
- Será que eu vou ter que te acordar sempre? - apesar do tom de reprovação, ela sorria. - chegaremos atrasadas para o café da manhã.
- Bem, não sou exatamente conhecida pela minha pontualidade. - bocejei, abrindo os braços para espreguiçar-me. - que horas são?
- Ah, são cinco horas. Nós tomaremos café, antes de pegarmos o voo a Cusco. - trocamos de roupas, arrumamos as malas e descemos.
O voo até Cusco durou uma hora. Nosso primeiro destino foi o Templo do Sol, construído pelo imperador inca Pachacuti. Feito de pedras polidas, encaixadas perfeitamente. Era um local de rituais e oferendas ao deus Sol, cultuado por eles. Os conquistadores espanhóis o destruíram, erigindo uma igreja sobre o mesmo.
Em seguida, fomos ao Sacsayhuaman, ruínas de uma fortaleza inca.
- Como arquiteta, isso deve estar sendo maravilhoso para você. - comentou Marlene. Segurava a câmera, fotografando a paisagem de vários ângulos diferentes.
- As civilizações latinas me encantam num todo, não só pela parte arquitetônica, que de fato é fantástica, mas também pela mitologia, pelo desenvolvimento das ciências, sistemas agricultor e afins. Tudo isso sem estarem conectados à Europa, na época, centro do mundo. - lembrava-me das aulas de história sobre este assunto.

Nos deram a tarde livre para passearmos pelos arredores do hotel, que ficava perto da Catedral de Cusco, constituída por estilos barroco, gótico e renascentista. Ao sair, a minha colega foi fotografar a pracinha em frente e como boa turista que sou, fui à loja de souvenirs mais próxima. Comprei um chaveiro com o brasão da cidade para Amélia, depois, passei a observar as prateleiras, até ler uma plaquinha com os dizeres “flautas peruanas”. Ao meu ver, eram só vários pauzinhos de diferentes tamanhos amarrados lado a lado. Achei engraçado e soprei, na tentativa de tocar, mas não deu certo. Ri comigo mesma.
- Posso tentar? - um rapaz, pediu. Era moreno, pouquíssimos centímetros mais baixo e magro. Pegou a flauta e a tocou de um jeito magnífico, com certeza entendia de música.
- Uau! - bati palmas. Ele sorriu em agradecimento.
- Meu nome é Javier Reyes, senhorita. - tomou a minha mão e depositou um beijo.
- Adelaide. - sorri.
- Só Adelaide? - arqueou uma sobrancelha, mas mantinha um sorriso brincalhão. Por acaso, ele queria pesquisar meu nome no Facebook? Não havia necessidade para sobrenomes. Sou bem paranoica com isso, eu sei.
- Você é músico? - desviei do assunto.
- Nem todo mundo que toca os instrumentos típicos entende de música propriamente dita, mas sim, eu sou. - explicou.
- Palpite de sorte, então. - constatei. - como faz pra aprender a tocar isso?
- Leva tempo, mas um dia, talvez você consiga. - declarou. Queria aprender algo novo ali, aparentemente não seria um instrumento. - Se quer aprender alguma coisa, por quê não tenta a aula de cerâmica? Os turistas adoram.
- Quando será? - minha curiosidade foi despertada.
- Tem todos os dias, sempre tem gente nova. Amanhã, com certeza, terá. Posso levá-la, se quiser. - um total estranho se oferecendo para me levar à um lugar que não conheço? Não, obrigada. No entanto, ele pareceu ler os meus pensamentos. - Sei que soou esquisito, mas posso levar outras pessoas também.
- Vim com um grupo, talvez eles possam gostar. Acho que, amanhã à tarde, não terá nada na programação… - ponderei. - espera, como sabe que sou turista?
- Você tem sotaque argentino, mas pelo seu físico, presumo que não seja de lá. - analisava as minhas feições.
- Ah, não mesmo. - dei uma breve risada. - sou brasileira e, quanto ao sotaque, deve ser pelo fato de que o meu professor de espanhol era argentino.
Javier e eu conversamos bastante. Ele foi bem simpático, me contando sobre a cidade. Discutimos sobre a cultura local e o quanto havia gostado do país. Descobri que era nativo de Lima, estava, apenas, visitando a avó em Cusco.

Dez da noite foi a hora em que chegamos conversando à entrada do meu hotel. Falamos sobre a proposta dele sobre a aula de cerâmica com os guias. De início, hesitaram, todavia no fim, aceitaram. O roteiro daquela viagem era bem flexível, gostava disso. O resto do grupo concordou também.
XX

No dia seguinte, conhecemos mais da cidade de Cusco e à tarde, como prometido, encontramos Javier e fomos às aulas de cerâmica. Ele sentou no torno ao lado do meu. O instrutor começou a passar as dicas, nos ajudando, em algumas ocasiões. As pessoas riram quando uma mulher do grupo, que fazia, ou melhor, tentava fazer, um pequeno vaso, espirrou barro na roupa, sujando um pouco do rosto. Esta mulher, no caso, era eu mesma.

Tivemos três dias de aulas. No último, finalmente, consegui concluir o maldito vaso. Não estava lá uma obra do Mestre Vitalino, mas já era alguma coisa. Aprendi aspectos interessantes da cerâmica e descobri ser uma coisa muito terapêutica, definitivamente, procuraria mais sobre o assunto no Brasil.

Nestes mesmos três dias passados, Javier se mostrou uma pessoa muito simpática e gentil. Fiquei feliz em saber que consegui uma nova amizade. Ele voltaria a Lima no dia seguinte e combinamos de nos ver, quando eu retornasse de Machu Picchu para a capital com o grupo.
XX

A cidade perdida dos Incas era mesmo um deleite para os aventureiros, como eu. A altitude fez algumas pessoas passarem mal, o que, milagrosamente, não foi o meu caso. As montanhas imponentes se erguiam perante a nossa vista. Os turistas é claro, não perderam a oportunidade de fazerem a Gisele Bündchen e tirarem inúmeras fotos usando poses variadas. Era bem engraçado. Sentei-me na borda do labirinto rochoso para apreciar a paisagem.
- Quanto tempo será que eu levaria para escalar aquela montanha? - pensei alto, ao fitar a Wayna Picchu. Marlene, que erguia a câmera para fazer uma foto, baixou-a, arregalando os olhos ao me encarar.
- A altitude afetou o seu juízo? - pousou a mão direita na cintura.
- Continua fazendo suas fotos, Peter Parker. - falei, rabugenta, levantando e batendo no short com as duas mãos, para tirar o pó. - Volto já.
- Estou cercada por loucos. - ouvi-a dizer, ao me virar. Ri baixinho, quando avistei um dos guias.
XX

- Eu já te disse que é maluca? - ela olhava para a janela, o tom de voz indignado, enquanto eu me jogava no assento ao lado do ônibus em que estávamos.
- Já. - respondi, displicente, fechando os olhos e me recostando na cadeira, em seguida. - várias vezes.
- Não acredito que escalou mesmo aquela montanha. - abri apenas um olho, encontrando-a balançando a cabeça.
- Por que não? Você tava lá. - dei de ombros. - trinta e sete minutos.
- O que isso quer dizer? - abriu a bolsa, me oferecendo um chiclete, que aceitei.
- O tempo que levei até chegar ao topo da Wayna Picchu. - constatei, fazendo uma bola com o chiclete. - normalmente, as pessoas demoram uma média entre quarenta minutos e uma hora.
- Parabéns. - fungou. - não sei se te acho corajosa ou doida varrida.
- Um pouco dos dois, talvez. - encerrei a conversa, virando-me para o outro lado, voltando a fechar meus olhos, na esperança de conseguir um cochilo. Escalar montanhas era exaustivo.
XX

Avisei a Javier por mensagem o hotel onde estávamos ao regressarmos a Lima, nos encontraríamos à noite em um bar ali perto.

Cheguei do passeio à tarde exausta, me permitindo um rápido cochilo. Acho que já está claro a minha falta de pontualidade. Levantei com alguém batendo na porta. Pensei ser Marlene, que havia saído com algumas pessoas.

- Sorte sua que não estamos na Inglaterra, do contrário, você seria linchada. - Javier estava apoiado no batente da porta, não parecia zangado, apenas entediado. - poderia ter avisado que não iria.
- Me desculpa, sou completamente desatenta a horários, foi só eu fechar os olhos e apaguei total. - minha cara de sono parecia tê-lo convencido. - preciso, apenas, lavar o rosto e escovar os dentes, pode me esperar?
- Fazer o quê, não é? - deu de ombros, passando por mim, quando me afastei para dar passagem. - Toma.
Ele jogou no ar algo brilhante para que eu pegasse.
- O que é isso? - perguntei, antes de analisar o objeto.
- Um relógio, assim, quem sabe, você se atrasa menos. - seria um gesto simpático, se aquilo não fosse, nada mais, nada menos do que um rolex.
- Ficou doido?? - meu queixo caiu. - é original?
- Sim. - falou, como se não fosse nada demais. - meu irmão é representante da marca na Suíça, volta e meia, ganha vários relógios novos. Já tenho três, não preciso de mais, pode ficar.
- E não pensou em, sei lá, vender? - questionei, o tal do relógio era muito bonito, hipnotizante, até. Javier ponderou por um segundo.
- A maioria das pessoas que conheço não têm dinheiro para comprar. O resto já têm, direto das lojas. - deu de ombros. - pare de fazer perguntas e fique com o relógio.
- Não, não posso aceitar. - o entreguei. - é muito bonito, mas me recuso a aceitar. Não adianta insistir.
Antes que ele pudesse objetar, me dirigi ao banheiro, fechando a porta, em seguida.
XX

O bar onde estávamos era rústico, simpático e com algumas iluminações coloridas. As pessoas riam, bebiam e conversavam à nossa volta.
- Dois piscos. - Javier pediu ao barista.
- O que, exatamente, são piscos? - ele riu da minha expressão desconfiada.
- É uma bebida típica daqui. - explicou. - feita da fermentação da uva, como o vinho, mas com um processo diferente. É muito usada para fazer coquetéis.
A aparência amarela da bebida me lembrava suco de maracujá. O tal do pisco desceu queimando por toda a minha garganta. A careta de indignação que fiz foi imediata, fazendo Javier rir por cinco minutos seguidos.

- E então, o que você faz aqui em Lima? - perguntei, depois de desistir daquela bebidazinha demoníaca e pedir um vinho branco, ele, no entanto, bebericava uma cerveja.
- Sou formado em ciências políticas e um dos coordenadores da fundação ADRA. - cruzou as mãos sobre a mesa. - trabalhamos com populações em situação de pobreza, pobreza extrema ou qualquer tipo de risco social. Estou envolvido em projetos com o governo, sabe como é, sempre os pressionando para nos ajudar, melhorando a situação.
- Isso é incrível! - exclamei, admirada. - a minha irmã também fez ciências políticas. É muito ligada à questões filantrópicas, também gosta muito de política, obviamente.
- Uniu o útil ao agradável. - concluiu, dando um gole na bebida. - pouco a pouco, a gente consegue mudar o mundo. É só querer.

Antes de nos despedirmos, eu o chamei.
- Garcia. - falei, recebendo um olhar de dúvida, em troca. - o meu sobrenome.
- Ah. - ele riu. - já sabia.
- Como? - questionei, cruzando os braços.
- Tá escrito na sua pulseira de identificação. - apontou para a fita enrolada em meu pulso.
- Então, não disse nada por quê? - quis saber.
- Estava esperando você me contar. - deu de ombros.
- Como sabia que eu diria?
- Não sabia. - sorriu. - tenho cara de stalker pra você, Adelaide Garcia?
Nos despedimos com um abraço e sorrisos amistosos. Iria embora no outro dia, por isso garanti a Javier que voltaria novamente ao Peru e gostaria de ser apresentada à sua ONG. Definitivamente, fiz um novo amigo.

No outro dia, acordamos bem cedo para fazer as malas. Ao pegar as roupas jogadas na cadeira para dobrá-las, vi alguma coisa brilhando dentro da minha mala, devido a incidência da luz solar, provinda da janela.

Amaldiçoei Javier, seus antepassados, futuros descendentes e todas as lhamas daquele país ao ver do que o objeto se tratava. O rolex dourado. Aquele que fiz questão de recusar. O infeliz enfiara o maldito relógio na bendita mala. Desci, correndo até a recepção, solicitando ao recepcionista o telefone.
- Venha buscar o relógio agora mesmo! - bradei, um pouco alto demais, assim que Javier atendeu.
- Perdão, tive de passar o celular para a minha orelha esquerda, já que você acaba de ensurdecer a outra… - o sono na voz dele era perceptível, quase me senti mal por acordá-lo, quase. - olha, não vou poder buscar o relógio, considere como um presente.
- Javier! - dessa vez, assustei uma senhora ao lado. Respirei fundo, a fim de controlar a voz. - por favor...
- Você acabou de interromper meu precioso sono. Eu trabalho amanhã. - agora, soava irritado. - boa viagem, Adelaide. Cuidado com o relógio. Nos vemos em breve.
- Desgraçado, desligou na minha cara! - coloquei o fone no gancho. A senhora ainda me encarava com reprovação, sorri amarelo para ela e me dirigi ao elevador.
XX

O nosso próximo destino seria Cairo, Egito. O meu exterior estava calmo, enquanto o interior surtava por conhecer o país onde se sucederam todas aquelas histórias milenares e cheias de singularidade. A mitologia egípcia fora a primeira a me cativar, tanto é que a minha primeira gata se chamava Bastet. Tínhamos um periquito também, Hórus. Sei que o símbolo era um falcão - acabei denegrindo a imagem imponente do deus da guerra egípcio - todavia, eu tinha nove anos. Me dá um desconto, vai.

A nós, mulheres, foram dadas orientações de como agir no país, que mesmo sendo sunita, um pouco menos radical, por assim dizer, ainda era muito diferente do Ocidente. No geral, não ficamos muito contentes por mudar as vestimentas e o jeito de nos portar, mas eu, por outro lado, aceitei o fato de que esses costumes deveriam ser respeitados, afinal, uma semana só, não me mataria.

Ao chegar no aeroporto do Cairo, após ter enfrentado dois voos de conexão, estava exausta. Fui direto ao câmbio trocar uma certa quantia de dólares por libras egípcias. Por ser tarde da noite, fomos direto ao hotel para descansarmos. O dia seguinte seria longo.
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Marlene e eu nos preparávamos para o café da manhã, tendo em mente que logo após, enfrentaríamos longas caminhadas, junto com o sol quente. Prendemos o cabelo, cobrindo-o com um lenço. Além da blusa de manga comprida, folgada e branca, envolvi os ombros com uma pashmina azul.

Fomos direto ao parque das pirâmides, lá estavam as grandes Quéops, Quéfren e Miquerinos, sem falar também da famosa esfinge. Havia dúzias de pessoas ali, dentre eles, vários eram os vendedores ambulantes. Ah, os ambulantes. Me policiei a todo instante para manter a educação ao recusar as ofertas, mas eles eram insistentes. Teve um que só faltou se jogar no chão e implorar para que comprasse alguma coisa, mas assim como eles, eu também era extremamente persistente.

A distância entre uma pirâmide e outra era de aproximadamente um quilômetro, então, em determinado momento, peguei a minha garrafa de água térmica. Entre um gole e outro, um ser humano esbarrou em mim, fazendo com que eu derramasse água na minha pashmina e no chão.
- Cuidado por onde anda! - gritei, em português, no ímpeto da irritação. A pessoa que esbarrou em mim era um homem alto, robusto, cuja pele negra contrastava com os tons claros da roupa que usava. Me olhava de uma maneira curiosa.
- Desculpa. - respondeu, também, em português, só que o sotaque parecia ser de Portugal. Ergui as sobrancelhas.
- Você fala português? - perguntei sem pensar, obviamente. Ele cruzou os braços e me encarou com um sorriso irônico. - ah, é claro que fala, desculpa.
- Tudo bem, chega de desculpas. - disse, estendendo a mão. - sou Zaki.
- Adelaide. - o cumprimentei de volta.
- Nome bonito, Adelaide. - o largo sorriso que abriu, me fez estreitar os olhos. - significa “de linhagem nobre”, foi o nome de uma rainha.
- Como sabe? - questionei, cruzando os braços.
- Sou bom com etimologia. - dito isso, ele acenou. - nos vemos por aí, nobre Adelaide. Tente não gritar com pessoas aleatórias, nunca se sabe quando elas falam a sua língua.
- Irritante. - falei, assim que ele estava longe o suficiente para não me ouvir.
- Quem era? - Marlene sorria, maliciosamente.
- Não sei e não me importo, contanto que não o veja, novamente. - saí em direção ao grupo, minha colega apenas deu uma risadinha e me seguiu.
- Alguém coloca um nariz naquela Esfinge. - reclamou, para ninguém em particular. - acho que acabei de desenvolver TOC.
XX

De volta ao hotel, eu e Marle (como passei a chamá-la), além de outras garotas, descobrimos a existência de aulas de dança do ventre lá, achamos engraçado e nos inscrevemos para algumas no turno da noite. Na primeira, rimos bastante umas das outras, porém a professora (que na verdade era espanhola e ensinava dança no geral) chamou nossa atenção para que focássemos se quiséssemos aprender algum passo. Acabou sendo bastante dinâmico.
XX

No quarto dia de viagem, fomos ao shopping, estávamos eu e Marlene na praça. Às vezes, as pessoas lançavam olhares intimidadores para nós, contudo passamos a ignorá-las.
- Eu vou numa loja que vende acessórios ali, você vem? - perguntou, já em pé.
- Pode ir, minhas pernas estão um pouco doloridas. - estava com preguiça de acompanhá-la, na verdade. Assim que saiu, fiquei checando as mensagens no celular, até alguém se aproximar.
- Ora, ora, ora. - ah, não, pensei, o cara das pirâmides. - como vai, Adelaide?
- Está me seguindo? - apoiei o queixo na mão esquerda.
- Lamento informá-la, mas o shopping é um lugar de acesso público. - apontou para a cadeira. - posso sentar?
- Vá em frente. - indiquei com a mão, me recostando na cadeira, em seguida. - de onde você é?
- Angola. - coçou o queixo. - e você é brasileira, não é?
Assenti com a cabeça.
- Percebi pelo sotaque, passei um tempo no Brasil. - notei um colar em seu pescoço cujo pingente era o olho de Hórus.
- Colar interessante. - comentei, intrigada.
- Ganhei de presente do meu pai ao me graduar na faculdade. - vendo meu olhar de curiosidade, prosseguiu. - sou egiptólogo.
- Sério? - arqueei ambas as sobrancelhas. - não é um curso muito popular, certamente não há no Brasil.
- De fato. - concordou. - na Angola, também não há. Consegui uma bolsa em Barcelona.
- Quer dizer que além do português, você fala espanhol e árabe? - bati palmas, discretamente.
- Inglês, também. - acrescentou, com um pigarro e não pude deixar de sorrir. - agora que já sabe sobre a minha profissão, conte-me a sua.
- Arquiteta. - dei de ombros. - nunca conheci um egiptólogo, deve ser interessante. Foi por isso que se mudou para cá?
- Ah, sim. Amo o Egito, não há como negar. - seus olhos brilharam ao proferir tais palavras. - a história e a mitologia deste país é riquíssima, sempre adorei, desde pequeno.
Falamos sobre o Egito Antigo e a minha paixão por monumentos históricos. A conversa foi muito produtiva, era interessantíssimo conversar com alguém que entendia sobre o assunto.
- Amanhã, nós vamos a Luxor. - acabei falando.
- Levarei um grupo de estudantes para lá, amanhã. - cruzou os braços, novamente um brilho se instalara em seus olhos. - quem sabe a gente não se encontra… novamente.
- Eu disse que você estava me perseguindo. - brinquei.
- Admito. - entrou na brincadeira. - eu leio mentes.
- Você não me assusta, Edward Cullen. - estreitei os olhos para ele, que riu.
Um tempo depois, uma Marlene surpresa ao encontrar o cara do dia anterior me chamou para voltarmos à entrada do shopping, ponto de encontro combinado pelo grupo antes de nos separarmos.

À noite, na aula de dança do ventre, a minha colega de quarto encheu-me de perguntas sobre Zaki, ou o cara misterioso das pirâmides, a como se referiu.
- Acho que estou pegando o jeito. - ela disse, rebolando ao som da música da aula. Ri tanto que a minha barriga doeu, depois descobri que era fome, mesmo. Pedimos um falafel e conversamos sobre dança com a professora espanhola.
Antes de dormir, preenchi os relatórios acumulados dos últimos dias.
XX

Pela manhã, me equipei com garrafas de água extras e passei mais um pouco de protetor solar, pois caminharíamos bastante. A primeira parada foi o Vale dos Reis, onde, por um período de quase 500 anos entre os séculos XVI-XI a.C., tumbas foram construídas para faraós e poderosos nobres do Império Novo. Apesar de ter sido tombado como Patrimônio Mundial da UNESCO, ainda havia escavações no vale.

Depois, chegamos ao Templo de Hatshepsut, a primeira mulher faraó da história. O grupo se espalhou para olhar mais de perto. Fiquei um pouco ao longe, na esperança de pegar um bom ângulo para a foto. Ouvi uma voz de homem, próximo dali onde estava. Um árabe comentava algo com outro ao seu lado, ambos olhavam direto para mim, sorri brevemente, sem mostrar os dentes, para disfarçar o constrangimento.
Assim que o fiz, arrependi-me amargamente, pois eles começaram a rir e a cochichar ainda mais. Minhas mãos começaram a suar, o coração palpitava na velocidade de vários cavalos, não havia mais ninguém muito próximo. Eu os ignorei, segurando a câmera mais firmemente e tentando me concentrar nas fotos.

Depois de tanta risadas e outros cochichos em outra língua, a qual não entendia uma palavra, olhei de soslaio para eles. Estavam se aproximando de mim. Xinguei baixinho. Claramente, eles entenderam o gesto como um cortejo. De repenter, pararam de andar, arregalando os olhos para trás de mim. Ao virar, bati de frente com alguém, recebendo um beijo rápido nos lábios, o que me fez recordar das aulas de beijo técnico no teatro. Era Zaki. Arregalei os olhos para ele, que olhava de forma intimidadora para os dois caras atrás de mim, rapidamente deram meia volta.
- Mas que diabos...??!! - definitivamente, não era do meu agrado ser pega de surpresa.
- De nada. - disse, simplesmente, virando-se de costas e começando a andar em direção ao templo. Fiquei estática por alguns segundos, antes de seguí-lo.
- Poderia ter afastado os caras de outro jeito, você sabe. - falei, esfregando as mãos umas nas outras.
- Eu beijo tão mal assim? - parou de andar, cruzando os braços.
Senti o meu rosto queimar. Mas que droga, Adelaide!, pensei. Zaki gargalhou, jogando a cabeça para trás.
- Não é isso… - comecei, pigarreando. - podia ter sido mais discreto, né?
- E se eu não quisesse ser mais discreto? - agora, me encarava nos olhos.
- Você é bem atrevido, sabia? - era a minha vez de cruzar os braços. Novamente, ele riu e apertou as minhas bochechas.
- Você que é muito esquentadinha. - voltamos a andar. - por acaso, sorriu para eles?
- Sim… - franzi o nariz ao lembrar daqueles estranhos. - mas foi só porque eles olhavam diretamente para mim, como se fosse um pedaço de carne exposta e olha que eu estou toda coberta.
- Tem de tomar cuidado com isso. - alertou, um pouco tarde demais. - os homens aqui costumam entender qualquer gesto desse tipo como um convite. Mais um pouco e já estariam pedindo você em casamento.
- Nossa. - balancei a cabeça. - preciso beber alguma coisa.
- Brasileiros… - abriu um sorriso largo.
- Ei! - objetei. - quis dizer uma água ou suco…
- Sei… - bufou, ambos sabíamos a verdade. - aqui está o meu número. Não será de grande ajuda, caso precise salvá-la no Brasil, contudo se retornar ao Cairo, pode ligar.
- Muito engraçado... - falei, sarcástica, pegando o cartão de sua mão. - mas eu não preciso ser salva.
- Tenho certeza de que não. - pelo jeito como falou, percebi que estava sendo sincero. Ao nos despedirmos, pude jurar que esta não seria a última vez que o veria na vida.
XX

Era a quinta e última aula de dança do ventre. Já me considerava uma profissional. Tá. Tudo bem. Na verdade, não levava o menor jeito para a coisa, entretanto consegui aprender os passos, sem falar da minha desenvoltura que estava melhor, segundo a professora, porém ela também já disse que o jogador Piqué a pediu em casamento - antes de conhecer a Shakira - porém foi recusado, então há controvérsias.

No penúltimo dia na cidade, fomos ao Khan el Khalili, um bazar gigante no coração do Cairo. Possuía estreitas ruelas com milhares de pequenas tendas com toda a sorte de mercadoria. Estava repleto de gente, como sempre, assim disse o guia. Levei uma quantia de dinheiro razoável, pois fui alertada quanto a tentação de comprar tudo que vir pela frente.

Não havia como negar, era mesmo tentador. Ali se vendiam sapatos, tecidos, joias, alimentos, perfumes e afins. O cheiro de especiarias do lugar ficaria nas minhas memórias por um bom tempo. Uma tenda com tapeçarias espetaculares, bordadas à mão, me chamou a atenção. Não levei nenhuma porque o espaço ocupado na mala seria muito grande. Ao lado, havia uma cheia de souvenirs variados. Tinha até um globo de neve contendo a Estátua da Liberdade, não fazia muito sentido. Eu o agitei, fazendo a neve falsa chacoalhar.

Mesmo não tendo nada a ver com o Egito, comprei-o mesmo assim, junto com uma múmia de brinquedo, a qual continha uma cordinha, que ao puxá-la, fazia a múmia andar como nos filmes. Notei a moeda de uma libra no troco, achei peculiar por possuir a efígie de Tutancâmon, com certeza, a guardaria de lembrança.

Fizemos uma parada no café El-Fishawy, há duzentos anos, aberto vinte e quatro horas. Apesar de estar cheio, todos conseguiram uma mesa. Eu pedi uma coca, já Marlene, uma pepsi. Havia homens e mulheres bebendo chá de hortelã, refrigerantes, água e alguns até fumavam narguilé. Marlene inventou de fumar também, se arrependendo logo após a primeira tragada. Passou o resto do passeio tossindo e jurando aos deuses que não o faria novamente.
- Odeio dizer isso… - comecei, recebendo dela um olhar mortal, que ignorei, continuando mesmo assim. - mas eu te avisei.
- Eu… - tossiu duas vezes. - sei.
- Anime-se, Marle, tem coisa que a gente só descobre viajando. - dei dois tapinhas em seu ombro, fazendo-a revirar os olhos.
XX

À tarde fomos à Mesquita Citadel, comissionada por Muhammad Ali entre 1830 a 1848. Era regra, as mulheres tinham de entrar totalmente cobertas, deixando apenas a cabeça de fora. Tinha de tirar os sapatos e colocá-los um contra o outro (sola com sola) num canto específico. A mesquita otomana foi a maior construída na primeira metade do século 19, em homenagem a Tusun Pasha, filho de Muhammad Ali, sua silhueta vivaz, junto com as torres gêmeas, fazia dela a mais visível em todo o Cairo.
XX

No sétimo e último dia, conhecemos a pirâmide de Djoser, erguida para o sepultamento do faraó de mesmo nome, localizada em Saqqara. Ao contrário das pirâmides de Gizé, não era necessário pagamento extra para conhecer o seu interior.
- Sabia que, originalmente, esta pirâmide alcançava 62 metros, com uma base de 109 por 125 metros... - como uma criança pequena questiona um adulto, fiz o mesmo com Marlene. - e, além disso, era revestida por pedra calcária branca polida?
- Ninguém quer saber. - amarga, olhou para o outro lado. - aliás, de onde você tirou isso? Não lembro do guia falando, só podia ser coisa de arquiteto mesmo…
- Ah, não. - sorri, brincalhona. - pesquisei no Google, ontem à noite.
- A única gota de respeito que eu sentia por você, acabou de se esvair. - empurrou o meu rosto para trás com a mão, me fazendo gargalhar.
- Délia! - Uma das garotas do grupo, chamou. Ela se abanava com um leque.
- Olá, Elena. - cumprimentei.
- E aí? - afrouxou o lenço no pescoço. - O que está achando daqui? Legal, né?
- É… - olhei para o lado, esfregando a mão no braço. - para ser sincera, eu sempre quis conhecer este lugar. De fato, os monumentos são incríveis e tudo o mais. Mas, não era o que pensava. O Cairo é uma cidade bem caótica, o museu principal, infelizmente, é mal cuidado, pois a curadoria é precária. O jeito como tratam a mulher aqui… me assustou um pouco… quer dizer, sabia que não seria perfeito, porém o choque cultural foi grande. A parte histórica é maravilhosa, mas no geral, muitas mudanças precisam ser feitas.
- Isso não te lembra algum país? - cruzou os braços. Dei um sorriso fraco, em retorno. - O qual conhecemos muitíssimo bem?
- Tem razão. - suspirei. - talvez por isso eu tenha me decepcionado. Mas, sabe, nada que me impeça de vir aqui novamente.
- Idem. - concordou. Acompanhamos o grupo em silêncio. Uma chuva de pensamentos filosóficos e reflexões existenciais invadiu a minha cabeça. Ironicamente, acabei entrando no clima do próximo país, sem perceber.
XX

Duas horas de voo depois, eu estava contemplando a esplendorosa Grécia - Atenas, para ser mais precisa - berço da civilização ocidental. Terra da filosofia, democracia, historiografia, Jogos Olímpicos e mais um monte de coisas das quais não me recordo, no momento.

Como primeiro destino, subimos até a Acrópole, onde estavam situados o Partenon e o Erecteion. Ali, do topo da colina, era possível enxergar a histórica e magnífica cidade de Atenas. As diversas casas e edificações abaixo formavam um colorido muito interessante. Eu tentava tirar uma selfie com o Partenon sem que aparecesse os andaimes. Marlene prontamente se ofereceu para me ajudar a achar um ângulo bom.
- Hoje à noite, vou visitar um amigo. - ela começou, tirando uma barrinha de cereal da bolsa. - quer vir?
- Legal. - empurrei os óculos de sol, mais para cima, no nariz. - ele é brasileiro?
- Ah, não. - respondeu, mordendo a barrinha. - grego mesmo.
- E você fala grego? - arqueei uma sobrancelha.
- Claro que não, seria mais fácil domar o Minotauro. - fez careta. - nos falamos em inglês.
- Certo. - sorri, zombeteira, pousando as mãos na cintura. - tudo bem, Teseu. Vou com você.
- Teseu não domou o Minotauro. - cruzou os braços. - ele o matou.
- Tá, tá. - abanei o ar, então ouvi o guia nos chamar para irmos embora. - vamos nessa, Ariadne.
- Você não vai parar nunca, vai? - balançou a cabeça, jogando a embalagem da barrinha de cereal no lixo mais próximo.
- Acostume-se. - falei, marchando em direção ao resto do grupo, sendo seguida por ela.

Às 18 horas, como dito por Ariad… Marlene, fomos à casa do tal amigo, de bicicleta. Alugamos duas porque, segundo a fotógrafa, demoraríamos se fôssemos a pé, mas o trajeto não era muito longo percorrer com a bicicleta. O vento no rosto era agradável, passamos por várias ruas e ruelas estreitas muito bonitas, que destacavam a beleza da arquitetura grega. Aspirei o cheiro de comida que emanava dos cafés ao redor quando chegamos ao pequeno prédio branco de esquina.
- Já esteve aqui antes? - questionei, arfando, enquanto subíamos as escadas.
- Sim. - Marle tomava a dianteira. - duas vezes, mas foi muito breve. Nunca parei para conhecer a cidade melhor.
- Se conhecem há muito tempo? - pus as mãos no joelho, ao pararmos em frente a primeira porta do terceiro andar.
- Você é muito mole. - disse, apertando a campainha, em seguida. - Nos conhecemos há uns cinco anos no Brasil e mantemos contato desde então.
- Marlene! - exclamou o grego, ao abrir a porta. Era mais alto do que ela e menor do que eu, tinha olhos verdes escuros e um sorriso cordial.
- Olá, Nikolas. - o abraçou, logo depois, olhou para mim. Acenei para ele com os dedos. - essa aqui é a minha amiga, Adélia.
- Prazer em conhecê-la. - disse, abraçando-me também. - entrem, por favor.
A casa era simples, mas ao mesmo tempo, acolhedora.
- E então, Nik… - nós sentamos no sofá. - como vão as coisas?
- Bem, estou planejando me mudar. - anunciou, tirando a almofada das costas e a jogando numa poltrona ao lado.
- Por que? - ela quis saber. - para onde vai?
- Brasil, as belezas de lá, muito me encantam. - sorriu, maliciosamente, porém antes que Marlene pudesse dizer alguma coisa, continuou. - as coisas por aqui estão um pouco difíceis. O restaurante vai bem, por enquanto. Pretendo vendê-lo ao meu primo. Pesquisei cursos de gastronomia especializados no país de vocês, quero aprofundar os meus conhecimentos.
- Isso é ótimo. - sorriu também. Começaram a falar sobre viagens e comida, aos poucos entrei no assunto, e logo, estávamos todos rindo, falando sobre tudo.

- Vocês devem estar com fome, assim como eu. - Nik falou, levantando-se do sofá. - vou cozinhar o jantar.
- Podemos ajudar? - a minha amiga se levantou, junto comigo.
- Não precisam se incomodar.
- Não é incômodo algum. - falei por ela. - além do mais, gosto de aprender coisas novas.
- Sendo assim… - deu de ombros. - vou ensiná-las a fazer moussaka.
O prato lembrava uma lasanha, só que sem massa. Consistia em uma combinação de berinjelas, carne de cordeiro moída, tomate, cebolas, azeite, molho branco e mais um monte de temperos. Dividimos as tarefas sobre quem fazia o quê. Eu gostava de cozinhar, com certeza, tentaria a receita nova em casa, só que sem a carne de cordeiro.
- Peguem um vinho na adega para nos servirmos. - pediu, tirando o avental.
A comida estava deliciosa. Bebemos e passamos mais tempo conversando, antes voltarmos ao hotel.
XX

No dia seguinte, fomos ao Museu Arqueológico Nacional de Atenas, um dos mais importantes museus de antiguidade do mundo. Observando as estátuas, automaticamente, me encantei pela cópia reduzida da Atena Partenos, a magnífica estátua da deusa de mesmo nome, com os seus doze metros, que, no passado, estava localizada no Partenon, antes de se perder na história.
- Queria que alguém me olhasse do mesmo jeito que você olha para essa estátua. - Marlene imitou um suspiro apaixonado, fazendo com que eu revirasse os olhos.
- Aquele seu amiguinho lá, te lançava uns olhares bem peculiares. - impliquei.
- Impossível. - fez uma cara tediosa. - nem mesmo que eu quisesse. Somos apenas amigos.
- Sei. - cocei o canto do olho e ela me ignorou. - vem, vamos ao setor de arquivo fotográfico.
Acabou que perdi a noção do tempo na Coleção Micênica. Continuaria lá até o museu fechar, se o guia não tivesse me chamado. Passeamos pelo bairro antigo de Plaka, perto da Acrópole. As ruas eram um pouco labirínticas, no entanto, muito bonitas. Almoçamos num dos diversos restaurantes localizados por ali. Depois,
fomos ao Templo de Hefesto, o templo grego antigo mais bem preservado do mundo. Me rendeu ótimas fotos e mais uma boa lembrança.
XX

No quarto dia de viagem, fizemos compras no mercado de pulgas Monastiraki. Havia livros antigos, artesanato em couro, joias e outros artigos. Aproveitei para comprar algumas peças de roupa, visto que com a crise, os descontos eram enormes e facilmente se conseguia pechinchar.

Quando a fome bateu, comprei um gyros - espécie de sanduíche grego, que tem em sua montagem a Kafta, o Tzatziki e vegetais - e continuei andando. Antes de irmos embora, apreciamos uma banda de jazz improvisada que tocava por ali.

Às 21 horas da noite, embarcamos num pequeno cruzeiro em direção à ilha de Creta. Chegamos em Heraklion, capital da ilha, por volta das 9 horas da manhã do outro dia. Conhecemos o Museu Arqueológico de lá. Uma história longa de seis milhões anos era apresentada no museu, através de achados do período Neolítico até os anos Romanos. De lá, visitamos um dos grandes atrativos da ilha, Cnossos.

O Palácio de Cnossos ficou famoso devido à lenda de que o rei Minos, de Creta, mandou construir um imenso labirinto embaixo do palácio, habitado por um minotauro. O labirinto permanece um mito, porém o palácio realmente existiu, ainda que hoje só sejam as ruínas. Construído em cerca de 1900 a.C., era o maior e mais importante palácio minoico. Era muito grande, chegando a ter 5 andares e 1300 divisões, que funcionava como um microcosmos, uma pequena cidade com muitas casas pequenas, paredes ricamente decoradas, um fabuloso sistema de canalização e espaço para as cerimônias religiosas.
- Olha, Ariadne. - cutuquei Marlene no braço com o meu cotovelo. - chegamos ao seu palácio.
- Não, enche, Délia. - revirou os olhos, porém exibia um sorriso. - vou sair por aí com uma plaquinha, “quem quer ser o meu Teseu?”.
Não pude deixar de rir da expressão dela.
- Olha, eu acho que não seria uma boa ideia, já que ele abandonou a mulher numa ilha. - pus uma das mãos na cintura. - Teseu enganou muitas mulheres, incluindo a rainha das amazonas.
- Canalha. - resmungou. - devia ter sido comido pelo minotauro.
- Aliás, que coisa estranha, não? - questionei, com a mão no queixo. - um animal herbívoro devorando pessoas.
- Ele era metade homem. - corrigiu, como se fizesse muita diferença. - meu bem, há tantas coisas esquisitas na mitologia grega, tipo uma deusa que nasce da espuma do mar, um titã que devorou os filhos, sendo enganado por uma pedra enrolada num pano, e você tá achando esquisito um touro comendo gente?
- Tem razão. - conclui, nos encaramos seriamente por uns dez segundos, antes de rirmos feito loucas. Que tipo de conversa era aquela?

Saímos para Hania, pegando outro ônibus para chegarmos a Omarlos, onde passamos a noite.

Em nosso último dia na ilha, penúltimo na Grécia, fizemos trekking no Parque Nacional da Garganta de Samaria. Rica em diversidade biológica, o lugar possuía várias espécies de animais e vegetais que não eram encontrados em nenhum outro lugar.

Os primeiros quilômetros foram apenas descidas, os quais me renderam muitas risadas a cada vez que a minha amiga fotógrafa deslizava e praguejava. Em determinado ponto, demos de cara as “Portas de Ferro”, ou Sidiroportes, era o ponto mais estreito da Garganta, paredes separadas por meros três metros, ninguém, além de mim, pareceu muito incomodado. Atingimos o final do Parque, ao todo, cinco horas depois, o que nos deu tempo para conhecer um pouco mais da cidade de Hania, antes de regressarmos a Atenas.

Estávamos no aeroporto, aguardando a chamada para o voo de conexão a Istambul, quando Nikolas, o meu mais novo amigo, apareceu. Eu o abracei e avisei que Marlene foi ao banheiro.
- Tudo bem, então. - disse, segurava duas caixinhas de presente nas mãos. - entregarei o seu presente primeiro.
- Não precisava se preocupar! - aquela clássica desculpa usual. É claro que adorava ganhar presentes. - eu nem comprei nada para você.
- Ah, mas isso não foi comprado. - declarou, entregando-me a caixinha. - eu mesmo esculpi.
- Como… - perguntei, abrindo o presente, mas parei, ao ver do que se tratava. Uma escultura, bem pequena, do deus Hermes. - que maravilha! Eu adorei, muito obrigada.
- Marlene me disse que além de fã da mitologia, você também gostava de viajar. - deu de ombros. - nada melhor do que levar consigo o deus dos viajantes.
- Muito bonita, mesmo. - enrolei-a no plástico bolha, com cuidado, e a coloquei na mala, por entre as roupas. - quer dizer que, além de chefe de cozinha, você também é escultor?
- É só um passatempo, mesmo. - coçou a parte traseira da nuca. - meu avô quem me ensinou. A tradição está na nossa família há muito tempo.
- Imagino. - sorri. Logo, Marlene retornou para se despedir do amigo, o presente dela era uma escultura, também pequena, porém dela mesma. Não há como descrever em palavras a sua reação ao ver a mini Marlene, segurando uma mini câmera fotográfica.

- Por que fez aquela cara quando falei sobre o jeito que Nik te olhava, no museu arqueológico? - questionei, assim que ele foi embora.
- Adélia. - suspirou, lá estava aquela cara tediosa, novamente. Falava no mesmo tom que eu usava para explicar algo ao meu primo de cinco anos. - ele é gay.
- Ah. - falei, antes mesmo de processar o que havia escutado. Arregalei os olhos, assim que a ficha caiu. - Aaahhhhh.
- Você é muito lerda. - revirou os olhos. - quando ele falou sobre as belezas do Brasil, não estava se referindo à paisagem ou às mulheres.
- Quer dizer, então, que Nikolas, realmente, curte um deus grego? - perguntei, em tom de malícia.
- Quem de nós não? - retribui o tom, dando uma piscadela para ela, em seguida, que riu.
XX

Este fora o voo mais cansativo de toda a viagem, contudo teria sido muito pior se tivéssemos partido do Brasil à China. Enfrentamos um congestionamento horrível no caminho para o hotel. Sentei com Marlene num sofá ao lado do balcão de recepção. - Pequim já perdeu pontos comigo. - cruzei os braços, fazendo bico. - a poluição do ar também não ajuda.
- Talvez devesse esperar para conhecer um pouco mais da cidade, antes de fazer esta constatação. - uma voz, masculina, falou, o tom era simpático. Arregalei os olhos ao ver o rapaz, com características chinesas, parado ao meu lado. - Peço perdão pela intromissão, meu nome é Cheng Wu, fui contratado como um guia à parte da excursão de vocês por Pequim.
- Seu sotaque é muito bom. - tentei desviar do assunto. Marle soltou uma risadinha, acenando para o novo guia.
- É que eu trabalhei por alguns anos na agência do Brasil. - os braços estavam para trás, exibia um sorriso gentil. - voltei para cá no ano passado.
- Legal. - comentou Marlene.
- Bem, se me dão licença, moças, foi um prazer conhecê-las, mas tenho de ir. - acenou e olhou para mim, antes de sair. - espero que consiga mudar sua visão sobre a minha cidade.
- Se ferrou. - Marle disse. - quem mandou sair por aí falando mal da cidade dos outros?
- Como eu adivinharia que ele fala português? - joguei uma almofada nela, que desviou.
- Errou. - disse, ao se levantar. - errou feio, errou rude.
- Você é ridícula. - revirei os olhos, enquanto ela exibia um sorriso infantil.

No primeiro dia efetivo em Pequim, nosso destino era A Cidade Proibida, que chamava-se assim, pois somente o imperador, sua família e os empregados especiais podiam entrar no conjunto de prédios do palácio. Qualquer outra pessoa que atravessasse seus portões sem autorização estava sujeita a uma execução sumária e dolorosa. Ao que parece, eles levavam mesmo a sério aquela plaquinha de “apenas pessoal autorizado”. O local foi palácio imperial da China desde meados da Dinastia Ming até o fim da Dinastia Qing, funcionando como centro cerimonial e político do governo chinês.

Comecei a fazer várias anotações e prestar atenção no que o guia dizia. O complexo de prédios formava uma cidade dentro de outra. Era imenso. Construído entre 1406 e 1420, consistia em 980 edifícios e cobre 720.000 metros quadrados. Um perfeito exemplo da arquitetura palaciana tradicional chinesa. Definitivamente, maravilhoso, se quer saber. Talvez, eu tenha mesmo subestimado um pouco a China.
- Todo esse ar de tradicionalismo chinês me deixou inspirada. - Marlene começou, gesticulando com as mãos e aspirando exageradamente. - vou me vestir de gueixa no próximo Carnaval.
- Gueixas são japonesas. - corrigi, mas sem prestar muita atenção. Estávamos no hall da Suprema Harmonia e, no momento, eu me concentrava no Trono do Dragão, onde reinaram os imperadores das dinastias Ming e Qing. Aquele assento, com certeza, ficaria divino na minha sala de estar.
- Não se cansa de ser tão nerd? - perguntou, em tom entediado.
- Não se cansa de ser tão ignorante? - rebati, desviando o olhar do trono para ela, que me encarava com a boca semi aberta.
- Doeu em mim. - comentou um dos rapazes que fazia parte do nosso grupo. Ele segurava a risada. - eu não deixava.
- Fica na sua. - a minha amiga mandou, depois virando-se para mim. - me desculpe, vossa Senhoria, detentora da sabedoria e do conhecimento universal, não quis insultá-la com a minha leiguice.
- Está desculpada. - sorri, implicante. Ela, no entanto, mandou uma dedada, chocando algumas pessoas ao redor - uma mãe até cobriu os olhos do filho, fazendo uma careta reprovadora para Marlene - o que a fez abaixar a mão envergonhada, acenar para eles, discretamente, e assoviar, como faziam nos filmes. Cobri a minha boca com a mão, na tentativa de controlar o riso.

Fomos almoçar no McDonald’s, que ficava em frente ao parque onde se localizava o Templo do Céu, para não perdermos muito tempo, já estávamos na metade da tarde.
- Me sinto tão chinesa comendo nesse lugar. - minha colega de quarto, falou, sarcástica, ao morder o seu Big Mac.
- Veja pelo lado positivo, pelo menos, a gente aprendeu a pedir hambúrguer em mandarim. - limpei a boca com o guardanapo, antes de repetir o que Cheng, o guia turístico, nos ensinara na fila. - Wǒ yào yīgè hànbǎo, qǐng.
- É, ao menos, se nos perdemos aqui, a gente vive de McDonald’s pra sempre. - fez careta, depois de dar um gole no refrigerante.

No segundo dia, fomos à Grande Muralha da China. Não preciso nem falar o quão deslumbrada fiquei. A parte onde estávamos era mais afastada, era mais tranquila, não havia quase ninguém pela manhã.

Em determinado momento, me vi conversando com Cheng, enquanto andávamos pelo parque JingShan. Afastei a blusa de manga comprida do antebraço para coçá-lo, quando o guia olhou do meu braço para mim.
- O que significa Wanderlust? - a intriga, estampada em seu semblante. Estava se referindo à minha tatuagem.
- Sede por viagens. - sorri, discretamente. - queria alguma coisa que combinasse comigo. É algo muito significativo para mim. Minhas melhores lembranças da infância são das viagens que fiz com meus pais, pois aprendi muitas coisas. Viajar é… meu esporte favorito, por assim dizer.
- Poético. - coçou o queixo, pensativo. - gostei, muito legal, mesmo.
- Falando em poético, - comecei, o encarando. - você parecia bem inspirado ao falar sobre o Templo do Céu.
- É. - abriu um sorriso, orgulhoso. - fico bem feliz em estar conectado à minha religião. Sou taoista, sabe? As pessoas não conhecem muito sobre a nossa filosofia. Fiquei feliz em compartilhar com todos um pouco do que sei.
- Achei bastante interessante. - fui sincera. - confesso, sei apenas sobre o Yin e Yang.
- Essa parte é bem conhecida mesmo, mas nem todos sabem no que consiste. - olhava para a frente, como se rebuscasse algo em sua mente. - Trata-se do dualismo. A oposição e combinação dos dois princípios básicos Yin e Yang do universo. É uma grande parte da filosofia básica. Algumas das associações comuns com Yang e Yin, respectivamente, são: masculino e feminino, luz e sombra, ativo e passivo, movimento e quietude. Acreditamos que nenhum dos dois é mais importante ou melhor do que o outro, na verdade, nenhum pode existir sem o outro, porque são aspectos equiparados do todo. São, em última análise, uma distinção artificial baseada em nossa percepção das dez mil coisas, portanto é só a nossa que realmente muda.
- Uma filosofia muito bonita, de fato. - refleti sobre suas palavras, este tipo de assunto sempre me interessou. Caminhamos mais um pouco, antes do grupo retornar ao hotel, dessa vez, em silêncio.

No outro dia, visitamos o Palácio de Verão, o que era irônico, pois aqui enfrentávamos o inverno. Demoramos um pouco mais para chegar, devido ao fato de ser mais afastado do centro de Pequim. Conhecido na China como os “Jardins da Perfeita Claridade”, (Yuánmíng Yuán), originalmente chamado de “Jardins Imperiais”, era, na verdade, um grande parque composto por muitos palácios, templos e jardins agrupados. Foi construído no século XVIII, terminado no início do século XIX. Lugar onde os imperadores da Dinastia Qing residiam e tratavam de assuntos governamentais.

As pessoas andavam sobre o lago congelado, vez ou outra, escorregavam, caindo de bunda no chão. Achei tudo bem cômico, enquanto Marlene reclamava da minha mania de rir das desgraças alheias.

Passamos o dia inteiro aproveitando a atmosfera do ambiente. Dentro do complexo, alguns pontos eram imperdíveis. O Pagode do Incenso Budista, no topo da Colina da Longevidade, era um deles. Erguido sobre uma base de pedra com 20 metros de altura, o pagode tinha uma altura de 41 metros e possuía três andares. Era suportado por oito pilares. Todo trabalhado em madeira, pintado à mão com cores vivas, como muitos outros palácios e templos, ícones da arquitetura chinesa e de suas milenares dinastias. Ele realmente se destacava às margens do lago Kunming. Sem dúvida nenhuma, essa foi a melhor parte da viagem, para mim, é claro. A arquitetura chinesa acabara de me conquistar por completo.
XX

Para a minha tristeza, passei os dois dias seguintes doente. Talvez devido ao tempo e à baixa imunidade, adoeci completamente. Dor de cabeça, febre, muitos espirros e tosses. Sorte que eu trouxera remédios. No fim da noite, quando chegava do passeio, Marlene contava-me sobre o que fizeram.

Melhorei o suficiente para sair, já no penúltimo dia de viagem. A tempo de conhecer o Museu Nacional da China, que, por sinal, era gigantesco, não era à toa que estava entre um dos maiores museus do mundo. História, religião e política andam de mãos dadas neste museu. Eram, mais ou menos, um milhão de itens na coleção. Obviamente, não foi possível ver tudo. Passei mais tempo conhecendo sobre algumas dinastias de interesse próprio. O lugar era composto por artefatos preciosos, como as raras peças em porcelana, joias antigas em ouro e prata, moedas antigas e objetos de jade do período neolítico. Tudo explicitava a grandiosidade daquele país.

O último dia foi um dos melhores, andamos por Wangfujing, onde havia uma feira de rua, repleta de barraquinhas com comida, um dos melhores jeitos de se conhecer uma cultura nova. Os aperitivos eram bastante exóticos para nós, ocidentais, como: cobras, escorpiões, lacraias, besouros, sapos, estrelas-do-mar, enguias, e até, filhotes de tubarão inteiros. Havia coisas normais, também, como frutas e doces.

Desafiei a minha cara fotógrafa a comer um espetinho de escorpião. Ela recusou, como uma criança rejeita brócolis, zombei dela, por isso. Entretanto a mesma retrucou, mandando que eu comesse um besouro. Usei a desculpa da doença, embora não a tenha convencido.

Por ser tradição em toda viagem, comprei souvenirs. Uma miniatura de Shishi, ou, leão chinês, como é chamado. A crença era que ele possuía poderes mágicos e a capacidade de repelir espíritos maléficos. Tradicionalmente, montava guarda do lado de fora dos portões dos templos, embora estes sejam mais frequentemente guardados por protetores Nio. O Shishi aparece com sua boca aberta, para assustar os demônios, ou fechada, para abrigar e manter os bons espíritos.

Despedi-me de Cheng, entregando-o um cartão-postal de Nova Iorque, a minha primeira viagem internacional, eu o mantinha comigo porque sempre acreditei ser o meu amuleto da sorte. Quis presenteá-lo com isso por significar um momento especial na minha vida, o momento em que descobri a minha sede por viagens. Ele, é claro, sentiu-se lisonjeado e extremamente grato. Admiti que a China me inspirou de um jeito único. Realmente, fora melhor do que pensava. Nos despedimos com um abraço cheio de boas energias.

De volta ao Brasil, eu estava infinitamente exausta. Aquele medo clássico me dominou, no momento em que passei pela alfândega. Temi ter excedido o limite, porém deu tudo certo. Finalmente, chegou o momento de despedir-me da minha nova amiga aloprada, contudo extremamente gentil.
- Pegou meu número? Facebook? E-mail? Endereço? - listou, enquanto digitava algo no celular.
- Sim. - sorri. - você não vai se livrar de mim, nem fazendo a mais forte de todas as mandingas?
- Falando em mandinga, eu tenho família em Nova Orleans. - contou, animada. - O que acha de irmos no Mardi Gras?
- Ah, meu Deus! - nós duas rimos. - adoraria ver você bancando a universitária e fazendo “beads for boobs”, no meio do French Quarter.
- Eu sou uma moça de família. - puxou a barra da blusa um pouco para baixo, erguendo o queixo. - mais respeito, por favor.
- Claro. - ironizei. Em seguida, trocamos um abraço forte, além de um “te vejo em breve, sua louca”. Percebi ali que arranjei uma nova parceira de viagens.

- Me conta tudo. - pediu a minha irmã, assim que entrei no carro.
- Agora, não. - fechei os olhos, ouvindo Amélia protestar. - acabei de chegar da China. Eu mereço uma boa noite de sono, antes de mais nada.
- Tudo bem, é justo. - rendeu-se. Pude ouvi-la suspirar. - e então, matou a sua sede?
- Nunca. - sorri, me aconchegando no banco do carona. - sou como uma vampira, só que, ao invés de beber sangue, consumo viagens. Portanto, é fato que a minha sede pode ser aplacada, apenas, momentaneamente.
- Ok, Drácula. - zombou. - só faz o favor de não babar no banco do meu carro.
- Tarde demais. - brinquei, recebendo um tapa na perna. - concentre-se na estrada, irmãzinha. Sou muito nova para morrer.

E assim, encerraram-se as minhas férias. Todavia, Wanderlust ainda estava ali, no meu antebraço esquerdo, para relembrar-me todos os dias, que eu voltaria a satisfazê-la, novamente.



Fim.





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