Red







Se em algum dia de toda a sua vida você presou o conhecimento, reveja seus conceitos, pois eu posso afirmar que a ignorância tem a sua beleza singular, seu próprio modo de reconfortar as pobres almas que buscam refúgio da verdade. Eu queria ser ignorante, mas uma vez que o conhecimento toma posse de si, ele não te solta, assim como um cachorro faminto com um osso. Você é obrigado a conviver com todas as verdades, desvendando todas as mentiras, e deixando sua mente aguçar sua curiosidade com os mais diversos mistérios da vida.
Eu desejava do íntimo do meu ser apenas esquecer.
Esquecer tudo que eu sabia a mais que a maioria, o que eu sabia pela minha curiosidade.
Eu estava quase dormindo no sofá do meu apartamento quando ouvi o som característico de algo cortar o ar em queda livre, acompanhado do estrondo distante de algo atingindo a calçada vários andares abaixo. Olhei institivamente para a TV posicionada exatamente no centro da sala, pensando que talvez algum filme tivesse me pregado uma peça, mas o aparelho estava desligado. Decidi checar o que acontecera, chutando a fina manta que me cobria para o chão antes de seguir para a porta da sacada. Uma brisa gelada me recebeu, mas não foi isso que fez com que todos os pelos do meu corpo se arrepiassem: ao me debruçar na sacada, me deparei com uma silhueta estatelada no chão, cercada por um líquido de tom escuro que, mesmo com a distância, era de um inconfundível vermelho vivo e fresco.
Amelia Downey morava no apartamento acima do meu, e agora estava no completo abandono no concreto da rua deserta, com seu sangue se misturando à água que escorria pela valeta.
Fiquei pendurado ali por alguns longos minutos até quando as primeiras viaturas chegaram. Mesmo depois que o corpo de Amélia foi retirado, eu apenas permaneci, tomado por um certo fascínio pela cena, por aquele tom de vermelho que, mesmo depois de quase uma hora, ainda parecia fresco, quente...
Bonito.
Quando minhas pernas já começavam a fraquejar, o som irritante da campainha do meu apartamento chegou aos meus ouvidos, sendo acionada mais vezes do que o bom senso permitia, e mesmo assim eu devo ter demorado pelo menos dez minutos para conseguir virar a cabeça em direção à porta – o máximo de movimento que eu consegui fazer –, ainda com as mãos firmes na madeira da sacada, como se minha vida dependesse disso.
Não demorou muito para que eu ouvisse o som da porta sendo aberta, e passos apressados correndo para dentro do meu apartamento. Uma mão quente tocou de leve meus ombros desprotegido pela camiseta regata que eu vestia, e um perfume floral me atingiu, fazendo com que aos poucos eu me virasse para a pessoa que invadira minha casa, tomado pela curiosidade.
- Senhor... Está tudo bem? – me perguntou uma voz calma e macia. A dona da voz era uma mulher que se passava pela minha altura com o auxílio de saltos, com longos cabelos negros que caiam pela lateral do seu corpo protegido por um grosso casaco, dona de enigmáticos olhos castanhos escuros, rosto de certa delicadeza e olhar determinado. Eu vi seus lábios vermelhos se movimentarem agilmente ¬– talvez ela estivesse falando algo – e Eddie Colin, o porteiro do prédio, gesticulando em uma velocidade que me deixou tonto mesmo com o pouco tempo que lhe dei atenção.
- Ele está obviamente em choque, senhora! – insistia Eddie, que por algum motivo transmitia agressividade em sua voz. Algo deveria estar extremamente errado para que ele estivesse se alterando daquela forma. Nem as crianças fazendo zona no corredor tarde da noite conseguia tirá-lo do sério – Ele não está em condições de responder algo!
- Creio que eu saiba o melhor momento para fazer meu trabalho, senhor Colin – respondeu a mulher com a voz baixa e profunda, virando o rosto minimamente em sua direção – Apreciaria se me deixasse fazê-lo como bem entendo.
Eddie pareceu se preparar para contra argumentar, mas acabou por girar os calcanhares e deixar o apartamento. Ele nunca fora homem de se meter em discussões, e talvez a imagem do corpo de uma das moradas do prédio destruído próximo a entrada estivesse perturbando sua mente. Era algo que perturbaria muitas pessoas. Era apenas o começo.
Com o som da porta batendo, a mulher voltou sua atenção para mim, intensificando o olhar em minha direção, como se tentasse descobrir se eu seria útil apenas pelo estilo de meu pijama. Seu olhar transmitia certa frieza, como se já tivesse acostumada com aquele tipo de situação. A única coisa destoante da cena eram suas mãos ligeiramente trêmulas enquanto mexia em suas vestes.
- Senhor Jones – suspirou ela, depois de um leve pigarreio, puxando uma brilhante carteira de couro do bolso de seu casaco, relevando um distintivo da polícia local – Sou a detetive Laura Parker, e gostaria de interrogá-lo.
- Eu paguei a multa por ter passado no semáforo fechado semana passada – resmunguei, sem realmente pensar sobre o que motivo da visita da mulher.
- Bom saber que está cumprindo com suas obrigações, senhor, mas não é esse o motivo da minha visita - respondeu Laura, até um vestígio de riso em sua voz, que desapareceu por completo quando ela me deu as costas e retornou para a sala, sentando-se em meu sofá sem pedir permissão. Quando voltou a me encarar, ela estava absolutamente séria. Dentro de seu casaco ela tirou um pequeno bloco de notas e uma caneta – Quero conversar sobre Amelia Downey.
- Minha vizinha? - estranhei, sentando a sua frente – Ela é uma boa menina. O que ela fez?
- Já sabe o que aconteceu com ela? – perguntou ela, sua mão hesitando por um breve segundo antes de continuar a rabiscar algo no papel.
- Não – respondi, dando de ombros – Conversei com ela meia hora atrás, e estava tudo bem.
O olhar de Laura fraquejou assim que se voltou em minha direção, me deixando confuso. Com um movimento simples, ela deixou todo material que segurava em seu colo, pegou um aparelho celular do bolso e apertou um botão que começou a reproduzir uma gravação.
"Senhor Jones, estou aqui para conversar", disse uma voz doce. Não a de Laura, deduzi com facilidade.
"A cor era vermelho”
Um arrepio subiu por minha espinha quando eu reconheci minha voz cansada, arrastada e visivelmente perturbada.
"O que isso quer dizer?"
"A cor era vermelho”
- Onde conseguiu isso? – perguntei, sentindo um certo temor correr por minhas veias - Quando gravou isso?
- Uma psiquiatra foi mandada aqui ontem à noite porque o senhor não saía da sacada, e continuava a repetir as mesmas palavras: "a cor era vermelho" - contou Laura, pausando a gravação e guardando o aparelho. Sua postura não era mais tão confiante, ela estava receosa, para dizer o mínimo. Eu por outro lado aos poucos voltava a perder controle sobre mim.
- Por que eu precisaria de uma psiquiatra? – tornei a questioná-la, mesmo sabendo que eu não queria respostas. Eu sabia as respostas.
- Por que você não se lembra de ter visto o corpo de Amelia Downey por aquela sacada? – desconversou a mulher, apertando os próprios joelhos – Por que sempre que começa a se lembrar, volta a repetir as mesmas palavras?
Fechei os olhos com força, tentando achar algum sentido no que a detetive falava.
Vermelho.
Como eu passara um dia inteiro na sacada? Como eu poderia ter perdido a noção do tempo e esquecer com tanta facilidade a morte de uma pessoa?
Vermelho.
Minha boca secou enquanto eu me remexia desconfortável em meu lugar.
- Amy se matou ontem – confirmei com dificuldade. As palavras forçadas ecoaram sem parar em meus ouvidos. Tinha algo a mais naquela história, eu podia sentir, embora não quisesse. Meu desconforto pelo menos não pareceu incomodar minha visitante, já que Laura soltou uma risada sem humor, alta e exagerada.
- E aquele bando de "profissionais" dizendo que eu não obteria avanço – murmurou ela animada mais para si mesma, anotando algo rapidamente em seu bloco de notas, mas minha atenção já não era mais dela. Meu olhar caiu sob uma foto atrás da mulher, onde eu posava com minha irmã caçula, no verão passado.
Ela usava um vestido vermelho.
- No quarto de Amy foram encontradas dezenas de folhas com frases sem nexo – continuou Laura, depois de verificar qual o objeto eu encarava com tanta vontade – Duas coisas apareciam em todas as páginas: a palavra "vermelho" e seu nome, Jones.
Do meu lado esquerdo, a caneca que eu deixara em cima da pia me pareceu muito mais atrativa.
A cor era vermelho.
- Estou falando com você, Jones! – gritou Laura, se colocando de pé e agarrando meus ombros – O que ela te ensinou?
- Quem me ensinou o que? – perguntei assustado pelo seu comportamento, tentando fugir de seu aperto.
- Nas folhas, Amélia dizia que ela compreendera tudo e que você estava começando a entender – grunhiu a mulher, exagerando nas pausas entre as palavras, como se tivesse algum problema de compreensão – O que você está entendendo?
Meus olhos travaram em seus lábios entreabertos graças a sua respiração pesada que saia por sua boca, no tom vermelho sangue, a poucos centímetros à minha frente.
- Eu estou entendendo agora – sussurrei.
Laura pareceu confusa, até um pouco assustada quando me viu levantar em um pulo, me seguindo com passos sem firmeza até a cozinha.
- O que você está entendendo? Você precisa me contar Jones – insistiu ela, mas eu desconfiava que ela não queria realmente saber. Ninguém realmente queria saber. Aquela curiosidade era um erro inocente e ao mesmo tempo fatal.
Não respondi de imediato, apenas me apoiei no balcão da cozinha, passando a mão por sua superfície plana e gélida. Meus olhos focaram-se nos olhos de Laura. Tão amedrontado, tão sedentos pela verdade, tão... Vermelhos.
Esbocei um sorriso contente, puxando-a para mais perto enquanto ela tentava se afastar.
- A cor era vermelho – sussurrei próximo ao seu ouvido, afastando alguns fios de seu cabelo que atrapalhavam minha visão – E eu finalmente entendi.
Laura virou o rosto em minha direção, procurando alguma explicação em meus olhos. Eu podia sentir o medo pulsando em seu corpo, correndo por suas veias, se misturando intimamente com seu sangue...
Vermelho.
- Vermelho... – sussurrei, levando uma mão ao seu pescoço desprotegido –... nunca... –com a outra mão passei meus dedos pela lateral de seu rosto pálido e gélido – ... pareceu... – o objeto afiado que descansava em minha mão deslizou pela pele macia de seu pescoço, deixando um rastro do líquido viscoso, banhando minha mão de vermelho enquanto a outra mão a silenciava.
Seu corpo não apresentou resistência por muito tempo, logo ela estava por completo entregue em meus braços, com seus olhos sem foco, mas ainda naquele tom de vermelho vivo.
- ... tão bonito.

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"Minhas mãos antes pálidas estão impregnadas com sangue seco, mas isso não importa mais. Eu finalmente entendi. Amy estava certa. Vermelho nunca me pareceu tão bonito", o papel era fino e vagabundo, e por ainda estar um pouco amassado e pela pressa do autor do bilhete, era exigida certa paciência do leitor para compreender o que estava escrito. O fato de ainda estar trabalhando com uma cópia não facilitava nem um pouco as coisas.

"Morador do prédio da falecida Amelia Downey, David Jones, se suicidou da mesma maneira que a vizinha dois dias depois da garota", era a manchete que estampava o jornal daquele dia, assim como todos os outros da cidade. Os detalhes eram poucos, e mesmo assim era assunto em qualquer lugar. As pessoas estavam assustadas, e ao mesmo tempo sedentas por respostas. Das duas ou três vezes que acabara por prestar atenção na conversa de pessoas na rua sobre o caso, não era incomum ouvir um ou outro na esperança de mais vítimas apenas para que se pudesse ter mais pistas, para que ficassem mais próximo de resolver o mistério. Pessoas estarem encarando aquilo como um maldito mistério de um romance de suspense a ser resolvido não facilitava em nada quem estava envolvido com a investigação. O caso RED tomara dimensões maiores do que qualquer investigador imaginaria. Todos os envolvidos pareciam ser introduzidos por alguém mais "experiente", passando a desenvolver a mesma obsessão doentia pela cor vermelha, sofrendo de crises de amnésia sempre que o assunto era abordado.
Não havia um sentido real naquele caso, frustação era o que ele estava mais me causando, logo atrás vinha certo receio: aquele não era um caso de polícia, pelo menos não um normal.
- Kate! – ouvi Sam me chamar do andar superior – Pronta?
- Estou te esperando! – respondi no mesmo tom, guardando o material de volta na pasta e desligando o notebook. Logo ele apareceu na escada com uma camiseta em cada mão.
E então eu entendi.
- Preta ou vermelha? – perguntou Sam sorrindo.
Eu não olhava para ele, não mais.
- Vermelho nunca me pareceu tão bonito.


Fim.



Nota da autora: (31/10/2016)
Sem nota.




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