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Awaken




Capítulo 26 – Be Still


Olhei para as luzes acima da minha cabeça, fascinada. A passagem era consideravelmente larga, cercada por árvores que serviam de suporte para os fios que mantinham acesas as dezenas de pequenas lâmpadas. Esperava que o salto em meus pés já tivesse se tornado motivo de incômodo, mas os sapatos e o vestido creme – tão incomuns à minha rotina – passavam despercebidos para minha mente, tão surpresa com a beleza do ambiente. Quando terminei de caminhar pelo corredor criativamente iluminado, Lissa estava à frente de uma construção de madeira, as mãos próximas ao rosto emocionado. Ela sorria para mim, muito mais angelical do que o normal, estando completamente vestida de branco. Logo às suas costas eu conseguia ver Andrew e minha mãe, e os pais de Josh e Elizabeth, assim como vários dos meus amigos de Brighton e alguns amigos de , incluindo os meninos da banda e ele mesmo, imediatamente atrás da minha melhor amiga, vestindo um terno preto e um sorriso feliz. Todos sorriam felizes.
- O que foi? - Exigi, olhando para todos, chocada. Por que me encaravam tão felizes? passou por Lissa e abriu os braços, caminhando em minha direção.
- Feliz aniversário, . – Disse quando estava a dois passos de distância e me pegou por uma das mãos, me puxando para um abraço. Antes de me soltar por completo, depositou um beijo em minha testa e respirou profundamente, me guiando até as outras pessoas, uma das mãos depositada em minha cintura.
Cumprimentei a todos, mal acreditando que todas aquelas pessoas estavam de fato ali, e abracei Andrew apertado.
- É seu aniversário também! – Exclamei como se ele não estivesse animado o suficiente.
- É você quem está usando vestido. – Ele riu como se aquilo tornasse o aniversário somente meu. Ri também, concordando silenciosamente.
- Com quem você vai dançar primeiro? – Lissa perguntou de repente, me encarando sem retirar o sorriso animado do rosto. Eu ouvia um apito ao longe, mas não conseguia distinguir o que era.
- Como assim? – Soltei uma risada nervosa – Você sabe muito bem que eu não danço.
- Claro que dança! É seu Sweet... Bem, não Sixteen, porque eu estaria três anos atrasada. – Ela soltou uma risada adorável e revirou os olhos para si – Sweet Eighteen. Sua mãe me disse que não teve sua festa... E que não dançou na formatura com seu namorado porque, bem... – Ela ficou nervosa de repente e tornou a se censurar – Todos sabem o que aconteceu. – Lançou um olhar apologético na direção dos pais de Josh e Lizzie. – Nenhuma garota deveria ficar sem sua primeira dança.
- Eu não danço, Lissa. – Foi minha vez de revirar os olhos, mas sorri.
- Ah, organizei tudo isso para você e não mereço nem ao menos te ver dançar? – Chantageou, dramatizando ao comprimir os lábios em um biquinho, os olhos encarando os meus. Balancei a cabeça negativamente e mordi o lábio inferior.
- Eu estou usando saltos e um vestido. – Constatei, encarando-a como se me vir fazendo aquilo não fosse o suficiente.
Ela soltou um suspiro e sorriu derrotada, se afastando para alguma outra parte da cabana.
- Você fica bem bonita usando vestido. E saltos. – comentou, se aproximando – Deveria se vestir propriamente como uma garota mais vezes.
Revirei os olhos e sorri pela segunda vez em menos de dez minutos.
- Obrigada. – Agradeci incerta se era o certo a fazer, incomodada com o bipe constante ao longe, mas que não me parecia nada relevante.
Vários minutos depois, quando eu consegui tirar consideráveis minutos para falar com todos e até beber alguma coisa, fiquei surpresa que meus pés não estivessem doendo, e mais surpresa ainda quando disse que precisava falar comigo e me puxou pela mão de volta para o caminho cheio de luzes, me fazendo caminhar sobre os cascalhos desajeitadamente em cima de saltos, complicando ainda mais a tarefa enquanto admirava as luzes sobre nossas cabeças. Parou de caminhar quando o ruído das conversas desapareceu, embora o estranho bipe continuasse. Mas não parecia incomodá-lo, então ignorei.
Encarei-o, esperando que dissesse algo, e ele me encarou de volta, umedecendo os lábios e olhando para baixo antes de suspirar e tornar a olhar em meus olhos. Tinha ambas minhas mãos nas suas agora.
- Eu sabia que não faria isso na frente de todo mundo. – Ele soltou uma risada fraca e umedeceu os lábios mais uma vez – Então te trouxe pra cá.
- Não tente me sequestrar... – Provoquei, arrancando-lhe outra risada fraca.
- Eu não te deixaria perder algo assim, então espero que coopere comigo. – Ergueu as sobrancelhas como se para pontuar que eu não era muito fácil no quesito “cooperar’”.
- Assim que eu souber com o que exatamente estou cooperando...
fez uma pausa dramática e sorriu, guiando uma das minhas mãos para seu ombro e depositando uma das suas em minha cintura.
- Ah, não. – Ofeguei, e ele riu mais uma vez – Eu não vou fazer isso.
- Já estamos fazendo. – Comentou quando deu um passo para o lado e fui obrigada a acompanhá-lo.
- Eu não danço.
- Já está dançando.
Queria tirar aquele sorriso do seu rosto no tapa.
- , não tem nem ao menos alguma música tocando...
Encarou meus olhos pelo que pareceu a primeira vez, porém não sorria.
- Não precisamos de uma. – Constatou com simplicidade, mas não eu não tinha com o que mais argumentar. Ele já me guiara por uns bons 10 passos em meio a nossa discussão.
Suspirei, derrotada e acompanhei seu ritmo, sem acreditar que ele estivesse fazendo aquilo comigo. Ficamos em silêncio, o que era surpreendentemente confortável, algumas vezes quebrado por minhas risadas incrédulas e suas risadas satisfeitas. Vários passos – e pelo que me pareceu minutos também – depois, ele me puxou mais para perto, fazendo com que minha cabeça descansasse em seu ombro. Naquele momento eu reparei em muitas coisas: como sua roupa e a pele de seu pescoço cheirava a mim, como seu longo corpo me guiava com elegância, os passos mais lentos. Reparei em como seu queixo estava apoiado em minha cabeça, sutilmente para que não me incomodasse, e reparei em como eu queria tanto que ele me beijasse que meu peito doía.
Ele não se sentia assim por mim, disso eu tinha plena certeza. Em toda a minha vida tive plena certeza de poucas coisas, uma delas era que não me amava da forma como que eu queria que ele amasse, e a outra era que eu queria que ele me beijasse mesmo assim. Deus, eu queria tanto. Mas querer e ter eram duas coisas completamente diferentes, então eu me contentava com o que pouco do que tinha. Com as migalhas do amor que eu recolhia como se fossem ouro, com seu carinho que era bijuteria barata, mas eu tratava como ouro branco, com o que ele me cedia na sua inocência de um amigo que se importa e que eu recebia com esse meu amor desesperado. Em toda minha vida tive plena certeza de poucas, e uma delas era que, meu Deus, como eu queria que ele me amasse de volta. E como eu queria que inclinasse o rosto e me beijasse.
Não sabia há quanto tempo estávamos balançando ao som de nossa própria respiração quando soltou um suspiro e acariciou minhas costas.
- Quero te fazer uma pergunta.
- Você pode perguntar o que quiser.
Me afastei de seu abraço para encarar seus olhos, mas eles não olhavam para mim, encaravam o vazio em algum lugar distante, embora os dedos ainda acariciassem minha pele. O insistente bipe ficou mais alto e mais nítido para mim, mas mesmo assim consegui ouvir as palavras que seus lábios pronunciaram.
- Onde você estaria se pudesse estar em qualquer lugar do mundo?
Desviou os olhos do distante para olhar nos meus e encarei-o, olhando para seus traços como se nunca tivesse tido tempo suficiente para fazer tal gesto, e pareci sentir seus braços ao meu redor pela primeira vez, seu toque, seu cheiro, nunca tão próximos antes. Pareci ouvir sua voz pela primeira vez naquela noite e ter plena consciência de tudo que estava acontecendo, de onde eu estava e do que ele fazia por mim naquele momento. Sorri, e ele logo sorriu em resposta.
- Provavelmente bem aqui.
Em um momento enxergava perfeitamente bem seu sorriso à minha frente, então a imagem saiu de foco. E como se alguém estivesse gritando em meu ouvido, abri os olhos de supetão para encarar o teto do meu quarto. Não tive tempo para conscientizar os fatos do que sonhei e que aquilo fora, de fato, um sonho. O bipe insistente não estava em meus sonhos. Era o alarme de incêndio, e apitava descontroladamente no andar de baixo.
Joguei as cobertas para o lado e corri em desespero pelas escadas, sem me importar que estivesse só de camiseta e calcinha, e derrapei pela madeira, tentando não gritar em desespero quando vi o fogo quase atingindo o teto. Peguei o pano de prato no suporte e bati contra a frigideira, mas o próprio pano começou a pegar fogo e queimou minha mão antes que eu o largasse. Andrew chegou com a expressão assustada na cozinha no momento que tampei a frigideira com a primeira tampa que vi pela frente e desliguei o fogo, me afastando quando não adiantou e o papel de parede começou a queimar entre as chamas também.
- Liga pra emergência! – Berrei para o meu irmão, que tropeçou em seus próprios pés antes de correr até o telefone.
Saí de dentro da cozinha com a mão doendo, mas não tanto quanto alguma outra parte do meu corpo, que eu não conseguia distinguir com a adrenalina em abundância no meu organismo. Meu pai desceu as escadas correndo e olhou de Andrew gritando no telefone para mim, curvada de dor sobre a poltrona, então para a cozinha em chamas.
- O que está acontecendo aqui? – Gritou, por fim, como se o fogo fosse minha culpa.
Tentei responder que eu também não sabia, mas minha mão doeu, e a parte desconhecida do meu corpo doeu, e eu não tive fôlego para dizer qualquer coisa. Vinte minutos depois eu estava do lado de fora da casa, enrolada em um roupão e encarando os bombeiros removerem algumas coisas de dentro da casa. Minha mãe chorava em algum lugar próximo, dizendo que tinha saído para fazer algumas compras e alguém devia ter colocado a panela no fogo. Eu não conseguia realmente focar em qualquer coisa à minha frente, desnorteada demais para sequer raciocinar. Só caí em mim quando Andrew tocou meu braço, ainda envolto em seu roupão e enrolado em uma coberta, o hálito saindo em fumaça no frio, mas eu não sentia. Sentia a dor em minha mão e sentia a dor em algum outro lugar desconhecido do meu corpo, mas era alheia a qualquer outra coisa.
- Vão levar a mamãe no hospital e querem dar uma olhada na sua mão também. Vocês irão na ambulância, mas eu e o papai estaremos no carro logo atrás... – Disse e ouvi suas palavras sem realmente escutá-lo. Com gestos que não me pertenciam, assenti, e caminhei distraidamente até a ambulância, deixando que o paramédico me ajudasse a subir, e encarei sem enxergar a rua repleta de pessoas à minha frente antes que ele fechasse a porta.

***


Estava sentada em uma maca, uma mão enfaixada e a outra em perfeito estado no colo, balançando os pés enquanto esperava que meus pais voltassem para a sala onde eu e Andrew esperávamos.
- Por que acha que querem falar só com ela?
Olhei para meu irmão como se não pudesse acreditar no que ele me perguntava.
- Por que nos trouxeram aqui? Por que a cozinha pegou fogo e ela estava fazendo compras? No meio da madrugada? E de repente querem que ela converse com um neurologista... Difícil deduzir. – Debochei, fechando os olhos quando minha mão insistiu em arder e a dor – que descobri ser no meu peito – deu o que me parecia ser uma fisgada.
Andrew não se incomodou com minha falta de educação, olhou para o outro lado da sala e fingiu que eu não disse nada, batendo os pés insistentemente enquanto esperávamos. Por volta de cinco minutos - que pareceram horas – depois, o médico voltou à sala onde estávamos, porém, sozinho. Tinha uma expressão estranha no rosto e plugou a caneta antes de colocá-la no bolso e se voltar para nós.
- Depois de uma longa conversa com seus pais... Eu sinto em dizer que a mãe de vocês sofre com uma doença rara para esse período da vida dela, mas que quando geneticamente herdada pode se mostrar precoce. O mal de Alzheimer geralmente...
- Eu sabia. – Pensei em voz alta, interrompendo o doutor, que parou de falar para me encarar. Só me dei conta de que estava de pé quando meu peito tornou a fisgar.
- Senhorita ...
- Pode me passar seu telefone? – Me virei para Andrew, que me encarava surpreso, mas não se moveu – Por favor? – Insisti e mesmo sem entender ele tirou o aparelho do bolso e me entregou. Dei as costas aos dois e saí apressadamente do consultório, ignorando os chamados do médico e do meu irmão. As coisas ao meu redor novamente tornaram-se um borrão, e disquei o número com tanta pressa e intensidade que só quando começou a chamar temi que tivesse discado errado. Não senti o alívio que deveria quando sua voz atendeu a caixa postal.
- ? – Chamei, mesmo sabendo que era apenas uma mensagem eletrônica – . – Repeti, sem saber se estava mais triste porque ele não tinha atendido ou por tudo o que estava acontecendo. – Me desculpe, eu sei que são três da manhã, mas... Eu não sabia para quem mais ligar e eu não... Eu não consigo olhar para a minha família. Eu não consigo estar no mesmo lugar que eles... Eu só queria que...
- ? – Sua voz atendeu, e eu podia dizer que o tinha acordado. Conseguia imaginá-lo apoiado sobre o cotovelo na cama, o tronco esticado para atender ao telefone.
- . – Suspirei e só me dei conta de que estava chorando porque meus soluços se tornaram histéricos.
- , o que está acontecendo?
- Onde você está? – Perguntei e olhei ao meu redor sem realmente ver alguma coisa. – Onde você está? – Insisti quando não me respondeu.
- Eu não estou na cidade... , você precisa me dizer o que está acontecendo.
- Eu não sei o que eu faço. – Chorei, e ele suspirou audivelmente do outro lado.
- Eu não posso te ajudar se não sei o que está acontecendo. – Falou com seriedade e não o respondi, tentando pegar fôlego em meio ao meu choro.
- Eu sinto tanto a sua falta. – Lamentei – Mas eu não consigo administrar tudo o que está acontecendo e... Eu sabia o tempo todo, . O tempo todo. Mas eu não quis acreditar, me fingi de boba todas as vezes, e olha só a que pé estamos, ela colocou fogo na casa e, meu Deus, eu deveria ter dito alguma coisa. Eu fui tão egoísta.
- , do que você está falando? Você precisa se acalmar. Por favor, você se precisa se acalmar...
- Eu me preocupei tanto com meus próprios problemas, me convenci de que tudo bem se eu não carregasse isso nos ombros porque eu já tinha coisas demais na cabeça, me convenci que não era problema meu... Tão egoísta, tão idiota...
- , você precisa me escutar, pelo amor de Deus!
- Eu não sei o que eu faço. – Tornei a chorar. – E você provavelmente não se importa comigo e eu estou te acordando no meio da noite e...
- Você significa tudo pra mim...
- E eu não aguento mais toda vez que tento te alcançar você está do outro lado do país. Eu preciso de você aqui...
- É meu trabalho, você não entende...
- Meu Deus, , eu fui tão estúpida... Eu não queria ter te dito todas aquelas coisas... Não queria ter falado com você daquela forma. Eu sinto muito. Eu não acredito que isso está acontecendo.
- Você precisa me escutar. – Insistiu, tentando falar comigo em meio ao meu choro histérico.
- Eu não acredito que isso está acontecendo comigo. – Lamentei, sentindo as lágrimas quentes em meu rosto e meu tom surpreendeu a mim. Eu não esperava soar tão miserável. – Ninguém está do meu lado...
- Eu estou.
- Meu Deus, .
- ... Você precisa me escutar. Eu não sei o que aconteceu, você simplesmente me acordou e eu não poderia estar mais confuso. Mas você precisa prestar atenção no que vou dizer, tudo bem? Eu estou do seu lado. Fique tranquila. Você está me ouvindo?
Respirei fundo, tentando me acalmar e limpando as lágrimas do rosto. Soltei um suspiro antes de responder.
- Estou.
- Apenas fique tranquila, está bem? Fique tranquila.
Assenti, mesmo que ele não pudesse ver, e tornei a respirar fundo.
- Eu amo você. – Disse como se quisesse me lembrar, mas ele nunca tinha dito aquilo antes, e parei de respirar no meio da minha tentativa de me acalmar, encarando o vazio. Assenti mais uma vez, tornando a limpar as lágrimas.
- Eu também. Obrigada. – Murmurei.

***


O dia amanhecia fora da janela e eu ainda encarava o teto, sem conseguir dormir, o medo consumindo cada célula do meu corpo. A reação da minha mãe foi pior do que eu esperava. Eu não sabia o que fazer, mas ela também não sabia, no final das contas, e não era fácil para ninguém. Pensei em todas as vezes que no fundo eu sabia que tinha algo errado e não disse nada, meu peito tornando a apertar. Eu só queria dormir. Só queria me desligar desse mundo nem que fosse por apenas algumas horas.
Quando minha respiração se tornou pesada demais e senti que estava prestes a chorar mais uma vez, me lembrei das palavras de . Fique tranquila. Fique tranquila. Fique tranquila. Respirei fundo, fechando os olhos e me virando para o lado e apreciando o som da sua voz em minha cabeça. Fique tranquila. Fique tranquila. Fique tranquila.
Foi quando estava prestes a dormir mais uma vez que me lembrei do sonho do que me parecia de dias atrás, e entendi a dor que senti esse tempo todo. Fora um sonho tão terrivelmente maravilhoso que parecia pura agonia estar acordada.

Capítulo 27: Happy Birthday


Caminhei em passos largos até a mesa onde estava; não gostando das lembranças que o lugar me trazia. Da última vez que estivemos aqui, eu gritei com ela, e apesar do modo espertinho como havia me tratado, eu sabia que aquilo a assustara. Quando comentei com Lissa outro dia, ela e se juntaram no clube anti- e nem mesmo minha mãe me dera uma lição de vida tão grande em todos os meus dezoito anos de existência. Então respondi de uma forma nada gentil a elas e ficou bem sério, me dizendo que “quando uma mulher grita, todos se preocupam com o que há de errado com ela, mas quando um homem grita, todos se preocupam com o que ele fará em seguida”, e mesmo que eu tenha pedido desculpas diversas vezes e gaguejado um “eu nunca faria isso”, ela não tornou a sorrir pelos próximos quarenta minutos. Então eu estava aqui mais uma vez, encarando ler concentradamente a um livro tão grosso que já me dava sono, ambos os fones em seus ouvidos e as mãos brincando com as laterais de couro da capa do objeto em um dejá vú doentio.
Sentei-me a sua frente mais uma vez e embora meus gestos fossem os mesmos, esperava que o desfecho daquela conversa não fosse. Após alguns segundos, ergueu os olhos muito azuis e pareceu legitimamente surpresa. Olhou ao redor e viu Carl em um canto da biblioteca, voltando os olhos para mim e removendo os fones de ouvido. Ela não sorriu.
- Oi. – Murmurei, sorrindo.
- Oi... – Respondeu, ainda parecendo confusa.
- O que aconteceu com sua mão? – Perguntei, olhando descaradamente para os dedos enfaixados.
- Ah, isso? – Ela removeu a mão direita do livro e balançou-a a frente do rosto. – Um pequeno acidente. – Soltou uma risada nervosa.
- Me parece um nada-pequeno acidente.
revirou os olhos.
- Você está exagerando.
Resolvi mudar do assunto “mão machucada” já que ela se mostrava bastante relutante em explicar qualquer coisa.
- O que você faz aqui, de qualquer forma? Uma mão machucada e um dia de sol no ano? E você em uma biblioteca?
Ela deu de ombros.
- Estou na UNI. – Riu, como se aquilo explicasse qualquer coisa – Perdi... Bem, perdi algumas aulas e tenho que recompensar. E sou de Brighton, se bem se lembra, o sol não é uma coisa muito estranha por lá.
Escancarei a boca, surpreso que ela estivesse na UNI e que eu não tivesse a mínima ideia disso.
- UNI? Qual? – Perguntei, chocado.
- University of London. – Respondeu e quando ergui as sobrancelhas, repetiu meu gesto, arregalando os olhos em descrença. – Eu sei, não? Mas terminei a dependência em Filosofia, de qualquer forma. Peguei meus papéis e – fez um gesto amplo, indicando os livros a sua frente. – Aqui estou.
- Você não está entendendo. – Balancei a cabeça. – Eu quis dizer qual curso.
Soltou um suspiro longo e um sorriso confidente, me parecendo melhor do que semanas atrás. Mas se estivesse mal, sempre conseguira fingir muito bem que não.
- Literatura. – Disse, e eu soube o porquê de seu sorriso.
- Estou feliz por você. – E eu realmente estava. Ainda me sentia culpado por ter debochado de quando me disse suas escolhas, mas a imagem de quando começávamos a nos conhecer - dela segurando um caderno e uma caneta porosa para onde quer que fosse – me veio à mente e entendi seu lado por um momento. Eu realmente estava feliz por ela. – Espero que eu ganhe um exemplar autografado.
Uma expressão confusa tornou a tomar seu rosto.
- De quê?
- Do seu livro. – Sorri, e dessa vez ela não relutou o sorriso que tomou seu rosto por completo. Riu uma vez e o som me parecia tão bom depois de tanto tempo. Deus, como ela era linda quando sorria daquele jeito.
- Você não vai ganhar nada de mim. Com a sua conta bancária sei muito bem que pode comprar livros o suficiente para me colocar em primeiro lugar.
- Se te fizer feliz. – Respondi, com simplicidade, e o sorriso sumiu de seu rosto.
- Você me faz. – Garantiu, e para completar o dejá vú, mais uma vez quis segurar sua mão, e mais uma vez não o fiz. – Você realmente me faz.
- Esse é o meu principal objetivo de vida. – Brinquei. – Depois de te irritar, é claro.
- Então morra em paz, , você faz ambos melhor que ninguém.
Nós rimos por alguns segundos, mas pigarreei e me lembrei do porquê de estar ali, descruzando os braços e me inclinando para frente.
- , obrigado. – Agradeci e dessa vez estendi meus dedos para segurar os seus. – Mesmo. Obrigado.
Ela tornou a parecer confusa e me estudou por alguns segundos.
- Pelo quê? – Perguntou e riu nervosamente mais uma vez.
- Obrigado por ter conversado com a . Se você não sabe, nós estamos juntos mais uma vez. Foi bom ter acontecido antes que chegasse à mídia, você sabe como essas pessoas são com casais que terminam e reatam, terminam e reatam, terminam e reatam...
- Na verdade, não. – Me interrompeu, e seus olhos não sorriam mais. – Não sou muito ligada nessa de internet.
- Claro que não. – Eu ri. – Não muda o fato de que você fez o que fez. E por isso nós estamos juntos agora. Se você não tivesse falado com ela, ela não teria me procurado e não teríamos colocado as coisas na linha. Foi tudo por você. Muito obrigado, de verdade. Você não sabe o quanto significa pra mim.
- Sei o que significa para mim. – Ela riu mais uma vez.
- Sei que já te agradeci muitas vezes em menos de dois minutos, mas obrigado. Muito obrigado, . Você não precisava.
- Precisava sim. – Me garantiu.
Encarei seus olhos por alguns segundos e não consegui segurar o sorriso que soltei.
- Você não faz ideia do quanto estou feliz. – Precisava dizer aquilo para alguém. Não poderia ser para , que com toda a certeza debocharia de mim, muito menos para , que não se importaria nem um pouco, nem ou , porque sentimentos não era exatamente nossa coisa. Era grato que ela estava ali para me escutar.
sorriu, embora fosse um daqueles sorrisos tristes que sempre me dava quando falávamos de algo do tipo, e me pareceu genuinamente sincera pela primeira vez no dia.
- Eu espero que esteja.
- Tudo graças a você.
- Não precisa lembrar. – Continuou a sorrir e removeu os fones do pescoço. – Sério, não precisa.
- Ah, eu trouxe algo pra você. – Me lembrei, de repente, acenando para Carl, que se aproximou e me entregou o pacote, cumprimentando e tornando a se afastar. Entreguei-a e cruzei as mãos no colo, aguardando com um sorriso.
Ela abriu a embalagem e encarou seu interior.
- Temos sete centímetros e meio de Subway aqui. – Constatou, assentindo com uma expressão admirada.
- Eu fiquei com fome. – Dei de ombros, lhe lançando um sorriso apologético.
- Claro. – Debochou, estreitando os olhos e mordendo o sanduíche. – Obrigada.
Balancei a cabeça como se ela não precisasse agradecer.
- Pense como se isso fosse seu presente adiantado de aniversário. Amanhã é o grande dia, não? – Brinquei, tornando a rir.
- Um sanduíche do subway de sete centímetros e meio? – Perguntou como se fosse maravilhoso demais para acreditar. – Ah, a maioridade. – E soltou um suspiro sonhador.
- Frango com cream-cheese. Cada um tem o que merece. Acho que você é bem sortuda. – Comentei e balancei a cabeça solenemente. Estava feliz que não estivéssemos falando da nossa discussão naquele lugar ou da sua ligação desesperada no telefone, embora eu soubesse que teríamos, algum dia.
- Espero que a metade de sanduíche do meu irmão seja de steak de churrasco. Steak de churrasco de borracha processada. Isso que ele merece.
Inclinei-me para sussurrar:
- Vou fazer com que o Carl coma a metade desse.
Ela também assentiu solenemente.
- Para isso que servem guarda-costas. Por que você é famoso e pode ser atacado por paparazzi/fãs histéricas a qualquer minuto? Nah! É para se obrigar a comer sanduíche de steak de churrasco de borracha processada. – Falou com convicção. – Não adiantou muita coisa acabarem com a escravidão.
Ela fez uma pausa, me encarando por um momento e olhando para o sanduíche. Soltou um suspiro cansado e revirou os olhos.
- Você quer um pedaço? – Perguntou.
Sorri e peguei o sanduíche de suas mãos.
’s P.O.V

Quando foi embora, porque tinha qualquer coisa chata pra caralho que celebridades faziam, Robert ergueu os olhos a ponta da mesa e me deu um sorrisinho malicioso. O negócio é o seguinte com Robert: quando comecei a conhecer e inventei toda aquela história constrangedora de namoro para os meus pais, encontrei Robert na cafeteria. E enquanto ele me cantava desesperadamente (embora negasse isso sempre), apareceu com uma história toda inventada da ligação da minha mãe e expulsou o cara de lá. A boa coisa era que aparentemente passava por pessoas todos os dias e não de fato se lembrava delas, por isso Robert lhe passou despercebido.
Robert, para minha infelicidade, fazia a classe de inglês comigo e, assim que me viu na sala pela primeira vez, soltou um “não acredito” e em seguida um “você-vai-saber-meu-nome-quando-merecer! Você por aqui?”. Desde então Robert havia feito o principal objetivo de sua vida aparecer inconvenientemente em todo lugar em que eu estava, e ainda me provocar com coisas como qual era mesmo meu nome, “se ele já merecesse saber”, e “então seu namorado é famoso”, que ele acabara de soltar em um sussurro.
- Cala a boca, Robert. – Mandei e fechei a cara em sua direção.
- Meu nome é Ryan. – Me lembrou, pelo que poderia ser a milésima vez. Não fazia diferença, de qualquer forma.
- Tudo bem, Richard.
- Você faz de propósito, não é? – Perguntou, cansado, e voltou a encarar seus livros. Pelo visto, o silêncio glorioso que se instalava quando ele não abria a merda da boca não durava muito. – Aliás, ele é mesmo seu namorado?
Encarei-o em descrença.
- Isso não é da sua conta! – Exclamei. – Ou você é surdo? Ele veio me agradecer porque eu o fiz voltar com a namorada. Nós somos apenas amigos.
- “Apenas amigos” não se olham desse jeito...
- Qual o seu problema, afinal?
- Em não prestar atenção na sua conversa porque eu quis lhe dar algo que se chama privacidade? Não sei. Me dê um diagnóstico se te incomoda tanto.
- Você é doente.
- Você é doente. – Pontuou. – Que história toda foi essa de sanduíche de churrasco processado e escravidão, afinal?
- É sanduíche de steak de churrasco de borracha processada. E você não acabou de dizer que não estava prestando atenção?
- Vocês querem calar a boca? – Um garoto da mesa a frente reclamou porque aparentemente não estávamos sussurrando mais. E aquela foi nossa deixa para calar de vez a boca e me fazer voltar a tentar ler sobre a desenvoltura de Shakespeare ou qualquer porcaria que fosse. Não que eu fosse conseguir me lembrar ou me concentrar depois da visita de , de qualquer forma.
***

Coloquei a bolsa sobre a mesa ao lado da porta e soltei um suspiro, soltando minhas chaves junto das outras e removendo as sapatilhas. Deus, como era bom enfiar os dedos no carpete de casa depois de passar todo o dia estudando. Andrew não estava em casa, pelo visto, muito menos meu pai, o que era extremamente estranho porque a bolsa fechava às dezoito. Bom, as transações comerciais sim, pelo menos. Não que me importasse – senti uma felicidade muda por constatar que ele não estava ao menos presente. Então me dirigi até a biblioteca, no segundo andar, e apoiei o ombro no batente da porta, encarando minha mãe fazer qualquer coisa com agulhas em suas mãos – tricô ou crochê, não fazia a mínima diferença para mim. Depois do que me pareceram poucos minutos, seus olhos se voltaram para mim e ela sorriu instantaneamente, largando as agulhas e o rolo de linha em cima da mesinha.
- Voltando tão cedo? Você geralmente não volta antes das vinte e duas... – Ela me envolveu em seus braços e me soltou segundos depois para me olhar dos pés à cabeça.
- A biblioteca fecha às oito. – Lembrei-a, desejando com todo o meu coração que minha voz não soasse tão triste quanto eu me senti naquele momento.
- Ah, claro. - Ela ficou confusa por um momento, então balançou a cabeça para clarear a mente. – Você está formidável, querida. – Comentou, parecendo se lembrar de que era isso que queria fazer quando me analisou por completo.
- Formidável? – Ecoei, debochando de sua escolha de palavras, embora gentilmente. – Só estou usando calças de moletom e um suéter, mãe.
- Ah, não estou falando das suas roupas, bobinha. – Ela riu, apertando meu nariz e se virando em direção à poltrona. – É essa coisa no seu rosto. Você está sorridente, mesmo quando não sorri. Suas bochechas estão coradinhas e... Você parece que viu um pássaro verde por aí. – Completou, tornando a rir e pegando as agulhas e a linha em cima da mesa.
- Olhos verdes. – Pensei em voz alta e me senti ficar muito vermelha quando ela me pediu para repetir mais alto; não tinha escutado de primeira.
- Crochê? – Tentei, indicando suas mãos com o olhar, voltando a me escorar contra o batente da porta e desesperadamente querendo que ela caísse na mudança de assunto.
- Tricô. – Corrigiu, com um olhar de censura.
- Não sabia que gostava. – Falei, com sinceridade, olhando-a apologeticamente e me sentando a sua frente, no sofá.
- Me mantém distraída. Me obrigada a trabalhar a memória. – O ar pareceu quase palpável entre nós assim que ela proferiu as palavras. – Me acalma quando não consigo identificar as coisas propriamente.
Assenti, engolindo o bolo que se formou em minha garganta. Não ousei dizer alguma coisa - sabia que minha voz tremeria e ela iria saber o quanto aquilo me chateava. De qualquer forma, não sabia o que dizer; se era difícil para mim, não conseguia imaginar como era para ela. Quando ela estava no presente, pelo menos.
- Você não tem estado em casa. – Comentou, alguns segundos de silêncio depois.
- Tenho estudado bastante. – Falei, com a voz engasgada. Não queria dizer que meu principal objetivo era me manter mais afastada daquele lugar possível. Do meu irmão, do meu pai e principalmente dela, o que era completamente egoísta da minha parte. Mas eu não conseguia deixar de pensar que aquilo era demais para colocar nos meus ombros. Depois do passado do meu pai, depois de Josh, depois dos meus próprios demônios e depois de . Ter de estar naquela casa era ter de encarar a melancolia que a cercava e ter que aceitar que estava de fato acontecendo, embora a certeza estivesse bem ali na minha frente. Ela estava doente. Ela estava irremediavelmente doente e frágil e ela precisava de mim. Mas se eu me deixasse ser o que ela precisava, iria ter um colapso a qualquer momento. E fugir dessa responsabilidade estava me comendo viva.
- Bom... Você deveria ter uma folga, querida. Você está tendo os pesadelos de novo... – Começou; a voz em tom de alerta.
Tornei a engolir em seco, sentindo meu peito pesar. Eu queria sair dali. Eu queria virar as costas e nunca mais voltar para casa para encarar aquilo.
- Eu não tenho pesadelos desde o aniversário dele, mãe.
Ela tornou a parecer confusa, suspirando e largando as agulhas no colo. Enfiou o rosto nas mãos e vi seu corpo responder conforme sua respiração começou a pesar.
- Ah, mãe... Eu sinto muito. – Tentei, me apressando a caminhar para o seu lado. Afaguei suas costas, incomodada que tivesse de inclinar a coluna para aninhá-la adequadamente. – Eu não quis...
- . – Me censurou, com a voz chorosa, usando as mãos para abraçar meu braço.
Calei a boca e permaneci em silêncio, escutando-a chorar.
- Eu tento tanto organizar as coisas. Mas tudo parece tão confuso.
Respirei fundo, tentando controlar minha própria respiração e fazendo toda a força do mundo para ignorar o instinto que me dizia com toda força: corra. Contei até dez, mentalmente, perdendo a conta depois do vinte e cinco, e vários momentos depois, controlando a respiração e aliviando ao menos um pouco o rolo compressor que parecia estar em cima do meu peito.
- Uma vez... – Comecei; a voz mais calma, mas pausei para impedir minha voz de tremer quando o ameaçou – Josh me disse alguma coisa sobre chorar como uma criança. E que naquele momento eu tinha três anos. Tudo bem chorar agora. Você também tem três anos.
Ela riu levemente, se afastando de mim e limpando os olhos.
- Josh sempre teve jeito com as palavras, não?
Sorri tristemente e assenti para ela.
- Sim, ele tinha.
Minha mãe ficou em silêncio enquanto terminava de limpar o rosto e recobrar seu ritmo respiratório normal, então fungou e retomou as agulhas.
- Acho que você deveria dormir, não, querida? Amanhã é o grande dia de vocês. – Eu assenti, sem saber se estava irritada ou feliz por ela se lembrar do meu aniversário. Dando-a razão, caminhei até a porta e murmurei boa noite.
- Querida... – Ela chamou e quando a encarei, ela tinha um sorriso plano nos lábios. – Você sabe se Josh virá amanhã? Eu adoraria que viesse, apesar de... Bem, você sabe, depois daquela discussão boba com seu irmão...
Me lembrei da discussão a qual ela se referia imediatamente. Quando estávamos na escola, alguém aparentemente tinha dito alguma coisa bem maldosa sobre mim entre os garotos do ginásio, e Andrew escutou tudo, mas porque nós mesmos estávamos brigados, não disse uma palavra para me defender. E Josh ficou uma fera. Sorri com a lembrança, então olhei para o sorriso que ela mesma tinha no rosto, aguardando minha resposta. Ampliei meu sorriso, sem me importar que ele fosse parecer exageradamente falso, e respondi com o máximo de empolgação que consegui.
- Mas é claro que ele vai, mãe.
***


Alisei o vestido e me olhei no espelho mais uma vez.
- Eu não acredito que estou fazendo isso. – Murmurei mais para mim mesma do que para a companhia.
- Nem eu. – Lissa concordou. Cara - que estava sentada em uma poltrona no canto da sala, as pernas infinitamente longas cruzadas e a taça de champanhe na mão - sorriu e murmurou um “você está ótima”.
O vestido era preto, com manchas em vermelho que lembravam flores. O decote era em forma de coração e as mangas subiam pelos meus ombros sem serem propriamente mangas. Ele apertava minha cintura, então arredondava em sua saia, o pano tão sedoso que passava meus dedos por sua superfície a todo momento.
- Você quer calçar os saltos? – Lissa perguntou e então sorriu, sabendo muito bem da minha aversão a saltos, mas sabendo que com um vestido daquele eu não poderia usar sapatilhas, muito menos um par de tênis.
Calcei o par de – gemido de desconforto – Louboutins que ela me estendia e tornei a me encarar no espelho. A maquiagem estava feita, e mesmo que preferisse arrancar meus olhos a admitir aquilo em voz alta, gostei do que vi. Os olhos estavam escuros, muito mais escuros do que já pensei que fosse usar alguma vez, destacando tanto o tom intenso de azul que era desconfortável encarar. Minha pele estava corada nas bochechas e consideravelmente mais dourada no pescoço e no colo, os lábios em um tom quase natural de rosa. E os saltos. E aquele vestido. E eu estava fazendo tudo isso porque sempre quisera me ver usando saltos e um vestido.
- Eu poderia te beijar nesse momento se não fosse arruinar sua maquiagem. – Lissa constatou com um aceno satisfeito, então inclinou a cabeça para o lado. – Bem, se eu beijasse garotas. – Finalizou como se tivesse acabado de chegar a tal conclusão.
Balancei a cabeça, debochando, mas sorria.
- Eu poderia te beijar nesse momento se não fosse arruinar sua maquiagem. – Cara ecoou, olhando descaradamente para minhas pernas. – E eu beijo garotas.
Gargalhei, dando as costas para o espelho e olhando para ela. As duas já estavam prontas, Lissa, como em meu sonho, vestia branco; e de repente me senti apagada perto de alguém tão bonita. Cara estava muito mais casual, vestindo jeans, saltos e uma blusa verde brilhante.
- Vamos para sua festa? – Lissa me perguntou e sorriu quando fiz uma careta.
- Acho que já é tarde demais para fugir. – Concluí, seguindo ambas porta a fora do ateliê e sentindo o vento frio de novembro contra a minha pele. – Espero que o lugar seja pelo menos aquecido.
Lissa me olhou feio por cima do ombro.
- Você simplesmente não subestima minha habilidade de organizar uma festa.
Dei de ombros como quem pedia desculpas e acompanhei-as para dentro do carro, onde um dos seus seguranças segurava a porta aberta.
Quando estávamos na metade do caminho, a chuva fraca golpeando a janela, me voltei para Lissa, a voz saindo mais engasgada do que eu pretendia:
- Lissa...
Ela voltou os olhos para mim e me analisou por um momento, parecendo entender o que meu olhar ansioso perguntava.
- Ele vai estar lá. – Me garantiu e sorriu sem mostrar os dentes.
Então se voltou para seu celular.
- Ele disse que estaria. – Mas dessa vez não parecia ter tanta certeza.

***

Como tudo que Valissia colocava as mãos, a festa estava simplesmente impecável. Quando entrei no salão, minha mãe correu para me abraçar, seguida de perto por Andrew, que parecia muito desconfortável por estar ali – então me lembrei de que também era aniversário dele, e Lissa provavelmente o obrigara a estar ali. Parecia querer me abraçar, mas não teve coragem para tal gesto.
Terminei de passar pelo corredor e encarei o salão que se abria para todos os lados até que estivesse fora do alcance dos meus olhos, abarrotado de pessoas. Pessoas famosas. Pessoas que eu pensei que nunca veria no meu aniversário. Nick Grimshaw conversava empolgado com um grupo de pessoas que eu sabia que eram amigos de , e estava ali. E Kelly Osbourne e Olly Murs e mais rostos que eu reconhecia, mas não poderia nomear.
Olhei para minha direita e senti meu coração bater em minha garganta, minhas pernas me prendendo bem onde eu estava. Meus olhos os encaravam e eles sorriam para mim, acenando, mas eu não conseguia me obrigar a me aproximar. Senti minha boca se abrindo, e parecendo sentir que eu não daria um passo por mim mesma, Lissa pousou a mão na parte mais baixa das minhas costas e me encaminhou até eles.
Lizzie abriu os braços, os olhos verdes calorosos, como se não lembrasse que eu tinha “um namorado” pouco depois de seu irmão morrer. Me abraçou com força, murmurando um “feliz aniversário” que parecia trêmulo, como se ela fizesse força para não chorar. Se separou de mim e me deu uma boa olhada.
- Meu Deus, , você está tão linda. – Sussurrou. – Acho que nunca vi você vestindo algo assim.
- Eu sou boa mesmo. – Lissa murmurou a minhas costas e cumprimentou os convidados, enquanto tratei de cumprimentar os pais de Josh em seguida. Os pais de Lizzie. Os pais de Lizzie – tive de lembrar a mim mesma.
- Como você está bonita! – Ella exclamou e, como sempre, parecia prestes a chorar. Juntou as mãos e deitou o rosto sobre elas, me olhando com afeto. Forcei um sorriso para ela e engoli à seco. Eu não merecia aquilo. Não merecia que ela me olhasse daquele jeito depois do que fiz com seu filho. Não merecia que ela estivesse na minha festa de aniversário e muito menos que ela parecesse tão feliz em me ver.
- Uma pena as coisas terem acontecido da forma como aconteceram... Aposto que você e Josh teriam filhos lindos. – George murmurou, abraçando a esposa e apoiando a mão carinhosamente em meu braço. Meu sorriso falso desapareceu e me perguntei se aquilo era algum tipo de brincadeira doentia, se ele estava propositalmente dizendo aquele tipo de coisa para me fazer ter um ataque bem ali.
- Pai... Isso não é coisa de se dizer. – Lizzie censurou e fui salva por alguém que segurou meu ombro, exclamando meu nome em uma voz incrédula.
Me virei para encarar uma garota de cabelos muito escuros, o rosto tão pálido quanto e os olhos castanhos brilhando com malícia. Ergui as sobrancelhas em surpresa.
- Mandy?! – Praticamente gritei; o que foi bastante estúpido, porque claramente era ela bem ali na minha frente.
A garota sorriu e abriu os braços, me apertando como se tivesse anos que não nos víamos. E quase tinha mesmo.
Olhei para Lissa por cima dos seus ombros, incrédula.
- Como você fez isso? – Perguntei, chocada. Ela sorriu e deu de ombros, como se fosse óbvio que ela seria maravilhosa.
Mandy me soltou, e como todos que me viram até o momento, se afastou para dar uma boa olhada em mim.
- Garota... Nunca pensei que te veria usando roupas assim. – Comentou, então comprimiu os lábios e riu em seguida.
- Nem eu, você sabe muito bem disso. – Concordei, percebendo só então que estava morrendo de saudade da minha melhor amiga. Estivera tanto tempo envolta na minha própria bolha de problemas e desilusões amorosas que esquecera que tinha deixado uma vida em Brighton. E assim que o pensamento surgiu em minha mente, me senti nauseada em como ele era ambíguo.
Mandy me perguntou alguma coisa que não prestei atenção, passando os olhos pelo salão sem me importar com ela. Não reparei propriamente em quem estava ali, e sim em quem eu não conseguia localizar em lugar algum.
- ? – Amanda chamou, me balançando pelos ombros, que ela ainda segurava.
- Desculpa, não estava prestando atenção. – Murmurei distraída.
Ela sorriu maliciosamente.
- Eu sei quem você está procurando. – Provocou. – Mas ainda não vi seu gato por aqui... Não acha que já procurei?
Ela riu e olhei para Lissa, ainda parada as minhas costas, as mãos cruzadas enquanto ela nos observava com um sorriso doce. Me perguntei se ela seria minha assistente pessoal pela noite e percebi que sim, seria.
- Ele ainda não chegou. Já deve estar quase aqui. – Me garantiu, mas quando me virei, percebi que deu uma rápida olhada nas horas.
- Como você fisgou um peixe desses, garota? – Mandy bateu o quadril contra o meu. – Você era tudo o que comentavam na escola quando fiz um estágio por lá.
- É mesmo? – Perguntei, distraída, e olhei de relance para a porta.
- Claro que sim. – Amanda tornou a rir. – Você acha que não falariam? Primeiro você namora o Josh, que nenhuma garota jamais conseguiu chamar atenção por mais tempo do que duas semanas. Você sabe que eu mesma tentei. Então vocês ficam juntos e praticamente viram o Josh da e vice-versa, porque era impossível pensar em um sem lembrar do outro. E você também sabe como todo mundo olhava pra ele não é? Poderia ser modelo, inteligente, gentil, blá blá blá. Aí você me aparece namorando , olhando para ele nas fotos com esses olhinhos azuis. Qual é o veneno de ?
- Ele não é meu namorado. – Cortei, subitamente irritada que ela estivesse comparando com Josh.
- Não? – Amanda parou de repente e só então percebi que estávamos caminhando pelo salão. – Me desculpe, então.
- Tudo bem. – Suspirei. – Nós só... Ele namora outra pessoa. – Gaguejei. – Ela está aqui, para falar a verdade.
Mandy me analisou por um momento e tornou a comprimir os lábios. Olhei mais uma vez para a porta e soube que ela queria dizer alguma coisa, mas ficou calada.
- Eu vou pegar alguma coisa para beber, tudo bem? – Murmurou menos empolgada momentos depois, parecendo perceber que eu não estava muito feliz. – Te vejo daqui a pouco.
Assenti, sem lhe dar muita atenção, e tornei a encarar a porta do salão, esperando que se abrisse a qualquer momento.
- Você precisa disfarçar melhor. – Lissa comentou baixinho, fazendo carinho em meu braço.
Ergui os olhos para ela, respirando fundo e fechando os olhos, tentando me concentrar.
- Eu sei. Eu sei. – Fiz uma longa pausa, balançando a cabeça para clarear a mente e olhei ao meu redor. – Onde está minha mãe?
- Com os pais de Elizabeth. – Respondeu prontamente. Também fez uma longa pausa e seu toque se tornou mais firme. – Você não precisa lidar com isso agora.
Quando não respondi, ela saiu do meu lado para ficar bem a minha frente, me fazendo encarar seus olhos.
- , ela vai ficar bem. É seu dia, vamos esquecer isso só por um momento, está bem?
Assenti, sem conseguir tirar a tristeza do meu rosto, e tornei a olhar para a porta, esperando que ela se abrisse.
- O amigo do Josh está aqui. Mason. Se lembra dele?
Assenti mais uma vez, acompanhando-a quando me guiou pela multidão, e logo avistamos o garoto loiro. Era o tipo de bonitão clássico, mas eu não achava a mínima graça nele, apesar de sempre ter sido loucamente apaixonada pelo amigo que ele era; muito mais para Josh do que para mim.
Quando me viu, parou o copo a meio caminho da boca e me deu um sorrisinho.
- A aniversariante do dia! – Exclamou, abrindo os braços. Então lançou um olhar para o painel sob a mesa de guloseimas, que claramente dizia “A Andrew e ”, então acrescentou. – Bem, a outra aniversariante.
- Oi, Mason. – Murmurei com um sorriso que não parecia meu. Ele me abraçou de lado, se inclinando para beijar minha testa.
- Como você tem estado? – Perguntou, e o tom de sua voz quase me fez entrar em prantos.
- Ah, Mason. – Lamentei com a voz chorosa, me separando dele para encarar seu rosto. Como eu era uma vadia egoísta.
- Você desapareceu do mapa, garota. – Ele riu, mas não havia humor algum. Parecia se controlar para não dizer coisas muito desagradáveis.
- Eu sinto muito. – Sussurrei e me aproximei, porque aquilo era tão, tão pessoal, e eu não queria que ele sentisse que eu não me importava.
- Você não foi a única que sentiu a perda dele, huh? Eu estava lá muito antes de você aparecer. – Se afastou do meu toque, as mãos enfiadas nos bolsos e o rosto duro como uma pedra. Parecia se controlar para não chorar.
- Eu sei. – Minha voz saiu como um fiasco, muito mais fraca do que planejara.
- Você é uma vadia egoísta. – Ele sussurrou, manifestando meus pensamentos e se inclinando para que quem estivesse perto não ouvisse. Não reagi a suas palavras. – Você foi embora. Você fugiu de lá porque você sabe o que fez com ele. Você é uma covarde, . Você deu as costas para todo mundo que se importava com ele tanto quanto você. Você fugiu. – Cuspiu as palavras para mim e eu senti que se eu reagisse o mínimo que fosse, ele provavelmente iria me bater. Quando não esbocei qualquer emoção, ele tornou a ficar ereto, me encarando com a expressão impassível. – Eu estou aqui pelo seu irmão. Não vim aqui por você.
E me deu as costas, caminhando para o meio da multidão. Continuei ali, encarando o lugar que ele estava segundos atrás, em choque.
- ... – Lissa começou, mas ergui a mão para interrompê-la.
- Mais alguém que eu deveria cumprimentar? – Perguntei com a voz firme, fingindo que nada tinha acontecido.
Ela comprimiu os lábios como Mandy fizera, então assentiu como se ela mesma estivesse tentando não fazer alguma besteira e me guiou mais adiante.
O que pareceram dias depois, mas descobri terem sido apenas duas horas, eu havia cumprimentado praticamente todos os convidados e conversado brevemente com alguns deles, e sentia meus pés gritando para ficarem livres do tormento que eram os saltos.
- Eu vou ao banheiro por um momento, tudo bem? – Falei com Lissa, e antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, atravessei o salão e desci as escadas, abrindo a porta que dava para um cômodo redondo e vermelho, um sofá também redondo no meio e um espelho retangular a minha frente. Removi os dois sapatos, soltando um gemido de alívio e abri o zíper lateral do vestido, levando a mão para os cabelos e tirando alguns grampos. Quando me encarei no espelho, não me reconheci. A maquiagem continuava impecável e a garota no vidro era simplesmente maravilhosa, mas não parecia nada comigo. Eu não me sentia inteira da forma como ela parecia estar. A única coisa que eu reconhecia eram os olhos, muito grandes e azuis, e assim como eu me sentia, prestes a entrar em pânico. E antes mesmo que eu percebesse, estava chorando. E para minha completa fúria, a maquiagem não borrou nem um pouco sequer.
Naquele momento, eu quis chutar os sapatos e rasgar o vestido. Quis puxar meu próprio cabelo e me bater até que não restasse maquiagem. Eu era uma covarde. Aquele era o pior aniversário de todos e a única pessoa no mundo que eu queria que me consolasse, não estava ali. Ele não veio – disse para mim mesma. Chega dessa esperança muda, porque ele não vai aparecer. Não tem ninguém para impressionar, ele não tinha passado por aquela porta com aquele sorriso de “Oi, estou bem aqui”. Eu só queria ficar sozinha.
Mas como nada do que eu quero simplesmente acontece, houve uma batida na porta, e mesmo quando não respondi, Lissa entrou. E atrás dela vinham várias pessoas. Nick Grimshaw, Amanda, meu irmão, Cara e até a garota que eu beijara na boate estava ali. E todos estavam me vendo chorar. Como aquilo era patético.
Amanda e Pixie ficaram ao meu lado, tentando me acalmar, embora eu chorasse silenciosamente, sem dizer ou fazer qualquer coisa. Ao fundo, eu ouvia Lissa praguejar com Grimmy e a forma como ela falava me impressionou.
- Foi um fiasco. Foi tudo um fiasco. Aquele desgraçado. Eu disse o quanto era importante que ele estivesse aqui. Ele arruinou tudo. É tudo culpa dele.
Não é não, Lissa. Eu quis dizer, mas simplesmente não consegui obrigar minha boca a pronunciar as palavras.
Ela se calou e eu sabia que os amigos de estavam ali. Sabia que Amanda podia ouvir cada palavra e que ela entenderia tudo no momento que eu dissesse, mas não senti mais nada além de vontade de ir para casa quando sussurrei:
- Ele disse que estaria aqui.

***


Minha mãe parecia muito satisfeita com a festa, contando que ela se divertiu muito mais que eu. Andrew ficou calado o tempo todo, não ousando falar alguma coisa depois do que viu no banheiro, e eu simplesmente murmurei um boa noite e subi para o meu quarto, colocando os sapatos no canto da porta e removendo o vestido, jogando-o no chão e me atirando na cama, sem escovar os dentes ou remover a maquiagem ou qualquer coisa. Encarei o espaço vazio ao meu lado e vi o visor do celular acender sobre o criado-mudo. Ele só podia estar brincando.
- Hm. – Murmurei, pois não tinha vontade de fazer esforço para mais do que isso.
- Boa noite. – A voz de parecia feliz.
- Boa noite...
- Feliz aniversário. – Ele riu, então começou a cantar a musiquinha, me fazendo quase esboçar um sorriso triste, mas também não tinha muita vontade disso.
Quando terminou, eu tentei não chorar.
- Já passou de meia-noite. Não é mais meu aniversário. – Murmurei, mordendo o lábio inferior porque meu nariz começou a arder e eu sabia que em segundos meus olhos estariam cheios de lágrimas.
- Eu sinto muito que eu não tenha ido. – Murmurou, sério, e não disse mais nada.
- Eu sinto muito também. – Respondi e encerrei a ligação, tornando a colocar o celular no criado-mudo. Esperei que ele ligasse de novo, mas o telefone não tocou.
Me virei para o teto e fechei os olhos. E naquele momento, pela primeira vez em muito tempo, me deixei sentir falta de Josh, porque ele jamais deixaria de aparecer no meu aniversário e jamais me deixaria ficar triste por mais de cinco minutos. Senti falta dele e de como ele beijava minha testa e arrumava meu cabelo, e senti falta de segurar sua mão e senti falta de rir das coisas que ele dizia. Senti falta de simplesmente conversar com ele e poder sentir o calor do seu corpo, e tive de lembrar a mim mesma que aquilo nunca mais iria acontecer, porque não havia calor, e a essa altura, quem dirá havia algum corpo enterrado debaixo de toda aquela terra. Não era justo, de todas as formas que eu conseguia analisar a situação. Eu queria que ele me desse mais um pingente para o colar em meu pescoço, como ele fazia em todo aniversário, e queria tanto que ele me fizesse parar de chorar e fizesse a dor simplesmente ir embora. Mas era ele quem tinha ido embora e não havia nada que eu pudesse fazer. Quando fiquei mais triste ainda porque não apareceu, me senti a pessoa mais culpada do mundo. Porque eu estava pensando em Josh. E aquilo era Josh. E eu não podia deixar simplesmente interferir em uma coisa que era tão, tão íntima para mim quanto Josh. Ele era eu, e mesmo quando repeti isso várias vezes para mim, não consegui me convencer que eu era ele. Porque não era.
Tornei a me inclinar em direção ao criado-mudo e puxei uma folha de papel da pilha ao seu lado, revirando a gaveta até encontrar uma caneta.
Quando me mudei para Londres, jamais me imaginei terminando escrevendo em um papel manchado de lágrimas: “Eu só não conheço qualquer parte minha que não seja completamente tua. E me pergunto como é que mesmo sendo tão sua - não conheço nenhuma parte de mim que possa de fato te pertencer.”
Soltei um suspiro.
Feliz aniversário, .

Capítulo 28: Bright Lights and Cityscapes


Eu tinha plena consciência de que o professor estava a frente da sala: sua voz parecia amplificada em meu estado semi-consciente, assim como outros dos meus sentidos também pareciam aguçados; a mochila contra o meu rosto era muito mais incômoda do que era o esperado e o cheiro de Ryan era tão forte que eu parecia ter adormecido em cima dele.
Temendo que fosse de fato o que tinha acontecido, abri os olhos de supetão, me erguendo e olhando para minha esquerda, completamente apavorada.
- Pesadelos, Senhorita ? - O professor de linguística perguntou da frente da classe, fazendo algumas cabeças sorridentes virarem em minha direção e outros alunos apenas darem uma risadinha, a atenção ainda a frente.
Senti meu rosto esquentar em tempo recorde e arrumei o cabelo desajeitadamente, pigarreando antes de responder:
- Não, senhor. Desculpa...
Ele fez um gesto de desprezo com as mãos e continuou a explicar como existiam pouquíssimas palavras flexíveis na língua inglesa e suas curiosidades como se eu nunca tivesse lhe atrapalhado.
- Você ronca. - Ryan comentou solenemente e quando me virei em sua direção mais uma vez estava sério, embora os cantos de sua boca tremessem conforme ele tentava conter a risada.
- Isso não é verdade. - Debochei, mas senti meu rosto esquentar da mesma forma.
- É sim. - Ele me olhou como se não adiantasse discutir. - Mas não se preocupe. É um ronco bonitinho.
- Não existe nada tipo um "ronco bonitinho". - Insisti e dessa vez ele não conteve o sorriso que apareceu em seu rosto.
- Parece o ronronar de um gatinho. - Explicou, e quando teve certeza que o professor não olhava em nossa direção, esticou o braço e apertou meu nariz entre o dedo indicador e o polegar, os olhos nunca deixando a frente da classe.
Estapeei sua mão para longe e arrumei a postura na cadeira, prendendo o cabelo devidamente e alinhando a mochila, assim como o suéter.
Ryan me olhou de soslaio, apontando para a própria testa e tornando a conter um sorriso. Passei os dedos apressadamente pela franja, franzindo o cenho.
- Não sei quando você é mais fofa... - Sua voz sussurrou ao meu lado, o corpo inclinado em minha direção, mas os olhos ainda fixos no homem que falava a nossa frente. - Quando está roncando ou quando está com carinha de brava.
- Vai ser muito fofo quando eu amassar a sua cara. - Grunhi em um tom bem baixo, tão baixo que não tive certeza se ele ouviu.
- Você parece aquele gatinho da internet quando franze o cenho assim. - Concluiu após me analisar por breves segundos, a atenção voltando para frente.
- Você é ridículo. - Conclui e enfiei o rosto nas mãos, os olhos ainda fechando com o peso da minha noite sem dormir.
- O que te manteve acordada? - Ryan provocou, com a voz maliciosa. - Seu namoradinho daquela bandinha? Isso desmente completamente todas as vezes que o chamei de veado.
- Cala a boca! - Exclamei, talvez alto demais, porque a voz do professor pausou por um momento lá na frente. Quando me virei, vi que ele me encarava, mas ao invés de chamar minha atenção ou me expulsar da sala, não disse nada, e voltou a falar como se eu não tivesse interrompido. Quando me voltei para Ryan mais uma vez, ele me encarava com uma expressão quase assustada.
- Eu passei a noite acordada vigiando minha mãe. Ela não reconhecia a casa, a rua ou a vizinhança. Eu não podia ir dormir e deixá-la chorando lá. Não que seja da sua conta o que eu faço com a minha vida. - Sussurrei com raiva, pegando minhas coisas e lhe dando as costas. Senti várias pessoas me encarando quando desci as escadas em direção à porta, mas ninguém disse alguma coisa.
Quando vi os corredores vazios, agradeci mentalmente e me sentei no primeiro degrau das escadas, escorando-me contra a parede e enfiando o rosto nas mãos. Eu só queria ir para casa dormir, mas não queria ir pra casa, não sabia se ao menos podia continuar pensando naquele lugar como meu refúgio, visto que eu fazia qualquer coisa ao meu alcance para evitar o momento que eu teria de voltar.
Soltei um suspiro pesado, respirando fundo e tentando clarear a mente; se eu não colocasse as coisas na linha, iria continuar descontando tudo o que sentia nos outros, e para começar eu tinha que acabar com o maior motivo da minha frustração: descontar minha raiva em .
Tirei uma alça da mochila do ombro e revirei o bolso da frente, pegando meu celular e passando pelos contatos até chegar em seu nome. O telefone tocou três vezes.
- ?
Eu tornei a suspirar, enfiando a mão por baixo da franja e esfregando a testa.
- A gente pode conversar?
Ele não respondeu por um momento e houve o som de outras vozes, mais abafadas. Percebi que ele abafava o alto-falante com a mão e quase me senti ofendida, mas ele tornou a falar comigo, soando alto e claro.
- Claro. Onde você quer me encontrar?
Franzi as sobrancelhas.
- Você está na cidade?
- É claro que sim. - Ele respondeu como se fosse óbvio, o que me ofendeu mais ainda. Eu não teria perguntado se ele tivesse me dado qualquer sinal de vida no dia do meu aniversário ou na semana que se seguiu.
- Eu posso te encontrar na sua casa? - Perguntei e tratei de controlar a voz. Ele fez um som irreconhecível com a garganta e murmurou um "tudo bem" em seguida. - Eu te vejo daqui a pouco então.
Removi o telefone do ouvido e encerrei a ligação antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. Me ergui e terminei de descer os degraus, meus passos me guiando para o ponto de ônibus enquanto eu tentava não pensar no quanto estava com raiva dele.

***


Havia exatamente quinze minutos que eu estava sentada na escada em frente a porta de , posição fetal, os fones em ambos os ouvidos e o sono quase tomando conta do meu corpo quando senti que alguém estava por perto. Ergui a cabeça e o vi colocar o carro na garagem, escutando a porta bater momentos depois. Removi ambos os fones e o observei caminhar em minha direção, o rosto indecifrável. Vestia uma camisa cinza simples, jeans justos e aqueles sapatos horríveis. Reprimi a vontade de revirar os olhos.
- Eu mal cheguei na minha própria casa e você já está me julgando? - Exclamou, abrindo o sorriso e os braços simultaneamente, os passos paralisados a cerca de três metros de onde eu estava.
Sorri sem mostrar os dentes, curvando os lábios para o lado.
- Se você não quer ser julgado, não use esses sapatos. - Pontuei, indicando as botas horrorosas com o olhar. - É tão fácil praticar bullying em você quando usa isso. - Comentei, ainda encarando as botas, que agora se aproximavam. - É como se você estivesse pedindo.
- Minha stylist não tem nada contra meus sapatos.
- Ela tem. - Garanti, tornando a olhar em seus olhos. - O contracheque dela que é gordo demais para que ela diga alguma coisa.
Ele tornou a pausar, dessa vez aos pés da escada, a expressão ficando confusa.
- Acho que estou legitimamente ofendido. - Concluiu, terminando de subir os degraus e sentando ao meu lado.
- Eu estou com frio. - Avisei, me perguntando como é que ele aguentava estar ali fora com os braços expostos.
- O clima aqui está tão bom. Olha só essas árvores, essa grama. - Ele respirou profundamente. - Esse cheiro de neve prestes a estragar tudo.
- Você tem uma lareira. – Insisti. - Se você não abrir essa porta agora, eu roubarei suas chaves.
- Pare de esfregar suas mãos no jeans, tira a maciez deles.
Paralisei completamente no meio do ato, prestando completa atenção nos segundos de silêncio que se seguiram, e ergui os olhos para ele.
- Você se ouviu?
Ele franziu as sobrancelhas.
- O que tem?
- Isso foi completamente gay. - Conclui, me erguendo e esperando que ele imitasse meus gestos.
suspirou, levantando-se e caminhando até a porta para abri-la.
- Você é tão agradável. - Concluiu com outro suspiro.
- Por isso você não foi ao meu aniversário? - Falei baixo, muito baixo, mas mesmo assim ele pareceu ouvir. Paralisou antes de abrir a porta, a mão ainda na chave, os olhos fixos a frente. Seu corpo ficou tenso por vários segundos antes de ele assentir para si mesmo.
- É sobre isso que você quer conversar. - Concluiu, abrindo a porta para que eu entrasse e se oferecendo para pegar meu casaco. Lhe dei as costas, cruzando os braços e caminhando até a sala. Ouvi ele xingar um palavrão e suspirar mais uma vez as minhas costas.
- Foi uma festa bonita? - Perguntou, hesitando a frente do sofá, como se fosse me ofender se sentasse.
- Você deveria ter ido. – Falei, como se ele não tivesse dito nada.
- Eu queria.
Coloquei a bolsa na poltrona mais próxima a mim, passando as mãos fervorosamente no rosto. permaneceu em silêncio, parado sem ter certeza do que fazer com o próprio corpo.
- Você vai ficar calado aí? – Exclamei, com raiva, lançando o braço em sua direção. - Não vai nem mesmo inventar alguma desculpa?
Ele tremeu, como se estivesse ao alcance do meu toque e eu tivesse acabado de bater nele, fechando os olhos por um momento e suspirando talvez pela décima vez no dia.
- Eu sinto muito.
Reprimi a vontade de gritar em frustração.
- Eu já entendi que você sente muito. - Sibilei, a voz trêmula conforme eu tentava controlá-la em um tom normal. - Você me ligou, provavelmente bêbado, para dizer isso, lembra?
- Você quer pegar um pouco mais leve? – Censurou, com o cenho franzido. - Foi só um aniversário.
- Só um aniversário? - Ecoei em choque. - Só um aniversário? - Repeti, dessa vez desafiando-o a confirmar.
- Não foi tipo sua formatura...
- Que você também não foi. - Acusei.
Ele parou, parecendo se lembrar disso e passou ambas as mãos pelos cabelos, atrapalhando-os.
- Eu tenho um trabalho, você não pode simplesmente...
- Era o meu aniversário! - Gritei, interrompendo. - Você estava aqui! Não me venha com essa desculpa ridícula de...
- Era só uma festa ridícula! Por que eu deveria me sentir tão culpado? Você faz com que eu me sinta como se tivesse feito algo terrível! - Acusou também, e sua voz era completamente assustadora quando ele a usava naquela altura.
- Eu queria que você estivesse lá. - Pretendia dizer aquilo firmemente, quase como outro possível grito, mas minha voz saiu como se eu estivesse a beira de lágrimas. O que eu estava.
- . - Ele disse meu nome e algo em mim se remexeu como se a forma como ele saía de sua boca fosse uma nova religião. Sua voz estava pesada, como se ele estivesse tão magoado quanto eu, tão perturbado quanto eu, o que era completamente inaceitável.
- Você não acha que fez algo terrível? – Perguntei, minha voz ainda baixa e cada palavra passava através da sua pele.
Ele permaneceu em silêncio, os olhos me implorando para que não o torturasse daquela forma, que era o bastante. Eu percebi como doía nele saber que havia decepcionado alguém. Havia muitas coisas que eu queria dizer, mas eu sabia como iria magoá-lo, então as enterrei e deixei que magoassem a mim.
- Eu sinto muito. - Repetiu e sua voz estava trêmula, fraca. Ele também parecia prestes a chorar, mas eu duvidava que fosse fazê-lo.
- Você me magoou. - As palavras saíram antes que eu pudesse pensar melhor e não dizê-las. Elas fizeram com que eu me sentisse fraca e pequena diante dele, como se assumir aquilo a sua frente estivesse me expondo, como se eu estivesse nua. Eram tão simples e infantis que pareciam pertencer a outra pessoa, mas eu não poderia negar a verdade por trás delas.
Seu rosto se contorceu levemente como se aquilo tivesse doído.
- Você sente tudo profundamente demais. - Ele balançou a cabeça - É como se o mundo pesasse demais nas suas costas.
Franzi os lábios, sentindo meu nariz arder e tentando reprimir as lágrimas.
- Não fale disso. - Avisei em um sussurro, a visão embaçando quando comecei a chorar. - Não ouse falar disso.
- Faz quanto tempo desde que alguém tocou outra parte de você além do seu corpo? - Sua voz era mais baixa agora, mais suave.
- O quê? – Questionei, incrédula. - De onde você tirou isso?
Ele suspirou, trocando o apoio do corpo e balançando a cabeça mais uma vez.
- Sabe, , eu ouvi histórias sobre você...
- Do que você está falando? Eu jamais falei disso com alguém além d... Você falou com o meu psiquiatra? - A pergunta saiu quase como uma ameaça. Ele corou, entregando completamente o jogo.
- Não foi exatamente assim...
- Você não tinha direito de fazer isso. - Tornei a acusar, me sentindo anos mais velha e tão, tão cansada.
- Eu estava preocupado com você.
- Era a minha privacidade. - Balancei a cabeça, sem energia para mostrar qualquer outra emoção além de tristeza; - Você não tinha o direito de fazer isso.
- Você precisa...
Ele interrompeu a própria frase quando soltei uma risada, mas não havia humor algum.
- Você não está fazendo isso. - Falei, sem acreditar. - Você não está tentando mudar o foco para mim...
Ele finalmente se sentou, apoiando os cotovelos nos joelhos e enfiando o rosto nas mãos.
- Eu não aguento mais você fazendo isso. Você faz as coisas, mas não pensa em como elas afetam as pessoas. Não me entenda mal, eu sei que você se importa, se importa tanto que as vezes me dói magoar você. Mas você não pode se importar e achar que isso conta como amor. Você me dói tanto. - Eu conseguia ouvir minha própria voz e sabia como ela estava completamente apaixonada, mas eu não conseguia fingir que sentia menos. - Eu tento não sentir tanto, mas você me obriga. Você me obriga toda vez.
Ele ergueu a cabeça das mãos, os olhos tristes, a expressão como se ele também tivesse envelhecido vários anos.
- Você está quebrando o meu coração. - Acusou. As palavras eram infantis e quando proferidas pareciam tão bobas quanto as minhas, mas, mais uma vez, eu não poderia negar a verdade por trás delas.
- Você quebrou o meu.
Ele balançou a cabeça novamente e me lançou um sorriso triste.
- Ele já estava quebrado, . - Sua voz tornou a ficar trêmula. - Você me acusa dessas coisas, mas... Eu não posso tocar em você. Eu não sei onde colocar meus dedos porque você está completamente ferida e eu tenho a impressão de que tudo que digo ou faço te machuca um pouco mais. Você não pode me dizer essas coisas. Você é uma das poucas pessoas que eu preciso e você está estragada. Eu não posso te consertar, tanto quanto não mereço levar a culpa de ter te deixado assim.
Coloquei a mão sobre os lábios, sentindo como se até o meu direito de me sentir miserável estivesse sendo tirado de mim. Ele lia cada parte de mim como se eu fosse um livro aberto, quebrava cada barreira com que eu tentara esconder o que sentia e pensava e eu me sentia exposta como se ele tivesse arrancado cada peça de roupa em meu corpo.
- Você não pode me condenar por ser como eu sou... Por me sentir como eu me sinto.
- Você precisa parar de ter orgulho em sua capacidade de se autodestruir! - Ele exclamou; a voz tornando a aumentar de volume.
- Você joga a culpa em mim, você me diz todas essas coisas, mas você... Você não tem noção de como eu me sinto. Como eu...
- Ele morreu, ! – Gritou; se erguendo do sofá e por um momento eu temi que ele fosse fazer algo mais drástico do que gritar. - Ele morreu e você se remói todos os dias como se tivesse atirado na cabeça dele. Você deixa isso te comer viva e você mesma disse que nem sabe se ele te amava, mas você fica presa nesse sentimento, se sentindo miserável como se não houvesse outra saída.
- Não fale do Josh. – Avisei. - Não fale sequer uma palavra sobre ele. - Meus olhos embaçaram mais uma vez. - Você não entende. Você não entende nada do que aconteceu e porque eu tinha minhas dúvidas. Esse assunto é íntimo demais para que você, além de qualquer um, queira jogar algo na minha cara assim.
- Você precisa esquecer isso, você não pode viver o resto da sua vida com a culpa de algo que você não fez.
Também lhe lancei um sorriso triste, balançando a cabeça.
- Uma vez o Josh me disse que... O que você não entende sobre sua idade é que quando você faz onze anos, você também tem dez anos, e oito e nove. E quando você acorda no seu décimo primeiro aniversário, você espera se sentir como se tivesse onze anos, mas não se sente. Você abre seus olhos e tudo é como ontem, exceto que é hoje. E você não se sente como se tivesse onze anos de maneira alguma. Você sente como se ainda tivesse dez. E você tem - por baixo desse ano que faz você ter onze. Como quando você diz algo estúpido: essa é a parte de você que tem dez anos. E alguns dias você se sente tão assustado com o mundo que só quer abraçar sua mãe - essa é a parte de você que tem cinco anos. E um dia você está completamente crescido e precisa chorar como se tivesse três anos. E tudo bem. É isso que eu disse para minha mãe quando ela chorou comigo - talvez ela estivesse se sentindo com três anos. E você não entende, . Você só tem dez.
Ele ficou em silêncio por um momento, mas o que eu disse apenas pareceu irritá-lo ainda mais.
- Nada disso justifica você ser como é. As coisas que eu li na sua ficha...
Ele balançou a cabeça e pareceu não se importar em ter entregado como havia descoberto aquelas coisas sobre mim. Parecia cansado - cansado daquela discussão e cansado de me ter ali.
- Eu passei muito tempo procurando por afeição em lugares vazios. Eu dei pedaços de mim que as pessoas não mereciam, e eu me deixei ser machucada porque eu achei que era isso que eu merecia, mas você não pode me julgar pelo que eu fui e não pode condenar o que eu sou.
- Talvez o motivo que você se odeia tanto seja porque você colocou todo o seu amor em um babaca morto e não sobrou nenhum para si mesma.
Recuei como se ela tivesse me batido.
- Você não... Ele morreu. – Concordei. - Mas a morte termina uma vida, não um relacionamento. Talvez sua amplitude emocional só seja madura a ponto de entender a tristeza de terminar com alguém. Você não parece ter abandonado o colegial mentalmente.
- Eu sinto muito que ninguém te amou de verdade e isso te tornou cruel.
Assenti, comprimindo os lábios. Talvez eu vivesse até os sessenta ou setenta anos, mas eu não tinha certeza se em toda a minha vida o perdoaria por ter dito todas aquelas outras coisas.
Queria gritar com ele, mas minha frustração se tornou apenas um bolo em minha garganta que logo que se desmanchou em lágrimas - mais do que eu poderia controlar.
Ao me ver sentar na poltrona daquele jeito, ele pareceu cair em si, a expressão se apavorando como se ele tivesse atirado em mim. Abriu os braços, caminhando em minha direção e se ajoelhou a minha frente, murmurando diversos "sinto muito" enquanto limpava as lágrimas que não paravam de descer pelo meu rosto.
- Me leva pra casa? – Pedi; ainda chorosa, e ele me deu a mão, assentindo sem dizer mais alguma coisa.
Minutos se passaram até estarmos a minha porta. Eu estava no carro com um garoto incrível e ele não disse que me amava, mas eu sabia que sim. Eu sentia como se tivesse feito algo horrível - como se tivesse assaltado alguma loja ou engolido um frasco de antidepressivos ou cavado uma cova e deitado lá dentro, e eu estava cansada. Eu estava no carro com um garoto incrível e eu estava tentando não contar para ele que eu o amava. Eu abri minha boca, quase disse algo. Quase. Minha vida inteira poderia ter tomado outro rumo se eu tivesse dito, mas eu tentei engolir o sentimento. Quando comecei a tremer, ele estendeu a mão para segurar a minha e eu senti meu coração apertar no meu peito, como se eu tivesse descoberto algo que eu não conseguia nem mesmo nomear.
- Eu não sou boa em muitas coisas. - Comecei, limpando o rosto com a mão que ele não segurava. - Eu não posso pintar algo para você porque as coisas na minha cabeça não podem ser traduzidas. Também não posso cantar para você, já que minha voz tem o hábito de se tornar completamente vulnerável ao que eu sinto. Também não posso tocar nada para você, porque minhas mãos tremem só de pensar que você está me olhando. Mas eu posso passar os dedos pelo seu cabelo e acariciar suas costas quando seu dia é duro demais para você mesmo carregar. Eu não sou boa em muitas coisas, mas eu seria boa para você. - Soltei uma risada involuntária, derramando mais algumas lágrimas e olhando nos seus olhos, que absorviam cada palavra. - Deus, de todas as pessoas no mundo que poderiam ter me rasgado em retalhos, eu não entendo porque tinha que ser logo você. Eu não sei como ter você quando você me machuca tanto, mas eu também não sei como abrir mão de você.
"Cada vez que seus dedos me tocam parece que eles estão queimando buracos na minha pele e dói quando olho para você, e dói quando não olho, e cada vez que eu respiro parece que alguém me corta incontáveis vezes com um caco de vidro. E eu tenho esse impulso... Porque eu tenho que sentir sua pele e eu tenho que sentir seu gosto na minha boca... Você precisa entender, uma pessoa não pode simplesmente amar e não fazer nada. Você é tudo o que eu vejo e você é o único que eu quero conhecer."
"Você não é a primeira pessoa por quem me apaixonei. Você não é o primeiro que eu olhei com uma boca cheia de 'para sempres'. Nós dois conhecemos a perda como os lados agudos de uma faca. Nós dois vivemos com mais cicatrizes do que pele. Meu amor por você veio sem anúncio, no meio da noite, meu amor por você veio quando eu já havia desistido de pedir que ele não viesse, e eu acho que isso é parte do seu milagre. É assim que nos curamos e superamos nossas perdas. Eu te beijaria como perdão e te abraçaria como esperança. Eu sou apaixonada por palavras, mas mais do que isso, sou apaixonada por você. E eu irei escrever sonetos sobre o sal do suor em sua pele, irei escrever sagas inteiras sobre a cicatriz no seu nariz e escreverei um dicionário inteiro com todas as palavras que eu usei tentando descrever o sentimento de ter finalmente, finalmente te encontrado. Eu não condenarei o que suas cicatrizes fazem de você. Eu sei que é difícil aceitar tudo o que eu estou falando, mas, por favor, eu quero que você saiba: sendo os dias em que você brilha mais do que o sol ou as noites que você precisará entrar em colapso nos meus braços, seu corpo quebrado em um milhão de dúvidas, você é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida. Eu vou te amar quando você ainda for um dia ensolarado. Eu vou te amar quando você for uma tempestade."
Fiz uma pausa, comprimindo os lábios e limpando as últimas lágrimas que desciam pelo meu rosto. Esperei que ele dissesse alguma coisa, mas permaneceu em silêncio, os olhos esquadrinhando cada pedaço de mim como se fosse a primeira vez que estivesse, de fato, me vendo.
- Eu sei que você ama outra pessoa. Então eu seguro o meu fôlego e conto até dez cada vez que o pensamento de ter você cruza a minha mente. Você precisa entender, eu nasci para ser uma escritora. Para escrever o meu próprio universo e a maneira como vejo as coisas. Eu sou o papel e você é minha caneta, você me preenche e é permanente, e então você me deixa. Eu sou a que você sempre escolhe. - Sorri tristemente para ele, sabendo que era verdade. - Ela fará algo errado e você virá culpá-la, porque isso é um ciclo vicioso. Ela te machucará e você virá até mim. Ela é as luzes dessa cidade e as paisagens que a cercam, ela é as mentiras brancas que conta para te fazer feliz, mas você precisa enxergar o que está diante dos seus olhos, o que estou dizendo bem aqui. – Fiz uma pausa, olhando em seus olhos com toda a culpa que eu vinha sentindo havia meses. - Você precisa me dizer que vai ficar tudo bem. Eu não quero te magoar, não importa o que eu disse na sua casa.
Ele abriu a boca, mas levei os dedos até seus lábios, interrompendo-o.
- Ela vai tomar tudo de bom que existe dentro de você. Você disse que dessa vez talvez dê certo, mas eu vou te amar. Eu vou te amar como você merece, tão certo que eu não precisaria de uma segunda chance.
"Eu te amei quando você segurou minha mão e quando você quis, mas não o fez. Eu te amei quando você me deixou tão irritada que eu queria socar cada parte alcançável do seu corpo e eu te amei quando não gostava nem um pouco de você. Foi como se minha alma tivesse te visto e dissesse 'Aí está você. Eu tenho te procurado' e, meu Deus, eu te amo agora, enquanto você me olha com essa vergonha que disfarça a sua pena por não gostar de mim." Balancei a cabeça, limpando outras lágrimas que ousaram a cair, e voltei a encarar seus olhos "Eu quero que você seja feliz, e se não é comigo, tudo bem, porque você é a única pessoa que eu amei o suficiente para colocar a frente de mim mesma, e é isso que amar significa, não é?"
Ele fechou os olhos, os abriu novamente e comprimiu os lábios, como se quisesse me dizer que meu cachorrinho morreu, mas não quisesse me machucar.
- Eu realmente gosto de você e eu realmente queria não gostar, mas eu não posso fazer nada quanto a isso. Eu te amo, . Eu já sei disso há algum tempo, mas não tive coragem para dizer alguma coisa antes. Eu te amo e eu sinto muito, mas eu não posso dizer que sinto menos do que sinto nesse momento.
Ele permaneceu em silêncio, em choque, absorvendo cada palavra do que eu disse, e eu sabia que ele tinha entendido. Então soltou a mão da minha e removeu o cinto de segurança, virando o corpo na minha direção. Segurou uma das minhas mãos e acariciou meu rosto com os dedos que não estavam entrelaçados aos meus.
- Eu me sinto lisonjeado que você se sinta dessa forma por mim. – Fez uma pausa, umedecendo os lábios e respirando fundo - Eu sei que você pensa que está apaixonada por mim, mas você vai encontrar alguém melhor. Alguém que goste de você como você merece e queira passar o resto da vida ao seu lado, e você não deveria se contentar com nada menos do que isso. Eu me sinto honrado, realmente honrado, mas eu não posso retribuir e você não merece alguém assim.
Soltei uma risada, virando o rosto para beijar sua mão que ainda estava ali.
- Já me disseram para nunca colocar minha felicidade nas mãos de ninguém. Eles a derrubarão. Eles a derrubarão todas as vezes.
Sua expressão se fechou e ele limpou uma lágrima que ousou descer pelo meu rosto.
- Você está quebrando o meu coração. - Repetiu em um sussurro, a voz ferida, mas ainda doce.
- Você quebrou o meu. - Repeti também, beijando sua mão mais uma vez e saindo do carro.
Caminhei em direção à porta, esperando que acontecesse como nos filmes e ele viesse correndo atrás de mim, mas ele não me seguiu.

Capítulo 29: I used to have such steady hands, now I can’t keep them from shaking


Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Anne , 18 anos. Brighton, e há um ano, Londres. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Sala de vídeo da Universidade de Londres, por volta de seis da tarde, 18 de Dezembro de 2012. Estou sozinha? Consigo respirar? Consigo organizar meus pensamentos? Não. Não.
Não.
Quando tendo ataques de pânico, os médicos recomendam que você respire profundamente cinco vezes, cite três coisas sobre você, então respire profundamente mais cinco vezes e tente citar três coisas de que você tem certeza - naquele momento. Depois, se pergunte as três essenciais perguntas para sua saúde mental: Você está sozinho? Consegue respirar? Consegue organizar seus próprios pensamentos?
Não.
Não.
Não.
As perguntas parecem retóricas, pois no momento que as faço a mim mesma e as respondo, sei que estou mentindo. Então me lembro de que não consigo respirar sem ter que buscar por ar imediatamente depois.
Não.
Estou com alguém, mas sou incapaz de obrigar minha boca a pedir ajuda.
Não.
Meus pensamentos se alinham, sei o que tenho que fazer. Respirar, organizar as ideias, me levantar e enxergar o ambiente em volta. Mas no momento que penso isso, não vejo a mim mesma fazendo qualquer uma de tais ações.
Não.
- ? - A voz de Ryan confunde ainda mais minha cabeça. Sei que ele está lá, mas ao mesmo tempo me soa tão, tão distante. - Você está bem? Quer que eu ligue para alguém?
Respiro profundamente mais cinco vezes. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Anne , 18 anos. Brighton, e há um ano, Londres. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Eu amo . Eu amo . Eu amo . Penso, e logo minha visão embaçada escurece de vez. Espero pelo impacto contra o chão, mas ele nunca chega.

No momento que reconheço o barulho da máquina que registra os batimentos cardíacos, aperto os olhos já fechados e reprimo a vontade de me matar. Que merda eu tinha feito agora?
- Como você está se sentindo? - A voz de Andrew pergunta antes mesmo que eu termine de abrir os olhos.
- Bem. - Respondo de mau humor, irritada que ele esteja ali e principalmente irritada que eu seja o motivo.
Meu irmão desviou os olhos para as mãos assim que despertei completamente, abrindo a boca como se quisesse dizer alguma coisa, mas tornando a fechá-la logo em seguida.
- O que foi? Disseram alguma coisa? - Perguntei, me interrompendo no movimento de prender os cabelos.
- Nada demais. - Balançou a cabeça diversas vezes e suspirou. - Daqui a pouco vêm aqui te dar alta. O médico disse que quer te dar uma última olhada antes de liberar.
Assenti mas não me dei o trabalho de respondê-lo.
- E minha mãe? - Perguntei depois de alguns momentos.
Andrew moveu os olhos pela sala, a expressão perturbada.
- Ela voltou pra casa, . Estava aqui nas últimas duas horas, mas sempre começava a chorar do nada e nos perguntar se você estava morrendo. O pai achou melhor levá-la embora…
- Você não precisava ter ficado. - Murmurei a contragosto, me erguendo e encostando contra os travesseiros. Andrew olhou para mim pela primeira vez desde que acordei.
- Eu quis ficar. - Disse, me encarando em tom desafiador.
Senti meu queixo erguer um pouco e franzi as sobrancelhas, endurecendo o rosto.
- Eu preferia que não tivesse ficado. - Falei com a voz cheia de veneno.
Pareceu surpreso por um momento, então vislumbrei um breve relance de culpa antes dele me dar as costas, avisando que iria chamar o médico para sairmos dali logo.
Quando apareceu, o doutor me fez diversas perguntas as quais eu estava terrivelmente cansada de responder nos últimos anos, então verificou minha pressão e recomendou que eu não saísse pelo rosto do dia. Quando a enfermeira me ajudou a me vestir e enfim saí para o corredor, Andrew e Ryan estavam encostados em paredes opostas, ambos evitando se encarar.
- Ei… - Ryan murmurou, deslizando o corpo para longe da parede e o trazendo em minha direção. - O que aconteceu? Você está bem?
- Um pouco de dor de cabeça. - Ergui as sobrancelhas como se estivesse apenas esperando pelo que mais a vida tinha de me oferecer. - Mas tudo bem. Você ficou aqui o tempo todo? Que galante!
- Não… - Ele riu. - Fui em casa, tomei um banho, guardei meus materiais… Então vim ver como você estava.
- Não acredito que não sou sua prioridade. - Lamentei, mas ele apenas riu e pousou o braço sobre meus ombros.
Comecei a caminhar em direção a saída e Andrew nos seguiu sem dizer nada, os olhos pregados no chão. Parei de supetão quando vi o carro no estacionamento e me virei para Ryan.
- Te vejo qualquer dia.
- Te vejo segunda. - Corrigiu, beijou minha bochecha e caminhou para minha direita. Me voltei para o meu irmão.
- Acho que vou pegar um ônibus. Você sabe onde está minha mochila? - Cocei a nuca, encarando seus olhos tão azuis e tão exatamente iguais aos meus.
- Deve estar em casa. Você pode vir comigo, não vou… - Parou por um momento e desviou o olhar, engolindo em seco. - Não vou bater o carro ou qualquer coisa assim. Não vou conversar com você se não quiser.
Assenti, comprimindo os lábios e caminhando silenciosamente até o carro. Andrew destrancou o veículo e também não disse mais nada, dando partida assim que coloquei o cinto de segurança.
Suspirei.
O percurso seria longo.

***


Como nas últimas semanas, encarei a escrivaninha em meu quarto e suspirei, pensando como é que eu consegui deixá-la tão bagunçada. De qualquer forma, se eu continuasse esperando ali até que ela se arrumasse sozinha, provavelmente morreria antes de qualquer progresso, então me adiantei para começar a separar as folhas que já não precisava mais das que ainda poderiam vir a ser úteis.
O progresso foi lento, uma vez que a cada texto recém descoberto eu ficava lendo e relendo até jogar a obra para um lado, me arrependendo de alguma vez ter escrito. Sempre fora meu mantra: “nunca escreverás algo e lerás depois, por ler depois significar o provável fim de qualquer coisa já escrita”, mas me esquecia momentaneamente e tornava a ler os textos de novo. Quando toquei o quinto, prometi a mim mesma que leria os outros apenas mais uma vez e então nunca mais os tocaria novamente, quem sabe daqui a dois anos, ou cinco.
- Quanto papel jogado fora. - Ouvi a voz de Lissa sem ao menos me dar conta de que ela estava ali. Sorri involuntariamente, me virando para encará-la.
- Você voltou! - Exclamei, me sentindo leve com ela ali.
- Eu volteeei! - Cantarolou, abrindo os braços para me abraçar. Quando nos separamos, se sentou na cadeira perto da porta e colocou a bolsa no chão, apoiando as mãos no encosto e o queixo nas mesmas, sorrindo ao me ver “trabalhar”. - Mas hein, me diz, qual é a de tanto prejuízo para a natureza?
- Separei os trabalhos em duas partes: “vou guardar, mas só vou reler quando estiver casada” e “é uma vergonha que isso sequer tenha existido”. - Disse, convicta, atirando mais um texto na lata de lixo.
- É uma vergonha que tenham tido uma existência tão breve. - Lissa corrigiu, a expressão pensativa. - Quer dizer, antes de você adicioná-los no projeto do seu livro.
Voltando a encará-la, sorri: - Não estou escrevendo livro algum. - Disse.
- Você bem sabe que poderia.
- Não tenho coragem. - Disse com simplicidade, organizando a pilha de textos em uma pasta. Dentro dela, li algo de relance. Desconheço qualquer parte minha que possa de fato te pertencer. Desviei os olhos com velocidade, tentando desviar a mente da direção que aquele texto tomava. A verdade é: depois que disse aquelas coisas para , coisas que me arrependeria pelo resto da minha vida, me recusava a pensar no que ele disse. No que eu disse, e em todas as maneiras que nos machucamos aquela noite. Não importa o quanto evitasse pensar no assunto, era incrível quanto barulho duas pessoas se evitando podiam fazer.
- ! - Lissa exclamou, fazendo com que eu me sobressaltasse ao focalizá-la novamente. - Para de ficar avoada!
- Desculpa. - Murmurei sem graça. - O que foi que você disse?
- Nunca li nada seu. Mas aposto que você poderia escrever sim um livro se quisesse… Mas julgaria melhor se pudesse, de fato, ler alguma coisa… Você sabe… - Disse, olhando para as unhas como se não fosse importante. Encarei-a, sentindo um fraco sorriso surgir em meu rosto.
- Você não tem jeito mesmo, não é? - Perguntei, me aproximando lentamente. Pulei em cima dela de uma vez, enchendo seu rosto de beijos. - Tem algo que você queira de mim e simplesmente não consiga?
Quando me afastei, ela sorriu, erguendo o queixo com aquela expressão travessa. Lissa arrumava os cabelos quando me voltei para a pasta, tornando a encarar o texto. Bom, que mal podia fazer? Não é como se eu escondesse qualquer coisa dela. Retirei a folha e entreguei em sua mão, passando a mão pela boca e pela franja, ansiosa. Enquanto os olhos de Lissa deslizavam pelas palavras, me apoiei na escrivaninha e cruzei os braços, encarando o carpete de tom claro.
Lissa ergueu os olhos da folha, a boca entreaberta e os olhos intensamente fixados em mim. Fechou a boca novamente, transformando-a em uma linha tensa, e voltou a encarar o papel, revezando o olhar incrédulo entre nós dois. Se ergueu, a folha ainda na mão, e caminhou para me abraçar. Beijou minha testa e suspirou.
- Isso aqui vale ouro. - Disse com convicção, segurando o texto com ambas as mãos na altura do peito.
Balancei a cabeça em desdém, erguendo um dos cantos da boca.
- Você só diz isso porque é minha amiga.
- E porque eu realmente acho que sim. - Desafiou.
Encarei ela por um momento, olhando para o papel em suas mãos e tornei a balançar a cabeça, dessa vez sem dizer nada por alguns segundos. - Quem sabe um dia. - Murmurei.
Lissa tornou a suspirar, pousando o papel com todo carinho em cima da escrivaninha. Me encarou como se quisesse me dizer algo, mas não soubesse como eu poderia reagir.
Com a expressão determinada, finalmente falou:
- Você não poderia dizer: tanto amor realmente vale tanto sofrimento. Vocês não são opostos que se atraem ou se cancelam, são ambos igualdades ao mesmo tempo.
Absorvi suas palavras por um breve momento, enfim descruzando os braços para passar a mão pela franja mais uma vez.
- Não quero exatamente falar sobre isso. - Desconversei.
Quando aconteceu, Lissa foi a primeira pessoa a saber. Tirando Andrew, é claro, que me viu atravessando a sala e provavelmente deduziu. Mas ela não disse nada naquele dia, apenas ficou em silêncio, do outro lado da linha e do outro lado do oceano.
- Posso ver sua mãe? - Mudou de assunto como se nunca tivesse dito nada.
- Claro.

A acompanhei pelo corredor, batendo na porta até ouvir meu irmão dizendo que podíamos entrar.
- Oi. - Cumprimentei minha mãe carinhosamente, me aproximando da cama onde ela estava deitada, um livro nas mãos e Andrew ao seu lado, mudando os canais da TV.
Joanne sorriu, abraçando Lissa.
- Como é mesmo seu nome, querida? - Perguntou, encarando minha melhor amiga.
- Lissa, senhora . - Respondeu sem demonstrar qualquer desconforto.
Os olhos de minha mãe voltaram para mim, o rosto ainda carregando o sorriso carinhoso.
- E você deve ser a namorada do Andrew, não é? Bonita desse jeito.
Vinte anos se passariam e eu talvez nunca fosse esquecer a expressão no rosto de Andrew e Lissa. Os segundos estavam se arrastando ali enquanto eu buscava alguma forma de responder ou forçar minha boca a dizer qualquer coisa.
- Mãe… - Andrew finalmente quebrou o silêncio, soltando uma risada nervosa. Seus olhos eram puro desespero. - A senhora está brincando, não é?
Minha mãe franziu o cenho, se virando para Andrew com toda a postura corporal dizendo que ela o censurava por dizer aquilo.
- Por que não trouxe sua namorada antes? Isso lá é jeito de apresentá-la? - Virou-se para mim mais uma vez, substituindo o cenho franzido por um sorriso. - Qual é seu nome, querida?
- . - Respondi em um fiapo de voz, ainda sem saber o que fazer.
- Bom, muito prazer, . Já passava da hora desse mocinho aqui nos mostrar você.
Lhe dei as costas sem dizer qualquer coisa, caminhando para fora do quarto e voltando para o meu. Segurei a primeira coisa que vi na frente para manter as mãos ocupadas, encarando o objeto sem realmente vê-lo. Eu tremia.
- ? - A voz de Lissa chamou as minhas costas.
- Eu costumava ter as mãos tão firmes. - Falei, mesmo que ela não tivesse perguntado. Pensei na situação por breves segundos e soltei uma risada que não tinha humor algum. - Agora não consigo parar de tremer.

Capítulo 30 - Things I Wish I Knew How to Do.


P.O.V -

- Você está franzindo a testa mais uma vez. - murmurou, em seguida ela mesma franziu a testa e se levantou do sofá, deixando minha cabeça bater no acolchoado.
- Ai! – Exclamei, levando a mão até o cocoruto. - Pelo que foi isso?
Movi o pescoço para observá-la adentrando sua cozinha (ou a essa altura já seria nossa?) e me perdi no meio do raciocínio, encarando suas pernas e como a blusa social parecia deixá-las ainda mais torneadas.
- Você anda merecendo. - Respondeu sem virar, remexendo em qualquer coisa nos armários. Colocou a garrafa de vinho sobre a bancada e ergueu as sobrancelhas sugestivamente, mantendo a expressão irritada enquanto bebericava o líquido escuro.
- Qual o seu problema? - Perguntei finalmente.
meramente deu de ombros, desviando o olhar do meu e encarando fixamente a pedra. Manteve a taça de vinho na mão, usando a outra para desenhos aleatórios na pedra, enquanto eu a encarava do sofá, sentindo minha expressão de idiota.
- Não sei. - Finalmente respondeu, um sorriso meio triste surgindo em seus lábios. Quando percebi sua expressão, me apressei a caminhar em seu encontro, passando os braços por sua cintura. O tecido era quente contra meu peito nu. - Você anda vendo alguém?
Congelei a meio caminho de plantar um beijo na pele entre seu pescoço e sua clavícula. Recuei lentamente, o que foi errado, pois ela não deixaria de notar a tensão no meu corpo.
- De onde você tirou isso? - Disse depois de alguns momentos, a voz tão tensa quanto eu me sentia.
Ela girou em meus braços, os olhos azuis olhando para cima, para os meus. Não parecia brava, ou vingativa, só triste. O que talvez fosse pior.
- Não sei, . - Falou, e eu podia sentir a sinceridade em sua voz. - Você viaja. Tipo, o tempo todo. Estados Unidos, França, Austrália, escolha qualquer lugar. Pode achar um rostinho bonito em qualquer um deles.
- Bom, eu tenho um rostinho bonito bem aqui. - Disse, sorrindo amarelo. se limitou a revirar os olhos, comprovando que eu soara de fato tão idiota quanto tinha pensado.
- Você poderia, sabe, simplesmente responder. - Soava bem séria. - E não me enrolar.
- De onde veio isso tudo? Você estava bem alguns minutos atrás. - Falei baixo, firmando as mãos em sua cintura quando tentou se desvencilhar. - Muito bem, por sinal. Na verdade, orgásmica. - Lancei-lhe uma piscadela.
- Eu sei fingir. - Disse com violência, tentando se desvencilhar mais uma vez, e dessa eu deixei. Encarei o lugar que ela estava segundos atrás, magoado.
- O que há com você? - Soei mais ríspido do que pretendia.
- Você tem visto alguém? - Tornou a perguntar, cruzando os braços na altura dos seios e franzindo o cenho para mim.
- Não! Claro que não! Você acha que eu sou um babaca? - Tentei alcançá-la mais uma vez, e novamente se afastou.
- E com a ? - Perguntou, e no segundo que as palavras saíram dos seus lábios, eu soube que era essa a questão o tempo todo. Não parecia se arrepender de ter tocado no assunto, o que me fez continuar encarando-a, aguardando até que se desse conta que tinha ultrapassado um pouco os limites. Ergueu as sobrancelhas, a expressão debochada. - E então? E a ?
- Eu não quero falar sobre a . - Respondi tão sério quanto ela soara antes, o que pareceu inflamar ainda mais sua irritação.
- Sabe, com essa atitude vou ter que começar a escutar os rumores que escuto. - Disse ameaçadoramente.
- Então escute. – Desafiei. - Qual deles? Que ela é uma prostituta? Que vende drogas para mim? Que sustento toda a família dela? - A cada pergunta me aproximava um passo, me sentindo cada vez mais perto de explodir com ela. - Esqueci de algum?
- O que é que você tem com ela? - Exigiu, não se dando ao trabalho de me responder. Parecia a beira de lágrimas, ou a beira de me estapear, ou qualquer coisa bem próxima de ambos, até mesmo ambos.
- Nada! - Gritei, por fim. Ela recuou. - Não tenho nada com ela. Eu amo você. Estou com você, não com a .
Nunca vi seus olhos tão tristes. respirou fundo, passando as mãos pelo rosto e enfim olhando para mim novamente.
- Eu não me sinto como se fosse assim. - Sua voz era um fiapo. Olhando-a ali, daquela forma, usando aquelas palavras, me fazia enxergar como ela era pequena. Como estava me drenando para poder crescer.
- Eu não posso fazer nada sobre isso.- Minha voz era tão baixa quanto a sua, porém, infinitamente mais firme. Poderia ser eu quem tinha comprado aquela briga e estivesse a acusando de algo.
- Você gosta dela não é? - Perguntou, e eu nunca poderia adivinhar como uma mulher como ela poderia se sentir tão insegura. - Eu devia ter percebido. Eu sinto muito. O jeito que ela olhava para você… - Balançou a cabeça negativamente, limpando uma lágrima que ousou escorrer. Sorriu, mas não era um sorriso verdadeiro. De modo algum. - Eu sinto muito, . Não é culpa sua.
- Do que você está falando?
- Ela é tão bonita. Nada bom poderia vir de uma garota tão bonita que não tem consciência disso.
- O que eu sinto por ela… - Comecei, procurando as palavras, mas não consegui encontrar nada que amenizasse a situação. - O que eu sinto pela … Não é isso. Não é como você pensa.
- Olha só para você. Como você diz o nome dela. Você diz o nome dela como se estivesse a salvo na sua boca. É o jeito como você fala dela, com animosidade, arrependimento, desdém, e por baixo disso tudo, só um pouco de orgulho.
- Você está inventando coisas. Está procurando algum motivo para estar magoada comigo, qualquer pedacinho de angústia que possa usar contra mim para se sentir melhor, e sabe disso. - Acusei, querendo ir embora dali para qualquer lugar.
- Por que tanta proteção, então? Por que o nome dela é tão sagrado?
- Parece que você está me fazendo escolher. - Censurei.
- Por quê? Você escolheria ela?
- Ela não está me dando um ultimato bem aqui, está? Não parece que foi ela quem acabou de fazer dezoito anos! - Me arrependi assim que disse aquilo. Não queria que soasse daquela forma.
- Então vai! Não quero você aqui! Vai embora! - Gritou comigo, me empurrando em direção a porta. Plantei o corpo no chão, olhando friamente para ela.
- Eu quero minha camisa. - Disse, seco.
Me encarou como se eu tivesse falado outra língua. Nada que eu pudesse ter dito poderia deixá-la daquele jeito, entendeu o recado; se me colocasse pra fora, se me entregasse a camisa, serio o fim. Anos se passaram até que ela agarrasse ambos os lados do tecido e o puxasse com toda força, arrebentando dois dos botões. Jogou a camisa em mim e ficou ali, nua, me encarando como se me desafiasse a atravessar a porta.
- Se você… Se você sair daqui… Se atravessar aquela porta, você sabe que acabou. Eu não precisaria te mandar escolher, porque você estaria escolhendo de qualquer forma. Se atravessar aquela porta, não vou guardar qualquer remorso contra você, mas não acho que poderemos colocar as coisas na linha mais uma vez. Você quem sabe, . Vá, ou fique.
Balancei a cabeça, respirando fundo e jogando a camisa no ombro.
- Eu amo você. Não tenho nada com a . - Disse uma última vez e peguei minha bolsa no chão da sala, antes de me dirigir até a porta.


Eu gostaria de saber como amar alguém sem me matar no processo. Como escutar e dizer coisas que não causassem danos irreparáveis, porque tudo que já amei, ou me arruinou, ou assistiu como figurante enquanto eu mesmo o arruinava.

***


- E você saiu de lá mesmo assim? - perguntou, as sobrancelhas erguidas e as mãos cruzadas sobre a mesa, os olhos fixos em meu rosto.
- Sim. - Murmurei a contragosto.
permaneceu calado, ainda sentado no parapeito da janela, os olhos encarando a vista do lado de fora como se ele não prestasse atenção, embora eu soubesse que ele tinha ouvido cada sílaba.
e pareciam ter um acordo silencioso de simplesmente não opinar, então não esperei muito de seus olhares fixos em qualquer parte da sala para evitar o constrangimento. Eram silenciosos, mas pelo menos estavam ali.
- Isso é insano. - murmurou por fim, relaxando a postura e esticando o braço para pegar uma banana na tigela próxima. Se acomodou na cadeira em uma postura confortável demais para ser considerada de boa educação, os olhos e acenos incrédulos mesmo quando descascou a fruta e começou a mastigar.
- Pelo visto você está solteiro agora. - comentou com uma risada nervosa, me fazendo virar para ele com a expressão menos debochada que consegui forçar meu rosto a tomar.
- Você acha mesmo? - Debochei mesmo assim.
O garoto ergueu as mãos como se estivesse se rendendo, fazendo barulho ao arrastar a cadeira para se afastar.
- Sabe... - começou, soltando um suspiro cansado. - Só espero que você não comece a beber por aí de novo...
Corou furiosamente, desviando o olhar sem terminar a frase e praticamente correndo atrás de . Franzi as sobrancelhas, erguendo as mãos para os céus em um gesto desesperado ates de cruzá-las na nuca, respirando fundo.
- Estou ficando louco. - Disse por fim, me sentindo anos mais velho e terrivelmente cansado.
Embora fugisse da situação, cada pequena coisa que acontecia na minha vida parecia propícia a me lembrar do que acontecera alguns dias atrás. De como praticamente me entregara seu coração e eu não tive escolha senão parti-lo. Agora, dizer as coisas que disse simplesmente não me parecia o mais certo a fazer.
Uma vez, tempos atrás, estava certo que esse dia chegaria. Ansiava por ele, na verdade. Tagarelava por várias vezes com os garotos, discutindo qual a maneira mais eficiente de descobrir se ela estava interessada, porque eu mesmo estava. Quando abriu aquela porta e me encarou, os olhos muito grandes e muito azuis, o cabelo caindo ao redor do pescoço e pelos ombros, Deus, como era linda, e como eu só queria poder um dia beijá-la. E havia, de fato, o feito, mas me arrependia de como tudo tinha acontecido. A desejara por muito tempo, mas me pareceu cruel dizer aquilo ali, em meio as suas lágrimas e suas súplicas, quando ela mesma dizia que não havia chance alguma. Com que coragem interromperia seu monólogo e diria: "Houve um tempo que tudo o que eu queria era você... Mas passou, já não sou aquele cara mais, nem você aquela garota. E você deixou bem claro que qualquer interesse não era mútuo."
Talvez, em outro universo, eu merecesse alguém como ela, e gostar dela como ela realmente merecia. Que nem aquele filósofo do século XIX, William James, ou algo assim, disse uma vez; ele acreditava nessa teoria de que existia um "multiverso", que sugere que uma série de universos contêm tudo que existe, simultaneamente. Todo o conjunto de espaço, tempo, matéria e energia está acontecendo de uma única vez em diferentes linhas de tempo: A ideia de universos paralelos.
Então, em algum lugar no meio de todos esses universos, talvez exista um - ou vários - em que eu merecesse o que ela sentia por mim. Em que eu seria o que ela, de fato, merecia. Talvez existisse um universo - acontecendo neste exato momento - em que estivéssemos juntos. Não porque me sentia culpado por certamente estar a fazendo sofrer, mas porque era científico. Era um fato, real. Não um amor qualquer que eu tentava inventar em mim para compensar o que eu não podia dar a ela.
Por exemplo: Nesse universo, eu quero uma família, mas talvez não queira em algum outro. Eu seria mais como o tipo de cara que tem fobia aguda da palavra casamento. Então eu não iria querer segurar sua mão enquanto ela dá a luz a nossa filha em um quarto de hospital completamente decorado em florais, porque neste universo, bem aqui, tenho certeza que é o que ela nunca iria querer, mas no fundo, sei que é o que eu quero. Talvez exista um outro universo em que estivéssemos ambos na meia idade e levando nossa filha para a universidade, discutindo onde ela colocaria a cômoda ou os pôsteres que os garotos certamente a obrigariam a pendurar. Talvez exista um universo em que essa era a vida que iria querer para nós, em que ela não repensasse tudo e não tivesse tanto medo depois de perder o ex-namorado. Talvez exista um universo em que ela não tivesse tanto barulho em sua cabeça e tanto orgulho que a fazem tão imprudentemente independente e que toda a frieza que ela trazia consigo não fosse uma arma contra os outros com a qual ela poderia contar.
Talvez exista um universo onde realmente terminamos com quem queríamos desde o começo da história. Um universo em que realmente estejamos felizes - sem ficar nos perguntando o tempo todo o que virá a seguir e estragará toda essa felicidade. Um universo onde não queremos mais, não queremos pessoas diferentes, apenas um ao outro.
Se realmente pensar desse jeito, então é como se nenhum de nós tivesse algum dia feito alguma coisa que nos machucasse. Como se eu pudesse, bem no fundo de tudo o que eu sou, buscar em algum lugar a virtude que me faria enxergá-la assim. Mas somos diferentes demais, e para meu completo desespero, meu desinteresse surgiu rápido demais. Quem sabe algum tempo antes, antes de , antes das coisas que descobri e das coisas que ela disse.
Apenas nos encontramos no universo errado. Só isso. Em qualquer outro lugar, ou qualquer outro tempo - juntos na Guerra Civil, no Antigo Egito e nos anos da brilhantina - poderíamos ser felizes. Se essa teoria é verdadeira, bem, pela lei de normalidade, simplesmente teria que existir um universo - apenas este - em que não ficamos juntos. Este aqui e agora apenas acontecem de ser tal universo. Se pensar dessa forma, então não podemos ser culpados por nada. Então isso explica tudo. Porque ela poderia me amar para sempre. E talvez exista um universo em que eu a amasse de volta. Ou que simplesmente a aceitasse.
É o que tento me dizer todos os dias, de qualquer forma - sentindo a cada dia que passa que eu não poderia estar nem um pouco mais errado.

Eu só queria saber como fazer uma escolha sem a possibilidade de me arrepender dela eternamente. Como ter a coragem para tomar atitudes que simplesmente me aterrorizam. Como consertar um coração, e não quebrá-lo.

***


Mantinha o olhar fixo na casa à minha direita, me perguntando o que é que eu tinha na cabeça de estar ali. Na melhor das hipóteses, me escutaria e não cairíamos no precipício do esquecimento que parecia cada vez mais iminente. Não queria me afastar dela, de forma alguma, mas também não queria lhe causar qualquer mal.
Bati a testa contra o volante, uma, duas, três, quatro vezes, parando para respirar. Por que tudo tinha de ser tão difícil? Por que eu não poderia ser tão imprudente quanto ; tomar minhas decisões sem me importar com as consequências?
- Vai ficar aí o dia todo ou vai entrar? - O irmão de bateu na porta do motorista, sorrindo quando me assustei.
- Puta que pariu! – Exclamei encarando seus olhos, o coração acelerado. - Qual o seu problema?
Andrew gargalhou, o som de sua risada me fazendo sorrir também. No fundo, me perguntei se era porque ele me lembrava tanto sua irmã; com uma peruca seria praticamente impossível distingui-los.
- A ainda está na faculdade, mas se você quiser pode entrar e esperar por ela.
Demorei alguns segundos para processar e o encarei, atônito, até finalmente piscar e clarear a mente.
- Claro... Achou que vou fazer isso.
Andrew esperou até que eu descesse do carro, caminhando ao meu lado em silêncio. Quando alcançamos a porta, ele paralisou e se voltou para mim, as sobrancelhas franzidas:
- Vocês têm se falado ultimamente?
A pergunta me pegou de surpresa.
- Não exatamente. Eu... - Fiz uma pausa, pensando em qualquer explicação plausível. - Tenho estado...
- Ocupado. - Me interrompeu e se virou para abrir a porta, um sorrisinho nos lábios. - Claro.

Andrew me deixou na porta do quarto de , lançando um olhar desconfiado em minha direção antes de seguir pelo corredor. Franzi o cenho na direção do lugar onde ele estava segundos atrás, não entendendo sua reação.
Olhei ao redor, encarando as paredes do quarto. Quantas vezes tinha estado ali? Sem , definitivamente nenhuma, mas me lembrava vagamente de algumas coisas, como o teclado encostado a um canto. Me virei na direção do instrumento apenas para encontrá-lo coberto por um pano branco e, por cima, livros e mais livros. A visão era triste e olhar o instrumento ali, abandonado, me fez pensar se ela parara de tocar quando Josh morreu; se ele quem havia a ensinado, ou se ela simplesmente perdera o gosto por música quando também perdeu ele. Como você era um idiota, . Tinha sequer parado, por um momento que fosse, para se perguntar o que realmente importava para ela e do que ela era feita? Claro que não.
Esquadrinhei o quarto mais uma vez, fazendo um giro de completos 360º para encarar o mural de fotos: a garota de olhos castanhos sentada com uma completamente uniformizada na escola, outra garota, ruiva, sorrindo o lado dela, do irmão e de outro garoto de cabelos vermelhos, idêntico a menina. Ao lado do irmão, da mãe e da pequena Elizabeth. A foto no centro do quadro fez com que eu me sentisse triste, sem saber se era porque estava com ciúmes ou porque o cara ao lado dela estava tão vivo, mas eu sabia que essa era a última coisa que ele poderia estar.
Após alguns segundos, enfim, percebi: não era ciúmes e não era luto por alguém que não conheci, era porque eu sentia tão morta quanto ele. Parecia outra pessoa ali, vestida de preto e abraçando o namorado, que sorria, os olhos verdes mal aparecendo.
Desviei os olhos com pressa, me sentindo mal por vasculhar coisas que pareciam tão pessoais sem ela ali, como se estivesse invadindo sua privacidade, embora fossem fotos expostas para quem passasse pela porta. A vida que ela levara em Brighton parecia outra vida, e eu não tinha certeza se queria ou não conhecê-la.
A folha estava completamente alinhada sobre a escrivaninha, aparentemente recém organizada. Reconheci a caligrafia, embora não me lembrasse de alguma vez na vida ter visto algo que tenha escrito. Quando alcancei o papel para ler o que estava escrito, li apenas a quem se destinava antes de ouvir os passos em direção ao quarto. Dobrei o papel com pressa, enfiando no bolso e me virando em direção a porta apenas para encarar olhos muito, muito grandes e muito, muito azuis.
Então ela ficou lá, em silêncio, por tanto tempo que eu comecei a ouvir meu coração batendo em meus ouvidos.
- Ei... - Murmurei, sem jeito, levando uma mão à nuca enquanto ela mantinha aquela expressão incrédula, como se eu fosse um fantasma.
- Oi. - Disse, lentamente, a voz soando hesitante. Tão lentamente como pronunciara as palavras, removeu a bolsa dos ombros e colocou sobre a mesa de madeira perto da porta. Passou a mão pela franja, depositando-a na cintura em seguida e me olhando desconfiada.
- Suponho que seu irmão não disse que eu estava aqui. - Eu mesmo estava começando a me sentir confuso.
- Não, não disse...
Me deu as costas e removeu o casaco, deixando exposta a pele dos braços, ombros e clavícula na camiseta fina.
- Entendi... - Murmurei, mais para mim mesmo do que para ela. - Você está bem?
- Sim, ótima. - Respondeu rápido demais, ainda me dando as costas enquanto tirava o tênis.
- Escuta, , sobre aquelas coisas que você disse...
- Está tudo bem. - Me interrompeu.
- Não, não está, . Eu gostaria de poder mudar como eu me sinto, mas eu não posso... E... E eu sinto muito. - Eu soava terrivelmente ridículo. As palavras eram tão genéricas que pareciam pertencer a outra pessoa; se fosse ela, não me contentaria com aquela desculpinha fajuta.
- Não precisa se desculpar. - Não podia ver seu rosto, mas sentia a voz tão tensa quanto as costas pareciam estar. - Depois de tudo o que eu te disse, não precisa se desculpar pelo que sente.
- Se eu te amasse mais... - Comecei, engolindo em seco quando ela se virou para me encarar mais uma vez. - Você sofreria menos?
Sorriu, um sorriso claramente triste, e balançou a cabeça negativamente.
- Li uma vez... Em algum lugar, que as vezes, as pessoas nos fazem as perguntas erradas, então não podemos dar a elas as respostas certas. - E deu de ombros, como se não pudesse simplesmente dizer se seria mais feliz caso eu estivesse ao lado dela. Mas como era egoísta pensar que eu era a única razão de tanto sofrimento, como se ela não tivesse outras dores, outros problemas.
- Se eu te amasse mais, você seria mais feliz? - Reformulei.
Parecia não ter paciência para aquela conversa, passando a mão pela franja a cada instante, soltando risadas que não continham humor algum.
- Engraçado, uma vez um colega de classe disse que a felicidade é quando você vai para a cama na noite mais quente do verão, uma noite tão quente que você não pode nem ao menos vestir uma camiseta e você dorme sobre os lençóis ao invés de sob eles, mesmo que "tenta dormir" seja mais apropriado. Então, em algum ponto, muito, muito tarde, vamos dizer apenas um pouco antes do sol nascer, o calor finalmente acaba e a noite esfria, e quando você está mais ou menos acordado, você surpreendentemente nota que está quase com frio, e em seu estado grogue e semi-consciente, você se estica para pegar o lençol e se enrola nele, e só aquele fino lençol é o suficiente para te manter aquecido e você finalmente volta para um sono profundo. E é esse alcançar, esse gesto, esse reflexo de puxar para perto o que nos aquece - seja algo ou alguém - o sentimento que temos ao fazer isso, o sentimento de estar quente e seguro e pronto para dormir, isso é felicidade. Então eu acho que sua resposta está bem aí.
Escutei com atenção, me sentindo mais irritado a cada palavra, embora não quisesse brigar com ela.
- Por que você sempre tem que ser tão dramática? Poética? - perguntei, soando muito mais irritado do que eu realmente me sentia.
- Não tem nada dramático ou poético nessa história: você quebrou a porra do meu coração. - Respondeu com violência, as sobrancelhas franzidas. - Minha dor não foi bonita ou poética, foi atender ao telefone no meio de uma crise e fingir que estava tudo bem.
- Eu não vou machucar você. Nunca. Eu prometo.
Minhas palavras só pareceram deixá-la ainda mais triste. E quando falou, na voz transparecia tudo que eu enxergava em seus olhos.
- Você vai quebrar sua promessa. Eu entendo. E eu estou colocando minhas mãos sobre os ouvidos do meu coração para que eu jamais consiga te odiar.
Também franzi as sobrancelhas, e como aquele dia em minha casa, me senti dez mil anos mais velho, sem que em nenhum deles eu tivesse sido preparado para lidar com ela.
- Eu trouxe uma coisa para você... - Murmurei, retirando o objeto do bolso e estendendo para que ela pegasse. segurou a pedra nas mãos, olhando o colar com a expressão impassível. Ergueu os olhos pra mim, esperando. - É turquesa. Ouvi dizer que era boa para prevenir ataques de pânico, você sabe, energia e essas coisas, e mandei fazer para você.
Ela encarou meus olhos, mantendo uma expressão que eu não conseguia decifrar. Eu gostaria de ter mil palavras para explicar o amor como ela provavelmente tinha, mas tudo o que conseguia pensar era na maneira como ela me olhava naquele momento, e não haviam palavras que para explicar aquilo.

Eu só queria saber como amar alguém sem deixar algum hematoma.

Capítulo 31 - Beneath Your Beautiful


P.O.V

Era a terceira vez que eu ligava, e a terceira vez que o telefone tocava até desligar. Imaginei o visor do celular mostrando pelo menos vinte e sete ligações perdidas, como se fosse caso de vida ou morte, o que definitivamente era. Lissa desligara há poucos minutos, perguntando se estava comigo porque não conseguia falar com ela em lugar nenhum. Não estava em casa, o celular estava desligado e ninguém que ela realmente conhecia conseguia fazer contato ou se lembrava de tê-la visto em alguma parte do dia. Então quando seu irmão atendeu na minha quarta ligação, meu coração pulou uma batida e bateu mais devagar em meu peito.
- Olá? ? Está aí?
Tornei a suspirar. Ela tinha que estar com ele, ou eu não conseguiria sequer pensar em outra possibilidade.
- E aí, tudo bem? - Não esperei que Andrew respondesse, o interrompi antes mesmo de começar a sentença - Sua irmã está aí?
Ele não respondeu por um momento, o que me fez querer dar um soco em sua cara.
- Hmmmmm… Na verdade não. - Hesitou - Não vejo desde que foi pra cama ontem.
- Bem, ela ainda está lá?
Hesitou de novo.
- Não sei, para falar a verdade.
- Você pode olhar?! - Soei muito mais grosso do que pretendia, mas não me importei tanto quanto seria educado me importar.
O suspiro de Andrew foi audível do outro lado da linha.
- Posso, mas eu não acho que…
- Você pode simplesmente olhar? - Interrompi de novo, com rispidez. - Por favor. - Acrescentei um segundo depois.
Não disse nada, mas ouvi seus passos subindo a escada para o segundo andar. Uma porta abrindo. Outro suspiro.
- Não. Nada.
- Escuta, eu estou um pouco preoc…
- Ela está ótima, ok? Eu tenho certeza que ela está ótima. - Foi a vez de Andrew me interromper, mas ao invés de irritado, parecia estar tentando me confortar. - Eu sei que ninguém consegue falar com ela desde cedo. Sei que ninguém a viu. Sei que vocês estão todos preocupados, mas não aconteceu nada com ela. Só deem um tempo, tá legal?
Percebi pelo uso de plural que eu não fui o primeiro a ligar para saber de , mas não tive tempo para me preocupar com quem mais poderia ter notado sua ausência - como é que ele podia pensar que qualquer coisa estava “ok”?
- Como você pode saber? Se ela…
- É 20 de dezembro, cara. Faça algumas contas.
E desligou na minha cara.
Não tive tempo de pensar se mereci ou não tanta falta de educação. No segundo em que ele desligou e olhei para o calendário na porta da geladeira, o interfone tocou.
- Sr. , tem uma garota aqui pedindo para entrar. , cabelo escuro, olhos azuis…
- Pode mandar entrar.
Desliguei o interfone e passei a mão pelos cabelos, arregalando os olhos para mim mesmo. Quando fiquei sabendo que ela desapareceu em um dia frio de dezembro, não deveria ter me preocupado. Devia saber o que o dia significava. Esse dia não estava marcado no calendário, mas chegaria todos os anos daqui para frente. Vinte de dezembro não deveria ser algo que eu tinha de falar com alguém, eu deveria saber.
Eram seis da tarde agora, e ao invés de ficar me preocupando o dia inteiro, deveria ter passado o tempo tentando fazer algo produtivo.
Quinze minutos depois a campainha tocou, e quando abri a porta, não soube o que sentir. A neve estava grudada em suas botas, sua jaqueta, seu cabelo e seus cílios. Seus olhos estavam vermelhos e eu tentei dizer a mim mesmo que era por causa do frio, mas sabia que era uma mentira. Ela parecia vazia por dentro, como se todos os dias entre 20 de dezembro do ano passado e o dia de hoje não tivessem feito nada para amenizar o que ela sentia de alguma forma.
Puxei-a para meu peito e fechei a porta às suas costas, penteando a neve para fora de seus cabelos com os dedos. removeu as botas e não disse uma palavra, deixou que a puxasse para mim mais uma vez e beijasse suas pálpebras, seu nariz, seus lábios, sem derramar mais do que outra lágrima.
- … - Sussurrei, afastando os lábios dos seus. - Eu sinto muito. - Beijei-a mais uma vez, como se aquilo fosse despertar qualquer emoção além da expressão vazia que ela trazia.
- Está tudo bem. - Ela disse, e eu tenho que me perguntar quantas vezes ela disse aquilo para pessoas que a magoaram de alguma forma. - Eu sei.
Ela sabe. Deixei as palavras pairarem entre nós por um momento. Ela sabe que eu sinto muito. Sabe que, naquele momento, sinto muito pelo aniversário de morte de seu namorado, sinto muito por tudo que o acidente causou, sinto muito por ela ter de estar ali. Mas ela não me perdoa por todas as coisas cruéis que eu disse dias atrás, e não importa o quanto gosta de mim, o quanto me ame, provavelmente nunca perdoará.
Não sei por quanto tempo ficamos abraçados em silêncio, mas eu comecei a sentir meu coração batendo em meus ouvidos. Então, quando ela começou a chorar mais uma vez, beijei-a de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Esperando que eu pudesse distrai-la do que quer que ela estivesse sentindo no momento.

***


P.O.V


O dia estava frio, tão frio quanto eu conseguia me lembrar em dezembro. O feriado de Ação de Graças havia passado há tanto tempo que eu mal me lembrava dele, então a rotina da faculdade já voltara e estava terminando de novo. Me sentia feliz por estar aprendendo sobre uma das coisas que mais gostava, mas parecia estar sendo drenada tanto emocionalmente quanto fisicamente a cada semana do curso. Mal podia esperar pelo recesso de Natal, que começava amanhã.
Parei no meio do campus, encarando meu horário de aulas, sem entender. Tinha plena certeza que língua estrangeira não era hoje, então por que estava ali, na segunda grade? Estava tão distraída que quase caí quando alguém esbarrou em mim.
O garoto andava de costas e imediatamente segurou meus braços, a expressão preocupada se transformando em qualquer outra coisa quando deu uma boa olhada em mim.
- Oh… Oi. - Disse, o sorriso aberto no rosto. Os amigos pararam a poucos metros de distância e esperaram, também sorrindo.
- Oi. - Respondi sem a metade da simpatia, porém seu sorriso não se abalou. Não era meu tipo de garoto, então não era nem um pouco agradável estar com ele tão próximo.
- Qual seu nome? - O garoto retirou as mãos dos meus braços, se afastando um pouco.
- . - Respondi, ainda confusa com o horário das aulas e ainda um pouco brava com aquela invasão de espaço.
- Sou o Peter, . Muito prazer em te conhecer, você é linda. - Soltou tudo de uma vez, sem deixar o sorriso presunçoso desaparecer do rosto nem por um segundo.
- Eu sei. - Respondi mal humorada.
- Você sabe? - Ecoou meio surpreso.
- O quê? Você acha que é o primeiro cara que me faz um elogio? - Continuei, fazendo com que suas sobrancelhas franzissem. Ele abriu a boca como se fosse dizer algo, mas desistiu e soltou uma risadinha. Murmurou um “te vejo por aí” e saiu ao encontro dos amigos, sem graça.
Meus dias na faculdade eram todos mais ou menos daquele jeito desde, bem, desde que conseguia me lembrar. Quando em Brighton, Mandy sempre costumava me dizer que se eu não estivesse interessada em algum cara, a melhor medida para me livrar dele era ser confiante. Os garotos odeiam meninas confiantes, principalmente meninas que tem plena consciência de que são, de fato, atraentes. Era minha melhor arma, mesmo que não tivesse a melhor das opiniões sobre mim mesma; os caras tinham, então eu usava isso contra eles. Não funcionava com um ou outro, é claro. Josh é o melhor exemplo disso. Não que eu não estivesse interessada nele no momento que ele demonstrou interesse por mim; preferi fingir que não e usei a manobra do “talvez eu seja bonita demais para você, não acha?”, o que obviamente não deu certo. Josh achava que eu era, sim, bonita demais para ele, mas que ele merecia tudo que eu poderia oferecer. O que obviamente fez com que eu me perguntasse o que um garoto como ele via em mim.
Quando me dei conta de que estava sorrindo, tratei de balançar a cabeça para clarear a mente e me livrar do pensamento de Josh. Soltei um suspiro audível e caminhei até a classe de língua estrangeira, mesmo que não tivesse a menor ideia de como estava na grade de hoje.

***

- Você não vai para casa? - A voz de Ryan tornou a falar, fazendo com que eu me irritasse. Não queria ser grossa com ele, mas o fato que ele mostrava preocupação com o fato de eu estar estudando me dava vontade de pegar o computador e socar em sua cabeça.
Ignorei a pergunta, temendo que se respondesse qualquer coisa fosse provavelmente magoá-lo para sempre.
- Você está se esforçando para não me mandar para o inferno nesse exato momento. Eu posso sentir isso. - Sussurrou no meu ouvido, arredando a cadeira para ficar mais próximo.
- Você não está ajudando muito. - Confessei.
- Posso ver borbulhando debaixo de sua pele. - Continuou a provocar.
Parei de digitar a redação e levei os polegares até as têmporas, arregalando os olhos, em descrença.
- Você não tem medo da morte mesmo. - Conclui. Ryan não me respondeu, o que foi estranho. Ele parecia ter um talento nato de sempre ter a coisa mais irritante para dizer. Ergui os olhos para encará-lo e ele sorriu.
- Que foi?
- Escuta, tem uma coisa que preciso te dizer… - Começou, a expressão ficando séria de repente.
E o tempo passou. E passou. E passou. E Ryan apenas olhava para mim, o suor começando a escorrer por baixo de sua franja. Franzi as sobrancelhas.
- O que foi, Ryan? Está com medo de mim? - Provoquei, deixando um sorriso maldoso repuxar meus lábios.
- Eu não estou com medo. - Respondeu quase com raiva. Então se levantou e saiu da biblioteca, me deixando completamente confusa atrás de si.
A porta se abriu mais uma vez e mal tive tempo de erguer os olhos antes dele estar praticamente em cima de mim.
- O que você tá fazendo? Isso é uma sala de estudos. - Falei com pressa, as sobrancelhas franzidas.
- Escuta, tenho que te dizer uma coisa. - Removi as mãos do teclado e fechei o notebook sem mover os olhos de seu rosto, tão tenso. Ele parecia eu - quando estava prestes a ter um ataque de pânico. O silêncio se instalou entre nós mais uma vez, por tanto tempo que se tornou desconfortável. Dessa vez esperei, pacientemente, enquanto Ryan parecia lutar com as palavras dentro de sua cabeça. A ansiedade passou e então me encarou como se me visse pela primeira vez.
- Me deixa completamente louco sequer pensar em te dizer o que estou prestes a dizer. Ensaiei na minha cabeça pelo menos quinhentas vezes, imaginando como seria, mas aqui, agora, sei que é completamente inútil querer prever qualquer coisa. - Fez uma pausa, sorrindo, e encarou as mãos que tremiam. - Eu preciso te dizer uma coisa. Sei que disse não estar com medo, mas… Bem, eu menti. , eu só penso em você.
Não queria ter de passar por aquilo. Entendi o que ele queria dizer e, no momento que a ficha caiu, relaxei minha postura e estiquei a mão para segurar a sua, sentindo uma expressão triste, que já me era tão familiar, tomar conta do meu rosto.
- Tudo que eu tenho é um bocado de histórias tristes. - Disse como se aquilo fosse desculpa. Como se fosse a coisa certa a se dizer numa situação daquelas. - Se eu te contasse todas delas, antes de anoitecer você já estaria chorando.
- Viu por que estou tão assustado? Você diz não para qualquer cara que demonstre o menor sinal de interesse.
Só tem um cara que eu quero, Ryan.
- Não é bem assim…
- Escuta, eu sei que você é demais para mim. Quero dizer, olha só pra você. - Soltou uma risadinha depois de dizer isso, como se o sorriso fosse disfarçar todos os outros sinais que ele estava prestes a chorar. - Mas não vou deixar que isso me impeça de nada. Essa sua história… Sei que não tenho nada a ver com isso, mas tem acontecido por tanto tempo que você não poderia sair dessa situação nem se tentasse. Tem certeza que não pode ser mais ninguém? Eu… - Ryan finalmente fez uma pausa, tentando controlar a velocidade em que as palavras saíam. - Você é completamente fora do normal. Mas você é muito mais do que isso também. É muito mais do que um rostinho bonito para mim. Sei que há muito mais por baixo dessa beleza. Eu te mostraria que é muito mais para mim, se você deixasse. - Parou de falar mais uma vez e entendi que ele não iria dizer mais nada, então. Abaixou a cabeça, deixando os cabelos tamparem seus olhos e puxou minha mão para si, me obrigando a arredar para frente. Beijou cada um dos meus dedos, o corpo tremendo. Eu não sabia o que dizer. Pela primeira vez na minha vida, eu tinha um milhão de palavras a minha disposição, e não tinha a mínima ideia de como usá-las.
Falei seu nome. Que idiota eu era. E repeti, repeti e repeti, até ele olhar para mim. Mas eu não tinha nada para dizer. Logo eu, que sempre fui tão boa com palavras, não tinha nada para dizer. O encarei em silêncio, sem resposta. Como se meu silêncio não fosse uma resposta boa o suficiente.
Não consegui dizer nada, então. A forma como me encarava… Eu conhecia aquilo.
- Por favor, não me machuque. Eu não disse nada. E ele não disse mais nada também. O silêncio parecia deixar claro que aquilo foi uma má ideia. Tanto o que ele disse quanto o que eu não disse. Assentiu, levou meus dedos aos lábios e me deixou lá, sem dizer outra palavra.
Quis gritar, mas provavelmente seria expulsa dali pelo resto do semestre. Por que eu não podia simplesmente gostar do garoto bonito que me fazia rir, era inteligente e, melhor ainda, também gostava de mim?
Porque eu só queria uma pessoa. E como se fosse minha sina, foi com ele que fui me encontrar.

***


Parei do lado de fora do restaurante e fechei os olhos, sentindo o vento frio que batia contra o meu rosto. Acomodei melhor os dedos nos bolsos do casaco e bati os pés na calçada para me aquecer.
Era difícil criar a coragem para atravessar a rua e a fila de fotógrafos e curiosos que denunciavam a presença de , mas mesmo assim o fiz. Ao contrário do que eu esperava, não tiraram foto alguma de mim. Sequer pareceram me notar. Agradavelmente surpresa, disse meu nome a mulher na entrada, e quem me esperava. Me lançou um olhar estranho, mas me acompanhou até a mesa, com um sorriso.
ergueu os olhos para mim e era horrível a forma que sorria como se eu fosse sua pessoa favorita no mundo todo.
- Faz algum tempo.
- Faz sim. - Brinquei, deixando que a mulher tirasse meu casaco e não conseguindo evitar o sorriso. - Aparentemente você é uma pessoa muito ocupada.
- Sou mesmo. - Segurou minha mão por cima da mesa e a apertou gentilmente, soltando logo em seguida. - Aparentemente você não sabe se vestir para um jantar romântico.
Desci os olhos para sua camisa social e senti meu rosto corando.
- Não é um jantar romântico. E eu não me importo.
- Suas bochechas me dizem o contrário.
Como se fosse possível eu ficar mais vermelha.
- Desse jeito vou perder a fome. - Provoquei.
- Você já está com uma cara bem estranha.
- Não é fome.
franziu o cenho.
- O que é?
O encarei, hesitante, sem saber quão constrangedor seria lhe contar o que aconteceu.
- Ryan meio que tem uma quedinha por mim.
- Quedinha? - Suas sobrancelhas se ergueram.
- Uma declaração bem… Tentadora.
- A qual você respondeu positivamente, eu suponho.
- Não estou interessada em outra pessoa.
Só em você.
O silêncio pairou entre nós, seu olhar fixo no meu.
- Você fica adorável com esse gorro. - Mudou de assunto como se não fosse nada.
- Ah! O gorro! - Exclamei, removendo a touca vermelha. Coloquei no colo, passando a mão pelo cabelo e arrumando a franja.
O garçom se aproximou, nos oferecendo o cardápio. Harry pediu um vinho caro qualquer enquanto escolhíamos o que comer.
- Salada?...
- Pff… Salada. – Debochei. - Quero peixe.
- Salmão ao molho de laranja? – Assenti. - Então dois salmões ao molho de laranja para nós.
- Pão ou salada?
- Pão.
O garçom assentiu e se retirou.
- Tenho sentido sua falta. - Comentei, os olhos baixos, fixos na mesa.
- Tenho planos para resolver esse problema. - Ergui as sobrancelhas. - Mas não é assunto para agora. - Fez uma pausa, tornando a segurar minha mão, mas soltando tão rápido quanto da primeira vez. - Me fale sobre a faculdade.
A partir de então, os ponteiros do relógio andaram incansavelmente e sequer notei. Comemos o salmão, uma salada que eu nunca tinha visto antes e torta de maçã. Bebemos tantas taças de vinho que deveria ser falta de educação, e no final estávamos rindo de qualquer coisa que dizíamos.
olhou para o relógio em seu celular, surpreso.
- Acho que querem nos expulsar.
- Acho que estão esperando que engordemos a conta.
Ele sorriu e ergueu o braço para chamar o garçom. Deixei que pagasse a conta daquela vez, aceitando seu braço quando me ajudou a levantar. Colocou o casaco em mim e a mão na base da minha cintura, me guiando para o lado de fora do restaurante. Mais uma vez, me surpreendi com a maneira que os fotógrafos se comportaram. Atrasavam nossa caminhada, mas não bloqueavam nosso caminho nem gritavam conosco. Eram muitas perguntas e coisas ditas de uma única vez para que fosse possível entender, e a luz, de qualquer maneira, era incômoda. apenas os cumprimentou e não disse mais nada, me guiando até o carro.
- Não foi tão louco quanto eu esperava. - Comentei quando já estavam as nossas costas.
- Não são tão loucos aqui.
O caminho até minha casa foi tão ruidoso de gargalhadas quanto nosso jantar tinha sido, e só começamos a rir mais baixo quando desceu do carro para abrir minha porta e me acompanhar. Parei na entrada, sorrindo.
- Foi muito bom. - Comentei, agradecendo. Estendi a mão para tocar seu braço.
- É sempre bom ver você. - Respondeu e sorriu também.
Ficamos em silêncio pela primeira vez nas últimas horas, nos encarando. Me aproximei e, antes que pudesse pensar melhor, tomei seus lábios nos meus. Esperei qualquer reação que fosse, por segundos que pareceram horas, então ele me beijou. Abriu os lábios para levar a língua de encontro a minha, a respiração presa, e me beijou. Me beijava, mas faltava alguma coisa. Minha mão estava em seu cabelo, a outra segurando seu rosto, mas seus braços continuavam inertes ao lado de seu corpo, como se ele tivesse se esquecido de como usá-los. Não durou sequer metade do que deveria ter durado. Abri os olhos, já me arrependendo de ter feito aquilo, e suspirou.
-
- Eu sei. Eu sei… Eu sinto muito. Eu não deveria…
- Eu não posso gostar de você desse jeito. Deus sabe como eu… - Parou de falar, os olhos fechados, e suspirou mais uma vez. - Tem outra pessoa. Você sabe disso. Ontem foi...
- Me desculpa. Eu sei. Eu não deveria ter feito isso.
Graças a Deus eu tinha álcool suficiente no sangue para ter o bom senso de dizer alguma coisa. Ele olhou para mim por alguns segundos antes de erguer a mão para colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
- Venha para minha cidade comigo. Para o Natal e o ano novo. Você parece prestes a ter um ataque de nervos e acho que minha família poderia melhorar um pouco isso. – Sussurrou. - Vai ser bom. Para você espairecer um pouco. Lá é um lugar tranquilo e eu posso te mostrar as placas de “bem-vindo” e “volte sempre” que têm a distância exata de um quilômetro entre si.
- Eu vou. - Disse, segurando sua mão que estava em meu rosto.
- Vamos fazer uma pequena viagem de carro. Vai ser bem legal.
- Sei que sim. - Garanti, querendo mais que tudo o beijar de novo, e o levar para cima, e o beijar a noite inteira. Mas apenas sorri, encarando seus olhos, com aquela esperança de que no fundo ele gostasse um pouquinho de mim também.
Beijou minha testa e me deu as costas, caminhando até o carro. Passei a mão pela franja e suspirei, fechando os olhos ao me virar para a porta. Que dia.

Capítulo 32 – For You


Joguei mais um par de meias dentro da pequena mala e a encarei, com absoluta certeza que devia estar esquecendo alguma coisa, mas era certo que só me lembraria do que era quando precisasse do objeto. Suspirei, passando a mão pela franja e encarando a mala. Eram coisas demais? Ou estava apenas surtando? Definitivamente surtando.
- Até agora? Estou lá embaixo tem uns dois dias! - A voz de exclamou, mas quando me virei para encará-lo, ele sorria.
- Eu não tenho absolutamente ideia alguma do que deveria levar.
- Roupa de frio? - Sugeriu como se a ideia fosse óbvia, as sobrancelhas erguidas.
Franzi o cenho para ele, colocando as mãos na cintura. - Sério? Achei que você seria de mais ajuda.
Ele se aproximou, depositando as mãos em meus ombros e tentando manter a expressão séria, embora o fantasma de um sorriso ainda estivesse em seu rosto.
- É apenas eu. Bem, e minha mãe e minha irmã, mas não acho que você precise de algo especial para elas, de qualquer forma.
Era uma pena que seus olhos estivessem nos meus o tempo todo, de forma que não pude reagir adequadamente ao meu pensamento de “SÓ VOCÊ?!?!?!?!?!”. Soltei um suspiro pesado, tornando a passar a mão esquerda pela franja.
- Isso não deveria ser passado em família ou algo assim? - Perguntei, a cabeça doendo.
- Bem… Sim, mas você realmente me parece que precisa de uma folga da sua família. Ou você quer passar o feriado com eles? - Perguntou, a voz tão descrente quanto a expressão.
Tornei a suspirar. Touché.
- Me sinto uma intrusa. - Comentei quando já descíamos as escadas.
- Hmm… Você é. - Disse sem prestar muita atenção. Então se virou para mim e sorriu. - Mas pelo menos é uma intrusa muito bonitinha.
Sorri a contragosto e entrei no lado do passageiro do carro, esperando que ele guardasse a mala. Se sentou e colocou o cinto de segurança, me lançando um olhar preocupado como se tivesse acabado de perceber uma coisa, então respirou fundo.
- Sabe, provavelmente há um trem partindo para lá a qualquer momento. - Comentei antes que ele arrancasse o carro.
Hesitou com a mão nas chaves, os olhos fixos em mim.
- Você sabe que não é exatamente a mesma coisa para mim ir de trem.
Ah. Famoso coisa e tal.
- Você não tem um jatinho particular ou alguma coisa assim? Li sobre isso uma vez. Ou escutei alguém comentando. Definitivamente fiquei sabendo de alguma coisa sobre isso.
Ele revirou os olhos e me encarou com a expressão meio exasperada.
- Eu não tenho um jatinho particular. Nem a banda tem um jatinho particular. Nosso grupo de management talvez tenha um jatinho particular, mas não pegamos ele pra sair quando bem entendemos. Alugamos um quando precisamos. - Esclareceu como se eu fosse idiota.
Tentei segurar o sorriso, mas não adiantou.
- Ah. Bem, você definitivamente pode comprar um vagão inteiro ou coisa assim.
Ele sorriu e me estudou por um tempo, a mão ainda na chave do carro.
- Você quer que eu faça isso?
- Não. Eu só… Tenho uma ímã para acidentes de carro. Só isso. – Esclareci. - Não quero ser responsável pela sua morte ou algo assim. Não que não fosse ser uma coisa boa para a humanidade você parar de usar esses sapatos horríveis, de qualquer forma.
Soltou uma risada nervosa e continuou a olhar pra mim.
- Você pode me dar um sapato melhor de presente, vou aceitar com um sorriso e até te dou um abraço.
- Como se eu pudesse te dar qualquer coisa que você já não tenha.
Nem eu sou tão minha que possa me entregar para você mais. Já fiz isso, você tem até a mim. Pensei, mas não disse mais nada.
- , eu não vou bater o carro. - Me garantiu, as duas mãos pousadas no volante, os olhos fixos em mim.
Assenti, sorrindo pra ele.
- Eu sei que não. O carro provavelmente tem piloto automático.
- E outra coisa, são só algumas horas. Você pode assistir um filme e ainda sobra uma hora e meia para colocar o papo em dia. Posso te contar umas histórias.
- Ai, meu deus, mal posso esperar! - Exclamei ironicamente, mas ele riu mesmo assim.

***



Era a última parada antes de chegarmos a sua cidade, então, ao contrário do que fiz nas duas primeiras vezes, desci do carro e o acompanhei até a loja de conveniência. se dirigiu aos freezers e apanhou duas águas saborizadas, enquanto busquei por salgadinhos que tivesse o índice de sódio menos que doze mil por porção.
- Eles tem chips de banana em algum lugar. - Comentou sobre meu ombro, os olhos esquadrinhando a fila de salgadinhos de batata.
- Hmmmmm… Delícia!
desviou os olhos dos salgadinhos e me encarou, um sorriso nos lábios.
- Incrível que eu consiga gostar de você com essa personalidade radiante.
- Você não gosta de mim por causa da minha personalidade, gosta de mim porque não sou difícil de se olhar.
Os olhos desceram dos meus pelo meu corpo, o sorriso nunca deixando seu rosto.
- Não tem como negar.
Bati o salgadinho de queijo nele conforme caminhamos até o caixa, sem conseguir deixar de sorrir também. Quando já estávamos no carro e eu já havia trocado de música pelo menos cinco vezes, ele tornou a me encarar.
- Três horas de viagem, zero acidentes. - Comentou como se não fosse nada.
- Eu não ficaria tão seguro, ainda temos meia hora de possível desgraça a nossa frente.
- O raio de sol das minhas manhãs! - Exclamou, esticando o braço e bagunçando meu cabelo. Quase sorri, então vi a garota tirando fotos no carro ao lado.
- Você se importa? - Perguntei, indicando sua janela. Ele pareceu confuso por um momento, então a encarou, sorriu e acenou, fechando o vidro em seguida.
- Sinto muito por isso.
- Como é difícil ser famosa. - Revirei os olhos, mas sorri.
- Imagina só como vai ser quando você virar uma autora de best-sellers.
- Rá! – Debochei. - Como se isso fosse realmente acontecer.
- Vai bater recorde de vendas. Até deixo usar meu nome.
- E o que te faz pensar que vou escrever sobre você?
- Depois do feriado você vai. - Me garantiu, mas não sorria mais.
Fiquei calada por um momento, observando seu rosto concentrado na estrada. Decidi fingir que ele não tinha dito nada, então embolei a embalagem de chips vazia e coloquei dentro da sacola, tentando ganhar tempo.
- E o que você pretende fazer? - Minha curiosidade ganhou do meu bom senso. - Me levar no passeio de carruagem pela neve ou algo assim? Muito original. Duvido que a cidade seja grande o suficiente para valer o passeio.
- Não pretendo fazer nada. Tudo que quero quando estou em casa é ficar com quem eu amo e descansar. Programas diferentes podemos fazer em Londres.
- Ou em Brighton. - Falei sem pensar. - Eu poderia levar você naquele palácio enorme, que, acredite em mim, ninguém mora. Completo desperdício de impostos manter um lugar daquele tamanho sem nenhum membro da realeza por perto. O que, se você quer saber, é um completo desperdício. Eu poderia ter conquistado o príncipe Harry há muito tempo e não estaria… - Parei de supetão, percebendo o que ia dizer, e senti meu rosto esquentar em velocidade recorde.
- Duvido muito que o príncipe Harry tenha uma queda pelo seu tipo. - Me garantiu, o rosto sério e os olhos na estrada.
- Meu tipo? - Ecoei, desafiando-o a explicar.
- Anormalmente bonitas, mas insolentes demais para serem agradáveis.
- Sou anormalmente bonita?
me encarou.
- Você não olha muito no espelho, não é? - Assentiu, respondendo a minha pergunta. - Ele não ia saber lidar. Esgrima, tiro ao alvo, hipismo, aulas de etiqueta, tudo isso ele deve tirar de letra. Mas enfrentar você? – Bufou. - O cara ia pular do barco.
- Ele é militar. - O lembrei.
- E você acha que no exército ensinam como lidar com isso?
- Eu não sou tão durona.
- Você é um furacão.
- Você lida numa boa. - Pontuei, meneando a cabeça.
- Tem uma diferença bem aí.
- Ah, é?
- Você é minha alma gêmea, nasci para te aguentar.
Não suprimi o sorriso que surgiu em meu rosto, apenas continuei a encará-lo, colocando os pés no banco e apoiando a cabeça no joelho.
- É mesmo?
- Veja só, você tem mais de uma alma gêmea nesse mundo, existe uma alma gêmea diferente para diferentes finalidades. Tem almas gêmeas musicais, amigos que são como sua alma gêmea, a alma gêmea vamos-comprar-café-juntos-todos-os -dias, etc, etc, e a alma gêmea romântica, que é apenas um ou todos os aspectos. - Explicou.
- Qual eu sou?
- Não sabemos a resposta para essa ainda. - Parou no sinal vermelho e me encarou bem nos olhos, me fazendo corar.
- Aposto que sou a vamos-testar-todos-os-limites-da-nossa-paciência.
Harry riu, mas não disse nada. Flexionou os dedos no volante e esticou o pescoço, tenso.
- Encosta o carro. - Pedi, ainda encarando-o. Sua expressão ficou surpresa apenas por alguns segundos, antes dele ficar preocupado.
- Algo errado?
- Não, só encosta o carro.
Não me respondeu, ao invés disso encostou o carro perto de uma lavanderia. Quando desci, me acompanhou, o cenho franzido.
- O que foi?
- Nada, deixa que eu dirijo por um tempo. Você pode colocar as direções no GPS.
- Estou bem. - Garantiu, o corpo inclinado a voltar para o banco do motorista.
- Tá ok, só descansa um pouco e coloca as direções pra mim. - Murmurei, levando a mão até seu rosto e sorrindo. Ele inclinou a cabeça para beijar minha palma e a segurou bem ali, contra a pele quente naquele frio.
Nos encaramos por segundos que pareceram horas. Não queria tirar a mão de seu rosto, e ele parecia tão relutante quanto eu em soltá-la.
- Minha mãe deve estar esperando. Será que ainda conseguimos chegar hoje?
- Eu poderia dirigir profissionalmente se quisesse, é um talento natural. - Debochei, entrando no banco do motorista. Ele encarou o volante quase com pena, como se conseguisse enxergar o que eu ia fazer com seu carro e não gostasse nem um pouco da visão. Ajeitei o banco e coloquei o cinto de segurança, sorrindo para ele.
- Espero que seu seguro seja muito bom.
- Pensei que você fosse muito boa.
- E sou! – Concordei. - Mas as vezes a máquina e o operário não se dão tão bem.
Ele fez uma expressão de horror e escondeu o rosto nas mãos, soltando um gemido exasperado.

***


- Aquela bem ali. - indicou, estendendo o braço para me apontar a casa. Já havia um carro na garagem dupla, então estacionei na vaga que sobrava e encarei a construção. A casa era de dois andares, a parte de baixo em tijolos e o andar de cima pintado em branco. O jardim parecia bem cuidado - pelo menos o tanto que eu podia ver com tanta neve. Havia duas portas, de forma que eu não sabia por qual deveria entrar, mas me ajudou a descer do carro e atravessar a garagem também de tijolos, segurando meu braço para que eu não escorregasse na neve.
- É tarde demais para correr? - Sussurrei para ele, olhando a guirlanda pendurada na porta branca.
- Acho que sim. Já devem ter nos ouvido chegar…
- Droga. A neve definitivamente está grossa demais para fugir. - Lamentei no exato momento em que buscava pelas chaves. Não sei o que me surpreendeu no fato de ele ter as chaves daquela casa, mas não tive tempo de raciocinar: antes mesmo que ele enfiasse o objeto em seu lugar, a porta se abriu e um emaranhado de cabelos escuros me empurrou para o lado.
- Que saudade de você! - O que tomei por ser a mãe dele exclamou, apertando-o.
Fiquei parada ali em um silêncio desconfortável enquanto a mãe o abraçava e ele parecia esquecer da minha presença. Quase sorri, mas outra figura apareceu na porta, e ela era tão bonita que esqueci de ficar feliz por e apenas a encarei. Eram muito parecidos, se não o conhecesse bem podia jurar que também eram gêmeos, tirando o cabelo de coloração diferente e a formação dos dentes. Ela sorria para mim, mas não consegui me obrigar a sorrir de volta. Que tipo de gene abençoado era aquele?
- Oi! Você deve ser a… - Interrompeu a própria frase, os olhos buscando o irmão.
- . - Respondi, caindo em mim e estendendo a mão. Ela a apertou e manteve o sorriso amigável, se voltando para a família.
Quando me cumprimentou chamou a atenção dos dois que se mantinham em um abraço, fazendo com que a mãe de me olhasse da cabeça aos pés, embora tentasse educadamente disfarçar. Também sorria, o que me incomodou: me preparei para ser uma intrusa sem graça e até uma surpresa, não uma convidada esperada e bem-vinda.
- Olá, sou a .
Estendi a mão para ela, que a pegou e murmurou o próprio nome, parecendo aceitar o cumprimento frio apenas por receio de me amedrontar com hospitalidade demais.
- Vamos congelar aqui fora. - Se voltou para o filho, passando a mão por sua cintura e indicando a porta. - É melhor entrarmos logo.
Quando entrei na casa, percebi porque havia duas portas. Obviamente não pertenciam ao mesmo imóvel - outra coisa que me surpreendeu. Não sei o que esperava de um jovem adulto milionário, mas com certeza era maior do que eu havia de fato encontrado. Não entendi porque ele simplesmente não comprou uma casa enorme e confortável para a família, mas não pensei muito nisso; o ambiente era tão aconchegante que eu poderia facilmente esquecer quem era de fato.
- Vocês estão com fome? Comeram alguma coisa no caminho?
disse que não se importaria nem um pouco de jantar, passando a mão na barriga dramaticamente e encarando a mãe, então passou pela porta da frente mais uma vez para buscar as malas. Me sentia deslocada - não sabia como preencher o silêncio que se instalou quando ele passou pela porta, por vários motivos. O principal deles sendo que não sabia como sua família via nosso relacionamento. O que elas pensavam que eu era? A namorada? A garota da vez que ele trazia para casa? Será que se fosse, ele realmente me traria? Elas conheciam ? Com certeza. As perguntas se acumulavam com tanta velocidade que fiquei um pouco nauseada, o que deve ter sido visível, pois sua irmã perguntou se eu estava me sentindo bem.
- Ótima. – Menti. - Só um pouco cansada.
- Quer se deitar?
- Não. Estou bem.
entrou pela porta naquele exato momento, sacudindo a neve dos ombros e removendo as botas. Olhou para mim e sorriu; captei quando compreendeu a expressão em meu rosto, mas não pareceu pensar nada demais de tudo aquilo.
- Onde está toda aquela comida que não estou nem um pouco a fim de comer? - Brincou, por fim, os olhos ainda fixos nos meus. Sua mãe sorriu e começou a caminhar com a irmã até a cozinha, mas ele me esperou, passando os braços por meus ombros e sorrindo abertamente. - Ai meu Deus... Batata assada... Não estava com o psicológico preparado para essa.
- O que foi? - Perguntei, preocupada.
- Eu tenho um estilo de vida parcialmente fitness! - Exclamou exasperado, mas se serviu mesmo assim.
- Que problema horrível. - Concordei revirando os olhos. Sua mãe riu, e sua irmã também, e quando ergui os olhos para as duas, elas me encaravam. Senti meu rosto esquentar, mas não me importei.
- Tem certeza que não quer comer? - perguntou, partindo a carne com a faca. Neguei com a cabeça, olhando-o, e sorri.
- Os salgadinhos enganaram meu estômago. - Dei de ombros.
- disse que você está na UNI. - Sua irmã comentou, apoiando os cotovelos no lado oposto ao meu na ilha.
- Ah! Então você fala de mim, hein? - Provoquei, lhe lançando um olhar zangado. Foi sua vez de dar de ombros. - Faço sim: Inglês e Literatura.
- Ah, que máximo! - Se virou para o irmão. - Vai ter que tomar cuidado com as cartas de amor agora.
parou com a garfada de batatas a meio caminho da boca e ficou paralisado, ao mesmo tempo que removi os braços da pedra e arrumei a coluna. Continuei encarando-a, revezando o olhar entre seus olhos e os de .
- Eu não… - Ele riu, nervoso. - Nós não…
- Não é assim. - Intervi, rindo também.
Tive que lhe dar os créditos: ela pareceu tão apropriadamente surpresa e envergonhada que não consegui ficar sem graça muito mais tempo.
- Desculpa… Eu só achei que…
- Achou errado. - interrompeu, mas não parecia bravo com ela. - Mas definitivamente tenho que tomar cuidado com o meu inglês. Ela pode começar a me corrigir para o modo arcaico a qualquer segundo.
Revirei os olhos e sorri, mas não disse nada.
- Você está escrevendo alguma coisa? - Sua mãe perguntou, sentada na cadeira ao lado do filho.
- Na verdade, não, só o que pedem no curso. - Senti meu rosto corar de novo com o olhar de sobre mim, mas não consegui determinar a razão. - Não acho que vá escrever muito mais além disso.
- Ah, mas vai, sim! - discordou quase imediatamente, a boca cheia de comida tornando difícil levar sua expressão determinada a sério.
- Eu não vou escrever sobre você. – Falei, cansada e revirei os olhos talvez pela milésima vez.
- Vamos ver. - Disse em tom desafiador. - Depois das coisas que eu li, duvido…
- O que você leu?
Ele parou de falar, empurrando o prato de comida para longe e desviou os olhos dos meus.
- Depois das coisas que ouvi. - Corrigiu, sorrindo amarelo. - Desculpe, saiu errado.
- Coisas que ouviu?
Assentiu, olhando para mim, a expressão cheia de significado. Me lembrei do discurso que fiz em seu carro e senti meu rosto esquentar até a raiz dos cabelos.
- Eu… Estou realmente cansada. – Menti. - Você precisa de ajuda com as malas ou se importa se eu for me deitar?
Provavelmente estava sendo mal educada, mas não me importei. Estava com um mal estar inexplicável, embora não estivesse doente. Minha cabeça não doía, o princípio de ânsia de vômito em minha garganta não era real, mas eu me sentia completamente errada. Não conseguia me sentir confortável em ficar ali com a família de , mas me sentia doente demais para dormir ou comer alguma coisa. É como se meu corpo estivesse me dizendo “eu não sei o que eu quero, mas não é isso”. Tarde demais, percebi o ataque de ansiedade iminente.
- Eu te mostro o quarto de hóspedes. - Sua irmã se ofereceu, me indicando o arco de passagem da cozinha com a mão.
- Boa noite. - Murmurei para eles, tocando o braço da mãe de e apertando seu ombro. Ele segurou minha mão, se virando parcialmente na cadeira e me encarou.
- Já vou subir com suas coisas, se você quiser tomar um banho ou algo assim.
E vamos conversar, seu tom parecia dizer. Apenas assenti, me sentindo enjoada. olhou para minha mão como se fosse beijá-la, então olhou para mim e para a irmã, mantendo meus dedos nos seus por tanto tempo que se tornou constrangedor. Sua mãe pigarreou e ele finalmente me deu as costas.
- Viagem longa? - A garota perguntou quando subíamos as escadas.
- Não tão longa. - Sorri.
- Ah, se tivessem vindo de trem com certeza seria mais rápido. - Me garantiu, sorrindo também.
- É, mas não era tão acessível assim. - Comentei, mantendo os olhos no carpete enquanto andávamos. Ela parou em frente a uma porta branca no corredor e colocou a mão na maçaneta.
- Você provavelmente significa muito para ele se ele te trouxe aqui. - Comentou, abrindo a porta para que eu entrasse.
- Me sinto como se importasse. – Concordei. - Natal é uma coisa meio íntima.
- Ele não trouxe mais ninguém aqui. Tirando a , mas, por Deus, eles moraram juntos… Então acho que era de se esperar. Não quero ficar tagarelando sobre a vida dele, nem me intrometer na de vocês dois, mas você só me parece muito desconfortável, e não precisa ficar. Eu e a mamãe realmente não nos importamos, ficamos felizes que ele tenha alguém fora daquele mundo louco que é a vida dele, e que ele goste suficiente de você para te trazer para casa. Você é realmente bem-vinda.
Continuei a encará-la, com uma expressão meio estranha, me sentindo muito agradecida por suas palavras, mas não consegui dizer nada no momento. Queria dizer que o problema não era com a hospitalidade delas, era comigo. Que me sentia mais irritada a cada minuto, como se houvesse algo se rastejando por baixo da minha pele. Sabia que a situação era ridícula, elas me receberam bem - não houve, em momento algum, algo que me constrangesse a ponto de me deixar daquele jeito, mas eu me sentia mais incomodada a cada segundo. Eu tinha um problema que não tinha nada a ver com ela, mas não consegui fazer as palavras saírem.
Assenti e sorri. Ela pareceu um pouco desapontada, mas não disse nada, apenas continuou a sorrir e fechou a porta.

- P.O.V

Encostei a testa contra a madeira da porta e respirei fundo, uma mão na maçaneta e a outra segurando a pequena mala de . Quando comecei a sentir o peso do objeto, bati duas vezes e abri a maçaneta.
Ela estava sentada na beirada da cama de casal, os joelhos apoiados na estrutura da cama, as mãos cobrindo a boca e os olhos desfocados. Pensei que fosse ouvir alguma coisa engraçadinha, como “Sabe, bater na porta e logo entrar anula completamente o conceito de bater na porta!”, mas ela continuou lá, o corpo imóvel, a respiração acelerada. Mal pareceu notar minha presença.
- . - Chamei, colocando a mala no chão e me ajoelhando no carpete à sua frente, tocando seu braço. Ela olhou para mim, mas os olhos estavam vazios. A pele estava fria. - Eu sei que você não está aí. Não sei como funciona toda essa história de ataques de pânico e coisas do tipo, mas eu consigo ver em seus olhos agora. Onde quer que você esteja, volte logo.
Passei os dedos pela corrente do colar que lhe dei, segurando a pedra turquesa nas minhas mãos, e tornei a olhar para ela, que ainda encarava o vazio, os olhos em outro lugar.
- Queria que estivesse fazendo um efeito melhor agora. - Sussurrei e ri sem graça, tentando me controlar para eu mesmo não entrar em pânico. Nunca a tinha visto naquela situação, e não sabia se aquele estado imóvel e com a respiração irregular era o pior que ela poderia chegar, ou se eu deveria me preparar para mais.
- Ok. Escuta, eu vi quando começou lá embaixo, me desculpa se eu demorei para subir. - Falei, mesmo que ela parecesse estar completamente alheia ao que eu dizia. - Estou com meu celular aqui, e você tem que fazer exatamente o que eu disser, tudo bem? Por favor, tente me escutar. - Seus olhos se voltaram para mim como se eu tivesse lhe dado um tapa, e ela puxou a respiração como se estivesse afogando. Desceu da cama e abraçou os joelhos, balançando para trás e para frente, respirando muito rápido.
- Eu sinto muito. Eu realmente estou tentando.
A frase saiu em pedaços de seus lábios. Ela pareceu demorar uma eternidade para pronunciar as palavras, e não ergueu a cabeça em momento algum. Toquei seu braço, tentando enxergar seu rosto, mas logo desisti.
- Escuta, dá pra você me acompanhar? - Olhei para a tela aberta no google e me voltei para ela. - Preciso de cinco coisas que você consegue ver. E de uma respiração bem profunda.
- O carpete, minhas pernas, suas pernas, meu cabelo. Sinto muito. - E respirou muito fundo, como se já tivesse feito aquilo um milhão de vezes.
- Quatro coisas que você pode sentir. - Pedi, ainda tentando ter um vislumbre de sua expressão.
- Sua mão, seu hálito, a ponta do seu sapato no meu, o jeans na minha pele.
- Três coisas que você pode ouvir.
- Sua voz. - Fez uma pausa, respirando fundo mais uma vez, soltando um dos braços para segurar minha mão. - Sua respiração acelerada, seu tom preocupado.
Fiquei encarando o topo de sua cabeça, sem saber o que dizer. Ela era uma garota incrível, e estava no meio da minha casa tendo um ataque de pânico. Queria conseguir dizer o quanto me importava com ela, mas não sabia como colocar em palavras. Apertei seus dedos, ainda surpreso, e ela sugou o ar mais uma vez como se o oxigênio estivesse rarefeito.
- Duas coisas que você consegue sentir o cheiro. - Falei, mas minha voz saiu fraca, quase como a dela da primeira vez em que falou.
- Meu cabelo. Seu perfume.
- Uma coisa que te faz feliz.
- Você. - Respondeu imediatamente.
Era a mão dela ou a minha que tremia?
- Respire.

***


Era quase uma da manhã quando ela finalmente conseguiu respirar. Ofereci dirigir até o hospital pelo menos cinco vezes, mas ela apenas balançou a cabeça em todas. Bebia um pouco de água com açúcar e tinha a expressão cansada, os cabelos um pouco desalinhados, e evitava me encarar.
- Sinto muito. - Disse de repente, atraindo minha atenção. - O problema com essa história toda é que eu sei que é idiota. Eu sei com todo meu coração que não é grande coisa, mas eu não consigo simplesmente deixar para lá. Mas é aí que todo esse transtorno começa a agir: de repente, aquela coisa pequenininha, aquela pensamento sem importância, é muito grande, e continua a crescer dentro da minha cabeça, apertando meu peito e tentando sair de debaixo da minha pele. Eu sei com todo o meu coração que toda a situação é ridícula, e eu odeio cada minuto disso, .
Assenti, tomando um tempo para absorver as palavras, e diminui a distância entre onde eu estava e onde ela se sentava.
- O que aconteceu que te deixou assim?
- Eu não sei se deveria estar aqui. - Falou, dando de ombros, a expressão meio triste.
- Eu quero você aqui. - Respondi imediatamente, estendendo a mão em sua direção como se fosse tocá-la, mas deixei o braço cair logo em seguida.
- Isso não é justo. - Disse, e não soube se foi sua voz embargada ou seus olhos que pareceram muito úmidos, mas eu disse o que disse porque sabia que ia melhorar alguma coisa dentro dela.
- Eu não estou mais com a .
Sua expressão não se alterou. Ela apenas me encarou, em silêncio, tentando entender o que eu dizia. Como no aniversário de morte de Josh, o silêncio perdurou por tanto tempo que eu consegui sentir meu coração batendo em meus ouvidos.
- Eu estava com ela no dia do seu aniversário. Era aniversário dela também, e eu estava planejando uma festa surpresa para ela enquanto você me esperava na sua. Eu sinto muito. - Era melhor colocarmos tudo em pratos limpos se era de qualquer utilidade que ela se sentisse melhor estando ali. Era melhor eu dizer tudo o que eu tinha para dizer.
Pensei que fosse começar a chorar, para aquilo eu estava preparado, mas não soube o que fazer quando ela deixou aquela expressão cansada tomar conta de seu rosto. Sorriu triste para mim, e eu tive a sensação de que era nossa sina terminar em situações em que eu a magoava.
- O que você faz quando a pessoa que você quer que te conforte é aquela que te colocou nessa situação? Como eu posso querer tão desesperadamente que você me abrace e ao mesmo tempo querer tanto que você me deixe em paz? - Sussurrou. Queria que ela estivesse chorando. Queria que estivesse acordando minha família e gritando comigo. Eu não sabia o que fazer com seu cansaço e sua tristeza tão sincera.
- Eu sinto muito por te colocar nessa posição. Eu queria poder mudar alguma coisa, mas eu realmente am…
- Você não a ama. - Me cortou. - Eu te pedi para me falar dela uma vez e você me perguntou o que eu queria saber. Foi nesse exato momento que soube que você não a amava. Amava, mas não tanto assim. Veja só, se você a amasse tanto quando você diz, teria tagarelado até eu me cansar. Como a voz dela é o som que você mais gosta; que quando vocês estão entre outras pessoas, você não consegue olhar em outra direção, e quando ela te toca, nem que seja o menor toque de todos, todos os cabelos em sua nuca ficam em pé. Que os olhos dela são puros e quentes, e quando você encara eles, você se sente feliz. Como olhar para ela faz tudo de ruim estar de repente ok. Como estar com ela é como estar em casa mesmo depois de um ataque de pânico. Você teria feito um monólogo sobre ela sem hesitar, , porque eu conheço você. E é o que faço quando sequer mencionam seu nome para mim.
Queria conseguir encontrar as palavras para dizer como eu me sentia do mesmo modo que ela fazia com tanta facilidade. Queria dizer que a cada vez que ela falava daquele jeito, algo se remexia em mim. Queria dizer que ver seus olhos em mim daquele jeito era como estar no meu aniversário. É como uma cerimônia, o ato de soprar as velas, de cortar o bolo - a bagunça de creme e massa na boca. O gosto é doce e familiar, como um desejo recém formado, feito de todos aqueles que já fiz antes. Não consigo me lembrar de todos eles em sequência. Só consigo me lembrar dos que eu mais quis, como aquele skate verde fluorescente que eu vi na vitrine quando eu tinha doze anos. Como eu senti falta dele quando abri cada embalagem de presente e nenhuma trazia o que eu realmente queria. No meu aniversário de dezesseis anos, a mãe do meu melhor amigo ficou realmente doente, e tudo o que eu queria era que ela ficasse bem logo. Foi naquele ano que aprendi que estrelas cadentes podem ser uma benção ou uma maldição, dependendo do que você acreditar. E teve aquele ano em que eu me apaixonei. Não houve velas ou bolo aquele ano, quando eu já estava em Londres, andando pelas ruas vazias da cidade com meu coração em pedaços, querendo levar para cama a primeira garota que sequer olhasse na minha direção. Desde então tem sido a mesma coisa todos os anos. Assim que o primeiro fósforo se acende, o cheiro da pólvora queimando me leva de volta a essas memórias. E eu tinha plena certeza que no próximo aniversário, minhas memórias parariam bem ali, naquele quarto, com o vento batendo na janela e olhando para mim como se ela nunca pudesse amar tanto qualquer outra coisa no mundo. E eu não conseguia, nem naquele momento, pensar em algo para pedir, porque ela estava parada bem ali, na luz fraca do abajur, pedindo que eu a amasse.
Poderia ter dito tudo aquilo. Toda minha vida poderia ter sido diferente se eu o tivesse feito, mas fiquei em silêncio, balançando a cabeça em um gesto negativo, como se pudesse espantar todo aquele sentimento dentro de mim.
- Você disse o nome dela. - Falou, fazendo com que meus olhos voltassem para os seus mais uma vez, e pelo primeiro momento na noite, ela chorava.
- O quê?
- Nós estivemos juntos. - Nada do que ela dissesse naquela noite me deixaria tão surpreso quanto aquilo me deixou. Me lembrei vagamente do dia em que ela esteve na minha casa, em que acordei com imagens dela nua, o corpo contra o meu, suspirando meu nome, mas na época achei que tivesse sonhado. - Quando vocês terminaram. Você me pediu que fizesse aquilo, só por aquela noite. Como eu ia dizer não para você? Tudo que eu conseguia pensar era que você estava me tocando e me beijando, por todas as razões erradas, mas estava. E você disse que amava. - Limpou a umidade embaixo dos olhos, comprimindo os lábios apenas para deixar que mais lágrimas caíssem. Deveria ter ido até lá, confortado ela, mas não consegui mover meus pés. - Quando você disse aquelas palavras, eu não consegui reagir. Tudo o que eu conseguia pensar era que você estava falando aquilo para mim. Não durou meio segundo, , tenho que te dar os créditos por isso. Você me iludiu por apenas meio segundo antes de dizer o nome dela.
- Eu não sabia. - Sussurrei em choque, porque era a única coisa que eu poderia dizer. - , eu não sabia.
- Eu sei que você não sabia. - Me garantiu, a voz ainda embargada com suas lágrimas e a dor que ela provavelmente sentia naquele momento. - Mas eu sim. E eu me senti imunda, me senti a pior pessoa do mundo. Porque, para todos os efeitos, você pode ter me usado para esquecê-la por míseros trinta minutos, mas eu sabia no que estava me metendo. Eu soube no momento em que você entrou no quarto que eu estava com aquela expressão de dor. Eu deveria ter percebido, , que naquele momento eu não significava mais do que um consolo para você, e sei que é cruel dizer isso, mas não posso mudar essa situação. Talvez eu merecesse alguém melhor, mas eu sempre quis você. E quando estou com você, eu não gostaria de estar em nenhum outro lugar no mundo, e eu sou uma pessoa que sempre quer estar em qualquer outro lugar. - Fez outra pausa para limpar os olhos, mas não parecia querer que eu dissesse qualquer outra coisa, então não o fiz. soltou uma risada que não tinha humor algum e se ergueu do colchão, abraçando a si mesma. - E mesmo agora, se você me ligasse às quatro da manhã por causa dela, triste demais para sequer me pedir, eu iria até você. Eu iria amar você. Eu vou amar você. - Balançou a cabeça negativamente, como se pudesse expulsar toda a tristeza que eu a fazia sentir. Como na primeira vez em que ela me disse aquele tipo de coisa, tudo o que eu podia fazer era olhar para ela em silêncio. - Você diz que eu mereço alguém melhor, mas eu escolho você. Em qualquer versão do tempo e da realidade, eu te encontraria e escolheria você. Aquela noite que você me beijou, quando a situação era o contrário, eu resolvi esquecer. Porque eu estava bêbada e você estava com pena. Mas eu me arrependo mais do que eu poderia colocar em palavras, . Eu não tenho nome para o que eu sinto por você e aquele não deveria ter sido nosso primeiro beijo.
Aquilo foi demais para mim. Não sei em que momento no meio de sua fala eu tomei a decisão, mas caminhei até onde ela estava e a beijei. Sem tempo para preliminares, ela abriu a boca como se tivesse esperado a vida toda para que eu a beijasse daquele jeito. Deixei que minha língua vagasse por cada canto de sua boca, como se não houvesse nenhum outro lugar no mundo onde eu quisesse estar. Senti cada parte dela que tocava em mim, sua língua na minha, suas mãos frias em meu rosto, o corpo pressionado ao meu de forma que eu sabia que ela estava na ponta dos pés para me alcançar. A beijei como se eu tivesse todo o tempo do mundo, paciente, deixando minhas mãos sentirem a curva da sua cintura, a pele quente em seu quadril. Era como se eu tivesse esquecido qualquer outra boca que já tivesse beijado antes. Era como descobrir uma experiência completamente nova: minha língua explorava a boca dela como se fosse o meu primeiro beijo, mas eu sabia exatamente como deveria ser. A beijava como uma criança curiosa e excitada. Quando ela desceu as mãos para o meu peito, ergui as minhas para segurar seu rosto, sentindo seu gemido em minha boca. Levei as mãos até seu cabelo, segurando sua cabeça firmemente contra a minha. Deus, como eu não pude perceber que a amava? Como eu pude esperar tanto tempo para beijá-la daquele jeito?
Minhas mãos desceram vagarosamente por suas costas e eu pude sentir o gosto que a saliva dela tinha. Puxei sua cintura para mim, sentindo-a gemer mais uma vez contra minha boca. Já tive muitos beijos bons na minha vida, mas a estava beijando como se quisesse dançar com ela em uma arena aberta ao público e quisesse vê-la me olhar daquele jeito apaixonado na frente de todo mundo, como se eu fosse a melhor coisa na vida dela. O beijo não era desesperado. Muito pelo contrário, era paciente. Saboreei cada pedaço da sua língua como se fosse o último pedaço de chocolate que eu iria provar na vida. Nos beijamos por tanto tempo que eu esqueci o que fazer com as mãos, que continuaram enfiadas em seus cabelos por minutos a fio. A beijei por tanto tempo que se me afastasse naquele minuto e tivesse de responder qualquer pergunta, diria seu nome.
Quando ela finalmente se afastou, deixando um sentimento de vazio dentro da minha boca, estava com os lábios inchados. Estava tão perto que eu podia contar cada cílio em suas pestanas e podia ver meu reflexo em seus olhos, olhando para ela do mesmo jeito que ela sempre olhava para mim. Quis tomar sua boca na minha novamente, naquele exato segundo, e beijá-la até não conseguir a sentir mais. Suspirei, passando os dedos por seu rosto. Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo.
- Esse deveria ter sido nosso primeiro beijo. - Eu disse.

Capítulo 33 - Kaleidoscope Heart


Respirei devagar, com medo de me mover rápido demais e acordar de um sonho. Do lado de fora da janela o dia amanhecia, lançando uma luz levemente azulada para dentro do quarto. A luz fraca do abajur deixava o ambiente mais aconchegante, mais mágico, o que só fazia com que eu me sentisse, a cada segundo que passava, mais imersa em um tipo de montagem doentia do meu subconsciente.
Exceto que não era. Sentia com clareza o lençol que roçava minhas pernas, cada pedaço de pele dele que tocava em mim. Encarei seus olhos fechados, os cílios longos que lançavam leves sombras nas bochechas, o formato dos lábios e como ele era simplesmente macio. Não consegui impedir o sorriso que parecia ter feito morada em meus lábios; desenhava linhas aleatórias em seu peito, sentindo o calor de sua pele, a textura dele. Podia ouvir cada batimento calmo de seu coração, cada respiração relaxada que ele exalava. A luz começava a invadir o quarto e ele era uma das coisas mais bonitas que já vi na minha vida.
O dia amanhecia branco lá fora, mas o frio não entrava no quarto. Sentia cada centímetro de mim aquecido, cada minúsculo pedaço do meu corpo aconchegado e em casa. Depois de muito tempo, me sentia em casa. Minha casa não tinha um endereço. Tinha um coração que batia tão próximo e palmas suadas que dançavam por minhas costas nuas sem notar.
- Você está encarando. - Sua voz preencheu o quarto, rouca. Olhei para seu rosto, mas ainda mantinha os olhos fechados, um sorriso repuxando os lábios.
- Estou admirando. - Corrigi, arrumando meu corpo de forma que eu pudesse beijá-lo.
- É constrangedor. - Sussurrou contra minha boca, as mãos segurando meu rosto ali, um gemido se formando no fundo de sua garganta.
- Você é incrível. - Falei baixinho, a voz quase tão baixa quanto seus sussurros. Passei a perna pelo seu corpo, subindo em cima dele. Apesar de estarmos ambos completamente nus, o gesto não pareceu sexual; deitei a cabeça na cavidade entre seu pescoço e seu ombro, levando a outra mão até seu rosto. Beijei cada pedaço de pele que me era alcançável. - Você é bonito como algum tipo de demolição. Só de pensar que estou tão perto de você, os nós dos meus dedos ficam brancos. Não preciso de nenhum Deus - eu tenho você bem aqui, e seus lábios tocando cada parte de mim, suas mãos quentes no meu quadril, sua respiração em minha pele. - ajustou o corpo para olhar para mim, deixando que meu peso se apoiasse mais na cama do que nele. Os olhos estavam fixos nos meus, quentes. - Meu coração quase se esmaga contra as minhas costelas quando eu penso nas noites solitárias que passei querendo seu toque. Como eu me senti destruída como um homem cumprindo uma pena de prisão perpétua. Agora você está aqui, e qualquer parte de mim que você toca entra em combustão. - Ele parecia querer me beijar, só pelas minhas palavras ou para me fazer calar a boca. - Eu preciso de você. Você é tudo que eu posso ver, e você é o único que eu quero conhecer.
- Se você continuar me dizendo essas coisas… - Balançou a cabeça, fechando os olhos como em um aviso.
- Não consigo evitar. É mais forte do que eu.
Ficamos em silêncio por tanto tempo que pensei que tinha adormecido. A qualquer momento sua família acordaria e eu não me sentia exatamente confortável com a ideia de alguém nos encontrando ali, do jeito que estávamos, mas a ideia de me levantar daquela cama era tão desagradável agora quanto seria em duas horas.
- Não acredito que demorei tanto tempo pra segurar você assim. - Usou aquele tom de novo, aquela voz tão baixa quanto um sussurro, rouca.
- Me diz - eu disse. - O que é essa coisa com o tempo? Por que é melhor estar atrasado do que adiantado? As pessoas estão sempre dizendo: “eu tenho que esperar, eu tenho que esperar, eu tenho que esperar”. Pelo que estão sempre esperando?
- Bem… - Ele ponderou por um momento, a expressão pensativa. - Acho que as pessoas esperam para ter certeza de como se sentem.
- E quando você esperou... Isso fez com que tivesse certeza?
olhou em meus olhos, avaliando meu rosto. Seus dedos tocaram minha bochecha, a outra mão fazendo um caminho por meu corpo, tocando a lateral dos meus seios, minha cintura, meu quadril.
- Sim. - Apesar do momento que levou para me avaliar, não hesitou em responder.
Me afastei dele para me sentar na beirada da cama, cruzando os braços em frente ao meu corpo nu. Sorri, encarando seu torso exposto contra os lençóis brancos.
- Acho que hoje é um dos meus melhores dias. E eu já tive muitos dias bons. - Comentei, puxando o cabelo para prendê-lo em um coque. Deixei as mãos pousarem em minhas pernas, voltando os olhos para o encarar. Inacreditável. Precisei de muito esforço para não deixar as palavras escaparem dos meus lábios. Inacreditável.
- Qualquer dia que passo com você é o meu melhor dia. - Disse com um sorriso, os braços cruzados atrás da cabeça. - Então hoje é meu novo melhor dia.
Sorri mais uma vez e me levantei para procurar minha mala. Quando terminei de separar as roupas, me virei para o quarto, procurando o banheiro. riu da cama.
- É no corredor. - Sua expressão era extremamente divertida. Franzi as sobrancelhas, me encaminhando até a porta e checando para ver se ninguém mais saía do quarto. - Não trouxe um roupão?
Mostrei o dedo do meio para ele, esperando alguns segundos para ter certeza que ninguém saía do quarto ainda.
- Quer um abraço?
- Vai se foder.
Ele soltou uma gargalhada conforme caminhei até o banheiro. Quando voltei, já estava vestido, colocando o celular no bolso traseiro dos jeans.
- O que você acha de fazermos o café da manhã? - Perguntou, erguendo as mãos para arrumar o cabelo bagunçado.
- O que você acha de comprarmos o café da manhã? - Rebati, sorrindo.
- Pensei que já estivesse confiando em minhas habilidades culinárias a essa altura. - Me lançou um olhar acusatório, as mãos se erguendo para me puxar pela cintura.
- Eu amo você. - Murmurei, me aproximando para beijá-lo. - Amo o jeito que você me toca. - Pontuei o sussurro com outro beijo. - Mas ainda não aprendi a amar sua habilidade na cozinha.
- Nós temos muito tempo para isso. - Riu contra meus lábios, se afastando e me puxando em direção a porta.

***


- Acho que tem uma padaria por ali… - disse, esticando o pescoço para olhar a rua. Observei suas mãos no volante, me lembrando da noite passada e sentindo meu rosto esquentar. Voltei a encarar seu rosto frustrado, já que definitivamente não havia uma padaria ali.
- Podemos ir ao mercado e comprar algumas coisas. - Comentei, indicando a grande construção uns metros a frente.
- Pensei que não iríamos cozinhar. - Disse em tom acusatório, os olhos claros agora fixos em mim.
- Não acho que comprar waffles para esquentar e alguma coisa para beber seja a definição que se busca quando diz cozinhar.
Ele deu de ombros.
- É cozinhar, pra mim.
- Porque você não cozinha!
estacionou o carro, tornando a olhar acusatoriamente para mim enquanto pegava as chaves e o celular no painel.
- E você sim?
- Eu nunca disse que cozinhava! – Exclamei. - Esse é o exato ponto aqui. Eu não cozinho, nem finjo que sei. Às vezes tento, no máximo.
- Poderíamos ter tentado hoje.
- Você realmente acha que a primeira impressão que quero deixar na sua casa é de intoxicação alim… O que você pensa que está fazendo?! - Exclamei com urgência, encarando seus dedos entrelaçados nos meus. O tópico “cozinhar” se varreu da minha cabeça como se nunca tivesse existido.
parou no meio da caminhada, baixando os olhos para acompanhar meu olhar.
- Segurando sua mão? - Foi mais uma pergunta do que uma afirmação.
- Sim!
- Eu não… deveria segurar sua mão? - Disse as palavras lentamente, como se tentasse entender onde eu queria chegar.
- As pessoas podem ver você segurando minha mão. - Falei como se fosse óbvio.
- Ah. - Separou nossos dedos, parecendo confuso por um momento. Então sorriu de lado, me puxando com força para me beijar. - Espero que tenha alguém tirando fotos. Melhor lidar com isso logo.
- Licença? - Falei em um tom irritado, mas sorria. - Não lembro de ter aceitado pedido algum.
- Preciso me ajoelhar?
- Já estamos lá? - Perguntei, rindo, sem afastar nossos corpos. puxou minha franja com a mão que não estava em minha cintura, beijando minha testa.
- Podemos nos separar assim que tivermos filhos. Só estou interessado nos seus genes. - Outro beijo. - Já pensou se eu tenho uma criança com esses olhos? Não ia nem deixar sair de casa.
- Hmmmm… - Gemi, erguendo a cabeça para encarar suas orbes. - Pelo menos temos que praticar bastante antes de conseguirmos colocar uma criança aqui. - Indiquei minha barriga com as mãos.
- Esse útero hostil. - Concordou, olhando para minha barriga com a cara fechada.
- Mas sou provavelmente estéril, no entanto. - Comentei quando recomeçamos a caminhada. - Já pensou se houvessem umas três de mim? Deus jamais deixaria tanto poder dando sopa por aí.
- Esse é, obviamente, o motivo que faz ter mais de uma uma péssima ideia.

***


- Por que você não cozinhou? - A irmã de perguntou com a boca cheia de waffles, franzindo o cenho.
- Por que será? - disse em um tom debochado, me lançando um olhar acusatório - não confia muito nas minhas habilidades.
- Na verdade, ele é um cozinheiro muito bom. - A irmã o defendeu, parecendo bem sincera.
- Ah… Sério?
- Você cozinhou comigo uma vez. - Me lembrou.
- É. Não foi um dos meus melhores dias.
- Sei bem qual foi. - disse com um sorriso, fazendo com que meu rosto esquentasse e o de sua irmã tomasse uma expressão desconfiada.
- Ou isso envolve uma situação bem constrangedora ou muito sexo sobre o qual não quero ouvir. - Falou, a expressão meio exasperada. Ela colocou o prato dentro da pia e se afastou, rindo e balançando a cabeça.
- Vai ser meio constrangedor se ela vir uma foto nossa na internet depois de termos veementemente negado qualquer tipo de envolvimento. – Constatei, encarando o lugar onde suas costas tinham desaparecido.
riu, aproximando a cadeira da minha e me abraçando.
- Vai ser constrangedor contar nós mesmos. - aproximou o rosto de mim, pontuando a frase com um beijo em meu pescoço, e sussurrou: - Você provavelmente não a quer deduzindo o que fizemos a noite inteira.
Sorri, tornando a corar.
- O que me deixou morta de sono e com uma dor nas costas horrível. - Dramatizei a fala, erguendo os braços e empertigando a coluna.
- Sempre posso te fazer uma massagem. - prendeu meu lábio inferior entre seus dentes, soltando uma risada antes de me beijar para valer.
Passou o braço por minhas costas, segurando meu queixo firmemente com a outra mão. Tentei segurar um suspiro o máximo que pude, mas sentia sua pele contra a minha, seu corpo encostando no meu, o jeans na minha coxa, o cotovelo roçando meus seios a cada vez que ele acariciava meu rosto, a respiração pesada se misturando com a minha.
- É tão inapropriado me beijar assim na mesa de café da manhã. - Acusei sem abrir os olhos, a respiração irregular. riu baixinho.
- Quero te beijar assim em todo lugar. – Sussurrou. - Sempre quis. Desde aquele dia no meu carro, que você me disse aquelas coisas. Tudo em que eu conseguia pensar era em beijar você.
- Por que não beijou? - Perguntei em um tom que parecia o estar acusando de uma atrocidade.
- As coisas são mais doces quando esperamos que elas aconteçam no momento certo. Eu sei porque eu quis muito algo uma vez, ponto final, e quando eu consegui, virou areia nas minhas mãos.
Eu sei do que ele está falando agora - do beijo que pedi quando não conseguia nem lembrar meu nome. Agora sei que ele queria aquilo tanto quanto eu, mas está certo, no entanto. Não era o momento certo, e aquele beijo, que deveria ter sido tão maravilhoso quanto o de ontem à noite, se tornou areia em nossas mãos. A primeira vez que dormimos juntos, a primeira vez que me declarei. Nos apressamos muito para fazer as coisas que estavam previstas para fazermos o tempo todo. Se há alguém que você ama, e essa pessoa também ama você, tudo o que falta é timing. Agora, nós sabemos mais que ninguém que às vezes o timing pode ser uma grande merda.
- Estou contente que tudo tenha dado errado tantas vezes. - Digo e ele me olha como se eu fosse completamente louca. - Quero dizer, nos faz realmente acreditar que deveria mesmo dar certo. Se não tivéssemos errado tanto no caminho até aqui, não teria sido tão…
Não consegui terminar a frase. Olhei para ele, observando as manchinhas em suas bochechas, a pelugem em suas têmporas, as manchas castanhas em seus olhos. Quero beijá-lo de novo. Quero deixar meu dedo tocar sua pele, sentir cada minúscula rachadura no tecido, a oleosidade que brilha em seu nariz na luz clara que vem da janela. Passo os dedos por seus cabelos, sentindo os olhos dele em mim, e me pergunto se meu coração é forte o suficiente para um amor que nunca se cansa.
- Eu sei. - Ele diz em um tom de voz muito baixo, reverente, soando tão apaixonado quanto eu sempre esperei escutar. - Eu sei. - E me beija.

Capítulo 34 - Holocene*


- Bom, isso é embaraçoso. - Digo no segundo em que piso no primeiro andar, na manhã de Natal. A árvore montada ali é linda, apesar de mais modesta do que eu esperava. Me sinto meio culpada em constatar que a primeira imagem que vem de em minha cabeça é de um típico milionário, mas ele ainda mora na casa de sua infância e nenhum dos gestos de sua família é extravagante.
Desde que tive idade o suficiente para entender algumas coisas, soube que minha família era mais afortunada do que outras. Eu e Andrew estudamos em colégios renomados a vida toda, sempre tivemos o que queríamos, e mesmo agora, dinheiro não parecia um problema muito grande para mim. Me surpreendi de ter tantas condições quanto minha família, provavelmente muito mais, e o jeito como lidávamos com isso ser completamente diferente.
Depois de um breve momento de distração, voltei meus olhos para o desastre iminente. Aos pés da árvore decorada em dourado estavam vários presentes. Nenhum que eu me lembrasse de ter comprado, embora eu tivesse certeza que haviam alguns destinados a mim.
- O quê? - perguntou, se erguendo do chão ainda em seus pijamas depois de dar uma olhada na pilha.
- Não consegui lembrar do Natal. Simplesmente me fugiu. - Disse meio confusa, ainda encarando a pilha de presentes e sentindo meu rosto esquentar.
- Como você esquece um feriado como o Natal? - Ele riu. - Tem neve saindo de todo lugar. Guirlandas! Minha mãe fez questão de colocar um visgo na porta, na esperança de que a gente se beije!
- Ora… - Comecei como se ele estivesse me ofendendo. - Eu estive distraída.
pareceu cair em si. Me encarou, parada ali, um sorriso muito grande no rosto. Soltou um risadinha e continuou com aquela expressão admirada até eu começar a corar novamente.
- Eu? - Perguntou, meio bobo.
- O quê?
- Eu te fiz esquecer o Natal? - E soltou uma risada infantil, os olhos ainda pregados em meu rosto como se ele estivesse esperando pelo momento que eu fosse desmentir tudo.
- O que você esperava? - Acusei, me sentindo meio perplexa quando ele veio abraçar minha cintura. - Você fica me beijando o tempo todo! E encostando em mim, e meu Deus, o jeito que você olha pra mim!
continuou com o sorriso bobo no rosto.
- Que jeito?
- Como se… Como se você não pudesse acreditar que eu sou real. Fica me encarando como se eu fosse desaparecer quando você piscar os olhos.
- Não sei como te olhar de outro jeito. - Disse como se estivesse se lamentando, mas não lamentava nada.
- Você faz com que eu me sinta adorada. - Sussurrei, erguendo o braço para tocar seu rosto, os fios de seus cabelos. Não podia ver sua expressão, ele se afastou para me abraçar por trás, mas sentia seus beijos em meu pescoço e seus braços firmes em torno de mim.
- Eu não sou muito bom com palavras… - começou, o rosto ainda escondido de mim, e nós dois rimos, talvez com a lembrança compartilhada de como comecei a me declarar algum tempo atrás. - Mas eu vou tentar elaborar, por você. Sabe aquele sentimento que você tem quando pede pizza? Então o cara que a entrega chega e ele toca a campainha, e você abre a porta e ele te entrega o pedido. E você consegue sentir o calor saindo da caixa. É assim que me sinto quando estou com você.
- Essa foi horrível. - Critiquei com uma expressão exasperada, mas sorri mesmo assim.
se moveu mais uma vez, os lábios também repuxados, e encarou meus olhos.
- É assim que me sinto quanto estou com você. - Repetiu - Feliz e aquecido por dentro.
Não soube o que dizer. Continuei olhando para ele, sorrindo, e encarando o pequeno sorriso em seus lábios. Eu vou escrever sobre você, pensei. E sobre todo esse feriado.
- Retiro o que disse. - Falei abruptamente. - Isso foi incrível. - E puxo seus lábios para os meus.
Aconteceria mais cedo ou mais tarde, digo para mim mesma. Claro que não poderíamos ficar nos beijando o tempo todo na casa, ou fugindo para o quarto um do outro como adolescentes, sem ninguém perceber. Escuto o pigarro e interrompo nosso beijo como se tivesse levado um choque, arregalando os olhos para a figura da mãe de na escada. Ela veste um robe e um sorrisinho impertinente, como se soubesse o tempo todo.
- Pensei em não interromper vocês. - Diz com uma voz cheia de afeto. - Mas eu realmente quero dar um abraço de Feliz Natal nos dois.
Meu sorriso constrangido se transforma em um mais natural quando ela me abraça antes de se dirigir ao filho, e parece que os músculos do meu rosto estranham minhas ações, como se eu tivesse me esquecido de como sorrir, mas não consigo parar nem por um segundo.

***


A irmã de ajeitou o cobertor em volta do corpo, mesmo que estivesse bem ao lado da lareira. Também me sentia gelada apesar dos braços de ao meu redor e da manta que nos encobria - a luz fraca que vinha da grande porta de vidro me deixando cada vez mais sonolenta.
Já não prestava atenção no filme que a TV exibia há algum tempo, de forma que foi fácil convencer a mim mesma que não havia razão alguma em ainda tentar entender as motivações do protagonista. Tentei me manter acordada por pelo menos mais quinze minutos, antes dos meus olhos finalmente vencerem a batalha e eu me deixar arrastar para um sono confortável.
Dormi por tanto tempo que estava constrangida mesmo inconsciente. Quando acordei, já estava escuro lá fora, a TV estava desligada, e alguém havia colocado outra manta sobre mim. Podia ouvir as vozes baixas conversando na cozinha.
- Uau. - A voz de exclamou, fazendo com que eu arrumasse a postura para encará-lo. Minhas costas protestaram imediatamente.
Ele estava sentado no chão, a cabeça apoiada no sofá, próxima à minha barriga, um sorriso tranquilo em seus lábios. Os olhos estavam fixos em mim.
- Aposto que estava babando. - Sussurrei, tentando sorrir também.
Senti a vibração de sua risada.
- Você fica linda babando. - Me garantiu em um tom solene, removendo uma das mãos de seu colo para acariciar meu quadril. A pele era gelada contra a minha.
- Acho que é melhor do que ser pega falando seu nome.
Eu quis pegar as palavras de volta no instante que elas deixaram meus lábios. O polegar de congelou no gesto de acariciar minha pele e seu sorriso vacilou de forma quase imperceptível.
- Ah não.
Queria esconder o rosto do olhar dele mesmo que tivesse absoluta certeza que já tivesse visto minhas bochechas vermelhas.
- A não ser que seja seu novo apelido carinhoso para mim… - Pelo menos ele tentou fazer piada da situação. Me lembrava muito bem do sonho com Josh e tinha absoluta certeza que nossas imaginações projetaram imagens completamente diferentes.
- … - Tentei pensar em alguma coisa para falar, mas ele tornou a sorrir e se ergueu, sem esperar por uma desculpa.
- Meu pai está aqui. Deu uma passada e quer te conhecer. - Falou sem qualquer indício de mágoa na voz, estendendo os dedos em minha direção.
Me ergui no sofá, passando os dedos pelos fios bagunçados e tentando limpar qualquer vestígio do meu cochilo do rosto, embora soubesse que a sonolência ainda era visível em cada aspecto observável em mim.
- Você poderia ter me acordado antes. - Reclamei, as bochechas ficando quentes de novo. Segurei sua mão e suspirei quando ele passou o braço por minha cintura.
- Você fica absolutamente angelical dormindo. - Sussurrou com os lábios bem próximos ao meu ouvido. - Acordar você estragaria toda a experiência.
- Você fica olhando as pessoas dormirem? - Acusei em voz baixa. - Doente.
- Só você. - Me corrigiu, roubando um beijo que não fui rápida o suficiente para desviar.
- Doente. - Repeti.
Ele não respondeu, cedendo apenas mais uma risada. Ele ainda ria quando entramos na cozinha, atraindo o olhar de sua família.
- Não acredito que você acordou ela. - Seu pai acusou, sorrindo para mim.
- Eu dormi demais. - Me desculpei, estendendo a mão para ele. - Sou a .
- Prazer em conhecer você, .
- Não segure a mão dela muito tempo. - censurou, ainda sorrindo.
Sua mãe e sua irmã riram.
- Bonita demais para mim.
- Para mim também. - Concordou e fiquei mais vermelha do que nunca quando vi a forma que ele me olhava. Na frente de todo mundo, ?
- Infelizmente não posso ficar. Mas, bem… Foi realmente um prazer, . Feliz Natal. - Ele deu um abraço em cada um de nós antes de sair para a neve que o esperava lá fora.
- Essa foi rápida. - Brinquei.
- Você quem dormiu demais. - acusou com uma risadinha antes de sua mãe o repreender, nos chamando para jantar.
Meu plano era usar todos os presentes que ganhei de sua família no jantar (tanto o suéter quanto o colar), mas fui completamente prejudicada pelos meus hábitos noturnos negligentes.
- Perdi todo o Natal. - Reclamei, sorrindo quando ele arredou a cadeira para mim. - Queria usar meus presentes.
- Você pode usá-los amanhã. - Falou com tranquilidade enquanto se sentava ao meu lado.
- Sua irmã está usando o meu presente - que na verdade é seu, não “nosso”, como estava no papel, agora, neste exato momento, demonstrando toda a gratidão que ela sente. - Respondi muito rápido, rindo da expressão exasperada que ele fez.
- Shhhh. É Natal. Seja menos . - Calou minha boca com um beijo, gargalhando quando o afastei com o rosto em chamas.
O jantar passou tão rápido que senti como se não o tivesse aproveitado completamente. Passamos tanto tempo conversando que a comida estava completamente fria quando terminamos. Os músculos do meu rosto estavam doloridos, não sei se por falar tanto - mais do que eu já falara em qualquer ocasião - ou por rir tanto. Queria que ficássemos ali madrugada a dentro, dividindo histórias que me fariam continuar a gargalhar, falando de assuntos mais sérios ou discutindo literatura. Mas cada segundo que eu aproveitava com a família de era também um segundo que eu estava mais próxima de voltar para casa - para minha própria família e rotina.
provavelmente voltaria a viajar por alguns meses e logo agora, que tudo parecia tão certo, a ausência dele nos últimos tempos parecia cada vez mais em evidência. Por mais simples que os dias fossem naquela cidadezinha, tudo parecia um sonho, e tinha medo que no segundo que voltássemos a Londres, tudo fosse desaparecer.
- Que foi? - perguntou quando terminou de ajudar sua irmã com a louça, sentando-se ao meu lado. Pensei em como deveria estar parecendo uma louca sentada ali, a expressão vazia, pensando em várias coisas que ele não estava nem perto de saber.
- Nada. Só estava pensando. - Sorri para ele, aconchegando a cabeça na curvatura de seu pescoço.
- Você pensa demais. - Censurou.
- Porque penso em você. - Falei baixinho. Consegui sentir o tremor que percorreu o corpo dele.

- P.O.V

[N/A: Detesto notas da autora no meio do texto. Sério. Mas preciso pedir uma coisa muito importante, para vocês sentirem a experiência completa do restante desse capítulo. Quero que vocês escutem uma dessas duas músicas, ou as duas seguidas: “Gold” e/ou “Outside Digging”, do James Vincent McMorrow. Pode deixar repetindo aí. Vocês vão me agradecer depois.]


Não a respondo por um momento, sentindo o ritmo de sua respiração. Comparada a poucos minutos atrás, a casa parece incrivelmente silenciosa.
- Você quer ir lá fora um pouco? – Pergunto. - O céu está limpo. É incrivelmente lindo por aqui.
Ela concorda, se afastando de mim e se erguendo.
- Deve ser. Sem toda aquela poluição de metrópole…
- Você vai ver. - Garanto e estendo os dedos para ela.
Quando chegamos ao quintal, seus olhos se fixam no céu, a expressão tranquila. Não nos tocamos - ela fica parada ali, a uns dois braços de distância, se abraçando.
- Não pensei que pudesse existir tantas estrelas assim. Não à vista, pelo menos. - Não sei se é pelo silêncio da noite ou pela forma como a observo, mas mesmo que fale muito baixo, seu tom parece reverente.
Não digo nada mais uma vez, e ficamos tanto tempo em silêncio que ele lentamente deixa de ser desconfortável. Viro a cabeça para olhar o céu que ela encara e penso em tantas coisas… Penso na forma que ela disse o nome de Josh mais cedo. Em todos os segredos, que mesmo agora, parecem um agouro sobre a nossa relação - o que quer que ela seja. Penso nas palavras guardadas em meu bolso que decidi devolver para ela, e no que elas podem significar. Me pergunto se o jeito como ela me olha é diferente da forma como ela olhava para ele, e me sinto um idiota por começar a nos comparar. Mas não consigo impedir. Me pergunto se ela lhe dizia o tipo de coisa que ela me diz quando não consegue falar que me ama. Se ela olhava para ele do jeito que me olha quando falo algo que toca em alguma parte dentro dela.
Não consigo chegar a conclusão nenhuma, e de fato, isso não me surpreende. Como se eu pudesse sequer começar a entender alguém que é tanta luz e arte e alma.
- Você sente falta dele? - Pergunto um momento depois, os olhos fixos nela. não me responde, apenas continua encarando o céu, uma expressão estranha no rosto.
- Sim. - Diz solenemente, mas eu sei que vem uma explicação por aí, então espero. - Bem, não sinto falta dele como costumava sentir antes. Acho que é uma das primeiras coisas que você supera depois que aceita o luto. Mas sinto falta de partes dele. Às vezes nem sequer me lembro que algo aconteceu, como se ele fosse entrar pela porta do meu quarto em meio um monólogo a qualquer momento. Outras vezes a saudade me atinge como um soco na cara.
- O que você mais sente falta? - Continuo sussurrando, como se estivesse envergonhado de fazer perguntas pessoais, mas sei porque me sinto assim. Sei que assim que ela disser a resposta, vou fazer exatamente o que ela dizer. Não me orgulho, apenas por um momento, de me aproveitar da morte de Josh para fazer algo por ela, mas é um pouco tarde demais para respeitar um código de honra mudo. Não é como se pudesse existir qualquer tipo de competição.
não me olha nem por um segundo. Não sei se por medo de me machucar ou de enxergar alguma coisa que não queira em meu rosto, mas seus olhos só olham para cima, sua voz responde minhas perguntas, mas eu sei que ela não está ali.
- Sinto falta de como dormíamos juntos. Não fazer sexo ou algo do tipo, mas só dormir mesmo. Ele deitava do meu lado e às vezes ele jogava o braço em cima do meu peito, e eu não conseguia me mover. Eu até respirava mais devagar. Segurava o fôlego. Mas eu me sentia segura, completa. E eu sinto falta de como ele sempre estava assoviando alguma música. Sempre que eu fazia alguma coisa, pensava no que ele me diria. “Bom, está frio hoje, então use um cachecol.” - Ela faz uma pausa e o pequeno sorriso em seus lábios se desmancha. Sua expressão fica triste por alguns segundos, os lábios comprimidos, se lembrando de algo que não posso ver. Quando ela fala, a emoção em sua voz me assusta. - Mas eu tenho esquecido algumas coisas, pequenas coisas, e ele está meio que se esvaindo. Estou esquecendo ele e é como perdê-lo mais uma vez. Então às vezes eu me obrigo a lembrar cada detalhe do seu rosto. - fecha os olhos e estica um braço, como se estivesse tocando algo, a mão fazendo gestos suaves. - A exata cor de seus olhos. Seus lábios, seus dentes, a textura da sua pele, do seu cabelo… - O braço cai de repente e ela olha para mim. - Mas tudo se foi junto com ele. E às vezes, não sempre, às vezes posso vê-lo. É como se uma nuvem se movesse no céu e lá está ele, como se eu pudesse tocá-lo. Mas o mundo real a minha volta se precipita e ele se esvai mais uma vez. Eu costumava encarar a luz da janela todos os dias pela manhã, esperando que o sol não brilhasse muito lá fora, o sol faz com que ele desapareça, de alguma forma. - Ela desvia os olhos de novo, parecendo mais triste. - Como um nascer ou um pôr do sol, ou algo efêmero do tipo, como nossa vida. Nós aparecemos e desaparecemos, e somos tão importantes para alguém, mas estamos só de passagem.
Há um longo momento em que ficamos em silêncio mais uma vez. Ela parece perdida em pensamentos e eu não sei o que dizer. Ela tem tantas palavras para se expressar e eu só posso sentir.
- Tenho algo que é seu. - Digo e me aproximo alguns passos, removendo o papel do bolso. Ela o encara sem dizer nada. - Sinto muito por ter pego. Me sinto como um ladrão barato…
- Você não é um ladrão. - Me interrompe imediatamente, mas quando olho para ela, vejo que está sorrindo. - Mas está acostumado a ir embora com coisas que não te pertencem.
Sorrio com o duplo sentido de suas palavras, mas não posso me esquecer do que planejei dizer quando decidi devolvê-la o papel.
- Acho que entendi o que sentia por você quando peguei isso aqui. O tempo todo eu estava aterrorizado que pudesse me importar tanto por você. Convenci a mim mesmo que era sua amizade que eu tinha em alta conta. Eu estava com outra pessoa… Como é que eu podia te amar do jeito que te amava? E eu também amava . De forma diferente, eu sei agora. É horrível pensar que ou você vai casar com a pessoa que você está ou vocês se magoarão de uma forma que não tem mais volta. Nada é certeza, e ela não foi. Mas eu tenho certeza de você. - Garanti - Agora eu entendo, e agora eu sei que tenho. Estava morrendo de medo que você gostasse de mim, que estivesse passando tempo comigo não por mim, mas porque eu supria a falta que você sentia de Josh. Depois que li isso… Sei que não é assim. Sei que você sofreu muito por tudo que te fiz passar. E eu sinto muito por isso. Demorei muito tempo para saber como eu me sentia, me convenci que não te via dessa forma e deixei parte do tempo que tínhamos passar. - Balanço o papel para que ela veja o quanto falo sério. - Quero que você saiba que entendo tudo que está aqui. O que significa. Quero que saiba que eu amo você, sei disso agora. Nunca vou conseguir olhar para o seu rosto e não amar você.
Seus olhos brilham muito na noite clara, não sei se porque ela quer chorar ou porque ela também me ama, mas fico grato que ela me olhe assim. Entrego o papel para ela, que o abre, e com a expressão impassível, o lê em voz alta:

Josh,
Tentei fazer algo assim muitas vezes. Abrir mão de você. Fazer alguma coisa que te deixasse, por fim, ir. Passei muito tempo sem conseguir te encarar, sem conseguir encarar a vida e tudo que estava acontecendo à minha volta, até que reuni toda a minha coragem para andar por aquele cemitério. Parecia um rito de passagem; como se eu tivesse de me provar forte ou corajosa o suficiente para seguir com a minha vida ou sentir o luto que me espreitava - qualquer um dos dois que fosse meu destino. Não adiantou me recusar a ir no velório. Um dia, eu sabia, teria de me levantar da cama e me despedir. Não podia passar o resto da vida fingindo que encontraria você sentado na escadaria do vizinho da frente, abrindo um sorriso quando me visse atravessando a rua porque você sabia que eu não queria ir, para onde quer que estivéssemos indo, mas também sabia que por você, eu iria.
Não foi como eu esperava, e o principal motivo destas palavras são para me desculpar. Nunca fui muito boa em muitas coisas, você sabe bem, e eu sinto muito pelo fato de que minhas palavras são a única coisa que tenho para te oferecer, mesmo que você sempre tivesse merecido mais, muito mais. Mais que os poemas que rabisquei pensando em você, embora eu seja uma completa negação com poesia. Mais que todas as cartas de amor que te entreguei e revirei os olhos para menosprezar sua importância quando você as lia em voz alta para mim, os dedos em meu rosto, os olhos se revezando entre mim e o papel. Você merecia mais do que as palavras sussurradas que eu lhe entregava quando você me deixava sem opção, e queria pegar de volta no momento que as pronunciava. Sempre parecia muito pouco para você - as coisas que eu tinha a dizer ou as palavras que poderia lhe entregar. Sempre quis ser uma escritora, Josh, e você estava acima de qualquer coisa que eu pudesse criar. Você era um verso que alguma divindade deixou escapar lá de cima, e Deus, como sou grata por ter lido você.
É minha sina ter sido incapaz de criar algo tão lindo como o que você significava na minha vida, e minhas palavras, tão insuficientes, não merecedoras de tentar descrever algo como você, são a única coisa que me resta. Espero que onde quer que você esteja, me veja escrevendo isso. Quero que me leia e feche os olhos para pensar em mim. Quero que possa sentir a forma como todos os meus “s” marcam o papel, e que o toque da sua mão na superfície áspera o faça se lembrar da minha pele. Quero que, enquanto puder, nunca me esqueça. Quero que se lembre de mim com a mesma adoração que me olhava - como se a próxima palavra que fosse sair da minha boca pudesse fazer maravilhas, como curar o câncer ou erradicar a fome no mundo. Quero que você acredite que eu fui tamanha maravilha na sua vida. Que nosso amor pudesse fazer qualquer coisa. Quero que, mesmo se você renascer em outra pessoa do outro lado do planeta, nunca se esqueça da cor dos meus olhos. Quero que você nunca deixe de pensar em mim.
Desejo que você faça tanto, com tudo que tenho em meu coração, porque não consigo fazer a razão em mim aceitar que pessoas como você nascem para passarem apenas uma vez por aqui. Não entendo como possa existir algo nesse mundo que possa fechar seus olhos para sempre, mas sou obrigada a simplesmente aceitar que existe.
Eu sinto muito, Josh. Por ter caminhado por aquele cemitério como se você fosse estar me esperando em sua lápide com o olhar mais decepcionado de todos. Por ter falhado com sua mãe e sua irmã quando tudo que elas queriam era saber quais foram suas últimas palavras antes de você estar estirado naquele asfalto - seus olhos pela primeira vez desviados dos meus, focados em algo que eu já não conseguiria ver, mas eu precisava tomar fôlego. O tipo de fôlego que você toma quando a dor é grande demais, e você não pode se permitir nem ao menos chorar, porque tudo o que você é, é dor, e se você deixar qualquer pedaço dela para fora, você talvez deixe de existir.
Não te escrevo por isso, Josh. Não quero que você saiba como me senti nos meses que se passaram - acredito que a melhor maneira de se superar esse tipo de sofrimento é tentar ao máximo não pensar nele. Porque o sofrimento está ali por perto, esperando, por pouco sendo contido, e você talvez possa ignorar por um tempo. Mas outras vezes é como um copo que está sempre cheio e continua derramando. Te escrevo porque preciso seguir em frente. Você foi o único cara por quem eu me ajoelhei. Você fez a guerreira dentro de mim cansada, Josh. E eu estou me ajoelhando de novo.
Queria conseguir descrever como ele é para você. Tenho certeza que a essa altura, você me entenderia. Pode estar colocando a mão no meu ombro e sorrindo nesse exato momento.
Ele também tem olhos doces, que me observam quando eu falo, e quando não estou falando, me olha só por me olhar. Ele é feito do tipo de luz que desmancha qualquer sofrimento obscuro dentro de você apenas com um olhar. Ele tem mãos longas, elegantes, o tipo de mãos que fazem com que eu queira saber desenhar. Elas são fortes, mas não somente me seguram. Me carregam. Ele nunca me pergunta se estou bem como se fosse realmente uma pergunta, mas como se me dissesse que estou. Ou que vou ficar. Se eu estivesse sangrando dentro de uma banheira, ele não iria suspirar.
Preciso me despedir de você agora, Josh, porque mesmo que eu esteja cheia de ar e de fumaça, ele não me toca como se eu fosse um fantasma. Prometo não carregar você dentro de mim como se fosse um erro, ou como um pacote de chicletes perto de estragar, mesmo depois que eu me esquecer do seu gosto. Vou te levar dentro de mim como se eu ainda te pertencesse. Sou completamente sua, Josh, mas mesmo sendo tão sua, desconheço qualquer parte minha que possa de fato te pertencer.
Quando me perguntarem sobre você, sempre irei sorrir, e quando eu disser seu nome, soará como um "obrigada". Espero que você esteja feliz, onde quer que esteja, Josh, mas o sol ainda é o sol sem você, e isso não me aterroriza mais.

Para sempre,
.


- P.O.V


Não falo nada quando termino de ler a carta. Não havia dado falta dela com tudo que tinha acontecido, e só então me lembrava de como tinha me sentido quando a escrevi. Quis rasgar o papel, jogá-lo ao vento, ou colocar fogo. Quis ir até Brighton naquele exato segundo e deixá-lo sobre o túmulo de Josh. Mas não fiz nada. Encarei as letras eternizadas ali e não soube o que fazer. O que eu ia fazer com aquilo?
- Está magoada comigo? - pergunta depois de um momento, a voz baixa. Parece cauteloso tanto em falar quanto em se aproximar de mim.
- Não… Eu só… - Não sei o que dizer. Não tenho a mínima ideia do que dizer, e isso me aterroriza.
- Está ok. - Fala depois de um momento. Tenho que me esforçar muito para erguer os olhos para ele.
- Estou com medo de esquecer você. - Confesso em um sussurro.
parece não entender, um vinco formado em sua testa.
- Do que você está falando?
- Minha mãe colocou fogo na casa. Por isso eu… - Não termino a frase, erguendo a mão queimada para analisá-la. - Ela queimou a casa no meio da noite.
- O que você quer dizer com isso?
- Alzheimer… Ela… Você não devia ter me dito essas coisas. Não devia ter me mostrado essa carta. Você tem noção do que tudo isso significa para mim? Não posso esquecer você.
Queria conseguir explicar para ele, mas não conseguia encontrar as palavras. Josh morreu. Minha mãe está doente, e você é tudo que eu tenho. E se eu esquecer você?
- Alzheimer? - Ele testa a palavra nos lábios, soando tão surpreso quanto sua expressão me mostra. - Como você…
- No dia do hospital, que você estava fora da cidade e… Sinto muito. Não consegui falar nada aquele dia. Não consegui dizer nada depois. Não sabia como entrar nesse assunto.
Ele parece demorar uma eternidade para responder. Seus olhos estão fixos em mim e ele parece assustado. Também estou assustada, .
- Eu sinto muito. - Diz com sinceridade e pela primeira vez se aproxima de mim, segurando minha mão.
- Você entende o que quero dizer? - Afastou nossos rostos depois que ele beija minha testa, tentando enxergar seus olhos. - Não posso esquecer você. Estou esquecendo Josh. Minha mãe não sabe quem eu sou, .
-
- Ela se lembra perfeitamente de Andrew, como pode me esquecer se somos gêmeos? Nossas lembranças deviam estar conectadas. - Faço uma pausa, esperando que ele diga alguma coisa, mas apenas nos encaramos em silêncio. - E se eu me esquecer de você? Se eu esquecer quem é a Lissa? Se eu esquecer meu irmão?
- Você é muito nova. Vai ficar tudo bem. - Me garante, falando rápido, mas parece querer convencer mais a si mesmo do que a mim. - É por isso que você parece estar em um velório toda vez que chega em casa?
Pensei em meu pai. No meu irmão. Pensei em todas as coisas que aconteceram nos últimos tempos.
- Não me sinto em casa mais. - Falei baixinho, querendo que ele não escutasse. - Minha casa ficou em Brighton.
não diz nada mais uma vez, apenas deixa os braços na minha cintura, os olhos fixos em mim, com aquela expressão triste. Não sabia se queria chorar de felicidade com a forma que ele me olhava ou de tristeza com o que eu finalmente dizia. Quantos segredos guardei dele sem perceber?
- Há coisas que você não sabe sobre mim. - Escondo o rosto em seu ombro, encarando as árvores às suas costas - Tenho medo que você me conheça de verdade e não me ame mais.
- Isso não vai acontecer. - Fala quase que imediatamente. - Não importa o que você me diga.
- Você acabou de descobrir que está apaixonado por mim. Tudo pode mudar em alguns segundos…
- Você não ouviu uma palavra do que eu disse? Sempre estive apaixonado por você. Sempre. Desde que você bateu aquela porta na minha cara. Não acabei de descobrir que gosto de você. Acabei de descobrir que fui um idiota por não admitir mais cedo.
- Foi mesmo. - Sou obrigada a concordar, fazendo com que ele solte uma risadinha. - Fiz algumas coisas que não me orgulho. Me prometa que não vai sair correndo da sua própria casa assim que eu contar.
- Eu prometo.
Não digo nada imediatamente. Tento formular a frase na minha cabeça de uma maneira que diminua meu constrangimento, mas de qualquer jeito parece horrível. Como se ele estivesse me pedindo em casamento no momento em que eu ia admitir estar com outra pessoa.
- Eu costumava dormir por aí. Você sabe… Não exatamente dormir. Acho que você sabe disso. Você deu a entender que sim quando brigamos na sua casa. Mas também acho que você precisa de uma confirmação da minha boca antes de… Antes de seguirmos em frente com o que quer que seja isso aqui. Nunca entendi quando as pessoas diziam que não sentiam nada. Absolutamente nada. Até que eu soube. E eu fazia qualquer coisa para sentir alguma emoção. Nem que fosse nojo ou vergonha de mim mesma. Então eu dormi com todos os amigos do Josh. Bom, não todos… Mas alguns deles. - Faço uma pequena pausa, dando a a chance de fugir. - E quando vi que não ia dar em nada… Bom, você precisa saber que eu preciso tomar alguns remédios. Barra pesada. Coisas que você não consegue saber que alguém usa e olhar para essa pessoa com os mesmos olhos. E comecei a tomar fora da prescrição… Misturar com um copo de vodka, ou seis. Acho que dá pra deduzir que não deu muito certo também. Depois disso, houve dias em que pensei que estava bem. Ou que estava caminhando para isso. E eu pensava “vai ficar tudo bem se eu ficar assim para sempre”, mas é claro que as coisas não podem ficar do mesmo jeito.
- Eu não me importo que você ficou chapada por um tempo. Ou com quantas pessoas você dormiu nesse período. Eu não me importo que você foi para casa de algum cara e vocês foderam e você acordou no outro dia odiando a si mesma. Você não é uma má pessoa pelas formas como você tentou superar o que quer que você estivesse passando naquele momento. Você é humana, e ser humana quer dizer que você tem um instinto de sobrevivência e você faz o que você bem entender, foda-se o que os outros irão pensar.
- Está aí uma compreensão pela qual eu não esperava…
- Já fiz minhas próprias burradas. Terminei com uma garota que eu gostava e estraguei tudo com a que eu amava ao mesmo tempo. - Me lembra.
- Eu me sinto outra … - Sussurrei. Ele se afastou para me olhar e senti falta do seu peito contra o meu.
- Você parece outra .
- Acho que assim que voltarmos, ela também volta.
- Estou preparado para ela. - sorriu. Não sabia como processar tudo o que acabara de acontecer, mas estava feliz que tivesse acontecido. - Vamos entrar? Está esfriando.
Caminhei ao seu lado até a porta de vidro, me sentindo estranha.
- … - Chamei, fazendo com que ele olhasse para mim. - Minha casa vai ficar aqui também.


*Holocene: o sentimento de pertencer a um tempo que passou não há muito.

Capítulo 35 - Awaken


Chutei os tênis pelo quarto, caindo de cara na cama e suspirando. Teria, de bom grado, acompanhado até qualquer uma das trinta e cinco mansões que ele tinha por aí, mas queria minha cama. Queria dormir até três da tarde, desfazer minhas malas e entregar os presentes que comprei para Andrew e minha mãe.
Precisava, além disso, arrumar companhia para ir comprar um vestido para uma festa que eu não tinha vontade nenhuma de ir. Pensei em ligar para Lissa, mas desisti após alguns minutos, decidindo que o telefone estava longe demais para as minhas necessidades. Naquele momento, se eu não alcançava, eu definitivamente não precisava.
Tentei dormir por alguns minutos, mas me sentia mais desconfortável a cada segundo que passava. O botão do jeans começava a me incomodar, a janela entreaberta deixava o quarto completamente gelado, e eu me sentia na casa de um completo estranho. Esperava gostar da sensação de ter uma cama de casal só para mim, mas o espaço acabou sendo evidente demais - senti falta dos pés de acariciando minha perna, e de deitar nele, ao invés de no travesseiro.
Com um suspiro, me ergui da cama e caminhei até a escrivaninha, retirando a carta para Josh do bolso e lendo-a pelo que deveria ser a trigésima vez. Ao contrário de qualquer outra coisa que já havia escrito, não senti a menor vontade de me desfazer daquela obra. Li, reli, e li mais uma vez, tentando me sentir envergonhada com as palavras, como sempre acontecia, mas só conseguia pensar “como é que pude me sentir assim?”. Me sinto meio triste ao fazer, mas apesar do sentimento ruim em meu peito, caminho até o andar de baixo e pego um isqueiro na cozinha, voltando para o quarto e colocando fogo no papel.
Deixo cair na lixeira de metal, vendo as chamas retorcerem até que não resta nada além de cinzas. Não preciso mais de você. Penso, passando a mão pela franja, e ergo os olhos para as fotos no painel. Você não me assombra mais, Josh.
Senti sua presença na porta, mas não me importei. Ergui as mãos para as fotos com meu ex-namorado e removi os imãs que as prendiam ali, substituindo pelas que tirei com e sua família. Acariciei a foto com Lizzie e seu irmão mais uma vez antes de colocá-las em um lugar mais embaixo, bem longe do meio. Eu não precisava me remoer sobre nada daquilo mais. Para falar a verdade, não precisava me remoer sobre qualquer coisa.
Andrew finalmente chamou atenção para si, dando um passo para dentro de um limite que ele havia delimitado para si mesmo. Ele pigarreou, um sorriso tímido no rosto.
- Devo me sentir honrado que ainda estou aí?
- Você sempre vai estar aqui. - Disse como se fosse óbvio, lhe dando as costas para arrumar as polaroides que ficaram tortas.
- Não parecia, ultimamente. - Meu irmão comentou baixinho às minhas costas, fazendo com que eu soltasse um suspiro antes de me virar para encará-lo.
- Eu não quero continuar odiando você. Você é um babaca, acho que concordamos cem por cento nesse quesito, mas me sinto mal quando você me olha com esses olhinhos.
Ele assentiu, meio sorrindo, meio hesitando.
- Eu sinto muito.
- Está ok. Eu aceito suas desculpas. - Falei depois de um momento, e me aproximei para abraçá-lo. - Mas você não pode continuar desse jeito.
- Não falo com ele tem meses. - Andrew confessou baixinho, sem graça. - Bem, desde… Você sabe. Não consigo conversar com ele. Fico lembrando de como você parecia assustada, e do som da sua voz, e eu…
- Está ok.
- Não, não está. Eu não sabia que era assim.
- Claro que você sabia. - Desminti imediatamente, mas toquei seu braço para mostrar que não estava brava. - Você escuta o jeito que ele fala comigo.
- Eu devia ter feito alguma coisa.
- Qual o ponto de discutir isso agora? Já passou. - Soltei sua mão e me escorei na mesa, jogando a cabeça para trás.
- Você tem cicatrizes? - Andrew perguntou depois de um momento em silêncio. Abri um olho para encará-lo, incerta se queria entrar naquele assunto, mas acabei suspirando mais uma vez.
- É claro que eu tenho.
- E o que o disse sobre elas?
Abri os olhos de vez e arrumei a postura para encarar meu irmão. Senti meu rosto esquentar, mas Andrew provavelmente soube o que aconteceu no momento que me viu entrar na casa.
- Perguntou o que eram. Eu respondi. - Abri um sorriso que não mostrava meus dentes, inclinando a cabeça para apreciar a expressão que ele tinha no rosto. - E ele as beijou.
Pensei que Andrew fosse se sentir constrangido, mas ele também sorriu, como se estivesse feliz que aquela fosse a reação de . Assentiu, se aproximando para beijar minha testa uma vez antes de sair do quarto.



Fique em pé por um tempo, imaginando como seria só ficar deitada pelo resto do dia, mas, eventualmente, me afastei da mesa e da cama para pegar meu celular na mochila. Ignorei as notificações na tela inicial, não me preocupando nem em checar o que era, depois, e procurei pelo número de Ryan na agenda. Ele atendeu no quarto toque.
- Estou extremamente ofendida que você não demonstrou sentir minha falta.
- Provavelmente porque não senti.
- Claro. - Debochei, revirando os olhos. - O que você acha de sairmos para tomar um café?
- Que original, . Eu sinceramente esperava algo melhor de você. Ou acha que pode simplesmente me chamar para tomar um café sem que eu saiba que é para falar sobre sentimentos? - Ryan disse tudo de uma vez, a voz soando meio irritada, mas sei que ele não estava falando sério.
- Como se eu fosse falar sobre meus sentimentos com você.
- Você não me engana.
- Nem você engana a mim! - Exclamei com veemência. - Vai continuar fazendo charme ou vai simplesmente aceitar?
- Não vou aceitar.
- Nós dois sabemos que você vai.
- Não quero falar com você.
- Que tal você me encontrar na Waterstone? A cafeteria de lá é uma maravilha, como você bem sabe! - Sugeri, sorrindo, e passei o dedo pelo móvel do corredor, tirando uma camada de poeira.
- , você não vai me convencer!
- Te vejo em vinte minutos!
Ryan gritou qualquer coisa sobre não sentir minha falta antes que eu finalizasse a ligação.


Bati os pés impacientemente, a garota que estava atendendo os pedidos da cafeteria estava me lançando um olhar divertido. Não sei se porque eu estava obviamente me sentindo deslocada, estando ali sem qualquer livro para estudar, qualquer computador para escrever ou trabalho de faculdade para fazer. Também podia ser porque as garotas na fila obviamente cochichavam e olhavam para mim, mas eu não podia ter certeza.
Ryan se jogou na cadeira à minha frente, roubando minha atenção dos cochichos alheios, e sua expressão era de quem não podia acreditar que estava realmente ali.
- Olá, você. - Falei baixo, bebendo um gole de café e empurrando o outro copo na direção dele. - Deve ter esfriado um pouco, mas isso é culpa da sua falta de pontualidade.
- Desculpa. - Ryan falou sem qualquer sinceridade, as mãos nos bolsos do casaco. - Eu não estava muito a fim de vir.
Ignorei sua provocação, desencostando a coluna da cadeira e arredando para a beirada do assento, tentando ficar mais perto dele.
- Eu achei que deveríamos conversar. - Falei em um tom apaziguador, querendo esticar a mão para tocá-lo, mas duvidei que o gesto fosse ajudar em alguma coisa.
- Desconfiei.
A expressão em seu rosto não era tão debochada mais, ele, na verdade, parecia bem cansado. Desviou os olhos dos meus, os lábios se abrindo para dizer mais alguma coisa, mas se fechando em uma linha fina logo em seguida. Esperei até que Ryan se recompusesse, e apesar de seu rosto logo estar firme em uma expressão impassível, ele balançou a perna descontroladamente por baixo da mesa.
Passei o dedo indicador pela borda do meu copo, tentando formular a frase da melhor forma possível. Quando abri a boca, não consegui encarar a expressão em seu rosto; ao invés disso, encarei minhas próprias mãos e removi as luvas que não cobriam meus dedos, tentando ganhar tempo.
- Eu e o … - Falei, passando a mão pela franja, ainda sem erguer o olhar. - Nós acertamos as coisas.
Quando finalmente criei coragem para encará-lo, vi que Ryan olhava para mim com as sobrancelhas erguidas, a expressão cética.
- Temos um evento no ano novo. Achei que era melhor você ouvir de mim, do que ver as fotos por aí. - Finalizei e voltei para meus dedos mais uma vez.
Nunca fui muito boa em dar o fora em alguém que eu conhecesse, ou lidar com uma pessoa que tivesse sentimentos por mim. Estive com Josh pelo que pareceu todos os anos da minha vida, e o mundo inteiro parecia saber que eu estava com ele. Quando algum desconhecido tentava qualquer coisa que fosse, eu sempre ignorava ou respondia da maneira mais mal educada possível, salvo algumas poucas situações. Era estranho estar ali, sabendo o que Ryan sentia por mim, e sabendo que ele sabia o que eu sentia por também. Já estive no lugar dele, apesar de serem duas relações completamente diferentes: queria que fosse feliz com Caroline, mas isso não tornava assistir dos bastidores mais fácil ou agradável. No fim das contas, eu podia ao menos imaginar como era pra ele estar ali, me ouvindo destruir o que talvez fosse sua última esperança, por mais egoísta que possa parecer. Ainda assim era melhor do que a outra opção.
- Acho que é um pouco tarde demais para isso. - Ryan falou baixinho, a voz mais triste do que qualquer coisa, mas ainda assim amargurada.
- O quê? - Perguntei distraidamente, erguendo a cabeça para ele. - Como assim?
- Você não queria que eu descobrisse por meio de fotos de vocês. - Ele pontuou, as mãos ainda escondidas nos bolsos. - Você está um pouco atrasada.
- Ryan. - Falei, sem saber mais o que dizer. Eu não era exatamente fã do que as redes sociais podiam proporcionar. Para ser completamente sincera, só usava a internet para ouvir música e fazer pesquisas: eu tinha um facebook que entrava o mais raramente possível, duvidava até que lembrasse a senha. Tinha um perfil no Twitter também, disso eu tinha certeza, mas havia postado apenas umas duas coisas, e os únicos seguidores que eu me lembrava de ter eram Andrew, Josh, Mandy e um cara árabe qualquer. Se alguma coisa já havia vazado, eu seria a última pessoa a saber.
- Aquelas garotas não estavam encarando você só porque é bonita. Saiu um artigo sobre você, e o professor Gallagher mostrou para a classe inteira. Foi ridículo, eu saí pouco antes dele terminar, mas eu vi as fotos. E não eram poucas.
- Nós sequer saímos da casa da família dele. - Falei baixinho, confusa.
- Não eram fotos do fim de semana, . Ele saindo de uma boate e você logo atrás. Vocês dois saindo de um restaurante, você saindo da casa dele com um dos outros caras. Tinha fotos de vocês dois na entrada da sua casa, no carro dele. Não sei por onde você andava enquanto vocês eram “amigos”, mas o mundo inteiro sabia. Não que existia um relacionamento, é claro, mas quando vocês se beijaram em Manchester, no meio da rua, acho que ficou bem fácil deduzir.
Eu me lembrava dessa parte, é claro. De sair para comprar café da manhã e me beijar, dizendo que era melhor lidar com aquilo tudo logo. Também me lembrava dos fotógrafos no dia do nosso jantar, no dia que me levou em casa, e algumas outras vezes também. Nunca procurei pelas fotos, mas se Ryan estava dizendo…
- O professor Gallagher fez piada comigo? - Perguntei, ainda um pouco surpresa, atônita com a situação.
- Não foi pesado assim. Ficou falando sobre termos uma celebridade na turma, era só uma reunião, fora da grade, mas não acho que você cheque seus e-mails, tampouco, se não veria que foi convidada.
- Entendo.
Sei que uma parte de mim deveria se sentir incomodada com algum ponto daquela conversa: desde um professor que era claramente pouco profissional, até a parte que haviam várias fotos minhas por aí. Eu já havia encontrado com uma pessoa ou outra que me reconheceu, mas não havia parado para pensar na amplitude da situação - depois do incidente com Andrew, decidi me manter mais afastada daquele tipo de coisa do que já era.
- Escuta, , muito obrigado por me levar em consideração e querer ser uma boa pessoa e tal. Mas eu preciso de um tempo, tá? Não odeio você nem nada do tipo, mas eu não quero sair para tomar café como se fosse tudo normal. Eu só preciso de um tempo para aceitar as coisas.
Lembro de ter assentido, um pouco decepcionada, e quando Ryan se levantou e se foi, me senti pior do que antes de encontrá-lo.
- Ei. - Uma das garotas que estava rodeando a cafeteria falou assim que minha companhia me abandonou, sorrindo. - Você não é a namorada do ?






- E então? - Dei um giro completo para enfatizar onde os olhos de deveriam estar.
- Você está ótima. - Garantiu com um sorriso.
Passei as mãos pela renda dourada e tentei fazer os dedos ficarem mais confortáveis dentro do sapato de salto.
- Me sinto uma guirlanda ambulante.
- Você com certeza faz uma bela guirlanda.
Ele me olhou por mais tempo do que o necessário, um sorriso discreto nos lábios. Seus olhos brilham um pouco, e me sinto ruborizar com todo o sentimento imposto ali.
- O que foi? - Perguntei sem graça, sem saber como reagir a todo aquele sentimento que sempre quis encontrar em seu rosto.
- Pensei que nunca fosse ter a oportunidade de ver você usando um vestido. - Ele comentou com a voz baixa, os olhos esquadrinhando cada centímetro de mim como se ele nunca tivesse me visto antes. - Acho que sou especial o bastante agora. - Brincou.
Acompanhei sua risada, me aproximando para beijá-lo. Inacreditável. Era difícil assimilar que eu podia beijá-lo quando bem entendesse, e só para ter certeza, enlaçei seu pescoço com meus braços, puxando-o para mim.
riu contra meus lábios, deixando a língua caminhar de encontro a minha, os braços dando impulso em minha cintura para que eu subisse em seu colo, as pernas enlaçando sua cintura. Aproveitei cada centímetro que seus dedos percorreram na parte inferior da minha coxa, querendo que ele me apertasse, mas quando solto um suspiro, quebra nosso beijo quase instantaneamente.
- Temos um tapete vermelho para percorrer em alguns minutos. - Falou baixinho, me colocando no chão. - Por mais que a ideia de arruinar esse vestido seja muito tentadora, seria um crime contra a humanidade proibir o mundo de te ver vestida nele.
Soltei um suspiro audível e me olhei no espelho mais uma vez. Meus olhos pareciam mais destacados do que nunca, e a maquiagem com certeza fez um trabalho para as duas espinhas que ameaçavam nascer na minha testa. Tentei focar no cabelo delicadamente penteado, mas meu olhar continuava sendo atraído para os lábios vermelhos, agora um pouco borrados.
- Sou obrigada a concordar com você. - Murmurei mais para mim mesma do que para , mas sei que ele me escutou pela risada que se seguiu.
O vi se aproximar de mim pelo espelho e aguardei até que seu braço estivesse na minha cintura.
- Olha só como somos fofos. - Apontou para nossos reflexos com o queixo, limpando um pouco do batom no canto da minha boca, com o polegar.
- Nós teríamos lindos bebês. - Concordei com um aceno de cabeça, o que arrancou outra risada de seus lábios.
- Fique parada. - Pediu enquanto esticava o braço para alcançar o celular na mesa às nossas costas. - Agora seja uma boa garota.
- Eu não fico bonita em fotos. - Avisei quando ele faz questão de me abraçar mais uma vez, virando meu rosto em direção ao espelho.
- Você fica bonita de qualquer jeito. - Garantiu, depositando os lábios na minha testa e tirando a foto. - Viu? Que sorriso meigo.
- Você é um idiota.
- A garota da foto não diria isso. - Me censurou.
Dei uma risada e me aproximei para olhar o que ele estava digitando.
“Noite de roupas extravagantes.”
- Romântico. - Debochei, me afastando de e seu celular para pegar a bolsa.
- Eu sou um cara muito romântico.
- Claramente.
se aproximou para beijar meus lábios antes de abrir a porta para que eu pudesse passar, o som de seus sapatos me seguindo de perto. Entramos na sala onde os outros garotos estavam e se virou em uma velocidade recorde na nossa direção.
- Então… - Ele gesticulou para nós. - Como foi que isso aconteceu?
- Ah, isso?! Lissa me levou para comprar o vestido. A Lou…
- Isso, vocês dois. - Esclareceu.
- , , … - disse quase em tom de alerta do fundo da sala.
- Acho que você sabe como aconteceu.
- Ah, eu sei?!
- Duas pessoas. - Começei, me aproximando do sofá onde ele estava e ouvindo a risada de às minhas costas. - Nenhuma roupa. De repente…
- Ele não quer ouvir isso. - me interrompeu.
- Ah, eu quero, sim!
Coloquei as mãos na cintura, sorrindo para ele. Não quero parecer feliz demais, mas a expressão escapou mesmo assim. sorriu também, se aproximando para me dar um abraço de urso, o que arrancou um sorriso de , parado às suas costas.
- Eu te disse que era melhor contar para ele. - Sussurrou em meu ouvido.
- Não tem sido exatamente um passeio no parque desde que contei. - Comentei com um sorriso.
- Eu nunca disse que ia ser agradável. - pontuou, me lançando um olhar cheio de significados antes de se afastar.


- Você está bem? - perguntou muito próximo a mim, tentando se fazer ouvir com os gritos que cresciam assim que descíamos do carro.
- Estou. É só que…
Uma mulher me interrompeu, me estendendo um grande quadro para que eu pudesse escrever meu nome. Só quando ela nos deixou é que explicou que aquilo seria exibido em um canto quando estivéssemos posando juntos, para que os fotógrafos soubessem quem eu era.
- É só que o quê? - Incentivou, enlaçando os dedos nos meus.
- Não sabia como isso tudo funcionava até pouco tempo. - Falei com simplicidade, indicando as câmeras com um gesto de cabeça.
- Ah! - exclamou, mas não comentou mais nada.
- Espero não roubar a atenção de você. Odiaria ficar mais famosa que o meu namorado… - olhou para mim e sorriu, me puxando para um abraço.
Ficamos em silêncio mais uma vez, escutando as brincadeiras que os garotos faziam antes que fossem chamados para posar. Soltei um suspiro e escondi o rosto no peito de , fechando os olhos.
- Eu não tinha pensado nisso até agora. - Confessei.
- Você não precisa ir até lá se não quiser. Alguém te leva pelos bastidores.
- Não, está ok.
me olhou, sem dizer nada, e depositou um beijo demorado em minha testa.
- Ok. Nós vamos primeiro, eu e os garotos, depois chamo você.
- Tudo bem.
- Preparada?
- Não exatamente.
Ele soltou uma risada.
- É fácil. - E me deixou.
Observei, de braços cruzados ao lado do tapete, enquanto eles posavam juntos em frente a um painel com o nome do hotel e o símbolo da gravadora. Diferente das premiações, não havia repórteres; apenas uma dúzia de fotógrafos, muito mais próximos das pessoas que paravam para as fotos do que eu esperava.
Os outros garotos acenaram antes de se afastarem de e , e colocou a mão na minha cintura para indicar que era nossa vez de ir até lá. Assim que pisamos no alcance das lentes, elas disparam, e senti meu rosto esquentar muito rápido conforme me aproximava do meu namorado. Meu namorado. Abri um sorriso, apreciando a sensação da palavra.
passou um braço por minha cintura, usando o outro para segurar meu queixo e me beijar. Quando se afastou, após alguns segundos, olhei para ele com curiosidade, e sorri.
- O que eu faço agora?
- Sorria. E tente olhar para uma câmera ou outra. Você não precisa se esforçar.
Revirei os olhos para a brincadeira, me arrependendo assim que um flash me obrigou a piscar. Que maravilha.
Fiz o que ele disse, muito consciente de todos os lugares em que ele me tocava, e dos olhares que me lançava enquanto tentava atender aos pedidos de “Olhem para cá!”. Após mais ou menos um ou dois minutos, segurou minha mão e me puxou para dentro do hotel, passando a bola para e , que pararam quase exatamente igual a nós.
sorriu assim que nos avistou.
- Como foi?
- Tenho certeza que vou sair com a cara deformada em algum lugar. - Comentei, soltando um suspiro.
- Vai continuar mais bonita que todos nós. - abaixou os óculos escuros para me lançar uma piscadela, rindo. fechou a cara ao meu lado e ergueu o dedo indicador em aviso.
- Você pare com isso.
Ele ergueu as mãos na altura dos ombros, como quem se diz inocente, mas continuou rindo. e sua namorada logo nos alcançaram, parando próximos no lobby.
- E agora? - Perguntei, olhando para eles.
- Agora o quê?
- O que fazemos agora? - Reformulei.
- Agora vamos para a festa. - respondeu com um sorriso.



estava parado ao meu lado, agora, e havia uma certa felicidade infantil em vê-lo ali, vestido em um terno preto, a taça de champagne na mão e os olhos claros em mim. Havia um indício de sorriso nos seus lábios, por trás da taça, e sabia que era porque ele percebeu que eu estava encarando.
- Se continuar me olhando assim… - Sussurrou, se aproximando do meu ouvido - Posso achar que vai querer ser meu beijo de meia-noite.
Revirei os olhos quando ele se afastou.
- Que absurdo.
- Um ano, . - Amei o jeito como ele falou o meu nome. - Quase um ano, pelo menos. - E voltou os olhos para o horizonte, admirando a visão da cidade iluminada tão tarde da noite. Podia ouvir as risadas ao nosso redor, assim como as conversas baixas e o barulho de pessoas fazendo brindes, mas não conseguia desviar os olhos do seu rosto ou prestar atenção em qualquer outra voz.
- Eu sei. - Falei baixinho, esticando os dedos para tocar seu braço.
olhou para mim mais uma vez, aquele mesmo sorriso de poucos segundos atrás retornando, os olhos brilhando na iluminação do terraço. Estar ali me lembrava Brighton, um ano atrás, na festa da empresa do meu pai, mas eu não me sentia, naquela época, como me sentia agora. Sabia que era um território escorregadio pensar assim, com tanto para viver, mas acho que nunca havia me sentido tão feliz em toda minha vida.
- Muita coisa mudou. É quase inacreditável.
Inacreditável. Aí estava aquela palavra de novo.
- O fato é que, um ano atrás, eu era uma pessoa completamente diferente de quem eu sou hoje à noite. Eu, como eu sou agora, simplesmente não existia. Se as mesmas mudanças vão acontecer nesse ano? Eu espero que sim.
assentiu, prestando atenção, e tirou minha mão de seu braço para entrelaçar os dedos nos meus.
- E o que foi que mudou tanto em você?
- Você mudou tudo para mim. - Sorri quando ele balançou a cabeça, sem graça, e me aproximei para abraçar sua cintura. - Desta vez, onde eu sempre parava para olhar quão longe eu tinha chegado, eu continuei andando. Você é a prova viva de que as vezes é melhor não olhar para trás.
Quando olhou para mim, pensei que ele fosse chorar, mas não fez isso. Passou o braço por trás do meu pescoço, me apertando contra si com tanta força que eu quase não conseguia respirar. Ele inspirou profundamente em meu pescoço, os lábios muito próximos do meu ouvido, de forma que, quando falou, sua voz falhou diversas vezes com o volume baixo, mas o escutei perfeitamente bem.
- Você diz que não quer me esquecer. - Falou com a voz estrangulada - , eu sou seu. Se eu morrer nesse exato momento, eu sou seu. Que me esqueça. Me esqueça e me ame de novo, como você fez da primeira vez. Me esqueça e volte para mim, e vou te lembrar sempre que precisar. A única coisa que importa é que eu nunca vou esquecer da expressão no seu rosto quando te beijei em Manchester.
Ele ficou em silêncio pelo resto da noite, aquela expressão pensativa no rosto. Não disse nada, e não o toquei mais além do abraço em que ainda estava segura. Pensei, por um momento, que pudesse estar mais assustado do que eu com toda essa história, e seria melhor para ele apenas abandonasse o navio, mas quando o relógio bateu meia-noite, ele me beijou.
Ontem à noite eu fiz uma resolução para meu ano novo, e jurei para mim mesma, de cabeça e coração, que pensaria duas vezes antes de quebrá-la, e que não procuraria por entrelinhas nas regras que escrevi em pedra. Esse ano - ou o que eu disse para mim mesma quando estava deitada naquela cama com o cara que eu amava - eu iria me livrar de qualquer coisa que não me desse a mesma sensação de felicidade, e de qualquer sentimento que não me fizesse sentir tão bem quanto estar deitada ali, com o batimento cardíaco de bem embaixo do meu ouvido me fazia. Então hoje, quando acordei quase da mesma forma que havia adormecido, nossos membros tão entrelaçados que eu não sabia qual perna era de quem, tirei da minha cabeça e do meu coração qualquer coisa tóxica que poderia restar de uma que sentia pena de si mesma, que não conseguia superar algo que não foi culpa dela, e que não conseguia parar de chorar por um cara que simplesmente não a amava de volta. Decidi deixar tudo aquilo ali, em Manchester, e voltar para Londres com a mesma alma que acordei na manhã de Natal.
E agora que todos os calendários marcavam primeiro de Janeiro, tudo que conseguia pensar era nos lábios que estavam contra os meus, em suas mãos, tão seguras em minha cintura, e em como o sentimento de finalmente tê-lo ali me fazia pensar o que era que eu tinha na cabeça quando achava que nunca mais iria amar alguém de novo. Ele estava aqui, e sussurrava que me amava, de novo e de novo, até que as palavras começassem a soar como se não fossem reais.
Como era bom pensar que pelo menos eu mudei depois que o relógio marcou meia-noite doze meses atrás.

Capítulo 36 - Home


Abro a porta com a ansiedade disparada em minhas veias, mantendo os olhos no chão até não ter mais opção. O terapeuta ergue uma sobrancelha, o sorriso acolhedor se abrindo em seus lábios quando ele estende a mão para me indicar o sofá à sua frente.
- Olá, .
- Olá. - Coloco a bolsa na poltrona ao lado do sofá e me sento, procurando uma almofada para segurar em meu colo. Ficamos em silêncio conforme os ponteiros do relógio passam, e ele espera com toda paciência até que eu me sinta segura para falar.
- Tem um tempinho.
- Sim, tem um tempinho. - Concorda com um aceno breve - Como você está?
- Estou bem. - Falo em um tom meio surpreso - Quero dizer, bem, bem. Eu me sinto bem. Acho que não é mentira pela primeira vez.
- Fico feliz de ouvir isso. E o que te leva a essa conclusão?
- Eu estou aqui. Eu vim por minha própria conta, por mais incrível que pareça, e acho que se não estou bem, aceitar que eu preciso de ajuda é um grande passo para finalmente estar. Para querer estar.
O médico balança a cabeça com um sorriso, descansando a caneta.
- Você me assustou por um momento, . Pensei que ter encontrado o amor tivesse sido sua “solução mágica”.
Dispenso a ideia com uma risada de escárnio.
- Acho que já estou velha demais para isso. Embora seja um fator contribuinte, dificilmente é o motivo de eu me sentir bem.
- Contribuinte? - Ele me incentiva, fazendo com que eu me mexa no sofá.
- Eu não me sinto bem porque “encontrei o amor”. Mas encontrar esse amor, usando suas palavras, me fez perceber muitas coisas que eu não tinha a menor ideia antes. Por exemplo, da última vez que estive aqui, briguei com você por uma coisa que você não tinha culpa. Você só estava tentando me ajudar, e eu estava mal a um ponto em que não conseguia enxergar isso. Não conseguia enxergar muitas coisas. Mas essa vida é minha, e a única coisa que estava me impedindo de fazer o que eu quisesse com ela era eu. Não foi Josh, ou a morte dele, ou o fato de que eu amava um garoto que não me amava de volta. Eu me convenci, uma vez e outra, que as coisas que aconteceram comigo definiam quem eu era. - Faço uma pausa para respirar e esfrego as mãos uma na outra - Não acho que mudei porque “encontrei o amor”. Acho que eu só cresci.
- Por que você está me pagando? - Acompanho sua risada - Parece que esse garoto foi a solução de todos os seus problemas.
- Não, não é assim. Eu sou a solução de todos os meus problemas. - Não consigo reprimir o sorriso que surge em meu rosto - Eu só precisava de um pouco de felicidade para ver isso. De um tempo longe de mim mesma, e foi isso que eu consegui. Eu consegui, não foi?
- Você não disse que se sente bem?
- Sim. Me sinto. Mas também estou um pouco assustada.
- E o que te assusta?
- E se não for assim? E se eu realmente estiver tão dependente que criei toda essa narrativa para me convencer que não estou? E se eu estiver realmente bem, mas for passageiro, e em algumas semanas eu voltar a ser a que se lembra de tudo, tem rancor de tudo, e sofre por tudo? E se eu não conseguir abrir mão dessas coisas? E se eu realmente estiver bem, estiver feliz, e essa felicidade for arrancada de mim? Isso me aterroriza.
- É sempre bom lembrar que felicidade não é uma questão de ser, mas sim uma questão de estar. Ninguém é sempre feliz ou sempre triste. Não tem porque ter tanto medo, afinal, a única pessoa capaz de definir tudo isso o que disse é você.
- E se eu disser que isso tudo não está em boas mãos?
Fico séria por um momento, mas logo acompanho o sorriso que ele me dá.

***


A neve começa a derreter na calçada, molhando o solado do meu sapato conforme caminho, os passos ressoando no chão de pedra. É uma sensação gostosa, caminhar com as mãos quentes em meus bolsos e o vento gelado em meu rosto, jogando meu cabelo para trás e fazendo o possível para bagunçar minha franja.
Eu costumava pensar que as pessoas me encaravam quando me viam na rua. Claro, na maior parte do tempo era paranóia - eu não tinha a mínima noção de quão “conhecida” era por andar com por aí. Mas agora, mesmo com o cachecol vermelho cobrindo quase metade do meu rosto, eu tinha certeza que todo mundo, de fato, me olhava. Não os adultos, é claro - mas na região movimentada da Piccadilly, qualquer pessoa com menos de 25 anos parecia virar o rosto para dar uma boa olhada. Já havia decorado todos os detalhes da minha bota marrom, olhando para os pés sempre que me era permitido.
Minha casa estava à mais três quadras de distância, mas o caminho parecia consideravelmente maior com tanta gente e tanto desconforto. Pela visão periférica eu definitivamente via uma garota com o celular na mão, a câmera virada para mim, e por mais absurdo que fosse o gesto e eu só notá-lo agora, acho que não era a melhor das ideias começar a correr. Aposto que renderia muito mais câmeras e olhares.
Quando atravesso o cruzamento do Piccadilly Circus, a circulação parece diminuir gradualmente conforme caminho para casa, embora continue movimentado. O bairro noturno é quase pacífico quando é dia, e caminho tão distraída que estou quase a dois metros de distância do carro preto quando finalmente o noto, e atravesso a rua, sorrindo.
O som das luvas tocando o vidro quando bato nele é abafado, mas faz virar o rosto mesmo assim, sorrindo e esticando a mão para abrir a porta para mim. Ele escuta Ben Howard bem baixinho, uma pilha de papéis aberta no colo quando me acomodo no banco do passageiro.
- Oi! - Cumprimento com um sorriso quando ele se inclina para me beijar - Ai, que quentinho! - Removo as luvas e posiciono a mão em frente o aquecedor, fechando os olhos com o vento confortável. continua beijando meus lábios desajeitadamente, se afastando após um momento para me encarar. - O que você está fazendo aqui? Pensei que fosse viajar.
- Adiaram por causa do tempo ruim. Resolvi fazer uma leitura leve enquanto te esperava. - Ele indica os papéis no colo, sorrindo, e se volta para mim mais uma vez - Onde você estava?
- Terapia. Achei melhor voltar a fazer… Ei, isso é meu texto?
- Sim, o rascunho que você esqueceu lá em casa.
Reprimo a vontade de fazer uma careta, apenas assentindo e olhando pela janela. A luz da sala estava acesa, indicando que ou Andrew ou minha mãe estava em casa, mas não sentia a menor vontade de entrar.
- ? - chama baixinho, e quando olho para ele, me encara com a cabeça apoiada no encosto do banco, os lábios repuxados em um sorriso. toma minha mão na sua e acaricia minha pele com o polegar - O que você acha de sairmos para algum lugar?
- O que você está pensando? Mais uma pequena viagem? - Também sorrio para ele - Que tal Brighton?
- Não é uma má ideia. - ri - São duas horas de carro.
- Hmmm… - Me inclino para beijar seus lábios, sorrindo, e tenho que usar toda força de vontade em mim para me afastar quando ele segura minha nuca - Se pararmos para comer.
- Ou podemos comer lá. - Passa o nariz contra o meu, a mão que segurava minha nuca acariciando meu rosto - Na beira da praia.
- Tem um ótimo restaurante para usarmos roupas bonitas e comer comida boa. - Fecho os olhos para sentir sua pele contra a minha, meu tom de voz quase um sussurro - Ou podemos ir exatamente como estamos e atrair alguns olhares.
- Como se já não fosse o suficiente. - suspira antes de se afastar, colocando ambas as mãos no volante - O que você me diz? Quer ir lá em cima pegar uma muda de roupas?
- Vamos dormir por lá?
- Eu não planejava exatamente dormir, mas topo qualquer coisa. - Diz com o tom de voz brincalhão.
- Ok. Cinco minutos e já desço.
- Brighton, aí vamos nós.

***


O telefone toca uma hora e meia depois de estarmos na estrada. Quando atendo, a voz de Lissa soa ofendida:
- Como assim tem uma roadtrip acontecendo e eu não fui convidada?
- Lissa, eu juro, foi decidido literalmente em cinco minutos. - Falo em tom apologético.
- Eu poderia chegar na sua casa em cinco minutos!
- Como você ficou sabendo, de qualquer forma?
- A foto que o postou de você dentro do carro com a legenda “roadtrip” foi bem indicadora, !
- Você está tirando fotos minhas sem que eu perceba? - Olho para ele acusatoriamente, quase abrindo um sorriso para acompanhar o que está em seu rosto.
- Você perceberia se utilizasse a internet, como todas as pessoas normais.
- Não quero nem pensar nas coisas que falam de mim por lá.
- Não falam nada de você! Só no quanto você é bonita… - Lissa me responde do outro lado da linha - Mas não importa, porque eu vou fazer questão de te difamar.
- Lissa, como eu poderia adivinhar que você estava livre?
- Ok, esse pode ser um argumento válido, mas não importa, porque ainda estou brava com você. Aliás, não você, vocês, porque também estou permanentemente magoada com o .
- Lissa está permanentemente magoada com você. - Aviso, arrancando uma risadinha de seus lábios.
- Te amo, Valissia! - Ele grita, inclinando em minha direção, os olhos ainda na estrada.
- Eh, diga pra ele não usar esse nome.
- Lissa, estamos chegando. Se você pegar o próximo voo, ainda dá tempo de nos alcançar.
- Não tente se redimir, !
- Tudo bem. Sinto muito.
- Amo vocês. - Ela dá uma risadinha - Boa viagem.
Desligo o telefone com um sorriso, balançando a cabeça.
- Dificilmente é uma viagem quando é só por dois dias.
- Se é a mais de duzentos quilômetros de distância, então é uma viagem sim. - Me lança um olhar repreendedor - Se leva mais de uma hora, com certeza é uma viagem ! - Ele soca o volante em tom brincalhão - Não menospreze nossas aventuras!
- Jamais! - Ergo as mãos como se estivesse me rendendo e sorrio. Me acomodo melhor no banco do passageiro, olhando-o com uma expressão brincalhona no rosto - Sabe o que eu estava pensando?
- Hm. - Me incentiva, olhando de relance na minha direção.
- Mal posso esperar para te ver em um tuxedo. - Sussurro, esticando o braço para mexer nos fios de cabelo perto de sua orelha.
ri, balançando a cabeça negativamente.
- Você já me viu em um tuxedo. - Me lembra, o tom de voz sugestivo.
- Eu sei. O que quero dizer é que é uma experiência e tanto. - Deposito um beijo em seu ombro, não demorando em me afastar para não atrapalhá-lo - Você não tem noção do quão bonito é, tem?
- Eu sou uma nota quatro perto de você. - Diz com humor, balançando a cabeça.
- Por favor. - Debocho.
- Você tem algum espelho em casa? - sorri, os olhos na estrada - Se tivesse internet, pelo menos, saberia do que estou falando.
- Você me supervaloriza. - Digo solenemente, tocando a mão que ele usa para aumentar o aquecedor - Sou um seis, no máximo.
- , você é um seis no Olimpo. Aqui na terra, perto dos meros mortais, você é um 11 em 10.
- Você é tão exagerado! - Faço uma pausa por um momento, rindo - Quanto sou em Los Angeles? Sem exagerar.
- 10.
- !
- Eu te olho com olhos de um homem apaixonado, !
- Ele ralha, gesticulando para a região de suas órbitas - Se você não fosse tão incrível, eu ainda te veria assim.
- Ah! - Exclamo, sem prestar atenção no que ele diz - Olha, chegamos!
A placa de boas-vindas à Brighton passa por nós, iluminada pelo fim de tarde.
- Já consigo sentir o cheiro de maresia.
- Não estamos nem perto do mar ainda, . - Me inclino para beijar seu ombro mais uma vez - Mas não estou dizendo não para uma passada por lá.
- E um mergulho?
- Se seu objetivo for suicídio romântico coletivo, então pode contar comigo.
- , tudo que eu quero é te ver em um vestido bonito, como você diria. Na verdade, quero te ver sem o vestido, antes e depois de vesti-lo, mas não vamos determinar detalhes enquanto não chegamos ao hotel.

Cerca de quarenta minutos depois, entra na A259, o barulho do mar chegando através das nossas janelas abertas, um sol que ameaça se pôr no fim de toda aquela água. Respiro o cheiro de água salgada, sorrindo, e mal presto atenção quando para na entrada do The Grand Brighton, dando a volta no carro para abrir minha porta antes de entregar a chave ao valet. A imponência do hotel vitoriano me surpreende, fazendo com que eu fique com a cabeça erguida para encarar sua fachada até que a mão de me guie para o saguão, minha atenção se desviando para as grandes escadarias que se projetam pomposamente nas paredes laterais.
- Um quarto para casal, por favor. - Ele fala baixo com o homem atrás do balcão, se inclinando sobre a madeira entalhada enquanto continuo olhando ao meu redor.
Era fácil esquecer o quanto de dinheiro realmente tinha até que alguém falasse o preço de alguma coisa e eu me virasse surpresa para olhar, enquanto ele mantinha a expressão neutra. Quer dizer, minha família sempre teve uma renda muito acima da média, mas eu ainda tinha a consciência de que duzentas libras para escolher a vista para o mar ainda era muita coisa, embora entregasse o cartão de crédito sem pestanejar.
- Você está tentando me seduzir? - Pergunto em um tom conspirador, me aproximando de seu ouvido para que só ele me escute - Quer dizer, um cartão black? O que você é capaz de fazer para levar uma garota escada acima?
- Está funcionando? - Ele ri, virando o rosto para me roubar um beijo rápido - Estou disposto a explorar meus limites se você disser que sim.
O homem nos entrega o cartão e deseja boas-vindas, o sorriso profissional ainda em seu rosto. Quando nos afastamos, passo os braços pela cintura de , e embora seja desconfortável para andar, ele sorri.
- Ora, ora, ora. - Começo, me afastando quando o elevador abre as portas para nos receber - , um mero mortal. Quem diria que há limites para o seu cartão de crédito? Agora estou desapontada.
- Adoro seu senso de humor. - Ele diz quando se abaixa para beijar meu cabelo, puxando meu rosto e tomando meus lábios para os seus.
- Não senhor! - Me afasto em tom de censura - Nada de me distrair! Temos roupas bonitas para vestir e um jantar para comer!
- Nós temos um tempinho antes do jantar. - Me garante quando já chegamos ao quarto, e ele abre a porta para a cama king size e o mar cinzento de inverno ao fundo. Me precipito para terminar de abrir as cortinas, dando um passo para fora das portas de vidro e me apoiando no parapeito, os cabelos balançando com o vento forte. Quase acho que a vista vale as duzentas libras.
- O que você quer fazer amanhã? - pergunta dentro do quarto, e posso ouvi-lo abrir o zíper da mala e tirar alguma coisa lá de dentro. Depois de alguns segundos, quando não respondo, ele se aproxima e abraça minha cintura, beijando o topo da minha cabeça - ?
- Desculpa, não estava prestando atenção. - Apoio os braços sobre os seus, deitando a cabeça em seu ombro - O que você quiser.
- Você sentiu falta? - Ele não olha para mim, mas encara o mar, e o píer à distância - Daqui, quero dizer.
- Sim. - Abro um sorriso pequeno, acompanhando seu olhar - Senti falta da roda gigante, e como eu sentia como se estivesse em cima do universo lá em cima.
Ele acompanha minha risada.
- Memórias da infância ou da adolescência?
- Não é relevante, . - Digo culposamente, me afastando de seus braços - Também sinto falta de tomar café na Marwood.
- Dadas as circunstâncias, eu esperaria que seu lugar preferido para tomar café fosse a Starbucks. - Ele abre outro sorriso, me encarando - Não?
- Por mais incrível que possa parecer, não. - Respondo em um tom evasivo, e volto para dentro do quarto - Você vai vir aqui tirar a minha roupa ou vai ficar aí fora com esse sorriso?

***


Me arrependo de ter sugerido roupas extravagantes no segundo que descemos para o restaurante, me sentindo constrangida. Apesar de ver muitos outros vestidos de gala, fico incomodada com os olhares que me lançam, embora uma pequena parte do meu cérebro me diga que é só porque estou de braço dado com , que consegue chamar ainda mais atenção vestindo um tuxedo.
- Acho que exagerei um pouquinho. - Falo baixo, fazendo com que ele se abaixe, e olho ao meu redor.
- Besteira. - diz solenemente, a postura pomposa - Você está incrível. Eu que estou completamente desleixado perto de você.
- Shhh. - Coloco o dedo indicador em sua boca, impedindo-o de falar mais mentiras, no exato momento que uma garota tira uma foto de nós, se esquecendo de desligar o flash. Não consigo definir se me sinto mais constrangida por ela ou por mim, mas não esboça nenhuma reação.
Somos guiados até uma mesa para duas pessoas, o delicado castiçal portando uma vela longa e um botão de rosa, a luz amarela iluminando o rosto de depois que ele se acomoda em sua cadeira.
- Você consegue ficar ainda mais bonita de vermelho. - Ele sorri, os olhos passando por meu rosto e meu colo, exposto no decote coração.
- Você consegue ficar ainda mais charmoso depois de uma boa transa. - Sussurro, passando o pé por sua perna e piscando em sua direção. dá uma risada baixa, balançando a cabeça antes de olhar para mim mais uma vez. - É só por isso que está todo amor?
- Eu acho que nunca vou conseguir olhar pra você sem te amar. - Dá de ombros, como se o que dissesse fosse nada - Nunca consegui, .
- Você deixa minha alma feliz. - Reviro os olhos, como se não estivesse prestes a chorar - Que bom que te esperei.
- Às vezes a melhor prova de amor que podemos dar para alguém é tempo. - Dá de ombros mais uma vez, e estica a mão para segurar a minha.
A única coisa que nos interrompe de ficarmos nos encarando eternamente é o garçom, que traz o champanhe que pediu, e aproveita para anotar nossa comida. Quando ele parte, fico distraída com todas as pessoas jantando a nossa volta.
- O que estamos celebrando? - Eu pergunto depois de um tempo, bebendo um pouco da taça de champanhe.
- Que esse ano não seja um completo desastre. - ergue sua taça, rindo, e deixa que toque a minha.
- Não desafie quem quer seja que está lá em cima. - Censuro em tom de brincadeira, escondendo as mãos no colo e o encarando. - Se tiver menos desastres que o anterior, estou satisfeita.
Nossos pedidos chegam pouco tempo depois, e comemos sem conversar muito. Arrisco encarar quando ele está distraído, acompanhando a língua que ele coloca para fora antes de colocar o talher na boca, os dedos longos que levam o guardanapo até os lábios cheios. Os cílios se avultam sobre os olhos claros quando ele olha para mim, e três rugas bem pequenas surgem quando ele sorri.
- Você está encarando.
- Estou admirando. - Corrijo, contendo meu próprio sorriso. Ele também me observa em silêncio, as orbes se demorando no meu rosto.
- Que falta de delicadeza. - Sussurro depois de alguns segundos, desviando os olhos e sentindo o rosto esquentar.
- O quê?
- O jeito que nos olhamos em público. - Dou de ombros e solto uma risada nervosa - Quero dizer, as pessoas podem nos ver.
- Que se fodam. - É a vez de erguer os ombros em um gesto despretensioso, e ele empurra o prato vazio para o meio da mesa.
- Por que você escolheu essa vida? Não te incomoda, às vezes? - Tento controlar o tom de voz, com medo de que alguém pudesse notar, mas ninguém presta atenção em nós.
As sobrancelhas de se erguem muito levemente, uma surpresa educada, e ele recua o menor dos centímetros em sua cadeira.
- Por que você escreve? - Retruca, os lábios brincando com o fantasma do sorriso que se encontrava em seu rosto - O que você quer passar com isso?
- Agora sei que as mulheres da minha família foram amaldiçoadas com dedos que não conseguem se lembrar do que fizeram no dia anterior ou segurar as lembranças do que viveram. - Baixo os olhos para a mesa, as mãos cruzadas no colo, e mesmo com seu olhar em mim, minha respiração é calma - Talvez eu escreva porque sei que essas lembranças e esses sentimentos são o que me fazem e talvez eu não queria ficar perdida em um oceano de pessoas com rostos que eu não reconheço, incluindo o que eu vejo no espelho. - Quando volto o olhar para , ele ainda me encara, a expressão impassível. Sei o quanto ele gosta dos meus monólogos, mesmo que eu me sinta envergonhada deles, e também gosto da forma como me sinto depois que deixo as palavras saírem da minha boca, sem ter tempo para filtrar o que eu sinto - Talvez eu não queira esquecer nada - nem aquele garoto que quebrou meu coração tantas vezes e me fez querer esquecer o gosto do seu beijo quando eu ainda não sabia melhor. Talvez eu escreva porque daqui uns anos eu não me lembre que não acredito em nenhum deus e rezarei para os anjos desesperada por qualquer esclarecimento. Por enquanto, posso me ler no que escrevo e sinto que posso me apoiar nisso quando não me conhecer mais.
- Odeio quando você fala desse jeito. - Confessa em um sussurro exasperado, olhando para qualquer lugar menos meu rosto.
- Como assim?
- Como se tudo já estivesse escrito para você, . Como se você já estivesse fadada a esse destino miserável. - A voz de é cheia de desgosto.
- É uma possibilidade.
- É tudo o que é. - Ele concorda com veemência - Só uma possibilidade. Sabe o que eu acho? Deveríamos examinar isso. Existe esse tipo de exame, não? Que você pode descobrir essas coisas?
- Sim. - Fico em silêncio por um momento, e o garçom retira nossos pratos para servir as sobremesas. Espero alguns segundos depois que ele se vai para falar, o brownie intocado à minha frente, o sorvete de baunilha começando a derreter – Andrew já fez.
Os olhos de saltam para mim mais uma vez.
- E então?
- Ele está bem. - Dou de ombros, e só então percebo que é algo que faço quando estou nervosa - É mais comum que se passe no gene feminino.
- E você?
- Eu não fiz. - Desvio os olhos do seu rosto, prestando atenção na garota que sorri para seu acompanhante na mesa ao lado, tentando me distrair.
- Por que não? - Seu tom de voz é urgente agora, me fazendo querer não conhecê-lo tão bem. Não conseguir notar as nuances em suas emoções e seu comportamento. Ele estava a um passo de cruzar a linha tênue entre preocupação e exasperação - Você não teve tempo?
Nós dois sabíamos que aquela não era uma desculpa, mas ele tinha esperança.
- Não, . - Cedo, por fim - Eu não acho que queria saber.
- Suas sobrancelhas quase escapam de seu rosto, e seu sorvete começa a escorrer pelo brownie, intocado, indetectado.
- O quê?! - A exclamação sai engasgada - , você não pode simplesmente não saber. Nós podemos ir até um médico amanhã e…
- Eu não quero saber. - Falo com mais firmeza, começando a ficar irritada com seu comportamento - Que diferença vai fazer, ? Se eu realmente estiver fadada a isso, saber não vai me tornar mais capaz de fazer algo para impedir.
- Sim, mas…
Ele se interrompe, e eu não digo nada. Ele não se importava se eu soubesse ou não, ele queria saber por ele. Se ele teria de cair fora ou me ressentir desde então por me amar. Continuo o encarando em silêncio, esperando que contrarie meus pensamentos, mas ele também fica calado, quase envergonhado, os olhos longe dos meus. Quando me ergo da mesa, não quero causar uma cena, de modo que tento manter a expressão neutra, mas ele chama por mim, e a forma como sua voz pronuncia “”, em exaspero, como quem se desculpa, faz várias cabeças se virarem para ele.

O som da água quente que cai do chuveiro não me impede de ouvi-lo entrar no quarto, ou ouvir o baque surdo de sua cabeça quando ele a encosta na porta do banheiro sem dizer nada. Espero que entre para dizer alguma coisa, mas ele não o faz, e fico paralisada no box, o sabonete seguro entre as mãos, próximo ao meu peito, e os olhos fixos no azulejo enquanto aguardo seu próximo passo, que nunca vem. Não consigo determinar o que ele faz dentro do quarto nem quando termino o banho e piso fora da banheira, o som de sua voz abafada.
Me enrolo no roupão e passo a toalha pelos cabelos molhados, atenta, tentando identificar os sons, e me envergonho por tentar bisbilhotar sua vida. Quando me dou conta, estou parada tão próxima a porta que quase encostava a orelha nela. Sei que se me aproximasse o ouviria com clareza porque escuto meu nome, ainda abafado, mas inegavelmente meu nome. Eu o odeio por me fazer colar a cabeça contra a porta de madeira, atenta, e escutar cada uma das palavras que ele pronuncia.
- Eu sei, sim, eu sei, . Eu estou parecendo prestes a chorar porque eu me sinto prestes a chorar! - Ele faz uma longa pausa. Suspiramos em uníssono, em lados opostos da parede do hotel - Eu não sabia disso quando entrei nessa, e eu não sei se eu posso aguentar tudo isso nos meus ombros. Eu sei que é egoísta, não preciso que você me diga coisas que eu sei, preciso que me diga o que eu tenho que fazer; eu passo o tempo todo preocupado que o cérebro dela possa estar apodrecendo dentro de sua cabeça. Cada vez que ela esquece alguma coisa idiota, eu sinto como se tivesse levado um tiro. Eu durmo e acordo todos os dias aterrorizado que ela possa me esquecer.
Não quero ouvir mais. Tiro a cabeça da porta, sem saber como me sentir, e espero todo o tempo do mundo até que a voz de desapareça através da parede. Sei que ele me espera acordado, e então fico sentada ali, as costas contra a porta, a cabeça disparando em mil direções diferentes até que a luz do seu abajur se apague na fresta. Alguns minutos depois, quando giro a maçaneta, está dormindo. Sei que ele não está fingindo porque os lábios estão entreabertos, os travesseiros ainda meio altos, como se ele estivesse me esperado sair mesmo depois que apagou a luz. Me aproximo da cama, e deixo o roupão cair no chão quando estou perto o suficiente, tocando seu rosto e colando os lábios nos seus.
Ele se remexe, me olhando, encarando toda a pele nua que deixo exposta. Puxo seu rosto para mim e o beijo mais uma vez, passando as pernas por seus quadris, sentindo uma das suas mãos que segura minha coxa. Deixo os dedos em seu cabelo, passando os lábios por seu pescoço, e sinto sua ereção começar a aparecer no meio das minhas pernas quando toco sua barriga. Me afasto do seu rosto, levando as mãos até a barra de sua calça de moletom.
- Vamos ao médico amanhã. - Falo antes de beijá-lo mais uma vez, o som gutural que sai de sua garganta e a mão que toca meu seio encerrando qualquer conversa.

***


Sentados na recepção do consultório, sinto como se estivéssemos expostos em uma vitrine. Depois de uma detalhada pesquisa na internet ontem, foi quem ligou para marcar a consulta, e quem mostrou os documentos para a garota na pequena recepção, que nos olha de relance a cada minuto, como se cronometrasse em um relógio.
A única informação que eu tinha do médico que me atenderia era que seu sobrenome era Sahid, ele era especializado em demência e havia sido bem firme quanto ao jejum de quatro horas que eu deveria fazer. Não tive problemas em relação ao jejum - estava tão nervosa que não comeria mesmo se tivesse a opção, assim como fazia.
Desde que havia me perguntado se eu estava bem enquanto trocávamos de roupa, ele sequer olhou na minha direção. Dirigiu em direção ao centro e se sentava ao meu lado tão tenso que os nós de seus dedos estavam brancos, fazendo com que eu me sentisse um tanto quanto sozinha. Tento esticar o braço para segurar sua mão, mas nem assim ele parece olhar para mim.
- Você pode relaxar. - Falo baixinho, e ele abre um sorriso tímido, ainda sem olhar em minha direção - Eu que tenho que entrar naquela máquina enorme.
Mesmo com o tom de riso em minha voz ele mantém a expressão tensa, quase ignorando o que eu disse.
- … - Chamo em um tom derrotado, puxando seu rosto.
Ele franze as sobrancelhas, olhando nos meus olhos.
- Você me ouviu ontem?
Finjo não saber do que ele está falando.
- Você estava por cima de mim. - Falo baixinho, deitando a cabeça em seu ombro - Seria difícil não ouvir.
- No telefone, . Falando com o .
Não o respondo. Não sei o que dizer - agora entendo o motivo de sua tensão, e não quero que ele veja o quanto aquilo me afetou, então tento manter a expressão neutra.
- Não tenho ideia do que você está falando.
- Eu sei que você ouviu. - Ele separa a mão da minha e a esfrega no jeans - Eu te ouvi chorando quando… Quando terminamos.
Não tenho tempo de responder. O médico chama meu nome e nos espera em frente a porta de seu escritório, um sorriso simpático no rosto. me acompanha e toma a cadeira ao meu lado quando me sento, aguardando até que o Dr. Sahid esteja acomodado à frente de seu computador. Ele cruza as mãos e mantém o sorriso no rosto, olhando de mim para .
- Então? Devo dizer que estou surpreso com sua idade, . Muitas pessoas não procuram pelos exames até que estejam na casa dos trinta, pelo menos. Algum acontecimento em particular?
- Ah. Hm, minha mãe foi diagnosticada alguns meses atrás. - Ele assente em silêncio, os traços árabes o tornando muito mais simpático. - Ela se esqueceu de mim, mas se lembrou do meu irmão.
- Memórias mais antigas são mais difíceis de se esquecer, não é anormal. - Ele tenta me acalmar, a voz em um tom apaziguador.
- Nós somos gêmeos, doutor. Eu nasci primeiro. Ela pensou que eu fosse namorada dele.
Ele franze a sobrancelha por apenas um segundo antes do sorriso reconfortante tomar conta de seu rosto mais uma vez.
- Ela não te reconheceu, você quer dizer. O tempo é relativo quando se tem Alzheimer - ela provavelmente se lembrou das suas feições, mas não soube dizer a quem elas pertenciam. Como eram tão familiar, arrisco dizer que o primeiro chute dela foi de alguém próximo do filho, que ela tinha certeza.
- Ah. Nunca pensei por esse lado… - Por esse ângulo o acontecimento já não era tão triste assim.
- Mais algum familiar?
- Minha avó também teve, mas não nos preocupamos até que… Bem. - Solto uma risada sem graça, mas ninguém me acompanha - Eu não via como uma doença hereditária.
- É e não é. Bem, existem casos em que algumas famílias transmitem o gene, mas não é um senso comum. De qualquer forma, você não tem que se preocupar por muito tempo.
- Eu li…- A voz de faz com que eu me vire em sua direção, surpresa, mas ele encara o médico - Eu li que existem casos em pessoas mais novas. É uma possibilidade?
- Oh, existem, mas são raros. Mais ou menos cinquenta mil pessoas se encontram nessa condição, mas nunca tão novas.
- Quão novas? - Pergunto em um ímpeto, soando mais ansiosa do que gostaria - Quero dizer, a pessoa mais nova…
- A pessoa mais nova que se tem dados é de uma irlandesa. Ela tinha vinte e quatro quando foi diagnosticada, mas era um caso tão raro, com tantas particularidades, que eu não me preocuparia. As chances são quase nulas de acontecer, mesmo se você for portadora do gene.
- Não estou preocupada. - O asseguro com um sorriso, embora meu coração tenha apertado quando ele respondeu a pergunta.
- Agora, vou prepará-la para fazermos alguns testes, e em algumas horas teremos o resultado. Vou tirar seu sangue primeiro, para mapearmos o gene que te preocupa tanto. Devo te alertar que falsos negativos são muito comuns nessa idade, a particularidade genética não se manifesta até que esteja em uma idade mais avançada. Depois iremos aplicar um contraste, para termos uma imagem melhor na tomografia, tudo bem? Você é um pouco nova para termos um resultado conclusivo em testes neuropsicológicos. - Ele se ergue para lavar as mãos enquanto removo a jaqueta e o acompanho até a maca.
Tento manter os olhos em , buscando por qualquer sinal de apoio, mas seus olhos estão fixos no linóleo, como se ele estivesse à quilômetros dali. Tento não me preocupar, mas sei no que ele está pensando - em como o pedaço de papel que receberemos no fim da tarde definirá o que será de nós. Em como, talvez em alguns anos, seu rosto possa se esvair entre meus dedos, e seus olhos possam ser mais um par de olhos na multidão. Quero caminhar até ele e dizer que ficará tudo bem. Quero dizer que enquanto ele se lembrar de mim, ele levará um pedaço meu dentro de si, que quem eu sou afetou quem ele é. Que mesmo que eu não possa, ele ainda será capaz de me chamar de volta em suas memórias, e sentir minhas feições e tudo o que signifiquei para ele. Se nos esbarrarmos na rua e seu rosto não for nada além de outro rosto, ele ainda me reconhecerá. Mesmo depois que nos afastarmos e talvez depois de eu morrer, ele ainda poderá me ver e ouvir minha voz e me sentir em seu coração. Meu cérebro nunca poderia arruinar isso.
Continuo ali, no entanto, querendo alcançá-lo aonde quer que ele esteja e trazê-lo de volta para mim.
- Ótimo, . Vamos fazer a tomografia para procurar quaisquer anomalias e quando terminarmos, seus resultados provavelmente estarão aqui. - O médico desvia minha atenção de , fazendo com que eu balance a cabeça - Você pode trocar de roupa nessa porta.
Lanço um último olhar na direção de antes de entrar na porta que o médico me indica, me despindo com raiva, grata que a camisola do hospital não tem um buraco enorme onde deveria haver tecido para tampar minha bunda. Deixo meus objetos de metal em uma bandeja e o acompanho para fora da sala, me segurando para manter a expressão neutra quando dizem que não pode nos acompanhar, mas pode esperar na recepção, se quiser.
Ele não faz qualquer gesto de que irá me reassegurar de qualquer coisa, e tento dizer ao meu coração que isso é tão difícil para ele quanto para mim, mesmo sabendo que não é. Só porque o que ele sentia era compreensível, tenho que lembrar a mim mesma que sua forma de lidar com isso não é aceitável.
Tento me livrar do pensamento quando deito na máquina para fazer a tomografia computadorizada, concentrando-me em ficar bem parada, como me orientaram; O médico conversa comigo por um microfone, tentando me distrair do ambiente claustrofóbico, e quando diz que já posso sair, fico surpresa, trocando de roupa tão rápido quanto consigo quando voltamos ao consultório. já está lá dentro, os braços cruzados, os olhos concentrados em algo que o doutor Sahid diz, o envelope branco em cima da mesa parado entre nós como um mau agouro. Lembro das palavras de Robert Penn Warren, que eu e Ryan escolhemos para fazer um trabalho em grupo uma vez, e as recito em minha cabeça enquanto meu namorado e o médico conversam, sem conseguir prestar atenção nos dois.
"É como o momento que você chega em casa tarde da noite e vê o envelope amarelo da correspondência esperando para que você o pegue, então você se inclina e toca o papel, mas não o abre ainda, apenas por um segundo. Enquanto você está parado ali no corredor, o envelope amarelo em suas mãos, você sente como se alguém estivesse observando você. Alguém olhando diretamente para você de quilômetros de distância através de todas as paredes e a escuridão, e através das casas e de seu casaco e sua roupa íntima, e vê você dentro de si mesmo. Como um pequeno feto de si mesmo que você carrega dentro de sua própria cabeça. Essa pessoa sabe o que está dentro do envelope, e está observando você para quando o abrir e souber também. Mas o pequeno e triste feto dentro de você ergue a cabeça e seus olhos estão cegos, e ele treme de frio dentro de você por não querer saber o que está dentro do envelope. Ele quer continuar no escuro e descansar, e ficar aquecido em sua ignorância. O fim de um homem é o conhecimento, mas há apenas uma coisa que ele não pode saber. Ele não pode saber se o conhecimento vai o salvar ou o matar. Ele vai ser morto, tudo bem, mas ele não pode saber se foi morto por causa do conhecimento que teve ou pelo conhecimento que não teve e se o tivesse obtido, teria sido salvo. Há um frio no seu estômago, mas você abre o envelope, você tem de abrir o envelope, pois o destino do homem é saber."
- ? - me chama em um tom ansioso, dois pares de olhos em mim enquanto dou o primeiro passo em direção a cadeira que está vaga.
O monitor está virado para nós, e encaro o doutor Sahid enquanto ele nos explica a tomografia, nos mostrando que não há nada de errado - pelo menos nada que indique Alzheimer. Há uma alteração nas cores com diferentes estímulos (agora sei que a conversa enquanto eu estava na máquina não era só para me distrair), mas nada com o que ele se preocupe. O papel branco ainda está ali, sobre a mesa, perfeitamente alinhado com todo o resto, como se quem o tivesse colocado soubesse o peso de seu significado, como uma luz pareceria focá-lo e deixar todo o resto do mundo embaçado. Ainda o estou olhando quando uma mão o pega e o estende para mim, a textura insignificante, como se não fosse nada.
- me disse que talvez você fosse gostar de abrir depois. Quando estivesse sozinha. - Sahid me entrega os resultados, parecendo bem confiante, mas não posso absorver seu sentimento. Me sinto como vi se sentir. Deixo que ele lide com a garota na recepção e o cartão do seguro, e estou tão distraída que preciso de seu braço me guiando para que eu o acompanhe até o carro.
Uma parte de mim agradece o interior aquecido do veículo, mas outra divaga, longe. Sinto como se estivesse observando a cena à distância, me sentindo pequena, o espectro da minha visão aumentando cada vez mais, englobando as redondezas, a cidade, até que eu me torne insignificante.
- Você vai abrir?
Olho para ele, me aproximando para pegar sua mão, e mesmo que sinta o envelope em minha mão como se pesasse, tento esquecê-lo. Ficamos em silêncio por tanto tempo que posso ouvir meu coração batendo em meus ouvidos, mas ainda assim não digo nada.
- Você é tão corajosa e quieta que esqueço o quanto você sofre. - confessa baixinho, acariciando minha mão com o polegar - Você não precisa fazer isso, .
- Você precisa fazer. - Falo com firmeza, e limpo com pressa uma lágrima que ousou se formar e cair - Você…
- Isso não é sobre mim.
- Eu não quero que você me deixe. - Me sinto patética tão logo as palavras saem da minha boca, olhando em seus olhos, buscando por sua reação.
- Eu não vou deixar você.
- Eu sei o quanto você está assustado. Eu também estou.
- Eu não queria ter dito aquelas coisas. - Sua voz treme, e pela terceira vez desde que nos conhecemos temo que ele possa chorar, mas também sei que não irá fazê-lo - Não queria que você tivesse ouvido.
- Eu te reconheceria apenas pelo seu toque. - O asseguro - Pelo seu cheiro. Eu te reconheceria cega, pelo jeito que você respira e o modo como você pisa. Eu te reconheceria na morte e no fim do mundo. Eu não vou te esquecer.
Ele limpa uma lágrima, tão rápido como eu, e me surpreendo ao ver muitas outras prestes a despencar de suas pestanas. Diversas vezes ele esteve prestes a chorar comigo, mas nunca o fez - eu não sabia o quanto a possibilidade da minha doença importava. leva minha mão até os lábios e a beija, retirando o envelope de debaixo do meu braço.
- Eu não preciso disso. - Ele rasga o papel. Uma. Duas. Três vezes, e joga os fragmentos pela janela. - Eu só preciso de você. Vamos ficar bem.
Vamos ficar bem. Repito para mim mesma como um mantra, mas o sentimento ruim permanece em meu peito, como um mau agouro. Não consigo afastar o pensamento que algo está muito errado.

Capítulo 37- We Are Alone In A City


- P.O.V

Era um dia incomum de sol. Incomum porque estávamos bem no meio de Fevereiro, e a temperatura mais amena não deveria dar às caras tão cedo. No entanto, ali estávamos, vestindo roupas leves na cafeteria favorita de , seu vestido de verão balançando com a brisa fria. Se nos concentrássemos o suficiente, era possível ouvir o mar à distância, o som coadjuvante aos dedos que bate no teclado de seu computador ao meu lado, bebericando seu café.
Se eu pudesse voltar naquele dia, ver a cena depois de saber o que sei agora, saberia que era um presente para nós. O dia quente. A brisa que faz erguer a mão para tirar o cabelo do rosto. A cor dos seus olhos no sol. Se eu soubesse, então, do que sei agora, teria tirado seus dedos do teclado e os colocado no meu rosto. Teria a beijado por quanto tempo eu conseguisse beijar. Se eu soubesse, então, do que vinha depois das risadas sinceras e dos acenos aos conhecidos de que passavam por nós, veria o dia de sol como um prelúdio. Teria me preparado. É o que digo para mim mesmo, de qualquer forma, mas sei que nada poderia me preparar. Agora sei melhor. Dias de sol nunca foram tão amargos para mim.

***

penteia o cabelo no banheiro, tentando prender os fios longos em um rabo de cavalo. Me encara pelo espelho, sorrindo, e começa a arrumar a franja.
- Você vai estar em Londres semana que vem? - Pergunta depois de um momento, a voz cuidadosa.
Acho que odiávamos igualmente a perspectiva das minhas viagens. A turnê começaria em breve, e eu ficaria quase o resto do ano fora - eram poucos os shows em que poderíamos nos encontrar, mesmo assim a meses de distância; as apresentações começariam na América e rodariam o globo antes de finalmente voltarmos para perto de casa.
Embora fosse algo que eu tinha certeza que deveria pensar sobre, tentava afugentar o assunto tão logo ele tocava meus pensamentos. Eu poderia muito bem levá-la comigo por todo o percurso se ela não tivesse a faculdade, e eu não poderia pedir que simplesmente largasse algo que lhe fazia tão bem. Ela tinha uma mãe doente e um irmão que amava, coisas que não conseguiria imaginá-la deixando para trás. A melhor solução para nós era manter o que tínhamos à distância, e nos vermos em todas as oportunidades que tivéssemos. No seu recesso, talvez ela pudesse se juntar a nós na América do Sul.
- Não. - Respondo em um tom cansado - Temos que ir para Los Angeles masterizar o álbum e fazer um pouco de promoção.
Ela assente devagar, colocando creme dental na escova de dente.
- Entendi. Vocês vão ficar por quanto tempo?
- Umas duas semanas, no máximo. Depois prometo que você pode me ter todo a seu dispor. - Tento quebrar a tensão, mas seu sorriso ainda é um tanto recatado.
- Eu gosto da ideia. - termina de escovar os dentes, caminhando até a cama apenas de lingerie, em toda sua glória, e se enrolando em mim para beijar meus lábios - Mas estava pensando em te fazer companhia.
- Pensei que tivesse de voltar às aulas essa semana. - Comento em um tom suspeito, fazendo com que ela sorria, dando de ombros.
- O que são alguns dias?
- Você tem certeza? - Pergunto depois de um momento, me afastando de seus lábios só para vê-la confirmar.
- Claro que sim. - Me beija mais uma vez - Agora pare de me beijar senão não saíremos desse quarto.
- Que tentador.
se afasta, ainda sorrindo, e se precipita até a cortina para espiar janela afora. Se vira na minha direção, animada.
- Tem sol! - E solta uma risada.
- O quê? - Me levanto com pressa da cama, abrindo a cortina para ver com meus próprios olhos. E está lá, brilhando no alto do céu, dourado em toda sua glória. O mar lá embaixo parece nos convidar para entrar. - Me diga que vamos ao píer. - Falo sério, encarando seus olhos.
- Está um pouco cedo para irmos ao píer. - Ela se vira para conferir as horas - Podemos caminhar até Marwood, tomar um belo copo de chá. Até deixo que espie uma coisa que estou escrevendo.
- Não tente me manipular, mulher. - Censuro, já sorrindo, e ela corre em direção a sua bolsa, puxando um vestido de tecido leve e escuro, a estampa meio florida.
- Pensei que fosse usar com meia calça e um casaco por cima. Não acredito! - Parece tão animada quanto o dia lá fora. Faz uma pausa, me encarando, e o sorriso diminui, acompanhando a expressão curiosa - O que foi? Por que está me olhando assim?
- É a segunda vez que vou te ver usando um vestido em menos de uma semana. - Dou de ombros, meio bobo, e vejo-a deslizar a roupa pela cabeça. fecha o próprio zíper, sorrindo, e roda no meio do quarto, fazendo a saia levantar. Tento lhe dizer como me sinto no momento, mas só consigo encará-la em silêncio, sentindo o que eu sempre sentia em sua presença - amor, uma dolorosa admiração e uma imensa gratidão por ela.
- Não seja bobo, você já me viu sem vestido mais vezes do que consegue contar. - Se aproxima para me beijar mais uma vez - O que temos que concordar que deve ser muito mais surpreendente.
- Eu amo você. - Faço questão de lembrá-la, mantendo os braços ao redor da sua cintura e afastando meu rosto para vê-la melhor - Eu te amo mais do que o dia de sol lá fora.
- Não minta para mim. - Censura e me beija mais uma vez, logo se afastando - Você está exagerando.
- Você é meu dia de sol. - Digo solenemente.
- E eu amo você. - Ela sorri antes de sair dos meus braços, caminhando até a porta - Agora troque de roupa para podermos caminhar.

***

Mal posso acreditar nos raios de sol que tocam minha pele. continua exclamando que Brighton quase nunca via um dia de sol fora do verão, então gargalhava como uma criança boba e me olhava admirada. Caminhamos de mãos dadas, a brisa gelada bagunçando nossos cabelos e balançando nossas roupas enquanto fazemos nosso caminho até a cafeteria.
- Eu morava a umas duas quadras daqui. - Comenta distraída, olhando para a cafeteria que se aproxima - Caminhava todos os dias antes da escola só para vir até a Marwood. Ou fazia tudo relacionado à escola lá, depois que o horário terminava.
- Josh morava perto de você? - Pergunto mais no ímpeto do que na genuína curiosidade, e parece tão surpresa quanto eu com a curva que o assunto tomou.
- Ah, sim. Umas duas ruas abaixo. - Responde meio quieta e entra na cafeteria. Penso que ela irá cumprimentar todos com abraços calorosos, mas parece não reconhecer o rapaz atrás do balcão. - O que você vai beber?
- Ah. - Dou de ombros - Um capuccino está ótimo.
- Vamos querer um capuccino e um yorkshire, por favor. - Ela mesma abre a bolsa e paga, me lançando um olhar feio quando faço menção de tentar alcançar a carteira. Arrasto a cadeira de uma das mesas de metal do lado de fora para sentar ao seu lado, abaixando os óculos escuros quando ela tira o notebook da bolsa.
- Ok, hora da diversão. - Estalo os dedos como se eu quem fosse começar a digitar, arrancando uma risada de . Ela liga o aparelho e abre um arquivo com o título de “’s Future Masterpiece: Untitled”.
- Criativo. - Elogio com as sobrancelhas erguidas. Ela continua rindo, e deixa a página em branco aberta à nossa frente, me olhando em expectativa.
Bebo um gole do café e encaro de volta, arrumando minha postura.
- Ok. Eu sinto que deveria ter percebido alguma coisa. - Confesso por fim, observando com atenção quando ela suspira e continua com aquele sorriso animado, como se fosse o melhor dia da sua vida - Posso pedir alguma dica ou perco pontos se o fizer?
- . - Ela fala como se eu não pudesse estar falando sério, e olha para a página em branco sugestivamente. Sigo seu olhar, tentando decifrar qual o segredo por trás daquilo, e demoro quase um minuto para perceber.
- Ah! Ah! - Exclamo, surpreso, então empolgado - Não!
- Sim! - Balança a cabeça, sorrindo quando passo o braço pelo encosto de sua cadeira e leio o título novamente. Futura obra-prima da : Sem título.
- Seu livro? Sério? - Olho para o computador mais uma vez só para ter certeza que tinha entendido certo, e ela segura meu rosto para me beijar.
- Sim. Meu livro. Super sério.
- Sobre o que vai ser? - Pergunto com curiosidade, me virando em sua direção para que ela possa ver meus olhos.
- Sobre você, é claro. - Diz como se fosse óbvio, e cruza as mãos no colo, ainda me olhando em expectativa, como se ela quisesse guardar na memória cada uma das minhas reações.
- Você está brincando!
- Bom, não sobre você, você. Mas inspirado em você. Em nós. - Ela faz uma pausa e inclina a cabeça para o lado, o cabelo caindo todo para o ombro esquerdo - Estava esperando que você me ajudasse, na verdade.
- , eu sou uma completa negação criativa. Eu escrevo músicas sobre o que sinto, sobre experiências que eu tive. Não sou bom em criar as coisas do nada.
- Claro que é! Se você escreve músicas, é ótimo com palavras, só as organiza diferente de mim. - apruma a coluna a cadeira, tocando meu joelho - Agora, pode me mandar suas ideias. Faça um brainstorm. Qualquer coisa que venha à sua mente para a trama.
- Esse livro é seu. Eu não quero levar crédito por nada.
- Não estou te pedindo para ser uma espécie de coautor, ! - gargalha antes de tocar meu rosto - Você queria que eu escrevesse sobre você. Estou escrevendo. Quero que faça parte disso.
Faço uma pausa, encarando-a, esperando que o sorriso desapareça a qualquer minuto e ela diga que era apenas brincadeira, mas sua expressão feliz continua lá, tão fora do normal, tão linda. Solto um suspiro e olho para ela de forma conspiratória antes de falar.
- Um cara inconsequente que tem que escolher entre várias garotas diferentes. - Falo rápido, meio constrangido, e faço uma pausa para pensar.
- Inconsequente? - Ecoa, confusa.
- Não se dá muito bem com álcool. - Dou uma risadinha - Mas abusa mesmo assim.
- Ah! - Ela exclama, se apressando para digitar a ideia, e ri como boba quando olha para mim de novo - Ok. Péssimo com álcool. Parece mesmo com você.
- E a namorada o pega com outra garota. Ele passa a história tentando reconquistar ela. - Falo depois de um momento.
- Estamos falando de drama? Romance? - incentiva, os dedos a postos sobre o teclado.
- Comédia romântica? - Digo mais em tom de dúvida do que afirmação, e ela concorda com a cabeça.
- Eu não acho que ela perdoaria fácil a traição. Quero dizer… Tem que ter um fundamento, não tem? - comenta depois de encarar as letras na tela - Acho que garota alguma perdoaria o namorado depois de pegá-lo na cama com outra pessoa. Ainda mais se ele usar a desculpa de que não lida bem com álcool! - Ela ri.
- Ok. - Sou obrigado a concordar, colocando minha melhor expressão pensativa no rosto. Quando o cara vem buscar nossos copos, chamo sua atenção, fazendo com que tanto ele quanto me olhem com curiosidade.
- Ei. Posso pedir sua opinião em uma coisa?
Ele parece incerto por um segundo.
- Claro.
- Hipoteticamente falando, se você pega seu namorado ou namorada na cama com outra pessoa, o que seria necessário pra que você perdoasse essa pessoa? - me olha como se não acreditasse no que eu estava fazendo, rindo, e o garoto abre um sorriso brincalhão no rosto, olhando dela para mim.
- Hipoteticamente falando?
- Claro.
- Ele teria que não ter dormido com a pessoa. - Dá de ombros - Ser tudo um mal entendido. Espero ter ajudado.
Ele se retira e deixa minha namorada com uma expressão engraçada.
- Não ajudou em nada.
- Claro que ajudou! Pode ser exatamente como ele disse.
- Como assim?
- Nosso bêbado inconsequente faz coisas ridículas quando está bêbado. Ele pode ter perdido as roupas de uma maneira bem justificável, e garota estava tão ruim quanto ele, mas só ela sabe que eles não dormiram juntos. Ela faz parte de toda a reviravolta para reconquistar a namorada.
- Isso é muito bom. - Elogia, digitando muito rápido e muito concentrada. - Não é meio previsível, no entanto? Qual a graça de começar o livro podendo deduzir que ele volta pra namorada?
- Ele não volta para a namorada. - Falo como se fosse óbvio - Ele não a ama como ama a garota que escolhe.
- Não? - Pergunta, distraída, e sou obrigado a chamar sua atenção.
- Pensei que fosse inspirado em mim. - A lembro.
me olha em silêncio, o sorrisinho triste nos lábios.
- Eu amo você. - Fala bem baixinho, se inclinando para me beijar, mas logo se afasta. Alguém grita seu nome do outro lado da rua e ela vira o pescoço com pressa, acenando.
Penso que a mulher irá se aproximar, mas ela apenas se vira e acena para mim também, continuando a caminhada logo depois.
- Quem era?
- A mãe da Mandy. - Fala como se não fosse importante, depois se volta para mim - A Mandy é… Ah. Você não estava no meu aniversário, teria conhecido ela. Era minha melhor amiga quando eu morava aqui.
- Não é mais?
- As pessoas se afastam. - Dá de ombros - Lissa é minha melhor amiga. Agora, de volta à nossa obra.
- Ótimo. Já me sinto como um autor premiado. - Murmuro depois de beijar seu ombro nu, tornando a me sentar direito na cadeira de metal.
- Você bem que poderia escrever alguns livros. - Comentou com um tom de riso na voz - Com certeza não precisa do dinheiro.
- Já te disse, eu sou uma completa negação criativa. - Insisto, batendo a mão na mesa para pontuar.
- Tudo bem. - meneia a cabeça, abrindo um sorriso convencido - Eu sou criativa por nós dois.
- Falando em criatividade, o que aconteceu com aquela caderneta que você carregava pra todo lado? Nunca mais te vi escrevendo naquilo.
- Ah! Acabaram as folhas, acho. E fiquei um bom tempo sem escrever, para ser sincera.
- O que escrevia lá? Outro livro?
Ela ri.
- Não. Já te disse um milhão de vezes que não me via escrevendo nada. Até agora, pelo menos. - Ela faz uma pausa, digitando alguma coisa no notebook, depois deixa os pulsos descansarem sobre o aparelho - Eram textos. Meio desconexos, eu acho. Me lembro de alguns, mas nem tudo.
- Cite para mim. - Falo imediatamente.
Ela ergue os olhos, tão azuis naquele sol que era quase desconcertante, e pensa por alguns minutos.
- Em uma aula de Biologia no ensino fundamental, nós aprendemos que o corpo humano é 72,8% água. Era o fim do horário, e quando chegamos aos nossos armários, era sobre o que todo mundo estava falando. Minha melhor amiga, Mandy, me perguntou: “quanto de sangue você acha que temos?” e a Jenny, uma outra amiga nossa, sugeriu que o garoto mais pesado da classe talvez fosse 90% água. Alguém teve o bom senso de dizer para ela que não é desse jeito que funciona. Eu tinha treze anos, e pela primeira vez eu entendi porque sempre me sentia como se estivesse me afogando. - Ela disse tudo tão naturalmente que demorei um bom tempo para perceber que não me contava uma história, e sim fazia o que eu havia pedido. Um arrepio percorre meu corpo, deixando os pelos em meus braços em pé, como ela sempre fazia quando dizia essas coisas - Depois que assistimos o filme, ele se vira para mim. Um toca-discos antigo está parado no canto, e eu nunca estive nesse quarto antes. Um cara de dezesseis anos, vestindo um pijama de Guerra nas Estrelas, se enrolou nas próprias cobertas e havia lágrimas em seus olhos. Ele me pergunta se a vida era fútil, interrompe a si mesmo, e se desculpa por estar chorando. Eu não o abraço. Eu não toco nele. Eu durmo na cama debaixo, faço ovos e chá para o café da manhã e saio enquanto ele está no banho. Antes de sair, escrevo uma nota que diz: ”Eles dizem que nosso corpo é feito de 72,8% de água. Não existe essa de ‘chorar’, estamos apenas tentando nos virar de dentro para fora, e isso é um objetivo muito nobre.” - para de falar novamente, não como se tivesse esquecido alguma coisa, mas como se tivesse acabado de perceber algo - Acho que você sabe sobre quem é esse. - Volta os olhos para as próprias mãos antes de continuar - Nós estamos na cama dele mais uma vez. Estivemos aqui tantas vezes, estamos próximos o suficiente para respirar um pelo outro. É muito quieto. Esse momento sempre é, e de repente me encontro querendo dizer tantas coisas para ele. Se fossemos mais próximos nesse momento, como centenas de outros momentos, eu lhe diria que existem tantas coisas acontecendo por baixo da minha superfície que é impossível que ele possa vê-las de tão longe. Eu o lembraria de mergulhadores: como suas cavidades torácicas explodiriam se eles voltassem à superfície rápido demais, pulmões desesperados para contar tudo o que viram lá embaixo. Eu o diria que se não fosse pela gravidade, eu tentaria alcançá-lo. Ou deixaria que ele me alcançasse e pudesse ver que por baixo de todo esse peso, talvez haja alguma luz. Eu deveria lhe dizer isso tudo, mas o momento é tão silencioso. E eu sinto muito que sou feita de tanta água, mas nenhum calor.
- Você realmente é alguma coisa, não é? - Falo baixo, concentrado na expressão em seu rosto, e me aproximo para beijá-la quando ela volta os olhos para mim.
- Um pouquinho, talvez. - separa nossos lábios para rir, colocando os dedos em meu rosto.
- Eu sinto muito que eu tenha demorado tanto tempo para perceber o quanto eu gosto de você. - Falo com sinceridade, segurando a mão que toca minha bochecha, e espero que ela escute em minha voz o quanto falo sério.,br> - Shhh. - Fecha os olhos com força, agora segurando meu rosto entre ambas as mãos, e se aproxima até encostar nossas testas - Você não precisa se desculpar, está tudo bem. - Ela dá um beijo rápido nos meus lábios - Estamos aqui agora, então está tudo bem.

***

Fomos ingênuos ao pensar que a luz do sol e nossa empolgação nos manteriam aquecidos para sempre - ainda era inverno, o que o vento logo fez questão de nos mostrar. fecha o notebook e o guarda na bolsa, tirando o cabelo do rosto e franzindo o cenho para mim.
- Acho que a diversão acabou. - Lamenta, fazendo um beicinho com os lábios.
- Você está brincando? Nós temos que ir ao píer. - Coloco minha melhor expressão séria no rosto e me viro completamente em sua direção - , nós temos que ir. Eu não posso vir a Brighton e simplesmente não ir ao maior cartão postal da cidade.
- Nós podemos trocar de roupa antes. - Ela sugere calmamente, o sorrisinho em seu rosto indicando que ela está se divertindo com minha empolgação.
- Não temos tempo pra trocar de roupa. - Falo como se fosse óbvio - Temos mais algumas horas e um milhão de coisas que quero fazer.
- Como o quê?
- Ver sua casa, sua escola. - Listo como se fosse óbvio - Pensei que você fosse querer rever alguns amigos. Visitar… alguns lugares.
Tinha esperanças de que não fosse perceber meu segundo de hesitação, mas ela ergue uma sobrancelha, desconfiada.
- Acredite, eu não tenho mais amigos por aqui. - Desvia os olhos dos meus por um momento, constrangida, e passa os dedos pela franja - E o que você quer dizer com ‘alguns lugares’?
- Como assim não tem amigos aqui? Você só… Mudou de cidade. Aposto que algumas pessoas ficariam felizes em te ver. - Tento desconversar.
- Eu não saí daqui como a queridinha número um, . - Ela começa a andar, estendendo a mão para que eu enlace meus dedos nos seus - Muitas pessoas me ressentiram pela morte do Josh.
- Você não teve nada a ver com isso.
- Não tive? - Ela abre um sorriso triste, diferente do que costumamos compartilhar, como se ela não pudesse negar essa possibilidade - Depende da forma como você vê a situação. - Dá de ombros, e espero um momento quando ela franze os lábios - Eu era próxima de todo mundo. E de uma hora pra outra me afastei. E eu não era exatamente agradável enquanto estive aqui, já te contei sobre isso.
- Eu sei…
- Eu não era a única que sentia falta dele. Mandy também, e o melhor amigo dele, e sua família. Eu não sou perfeita.
- Eu nunca disse que você era.
- Eu sei. Eu queria poder mudar essa situação, mas não tem nada que eu possa fazer.
Estamos próximos ao mar agora, o som das ondas batendo contra a costa mais alto do que enquanto tomávamos café. O vento sopra mais forte aqui, o frio mais intenso. se encolhe ao meu lado quando atravessamos a avenida para a calçada à beira do mar, olhando as águas cinzentas. Ela puxa minha mão e sorri em expectativa.
- O que foi?
- Você não respondeu o que queria dizer com ‘alguns lugares’. - Ergue as sobrancelhas e continua me olhando, esperando.
- Eu pensei… - Sinto meu rosto esquentar, me sentindo estúpido e pequeno por sentir ciúmes. Dou de ombros para tentar amenizar meu constrangimento, desviando os olhos dela - Pensei que fosse querer visitá-lo.
Posso ver suas sobrancelhas se erguendo pela visão periférica, e ela não me responde de imediato. Se vira na direção do mar, os lábios franzidos mais uma vez, e parece demorar uma eternidade para absorver o que eu disse.
- Nós não precisamos fazer isso.
- Eu sei que não preciso. - Aperto sua mão - Mas pensei que talvez você precisasse.
- Não é mais desse jeito pra mim. - Ela vira o corpo na minha direção, encurtando a distância entre nós para se aconchegar no meu braço - Está ok.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Se mudar de ideia, vou com você. Se quiser ir sozinha eu também entendo.
- Eu te garanto que está tudo bem. - Fica na ponta dos pés para beijar meu rosto - Pare de se preocupar.
Ficamos ali por mais alguns minutos, os cabelos balançando com o vento gelado. Sei que devemos voltar para o hotel, mas não consigo me mover. É como se um bolo se formasse em minha garganta - o clima que se nubla, as águas escuras. Encaro a baía como se o oceano pudesse me engolir, e aperto contra mim, uma sensação estranha no peito.
- Eu sei. - Ela fala baixo quando inspiro profundamente, acariciando minhas costas com os dedos finos - Eu sei.
E eu sei que ela também sabe. Ela também sente.

Esperamos até que a temperatura fosse quase insuportável antes de voltarmos para o hotel. penteia os cabelos em frente o espelho, parecendo alheia a esse sentimento pesado que nos cerca. Me olha uma hora ou outra, sorrindo carinhosamente, mas não consigo retribuir. Meu humor é como um prelúdio para o telefone que finalmente toca, nos fazendo pular.
- É o meu?
- Inacreditavelmente, é o seu. - Brinco, fazendo-a sorrir mais uma vez antes de caminhar em direção à bolsa com uma expressão confusa.
Ela olha para o visor antes de atender, os olhos em mim.
- Oi Andrew.
Me viro em sua direção, curioso. Ela escuta atentamente, respondendo que sim, ainda estamos em Brighton, mas iremos embora ainda essa noite. Espera pelo que o irmão tem a dizer com uma das mãos no rosto, a expressão preocupada. Quase caminho para colar o ouvido do outro lado do telefone e ouvir o que ele está dizendo, mas somente assisto a expressão em seus olhos mudar conforme ela escuta.
- O que é? - Pergunto por fim, não conseguindo mais aguentar, mas ela não me responde. Leva uma das mãos aos cabelos, passando o dedo por eles e escutando com atenção. - .
Seus olhos se voltam para mim, e não sei descrever o que vejo. O tom de azul parece escurecer dois ou três tons, as sobrancelhas franzidas como se ela não aguentasse me ver ali. Sei que deveria me erguer da cama e ir até ela, mas não consigo. A sensação ruim cresce em minha garganta, e penso em tudo que possa ter acontecido, mas ela não chora. Ela não chora. Só me olha com aquela expressão de dor.
- Eu sei. - As palavras saem de seus lábios em uma entonação que nunca ouvi antes, e ela mantém os olhos em meu rosto. - Eu sei. - Repete com a voz engasgada.
Tento entender o que está acontecendo, tento me forçar a ir até ela e segurar sua mão, mas minha incapacidade de fazer qualquer coisa parece ser demais. me dá as costas, como se não conseguisse mais olhar para o meu rosto, e continua assim até que meu coração pareça prestes a explodir em meu peito.
- , o que está acontecendo? - Insisto, começando a me desesperar quando ela desliga o telefone e continua de costas para mim. Consigo sentir cada batimento cardíaco, cada tremor das minhas mãos quando ela se vira. A expressão em seu rosto quebra algo dentro de mim que não estava quebrado antes, e sei que não é a primeira vez que a vejo. São os mesmos olhos que me olharam dentro do carro, numa tarde fria de outono, quando ela abriu o coração pra mim. Os mesmos lábios entreabertos, como se esperasse pelas palavras que ela não consegue dizer.
- . - É tudo o que sai antes que eu me levante para segurar sua mão esquerda.
- O que aconteceu? - Pergunto, buscando por seus olhos, que ela insiste em desviar. solta meus dedos e caminha em direção à janela, olhando para o mar do lado de fora.
- Podemos conversar depois? - Pergunta por fim, se voltando à minha direção, a expressão mais calma.
- Você tem certeza?
Ela assente, abrindo um sorriso tenso.
- Te conto tudo no caminho de volta à Londres. - Me garante, se aproximando para depositar um beijo no meu rosto - Temos que ir até o píer.
Encaro seu rosto por um momento, tentando analisar sua expressão, qualquer coisa em seus olhos que pudesse me dar um indício do que estava acontecendo, mas ela continua impassível.
- Se é o que você quer. - Sei que percebe o tom desconfiado em minha voz, mas não comenta nada.
- Você pode descer na frente e fazer o check-out. Eu levo nossas malas. - Sugere com uma mão no meu braço, os olhos mais uma vez se distanciando dos meus. Quero sacudi-la até que me diga o que está acontecendo, nos trancar ali até que eu tenha todas as informações, mas atravesso a porta sem fazer qualquer pergunta.
Talvez, no fundo, eu já soubesse o que estava por vir.

O píer está movimentado hoje, mas me garante que é assim quase o ano todo. Já tinha visto a praia de pequenas pedras, e mesmo assim pego algumas na mão e aponto para ela, que sorri como se eu não tivesse jeito. É sutil, mas percebo como ela está mais tensa, e como seus olhos se demoram em mim como se ela quisesse guardar na memória.
- O que você quer fazer? - Me pergunta depois que uma garota me parar para tirar uma foto.
- Comer batata frita no jornal. - Sorrio, dando de ombros quando me olha com descrença.
- Vamos lá. - revira os olhos.
- Batata frita no jornal! - Insisto - Quero a experiência turística completa.
- As gaivotas não vão roubar suas batatas no inverno. - Debocha, puxando a bolsa da lateral do corpo - E eu vou pagar, sem discussão. Cortesia de anfitriã. - Acrescenta quando fecho a cara.
Ela compra um cone para mim e outro para si, roubando uma batata das minhas mãos com uma expressão divertida.
- Ah! Você tem uma quantidade considerável nas mãos. - Afasto o cone de seu alcance para enfatizar - Não tem necessidade de me roubar.
- Não seja egoísta.
- Olha seu tamanho! Não tem espaço para mais nada.
- Exatamente! Estou em fase de crescimento, quanto mais, melhor. - Ofereço-a a porção depois de um momento, mas apenas sorri, e enlaça os dedos nos meus. - O que acha de darmos uma volta na roda gigante?
- Não é você que tem medo de altura? - Pergunto em um tom brincalhão, arrancando uma risada dela.
- Acho que está falando de si mesmo. - Provoca, me puxando em direção à bilheteria e se posicionando na fila.
- Vai estar congelando lá em cima. - Comento em seu ouvido, abraçando-a por trás.
- E daí? Estamos aquecidos. - Esfrega a mão na manga do meu casaco para dar ênfase.
- Meus lábios podem congelar. Como é que vou beijar você com os lábios congelados?
- Se nos beijarmos o tempo todo vamos mantê-los aquecidos. - Ela se vira em meus braços, sorrindo, e beija minha boca para dar ênfase, o pigarro às nossas costas chamando atenção para o fato de que somos os próximos na fila.
Ela pede desculpa para quem quer que seja, e se aproxima da atendente com o dinheiro nas mãos, voltando para mim com os ingressos logo em seguida.
- Se prepare para exercitar os lábios. - Brinca, balançando os bilhetes na mão direita e sorrindo. Percebo que o sorriso não chega em seus olhos, mas não quero pensar nisso. Por mais que a ansiedade pese em meu estômago, deixo que ela me puxe em direção à roda gigante e se aconchegue em mim quando o brinquedo entra em movimento.
espera até que seja difícil nos enxergar lá do chão - ainda não estamos no topo, mas perto o suficiente dele, e então ela me beija. Se inclina na minha direção e puxa meu rosto com ambas as mãos, a língua tocando a minha quase antes que eu tenha tempo de reagir e tocar seus cabelos. Sua respiração está pesada, o beijo se intensificando com urgência.
- Não pode esperar até que estejamos no carro? - Separo nossos lábios para provocar, mas ela não me responde; encosta o nariz no meu, tentando recuperar o fôlego, e me beija mais uma vez, agora devagar. Sinto suas mãos no meu cabelo e os dedos adentrando meu casaco para tocar a pele do meu pescoço - ela move a língua com paciência, a respiração mais calma, e no entanto mais profunda. Antes de se afastar, encosta os lábios nos meus várias vezes, e quando está longe o suficiente para que eu veja seus olhos, estão cheios de lágrimas.
- O que é? - Pergunto em voz baixa, como se saísse de um transe, e coloco a mão em seu rosto - O que foi, ?
Ela respira fundo mais uma vez, olhando em meus olhos, e com toda a calma do mundo estica o braço para me tocar também.
- Acho que precisamos conversar. - Fala com a voz falha, e uma lágrima escorre solitária por sua bochecha. A limpo com pressa, não sei se pelo vento frio que bate em nós ou por não querer vê-la chorando.
- Você pode me dizer qualquer coisa. - Seguro seu rosto e a obrigo a me encarar quando desvia os olhos.
- Não posso ir para LA com você.
Quase solto um suspiro aliviado.
- ! - Exclamo em exaspero - Está tudo bem! Sei que você tem que se preocupar com a faculdade.
- Também não vou poder voltar para a faculdade. - Duas lágrimas caem dessa vez, tão rápidas que logo desaparecem em seu pescoço - Minha mãe foi parar no hospital hoje.
- Ela está bem?
- Acho que sim, eu não sei. Ela não reconheceu a casa e parece que ficou assustada. - Ela dá de ombros, soltando minha mão para limpar o rosto - Meu pai quer se mudar para Brighton, para nossa antiga casa.
Continuo encarando-a, esperando por uma explicação, mas ela só me olha em silêncio, as lágrimas escorrendo pelo rosto sem parar.
- Está tudo bem. - Digo mais para mim do que para ela.
- Eu preciso voltar com eles. - Ela fala quase antes que eu possa, a falha em sua voz no meio de sua frase quase me fazendo chorar também.
Demoro um pouco para perceber o que ela quer dizer. Passamos pelo topo da roda gigante e iniciamos nosso caminho de volta agora, e a realização pesa em mim como um soco no estômago: ela vai ficar aqui. Não existe viagem de volta para Londres.
-
- É a minha mãe. - Ela chora de verdade agora. O azul dos olhos quase desaparece em meio às lágrimas. - Eu preciso ficar com ela.
Dizem que existe um lugar no nosso peito que se você bater com força o suficiente, o coração explode. Soa tanto como uma mentira que sou obrigado a acreditar que é verdade. Se eu fosse a Ciência, jamais diria onde é esse lugar. Se eu fosse a Ciência, diria que a sensação do coração explodindo é como a voz de dizendo que ela tem que me deixar, e ir em uma direção oposta nesse mundo que agora parece grande demais.
- Eu te amo. - Ela toca meu rosto, como se limpasse uma lágrima, mas não estou chorando. Não vou pensar no que vai acontecer quando tivermos que nos despedir - nesse momento ela está aqui e ela me ama. Ela me diz de novo e de novo.

Ela queria ir embora. Eu a amo demais para pedir que fique comigo. Repito para mim mesmo como um mantra - não há nada que eu possa fazer. Sua mãe está doente e precisa dela. O irmão precisa dela. E acho que ela precisa estar com eles também.
- Não posso voltar com você. - fala baixo agora que estamos no píer mais uma vez, segurando firmemente minha mão conforme iniciamos nossa caminhada em direção ao carro, nossas malas prontas no porta-malas como um aviso de que eu deveria ter percebido mais cedo.
Tivemos tão pouco tempo. Tão pouco tempo. Se eu tivesse percebido o quanto gostava dela mais cedo, quando a pediu que eu a beijasse, quando se declarou pra mim naquele carro. Se eu tivesse dito que meu coração era dela, por mais clichê que fosse. Se eu tivesse a beijado aquele dia na biblioteca…
- Por favor, não olhe para trás. Eu prometo que não vou.
Não quero ouvir sua voz agora. Repasso em minha cabeça todos os momentos que não aconteceram, todo o tempo que desperdicei. Não tem mais saída para nós. Não posso abrir mão da minha vida, da minha carreira por ela. Não acho que fosse querer isso. Nem posso pedir que ela o faça. Será que estávamos fadados esse tempo todo a ter tão pouco… tempo?
- , me diga que você não vai olhar para trás.
- Eu não vou. - Prometo como um covarde. Como é que eu poderia simplesmente não olhar para ela?
Chegamos ao carro agora. Ela pega a chave das minhas mãos como se eu estivesse inerte e caminha para pegar sua mala. Deixa pousada na calçada quando se vira para mim, um sinal que é tudo real. Não posso estar imaginando. As orbes azuis me encaram sem lágrimas agora, claras como o céu num dia de verão. Seus olhos são tão bonitos.
- O que eu sinto por você… - Ela começa, dando um passo à frente como se fosse segurar minha mão, mas algo a impede - É maior do que palavras. É maior do que qualquer coisa nesse mundo, eu prometo. E se nós nunca nos vermos de novo… Espero que você saiba que eu vou ser para sempre uma pessoa mudada por quem você é, e por tudo o que você significa para mim. Eu nunca vou esquecer você.
Não deveria terminar assim. Eu não deveria simplesmente aceitar com um gole em seco que é assim que as coisas seriam, vê-la pegando a mala no chão e colocando no ombro como se não tivéssemos nenhuma outra opção, mas sei que aquilo deve ser tão difícil para ela como é para mim.
- . - Ela para no meio do gesto de se virar e me encara, esperando por algo que também não sei o que é. Só não quero vê-la indo embora. - Me deixa olhar você.
Ela se volta na minha direção, a expressão triste, e a olho como se nunca mais fosse vê-la. Os cabelos escuros estão soltos, cheios de flocos de neve, os fios caindo até a altura de seus seios. Está começando a anoitecer agora, a luz azulada do crepúsculo deixando um brilho em sua pele que a faz parecer ainda mais surreal. Ela franze os lábios quando não digo nada, vermelhos de frio, assim como as bochechas na pele clara. Deixo os olhos por último. Sempre amei os olhos dela. Nunca vi olhos tão grandes, ou um tom de azul tão intenso. São tão claros, tão inteligentes, e me olham com tanto sentimento.
- Pronto? - Pergunta por fim, enfiando uma mão no bolso do casaco.
- Nem perto. - Respondo com a voz fraca. Ela assente para si mesma, abrindo um sorriso triste. Trocamos esse mesmo sorriso tantas vezes, como uma substituição de todas as coisas que nunca poderíamos dizer.
- Adeus, . - É como ouvir todas as despedidas já ditas para mim de uma vez, e ela se vira e começa a caminhar na rua. Espero que ela volte e corra para os meus braços. Espero por qualquer sinal divino de que existe uma outra solução. Talvez se eu fosse uma pessoa normal, um colega de faculdade ou um namorado de infância. O sinal nunca vem. Sei que prometeu, mas ela olha para trás, e eu a amo por isso, porque é tão humano. Com o coração pesado, me viro e vou embora. Sei que enquanto estiver vivo nunca vou esquecer.

Epílogo: 'You are a language I am no longer fluent in / but still remember how to read.'


8 anos depois


- P.O.V

O quarto tem cheiro de lavanda. Abro os olhos devagar, apreciando a sensação da coberta confortavelmente colocada sobre mim, da brisa gelada que entra pela janela meio aberta e balança a cortina na luz do crepúsculo. Posso ouvir a TV ligada no andar de baixo, de modo que sei que Andrew está em casa.
Me levanto lentamente, lamentando meus últimos segundos confortáveis, e esfrego os olhos antes de encarar o cômodo pobremente iluminado. Há uma escrivaninha, bem próxima do meu criado mudo, logo abaixo da janela aberta. O computador está aberto, em modo de espera, e há um post-it colorido pregado na tela, assim como os vários outros espalhados pela parede bem em frente a mim. Não me dou o trabalho de ir até lá ver o que está escrito; me lembro da maioria deles. Ao invés disso, caminho até o computador que parece me esperar, as pernas nuas arrepiando no friozinho do entardecer.
Arranco o post-it da tela com um som mais agressivo do que o gesto realmente foi, e demoro vários segundos para conseguir focar no que está escrito. Em uma caligrafia elegante - mais do que a minha, devo admitir - alguém escreveu:
“Você adormeceu no meio do processo de finalizarmos o capítulo vinte e cinco. Tive que sair, mas volto logo.”

Alguém deve, definitivamente, ter confundido meu quarto com o do meu irmão, porque não tenho ideia de quem escreveu aquilo. Quando toco o trackpad, há, de fato, um documento aberto, exatos vinte quatro capítulos e alguma coisa escritos. Não me dou o trabalho de ler: minha cabeça lateja levemente, e a única coisa que consigo pensar é ir até o andar de baixo e tomar uma aspirina.
Descendo as escadas, consigo ver a cabeça de Andrew no encosto da poltrona mais alta, e há alguém deitado através do sofá de três lugares, a posição relaxada. Faço um desvio até o banheiro, parando em frente a pia com uma expressão ainda sonolenta, a pele com as marcas do travesseiro indicando um cochilo de qualidade. Lavo o rosto com a água gelada pelo menos três vezes, sentindo a sensação da temperatura nas pálpebras, e demoro um tempo consideravelmente longo para me secar com a toalha.
O reflexo no espelho é tão estranho. Os cabelos cortados na altura do pescoço, mais volumosos agora, parecem pertencer a outra pessoa. Sinto falta da franja que costumava estar ali, mas agora se foi - encaro uma de cabelos selvagens e olhos cansados, mas não sei se o desconforto é pela dor de cabeça insistente. Abro o gabinete e pego o frasco de aspirinas, à frente de todos os outros remédios perfeitamente arrumados.
Retorno para a sala, me aproximando da poltrona e me acomodando no braço dela, a cabeça contra a do meu irmão quando ele me puxa mais para perto.
- O que estão assistindo? - Pergunto, dando uma boa olhada no garoto que cochila no sofá - O que você está assistindo, quero dizer.
- BRIT Awards. - Ele solta uma risada quando vê que seu amigo está dormindo - Você está bem?
- Com a cabeça doendo um pouco, mas já tomei uma aspirina.
Ele assente, batendo em minha perna para que eu levante de seu colo, e caminha comigo até a cozinha. Andrew abre uma gaveta para pegar outro remédio e coloca o comprimido na minha frente com um copo de água gelada, que logo molha a pedra da bancada.
- Lavanda? - Pergunto depois de engolir um bom gole d’água.
- Você ama o cheiro. - Me lança um olhar conspirador, e sorri antes de se aproximar e me guiar de volta para onde seu amigo dormia.
- Me deixa calma. - Concluo um momento depois, realmente me sentindo relaxada. Agora que eu parava para pensar, a casa inteira tinha um leve odor de lavanda. Embaixo da TV, no pequeno móvel onde estavam apoiados alguns aparelhos, eu podia ver o odorizador de ambientes.
- Eu sei que deixa. - Andrew constata como se fosse óbvio, e revira os olhos muito azuis.
- Você não devia ter me deixado dormir tanto. Agora parece que meus ossos foram substituídos por gelatina.
Se não era meu corpo, alguma coisa realmente estava estranha. Não importa quantas vezes eu olhasse ao redor e confirmasse que aquela era, de fato, minha casa, tinha a impressão que alguma coisa estava faltando. Como se os móveis tivessem sido reposicionados ou algum objeto de decoração recém adicionado.
Me sentindo confusa, caminho até a estante no canto do cômodo e pego O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Não importa quantas vezes eu leia, sempre tenho a sensação que perdi diversos detalhes. Me sento na poltrona oposta da de Andrew, ignorando seu amigo que agora ronca baixinho, e começo a folhear as páginas distraidamente.
Uma vez ou outra ergo os olhos, reparando no garoto de cabelos curtos que parece completamente confortável, ou em meu irmão, que reveza o olhar entre mim e a televisão curiosamente. Depois de alguns minutos, Andrew se ergue para fazer alguns sanduíches de tomate e queijo, que acabo largando no prato depois da terceira mordida. As apresentações na premiação passam incessantemente, e a sala fica cada vez mais escura conforme a noite cai sobre nós.
- Esse livro de novo? - Andrew pergunta em mais um comercial, os olhos fixos em mim, atentos. Estranho seu comportamento, da mesma forma que estranho a casa, mas não comento nada.
Viro o livro nas mãos, observando a capa, e por fim me contento com um dar de ombros.
- A capa é bonita. - Digo com um sorriso.
Andrew revira os olhos, a cabeça balançando levemente.
- Sou obrigado a concordar.
- E nunca consigo lembrar com precisão dos detalhes. Sempre que tento lembrar de alguma coisa, sou obrigada a procurar pelas páginas. Fiz um pacto comigo mesma, desta vez: vou ler com tanta atenção que vou decorar todas as expressões arcaicas que são usadas.
- E vai começar a usar elas no dia-a-dia?
- Sim. E você quem vai ter que aguentar.
Andrew sorri, mas o assunto morre quando terminam as propagandas e o show volta a ser exibido. Ele solta uma exclamação, e ergo os olhos para ver o grupo subindo as escadas para receber seu prêmio.
- Olha só essa roupa do ! - Andrew comenta com uma risadinha, animado.
abraça a garota que o estende a estatueta, pegando o prêmio e o encarando nas próprias mãos antes de se aproximar do microfone com um sorriso. Os outros garotos se posicionam um pouco atrás dele, ouvindo com atenção.
- Uau. - Ele faz uma pausa, dando uma risadinha e olhando para a platéia - De novo? Uau. Não sei como agradecer por simplesmente não ter mais espaço para guardar esse. - A platéia gargalha, fazendo com que ele acompanhe, meio sem graça - Acho que já agradecemos todo mundo que tínhamos de agradecer nos outros dois prêmios desta noite. Posso ser um romântico incorrigível neste aqui? Quero agradecer minha linda namorada por aguentar essa rotina louca por… O quê? Oito anos? Algo assim. Ela está tão enjoada de premiações que nem me acompanha mais! Então para que você não esqueça que eu te amo, este aqui vai para a sua casa!
Ele ergue a estatueta, se afastando do microfone com um sorriso e gargalhadas dos garotos às suas costas. A câmera muda de foco, voltando para o apresentador do evento, e desvio os olhos da TV, sorrindo.
- Que fofo. - Comento, meio boba, e logo volto a atenção para o livro.
Andrew não comenta mais nada, e pelo resto da noite, mesmo depois que a exibição dos BRITS é terminada, ele fica sentado na poltrona. Seu amigo ainda dorme, e estou quase na metade do livro quando o telefone toca, me assustando.
Faço menção de me levantar para atendê-lo, mas meu irmão é mais rápido do que eu. Leva o fone até o ouvido, me observando, mas desvia os olhos quando quem quer que seja do outro lado da linha fala pela primeira vez.
- Ah, oi. Sim, sim. - Andrew me lança um olhar estranho de novo, mas quando os olhos se encontram com os meus ele os desvia com pressa - Acho que não. Acho que… Bem, você sabe. Eu sei, sim, eu sei. Você pode tentar, se quiser, mas acho que vai ser mais frequente agora. - Há uma longa pausa, em que a linha fica em silêncio, e a pessoa fala alguma coisa outra vez - Ok. Te vejo então.
- Quem era? - Pergunto, fechando o livro sem olhar em que página parei, e Andrew solta um suspiro cansado. Se aproxima do garoto no sofá, mexendo em seu cabelo carinhosamente, até que ele desperte.
- Ia dormir até amanhã de manhã? - Meu irmão pergunta com uma risada, sentando no lugar onde a cabeça do garoto ocupava, o corpo meio tenso.
- Se você não me acordasse, provavelmente. - Responde com a voz rouca, ainda confuso, e olha ao redor até os olhos pararem em mim.
São muito verdes, e muito sonolentos, então desvio os meus, sem graça.
- Prazer em te conhecer. - Falo por fim, tornando a olhar para seu rosto, e ele paralisa no gesto de coçar a cabeça, encarando meu rosto - Sou a irmã do Andrew.
Ele solta uma risada tensa.
- Eu imaginei. - Andrew olha fixamente para o carpete, tamborilando os dedos no encosto do sofá - Vocês se parecem pra caramba. Quem nasceu primeiro?
- Eu nasci. - Falo, ao mesmo tempo que meu irmão diz que somos gêmeos, não importa quem nasceu primeiro.
- Essa piada está ficando velha. - Reclama.
- Só porque você não nasceu primeiro. - Abro um sorriso, satisfeita com seu revirar de olhos.
- Tem alguma história legal de quando era da idade dele? - O garoto pergunta, ainda rindo, e não desvia a tempo do tapa que recebe na cabeça.
- Eu li um livro ótimo quando tinha sua idade, Andrew. - Entro na brincadeira, mostrando a capa do livro de Stendhal para os dois - Se chama O Vermelho e o Negro.
- Vocês não são engraçados. - Diz com a cara fechada, se erguendo e caminhando até a cozinha.
O garoto também se ergue, a expressão bem humorada, e faz menção de que irá segui-lo até o outro aposento, então se vira para mim, o humor que estava em seu rosto sendo substituído por um sorriso tenso.
- Meu nome é Ryan, aliás. - E estica a mão para tocar a minha.
- . - Devolvo seu aperto, ainda sorrindo, e desvio os olhos quando ele se afasta.
Temos uma cozinha de conceito aberto agora, na casa para onde eu e Andrew nos mudamos em Londres, pouco depois da nossa mãe morrer. Tento não pensar muito naqueles dias, em Brighton, em que eu esperava pelo momento que fosse acontecer, como alguém espera pelo trem das três. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para ela, digo para mim mesma. Andrew não fala muito sobre isso, o que sou grata, e raramente vemos nosso pai. Ainda mora em Brighton, onde crescemos, agora noivo da mãe de Mandy. É uma situação estranha, mas fico satisfeita que cada um tenha seguido em frente com suas vidas, de uma forma ou de outra.
Um movimento na cozinha me chama atenção, e vejo Ryan segurar a mão de Andrew por cima da bancada enquanto meu irmão fala no telefone. Os olhos azuis estão nos meus, mas não viro o rosto, tentando entender seu comportamento. Ryan se afasta, eventualmente, e Andrew desliga o telefone. Eles ficam fora de vista por alguns segundos, encobertos pela parede que leva ao banheiro, e quando voltam para a sala já não têm as expressões tensas no rosto.
- Lissa está vindo pra cá. - Meu irmão avisa, concentrado em procurar por qualquer coisa na TV - Para entregar o convite de casamento.
- Ok. - Balanço a cabeça, prestando atenção - Acho que eu deveria trocar de roupa, então.
- É provavelmente uma boa ideia. - Responde com uma risada, passando os olhos pelo vestido de malha amarrotado.
Com um suspiro cansado, me ergo da poltrona e caminho até o meu quarto, parando no corredor quando passo pelo espelho. Os cabelos curtos ainda são estranhos para mim - passo a mão onde minha franja deveria estar, os olhos mais destacados agora que minha sobrancelha é visível. Deixo para lá, tratando de trocar de roupa.
Coloco um vestido mais apresentável, e quando torno a descer as escadas, as visitas já estão lá. Lissa, assumo, tem os cabelos dourados perfeitamente penteados em ondas. Assim como eu, seus olhos são azuis, mas quase acinzentados, e todos os seus traços são bonitos. Ela sorri quando me vê, e o garoto atrás dela observa com atenção quando me aproximo.
- ! - Exclama, a voz animada, e se aproxima para me abraçar.
- Lissa. - Cumprimento, abrindo um sorriso educado.
- Ah. Já viu que a Lissa e o chegaram, então. - Meu irmão sai da cozinha mais uma vez, sorrindo, e Ryan nos encara do sofá.
acena na minha direção, e se acomoda ao lado de nosso outro convidado. A garota procura por algo na bolsa enquanto caminha até o sofá, sentando ao lado do noivo enquanto fico em pé, de frente para eles.
- Trouxe o convite pra vocês. - Ela coloca os papéis pesados na mesa de centro, olhando para Andrew com a testa franzida - Façam o favor de obedecer às cores.
- Seu desejo é uma ordem. - Meu irmão concorda imediatamente, e começa a sorrir, mas o gesto logo morre em seu rosto quando a campainha toca mais uma vez.
- Eu atendo. - Falo prontamente, quando todos os quatro se levantam, estranhando o comportamento. Caminho até a porta com pressa quando Andrew dá um passo na mesma direção, e faço cara feia para ele. - Eu posso atender a porra da porta.
Giro a maçaneta, ainda encarando meu irmão, e me viro para nosso visitante.
- Oi, . - O terno é ainda mais impressionante fora da TV, mas Andrew não comenta nada dessa vez. Abro espaço para que entre, e quero gritar quando todos me encaram, o recém chegado de costas para mim quando entra, as mãos nos bolsos do paletó.
Meu irmão suspira, dando outro passo na nossa direção.
- , esse é…
- , eu sei. - Interrompo, fechando a porta. Lissa ergue as sobrancelhas, parecendo surpresa, assim como Ryan - O cara da televisão, não é? Você falou do terno dele.
se vira para me encarar, a expressão indecifrável.
- É impressionante. - Elogio.
- Obrigado. - Ele agradece, mas não sorri, e se aproxima de mim depois de um constrangedor momento em silêncio - Posso falar com você um minuto?
Olho para as outras pessoas na sala, mas ninguém se manifesta. Adentro o aposento, indicando o restante da casa com as mãos, e ergo as sobrancelhas na direção de Andrew.
- Claro.
Espero que vá me acompanhar até a cozinha, mas ele sobe as escadas sem dizer nada. O acompanho, ainda confusa com toda a situação, e indico meu quarto quando ele para na porta, me esperando.
- Esse é meu quarto. - Apresento ironicamente - Não repare na bagunça.
Ele chega a esboçar um sorriso, fechando a porta quando entro e me sento na cama. se senta na cadeira de frente para o computador, completamente à vontade, e ergue os olhos para olhar nos meus pela primeira vez. São verdes como os de Ryan, mas mais claros, cheios de manchas castanhas.
- Então?
- Meu nome é . - Ele se apresenta, desabotoando um dos botões no terno roxo escuro para ficar mais confortável - .
- Eu sei quem você é.
- Você me viu na TV. - Ele abre um sorriso, mas é tão triste que parece errado.
- Agradecendo sua namorada. - Concordo, passando a mão pela franja, mas ela não está ali mais. - Adorei seu discurso.
- Obrigada. - Ele faz uma pausa, me olhando, e a expressão em seu rosto é a mesma de alguém que está sofrendo - Foi pra você.
Recuo na cama, soltando uma risada sem humor, e fico em silêncio, esperando por uma explicação que ele não me oferece.
- Perdão?
- Nos encontramos de novo no mesmo lugar que fez com que nos conhecêssemos, se é que isso faz sentido. Starbucks, você se lembra? Perto da Piccadilly Circus. - Começo a balançar a cabeça em negativa, mas ele me interrompe - É claro que não. Não foi na mesma loja, mas não faz diferença. Você me disse uma vez que me reconheceria na morte e no fim do mundo. Foi um alívio ver que me reconheceu aquele dia, acho que esperei por um resultado diferente desde que te deixei em Brighton. Sahid disse que mesmo depois que você esquece uma pessoa, você ainda se lembra da voz dela, e do som da sua felicidade ou da sua tristeza. Você reconhece? Reconhece minha tristeza?
Sei que ele está triste - os olhos verdes estão cheios de lágrimas e sua voz está tão fraca, mas não sei do que ele está falando. Nunca estive em Londres antes. Nunca conheci nenhum Sahid. Nunca gostei de Starbucks.
- Nos encontramos de novo, e isso é que importa. Eu pensei que nunca mais fosse te ver de novo, e então você estava lá, e você estava tão linda. Você é tão bonita, . E nós tivemos oito bons anos depois disso. Foram realmente bons, quero que você saiba disso, mesmo que não acredite em mim. - Ele me estende o próprio celular. Na foto, meus cabelos estão curtos, na altura do meu pescoço, e eu sorrio, apontando para ele. O corte é diferente na foto: os fios são mais longos que os meus, e essa parece ser a piada. Sou eu na foto. Não tem como negar. E é ele, ao meu lado, sorrindo e me abraçando - Essa foto é a minha prova. Teve essa noite, quando as coisas estavam boas entre nós, e você me beijou como me beijou em Manchester. Você me ama, olhe! - Ele aponta para a foto mais uma vez, a voz baixa quando exclama, e quando olho para o seu rosto, as lágrimas já escaparam de suas pestanas - Por favor, me diga que você se lembra.
Quero me lembrar. Olho para ele, para os fios castanhos que caem em sua testa, para os olhos claros, para as mãos. Encaro seus olhos por tanto tempo, enquanto as lágrimas caem deles, mas não consigo dizer nada. Acho que ele está louco.
- Como posso ter me esquecido de você? - A pergunta o afeta mais do que eu pensava. Um arfar escapa de seus lábios, como se eu tivesse contado que alguém muito importante morreu, e ele chora mais um pouco antes de se recompor. Limpa os olhos, respirando fundo, e endireita a coluna na cadeira, inclinando-se na minha direção.
- Sua mãe tinha Alzheimer. - Explica, a voz mais firme agora, embora não olhe para mim - Nós fizemos um teste… Não importa. Você também tem. Descobrimos dois anos atrás. Você já esqueceu algumas pessoas, mas nunca…
- Nunca você. - Termino a frase quando ele não consegue.
- Não. - Concorda com outro sorriso triste.
Não falo nada quando ele começa a chorar mais uma vez. Não tenta disfarçar - não limpa as lágrimas ou tenta controlar os soluços. É assustador vê-lo assim, horas depois de vê-lo sorrindo na TV, minutos depois de descobrir que ele faz parte da minha vida.
- Você está me assustando. - Falo baixo, sem saber como me mover. franze os lábios, cruzando os dedos, e me encara com pesar.
- Você está quebrando meu coração.
Me aproximo para abraçá-lo, porque em uma situação em que não faço a mínima do que está acontecendo, parece a coisa certa a se fazer. Ele deita a cabeça em meu ombro, deixando as lágrimas molharem a manga do meu vestido. Deve ser uma cena estranha de se ver - eu, com um dos joelhos apoiado no chão, os braços envolvendo-o enquanto ele deixa o peso do corpo cair sobre mim. Os braços me envolvem eventualmente, as mãos tocando meu rosto quando ele se afasta.
- Nós deveríamos ter aberto aquele envelope.
Não sei do que ele está falando, mas entendo quando diz que me ama, de novo e de novo, até que as palavras deixem de fazer sentido. Não duvido dos seus sentimentos, e depois de um tempo, nem do que ele disse. Por mais que queira, não consigo me lembrar, mas seu abraço é familiar para mim. Se tudo o que ele diz for verdade ou não, entendo o que Emily Brontë disse uma vez: seja qual for a matéria de que nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais. Pelo menos parecem ser.

Fim.



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Nota da autora (31/07/2017): Em agosto de 2012, não lembro exatamente das circunstâncias, eu comecei a escrever Awaken. Foram muitas ideias que me animaram e depois foram descartadas. Se é que é possível imaginar, a fanfic era muito mais dramática idealmente do que realmente foi pro papel. Pensei em explorar mais o relacionamento abusivo com o pai dela, pensei em fazer com que ela e o principal nunca ficassem juntos. Nunca tinha visto nenhuma história de amor não correspondido, e gostei de pensar que Awaken não seria como as outras histórias. Antes ficava até ofendida quando diziam que era clichê, hoje admito que é mesmo e adoro. A gente aprende a gostar de clichês, no fim das contas.
Eu reescrevi o final várias vezes - em algumas ele era “impactante” demais, em outras era simples demais. Demorou até eu gostar do que tava ali, de concordar que era assim que os personagens agiriam. Já quis reescrever o começo mais de mil vezes (não consigo nem ler antes do capítulo 27), porque algumas coisas aconteceram rápidas demais, outras ficaram subentendidas demais, e outras são muito imaturas, mas eu quis deixar do jeito que está exatamente por isso: todo mundo que começou a ler quando já estava perto do fim, disse que é perceptível o quanto minha escrita amadurece, e eu também acho. É perceptível como eu amadureci, e como meus personagens amadureceram comigo. Awaken me moldou como escritora, e gosto de como dá pra ver através da história.
Essa nota é pra agradecer cada umx de vocês, por terem me acompanhado desde o começo, desde quando não era muito bom. Essa estória me deu três das melhores amigas que eu poderia pedir. Rhay, Carolzinha e Lexie, eu amo vocês. Awaken também me deu a Cami de presente, autora de WGAS e acho que agora minha eterna companheira nos Ficstapes da vida. Cami, obrigada por escrever WGAS e por sempre pular de cabeça nas minhas ideias, eu te amo!
Foram cinco anos que muitas vezes eu estava mal, e via nos comentários que vocês postavam como um lembrete que vocês apreciavam a história. Também quero pedir desculpas por ter parado de responder - minha conta no Disqus foi denunciada há um tempão, e sempre que eu posto uma resposta é marcado como “spam”. Quero que vocês saibam que eu leio cada um dos comentários, e até os que só pedem pra atualizar logo deixam um sorriso enorme no meu rosto e uma sensação quentinha no peito. Mesmo que eu não possa responder, cada um deles e guardo no coração.
Obrigada pra quem acompanhou Awaken desde o começo, e obrigada também pra quem chegou depois. Se você começou a ler depois de finalizada, te agradeço também. Espero que vocês tenham gostado tanto quanto gostei de escrever. Espero que tenham entendido a personagem principal como esse ser humano cheio de arte no coração e sem filtro na boca. Esse tempo todo foi incrível, mas nossa aventura chegou ao fim.
Se você ainda quer acompanhar minhas ideias, Heartbreak Warfare está em andamento no site, e um projeto meio spin-off de Awaken tá vindo aí. Vocês podem me acompanhar pelo grupo no Facebook, ou pelo ask.fm, que finalmente reativei.
Ainda aproveito a nota pra agradecer todas as betas que me acompanharam em Awaken, sem vocês não teria dado tão certo quanto deu. Larys, sempre adorei seus surtos com as atualizações!
Awaken fica por aqui, e acho que tá na hora da minha nota também ficar. Mais uma vez, obrigada por tudo.

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