Tudo que podia ouvir eram o próprio arfar e o barulho dos pés sendo arrastados num barulho irritante pelo ringue. Tentava manter os punhos na altura de seu rosto, mas os músculos a traíam e cediam à tremedeira. Desviou de dois chutes e sentiu o mundo dar uma volta completa dentro de sua cabeça. Era como se a atmosfera exercesse uma pressão anormal sobre o seu corpo.
Foi questão de segundos para que perdesse a guarda e estivesse caída ao chão.
Não conseguia parar de arfar. O homem com quem lutava se agachou perto dela. Esse tinha uma expressão de decepção. Decepção e pena.
– Como está se sentindo? – ele perguntou num tom de voz baixo, observando a menina que deixava o peito subir e descer sem pudor.
Forçou um pouco a parar com aquele tique e virou os olhos para o cara. Sentiu-os arderem um pouco, não sabendo se o motivo era interno ou externo. Em resposta, esmurrou o chão com a mão e engoliu a sensação de falta de ar. Rapidamente, para poder enganar a própria consciência, a garota se pôs sentada num pequeno salto, afundando as unhas curtas nas luvas pretas sem dedo. Levantou o olhar, esperando que aquilo respondesse a pergunta.
Ergueu-se e avançou para continuar a luta, mas, antes que pudesse perceber, estava no chão novamente. Dessa vez, havia caído com a cara contra ele.
– Chega – o homem baixou os punhos, em sinal de que era o fim.
Essa mera palavra entrou e calou fundo na menina. Ainda na mesma posição, porém tentando se erguer um pouco com os braços, tinha os olhos vidrados no chão e molhados, dando a eles uma aparência triste e desesperada.
Não. Não podia ser o fim.
A despeito das dores e de tudo que a agonizava no momento, empurrou o pé contra o solo, forçando-a a se levantar e ir para frente. Imediatamente, tentou acertar um soco.
– Pare com isso agora! – o cara reclamou, enquanto se defendia, contudo a menina não ouvia. Na verdade, ouvia e ouvia muito bem, mas ignorava profundamente.
Num último ato de frustração, despejou ali quase todo o seu conhecimento e tentou de tudo com uma fúria inexplicável. Os seus movimentos estavam mais rápidos que o próprio pensamento, porém não conseguia parar. Parecia que, a partir do momento em que cessasse, o mundo ia desabar. E ela também.
Tentou pular para acertar um chute no peito dele, mas as suas coxas a impediram, praticamente gritando de impotência, de modo que apenas a fez tombar um pouco para trás. Foi nesse momento que sentiu de novo aquele gelado lhe subir por todo tronco até chegar à garganta. Tentou engolir a sensação, todavia ela continuava ali, queimando-lhe o peito e a sufocando. Ergueu o punho e o usou, mas o rapaz desviou. Tentou novamente com a outra mão e teve o mesmo resultado. Repetiu esse processo até não agüentar mais, claramente cansada e sem forças, sem perceber a expressão do homem piorar cada vez mais.
Ele segurou os dois punhos dela, olhando-a nos olhos com compaixão, porém tendo um sorriso triste nos lábios. Por um momento, ela parou e o olhou. Viu aquele olhar e imediatamente entendeu o que havia ali. Só que não queria compreender isso.
Não podia compreender. Se ela parasse, o mundo ia desabar.
Podia estar com as mãos literalmente atadas, todavia ainda tinha as pernas. Jogou-as para o ar, a fim de se livrar dele, porém o movimento saiu desajeitado e sem sucesso. A garota agora lutava para se libertar e o cara começava a ficar um tanto quanto nervoso. Fechou os olhos com força e pôde sentir as lágrimas que estavam escondidas ali. Imediatamente, sentiu aquele gelado lhe subir à garganta de novo. E pensou que ia dominá-la dessa vez. Arregalou os olhos involuntariamente e foi inevitável que ficasse mais pálida. O homem percebeu isso.
Depois de muito esforço, conseguiu se soltar e se preparou para lançar um último soco, uma última esperança. Havia determinação em seus olhos , porém logo ela foi substituída por pânico, quando percebeu que aquela sensação já estava acima de sua garganta. Abriu a boca sem perceber, forçando para não vomitar ali, e gemeu ao sentir que ia engasgar. O rapaz, já sem paciência e escolha, aplicou-lhe um último golpe nas costas, de modo que ela foi contra o chão mais uma vez e com certa brutalidade, sentindo o gelado dele bater contra o seu peito em chamas.
– , chega! Não dá mais! – ele gritou.
Contudo, o que atingiu os ouvidos dela foi mais intenso.
Por um momento, finalmente, depois de quase meia hora naquela luta, a menina parou. O silêncio era impecável. Tudo que podia ouvir eram os próprios gemidos, prontos para virarem o início de soluços. O chão já tinha se tornado uma imagem confusa e suas mãos eram dois borrões pretos. Não havia mais como segurar. As lágrimas começaram a descer, acompanhando os gemidos que ficavam cada vez mais fortes. Fechou as mãos em punhos mais uma vez, antes de apoiar a testa sobre elas e começar a chorar aos soluços.
O mundo havia desabado.
Fechou o pequeno armário de metal, ouvindo o barulho que causou com atenção. Respirou fundo. Prendeu o cabelo num rabo desajeitado e se virou para o espelho atrás de si no vestiário. Aproximou-se um pouco mais. O agasalho vermelho estava um pouco aberto e o decote da regata era baixo, de modo que conseguia ver a marca. Colocou a mão um pouco trêmula sobre ela e passou por ali o dedo, quase traçando um caminho. A cicatriz já estava branca, mas a dor ainda era muito viva.
Sempre que sentia a saliência sob seus dedos delicados, lembrava-se da notícia. Lembrava-se da voz de seu pai. Lembrava-se do médico dizendo os termos complicados e apontando incessantemente para um exame. Lembrava-se de sua confusão. Lembrava-se da sensação de estar diminuindo e afundando naquela cadeira acolchoada.
Lembrava-se do momento em que o médico disse a palavra “cirurgia”.
Imediatamente, parou os pensamentos e puxou o zíper do casaco, cobrindo a marca. Pegou a bolsa branca e se dirigiu à porta com passos firmes. Passos ritmados.
Ao sair, estava em frente ao mesmo ringue de antes. O homem com quem lutava estava sentado em sua beirada, os braços cruzados, como se a esperasse sair dali. Ele se levantou.
– Sabe que odeio isso tanto quanto você – o rapaz disse, indo em direção a ela e ainda tendo os braços na mesma posição.
– Não entenda mal, mas não sei se você realmente entende – a garota mexeu na alça da bolsa um pouco nervosa. Ainda não conseguia levantar o olhar. – Quanto tempo acha que levo para voltar?
– Eu não sei se você vai voltar – ele disse, vendo imediatamente o baque daquilo na menina. – Desculpe-me, porém alguém precisava lhe dizer isso.
Os olhos dela espelhavam espanto e incredulidade.
– Mas... O quê? Não. Não, não pode ser. Não acredito que só por isso... – balbuciava sem perceber.
– – o homem chamou a atenção dela. A garota ergueu a cabeça. – Acabou.
Nunca uma simples palavra significou tanta coisa para ela.
A menina suspirou pesado, recusando-se a chorar de novo.
– Sabe que nunca vamos nos esquecer de você... – ele disse, abraçando-a em seguida. Ela retribuiu, apertando com força. – Pode vir visitar sempre que quiser. Vai ser muito estranho não tê-la gritando por aqui – foi inevitável que os dois rissem um pouco.
– Vou falar com o médico. Ele deve saber de alguma maneira de me fazer voltar – na volta do abraço, a garota começou a dizer. Era como se falasse para si mesma. O rapaz colocou uma mão em seu ombro com um olhar quase que paterno.
– Você é uma excelente lutadora. É determinada, inteligente, sanguinolenta... – fechou os olhos com um sorriso bobo, rindo fraco. – Irritadinha...
– Ok, ok. Já entendi. Sou um perigo para a humanidade – deu um soco fraco no homem à sua frente, ainda com aquele sorriso bobo, mesmo que um pouco mais fraco, agora no seu rosto. Ele não desviou o olhar.
– Você vai superar. É muito forte – pegou nos dois ombros dela. – Vai conseguir conquistar tudo que quiser.
– Obrigada, Sam – ela apenas conseguiu responder isso.
Com um leve tapinha nas costas, a menina se dirigiu à saída, abraçando-se como que para se proteger da friagem. Só que não estava com frio nenhum.
Quando já estava para atravessar para o lado de fora, um grito a parou.
– Ei! – ela se virou para trás. – Cuide-se.
A garota encarou um pouco, contudo logo sorriu. Em seguida, fechou os olhos, soltando um pequeno riso abafado, ainda com o sorriso na face.
Já em casa, estava sentada de pernas cruzadas no chão do seu quarto, enquanto brincava com os próprios polegares. Ouviu alguém bater na porta e mandou entrar. Viu a cabeça de seu pai adentrar o local, logo em seguida indo o corpo todo.
– Oi – a menina lhe respondeu com um sorriso singelo. – Como foi?
– Foi... – olhou para o lado, pensando na resposta. – Foi interessante.
Ele se sentou no chão junto com ela.
– O que você quer fazer? – a garota lhe respondeu imediatamente com um olhar confuso.
– Como assim o que quero fazer? Realmente não consegue enxergar? – o pai riu com os nervos da filha.
– Você não entendeu. Ficar aí sentada não vai lhe fazer bem nenhum. Precisa escolher outra coisa.
A menina ergueu as sobrancelhas.
– Outra coisa? Está falando sério? – o tom de voz dela aumentou. – Claro. Ótima idéia. Quer saber? Que tal atletismo? Aposto que a merda do meu coração vai agüentar! – quando terminou, já estava aos berros. O pai apenas a encarava com a expressão vazia.
– Sabe, , não existem apenas atividades físicas – a menina respirou fundo e desviou o olhar. – Você pode fazer tantas coisas. Pode pintar, cantar...
– Nenhuma das opções me agrada – ela se levantou rapidamente, saindo do quarto e descendo as escadas. O pai foi atrás dela.
– Pare com isso. Deve haver algo! – os passos dos dois podiam ser ouvidos claramente.
– No dia em que tiver alguma idéia, aviso – dito isso, saiu de casa. O médico disse que caminhadas controladas lhe fariam muito bem, então podia praticá-las.
O pai ficou ao pé da escada, assistindo à cena da porta ser fechada com um baque seco. Por um momento, um sorriso surgiu em seus lábios. Havia tido uma idéia.
O vento levemente gélido batia contra o seu rosto. O movimento era constante e a menina tinha os braços firmemente travados em torno de si, mas isso não diminuía a sensação de ter o corpo esfriando cada vez mais. Até o indício de suor lhe parecia gelado. Sentia a música passando por seus ouvidos, tirando-a completamente da realidade, deixando ali apenas um corpo se movendo. Um corpo se movendo com um coração pressionando com força o peito.
Já com os lábios um pouco secos, chegava perto de casa e ia em direção à entrada. Abriu-a, sentindo um arrepio ao sentir a maçaneta fria contra a mão quente. Isso porque estava sentindo frio há pouco. Que contradição. Fechou a porta com o pé e arrancou um dos fones do ouvido, desligando o aparelho. Podia ouvir o pai da cozinha.
– ? – escutou uma voz quebrar o silêncio.
– Olá – ela já estava na cozinha quando respondeu isso. O pai lia o jornal na mesa. Parecia mais concentrado em parecer que estava lendo do que propriamente lê-lo. A garota resolveu ignorar e foi pegar um copo de água.
– Ei... Lembra-se da nossa conversa sobre você ganhar um carro? – o homem disse, baixando o jornal e espiando de leve por cima desse.
– Claro. E também me lembro muito bem da minha resposta – ela respondeu, despejando a água no copo de vidro.
– “Não gosto de dirigir. Se quer gastar tanto dinheiro assim, compre, sei lá, um piano. Seria mais útil” – ele repetiu as palavras da filha na época, afinando um pouco a voz e voltando os olhos ao jornal. Riu um pouco quando terminou. – Uma pergunta... Por que um piano?
– Eles têm quase o mesmo preço de um carro e também são grandes, mas ao menos são elegantes.
– Certo – fechou o jornal, colocando-o na mesa e se levantando em seguida. – Bem, já que vai ter um piano em casa, você precisa ao menos saber tocá-lo, não?
A menina franziu as sobrancelhas, ainda virada para o balcão em que tomava água. Abandonou o copo ali e se virou.
– Mas... Hã?
– Vá tomar banho e se trocar. A sua aula começa daqui a duas horas e você ainda precisa chegar lá – dito isso, saiu da cozinha. A filha o encarava com cara de tacho.
– Mas... Pai! Pai, volte aqui! – correu até a sala e o parou, enquanto esse subia as escadas. – Do que está falando?!
– Inscrevi você em aulas de piano – ele dizia com um sorriso no rosto. – Achei que ia gostar – riu abafado com os olhos fechados. Ela ainda estava incrédula.
– Porém, assim, sem me consultar?! – a voz da menina chegava a desafinar.
– Era para ser uma surpresa. Como poderia consultar você?
– ARGH! – ela puxou um pouco os cabelos e deu as costas ao pai. Andou alguns passos e parou. Respirou fundo, lembrando-se das lágrimas de mais cedo. – Onde é o lugar?
– Na rua de baixo. Anotei o endereço direitinho numa folha que está na sua cômoda.
Mais uma vez andando na rua, agora tinha as mãos encaixadas nos seus bolsos. sentia o vento bater contra seu rosto, dessa vez não mais com um baque gélido. A sensação de ter os fios de cabelo tirados pela corrente de ar de sua testa e de seu pescoço lhe agradava. Usava um short jeans branco com uma regata também branca, mas com detalhes em vermelho e preto. As alças de seu sutiã preto apareciam um pouco e tinha apenas o lado esquerdo de seu cabelo preso com uma presilha.
Andava com calma e sem pressa até o local da aula. Tinha a mente perdida em dúvidas. Imaginava todos os tipos de cenários e situações possíveis que poderiam acontecer ali. Será que iam achá-la estranha? Ou eles seriam os estranhos? E se fosse descoordenada demais para tocar piano?
Tinha todas essas e mais mil perguntas rodando na sua cabeça, sem respostas, quando chegou ao local. Era uma casinha azul, pequena e singela. Olhou mais uma vez o papel em suas mãos, confirmando o endereço. É, não havia errado o caminho. Guardou a anotação no bolso do short, adentrando o local.
Imediatamente, sentiu a diferença de temperatura com o ar condicionado. Abraçou-se um pouco como reação. Talvez não devesse ter vindo com roupas tão curtas. Avistou a moça do atendimento e foi falar com ela com um sorriso tímido no rosto.
– Oi – atraiu o olhar da mulher, antes baixo numa folha, para si. – Estou inscrita para uma aula de piano que vai ter daqui a pouco...
– Ah, sim. Qual o seu nome? – ela pegou uma pequena pasta, começando a mexer em fichas.
– .
A garota assistiu à mulher remexer na pasta por uns segundos, até encontrar certa folha e olhar para ela. Dirigiu o dedo indicador para a sua esquerda, apontando uma das três portas escuras.
– Pode entrar ali e se sentar. Sua aula vai começar daqui uns minutinhos.
sorriu e seguiu para o local. Tocou na maçaneta e esperou um pouco. Não havia nenhum barulho vindo dali de dentro. O seu professor provavelmente ainda não tinha chegado. Girou o objeto em suas mãos e empurrou a porta. Realmente, não havia ninguém ali ainda. Apenas um armário mediano em um dos cantos, uns instrumentos musicais alternativos no chão, junto à parede do lado direito, e um grande e belo piano de cauda negro bem no centro da sala. Ela era bem iluminada por haver muitas janelas e tinha as paredes brancas.
Entrou e fechou a porta atrás de si. Encarou um pouco a sala e depois andou mais, indo em direção ao piano. Chegando a ele, passou a mão sobre a superfície negra, lisa e brilhante. Passeou um pouco com ela sobre o mesmo, andando em volta dele, até que parou perto do banquinho acolchoado em frente à parte do teclado. Encarou-o um pouco e por fim se sentou, acomodando-se.
Passou alguns segundos que lhe pareceram minutos encarando todos os cantos da sala. Mexendo os pés ansiosamente entre o banquinho e o piano, foi vencida por um ímpeto de curiosidade e levantou a tampa que guardava o teclado, imediatamente observando as teclas brancas e pretas tão elegantes e brilhantes. Roçou o dedo de leve em uma das brancas, sentindo a superfície dela também. Era mais lisa ainda. Praticamente sem perceber, afundou ali o seu dedo, fazendo ressoar pela sala o som que aos poucos mais tarde foi sumindo.
– Uma aluna curiosa. Interessante – ouviu uma voz atrás de si e rapidamente se virou para a porta, sem perceber que tinha uma expressão um pouco assustada no rosto.
Parado contra a parede ao lado da porta agora fechada, estava um garoto provavelmente da sua idade que segurava uma pasta cinza um pouco transparente com uma das mãos, tendo a outra dentro de um dos bolsos da calça. Ele tinha os cabelos , longos o suficiente para ficar passando os dedos à vontade, e os olhos . Usava uma calça jeans, blusa branca com uma camisa por cima aberta, e tênis. O garoto possuía todas essas características, mas o que provavelmente mais marcou a menina no momento foi o sorriso enigmático que o rapaz usava.
A garota rapidamente juntou as mãos, sem saber o que fazer por estar despreparada para aquela situação.
– Não precisa ficar nervosa – ele continuou, saindo da parede e andando até o piano. – Gosto de pessoas curiosas – dirigiu o olhar a ela. Foi nessa hora que a menina teve plena certeza de que deveria ter vindo com roupas mais discretas. – Você é... . Certo? – já sentado no mesmo banquinho que ela, o menino olhava com atenção uma folha na sua mão, logo em seguindo colocando os olhos nela de novo. assentiu com a cabeça. – , seu professor – estendeu a mão para a garota, esperando um cumprimento que logo foi realizado.
– Oi... Você é mais novo do que eu imaginava – disse, enquanto ainda apertava a mão dele. Imediatamente, repreendeu-se por ter feito aquela pergunta, porém agora ela já havia sido dita.
– Todos dizem isso – estralou os dedos e logo os colocou sobre o teclado já há um tempo descoberto. – Pronta? – acenou com a cabeça, voltando o olhar para as teclas. – Conhece as notas musicais?
– Só de recitar.
– Certo – o garoto deu um pequeno riso abafado. – Então vamos começar sabendo o que é o que aqui.
Ele mostrou quais teclas eram os famosos dó, ré, mi, fá, sol, lá, si para ela. Em seguida, tendo certeza de que a garota havia decorado a seqüência, pediu para que tocasse cada uma das notas, a fim de se familiarizar com os sons. A menina obedeceu, apertando cada tecla com calma e ouvindo com atenção cada som que era reproduzido. Fazia isso com um pouco de tensão, às vezes sentindo que apertava com um tanto de força demais. A ansiedade que ela sentia entre uma nota e outra, esperando o som da anterior acabar, era evidente. notou isso, levantando sutilmente uma de suas sobrancelhas.
– Você não está muito acostumada a isso, não é mesmo? – ele disse de braços cruzados, ainda observando atentamente o movimento dos dedos da menina.
– Digamos que realmente o meu conhecimento de piano é quase zero... – acabou rindo um pouco de si mesma, enquanto se concentrava em sua tarefa. – Na verdade, meu conhecimento artístico não é lá grande coisa.
– Mas gosta de música? – o menino perguntou e a garota o encarou por um momento.
– Bem, quem não gosta? – respondeu com uma pequena risada.
– Realmente, são muitos os que gostam, porém poucos os que apreciam. É uma pena – quem olhasse de relance diria que a expressão dele estava inalterada, contudo os que olhassem nos seus olhos perceberiam alguma coisa de estranho.
ficou um pouco confusa com o que ele disse, mas resolveu voltar a se concentrar inteiramente no piano à sua frente.
Terminado o que a menina estava fazendo, tirou uma folha da pasta e a colocou no apoio.
– Sua primeira música – o rapaz disse, olhando para ela e dando mais uma vez aquele sorriso enigmático. – Vou tocar uma vez. Preste atenção porque depois você vai tentar repetir. Ok?
Esperou-a assentir e começou a tocar. A melodia era lenta e bem simples, porém ainda assim bonita. Era bem curta também e logo era a vez da garota tocar. Essa colocou os dedos no teclado de novo. A seqüência a que tinha acabado de assistir estava meio nebulosa na sua cabeça, então foi repetindo a música de um modo bem mais lento. percebia sua dificuldade, então a ajudava a se lembrar das teclas certas constantemente.
– Então, ... – ele tinha medo de estar desconcentrando a menina, mas uma aula de piano sem falar nada era muito chata na opinião dele. – O que a fez querer aprender a tocar piano?
– É uma longa história... – ela respondeu com um projeto de sorriso, enquanto tentava fazer a seqüência de notas na sua cabeça ter algum sentido.
– Essa é só sua primeira aula, sabe? – ia apertar uma tecla errada, mas logo moveu o seu dedo delicadamente para a certa.
– Você também é bem curioso, não? – olhou-o de relance com um sorriso um tanto irônico.
– Curiosidade é legal – o menino respondeu com a mão sobre a dela, movendo-a pelo teclado e a fazendo tocar como se fosse uma marionete. – Não vai me contar mesmo? – o garoto tinha os olhos fixos nas mãos dos dois, concentrado em não errar a música.
respirou fundo.
– Eu lutava – a garota rompeu o silêncio rapidamente estabelecido e ele a encarou com um pouco de surpresa. – Mas tive que parar... Meu pai não me queria parada mofando em casa, então achou que eu ia gostar de aulas de piano. É meio que basicamente isso.
A essa hora, a vez de tocar já havia acabado.
– Acho que vou passar a ser menos curioso com você – disse, ainda um tanto chocado, desviando rapidamente o olhar da aluna para o piano.
– Não é assim também – ela riu um pouco gozado. – Precisa de bem mais que isso para me deixar com raiva.
– Fico feliz em saber disso – a menina riu da reação dele. – Bem, vamos de novo – o rapaz recebeu um olhar surpreso por parte dela. – É assim mesmo. Você vai repetir as músicas até elas saírem bem legais.
Com a seqüência agora um pouco mais firmada em sua cabeça, partiu para o piano mais uma vez.
– Isso... O começo já está bom – motivou a garota, que dessa vez estava determinada a tocar impecavelmente. Vendo que ela não estava mais com as mesmas dificuldades, voltou a falar. – Por que teve que parar de lutar?
– Eu... Operei o coração – apertou uma das teclas com força demais, fazendo o som sair um pouco mais forte. – Tentei lutar mesmo assim depois que estava de alta, mas não dava. Eu ia acabar morrendo se insistisse mais agora – a última frase saiu quase um sussurro. Os seus olhos estavam tão baixos que o professor podia se perguntar se a menina estava realmente enxergando o piano. a olhava com pena.
– O que você tinha no coração? – ele a observou desacelerar o ritmo da música aos poucos, até que estivesse quase parada.
Por fim, ela parou de tocar.
– Eu não sei.
Tal resposta surpreendeu o garoto. Surpreendeu até demais. voltou a tocar no ritmo certo depois de alguns segundos.
– Como assim você não sabe? O médico ou alguém, sei lá, não lhe disse?
– O médico explicou para mim e meu pai... Porém, não fiz muita questão de entender.
– E deixa a abrirem assim sem ao menos saber o que está acontecendo? Você é maluca?! – a garota fez soar as últimas notas mais lentamente. Levantou o seu olhar antes concentrado no teclado para , que no momento estava com uma expressão incrédula no rosto. Deu uma pequena pausa.
– Antes o purgatório do que o inferno – e enfim tocou a última nota, cujo som ressoou com boa profundidade. Os dois se encararam por um tempo até que ela quebrou o silêncio. – É como diz o ditado... A ignorância é uma bênção.
– Mas não acha que, se soubesse o que tem, poderia achar mais facilmente modos de fazê-la voltar? – ele retirou a folha do apoio e a colocou na pasta, procurando por outra. – Eu ia sentir sua falta aqui, porém pelo menos você não estaria em tanto sofrimento – ela riu com o modo do garoto dizer aquilo.
– Sim... Só que as chances de descobrir que não há saída são as mesmas.
retirou a folha da pasta e observou a garota. Os olhos a analisavam de um jeito aparentemente frio, contudo se podia ver bem no fundo deles que o menino se importava.
– Certo... A matemática realmente está do seu lado. De qualquer forma, espero que você melhore – sorriu agradecida, sentindo um pouco de esperança depois de muito tempo. – E que venha me visitar, mesmo que volte a lutar. Você parece legal. Agora vamos para a sua segunda música. Emocionante, não? – se permitiu soltar uma risada. Ele tinha um jeito realmente engraçado com as palavras.
– Bem, e com isso a sua primeira aula de piano termina. Como se sente? – acabava de se levantar do banquinho, carregando consigo a mesma pasta cinza de antes.
– Foi bem... Mais divertido do que eu pensava – a garota disse um pouco tímida, sendo sincera, enquanto coçava de leve a nuca.
– Que bom. A sua próxima aula comigo é só... – o rapaz consultou a folha em que verificara o nome dela. – Daqui a dois dias. Até lá – estendeu a mão livre para a menina. a apertou e, quando terminaram, o garoto abriu a porta, esperando que ela passasse.
– Damas que lutam primeiro.
A garota riu com aquele modo esquisito de cavalheirismo e passou, indo para a saída. Sussurrou um “tchau” para a mulher da recepção que a atendeu mais cedo e por fim acenou uma última vez para , quando já estava na porta. Ele respondeu com outro aceno e ela se virou, caminhando calmamente de volta para a sua casa.
Depois de responder ao interrogatório de seu pai sobre como havia sido a aula, subiu ao seu quarto e imediatamente foi tomar outro banho e trocar de roupa. Tinha esfriado bastante desde a hora que saíra de casa.
Já debaixo da água quente que descia do chuveiro, tinha as músicas que tinha tocado mais cedo rodando por sua cabeça.
Realmente, um piano para ela seria bem mais útil que um carro.
Estava terminando de ensaboar o pescoço quando sentiu alguma coisa. Limpou a espuma do peito e reviu mais uma vez a cicatriz. Havia por algum motivo se esquecido de que ela existia depois que terminou aquela conversa com . Com isso, automaticamente se lembrou do batimento irregular que por vezes sentia seu coração realizar. E, num trem de idéias, voltou aos mesmos pensamentos que nadavam em sua cabeça antes de ir para a aula. Porém, dessa vez, havia uma idéia diferente que surgiu dentre as suas antigas dúvidas.
– Como...? – se perguntou, enquanto fechava a torneira e encerrava o banho.
Se alguém quisesse entender melhor o que acontecia com a saúde dela, tinha que ir falar com o pai da menina. Ela não só estava às escuras quanto ao que acontecia, como omitia a todo custo o pouco que sabia. Quando sua avó perguntou, a garota mudou de assunto. Quando suas amigas ligaram depois da operação, ela mentiu. Na verdade, chegou a perceber que não tinha explicado com palavras claras nem a Sam, seu treinador, o que tinha acontecido. Ele só sabia da verdade porque foi diretamente perguntar ao pai dela, quando percebeu que não ia arrancar nada de . A menina não conseguia admitir nem ao próprio reflexo no espelho o motivo de ter operado sem saber o seu problema.
E, apesar de tudo, em cerca de dez minutos havia despejado tudo que sabia e não sabia de sua situação a numa simples conversa.
Por que havia sentido tanta confiança nele? Ele podia parecer legal, mas isso não era o suficiente para justificar aquilo que, vindo dela, não fazia o menor sentido de ter acontecido.
Já com o pijama colocado e o cabelo solto, caminhou até o centro do seu quarto. Olhou para as fotos que tinha em cima da escrivaninha com carinho. Um era dela com o pai, porém todas as outras, que eram nas quais ela prestava mais atenção no momento, eram de sua época de lutadora. Tentava, dessa vez, encarar os momentos ali marcados com nostalgia, e não tristeza. Só porque havia chances de não voltar, não quer dizer que as de melhorar fossem menos prováveis. Certo?
Riu um pouco consigo, fechou os olhos e foi ler um livro na cama, enquanto o jantar não ficava pronto.
É, se voltasse a lutar, com certeza iria visitar .
– Você tem aula de piano hoje? – acordou de seus pensamentos com a voz de seu pai. Já era o dia seguinte, fim da tarde. Ela estava largada preguiçosamente no sofá, vendo TV, quando ouviu a pergunta.
– Não... Só depois de amanhã – mexeu algumas vezes no controle, mudando os canais, até que desligou o aparelho. – Pai, vou sair para andar um pouco. Ainda não caminhei hoje.
– Certo. Não demore, que já está começando a escurecer – a garota concordava com leves grunhidos, enquanto saía do sofá. – Leve um casaco. E seu celular – ela ia subir as escadas para pegar uma blusa, contudo parou abruptamente.
– Meu...? Meu Deus!
– O que foi?
– Meu celular! – a menina correu rapidamente até seu quarto e mexeu um pouco nas coisas. Quando terminou, seu pai já estava na porta do recinto, olhando-a com certa confusão. – Não o vejo desde ontem e agora não encontro! Acho que o esqueci na aula ontem – o homem olhou para o relógio de pulso e depois para a filha.
– Bem, se você se apressar, acho que consegue chegar lá a tempo de recuperá-lo ainda hoje. Parece que eles fecham às seis – ela pegou no pulso dele, olhando o relógio ali.
– São cinco e meia – agarrou um casaco preto que estava pendurado na cadeira. – Vai dar tempo se eu me apressar. Tchau, pai!
– Tchau. Mas, , nem pense em sair correndo! – ele gritou do alto da escada.
– Não sou suicida, pai! – foi a última coisa que a garota disse antes de bater a porta.
No jardim de casa, parou e se lembrou de que nem olhara para ver se trajava roupas adequadas. Usava uma saia preta simples e uma blusa de manga cumprida listrada com vermelho e verde escuro. Estava somente de meias três quartos, que combinavam com sua blusa, em casa e por sorte calçou um tênis ainda em condições de ser usado em público, apesar de já um pouco gasto. É, suficiente para não passar vergonha.
Pôs o casaco já andando, a fim de não perder mais tempo, e foi em direção à casinha azul de antes.
Chegando lá, pôde ver de longe e pela entrada de vidro que não havia à primeira vista ninguém na recepção. Apertou um pouco o passo e, quando chegou perto da porta, tentou empurrá-la. Não estava fechada ainda. Conforme entrou, pôde ouvir barulhos e percebeu que na verdade tinha alguém, sim, ali. Ela provavelmente só estava agachada e mexendo em algo.
se aproximou, um pouco nervosa e cansada da caminhada, e começou a falar.
– O-olá... Desculpe incomodar. Sei que vocês estão fechando, mas é que acho que... – no meio de sua frase, a pessoa que estava ali se levantou.
Cabelos e olhos .
Os dois se encararam por um momento.
– Oi – quebrou o silêncio, um pouco surpresa e um tanto tensa.
– Oi... Você tinha aula hoje e eu esqueci? – perguntou com uma expressão sem jeito, coçando discretamente a cabeça.
– Não...! Minha aula é só...
– Depois de amanhã, né?
– Exatamente – ela respondeu, não conseguindo evitar um sorriso. – É que... Acho que esqueci meu celular aqui ontem.
– Ah! – sua expressão mudou e ele pareceu mais animado. Mexeu numa cestinha amarelo claro que tinha no extremo canto da mesa. – Seria esse aqui? – e tirou dali um aparelho.
– Isso! – pegou feliz o aparelho das mãos dele. – Obrigada por guardar.
– Imagine. Pensei que podia ser seu... – desligou o abajur de mesa que estava ligado. – Porém, não tinha como ter certeza só de ver. E não gosto de mexer nas coisas alheias, seja qual for o motivo. Não é nada legal.
– Pensei que você fosse curioso – a menina guardou o celular no bolso do casaco.
– E sou mesmo. Só que às vezes ficar na curiosidade é mais divertido – não conseguiu evitar rir daquela frase. O menino apenas sorriu aquele sorriso que já tinha se tornado tão típico dele em tão pouco tempo. – Precisa de mais alguma coisa?
– Não, não... – a garota começou a andar de costas em direção à porta. – É que meu pai me mata se saio sem o celular.
– Compreensível – o garoto colocou a mochila em um dos ombros e girou a chave nos dedos. – Ele está esperando você aí fora?
– Ahn? Ah, não. Eu vim a pé mesmo.
– Isso não faz mal para o seu coração? – o rapaz dirigiu seus olhos tão intensos a ela, enquanto abria a porta de vidro.
– Minha casa é bem perto... E não posso mesmo é ficar pulando ou correndo. O médico disse que posso fazer caminhadas não muito exageradas... Que seria bom – ele a esperou passar para o outro lado e depois foi sua vez, fechando a porta atrás de si e a trancando.
– Certo. Então não precisa de alguém para tomar conta de você, né? – o garoto perguntou, dirigindo-lhe o olhar sob alguns fios de cabelo.
– Bem, não... – a menina tentava entender a lógica daquela pergunta.
– E de alguém para fazer companhia?
A garota não conseguiu evitar e deixou a surpresa transparecer em seu rosto. Os olhos piscavam várias vezes, encarando a figura à sua frente. continuava a observá-la, esperando a resposta, enquanto sorria ao seu modo. O sorriso não mostrava os seus dentes, contudo tinha certeza de que, se ele o abrisse, veria ali o sorriso do Gato de Cheshire.
Esse
grin assustaria muita gente, mas por algum motivo a atraía.
Ela sorriu de leve, prendendo o pequeno riso que queria escapar. Juntou as duas mãos atrás do corpo, automaticamente encolhendo um pouco os ombros. Ergueu de leve a cabeça, enquanto girava em seus calcanhares, fazendo a saia rodar e o cabelo balançar um pouco ao ficar de costas. Deu dois passos nessa direção, quando virou o rosto para o menino atrás de si, ainda tendo estampado o sorriso que só ficava mais sapeca com a franja lhe caindo aos olhos.
– Por aqui o caminho é mais longo. Vamos?
– Não acredito...! Pare. Você deve estar brincando! – não se conformava. Tinha uma das mãos na alça da mochila e a outra no bolso de sua calça.
– É sério! O cara resolveu puxar meu cabelo na luta. Só faltava a placa pedindo para eu quebrar o nariz dele – a menina narrava com os braços cruzados.
– Com um soco eu até entenderia, mas num chute?
– Você não tem idéia da raiva que eu estava sentindo na hora – os dois davam risada. – Admito que depois não consegui andar direito por uns três dias...
– Cara... – o garoto desviou o olhar um pouco para o céu, como se refletisse sobre o que tinha acabado de ouvir. – E o sujeito sobreviveu?
– Ele ficou bem. Nem ganhou uma cicatriz.
– Adoro finais felizes – a menina riu do comentário, sorrindo com gosto. – Ei, posso perguntar uma coisa?
– Tem minha permissão.
– Por que você escolheu luta? – , por estar uns passos à frente de , nessa hora se virou, começando a andar de costas, enquanto falava com ela.
– Digamos que eu era um pouco briguenta na escola quando era mais nova... – a menina tentava andar na linha de junção dos pisos de pedra que formavam o caminho que passava pelo meio do parque, enquanto batia ritmicamente as mãos juntas no fim de suas costas. – Meu pai então percebeu que sou um pouco intensa por natureza e me pôs para lutar antes que eu acabasse expulsa. E não se preocupe. A primeira coisa que aprendi no ringue foi a tentar me controlar.
– Respondeu minha segunda pergunta – a garota riu fraco, virando o seu olhar para o rapaz e mudando a posição de seus braços, de modo que eles pendulavam ao lado de seu corpo. – Seu pai deve adorar ter uma filha que luta. Aposto que ele sente um puta orgulho de você.
– No começo, ele estranhou bastante. Ficava se perguntando onde estava com a cabeça quando colocou a filha para treinar num lugar cheio de homens suados se matando. Mas então começou a vibrar quando me via acertando um soco em cheio, levantando-me depois de uma surra, com fogo nos olhos quando ficava nervosa – ela contava tudo isso com o olhar vago no horizonte. ouvia atentamente, enquanto olhava para a menina. – Depois que passou aquela primeira impressão, meu pai passou a contar para todos os amigos sobre como a menininha dele nocauteava caras do tamanho deles – soltou um riso fraquinho. – Ele me abraçava pelos ombros, dizendo isso com um sorriso enorme no rosto... – ergueu o rosto antes um pouco baixo. Suspirou um pouco pesado. – Como você faz isso?
– Eu estou fazendo alguma coisa? – levantou uma das sobrancelhas.
– Depois que fiz a cirurgia, não consegui mais ficar falando sobre meu passado, seja com quem fosse... Admito que às vezes tinha medo até mesmo de responder minhas próprias perguntas sobre esse assunto. Louco, eu sei. Porém... – ela parou um pouco de caminhar e virou seu corpo na direção dele. – Só na nossa primeira aula, você me fez falar em menos de quinze minutos. Em apenas uma caminhada, fez-me contar quase metade das minhas lembranças. Qual o seu truque?
– Eu... – coçou um pouco a nuca, deixando o outro braço pender ao lado do quadril. – Não sei. Pareço tão confiável assim?
– Acho que parece... – pensou na própria hipótese, virando um pouco a cabeça. – Aliás, desculpe-me por ficar enchendo os seus ouvidos em tão pouco tempo – voltou a andar, de modo que o garoto também recomeçou a caminhada logo em seguida. – Primeiro fico me lamuriando dos meus problemas e depois conto quase metade da minha vida. Nem deixei você falar.
– Imagine. Sabe, , dizem que a mente é infinita, porém, quando se trata de problemas, ela tem um limite. E gosto de ouvir memórias. É como experimentar os sentimentos dos outros. É bem legal – ele olhou para os próprios pés.
– E você não gosta de contar as suas? – a menina perguntou, fitando o menino com curiosidade.
Eles pararam de andar novamente, dessa vez porque travara abruptamente. Quanto mais a garota observava, mais ela tinha certeza de que a expressão dele beirava o susto.
– O que foi? – a menina perguntou, curiosa para saber o que havia causado aquele efeito sobre o rapaz.
– Ah, nada... – o garoto pareceu voltar à realidade. – É que acho que você é a primeira pessoa a me perguntar isso – ela acabou por se surpreender um pouco.
– Sério? Você nunca contou alguma história sua para alguém? – o menino passou a mão pelos cabelos, desviando de modo tênue o olhar.
– Digamos que eu também nunca fiz muita questão... – soltou levemente o ar que havia ficado preso em seus pulmões com a tensão, subindo o olhar ao nível de antes. – Não há nada de mais no meu passado que possa interessar a alguém.
– Eu estou interessada. Não vale? – ele sorriu um pouco torto, deixando à margem de dúvidas se o que demonstrava era agradecimento ou frustração. – Vamos lá. Quando você pensa na sua infância, o que primeiro lhe vem à cabeça?
inspirou o ar e o prendeu um pouco, tomando como campo de visão o céu estrelado para que pudesse vagar em seus pensamentos. o observava com bastante atenção, aguardando o menor movimento que pudesse servir como sinal, até que o viu abrir um pequenino sorriso em meio a uma expressão que por um momento jurou parecer dolorida.
– Bem, quer ouvir uma coisa idiota sobre mim? – ele moveu o olhar até ela, que concordou com satisfação. – Venha cá.
começou a seguir em direção a uma árvore e a menina rapidamente o alcançou. Era a alguns metros do caminho feito exatamente para andar e logo estavam pisando na grama. Quando chegaram lá, o garoto colocou a mochila no chão, sentando-se em seguida com as costas em parte contra o tronco, de modo a deixar um lugar vago ao seu lado. O rapaz bateu com a mão nele.
– Sente-se aqui – obedeceu, aproximando-se e se acomodando ao lado dele, tomando o devido cuidado por estar usando saia. Uma vez pronta, ela olhou para o menino e viu que ele observava o céu novamente. Procurou com os olhos o que observava e logo estava encarando uma lua cheia e brilhante. – Quando era menor, eu achava que a lua era feita de papel.
Os olhos então deixaram de fitar o astro e desceram para a pessoa ao seu lado, que continuava olhando a mesma coisa de antes e tinha um sorriso de saudade se formando. A menina riu um pouco, voltando-se para o céu.
– Verdade? Por que você achava isso?
– Eu olhava pela janela de casa e a via sempre tão branca, tão brilhante, tão limpa... Comecei a pensar que era porque era feita de papel.
– Quando foi isso?
– Eu devia ter uns seis anos... A maioria das crianças nessa época acha que a lua é feita de queijo, mas eu achava que era de papel – colocou os braços atrás da cabeça, apoiando-a nas palmas das mãos. Riu um pouco de si mesmo. tinha as mãos relaxadas em cima de seu abdômen e estava agora um pouco esparramada no lugar em que ocupava. Apesar de haver postes de luz do parque, eles estavam praticamente iluminados pelo astro branco.
– Por que isso marcou tanto você? – a menina mexia fracamente os pés de um lado para o outro, deixando a cabeça deitar no próprio ombro, a fim de que pudesse olhar para o garoto.
– O problema não era tanto a minha teoria absurda, mas que eu simplesmente tinha cismado e ninguém conseguia me convencer do contrário! – ele virou a cabeça para observá-la.
– Ai, meu Deus – ela riu de imaginar a situação. – E demorou muito para você aceitar a verdade sobre a lua?
– Demorou meses para que achassem um jeito de me convencer. Lembro que uma noite, quando me viu sentado olhando pela janela, meu irmão veio e me disse: “a lua é grande, fica bem lá no alto e perto de um monte de planetas gigantes. Você acha que ela estaria aí até hoje se fosse frágil como papel?” – repetia as palavras gravadas em seu consciente, encarando o véu negro com contas que era o céu, enquanto tinha os olhos com uma cor diferente devido ao brilho alvo. – “Quem disse que ela não pode ser forte só por ser de papel?”... Essa foi minha resposta.
– Seu irmão não o convenceu?
– Não. Ele ficou frustrado com a minha teimosia e foi para o quarto fazer outra coisa – o menino riu da lembrança. – Só parei com isso quando meu pai me mostrou num livro que ela é feita de rochas e outras coisas do tipo – suspirou um pouco pesado. – Eu avisei que era idiota.
– Não é idiota – falou com a voz um pouco manhosa, olhando uma última vez para a lua aparentemente tão imaculada. – Acho que foi uma das lembranças mais fofas que já ouvi.
ia responder, porém, logo quando abriu os lábios, paralisou. O celular da menina tocava.
– Alô? – ela atendeu imediatamente, sabendo quem era e conseqüentemente o que viria.
–
! Já são mais de oito horas! Onde você está?! – o pai dela gritava do outro lado da linha. A garota arregalou os olhos por um instante e afastou o aparelho do ouvido, olhando o horário que marcava no canto da tela.
– Estou no parque ainda, pai. Acabei me distraindo e não percebi que já estava tão tarde – voltou o celular ao ouvido, respondendo rapidamente. Ouviu um suspiro vindo dele.
–
Tudo bem. Mas venha para casa imediatamente!
– Ok. Já estou indo – encerrou a ligação, deixando a mão com o celular cair sobre sua perna. Olhou para o menino ao seu lado. Os olhos a observavam ininterruptamente. – É, acho que você percebeu.
– Sim... Vamos – ele se levantou, usando a árvore atrás de si como apoio para uma das mãos, enquanto a outra pegava a mochila. – Eu a acompanho até lá – estendeu uma mão para ela.
– Mas você também deve estar atrasado – a menina aceitou a ajuda e se levantou num impulso. – Não precisa se preocupar.
– Não estou preocupado. Você bota pra correr qualquer um que chegar perto – riu do comentário, enquanto limpava sua saia. – Só que não é legal deixar uma garota sozinha. E minha casa fica perto da escola de música também.
– Bem, se não for atrapalhar mesmo... – eles começaram andar de novo, dessa vez na direção contrária. O único barulho que ouviam era o da grama sendo esmagada, em seguida substituído pelo de seus próprios passos no piso de pedra.
– É aqui que você mora? – o garoto perguntou quando viu que a menina desacelerava os passos e se direcionava a uma casa branca à direita deles.
– É, sim – ela parou a alguns metros da porta principal e deu meia volta, esperando que a alcançasse. – Obrigada pela companhia, tanto no passeio quanto na volta.
– Não há de quê. Foi bem divertido – o sorriso típico dele se alastrou pelo rosto. – Vejo você depois de amanhã?
– Com certeza – a garota por um momento havia se esquecido de que ele era seu professor.
– Ótimo – andou um pouco, saindo do jardim da casa e indo para a calçada. – Tchau – acenou para , quando parou e se virou para ela.
– Tchau! – a menina respondeu, acenando também.
Ele andou alguns metros e se virou mais uma vez, curioso para saber se a garota já havia entrado na casa. Vendo que estava enganado, acenou de novo. Ela respondeu, esticando o braço e balançando a mão no alto. Terminada a segunda despedida, o rapaz seguiu sem olhar para trás, enquanto a menina o via se distanciar.
Quando se cansou de observar, continuou seu caminho até a porta. Já perto o suficiente dela, girou a maçaneta e percebeu que seu pai a havia deixado aberta de propósito. Abriu-a, porém logo retrocedeu um pouco, a fim de olhar o céu uma última vez. Viu ali a lua brilhando e sorriu.
Uma lua de papel.
Ela não sabia por que, mas a idéia não lhe parecia tão absurda.
Um mês e meio se passou.
se surpreendeu ao descobrir que não era tão descoordenada assim para tocar piano. E se admirou mais ainda ao perceber o quão viva conseguia se sentir ao tocá-lo. Quando sentia os dedos pressionando as teclas e o som ressoando, nas partes certas, nos momentos certos, era como se por um instante seus músculos ficassem mais fracos, a mente se esvaísse, sua alma gritasse. Não era igualmente a mesma sensação de esmurrar alguém no ringue... E era exatamente essa a graça. Era uma versão diferente daquela energia que sentia correr em suas veias e incendiar as suas percepções.
Contudo, isso não sanava completamente a sua saudade da luta. Ela sentia falta daquele fogo arrebatador na garganta quando estava para perder o controle, da sofreguidão, dos olhos ardendo de tanta adrenalina, da sede de sangue que sentia depois de uma surra. Sentia falta de se sentir forte.
Sua amizade com cresceu muito também. Aquelas duas vezes por semana significavam mais do que apenas se aperfeiçoar no piano para ela. Era com ele que a menina tinha coragem de dividir suas dores ainda frescas, as dúvidas que a assombravam à noite, o seu grande temor de não voltar a lutar. O garoto sempre ouvia até o fim, dizia para ter calma, e quando possível a aconselhava. Como quando lhe confessou que às vezes nem as palavras a libertavam.
Ele arreganhou o seu sorriso.
– Então deixe o piano se tornar seu confidente.
Talvez fosse por isso que nunca dividira suas memórias com alguém antes. Talvez fosse por isso que tudo que revelava a ao longo das aulas fossem anedotas simplórias do seu passado.
Talvez o piano tivesse sido seu único confidente até então.
– Mas que droga! – grunhiu, quando errou a mesma parte pela quinta vez.
– Calma aí, esquentadinha – disse e pegou os dedos da mão dela. – Você está cismando em vir para cá... – levou-os até certo lugar do teclado, que era onde a menina estava errando. – Porque sabe que a próxima seqüência é aqui. Pare de ser ansiosa e esqueça isso. Concentre-se na parte que importa agora – e guiou-os para outras teclas, deixando-os ali. A garota suspirou pesado. – Vamos de novo e sem pressa dessa vez.
começou a tocar de novo, tentando controlar a própria ansiedade com porradas mentais. Quando chegou à parte que errava incessantemente, pausou, paralisada e com as mãos no ar. Era como se pensasse. Desceu enfim os dedos e tocou as teclas corretas. Ela suspirou aliviada. Estava seguindo tudo bem, até que errou uma seqüência diferente.
Afundou as mãos espalmadas no teclado, emitindo um som extremamente grave, enquanto urrava de raiva. Frustrada, apoiou ali os braços e deitou a cabeça neles. a observava com o cenho franzido.
– Hoje você está especial, hein? – ele disse, tocando-a no ombro para que a menina saísse daquela posição. – O que aconteceu? – ela bufou, enquanto se sentava corretamente. Tinha o olhar no canto baixo do lado oposto ao seu professor, como se pensasse na maneira dizer o que precisava.
– Eu achei os meus exames médicos ontem... – voltou o seu olhar para o piano. – Passei minutos me perguntando se deveria olhá-los mesmo e, quando tive coragem, não consegui entender nada. Agora isso não me sai da cabeça.
– Não lhe sai da cabeça que você não entendeu o que estava ali? Pensei que preferisse não saber qual era o seu problema – o menino perguntou, mexendo na sua pasta para encontrar uma música diferente.
– Eu li com os meus próprios olhos o que há de errado comigo. Li e mesmo assim não sei, . Sabe o quanto isso é frustrante? É como sair do limbo de olhos vendados!
– Acho que está na hora de você tomar uma decisão, – ele puxou a folha escolhida em meio às outras e olhou para a menina.
– Do que você está falando? – a garota o observou atentamente colocar a nova folha no apoio. O rapaz deixou a mão ali, virando seu olhar intenso para a aluna.
– Você quer ou não saber o que há de errado?
– Eu quero voltar a lutar.
– Adoro quando me respondem o que pergunto.
– Eu não sei, ‘ta?! – ela soltou, deixando a cabeça cair em suas mãos. – Não agüento mais ficar longe. É só isso – ficou naquela posição, esperando a ardência em seus olhos desaparecer, quando sentiu o calor de uma mão nas suas costas.
– Por que não vai fazer uma visita? Seu treinador disse que você podia ir lá quando quisesse. Não disse? – os dedos dele se retraíram um pouco, ainda nas costas dela, como se sentisse a dor da garota.
– Estar tão perto de tudo aquilo e não poder fazer nada vai ser pior ainda – a menina soltou um suspiro naquela posição. Escorregou a cabeça por suas palmas, de modo que agora elas estavam em seus cabelos. Agarrou-os com força ali. A mão de cobriu um dos punhos dela, como num pedido para que parasse com aquilo.
– Ainda tem certeza de que prefere o purgatório ao inferno? – ele falou com a voz baixa.
A menina não proferiu nenhuma resposta. Continuou ali, encolhida, só não mais puxando os próprios cabelos. O garoto tirou a mão da cabeça dela e a encarou um pouco.
– – o garoto a chamou. Passaram-se alguns segundos, mas por fim ela virou a cabeça. Para a sua sorte, não havia sinal de lágrimas escorrendo ali. Com os olhos brilhantes, encarava de baixo aquele menino de cabelos . – É só minha opinião, mas... Realmente acho que você devia descobrir qual é o problema.
Alguma coisa mudou na expressão dela, porém não se sabe o quê. Ergueu o tronco, ajeitando a postura, enquanto matinha os olhos no rapaz ao seu lado.
– Você acha mesmo? – a voz dela saiu quase num sussurro.
– Mais uma vez, é só minha opinião, porém... Sim, eu acho – ele se levantou, indo até o armário do canto da sala. A garota não entendeu o motivo, contudo não perguntou. – Digo, tem certeza mesmo de que é melhor passar uma vida toda sofrendo do que um dia ou mais de dor intensa? Isso se realmente não houver volta... – abriu o móvel, tirando de lá uma caixa de lenços de papel. – Se o que você tiver não for tão grave, é só seguir com o tratamento e depois voltar dando voadora – não conseguiu não rir do comentário besta. O menino sorriu, feliz por ter arrancado ao menos uma risada dela. Começou a andar de volta para o assento, ainda com a caixinha em mãos. – Se o que tiver for grave... Acho realmente difícil que não haja absolutamente nada que possa ser feito. Não vai ser nem um pouco fácil, mas algo deve ter – parou em frente ao banquinho, onde a menina se virou para poder olhá-lo. Estendeu a caixinha para ela. – Você pode não estar chorando, mas parece que vai começar a qualquer momento.
Ela deixou transparecer um sorriso tímido, pegando a caixa das mãos dele.
– Obrigada... Pelo conselho e pelos lenços – pegou um deles e assoou o nariz. Quando baixou as mãos do rosto, soltou o ar que restava em seus pulmões.
– Disponha. Agora vamos lá. Escolhi uma coisa mais alegre para você tocar – ele disse, dando a volta no assento e se sentando novamente nele.
– Quando eu vou aprender a usar isso aí? – perguntou, observando as três saliências na parte de baixo do piano. se abaixou para saber do que ela falava.
– Os pedais? Ah, ainda vai um tempinho – ele se levantou. – Bem, nosso tempo por hoje acabou – o garoto começou a recolher as folhas e a guardá-las na pasta, enquanto a menina se levantava, segurando nas mãos a mesma caixinha de lenços de antes.
– Aqui os lenços. Obrigada mais uma vez – entregou-a nas mãos dele, juntando depois as suas atrás de si.
– Não precisa agradecer – o menino foi mais uma vez até o armário, guardando ali a caixa de papelão. – Realmente espero que você apareça aqui semana que vem com boas notícias.
– É, eu também – depois que o armário foi fechado, os dois começaram a andar em direção à porta. – Admito que estou com um pouco de medo ainda.
– Normal. Não precisa descobrir hoje mesmo. Faça isso quando estiver preparada – ele abriu a porta para ela. A menina passou para o outro lado e se virou, já que o garoto ficara ali, apoiado no batente.
– Acho que você está certo. Vou perguntar para o meu pai na hora correta. Ele vai traduzir para palavras normais – colocou um pouco da franja atrás da orelha. O menino deu um sorriso comum. – Bem, tchau. Até semana que vem – despediu-se, dando uns passos para trás antes de se virar por completo e andar normalmente até a saída. permaneceu na mesma posição, observando-a ir embora, enquanto parecia um pouco inquieto.
– Ei, ! – a garota se virou, quando ouviu o chamado. O rapaz saiu da porta da sala, aproximando-se dela. – Você... Tem algo para fazer amanhã de noite? – coçou um pouco a nuca.
– Pretendia a princípio ficar jogada no sofá vendo TV. Por quê?
– Bem, amanhã vai ter o Festival de Música no centro da cidade e estou inscrito para tocar à noite... Se lhe parecer mais legal que o sofá, a entrada é livre – falou, tendo as mãos nos bolsos da calça e o sorriso típico de volta.
– Você vai tocar ao vivo? Eu vou, sim! – o sorriso dele aumentou um pouco. – À noite, né?
– Sim. Às oito horas, no teatro ao lado do prédio da prefeitura. Pegue um lugar bem legal para eu poder ver você do palco – a menina fechou os olhos e deu risada.
– Juro que tentarei chegar cedo. Até amanhã então! – ela abriu a porta de vidro, acenando com a mão livre para o menino.
– Até! – pôde ouvi-lo dizer antes de acenar uma última vez e fechar a porta, isolando-a do barulho do lugar e enchendo os seus ouvidos com os sons da rua.
Sentindo o sol aquecer um pouco o seu corpo, começou a andar calmamente para casa. Sentia o vento morno bater contra seu rosto, fazendo o seu cabelo balançar. Era estranho pensar que dentro de algumas horas, ou dias, ela saberia o que havia de errado com seu coração, saberia se poderia pisar num ringue novamente.
Saberia se estava abrindo a porta do inferno ou do paraíso.
Bufou quando deixou a mão que segurava o exame na frente de seus olhos cair sem o menor cuidado. Eram três da tarde do dia seguinte e estava deitada na sua cama. Contra o que seu cérebro gritara por quase uma hora, pegou os exames e os analisava de novo, mesmo que continuasse sem entender nada. Era como se tentasse se preparar para o que poderia vir, memorizando cada sinal daquelas placas escuras, cada palavra que parecia séria no texto. Deveria realmente seguir aquele conselho?
Amontoou os papéis no criado-mudo e se levantou. Começou a andar a esmo pelo quarto. Parou quando os porta-retratos apareceram no seu campo de visão. Ignorando por um momento a foto com seu pai que ficava à esquerda do móvel, focou-se nas duas restantes. Uma era do primeiro campeonato que participara, que por sinal foi um fiasco para ela. Ganhou no último grito a primeira luta e foi impiedosamente nocauteada logo na segunda. Riu um pouco quando se lembrou do ataque de pânico que teve ao achar que ia perder um dos dentes só porque uma parte de sua mandíbula havia ficado roxa e inchada. Seu pai inclusive roubou gelo da lanchonete para acalmá-la. Apesar de um de seus companheiros ter chegado à semifinal, ele perdeu, de modo que todos ali saíram sem qualquer prêmio. No momento da foto, estavam todos reunidos com sorrisos no rosto, apesar da derrota. Até seu pai estava nela, bem no fundo do grupo, ainda segurando o saco de gelo. estava nas costas de seu treinador, que a carregava por a menina reclamar de muita dor no tornozelo.
Não conseguiu impedir o sorriso que se alastrou por sua face, lembrando-se com carinho de cada momento daquele dia. Virou o rosto, balançando a sua franja e observando agora a segunda foto. Era de outro campeonato, mas que dessa vez lhe rendera uma medalha de prata. Ela foi derrotando todos os adversários até a final, porém a outra finalista, também garota, era praticamente selvagem. Lembrou-se de que chegaram a rolar por um bom tempo no ringue. Começou a gargalhar quando se recordou de seu treinador gritando para parar com aquilo, enquanto seu pai berrava que devia arrancar o couro da adversária ali mesmo. Acabou perdendo o primeiro lugar para ela e, logo após a premiação, tiraram aquela foto. Seu pai não estava nela, já que a havia tirado. segurava a medalha prateada bem no alto e sua aparência era simplesmente desastrosa. Parecia que havia lutado com um animal, pois suas roupas chegaram a rasgar em alguns pontos, e tinha os cabelos desalinhados por ter soltado o rabo-de-cavalo rápido demais. Contudo, seu rosto expressava uma felicidade sem tamanho. Havia saído inclusive de olhos fechados, porque estava comemorando na hora do flash. Podia ter pegado segundo lugar, mas havia conseguido enfiar seu pé com força total na cara da adversária no meio da luta.
Suspirou extremamente pesado, sentindo a saudade a destruindo por dentro. Não dava mais para agüentar. Ela não podia parar ali. Queria ainda ir a tantos campeonatos, lutar com pessoas mais fortes... Queria ganhar uma medalha de ouro.
Foi com esse ímpeto repentino que abriu a porta de seu quarto e foi para a sala, a fim de falar com seu pai. Percebeu que não tinha muita noção do que estava fazendo, quando voltou a raciocinar um pouco, que não tinha certeza de se queria fazer aquilo. Era como se suas pernas se movessem mais por curiosidade do que por decisão. Tremia de medo por dentro por continuar seguindo sem conseguir parar e por estar cada vez mais perto do momento.
Quando deu por si, já estava ao pé da escada, na sala, a menos de dois metros do sofá em que seu pai estava. Por impulso, levou a mão ao peito, fechando-a em punho quando sentiu a saliência da cicatriz acariciar a sua pele.
– Pai – ela chamou e o homem se virou. Viu a expressão dele mudar um pouco quando viu a filha. Provavelmente a menina estava com um quê de espanto no rosto. – Pai... Posso fazer uma pergunta?
– Claro. Desde quando você precisa me pedir permissão para perguntar algo? – ele deu uma pequena risada, aparentando alívio por aquilo a princípio não parecer sério, e voltou a ler a revista que tinha em mãos.
– Pai... O que eu tenho? – perguntou de uma vez antes que perdesse a coragem, deixando todo o seu fôlego se esvair nessa frase.
O homem à sua frente pareceu congelar um pouco. Fechou a revista e a pôs no colo, virando-se para a filha com tensão na região dos olhos.
– Como assim? – o tom de sua voz denunciava a ânsia de confirmar qual era o assunto, de confirmar que não era o que ele pensava.
– Qual o meu problema? Por que tive que operar? O que eu tenho no coração? – a garota foi questionando, soltando várias perguntas em seguida, querendo ser o mais clara possível. Sentia o seu estômago gelar e se contorcer. Sentia tensão no seu peito.
Viu seu pai fazer uma cara de dor, retirando o que tinha no colo e se levantando. Pegou na mão dela para fazê-la se sentar, mas ela recusou. Se acabasse se movendo, era capaz que saísse correndo. Frustrado pela teimosia da menina por um instante, ele se posicionou na frente da filha, colocando uma mão no ombro dela. Era evidente na expressão dele a dúvida de se devia fazer aquilo ou não, porém essa mesma dúvida não era forte o suficiente para vencer a certeza de que esperar mais só geraria o pior.
sentiu seu coração ir parar no meio da barriga.
– Você tem cardiomiopatia hipertrófica – o homem disse com um pouco de frieza na voz. Não conseguiu evitar que isso contaminasse o seu tom.
A garota sentiu a cabeça girar um pouco. Lembrava-se desses termos. Eles haviam aparecido mais de uma vez nos exames. Sentiu os olhos arderem, quando se preparou para proferir sua próxima fala.
– Na minha língua, pai – ele fechou os olhos por um momento e passou a mão livre por eles, deixando-a cruzar o nariz e o queixo, até que estava ao lado de seu tronco novamente. Acidentalmente, apertou um pouco as unhas no ombro da filha.
– Seu coração não consegue bombear sangue direito. Por algum motivo, depois que você entrou na adolescência, ele se deformou – o homem deixou sair o ar que havia aprisionado em seus pulmões e que não agüentava mais segurar. – Por isso você tinha falta de ar, palpitações, desmaiava...
– E os médicos o consertaram na cirurgia? – se sentia uma garotinha de sete anos com a singeleza de suas perguntas e sua voz que embargava um pouco do nada no meio das frases. Porém... Era exatamente como se imaginava agora: pequena, indefesa, confusa.
Seu pai respirou fundo, deixando sem querer sua voz ressoar melancólica quando expirou.
– Lembra-se de quando começou a tomar alguns remédios? – ela assentiu com a cabeça, sentindo-a pesar uma tonelada. – O tratamento é geralmente esse mesmo, sem nada invasivo, porém... Mais uma vez, por algum motivo desconhecido, você não respondia a eles – ele viu a filha arregalar um pouco os seus olhos . – Não tivemos outra escolha a não ser cirurgia. Os médicos acharam que ia ficar tudo resolvido, que haviam cortado o mal pela raiz... – pausou, como se não quisesse continuar.
– Mas...? – a menina não precisava de muitas informações para saber que ali vinha exatamente essa palavra. Seu pai engoliu em seco.
– Mas você também não respondeu aos remédios do pós-operatório – a garota tentava juntar as peças em sua mente, querendo encontrar o quadro final da situação. – Eles até consertaram o que havia de errado no seu coração... Só que ele aparentemente não quer mais voltar ao normal. Estava delicado antes de operar e ficou mais ainda depois – o canto da boca dele se contorceu um pouco. – Ele não agüenta mais a pressão de antes.
O olhar de automaticamente baixou ao fim da frase, revelando que a menina pensava consigo mesma. Ergueu-os, encarando a figura de seu pai.
– Se eu esperar e fizer algo que o fortaleça, ele não vai melhorar? – sua voz estava quase travada. Travada de tanto medo por não conseguir entender se aquilo indicava que havia uma saída ou não.
– Essa é exatamente a função dos remédios – a menina sentiu a garganta ficar bloqueada por um momento. – Só que eles não estão fazendo efeito...
O quadro final que se formava na sua cabeça ainda era um pouco nebuloso, contudo já assustador o suficiente. Sentindo àquela altura os cantos dos olhos úmidos, dos dois lados, inspirou fundo e se forçou a articular a pergunta final.
– Eu vou poder voltar a lutar? – o medo que sentia antes era nada comparado ao pavor que a dominava agora. Era isso. Estava exatamente na beira do penhasco. Com aquele passo que havia acabado de dar, ou sentiria o chão firme mais uma vez, ou iria ao encontro do abismo.
– O médico acha que provavelmente não – o baque que essa resposta causou na cabeça dela foi tão intenso que, por um instante, a menina achou que ia perder os sentidos. – No futuro, você talvez tenha que usar marca-passo – ele continuou. A garota ficou em silêncio.
Quando ela achou que tudo já havia desabado, o chão desabou também.
E embaixo dele veio o abismo.
O abismo que a levaria ao inferno.
Os seus soluços presos lutavam para saírem, mas sua garganta tensa e congelada não permitia. Tudo que saía eram gemidos sufocados acompanhados de lágrimas grossas que escorriam por todo o seu rosto. Seu pai estava paralisado diante de tal imagem. Não sabia o que fazer, não sabia o que dizer. Sabia apenas que no momento não havia coisa no mundo que fosse apaziguar aquela dor dela.
Finalmente expulsando violentamente o ar que prendera, num impulso saiu dali, correndo até a porta. O homem tentou segurá-la, porém não conseguiu a tempo. Sabendo que ele viria atrás dela, a menina imprudentemente começou a correr para a primeira direção que lhe saltou aos olhos, para longe. Suas pernas ainda eram fortes, ela ainda era rápida. Não demorou muito para que seu pai percebesse a havia perdido de vista e que procurá-la seria mais inútil do que caçar uma agulha num palheiro. Sentindo o corpo pesar, não conseguia pensar em mais nada que pudesse funcionar.
– Não faça nada de idiota! – ele gritou o mais alto que pôde, esperando que, fosse onde estivesse, a filha o ouvisse.
–
Não faça nada de idiota! – ouviu ao fundo o berro de seu pai, começando a sentir seu coração implorando para que parasse.
Obedeceu ao pedido, caindo de joelhos na calçada. Ainda sentia a bile daquela verdade amarga em sua boca, sentia as palavras ecoando dentro de sua cabeça. Arrependeu-se instantaneamente de ter tido aquele ímpeto de coragem, de pegar na droga dos exames para começo de conversa.
De ouvir aquele conselho.
De repente, sentiu uma fúria intensa preenchê-la. Tudo começou porque ela havia ouvido , porque ele a convencera de que o inferno podia ser melhor que o purgatório. Suas mãos travaram em punhos, afundando as unhas com tanta força em suas palmas que começou a sentir dor. Rangeu os dentes, quando a imagem dele apareceu mais uma vez em sua mente.
Levantou-se num ritmo normal, tendo tanta raiva em seus olhos que agradeceu que seu pai não estivesse ali para ver. Começou a andar, andar somente, mas num passo pesado. Trilhou aquele caminho que fazia duas vezes por semana há quase um mês e meio, percebendo o sangue borbulhar com cada vez mais intensidade à medida que se aproximava do lugar. Dentro da sua cabeça, havia um furacão. Jurava haver alguém ali gritando, berrando, por mais que não soubesse quem ou o que era. Sentia calor, palpitações, o rosto e o fundo de sua garganta queimando. Sentia-se outra pessoa.
Quando avistou de longe a casinha azul, finalmente pensou que ele podia nem estar lá. Não ligou. Era tarde demais para se parar, para dar meia volta e desistir, antes de constatar com certeza que sua ida até lá havia sido inútil.
Porém, aparentemente, a sorte ou o azar estava com , porque, no momento em que enxergou a porta, pôde ver se aproximando e vindo do lado oposto da mesma calçada.
– ! – ela gritou a plenos pulmões, não sabendo mais direito o que fazia ou dizia.
O rapaz a avistou de longe e se preparou para cumprimentá-la com um sorriso, contudo sua expressão desmoronou rapidamente e passou para espanto, quando viu aquela fúria assassina estampada no semblante dela.
O menino parou de andar, paralisando um pouco diante de tal cena. A garota continuava marchando em sua direção.
– ! O que ac...? – não conseguiu terminar a frase.
rapidamente ergueu um dos punhos, socando o rosto de com toda força que tinha no momento. O garoto voou para trás, caindo de costas no chão e com os olhos cerrados pela dor e o reflexo. Já completamente caído, colocou uma das mãos no solo de cimento e se ergueu o suficiente para ficar sentado, ainda espremendo firmemente os olhos.
– Caralho, você bate forte – ele disse com a voz um pouco estrangulada e desafinada, apertando com a outra mão a região atingida no canto da boca. Abriu os olhos e deu de cara com uma menina claramente tomada pela cólera e arfando em pé, com seus olhos ardendo em ódio. Suas bochechas estavam marcadas pelas lágrimas.
– É tudo culpa sua! – ela gritava, sem se importar com o volume de sua voz. – Tudo, tudo! – apertou os seus olhos, enquanto berrava as últimas palavras, sem perceber que mais lágrimas escorreram deles nesse momento.
– Do que está falando?! Eu não fiz nada para você! – ele perguntava frustrado, ainda tendo a mão praticamente colada ao rosto.
– Como assim não fez nada para mim?! – a menina falou, praticamente urrando, sentindo dor na garganta por causa disso. Aproximou-se dele com um passo, ao que o menino fez menção de ir um pouco para trás. Os olhos dele vazavam o medo que tentava esconder. – Você arruína minha vida e depois tem coragem de dizer isso com essa cara de coitado?! – a garota fechou as mãos em punhos mais uma vez, tendo a sensação de que a raiva circulava por seu corpo.
– Será que você podia tentar fazer um pouco de sentido por um momento?! – foi a vez dele de gritar, vendo que manter a calma ali seria inútil. parou. Sentiu o fogo dentro de si cessar aos poucos e logo a dor perfurá-la uma vez mais, tomando conta do corpo dela, agora que a anestesia havia aparentemente sumido.
– Não tem volta – ela disse com a voz em um volume normal, o tom dolorido. O rapaz, que tinha até então as sobrancelhas tensas, arregalou um pouco os olhos. – Não tem mais jeito, . Eu nunca mais vou poder lutar – falar aquilo havia sido pior do que imaginara que seria uns segundos atrás. Sentiu a garganta e os ombros ficarem duros como rochas.
Sem perceber, abaixou a cabeça, tendo os olhos voltados para o chão e a franja tampando o que restava da visão deles para quem a visse. Pressionava os braços contra as laterais de seu tronco e as pernas uma contra a outra. relaxou um pouco a mão que tinha no lugar atingido, vendo aquela cena de onde estava e ainda sem conseguir enxergar os olhos da menina. Pegou um pouco de impulso com a mão que estava na calçada e jogou o peso para as pernas, restando apenas que esticasse os joelhos para que estivesse definitivamente em pé. Deixando a mão que repousava em sua face sair dali, andou com passos calmos até a garota à sua frente. Ela não se moveu. Colocou as mãos nos braços petrificados dela, deixando que seus dedos os tocassem logo em seguida.
– ... – ele disse numa voz tranqüila, preparando-se para consolá-la. Porém, a menina imediatamente acordou, empurrando-o para longe de si, quando ouviu seu nome ser pronunciado.
– Saia de perto de mim! – ela vociferou, deixando a voz falhar e sair arranhada no fim da frase. O garoto tentou controlá-la, segurando-a dessa vez pelos ombros.
– ! Eu sei que está doendo, mas... – a garota sentia seu cérebro arder em chamas e podia jurar que ouvia seu coração se jogando brutalmente contra seu peito. Sentiu que, se aquelas palavras lhe penetrassem a mente, tudo só ficaria pior, por mais que essa teoria não fizesse o menor sentido. Era como se sua cabeça não agüentasse absolutamente mais nada. Nem o que lhe agradasse, nem o que amargasse.
Chacoalhou seu corpo, de modo a mandar para longe as mãos do garoto que estavam em seus ombros. Ergueu os olhos irados.
– Mas o quê?! MAS O QUÊ?! – ela gritou com toda força e potência que podia. – MAS VAI FICAR TUDO BEM?! Não me diga que vai, porque eu sei que não irá! – sentiu que fosse estourar em lágrimas mais uma vez, quando aquele fato voltou para assombrar a sua mente.
– Vai, sim! – ele respondeu num ímpeto. Vendo que tocar nela mais uma vez só pioraria a situação, manteve suas mãos no lugar e apenas chegou um pouco mais perto dela. – Parece o fim do mundo agora, e é assim mesmo, porém depois você vai ver que foi o melhor! – a expressão da menina automaticamente sofreu uma drástica mudança, passando de desespero para incredulidade ao extremo. Seu rosto demonstrava uma descrença sem tamanho. O menino a encarava, aguardando a resposta em palavras que explicaria aquilo.
– VOCÊ TEM MERDA NA CABEÇA?! – ela berrou, enquanto mais lágrimas carregadas desciam por seu rosto. – VOCÊ CAUSA TUDO ISSO E AINDA TEM CORAGEM DE DIZER QUE ESTÁ CERTO?! – a garota voltou a sentir o calor que a assaltava na caminhada até ali. por um momento pareceu mais incrédulo que ela.
– Não é questão de eu estar certo ou não! Você simplesmente não podia viver assim para sempre! – ele deixou sua voz cair num tom mais forte, começando a perder a paciência com tudo aquilo.
– Podia, sim! – deixou um soluço atravessar acidentalmente sua voz nessa frase. O garoto permitiu por um momento sua impaciência passar para pena. Podia ver as mãos dela tremerem. – Podia, sim...! – não conseguiu controlar que outro soluço viesse à tona. – Qualquer coisa é melhor do que isso... – o choro marcava sua voz que estava fraca e baixa. – Eu estava bem antes... Antes de você abrir a sua boca!
– Você estava angustiada! – o menino acabou, por impulso, colocando as mãos nos ombros dela novamente. – Será que é tão difícil de enxergar isso?! – bufou, tendo o cenho franzido, enquanto a menina o observava em silêncio. – Se isso a faz se sentir melhor, desculpe por ter dito aquilo, mas... – ele foi interrompido.
– Não adianta vir pedir desculpas agora! – ela disse frustrada, ainda tendo seus ombros segurados pelo rapaz. – Muito menos se é só para me fazer ficar quieta! – cuspiu as palavras com puro desgosto. – Nada muda o fato de que você arruinou tudo!
– Arruinei o que, ? – ele perguntou com uma das sobrancelhas levantada, apertando um pouco os ombros dela ao se deixar levar pela irritação. – A verdade sempre esteve aí. Você só não queria ver!
– O inferno também sempre esteve aí e nem por isso eu tinha curiosidade em conhecê-lo! – a menina gritou de volta, começando a sentir a raiva correr por suas veias de novo.
– Você já conhecia o inferno e estava bem no meio dele! Só o chamava de purgatório! – o garoto balançou os ombros dela, olhando sem desviar para os olhos que, paradoxalmente às ações, encaravam-no num vazio quebrado. – , você precisa se acalmar!
– E por que eu deveria?! – ela respondeu num berro, deixando transparecer a sua frustração.
– Porque você está exagerando! – nesse momento, como num choque, os olhos da menina saltaram por um instante das órbitas. Seus lábios se entreabriram sem que percebesse, enquanto continuava a encará-la sério. Porém, foi por pouco tempo, pois logo estava sentindo a indignação queimar em seus músculos.
– Eu não estou exagerando! – a garota respondeu com raiva, imediatamente colocando as mãos no peito do garoto com o ímpeto de afastá-lo de si num empurrão. Ele tirou uma das mãos dos ombros que segurava e pegou um dos antebraços dela, antes que a menina pudesse finalizar o ato.
– Está, sim! Está fazendo o maior escarcéu enquanto podia ser bem pior! – o olhar dele já mostrava a faísca comendo rapidamente o pouco que sobrava de seu pavio.
– Você só fala que estou exagerando porque não tem noção da dor! – balançou o antebraço, tentando se soltar, mas o menino estava segurando mais firme do que ela imaginava. Levantou o rosto frustrada, afastando com o movimento os fios da franja que estavam sobre os seus olhos. – O que você faria no meu lugar, hein? – perguntou, tendo desgosto e deboche misturados em seu tom.
– ...! – ele ia responder, contudo a garota o interrompeu. Lançou o braço para o lado com força, de modo que conseguiu finalmente se livrar da mão dele.
– Não posso mais lutar, treinar, correr, pular ou entrar num ringue sem me sentir morta por dentro! – a menina ia cuspindo as palavras aos poucos, deixando que seus olhos mostrassem a sua ira que crescia devagar, mas sem parar. – Onde isso é exagero? ONDE?! – o volume de sua voz aumentou, juntamente com a ardência indignada em seu rosto. – Onde é exagero o fato de que já sei o que vai me matar no futuro? – ela se aproximou com um passo. – Onde é exagero o fato de que eu vou ter que usar marca-passo?! – as suas frases a essa altura eram pronunciadas aos gritos.
– VOCÊ NÃO SABE O QUE É DOR! – dessa vez, foi ele quem vociferou. A garota não pôde evitar que paralisasse por alguns segundos, diante tal reação. Não esperava por isso. arfava e tinha ira em seus olhos , com alguns fios tentando inutilmente tampar a visão daquele olhar. – VOCÊ É SÓ UMA GAROTA FRESCA QUE FICA CHORANDO POR TUDO! – o garoto gritava com tal intensidade que fazia a menina desacreditar que estava discutindo ainda com a mesma pessoa.
Ela ficou por uns segundos sem palavras, enquanto continuava a encarar a cena em seu lugar. Não esperava que ele fosse reagir assim, por mais vontade de socá-lo que ainda tivesse. Não estava preparada para lidar com mais raiva além da que já estava sentindo.
– CALE A BOCA! Você não tem a menor idéia do que estou passando! – a garota tentou responder à altura. – E-eu... Eu... – procurava por palavras desesperadamente nos confins de sua mente, mas não tinha sucesso. Era como se o que se passasse ali, na sua cabeça, fosse impossível de traduzir ou de formar uma estrutura depois daquilo.
percebeu que ela ficara sem reação, inicialmente sorrindo com satisfação. Logo, então, percebeu uma coisa. Já o havia visto dar vários tipos de sorrisos, desde comuns até aquele enigmático para o qual nunca havia encontrado uma boa descrição. Mas nunca o tinha visto dar um sorriso de escárnio antes.
Ele deu dois passos, aproximando-se dela, tendo os cantos de sua boca curvados de tanta ironia que a qualquer momento poderia começar a rir. A menina tentou aguardar parada, firme como uma estátua, porém no fundo tinha medo.
– Você paga de gostosa porque bate em caras, mas no fundo é todinha de papel, não é? – a voz dele era baixa, como se para só ela ouvir, e tinha um timbre pesado.
A garota focou o olhar nele e tentava digerir aquelas palavras a todo custo. Contudo, antes que pudesse perceber, antes que pudesse pensar em qualquer coisa, já estava pegando impulso com seu braço e espalmando a mão no ar.
Ainda tendo a face virada para o lado devido ao movimento do tapa, ele não se moveu. respirou fundo várias e várias vezes, decidida a dar uma última resposta àquela discussão. Ela olhou nos olhos do menino, que apesar da direção dele estavam fixos nela. Pôde vê-lo claramente repetir aquela fala com o olhar. Cada palavra, cada entonação.
Bufando, virou-se para ir embora. Decidira que o melhor era realmente não dizer mais nada. Pensou que talvez ele pudesse vir atrás dela, a fim de dar um fim àquela situação, porém aparentemente ela se enganou. Os únicos passos que ouvia eram os seus. O menino realmente havia ficado ali, ainda sem se mover muito, apenas observando a garota ir embora.
A menina apressou o passo, tentando saciar a vontade de correr a toda velocidade que se contorcia na região de seu estômago. Sem saber direito que direção seguia, apenas andava com o intuito de esvaziar a mente de todas aquelas lembranças ainda frescas – uma tarefa que parecia impossível no momento.
O garoto soltou um suspiro, quebrando a sua paralisação. Voltando um pouco para pegar a mochila que havia ficado no chão por causa do momento da pancada, jogou-a no ombro com um tanto de violência. Deu meia volta e seguiu para a entrada da casinha, controlando-se para não bater com força a porta de vidro.
O céu já adquiria tons arroxeados e alaranjados devido ao crepúsculo. observava calmamente essa mistura de cores no céu, sem parar de andar. Havia caminhado por vários cantos da vizinhança, desde becos até o mesmo parque de antes, apenas pensando. Nessa caminhada, lembrou-se de praticamente todas as suas memórias no ramo da luta arquivadas em algum lugar de sua mente: das que recordava com o maior prazer, das que procurava esquecer, das que nem ao menos sabia por que motivo se lembrava. Lembrou-se com todos os detalhes das dores que sentia nos dias em que ainda vivia na escura ignorância. Lembrou-se da sensação de felicidade, tentando revivê-la no peito, antes que pudesse ser tarde demais.
Lembrou-se da briga com . Lembrou-se dos olhos a chamando de fraca.
De repente, parou de andar. Tendo os olhos fixos na aquarela acima de sua cabeça, tentava pensar no futuro. Era o que imaginava: não conseguia ver nada. Porém, estranhamente, também não parecia sentir mais medo. Era como se não houvesse mais nada para acontecer, para explodir. Nada mais que pudesse ser pior. O caminho parecia vazio, aparentemente fácil de ser trilhado, se ela não soubesse o que aquela solidão na verdade representava. Isso por algum motivo a acalmava. Por mais que aquilo pudesse doer, só dependeria dela a dor piorar agora. Não havia nada que pudesse fazê-la afundar mais. Sentia-se como se tivesse acabado de arrancar um band-aid. Havia vivido uma dor gritante que agora desaparecera, deixando ali apenas a ardência, a lembrança dela.
Finalmente baixando os olhos , viu que já estava em frente à sua casa. Respirou fundo, sentindo a cabeça pesada de tanto ter chorado, e foi até a porta, abrindo-a em seguida. Depois que entrou, fechou-a, causando um barulho que ressoou pela casa. Em alguns segundos, seu pai apareceu no andar de cima, do alto da escada. Não pôde deixar de sorrir um pouco ao ver que ela havia finalmente voltado, principalmente inteira. deu um sorriso fraquinho, querendo que ele fosse seu cumprimento, e começou a subir as escadas, tendo os braços como que cruzados. Quando a garota atingiu o alto, o pai deu passagem para ela, que seguiu em frente sem olhar para trás, entrando no seu quarto em seguida.
Deu o último passo para que estivesse completamente no cômodo e fechou a porta atrás de si, escorregando as costas nela após o barulho até que estivesse sentada no chão. Era estranho como se sentia leve, apesar daquele vazio ser na verdade tão pesado e denso como chumbo.
Quando aquela sensação de fraqueza em suas pernas sumiu por uns segundos, levantou-se e foi até o seu armário. Abriu as portas e viu ali dentro uma caixinha preta. Sorriu fraco ao avistá-la e colocou suas mãos ao redor dela, tirando-a dali. Fechando o móvel com o pé, sentou-se no chão com a caixa. Abriu-a, tirando a tampa com cuidado, e começou a observar o seu conteúdo. Guardava ali o primeiro par de luvas que usara para lutar e que agora era apertado demais para as suas mãos. Pegou-o, sentindo o tecido parecido com couro na sua pele. Rapidamente o colocou no chão depois de alguns segundos observando, a fim de chegar logo aos outros objetos. Fotos, fotos, papéis avulsos que não teve paciência para ler... Parou por um momento na fotografia do seu primeiro dia de treino. Tinha dez anos de idade e estava com o pai e seu treinador, Sam. Ela estava no meio dos dois, vestida simplesmente, usando camiseta, calça Capri e tênis. Haviam dito para ela sorrir na hora do flash, mas a menina acabou saindo com uma cara de surpresa por não ter tido tempo o suficiente. Os dois caras ao seu lado sorriam, contrastando com a expressão dela.
Deixando de lado a foto depois de observá-la bem, chegou ao que mais almejava ver naquele momento. O brilho da prata ainda era intenso e se destacava mais ainda com as cores apagadas da fita na qual estava pendurada a medalha. a apertou em uma das mãos, sentindo o objeto gélido roubar calor de seu corpo quente. Não era nada agradável saber que aquela seria sua última e única medalha, mas rever aqueles objetos não estava sendo tão horrível quanto ela pensava que seria. A saudade sussurrava em seus ouvidos palavras de melancolia, contudo a nostalgia fazia um sorriso se abrir em seu rosto, que por sinal tinha muito mais efeito do que a sensação de tristeza. Era um adeus doloroso, porém também um fardo do qual se livrava. Sabia que estava condenada. E era obviamente melhor do que viver todos os dias de sua vida na tensão, na dúvida de conhecer o veredicto.
Automaticamente, sua mão se afrouxou um pouco, permitindo que ela visse a medalha reluzente novamente. Então quer dizer que estava certo?
Ergueu a cabeça que estava voltada ao chão, mais precisamente na direção da caixinha, olhando por acidente para sua porta. Quem diria que aquele moleque tinha razão o tempo todo? A dor havia sido horrível, intensa, mas teve um fim. E com ela também foi embora aquela angústia, aquela inquietude, aquele medo que agora parecia sem sentido. Não sabia ainda o que faria futuramente, porém agora a neblina baixara, permitindo-a ver o que havia à sua volta.
Chegando a essa conclusão, imediatamente a culpa a atingiu. Ele havia dado talvez o melhor conselho ao qual ela deu ouvidos na vida e a menina lhe agradeceu com um soco, um tapa e palavras duras. Gritou com o garoto, disse que a culpa era toda dele, que havia arruinado a vida dela. Levou as mãos aos olhos, esfregando-os com frustração. Deveria ter ficado em casa e descontado a raiva no travesseiro.
Tirou as mãos dali e soltou um suspiro, tombando as costas até que batesse de leve contra sua cama. Virou a cabeça e olhou o relógio, lembrando-se depois de muito tempo que as horas existiam. Seis e quarenta e sete da tarde.
Sem poder controlar, girou o corpo rapidamente, de modo que ficou de joelhos em frente ao relógio, olhando-o com cara de susto. Hoje era o dia da apresentação de no festival! Havia se esquecido completamente disso. Por um momento, perguntou-se se deveria mesmo ir, depois de tudo que havia acontecido, mas decidiu que o melhor a fazer era mostrar para ele o quanto antes que ela havia percebido a idiotice que fizera. Não poderia esperar até a próxima aula.
Juntou os objetos, fotos e papéis que estavam espalhados no chão, colocando-os com cuidado na caixa preta novamente. Sem se levantar, engatinhou até o armário e a colocou ali dentro. Só depois disso se levantou, caminhando em seguida para o banheirinho que ficava dentro de seu quarto. Olhou-se bem no espelho, observando atentamente os olhos inchados, as bochechas marcadas e os cabelos bagunçados. Precisava se apressar. Teria muito trabalho pela frente.
Secou o rosto com a toalha. Lavava-o pela provável vigésima vez, a fim de se livrar de qualquer vestígio de sua cara de choro. Tinha apenas a toalha de banho em volta do corpo, já que havia terminado de se banhar há alguns minutos, e estava na pia, em frente ao espelho. Finalmente satisfeita, sorriu e pendurou a toalhinha, caminhando em seguida para o seu quarto.
Foi até sua cama e se sentou nela. Observou a roupa que havia escolhido e agora repousava sobre as mantas, passando a mão por ela. Era um vestido de linho azul anil claro. Suas mangas eram estilo regata, sem alças, e a gola era perfeitamente circular com renda branca passando por ela, tendo um decote discreto. Logo abaixo do busto, passava outra tira de renda que nem a da gola, apenas um pouco mais grossa, pela qual atravessava uma fita fina de cetim branca com a qual se poderia dar um pequeno laço na frente. Apesar de toda a delicadeza do traje, era relativamente curto e ia até um pouco antes da metade de suas coxas. Parecia um vestido de boneca e era o que mais gostava nele.
Levantou-se da cama e deixou a toalha cair em cima dela. Vestiu a lingerie e em seguida colocou o vestido, alisando-o em seu corpo depois. Foi até o armário outra vez, agora abrindo a sapateira. Tirou de lá uma sandália prateada que não tinha um salto muito absurdo, mas nem por isso baixo. Era aberta e tinha o fecho em duas tiras que iam em torno do tornozelo. Delas, descia pela região do colo do pé uma tira do mesmo material do sapato, com largura de aproximadamente dois centímetros. Essa era repleta de brilhantes e se prendia às tiras que passavam pelos dedos do pé. A menina se sentou e as calçou, logo se levantando com força nas coxas por causa da instabilidade do salto para aquele tipo de coisa.
Ouvindo o barulho do salto batendo contra o chão, foi até o banheiro de novo. Quando estava em frente ao espelho, pegou a escova e a passou pelos cabelos, deixando-os alinhados. Pegou do canto da pia a presilha que havia separado. Era bem simples, linear, com contas no estilo de pérolas passando pela parte de metal exposta. Fez um singelo meio-rabo, prendendo essa parte do cabelo com o adorno. Passou os dedos pelos fios, soltando-os, e fez o mesmo com a franja, tentando fazê-la parecer natural. Terminado isso, apanhou do mesmo local o par de brincos que escolhera. Cada um era uma pérola, bem simples, exatamente para combinar com a presilha.
Não queria passar muita maquiagem, então apenas aplicou um pouco de blush às bochechas pálidas e gloss alaranjado nos lábios. Depois disso, fez o laço embaixo de seu busto, cuidando para que ficasse simétrico e não muito chamativo. Satisfeita com ele, voltou para o quarto. Pegou um pouco de dinheiro do seu pote de economias e o colocou na carteira, apanhando em seguida o celular. Colocou-os na bolsinha de mão prateada que havia escolhido e se olhou uma última vez no reflexo na janela. Não conseguindo pensar em mais nada que precisasse de cuidados, virou o olhar para o relógio. Sete e trinta e cinco. Precisava ir.
Fechou a porta do quarto com cuidado. Andando devagar para evitar que o barulho do salto fosse muito estrondoso, foi até o quarto do pai. Ele estava deitando, tirando uma soneca. A menina sorriu ao constatar isso. Não precisaria dar muitas explicações. Mesmo que fosse quase impossível para a sua situação, andou na ponta dos pés até o criado-mudo que ficava ao lado da cama. Pegou o bloquinho de anotações e a caneta que ali ficavam e escreveu um recado.
Dei uma saída, mas já volto. Não devo voltar muito tarde.
Arrancou a folhinha de papel e a deixou bem à vista, saindo do quarto com o mesmo cuidado de antes. Depois que fechou a porta, voltou a andar normal, descendo as escadas de modo ritmado para não perder o equilíbrio. Passou reto pela sala e foi direto à porta, saindo por ela. Sentindo o vento da noite bater em seus braços descobertos, andou a passos largos no caminho de cimento do jardim até chegar à calçada. Caminhou alguns metros até chegar a um ponto. Observou um pouco a rua e viu uma luz vinda do fim dela se aproximando. Ergueu um dos braços.
– Táxi!
[N/A: Coloque essa música para carregar e ponha para tocar quando for avisado! Uma dica: se a cena tiver acabado e a música não, aguarde um pouco e curta a melodia, ou pode dar um nó na sua cabeça.]
– Aqui está. Obrigada! – pagou ao motorista, logo em seguida abrindo a porta e colocando as pernas para fora, pondo-se de pé na calçada.
Alguns segundos após o barulho de ter fechado a porta do carro, ouviu o som da partida e dele indo embora. Olhou em volta, logo avistando o prédio da prefeitura em toda a sua exuberância. Moveu um pouco os olhos e encontrou o teatro do qual falara. O cartaz na entrada confirmou qualquer dúvida sua de se aquele seria o local certo e seguiu até lá.
Abriu a porta pesada, entrando no recinto escuro e aquecido devido ao grande número de pessoas ali. Quando a fechou, ficou completamente isolada de qualquer barulho da rua, tendo os ouvidos preenchidos pela melodia que era tocada ali no momento. Um cara de aparente meia-idade tocava o violino, sozinho no meio do palco, enquanto a platéia observava em silêncio. Logo atrás dele, já havia um piano de cauda negro situado, assim como uma harpa mais para a esquerda. A menina olhou em volta, vendo que havia algumas pessoas em pé que nem ela. Dirigiu-se a uma mulher ao seu lado num tom de voz baixo, quase num sussurro, com medo de atrapalhar a apresentação.
– Por favor, que horas são? – a mulher imediatamente colocou os olhos na garota que falava, olhando em seguida o relógio de pulso que usava.
– Cinco para as oito – a moça respondeu no mesmo tom de voz, erguendo o olhar depois de constatar o horário.
– Ah, certo. Obrigada – agradeceu com um sorriso e voltou seus olhos para o palco. Faltava bem pouco para a apresentação das oito.
Aguardou e assistiu ao violinista. Ele era bom e tocava uma música solene, deixando que o violino chorasse com gosto. Ela começou a pensar, enquanto isso. Apesar de ser seu professor, a menina nunca o havia visto tocar para valer. Apenas as músicas que a garota treinava sistematicamente duas vezes por semana, que apesar de belas e delicadas ainda eram um tanto quanto simplórias. Como será que ele era quando tocava a sério?
Os cinco minutos passaram rapidamente e logo o homem fazia reverência, agradecendo a atenção. A platéia aplaudiu bastante, inclusive , e depois de alguns segundos de aplausos o cara foi para as coxias, indo embora. Nesse momento, várias pessoas se levantaram, saindo de seus lugares. Aparentemente, havia uma rotação de público a cada apresentação.
Sem perder tempo, a menina começou a descer o corredor, alcançando um lugar na sexta fila, mais à direita. Sentou-se ali e apoiou a bolsinha no colo, respirando fundo. Observou as pessoas que, como ela, rapidamente pegavam os lugares vagos. Depois de no máximo dois minutos, o movimento parou e as luzes se apagaram aos poucos, restando apenas a iluminação do palco e a de emergência do corredor.
Uma voz, vinda provavelmente de uma moça com um microfone na coxia, começou a ecoar pelo local com um pouco de frieza.
– Apresentação número vinte e cinco do dia. Modalidade piano. apresenta “Réquiem Para Um Sonho”.
Quando ela terminou a frase, as pessoas começaram a bater palmas. rapidamente percebeu e acompanhou. Não demorou muito para que ele entrasse no palco, com as mãos atrás de si, um andar solene e cabeça erguida. O garoto usava um terno preto, que combinava com sua gravata atravessando a camisa branca. Tinha aquele seu sorriso enigmático no rosto e uma parte do queixo um tanto avermelhada. A menina automaticamente apertou a bolsa nas mãos com força e mordeu o lábio inferior, lembrando-se de que era a responsável por aquele detalhe.
O rapaz se curvou um pouco para a platéia, quando chegou à frente do meio do palco, e depois seguiu para o piano, logo se acomodando no assento preto e acolchoado. Estalou os dedos por um segundo, como forma de aquecimento, e os colocou delicadamente sobre o teclado. Esperou uns instantes, como se tentasse se concentrar.
[N/A: Pode colocar a música! Leia com calma a cena.]
Imediatamente afundou uma das teclas, produzindo o primeiro som. Logo, outros também vieram, tão tensos e graves como o primeiro. A melodia parecia sombria. Os dedos dele então começaram a se mover mais rapidamente, produzindo uma seqüência mais completa. observava de seu lugar atentamente, com as costas apoiadas contra a cadeira acolchoada e vermelha e um pouco de tensão nos ombros. tinha a cabeça baixa, concentrado na música, de modo que se via principalmente os seus cabelos a se mexerem conforme ele se movia para acompanhar o movimento dos dedos.
Então, rapidamente, ele ergueu a cabeça para a platéia. sentiu um pequeno rebuliço dentro de si, quando percebeu que o garoto poderia avistá-la dali. Por mais que o rapaz tivesse dito que queria vê-la do palco, aquele provavelmente não era o momento certo para isso. Porém, aparentemente o menino não percebeu a presença dela, visto que logo voltou a atenção e o olhar para o teclado e seus dedos. Talvez tivesse sido apenas uma tentativa de tirar os cabelos do campo de visão ou de dar atenção ao público.
Ele continuou tocando, movendo com certa agilidade as mãos pelo teclado ao longo da melodia. O garoto tocava realmente bem. Ela não conseguiu evitar que ficasse um tanto quanto encantada. Não imaginava que ele tivesse tanto talento e tanta maestria com apenas aquela idade. De repente, a cabeça dele subiu de novo. Tentando ser discreto e rápido, passou os olhos pela platéia à sua frente. Transparecendo uma leve frustração em seu rosto quando terminou, voltou-se mais uma vez para o piano à sua frente. levantou uma das sobrancelhas sem perceber, ajeitando-se na sua poltrona. O que havia com ele?
O primeiro refrão chegou e a música continuou a se desenrolar. Desde que o garoto havia entrado no palco e se sentado, quem estivesse prestando atenção nele poderia perceber que algo tinha mudado no seu jeito, no seu semblante. estava claramente tenso.
Ele ergueu um pouco a cabeça, mas com os olhos ainda nas teclas, como que tentando manter uns últimos instantes de concentração. Então levantou o olhar de novo, observando as pessoas que assistiam à sua apresentação. Deixando de lado qualquer preocupação com a alteração que sua expressão tivera, o garoto se focou no fundo do lugar, passando os olhos cuidadosamente por ali, como se verificasse algo. Sem perceber, começou a mover os lábios, passando a impressão de que falava algo para si mesmo, ainda encarando o seu foco. O olhar dele se movia e a ansiedade ficava cada vez mais óbvia. Ansiedade essa tão grande que não podia ser transposta pela música, descontada com o bater incessante de seus dedos contra as teclas de marfim, controlada em sua expressão.
Quando terminou a análise, o resultado com certeza não tinha sido bom, pois a ansiedade começou a passar o início de desespero. se perguntava abismada o que acontecia e podia ouvir algumas pessoas perto de seu lugar comentando as atitudes estranhas dele. Ela nunca o havia visto daquela forma. Ele que sempre parecia tão frio e tão calmo, com um controle tão grande de si mesmo.
abaixou a cabeça mais uma vez, voltando-se para a tarefa de tocar. Pareceu se acalmar por um momento, concentrando-se apenas nos dedos que passeavam pelas teclas.
Levantou o rosto, olhando a platéia pela milésima vez. Agora ele já movia a cabeça desesperadamente para todas as direções, vasculhando cada canto do teatro, claramente buscando algo. se questionava a cada cinco segundos o que o garoto tanto procurava, vendo a situação obviamente piorar cada vez mais e sentindo o coração apertar com isso. parecia não se conformar. O pânico era evidente em seus olhos , agora arregalados e vidrados, vazando o seu desespero. Alguma coisa havia dado errado. Alguma coisa havia dado muito errado.
A melodia da música começou a acalmar. Os seus dedos desaceleraram e abaixou a cabeça, como quando começou o número, tocando as notas finais. Deu início à última seqüência, soltando as notas uma atrás da outra, até que apertou a tecla final, deixando-a ressoar gravemente por toda a acústica do local. , por estar mais para o canto, podia ver: a sua mão tremia.
Assim que ficou claro que a música havia acabado, a onda de aplausos começou e logo estava participando dela. O número havia sido incrível, mesmo com as suas peculiaridades. se levantou, ainda tendo tensão em seu rosto, e foi para a frente do palco como no começo. Curvou-se em agradecimento e começou a andar para a coxia, assim que suas costas ficaram eretas de novo.
As pessoas começaram a se levantar novamente e a menina fez o mesmo, começando a olhar em volta. Viu alguns espectadores irem para portas nas laterais. Curiosa para saber aonde elas levavam, seguiu até lá com seu salto batucando no chão de madeira. Quando percebeu, estava num corredor branco e cinza e atrás de si tinha uma porta aberta. O papel colado na parte da parede em cima dela dizia tudo:
bastidores.
Acordando para a realidade por um momento e percebendo que a hora de falar com ele e lhe pedir perdão havia chegado, respirou fundo, pondo-se a caminhar logo em seguida. Entrou por aquela porta e seguiu em frente. Depois de alguns segundos andando, chegou a um lugar em tons de marrom, com carpete e várias portas. Muitas pessoas andavam ali. Esticou um pouco pescoço e conseguiu ver o início das coxias ao fundo do seu lado esquerdo. Quando ela menos esperava, saiu por uma delas andando a passos largos. A garota se assustou com a visão repentina e, sem pensar, se encostou a uma das paredes, tentando se esconder. Ele seguiu direto para um dos muitos cômodos, abrindo a porta e a fechando logo em seguida. saiu de onde estava, observando a porta com atenção. Envergonhada de si mesma por ter tido aquela reação, determinou-se a ir até lá.
Começou a andar, vindo do lado oposto, quando uma senhora de idade com vestido salmão chegou àquela porta um pouco antes dela. Foi inevitável que a garota parasse os seus passos por um momento. Quem era aquela mulher? Seja quem fosse, havia deixado a porta aberta. A menina se posicionou na parede ao lado dessa, esperando que estivesse sozinho novamente.
Porém, a conversa podia ser claramente ouvida do lado de fora.
– Foi simplesmente divino! – a senhora começou a falar assim que avistou o menino dentro do quarto, indo em direção a ele. Pegou o seu rosto e lhe deu um beijo na bochecha. – Meu anjo, você está cada vez melhor – deu uma pequena risada como agradecimento pelo elogio.
– Obrigado, vó – o rapaz disse, pegando as mãos dela que estavam em sua face. – Foi legal, então?
– Legal? – a mulher levantou as duas sobrancelhas, automaticamente provocando uma risada no neto. – Foi apenas a melhor versão que já ouvi dessa música! – o menino sorria com tudo aquilo, mas logo o sorriso começou a quebrar.
– Vó... Ele veio? – a senhora, que antes estava radiante, agora tinha a expressão quebrando aos poucos também. Ela tomou posse completa das mãos dele, segurando-as com firmeza.
– Ah, querido... Eu... Você já sabia que as chances eram pequenas – os olhos ficaram rapidamente encharcados de dor no fundo de suas pupilas. A senhora percebeu isso. – Mas não fique triste! – soltou as mãos dele e colocou as suas no rosto pálido à sua frente outra vez. – Isso só prova o idiota que ele é.
– Eu sei. É que... Não sei – o garoto suspirou, deixando os cabelos lhe cobrirem um dos olhos. Moveu a cabeça, tirando-os dali e observando o relógio na parede. – Que horas sai o seu ônibus?
– Na verdade, ele sai daqui a pouco... – ela desceu as mãos, colocando-as nos ombros dele.
– Pode ir. Eu não vou ficar chateado – a mulher levantou o olhar em confirmação e o menino assentiu com a cabeça. Ela lhe deu um abraço apertado e um último beijo no rosto, dizendo-lhe adeus enquanto seguia para a porta.
Ouvindo os passos se aproximando, mudou o foco de seus olhos, fingindo que prestava atenção em outra coisa. A mulher saiu do camarim e passou reto por ela, seguindo para a porta ao fundo do outro lado. Sem perceber que ficou a observá-la até que ela definitivamente estivesse fora do local, virou-se para o outro lado, dando de cara com aquela porta ainda aberta. Deu dois passos até lá, tentando encontrar as melhores palavras que poderia usar.
Quando adentrou o cômodo, pôde ver se apoiando na penteadeira que tinha ali, com o peso jogado nos braços e a cabeça baixa. Ela deu outro passo. Ouvindo o barulho do salto, ele levantou o rosto, vendo que havia alguém atrás de si pelo espelho à sua frente e logo se virando. Não conseguiu evitar que a surpresa transparecesse no seu rosto quando viu ali parada na porta. A menina, por sua vez, não pôde evitar a expressão de choque. Lágrimas desciam pelos olhos dele.
– Que foi? Veio bater mais em mim? – o menino disse, virando-se para o outro lado e limpando os olhos com as costas da mão. se permitiu entrar mais no quarto.
– Não! Eu... É, eu... – por mais que tivesse pensado nisso antes, não sabia que palavras usar. Era como se nenhuma fosse boa o suficiente. Abaixou o seu olhar, levando-o para um dos cantos inferiores. – Desculpe-me – ao ouvir isso, o garoto voltou-se para ela. – Desculpe-me por ter socado você, dado um tapa... Por ter gritado daquele jeito e dito que a culpa era toda sua – o seu olhar continuava baixo, porém agora no centro de seu campo de visão. – Eu... Coloquei todas as minhas esperanças naquilo, naquela conversa com meu pai, e ao saber da verdade... Perdi o controle. Não devia ter feito isso, mas foi mais forte que eu. Aí saí na rua, completamente descontrolada, e acabei descontando na pessoa que no fim das contas mais me apoiou nisso tudo nos últimos tempos... Você – ela levantou os olhos, dando de cara com o menino que a encarava ainda no mesmo lugar de antes. Se não fosse pelos olhos, poderia dizer que a expressão dele era vazia. A menina respirou fundo, olhando para o chão de novo. – Você não tem culpa de absolutamente nada. Pelo contrário. Só me ajudou, porque depois percebi que... Realmente havia ficado melhor – uma lágrima desceu de seus olhos, dando a partida para que outras descessem juntamente. – A vergonha que estou sentindo agora... Eu não consigo nem... – um soluço escapou. A garota tapou os olhos com as mãos por impulso. – Meu Deus, eu me sinto uma completa brutamontes...
– Ei, ei, ei – ela ouviu a voz de interrompê-la. Tirou a mão do rosto para poder olhá-lo. – Brutamontes são os caras que você quebra no ringue. Você é uma dama – a menina não conseguiu evitar que uma risada escapasse no meio de suas lágrimas. Ele deu um sorriso singelo.
– Mas me desculpe... Mesmo – continuou, limpando o canto dos olhos com a ponta dos dedos.
– Está tudo bem – o garoto respondeu, apoiando o quadril na mesinha atrás si, com os braços cruzados. – O soco doeu e tudo o mais... Porém, realmente entendo que tenha surtado daquele jeito. Não deve ter sido nada fácil ouvir aquilo – ele coçou um dos olhos inchados, abrindo um sorriso sincero em seguida. – E... Você veio mesmo assim.
– Claro. Eu tinha prometido... Lembra? – a menina coçou o canto da nuca com o dedo do meio.
– Foi mais legal do que ficar no sofá vendo TV? – o menino perguntou, deixando que o seu sorriso enigmático de sempre se moldasse ali no seu rosto.
– Bem mais legal – ela riu ao ver que ele se lembrava daquela fala. O sorriso dela murchou um pouco depois de alguns segundos. – ... – o rapaz ergueu as sobrancelhas em sinal de que estava ouvindo. – Por que você estava chorando?
Ele paralisou por um momento, engolindo em seco. O seu olhar imediatamente foi parar no chão.
– Ah, é uma longa história... Nada de mais – o menino se virou, começando a ajeitar suas coisas que estavam espalhadas pela mesa. deu um passo para frente.
– Sabe, essa não é a última vez que a gente vai se ver... – o garoto não conseguiu evitar uma risada. Odiava quando viravam o seu próprio jogo.
parou o que estava fazendo, ficando completamente imóvel por alguns instantes. A menina se perguntava o motivo daquilo, mas achou melhor esperar. A única coisa que se movia eram os dedos que batiam ritmados na madeira, revelando que sua mente trabalhava. De repente se virou para a garota, ainda se apoiando na mesinha.
– Eu sou um bastardo – ele disse simplesmente. Não havia conseguido encontrar uma boa maneira de iniciar aquilo, então decidira começar de maneira direta. não conseguiu esconder a completa confusão em seu semblante.
– ...Como? – foi o que ela conseguiu articular depois de um tempo. O menino suspirou.
– Exatamente isso que você ouviu. Eu sou um bastardo – repetiu mais uma vez. Vendo que a menina continuava perdidamente confusa, resolveu, pela primeira vez em anos, contar aquela história do começo. – Quando eu tinha oito anos, meu pai percebeu que eu e ele... Não tínhamos muitas semelhanças. Começou a achar estranho. Afinal, um dos filhos não era nem mesmo parecido com o próprio irmão. Então mandou fazer um teste de paternidade e, bem... – o garoto se permitiu praticamente sentar na mesa, cruzando os braços, enquanto soltava outro suspiro. – Aparentemente, minha mãe tinha andado pulando a cerca – tinha uma expressão que beirava o horror no rosto, ainda encarando em completa quietude o menino. O garoto acabou rindo um pouco de nervoso. – Aí foi um completo quebra-pau em casa. Ele até decidiu não se divorciar da minha mãe... Mas me expulsou de casa – a menina arregalou os olhos.
– O quê?! Como...? – ela ficara chocada. – Como assim o expulsou de casa?!
– Meu pai simplesmente virou para todos e disse que não queria mais me ver! – desencostou da mesa. – Nem ele e nem praticamente todos os meus parentes por parte dele.
– , isso não pode ser verdade! É um absurdo! – ela se aproximou.
– Mas é a verdade! – a voz dele acidentalmente se tornou mais forte pela frustração de ter aqueles fatos passando por sua cabeça de novo. – Eu me tornei motivo de vergonha para a família inteira! – ele se indicava, tendo os dedos contra o seu peito que subia e descia mais visivelmente. – , eu sou a prova viva em carne e osso do par de chifres que meu pai ganhou! – a essa altura o menino já gritava, os olhos brilhando. – Sou a mancha na reputação dele! Por que alguém daquela família ia gostar de mim?!
– Mas você só tinha oito anos...! A sua mãe não fez nada?! – a menina estava horrorizada. Nunca pensara que, por trás daquela figura tão rígida e fria dele, havia algo como aquilo. não conseguiu evitar que risse com escárnio.
– Sabe o que ela fazia quando eu a chamava, quando eu chorava no meio daquilo tudo? – a garota não respondeu, esperando-o continuar. – Minha mãe me ignorava. Fingia simplesmente que eu não existia – lembrar-se daquilo doeu demais. Não conseguiu evitar que algumas lágrimas rolassem por sua face. – Acho que ela queria me apagar da vida dela e apenas continuar casada com meu pai. Salvar o que restava da própria honra – seus olhos se desviaram para o lado e seu sorriso irônico morreu, restando ali apenas tristeza e mágoa. – Mas algumas pessoas da família dela se revoltaram com isso. Aí minha avó veio e disse que ia ficar comigo – acabou deixando um pequeno sorriso escapar ao se lembrar da senhora. – De qualquer forma... – ele limpou a garganta, procurando sair daquele assunto para entrar logo no outro. – Depois de tantos anos, achei que poderia fazer as pazes com meu pai... Apesar de tudo que aconteceu, nunca consegui me livrar das boas lembranças que tive com ele. Então pensei que, ao saber que eu ia tocar no festival municipal, o cara ia ceder e vir... Porém, pelo jeito, eu estava enganado. E, bem, se ele não quis vir, imagine se minha mãe ou meu irmão iam querer...
estava paralisada diante de tudo que havia acabado de ouvir. Por isso procurava por algo desesperadamente enquanto tocava. Por isso a sua expressão só foi piorando cada vez mais. Por isso que ao final do número o pânico já transbordava de sua expressão.
Por isso ele berrara que ela não sabia o que era dor.
– Eu me sinto um completo idiota com isso – o menino bufou, virando-se e se apoiando de novo na mesa da penteadeira, tendo os olhos fixos no espelho meio sujo que o refletia. Podia ver com o canto dos olhos parada a alguns passos atrás de si. – Faz tantos anos. Todo mundo parece já ter superado. Meus pais, meu irmão, minha avó... Só eu fico criando esperanças. Sou um fracote mesmo – suspirou pesado, deixando a cabeça cair e vendo agora a madeira clara da mesa. Ouviu alguns passos que logo depois cessaram. Uma voz soou bem próxima atrás dele.
– Você não é fraco. Só é de papel... Enquanto tudo à sua volta é de rocha e coisas parecidas – um sorriso involuntário apareceu no rosto dele. Os olhos se fecharam.
– Quem nem o seu coração, então – o garoto respondeu. sentiu a coluna ficar um pouco tensa e algo subir por ela, acidentalmente abrindo de leve a boca. Eles continuavam na mesma posição. – Ele é muito frágil, mas vai dar tudo certo – virou apenas o rosto para trás, tentando manter o sorriso e dando de cara com uma menina que tinha os olhos numa apreensão quase que infantil. O menino baixou o seu olhar ali mesmo, ainda sorrindo, enquanto voltava a face para o ponto de antes. Num impulso que nunca mais conseguiu explicar, a garota moveu sua mão até a dele pendurada fora da mesa, pegando delicadamente os dedos com as pontas dos seus.
– Então sabe que também vai ficar tudo bem com você, né? – a voz dela ressoou sozinha no quarto, estilhaçando o silêncio que havia se instalado. A princípio, não houve resposta. Porém, logo pôde sentir a mão de se mover delicadamente. Ele posicionou os dedos dela na sua palma, apertando-os sem pressa logo em seguida. A menina não conseguiu evitar que um sorriso singelo, mas expressivo, se abrisse em seu rosto.
– Ficou muito estranho o meu número? – o rapaz perguntou, ainda sem se virar ou sair daquela posição, segurando consigo os dedos da garota.
– Um pouco... – franziu o cenho de um jeito engraçado, baixando o seu olhar e quebrando os cantos de seu sorriso com uma risada que tentava segurar, enquanto se lembrava da cena. – Mas só porque você ficou com cara de desesperado na maior parte dele – o menino, ao contrário dela, não segurou a sua risada fraca que saiu. – Retirando isso... Foi espetacular – ele virou o seu rosto para ela, olhando em seus olhos. – Eu sabia que você tocava bem. Afinal, é meu professor. Porém... – a sua frustração em não achar as palavras certas se expressou num risinho abafado acompanhado de um pequenino sorriso.
se permitiu sorrir com gratidão diante daquilo. Automaticamente, seu polegar roçou num afago os dedos da garota que continuavam em sua mão. Foi nessa hora que percebeu que ainda estavam naquela posição. Um pouco no susto, acabou quebrando o contato de um jeito inesperado, largando os dedos dela que depois de alguns segundos voltaram a ficar perto da barra do vestido azul. Nisso, o garoto desviou os olhos e acabou por encontrar o relógio pendurado no alto de uma das paredes brancas.
– Droga – murmurou para si, voltando num reflexo seus olhos para o chão e em seguida para a menina à sua frente. – Já são quase nove horas. É melhor a gente ir – a garota olhou para o relógio também, parecendo que acordava naquela hora para a realidade. – Tem carona?
– Eu vim de táxi. Acho que vou voltar assim também – ela respondeu, enquanto observava juntar algumas coisas em cima da mesa de madeira da penteadeira e colocá-las dentro de uma mochila que estava num banco ao canto.
– Ótimo. Aceita então rachar uma corrida comigo? – ele perguntou, ainda mexendo na mochila e olhando no fim da pergunta para a garota. Ela imediatamente assentiu com a cabeça e um sorriso. O garoto colocou a alça da mochila em seu ombro. – Só vou me trocar porque não rola sair por aí assim – referia-se ao terno que trajava. – Você me espera?
– Claro – a menina respondeu rapidamente, colocando uma mecha da franja atrás da orelha.
sorriu de canto como resposta e saiu do camarim, indo em direção ao banheiro que ficava ao lado e sendo acompanhado pelos olhos da garota. Assim que o baque da porta sendo fechada soou, tirou os seus olhos dela e observou o lugar à sua volta. Era um quartinho pequeno de paredes brancas, com alguns bancos cinza escuro acolchoados e uma penteadeira que tinha um espelho meio sujo e empoeirado. Vendo o seu reflexo difuso, mas ainda bastante claro, aproximou-se da imagem. Já perto o suficiente, olhou bem para si.
Mexeu na franja, levando os dedos em seguida para os fios de cabelo que nasciam acima de sua nuca, mexendo neles também. Observou o seu vestido. Sem perceber, deixou a mão escorregar pelo pescoço até chegar ao seu peito. A renda branca escondia os primórdios de sua cicatriz. Sentindo a textura do tecido primeiro, afundou em seguida um dos dedos no decote, logo encontrando com o tato o inchaço de sua marca. Passou o dedo do meio algumas vezes ali, tentando conhecer aquele vestígio da cirurgia como nunca conheceu antes. Era tão pequeno quando comparado à sua estatura, mas conseguiu ser bem maior do que qualquer noção que ela tinha de si. Seus dedos se retraíram, saindo dali. Voltou a se encarar naquele espelho. Ela era de papel, porém com certeza maior que aquilo.
Rapidamente afastando aqueles pensamentos ainda não tão bem-vindos em sua mente, desviou seus olhos até a mesa de madeira à sua frente. Começou a pensar particularmente em . Antes que sua razão pudesse dar qualquer opinião, sentiu seu peito esquentar e os lábios se esticarem num sorriso. Os ombros se encolheram e os joelhos se apertaram entre si. Foi ele. Foi ele que ficou ao seu lado esse tempo todo, que ouviu cada lamúria, cada dúvida, cada berro dela. Foi ele que mesmo depois de um soco se ergueu e tentou acalmá-la. Foi ele que, ao contrário de muitos, conseguiu adentrar aquele seu purgatório particular. Foi ele que levou a música para a vida dela, que fechou cada uma de suas rachaduras com claves de fá e de sol. Foi ele que confiou a ela aquela história tão terrível.
O sorriso se abriu mais ainda. Sem dúvidas, seria eternamente grata ao seu pai por ter se lembrado daquela fala idiota dela.
– Vamos? – ergueu os olhos para o espelho, vendo refletido nele o garoto que estava na porta. Virou-se para ele, sentindo os cabelos que se moveram roçarem nos ombros. O rapaz agora usava tênis, jeans escuro e um moletom liso cinza claro e com capuz, ainda tendo a mochila pendurada pela alça em um de seus ombros.
– Sim! – ela saiu dali, andando até ele. Eles saíram do camarim juntos, lado a lado. – Onde a gente vai descer? Acho que o que tenho dá para mais uma corrida desde que não vá muito longe – andavam pelo carpete marrom até a porta de saída daquele lugar.
– Descemos na sua casa e de lá vou a pé para a minha. E nem abra a sua bolsa. Só vamos dividir o táxi fisicamente – o menino disse, sem desviar o seu olhar da direção que seguia.
– ...! – ela ia argumentar, mas foi interrompida. O garoto parou de andar um pouco, de modo que a menina também cessou os seus passos quando percebeu.
– Você me deu um soco que doeu pra cacete. O mínimo que podia fazer é obedecer – disse com seu sorriso enigmático, observando com o canto dos olhos aquela garota que o encarava com um pouco de surpresa na hora. Em seguida, a moça cerrou os olhos e retraiu os lábios, em sinal de aborrecimento por ter sido vencida na discussão. O menino riu com gosto da cena, voltando a andar e colocando por um momento a sua mão nas costas dela como sinal para a garota voltar a se movimentar.
Logo, estavam do lado de fora do teatro. Desceram as escadas de pedra clara e passaram a caminhar sobre a calçada. O céu estava de um puro azul marinho confeitado com estrelas brilhantes, acompanhado das luzes artificiais dos postes, e o vento, mesmo que gélido, soprava como uma brisa. O menino num reflexo abraçou os próprios braços, encolhendo-se um pouco.
– Meu Deus, como esfriou – ainda andando, colocou o seu capuz com as duas mãos rapidamente. Parou quando estava no fim da calçada e bem em frente à rua. Virou a cabeça e pousou os seus olhos em ao seu lado. – E você no mínimo deve estar congelando – a menina olhou para ele. Não podia negar que estava com muito frio em seus braços. E não precisava nem abrir a boca para confirmar. Ela estava completamente encolhida numa tentativa inútil de reter o calor de seu corpo. – Aqui. Ponha isso – jogando a mochila pendurada para a frente de seu corpo, ele a abriu e tirou de lá a casaca de seu terno. Rapidamente a colocou sobre os ombros de . A garota arrumou um pouco, puxando para frente para que não caísse de seu corpo, e virou os seus olhos para o rapaz.
– Obrigada – agradeceu com a voz num tom tranqüilo, observando-o sorrir em resposta e logo virar o olhar para a rua, a fim de encontrar um táxi.
A menina passou a olhar para os próprios pés, escutando os barulhos da rua com atenção. Por algum motivo, ela se sentia sozinha e ao mesmo tempo não. Havia um mundo inteiro à sua volta e também um deserto. Ergueu a cabeça, mirando com suas pupilas as luzes vindas do trânsito. Sentiu algo subir dentro de si.
– Mas será que é tão difícil assim ver que tem gente nesse ponto? Táxi! – o garoto resmungou frustrado, logo aumentando o volume de sua voz e erguendo um de seus braços.
– ... – a menina deixou escapar com a voz fraca, movendo apenas um pouco a cabeça para poder enxergá-lo com o canto do olho.
– Ei...! Ele me ignorou! – praticamente gritou quando um táxi passou reto por eles sem ao menos desacelerar. Bufou, voltando-se para o outro sentido da rua. – Táxi!
– – ela repetiu, tentando fazer sua voz soar mais forte dessa vez para que o menino a ouvisse. Virou mais a cabeça na esperança de que isso ajudasse.
– Se eu começar a pular, será que eles vão dar atenção? – o garoto refletia consigo mesmo, encarando ainda o mesmo lado da rua.
– ! – se irritou e deixou sua voz sair no primórdio de um berro, virando seus olhos frustrados e o cenho franzido para ele, enquanto ainda tinha os braços cruzados.
– O que foi?! – o menino finalmente respondeu, um tanto confuso pelo grito repentino, virando o seu corpo todo para ela.
De repente, descruzou seus braços, ainda olhando para os olhos cheios de dúvida do garoto à sua frente. Sem nenhum aviso prévio, deu dois passos em direção a ele, agarrando-o pelos dois lados do capuz e puxando o rosto dele para perto do seu.
A atmosfera dentro do capuz dele fazia grande contraste com a de todo o resto em volta. Era morna e úmida, o que causou rapidamente um pequeno choque térmico nas bochechas dela. Não havia qualquer movimento naquele beijo. Eram apenas os dois com os lábios colados. não se movia, completamente paralisado, e também não se mexia muito.
Depois de alguns segundos que lhe pareceram minutos, afastou os seus lábios agora aquecidos dos dele, não sem antes fazer soar levemente o típico barulho de beijo. Abrindo os olhos pela primeira vez desde que colocara suas mãos no capuz cinza, respirou fundo e encarou os olhos dele outra vez. Havia um quê de choque neles, que estavam simplesmente arregalados, acompanhando a boca que havia ficado um pouco aberta depois do que aconteceu. Submergindo de seus devaneios, engoliu em seco e se virou para a rua, ainda tendo vestígios da sua expressão de antes no rosto. A garota fez o mesmo, porém o espanto em sua face era mais sutil.
– Er... Bem... Isso... Foi bem legal – ele disse, ainda tendo o olhar fixo na rua.
ainda encarava à sua frente o que para ela era o nada, quando sentiu algo em seus ombros. Quando se deu conta, um dos braços de havia deslizado por eles até alcançar o braço dela no outro lado. Com a mão já ali, firmou os dedos e puxou a menina ainda de lado para si, encostando as laterais de seus corpos. Ele não desviara o seu olhar fixo na rua até então, quando o ergueu um pouco para o céu acima de si.
Levando alguns segundos para assimilar o que tinha acontecido, algo mudou no olhar dela. A garota imediatamente passou a lutar ferozmente com o sorriso idiota que queria se alastrar de todo jeito por seu rosto. Forçou as bochechas o máximo que pôde, mas estava ficando cada vez mais difícil lutar assim contra si mesma. Rendendo-se e sem contrariar a posição na qual ele a colocara, ela pôs os seus braços em volta do tronco de do modo que pôde, apertando-o contra si e repousando a cabeça sobre a clavícula dele.
Uma vez ajeitada naquela posição, elevou os seus olhos para o céu como tinha feito. Não pôde deixar de aumentar o seu sorriso. Os dois observavam ainda abraçados, ainda juntos, aquela lua cheia, branca e imaculada, que brilhava sobre suas cabeças bem no alto.
Onze meses depois.
Não devia ter abaixado a guarda. Rapidamente perdeu o equilíbrio com o chute que recebeu no estômago e foi parar no outro lado, depois de um gancho de esquerda. Caindo de costas na beirada do ringue, tinha os ainda olhos fechados pela dor e por reflexo. assistia à cena da arquibancada e com um pouco de horror na expressão.
– É assim mesmo? – não conseguiu esconder o espanto em sua voz, ainda tendo o olhar vidrado nas duas pessoas que lutavam. O homem ao seu lado riu um pouco.
– Eles são especialistas em apanhar. Não se assuste – o pai de sorriu feliz ao fim da frase, observando a filha descansar deitada no ringue. Sam, o treinador que lutava com a menina naquele momento, fez sinal de tempo.
– Acho melhor esperar uns segundos. Certo? – ele olhou para a garota estatelada no chão, que ficou imóvel como resposta. Riu do exagero dela, logo se virando para a arquibancada e fazendo um sinal com uma das mãos, acompanhado de um breve assobio. – Ei, ! – o homem que antes estava sentado agora se levantava.
– Eu volto – deu um último olhar no garoto ao seu lado, antes de descer até o solo e dali andar até o cara que saía do ringue.
, observando a cena e movendo um pouco os pés, acabou por se levantar também, indo até a menina ainda caída que olhava insistentemente para o teto do local. Chegando a ela, apoiou-se ao piso do ringue que ficava na altura de seu estômago, passando a cabeça por entre as cordas de segurança para poder encarar o rosto de .
– Tudo bem aí? – ele perguntou, vendo um sorriso logo se abrir no rosto cansado dela.
– Nunca estive melhor – ela viu de sua posição abrir o seu sorriso típico. O rapaz moveu um dedo até o centro de peito dela, tocando com a ponta dele ali.
– Está funcionando direitinho? – questionou, enquanto a menina parava de arfar para poder se concentrar em olhar para o garoto. Ele se referia ao marca-passo que ela havia colocado.
– Parece que sim – abriu um sorriso ao fim da fala, continuando em seguida e tendo o dedo dele ainda ali. – Só estou fora de forma.
– Compreensível – riu da palavra que o menino escolheu para usar, focando o seu olhar nos olhos dele.
– Ei, ! – ouviu seu treinador dizer. A garota levantou a cabeça para poder encará-lo do outro lado do ringue. – Pronta?
Ela sorriu com audácia em resposta, erguendo suas costas até que estivesse sentada. Girou o corpo para atrás de si, a fim de dar um fim decente à conversa que estavam tendo. Entendendo o recado, o garoto depositou um beijo em seus lábios, afastando-se dali em seguida.
– Acabe com ele – sussurrou para a garota antes de voltar à arquibancada. manteve os olhos nele como resposta, mais tarde se erguendo por completo e se voltando para o homem que a esperava no ringue.
Estalou os dedos quando fechou a mão em punho, pensando em como começar aquela segunda rodada. O sorriso de canto em seu rosto cresceu, tendo um olhar desafiador em seus olhos .
Sem pensar uma segunda vez, correu até o treinador, pulando antes de chegar a ele para poder lhe acertar um chute certeiro.
Fairy blue, it is only for you
That I would crush the stars
And put them on display
Black paper moon.
If you really put your faith in me,
When you're lost, here I am,
Forever with your soul,
Waiting here above you patiently,
Just like the shining moon.
– Vejo você nos seus sonhos, yeah, querido. Nos seus pesadelos também. É lá onde o encontrarei.
: s. sorriso largo, arreganho dos dentes. // v. arreganhar, sorrir de modo malicioso, ou afetado, arreganhar os dentes.
– Fada azul, é somente por você / que eu esmagaria as estrelas / e com elas decoraria / a lua negra de papel. / Se você realmente acreditar em mim, / quando estiver perdido, aqui estarei, / para sempre com a sua alma, / aguardando aqui em cima pacientemente, / como a lua a brilhar.