A escuridão começava a tomar seus olhos quando ele viu por fim o garoto pelo qual dava agora sua vida. Ele havia falhado miseravelmente. Deveria resistir, deveria acabar com essa guerra... Mas, acima de tudo, deveria proteger Harry. Por ela. E pela tolice de um homem que não podia amar, ele, que fizera tudo por amor, agora caía.
Apavorado com a ideia de que ele nunca soubesse a verdade, Snape deu poucas e curtas instruções ao garoto. Sentia a vida fugindo de seu corpo mais e mais a cada segundo, e com ela todas as suas experiências. Enquanto não era tarde demais, ele deveria ensinar uma última lição ao grifinório.
Severo pegou sua mão e, esforçando-se para ignorar seus pulmões ardentes, moveu seus lábios com um último suspiro.
- Olhe para mim. – murmurou.
Ele viu novamente por um segundo os olhos de Lilian copiados naquele rosto. Parecia-lhe egoísta que usasse de suas últimas palavras em um pedido tão egoísta, mas jamais se perdoaria se nunca mais pudesse ver os olhos daquele por quem tanto lutou. De quem tanto ele amou.
Por fim, não encontrou mais forças para segurar a sua mão, para olhá-lo nos olhos. Só esperava que suas palavras pudessem de algum modo parar aquela guerra. Se estivesse em qualquer outra situação, sorriria ao pensamento – Não era Dumbledore quem sempre dizia que nossas palavras são nossas mais preciosas armas?
Mas não havia mais forças nele para resistir. Ele só queria que a dor que lhe percorria cada centímetro de seu corpo logo sucumbisse. Como esperado, após a dor veio o torpor. Começou lentamente e logo nada mais sentia. Aos poucos, a liberdade tomou conta de sua mente. Isso era a morte? Como cair no sono, ele sentia-se livre em seus pensamentos, mas ao contrário de um sonho, sentia que poderia mover qualquer parte de seu corpo ou fazer qualquer coisa sem nenhum tipo de problemas. Eu deveria estar morto – pensou, e pouco em seguida percebeu sua capacidade de pensar. Com pesar notou que de nada seria útil, nem sua capacidade de pensar nem sua capacidade de movimento, pois tudo o que havia a sua volta era nada. A escuridão total. Também notou que ainda que achasse que poderia se mover, não possuía um corpo. Ou, se o possuía, não o via. Era como mergulhar de novo na penseira, mas desta vez sem estar na cena – somente observá-la. Ele tinha presença, mas não a tinha. Por um segundo ele imaginou se aquilo seria a total ausência de matéria, de pensamentos, de opiniões. Um lugar para refletir pela eternidade sobre sua vida – surpreendeu-se ao perceber que lembrava ainda mais claramente do que quando vivo de cada minuto de sua existência no que antes conhecia como mundo. Belo castigo.
Ainda que não tivesse consciência de um corpo físico, e sim apenas de sua presença – ainda que a considerasse tão sólida quanto um dia considerou seu corpo –, sentiu-se sendo puxado. Naquele local não havia o certo ou o errado, o para baixo ou para cima, esquerda ou direita. Não havia nada. Logo, ele não sabia em que direção estava indo. Ainda assim, aos poucos o preto tornou-se branco.
E, aos poucos, o que antes era o nada embaixo dele, tornou-se uma sólida superfície: um chão. Ele então notou que antes estava perfeitamente confortável sem uma base, mas agora o pensamento lhe causava arrepios. E, com o arrepio, notou que lentamente ele tomava forma. Usou o poder que então sentia em sua presença de antes para erguer um braço. E viu ali, a sua frente, seu braço erguido com as vestes de sempre. Tocou uma mão com a outra. Podia de novo sentir alguma coisa. Piscou. Ainda estava cercado de um imenso nada, ainda que fosse um nada mais consistente do que o anterior.
Um brilho mais forte – como se fosse possível algo branco ser mais branco do que aquela dimensão – surgiu ao longe. Severo piscou novamente e a figura pareceu-lhe mais clara. Ele começou a andar em sua direção – com a grande realização de que podia se mover – e conforme o fazia, o branco a sua volta tomava estranhas formas, ganhava sombras, e constituía um ambiente como no mundo em que ele estava acostumado a viver.
A figura a sua frente então parou, esboçando um triste sorriso.
- Não posso dizer-lhe que é um imenso prazer vê-lo aqui, Severo.
Ele piscou. Seria sua imaginação? Ele se perguntou se algum dia poderia ela criar algo tão real. Mas, de novo, as regras da realidade não se aplicavam ali, aonde quer que fosse.
- Alvo? – notou que sua voz continuava a mesma.
O homem assentiu. Os olhos azuis, como sempre, encarando-o por cima dos óculos de meia lua, tão familiares.
- Onde estamos? – perguntou.
Dumbledore riu e deu de ombros.
- Como poderia eu saber, meu caro? Não sou dono deste lugar. Ninguém é. Mas acredito que cada um veja mais ou menos o que deseja ver. Portanto, não é tão diferente do que chamávamos de realidade. Ou vida. Não sei mais se posso confiar em nossos parâmetros de normalidade afinal.
Snape assentiu ainda confuso.
- E isto é tudo o que temos? Para sempre uma imensidão branca pela frente? Um nada?
Alvo fez um gesto com sua mão e começou a caminhar na direção oposta a ele. Severo o seguiu.
- Depende muito de você. Se quiser para sempre ficar aqui, acredito que possa. Acredito que este lugar seja infinito, como nossas mentes. Você vê, não há barreiras a nada. Ainda assim, imagino que você, que sempre foi tão ligado à parte concreta do mundo, não veja muito prazer em estar em uma infinidade tão abstrata para sempre. – Severo sorriu, era verdade. – Mas acalme-se, meu caro amigo. Como eu disse, este é um mundo muito parecido com a chamada realidade. E, como em vida, nós preferimos nos ater ao que conhecemos e a quem conhecemos. Isso para dizer: há muito mais. Você só tem que seguir adiante, vê? – Severo notou que aos poucos outras cores invadiam o expecto branco, tomando formas muito parecidas com os campos que cercavam – quem diria? – Hogwarts.
- Nós? Outros compartilham desta... Experiência, por assim dizer?
- Ah, Severo! Todos aqueles que não estão mais em um mundo, hão de estar em outro. Encontrarás todos os que lá já não estavam mais contigo. – Alvo o encarou por um instante. Severo piscou. Então, se encontraria todos que já haviam morrido... Percebeu com um choque que encontraria Lily. E James. E Remo. E Sirius. Todos. Grunhiu.
- Grande maravilha. Mais uma eternidade convivendo com essas pessoas, dividindo meu fracasso com elas...
- Fracasso, Severo? – Dumbledore ergueu as sobrancelhas, surpreso.
Ele suspirou.
- Eu falhei em minha missão, você deve saber. A guerra não estava vencida. E eu morri. Deixei-me abater, uma presa fácil. Não estou mais lá para guiar Harry ou o mundo, como o senhor previu.
- Como, falhou? Severo, você lutou mais bravamente do que qualquer outro de meus homens! Cedo ou tarde todos os grandes caem, você sabe. – levantou um dedo para impedir que Snape o interrompesse. – E não ouse dizer que falhou em sua missão. Como poderia? Guiou-o no caminho certo! Fez tudo o que poderia! Manteve a escola e o garoto seguros, fez tudo o que lhe foi pedido!
- Mas caí quando mais ele precisava de mim. Não me dou por satisfeito por ter lutado todas as batalhas e perdido por fim a mais crucial, a decisão de nossa guerra.
Alvo sorriu.
- Sempre achamos que os vivos ainda precisariam de nós, mas a verdade é que há muitos outros lá para continuar nossos caminhos, Severo. Veja! Você mesmo continuou tantos! E agora outros levarão sua missão a cabo, meu caro. Não podemos durar para sempre, não podemos para sempre interferir naquelas vidas. Não naquele mundo. E você já mudou mais vidas do que a maioria de nós. – com um gesto de sua mão, Dumbledore indicou o caminho a frente. E Snape, tão concentrado no discurso que ouvia, dera-se conta do mundo que se abria. Campos, castelos, uma paisagem típica e, ainda assim, linda como nada que ele já houvesse visto. Mais do que isso, agora notava as pessoas que caminhavam por entre as árvores. Tantos rostos familiares...
- Eles podem nos ver? – perguntou.
- Mas é claro! Sim, sim, isto é muito como o mundo real. E, como nele, você pode notar que as pessoas tendem a viver novamente em sociedade. Não fomos feitos para viver sozinhos, aparentemente.
- Ótimo, nem na morte terei sossego para minhas tormentas.
Alvo riu.
- Ah, Severo, notarás por fim que o tempo cura todas as feridas. Parece-me que a morte, por fim, traz alguns benefícios. Muda algumas coisas.
Severo engoliu em seco, inseguro.
- Responda-me uma última coisa, Alvo. Isto tudo... Digamos, está acontecendo em minha cabeça?
Dumbledore sorriu. Os dois eram até parecidos.
-Sim, Snape, claro que sim. Mas quem disse que o que chamávamos de realidade também não estava? Por que, afinal de contas, algo estar sendo formado por sua mente faz desta coisa menos real?
Ele assentiu. Podia ver agora que alguns dos que estavam ali comentavam sua chegada. Notou com o canto dos olhos uma mulher sair detrás de uma árvore e caminhar até ele. Ele piscou. Lily. O cabelo ruivo caía-lhe em ondas pelas costas como sempre, os olhos verdes – que ele se lembrou de há tão pouco ter visto em outro rosto – hipnotizando-o. Ele virou-se em sua direção. Dumbledore sorriu e lentamente se afastou, andando na direção de seu velho amigo Nicholas Flamel e cumprimentando-o.
- Lily?
Ela sorriu. Ele quase se perdeu. Aquele era o sorriso que costumava iluminar seu mundo há tantos anos.
- Realmente faz muito tempo, Sev. Mas não posso dizer que estou contente que você esteja aqui.
Ele deu um sorriso torto.
- É, eu também não estaria. Te atormentarei até na morte, não?
Ela ergueu as sobrancelhas, franzindo a testa.
- Me atormentar? Não, de forma alguma. Quis dizer que não estou feliz com a sua morte. De fato, ninguém aqui deve estar feliz pela presença de ninguém. Mas não podemos esconder o quão melhor é estarmos todos juntos nessa ao invés de sozinhos.
Ele engoliu em seco.
- Então... Você não me odeia mais? – perguntou hesitante.
Ela riu.
- Odiar? Sev, eu nunca te odiei. Já tive raiva de você. Estava brava? Sim. Magoada? Profundamente. Mas te odiar? Não.
- Como? – ele se perdera no raciocínio dela, nunca lhe passou pela cabeça que ela pudesse ter algum tipo de sentimento em relação a ele mais do que o ódio.
Ela balançou a cabeça.
- Acho que lhe devo um pedido de desculpas. O tempo cura todas as feridas e, ainda assim... Sev, quando minha raiva passou – e não pense que demorou a passar –, eu percebi o que havia feito. Eu tinha perdido meu melhor amigo, mas eu já estava envolvida com outras pessoas, e você também... Eu fiquei com medo, fiquei com vergonha. Não quis ir falar com você, pedir para que me perdoasse por ter sido tão dura... Deixei meu orgulho levar o melhor de mim e vejo que não posso cometer esse erro novamente. Depois de um tempo, eu estava casada com James e você... Parecia tão envolvido, digamos, no outro lado da força, que por algum tempo eu cheguei a pensar que talvez alguns males tivessem vindo para o bem. Mas foi então que notei minha parcela de culpa naquilo. Eu te abandonei quando você mais precisava e eu não me perdoo por isso. No fim, sou tão culpada por você ter entrado naquele jogo como qualquer um ali. Podemos dizer que sou, inclusive, responsável por minha morte.
Ele estava chocado.
- Lily... Não. Isto não está certo. Se alguém deve um pedido de desculpas a alguém aqui, sou eu. Você sabe muito bem que eu já estava interessado naquele tipo de magia quando foi tarde de mais. Você sabia de meus preconceitos e lidava com eles todos os dias sem maiores reclamações. Eu passei dos limites e não havia nada que você pudesse fazer. E eu sou mais responsável por sua morte do que você jamais poderia ter sido.
Ela engoliu as lágrimas de seus olhos, cruzou os braços e disse-lhe:
- Não, Severo. Você foi melhor do que eu jamais fui. Ao perceber o que tinha feito, você tentou com toda sua energia me salvar. Dumbledore contou-me tudo, você deve imaginar. Eu, por outro lado, quando percebi meu erro, não me manifestei. Deixei que você afundasse sem maiores ressentimentos. Não se faz isso com um amigo.
- Mas as circunstâncias eram diferentes, Lily. Era uma questão de vida ou morte, e comigo... Só de um tolo garoto indo para um lado que não deveria.
- Mas eu deveria imaginar que cedo ou tarde uma coisa levaria a outra! Severo, você manteve sua fé em mim todos os dias e eu... Eu duvidei de você. Eu perdi meu melhor amigo por conta de uma discussão boba, de um insulto mesquinho de criança. Eu sabia de toda a sua história, eu sabia que você estava em seu pior momento, eu sabia como você detestava ser humilhado ou parecer inferior a qualquer um por causa de tudo que acontecia dentro de sua casa. E ainda assim, eu te deixei na mão acima de todos os seus pedidos de desculpa por conta de meu ego.
- Não importava o que estava acontecendo comigo, Lilian! Eu nunca deveria ter me referido a você daquela maneira, eu sabia como te afetaria! Eu estava errado, entende? Eu, eu sabia o quanto te chateava. Não se faz isso com um amigo, você mesma disse. Desculpe-me.
- Mas eu também nunca deveria ter te abandonado por tal coisa!
Ele suspirou, estava cansado de vê-la jogando a culpa em si mesma.
- Desculpe-me. – repetiu.
Ela sorriu, ficando de frente para ele.
- Só se você puder me desculpar antes.
- Sabe que nunca a culpei por nada.
- Deveria. Mas tudo bem. – ela pegou a mão dele e o guiou até uma clareira. Ele não percebera o quanto haviam andado durante aquela pequena conversa.
- Esta clareira... Esta árvore em específico – ela passou a mão pelo grande tronco –, sempre me foi familiar. – ela o encarou e sorriu, sentando-se aos pés da grande árvore.
Ele sorriu de volta, reconhecendo o local. Era praticamente igual à clareira onde eles um dia passaram todas as suas tardes de verão. A clareira do parque de seu vilarejo. Ele sentou-se ao seu lado.
- Sev? Obrigada.
- Por?
- Por proteger Harry. Por lutar por mim, mesmo depois de tudo, mesmo depois de saber que eu nunca voltaria. Sabe, por nossa causa, em parte, Voldemort nunca mais voltará a causar sofrimento a ninguém.
- Como sabe? Quando eu morri a batalha ainda não havia terminado.
Ela sorriu.
- Alguns de nós temos fantasmas, você sabe. Mas fantasmas são só copias deixadas para trás deixadas em outro mundo. A pessoa de verdade está aqui, ainda que não consiga se concentrar em nenhum dos dois mundos na maior parte do tempo. Entretanto, trazem-nos novidades. São poucos os que dizem que compensa. Eu não o teria feito, mas Nick está sempre por aqui conversando conosco. E Helena, ainda que hoje a devam conhecer mais como a mulher cinzenta. Há pouco nos trouxeram a boa notícia: a batalha de Hogwarts foi vencida. E, se você quer saber, está sendo retratado como um herói no outro mundo.
Ele franziu a testa. Nunca teve o interesse em tal fama, mas era bom agora saber que seus esforços não seriam esquecidos.
- Mas, Lily... Nós estamos conversando praticamente desde que eu morri, não há como ter sido tão rápido... Há?
Ela riu.
- O tempo aqui não passa da mesma maneira, você verá. Ou, para ser mais precisa, não há tempo. Não se têm horários quando se tem uma eternidade pela frente. – ela pegou a mão dele. – Eu senti sua falta.
Ele sorriu surpreso.
- Eu também.
James sentava-se em um dos bancos de pedra com Sirius ao seu lado, observando o sol.
Cruzou os braços.
- Relaxe, James!
Ele suspirou.
- Eu não gosto do fato dela estar falando com ele de novo, você sabe.
- Bom, eu também não, mas... Ele fez muito por ela. Por Harry. Eu tenho que admitir que ele foi mais útil nessa guerra do que a maioria de nós, ainda que eu não goste dele. Talvez ele mereça uma chance.
James assentiu, mesmo sem ter certeza se concordava, ainda aborrecido.
- Por outro lado... - começou Sirius, tentando alegrá-lo novamente – Eu não me importaria de pregar uma peça em nosso velho amigo.
James sorriu e abriu a boca para falar, mas foi interrompido por uma voz atrás deles.
- Vocês não vão fazer nada disso. Chega de peças por uma vida.
Eles viraram-se abruptamente, grandes sorrisos estampados nos rostos.
- Remo!
Como dito, nenhum dos dois estava feliz com a presença do amigo ali, mas ambos sentiram falta do antigo companheiro.
Lupin sorria também, abraçava agora sua esposa, Tonks.
- James, acho que preciso te apresentar minha esposa!
O sorriso de James cresceu e Sirius bateu palmas.
- Até que enfim vocês se resolveram então! Não tivemos muitas notícias sobre vocês. O máximo que ouvi foi ‘’Remo teve um filho!’’ mas ninguém me dizia com quem ou quando. Foi um tanto frustrante.
James prosseguiu com questões ao amigo que há tanto não via. Rapidamente, ele se esqueceu porque estava chateado por Lily estar falando com Severo. Era a mesma sensação – ele queria conversar com Remo, saber de tudo o que havia acontecido. Surpreso, percebeu que, por fim, as diferenças entre todos ali se resolveriam. Afinal, eles tinham uma eternidade.