NOMEDAFIC



A caneta tremia em minha mão, esperando que as palavras se organizassem de forma coerente em sua ponta. Observei a fumaça desprender-se lentamente da xícara de chocolate quente à minha frente, desenhando pelo ar frio figuras distorcidas. Suspirei. Meus sentimentos faziam tanto sentido quanto aquelas figuras. A chuva, chocando-se contra o vidro da janela, chamou minha atenção. As gotas competiam em um tipo de corrida imaginária e desesperada do topo ao parapeito, mas sempre eram interrompidas por outras gotas, que as tornava uma só.
Eu gostaria de ter me tornado uma só. Eu e ele. Um só.
Através da noite, ainda era possível avistar a casa amarela. Só uma luz fraca vinha do sótão. O quarto dele era no sótão, e eu havia descoberto isso quando, certa vez, o vi escalar algum tipo de passagem improvisada para o telhado. Ficou lá deitado por horas, contemplando, conversando, e sorrindo para as estrelas. Pareceram trocar confidências. Era uma amizade quase palpável. Por detrás das cortinas assisti muitos desses encontros, e lembro-me de cada um deles.
Sorri um sorriso pequeno, triste.
Voltei meu olhar para a caneta trêmula, notando o quanto minhas palavras soavam confusas e desconexas em pensamento. Não me atreveria a despejar tal bagunça no papel.
“Caro menino...” – comecei, riscando imediatamente. Nem os piores românticos iniciariam qualquer tipo de declaração desse jeito.
“Caro vizinho, eu...” – tentei, mais uma vez. E risquei, mais uma vez. Parecia uma convocação à reunião de condomínio.
“Querido ...” – risquei e rabisquei. Nós tínhamos tanta intimidade quanto um tapete e um poste. E pensar que até a simples menção de seu nome era distante. Isso me incomodava. Me incomodava muito.
Não havia um jeito certo de iniciar aquela carta.
Respirei fundo, apertando a caneta entre os dedos. Resolvi por deixar as formalidades de lado.

“Eu nunca soube, ao certo, como me aproximar. Como me comportar ao seu lado. Não tive nenhuma pista de como chegar até você. Imagino o quão ridículo e idiota seja receber uma carta, assim, de uma estranha. A verdade é que, talvez, eu não seja uma completa estranha. Nós temos biologia, história, e física I juntos no colégio. E nós somos vizinhos.
Minha intenção não é parecer algum tipo exótico de admiradora secreta, ou coisa que o valha. Só não encontrei um jeito melhor de dizer tudo o que venho pensando e sentindo há um tempo. Não tive o mínimo espaço, desde que nos esbarramos no corredor da escola pela primeira vez, de lhe dar sequer um ‘bom dia’. Por que você repele tudo à sua volta? Não sei se é proposital, mas até a realidade do mundo está distante de você. Você vive envolto numa bolha de silêncio e olhares perdidos. Sempre sozinho, em um particular impenetrável. Não me leve à mal, eu peço, mas não consigo entender. Por quê?
Desculpe se estou sendo invasiva, mas perco horas do meu dia tentando decifrá-lo, só de longe. Às vezes, desejo ser uma das suas amigas. As estrelas. Acho até que as invejo. Vocês se dão tão bem... E elas têm sorte. Sorte por te conhecer, por contemplarem o seu sorriso. Eu nunca te vi sorrir para algo ou alguém, como você sorri para as estrelas. Você quase pode tocá-las, e... isso meio que me fascina.
Me fascina o modo como as estrelas te dão uma vida que está sempre ofuscada pelas sombras no seu olhar. Me encanta como só as estrelas o tornam um garoto de verdade. Sim, eu as invejo. Eu também gostaria de lhe dar um pouco dessa vida. Poder conversar com você, te fazer rir. Puxar uma cordinha e te fazer falar qualquer coisa, o dia inteiro... Te ligar no fim da tarde de um domingo e perguntar como foi o seu dia, ansiosa para vê-lo na manhã seguinte. Mas eu só sei o seu nome por causa das chamadas esporádicas, feitas pelos professores durante as aulas.
Às vezes eu o vejo em pedaços. Como um vidro rachado, frágil e cortante. Sei que está fora das minhas mãos, mas o que aconteceu? O que há de errado para que você apague qualquer brilho ao seu redor, senão o das estrelas? Se foi culpa do passado, não deixe que ele se torne o seu presente, . Muito menos o seu futuro. Por favor, pense nisso.

.”



Atravessei a rua sentindo a chuva fina tocar meu rosto, junto ao vento gelado que ignorava o casaco de lã que eu vestia. As horas já invadiam a madrugada quando parei à porta do número 18, olhando para a janela do último andar. A luz ainda estava acesa. Encarei o envelope em minhas mãos pela última vez.
‘Ao Garoto do Sótão.’
Mordi o lábio e, com um suspiro, agachei para deslizar a carta por baixo da porta. Esta, contudo, rangeu e se abriu devagar. Um par de pés descalços se mostrou parado à minha frente. Engoli a seco e levantei, sem olhá-lo diretamente. Assim que o fiz, percebi sua curiosidade, e percebi também como seus olhos eram mais do que eu imaginava. Assim como também eram mais sem vida do que eu imaginava.
Não sei por quanto tempo sustentamos aquele contato visual, mas quando ele foi rompido, a atenção de se voltou para o envelope em minhas mãos. Tímida, porém decidida, entreguei-o. franziu levemente o cenho, estranhando o destinatário, e leu, sem qualquer expressão, o conteúdo da folha que segurou com cuidado.
Aproveitei sua distração para memorizar seus traços, o desenho impecável do seu queixo e do nariz. A forma como seu cabelo balançou quando uma brisa gelada passou por nós. O jeito como seus olhos deslizaram pelo papel, e o sinal imperceptível que seus lábios deram do que muito distantemente eu pude chamar de sorriso. Seu peito desnudo subia e descia de forma ritmada, calma, e...
- . – ele disse, e foi então que me dei conta de que minhas suposições jamais chegaram perto de como era realmente aquela voz. Rouca, baixa, aveludada. Meu nome soava de maneira exatamente perfeita, pronunciado por ela.
- Como? – gaguejei, ainda sem saber direito de que forma reagir.
- . Seu nome. – ele repetiu.
- Sim. – assenti, colocando uma mecha do cabelo para trás da orelha. – Olha... Desculpa por ter vindo aqui a essa hora, e desculpa também se eu te acordei, eu só...
- Está tudo bem. – ele desviou o olhar para o papel.
De repente, o calor que corria meu corpo por estar tão próxima a ele, por estar, finalmente, conversando com ele, tornou-se morno. Ficamos novamente em silêncio, o que começou a me incomodar.
- Não vai falar nada? – eu disse, atraindo seus olhos para os meus. – Sobre a carta.
ficou mudo por alguns instantes.
- Eu não posso. – ele disse, simples. – Não posso responder suas perguntas.
Respirei fundo. É claro que eu não tinha o direito de ir me intrometendo daquela forma na vida dele.
- Eu não quero que você me veja como uma abusada que te enche de perguntas em uma carta, e vem, do nada, de madrugada até a sua casa. Só me dói vê-lo sempre tão sozinho, autistando no telhado.
Temi que se ofendesse, mas ele apenas negou com a cabeça, encarando o chão.
- Há muito que você nunca conseguiria realmente entender, mesmo que eu explicasse, . – ele respondeu.
Uma angústia foi se formando em minha garganta. Ele mal me olhava e seu tom de voz, entoado de forma errada, era apático e manso demais.
Fiquei sem resposta. Um sorriso, então, me surpreendeu. Apenas um traço, mas um sorriso.
- Gostei de como falou das estrelas.
Seus lábios formavam um contorno tão bonito quando curvados, que, por segundos, eu senti que meus pulmões não respondiam exatamente aos comandos naturais.
- Talvez você precise de uma estrela mais próxima de você. – eu disse. Seu olhar tornou a fugir do meu.
Dei um passo à frente. Ele não se moveu.
- . – o chamei.
Por instantes ele permaneceu quieto, mas ergueu o rosto em seguida. Estávamos próximos, e, após ter a certeza de que não bateria com a porta na minha cara, toquei sua pele lisa e fria. Ele manteve seu olhar nublado fixo no meu, até que nossas visões tornaram-se turvas demais. Meus lábios tocaram os dele, hesitantes.
Assim como para os meus ‘bom dia’, também não havia espaço para aprofundar aquele beijo. o rompeu devagar.
- Eu sinto muito... – sussurrou. Deu um passo para trás e eu o imitei. Ainda evitando me olhar de forma direta, murmurou o que supus que fosse um ‘boa noite’ e fechou a porta. Simplesmente fechou a porta.
Minha respiração estava completamente desregulada.
Minhas mãos tremiam.
Meu coração batia fora de compasso.
Meus lábios formigavam.
Minha lágrima escorreu.

Deitada na cama, chorei. Chorei por sentir-me tão absolutamente tola. O que eu havia pensado? Que se abriria para uma desconhecida no meio da madrugada porque ela se declarara em uma carta? Que ele confiaria em mim por ter inveja das estrelas? Que ele retribuiria o beijo de uma menina que o ficava vigiando no telhado?
Um soluço ecoou pelo quarto. E outro.
Chorei pela rejeição. Um misto de raiva, angústia e mágoa me apertava o peito. parecia morto em vida. Seu olhar, sua voz, tudo nele era apagado. Minha vontade era de bater nele até que ele reagisse, da maneira que fosse. Que ele gritasse, xingasse, ou que chorasse de dor. Que ele, ao menos, desse um sinal de que existia algo ali dentro.
Se ele, ao menos, me desse uma chance... Se eu pudesse mostrar a ele que eu realmente me importava! O quanto eu havia falado sério sobre desejar ser uma de suas estrelas... Se eu pudesse mostrar a ele que, o que quer que o tivesse machucado, o que quer que ele achasse que eu não era capaz de entender, já havia passado e que eu podia puxá-lo para frente... tirá-lo das sombras.
Se eu pudesse mostrar que o meu amor era real, ele seria um homem.
Mais um soluço.
Tola.
Meu olhar escapou para a janela. Mesmo distante, conheci sua silhueta por entre as sombras do sótão. Tinha a certeza de que ele me olhava, mas, como sempre, não soube decifrá-lo. se mantinha imóvel na minha direção.
Eu estava apaixonada por um manequim.


Fim.

N/A: E ai, meninas? O que acharam da fic que eu escrevi de presente de aniversário para a linda da minha beta That? A propósito, That, mesmo tendo sido em agosto, meus votos de felicidade e sucesso continuarão perdurando por todo o tempo, viu? Mas sim, voltando ao assunto, como eu dei uma de folgada e pedi a ela uma fic de presente no meu aniversário (The Way to The Edge of Desire – Restritas/Finalizadas, leiam!), nada mais justo do que retribuir a gentileza de igual para igual. A That pediu que a história fosse baseada na música Mannequin – Katy Perry, e ai eu tive que me virar nos trinta para bolar alguma coisa. Para quem leu, ou já conhecia a música, percebeu que ela é meio complicadinha, mas nada que a gente não pudesse dar um jeitinho brasileiro. Eu ainda me atrevi a colocar alguns trechos da música pelo meio da história e tal... Enfim, acho que consegui cumprir esse desafio. Me digam vocês, agora, se ficou mesmo bom! bjbjbj



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