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Jogando os Dados 2 - No Limite






Última atualização: 01/10/2016

1. Surpresa




- Será que a gente se vê outra vez, mamãe?
A enfermeira que soltou a pergunta riu da careta que eu fiz ao ouvi-la. Outra vez? Não, obrigada. Três filhas e um marido criança já eram o suficiente para tomar todo o meu tempo e cuidado.
- Cheguei, cheguei! - chegou empurrando uma cadeira de rodas pra mim, com o maqueiro ao seu lado, coçando a cabeça, sem entender como aquilo havia acontecido.
A enfermeira pegou Anna Julia no colo e eu parei por um momento, apenas para checar se ela estava suficientemente segura em seus braços. Confortada pelos braços certeiros da mulher, olhei para ao meu lado, oferecendo a mão para que eu segurasse e a aceitei. O maqueiro auxiliou-nos a me posicionar na cadeira de rodas e logo minha filhota estava nos meus braços.
Certo. Agora sim.
O parto de Júlia tinha demorado cerca de dezoito horas e, ainda, a pequeninha de apenas dois dias já se mostrava com um temperamento mais difícil que os das duas irmãs mais velhas, chorando, às vezes, apenas por dengo, tendo acabado de comer e estando limpinha.
Não era complicado cuidar de um bebê depois que se pegava o jeito - só era complicado quando seu marido resolvia usar bebês para brincar. Ou então dormia com elas em seu colo. Não podia culpá-lo, porém, por não tentar. Era esforçado e atencioso com todas as três - e comigo também. Só não tinha muito apelo natural.
O caminho do hospital até a fazenda foi tranquilo. Julia, que passara a noite anterior acordada, estava dormindo em meus braços tão profundamente que nem ensaiou acordar enquanto falava ao telefone com uma das funcionárias que ficou com as duas meninas em casa, nos aguardando.
Marianna e Tatianna estavam felizes pela nova irmã, o que era uma surpresa agradável. Tatianna, com seus doze anos, tivera muita dificuldade em aceitar Marianna quando ela nascera. E Marianna, com quase quatro, só estava feliz por ter alguém com quem brincar - mal sabia ela que Julia não brincaria por alguns meses ainda.
Eu devia dizer que estava feliz de uma forma que eu não sabia que poderia ser e devia aquilo tudo ao , desde o começo.
Meu maridão, meio criança, meio adulto super responsável e workaholic, era a graça dos meus dias cansados e o suspiro de alívio nas horas mais complicadas.
Nós brigávamos com uma certa frequência e, às vezes, era só de brincadeira. E as apostas acabavam ficando cada vez menos elaboradas como qual das meninas chegaria primeiro ao nosso quarto em um dia de chuva ou quais funcionários começariam a namorar primeiro.
Mas, apesar do seu jeitão despreocupado e provocativo, era um pai sensacional. Mais do que eu poderia ter imaginado, mais do que eu poderia ter sonhado e infinitamente melhor do que o que eu ou ele tivéramos.
Anna Júlia estava sendo a mais difícil das três meninas. Já em casa, eu mal conseguia dormir durante a noite, ela chorava sem parar. Depois de três dias e apenas uma ou duas horas de sono, foi buscá-la para que eu a amamentasse e, enquanto o fazia, soltei um resmungo sobre:
- Chega. Se você se atrever a colocar outra criança na minha barriga, eu corto o seu pau fora.
riu do meu desaforo e nada disse. Ele era tão atencioso e carinhoso que, quando eu reclamava de coisas assim, sobre a gravidez ou a maternidade, ele só aceitava e me apoiava. De alguma maneira e em algum momento, eu tinha feito com que ele entendesse que daquilo, quem mandava era eu.
Na verdade, eu mandava em quase tudo.
Mas eu sinceramente não esperava a reação que ele teve a seguir. Na surdina e sem perguntar por mim, ele procurou o médico da cidade e conseguiu fazer os procedimentos para uma vasectomia. Praticamente escondido e praticamente de surpresa - apesar de que alguns funcionários da fazenda estivessem cientes. Contou-me apenas quando tinha realizado. Disse-me que escondera para não me deixar preocupada e não afetar a Júlia, que precisava tanto de mim.
Amei-o ainda mais por isso. Porque, mesmo depois de mais de dez anos de casado, ele ainda conseguia me surpreender com aqueles atos doces.
Não era nem um pouco difícil estar com . Apesar de tudo, cada dia era um suspiro de felicidade diferente. Mesmo com as brigas, o estresse e, às vezes, ele sendo totalmente difícil: a gente era feliz pra caralho.
Minhas filhas moviam minha vida agora. Tatianna, com 11 anos, era inteligente, rápida, esportiva e bastante revoltada com a vida. Ainda tinha problemas para nos dividir com as irmãs, mas concentrava seus esforços e sua raiva nos esportes que praticava. Seguia o pai para baixo e para cima, idolatrando-o de uma forma tão plena e tão sincera que eu invejava.
Marianna, por outro lado, era quieta e levemente curiosa. Gostava de saber. Em seus 4 anos de vida, estava na fase de entender coisas simples e outras não tão simples assim. O momento mais complicado foi quando perguntou-nos como os bebês iam parar na barriga da mamãe - e como se explicava aquele tipo de coisa para uma criança de 4 anos?
Principalmente quando flashes da noite que gerara Anna Júlia passavam pela minha mente no momento da pergunta.
E apesar das três, agora principalmente Anna Júlia, ocuparem o meu dia com suas travessuras e exigências, eu sentia falta de ter o meu projeto, de ter algo para fazer. Não conseguia me sentir bem e confortável com a vida de dona de casa, cuidando de filhos e dando ordens para empregadas, essa não era e nunca tinha sido eu.
- Eu estava pensando em tentar dar aulas na escola das meninas - confessei para , uma noite. - Sabe, depois que a Ju crescer um pouquinho. Ano que vem, talvez. Pra ocupar a cabeça.
franziu a testa, movimentando as pequenas entradas sem cabelo que ele começava a cultivar - mas ai de quem falasse qualquer coisa sobre aquilo!
- Achei que você estava ocupada com as coisas lá dos caras que compraram sua fórmula.
Torci o rosto, sem poder, exatamente, negar. Desde que me mudara para a fazenda, quando nos formamos, comecei a trabalhar numa fórmula que matasse as pragas das plantações e não prejudicasse as plantas. Foram anos de trabalho, tentativas e frustrações. Em um ano, especificamente, perdi parte da safra de morangos, deixando totalmente furioso. Porém, consegui encontrar o ponto certo: o meu pesticida funcionava como uma vitamina para as plantas, mas exterminava todo tipo de praga. Usamos com exclusividade por cinco anos, o que deu à nossa fazenda uma vantagem absurda contra as outras. Porém, depois dos cinco anos, cedemos à pressão de uma empresa gigantesca que queria comprar a fórmula e reproduzir para vender em massa para os fazendeiros de todo o mundo. Pagaram-nos uma fortuna assustadora por isso e, ainda assim, me deram autonomia para monitorar a produção da fórmula e ajudar com os ajustes e melhorias que eles, com laboratórios e recursos muito melhores que os meus, poderiam fazer.
Eu o fazia à distância, o laboratório principal da empresa ficava em São Paulo, o que dificultava meu acompanhamento, principalmente durante a gravidez; mas isso não era o suficiente. Tomava-me uma ou duas horas de atenção por semana, com um relatório básico que me mandavam - feito, provavelmente, pelo estagiário - e sugestões que enviava por fax. Às vezes, faziam videoconferência comigo em reuniões importantes. Mas eu era só um detalhe, alguém inteligente e que conhecia a fórmula que podia ajudar. Não era mais algo meu, não era mais um trabalho.
- Eles quase não me contatam mais, a fórmula melhorada vai entrar em produção em uns dois meses e não vão mais precisar de mim - choraminguei. - Queria fazer algo depois disso.
continuava me encarando com aquela expressão de que queria me entender e não conseguia. Na verdade, eu achava que ele nunca tinha conseguido me entender por completo ainda, mesmo depois de quase quinze anos.
- Você pode me ajudar com a administração da fazenda, oras - disse, por fim. - Sempre preciso de ajuda. Acho que o contador tá roubando alguma coisa.
Revirei os olhos, sem paciência para arrumando confusão com o contador. Ele implicava com ele desde que o pobre homem elogiara-me em uma festa. Desde então, achava que o cara estava tentando passar a perna nele com o discurso "não conseguiu minha mulher e agora quer meu dinheiro", onde eu sempre mandava ele calar a boca e parar de falar merda.
- Você sempre acha que o contador tá roubando alguma coisa.
- É porque ele tá! - cismou. - Se você desse uma olhada nos números...
E, pronto. Ia começar. , apesar de ainda apresentar características adolescentes, amava o seu trabalho e nunca se cansava de falar sobre ele. Depois que o pai faleceu, ele resolveu não trabalhar mais com animais. Em coligação com o meu projeto de pesticida, resolveu transformar toda a fazenda em plantio, embora não de uma coisa só. Com isso, praticando as coisas que aprendera na faculdade, aprendeu a amar o trabalho e fazia de tudo para ajudar as famílias carentes da região. Nós empregávamos quase metade da cidade depois do crescimento da fazenda e tínhamos uma pequena vila dentro da fazenda, para funcionários que moravam mais distantes ou necessitavam ficar mais próximos da família (grávidas, bebês, parentes adoecidos). Além de tudo isso, parte da nossa safra era doada para abrigos e orfanatos próximos - e ele ainda ajudava monetariamente quando a fazenda tinha um lucro que passava de um determinado valor - e passava disso quase sempre. Às vezes, passava muito. E, às vezes, mesmo quando não passava, ele dava um jeito. Lembro de um natal que o lucro foi muito inferior ao esperado e ele, mesmo assim, comprou cestas básicas e presentes para todos.
agora era um homem responsável e com um coração maior que...
Ah, bom. Deixa pra lá sobre o que é menor que o coração dele.
- Eu já dei uma olhada nos números, - resmunguei. - Você sabe. Eu não gosto muito da administração da fazenda...
- Nem eu. Por isso que quase não faço - riu.
- Seu escritório tá uma bagunça. Me dá mais uns dias e eu arrumo aquilo tudo pra você. Deixa as meninas voltarem pra escola.
- Eu não fico lá mesmo, tudo bem - debateu.
não conseguia arrumar o escritório nunca e o serviço administrativo ficava na mão de três funcionários que só empilhavam papéis sem nenhum tipo de organização lógica. As moças que trabalhavam na casa tinham medo de não conseguir arrumar direito - a maioria delas estava aprendendo a ler com o incentivo que dava para seus funcionários voltarem a estudar. Então ficava uma bagunça até que eu, que tinha mais tempo, ficava extremamente irritada e fosse arrumar.
Ficamos em silêncio, deitados na cama, encarando o teto. Meu corpo ainda estava suado da atividade realizada anteriormente e ainda sentia a respiração de um pouco alterada - apesar de ter sido muito ativo na juventude, agora não tinha tanto tempo para as atividades físicas, embora ainda fosse esguio. Isso o deixava sem fôlego por mais tempo, às vezes, e vivia reclamando que queria voltar a se movimentar. Chegou a comprar um novo saco de areia, mas o pobre coitado ficava abandonado e sem uso a maior parte do tempo.
A chuva de verão batia nas janelas, refrescando o calor insuportável que fizera durante o dia e dando aquele som ambiente gostoso dos pingos de água batendo na janela e o cheiro entorpecente de terra molhada.
- Então, sobre a escola... - Recomecei.
- A gente vê isso mais pra frente, ok? - cortou o assunto. - Falta muito tempo e a Ju ainda tá com um mês. Você não vai começar a dar aulas agora.
tinha razão sobre isso, então me aquietei. Quando eu achasse que a Júlia poderia ficar algumas horas longe de mim, procuraria a escola para uma entrevista. Tinha certeza que, com o meu currículo, me conseguiriam uma vaga rápido.
Então, afundei-me nos braços do meu marido, relaxando pelos momentos que tínhamos juntos porque eles sempre eram interrompidos por...
Júlia chorando.
- Eu vou lá - levantou-se, antes que eu pudesse tomar qualquer atitude. - Fica aí, já a trago pra você.
Sorri e concordei com a cabeça. Admirava muito a prestatividade de porque eu entenderia se ele pedisse para que eu pegasse a Ju. trabalhava o dia inteiro, andando no Sol quente junto com os peões. Às vezes de cavalo, às vezes de bug, mas eu ficava em casa, no fresco, brincando com as meninas, e ele ralava. Mas, mesmo assim, enquanto estivesse em casa e eu estivesse deitada, se Júlia chorava, ele era o primeiro a chegar nela.
Muito coruja.
Os dias se passaram com extrema rapidez e eu vi minha caçula crescer absurdamente. Era a parte mais triste de ser mãe, eles logo viravam bichinhos respondões e irritados, como Tatianna.
Tati, no momento, estava zangada porque queria ir a uma festa. A garotinha ainda estava muito irritada por ter que dividir a atenção - principalmente de - com as irmãs, embora adorasse Júlia e sua língua de bebê.
Aos 11 anos já exigia sair como uma adolescente - que ela ainda não era. Apesar de não estar muito confortável com ela indo a uma festa no limite da cidade, a mãe da menina entrou em contato e disse que era muito importante para a filha dela que Tati estivesse lá, então eu cedi. Mas prometi que essa era a única concessão que eu faria sobre o castigo dela por seu comportamento egoísta e por todas as implicâncias, principalmente com Marianna.
a levou e deixou-a para a festa, aproveitando a ida para passar em um colega e fechar um negócio. E eu fiquei em casa com Júlia e Mari assistindo algum desenho educativo na TV, pateticamente sentada ao lado do telefone, esperando uma ligação ruim.
Depois que virei mãe, toda vez que as crianças estavam fora de casa, eu esperava uma ligação ruim.
Então, lá estava eu, sentada entre a sala e o quarto, com um livro nas mãos e ao lado do telefone... Quando ele realmente tocou.
O livro caiu no chão e eu atendi com um fôlego de alguém que acabara de cruzar a linha de chegada de uma corrida olímpica.
- Alô? - O desespero estava latente em minha voz.
"Princesa? Aconteceu alguma coisa?"
Suspirei de alívio ao ouvir a voz do meu pai. Tomei uma lufada de ar e tentei relaxar, entendendo que não tinha nada de ruim acontecendo e que toda a minha ninhada estava bem.
- Ai, não, pai - aliviei-me. - É que a Tati foi à primeira festa sozinha...
Não precisava de mais explicações e meu pai, mesmo não sendo um modelo perfeito, entendeu e riu.
"Vai ficar tudo bem, " acalmou-me. "Fora isso, você está bem, filha? Como vai a Juzinha? E a Mari?"
Meu pai tinha mudado totalmente comigo depois da gravidez de Tatianna. Passara a ser mais presente, mais solícito e nos visitava sempre que podia. Agora menos, já que estava ajudando na campanha de Cael, que concorreria para presidente naquele ano.
- Tô bem sim, pai. A Ju tá dormindo, ela tá imensa, pai! Sério, essa menina não para de crescer. E a Mari tá aqui, vendo TV. Muito espertinha que ela tá. - ainda estava tentando me acalmar do susto. - E você?
"Tô bem sim, filha" disse, de uma forma tão esquisita, que eu soube que não tinha me ligado para saber como eu estava. "Desculpa te ligar assim correndo... Mas eu recebi uma proposta esses dias e, bom, tive que te repassar."
Voltei a me sentar na cadeira, sabendo que a bomba seria grande e aguardei.
"Como você sabe, o Cael vai concorrer esse ano e ele tem tudo pra ganhar, você sabe. Algumas alianças estão sendo feitas e me convidaram pra ser ministro mais uma vez, mas eu não tenho mais idade pra essas coisas..."
Ah, não.
"A Manu sugeriu seu nome, . E está certo, seu nome está em alta. Em alguns meses, seu pesticida vai ser vendido no mundo todo. O comitê acha até que você vai ganhar um Nobel.”
- Que Nobel, pai? - Estava quase rindo de nervoso. - Não existe Nobel pra isso.
"Não importa, eles acham que você vai virar um nome importante e que seria ótimo ter você com a gente. Só de vazar que você está cotada para o cargo, a oposição vai enlouquecer".
- Pai... Eu não sei... Olha... - Eu não conseguia nem falar. Minha garganta estava fechada. Minha primeira reação era dizer não, mas nas condições que o pedido estava sendo feito e as pessoas envolvidas. - Preciso conversar com . Isso mudaria tudo. Você sabe.
"Eu entendo, filha. Mas você entende a importância disso?"
- Sim, pai. Eu cresci com um político.
Nunca perdia a chance de dar uma alfinetada, porém. Meu pai já estava acostumado e nem discutia - tivera anos para se importar comigo enquanto fazia sua carreira. Agora, mulher feita, eu servia para os seus propósitos.
Dele não, .
Era Manu e Cael. E eu lhes devia muito.
"Eles querem você como ministra do meio ambiente, . Sei que você iria trabalhar com o que você gosta".
Entortei a cara porque várias ideias já estavam se passando pela minha cabeça com todas as coisas que eu poderia fazer e a verba que eu teria. Todas as leis ambientais necessárias que ainda não existiam - e o desmatamento descontrolado que acontecia no Norte e no Centro-Oeste. Eu me importava, se todos os anteriores não. Poderia fazer alguma coisa.
Droga.
- Ainda preciso pensar, pai. Não posso aceitar assim.
"Eu entendo, filha. Pensa com carinho, fica bem e não se preocupa que a Tati vai voltar logo".
- Obrigada, pai.
"Beijo, filha".
E desligou.
Encarei a pequena Marianna sentada em frente da TV, distraída com seu desenho animado. Começaria a estudar na próxima semana e, talvez, no próximo ano, tivesse que mudar de escola.
Teríamos que nos mudar da fazenda. Tatianna não veria mais a pequena Lola, sua melhor amiga.
Todas elas teriam que mudar de pediatra - o que as acompanhava desde o momento em que choraram ao sair de dentro de mim.
E ...
não gostaria nada, nada disso.



2. Exagerado




Eu nunca conseguia me convencer do tamanho da minha sorte.
Toda vez que meus olhos batiam em suas curvas acentuadas, em seu rosto angular, em seu sorriso sincero ou sua expressão de total raiva por alguma besteira que eu havia feito, somente suspirava. Suspirava porque era, de longe, a melhor coisa que havia me acontecido e eu não tinha dúvida alguma de que não havia explicação para o tamanho da minha sorte ao conseguir amarrar aquela mulher ao meu lado e conquistar seu amor e sua adoração com tanto afinco.
Ela era a luz dourada da minha existência, meu nascer e meu pôr do sol. E eu sabia que, sem ela, não seria metade do homem que sou hoje e nem de perto tão feliz, não sem estar rodeado pelas minhas quatro garotas.
estava em meu escritório, parecendo muito concentrada em uma quantidade repreensível de papéis. Sua testa se franzia daquela forma inteligente e sensata que fazia quando estava trabalhando ou tentando vencer uma discussão comigo. E estava tão imersa em pensamentos e em sua leitura que não me viu aproximar-me dela até que eu lhe desse a volta e estivesse atrás de si, lhe dando um beijo em seu pescoço alvo e sempre provocante.
- Linda - murmurei, sem motivo nenhum.
Ouvi seu riso mais do que vi, envolvendo seu corpo e a cadeira em que sentava de forma displicente, tentando entender qualquer coisa do papel que estava em sua mão, sem muito sucesso. A outra mão de , livre, subiu pelo meu braço, agraciando minha pele com seu toque sutil e contente pela minha presença.
- Acabou o trabalho? - Perguntou.
Não parecia estar prestando atenção na conversa, porém. Estava imersa em sua leitura, mas, de rabo de olho, vi-a me encarar, aguardando a resolução daquela situação.
A gente sabia exatamente como aquilo iria acabar, mas era o jogo que jogávamos há quase quinze anos e nenhum de nós dois estava cansado da brincadeira.
- Eu só estava morto de saudade de você - murmurei.
Minha esposa sorriu levemente com minhas palavras porque ela sempre compreendia o que eu queria dizer. Ela era simplesmente linda e não havia discussão: era a mulher da minha vida, embora eu tivesse uma séria complicação para dizer isso claramente, com as palavras que queria utilizar. Mas não era necessário, lia meu amor nas entrelinhas das minhas palavras e das minhas declarações e atitudes apaixonadas. Lia, inclusive, nos meus ciúmes e possessões que, embora reclamasse e não fosse exatamente fã, ela entendia na maior. Porque sabia que tudo aquilo era mais superficial que maquiagem quando, na verdade, quem governava nosso relacionamento, nossa casa e minha vida era ela. A rainha do meu mundo, minha esposa e mãe das minhas filhas. A mulher mais maravilhosa de todo o universo e eu, o cara mais sortudo da existência, por ter sua companhia.
Girou a cadeira para o lado e meus braços escorregaram pelos seus seios ainda mais avantajados, visto que estava amamentando, o que, obviamente, deixou o meu dia já bem melhor.
O seu sorriso iluminou o ambiente quando ela virou-o totalmente em minha direção e sem nenhuma cerimônia ou demora, minha boca foi até a sua, buscando seu gosto já tão familiar e delicioso. Senti suas mãos em meus ombros, a posição sendo um pouco torta, mas sem atrapalhar o beijo envolvente e desesperado que compartilhávamos, nossas línguas procurando uma a outra o alívio da companhia do fim do dia cansativo de trabalho. Estava planejando pegá-la em meus braços e carregá-la até nossa cama naquele momento, mesmo que ainda estivesse claro em nossas janelas e nossas três filhas estivessem na sala, assistindo TV, acompanhada da babá que tentava manter a caçula tranquila e bem cuidada enquanto trabalhava em seus relatórios.
Mas sempre tinha seus planos e normalmente eles eram bem diferentes dos meus, então tentei não me surpreender ao senti-la se afastar do meu beijo com um suspiro.
- Exagerado… - murmurou.
Sabia que pouco faltava para perder sua atenção de volta para aqueles papéis e do jeito que eu estava, não conseguiria aguentar até de noite. Precisava dela como alguém precisava de ar para respirar, principalmente quando as coisas fugiam do controle. era minha certeza, minha guia e o meu chão. E os problemas daquela tarde só poderiam ser afundados e esquecidos envoltos ao seu perfume, seu cheiro e nossos gemidos de prazer aos nossos corpos se misturarem em harmonia.
Então pensei rápido. Pensei em algo rápido, diferente e interessante, que chamasse sua atenção e lhe fizesse esquecer seu trabalho para poder me compensar pelo esforço.
Ajoelhei-me aos seus pés e descalcei o chinelo que usava, deslizando meus lábios pela sua pele, enquanto ela me encarava, divertida, sem entender minha atitude.
- Jogado aos seus pés - expliquei, em forma de canção. - Eu sou mesmo exagerado.
Seu sorriso sincero brilhou seus olhos escuros em minha direção, antes que eles se fechassem, ao sentir meus lábios subirem rapidamente pela batata da sua perna, alcançando a coxa interior. Não demorou para que ela me interceptasse, com uma das mãos em meus cabelos, puxando minha cabeça para trás com a força certa para estar exatamente em cima da linha entre a dor e o prazer, me fazendo fechar os olhos e implorar por mais.
Senti seus dentes em meu queixo e, então, no meu lábio inferior e eu me remexi, querendo mais, muito mais, sem realmente ter. Sua língua invadiu minha boca, declarando posse, e eu intensifiquei o beijo, implorando por mais intensidade e mais pressa. Sua mão, em minha nuca, aumentou a força do puxão, demonstrando seu desagrado pela minha ansiedade e eu gemi, não pela dor - que eu gostava -, mas pela frustração que aquela mulher sempre me causava.
- Tá dizendo que nosso amor é inventado, é? - provocou, mandona.
Minha ereção já estava a tino dentro da calça quando soltou meus cabelos e deslizou ambas as mãos pelo meu peito. Abri os olhos apenas para vê-la morder os lábios daquela maneira irritantemente sensual, demonstrando que estava tão excitada quanto eu.
- Não, senhora - murmurei à sua pergunta.
Ela sorriu, satisfeita com a resposta, suas mãos dedilhando meu peito com o cuidado e adoração de quem conhecia todas as linhas, cicatrizes e detalhes de todo o meu corpo com aquela expressão safada que me tirava inteiramente do sério. Meu interior gritava para jogá-la em cima da mesa e fodê-la até que minhas pernas não aguentassem mais e minha mente esquecesse toda a confusão que havia acontecido, mas eu sempre deixava ela decidir como queria e se queria comandar ou ser comandada. Aprendera com o tempo que do jeito dela era sempre mais gostoso e que tê-la dominando era uma explosão tão forte de prazeres que nada além dela permanecia em minha mente. Eu confiava inteiramente nela para entregá-la o controle da minha vida, do meu corpo e do meu prazer. Era sempre bom para tirar os pesos dos meus ombros e ela parecia saber exatamente quando eu precisava disso.
Exatamente como naquele momento.
- Se você quer transar agora - murmurou, apertando os olhos desejosos em minha direção, como se me desafiasse a contrariá-la quando já tínhamos nos provocado o suficiente para voltar atrás, ao mesmo tempo em que suas mãos levantavam minha blusa levemente. - Se levanta, tira a camisa e vá até lá trancar a porta.
Nem pestanejei, no segundo seguinte, já estava de pé. acompanhou minha movimentação com o olhar e mordeu o sorriso quando eu tirei minha blusa em sua frente, provocando-a. Puxou-me pelo cós da calça e sua língua demarcou as poucas linhas que meus músculos formavam em meu peitoral, descendo cada vez mais seus beijos e lambidas em direção ao botão da minha calça jeans e quanto mais descia, mais minha cabeça se jogava sozinha para trás, e mais eu apertava meus olhos, implorando que ela não fosse tão malvada quanto eu imaginava que ela planejava ser.
Não importava, porém, porque sempre valia a pena.
- Vai - ordenou, com a voz falha e eu sabia que lhe custava tanto quanto para mim que nos afastássemos naquele momento.
Nossos olhares se cruzaram por um segundo, com a promessa silenciosa de que o prazer não iria demorar, apenas o suficiente… O necessário.
Já tinha alguns dias desde a última vez. Eu sentia falta da nossa adolescência quando transávamos todos os dias e, às vezes, mais de uma vez, mas a vida adulta nos engolira com suas responsabilidades e limitações e era difícil. E mesmo que conseguíssemos namorar todos os dias ou em nenhum deles, nós nos reuníamos toda quinta feira no meu antigo quarto no meio da fazenda para curtirmos um ao outro, sem limitações. Normalmente, passávamos a noite entre beijos, juras apaixonadas e lençóis, mas com Júlia tão novinha, nos permitíamos apenas poucas horas durante à tarde, entre as mamadas da pequena.
Esse período costumava ser bem mais difícil para mim do que para porque ela ficava ainda mais gostosa depois da gravidez, com seu corpo mais robusto e os seios maiores, mesmo que o cansaço fosse expresso totalmente em seus olhos e olheiras. Eu adorava cada segundo e acabava perdendo noites de sono, principalmente quando quase não nos víamos durante o dia, apenas para vê-la dormir, no ápice da sua beleza tranquila.
Fechei a porta rapidamente, querendo que aquela espera fosse a menor possível. Girei a chave, trancando-a e desejando que aquilo também mantivesse os sons de nós dois dentro da sala. Quando voltei-se para novamente, encontrei-a debruçada sobre a mesa, organizando os papéis para dar-lhes espaço para aproveitar o móvel. Tinha tirado o short que vestia e a calcinha estava enfiada no meio da bunda, exibindo suas bandas adoradas e arredondadas sem nenhum pudor.
Aquilo já era demais pra mim.
Cruzei o escritório como um foguete e me posicionei atrás dela, encaixando todo o meu corpo no seu. Senti seus pelos se arrepiarem e vi-a fechar os olhos com um suspiro quando meus lábios alcançaram seu pescoço, subindo os beijos em direção à sua orelha, local que sempre a desmanchava.
Uma de suas mãos apalpou minha barriga e em um só gesto, empurrou-me para trás, desencostando meu corpo do dela, o que eu soltei um muxoxo de frustração.
- Deixei? - Perguntou, debochada, virando o rosto em minha direção.
Dignei-me a negar com a cabeça, os olhos arregalados de desespero pela minha ereção pulsante de desejo. Mas aquele era o jogo e eu precisava dele. Eu precisava dela. Eu precisava daquilo tudo.
Então cravei os pés no chão e os dentes em meus lábios, enquanto organizava a mesa, liberando espaço, teatralmente balançando suas nádegas em minha direção só para me provocar, só para me tirar do sério, só para enaltecer toda aquela tensão que já nos rodeava.
E eu a amava, a adorava. Amava seu corpo com todas as imperfeições, rugas e estrias que eu acompanhara criar ao longo dos anos. Amava todas suas incertezas e todos os seus medos e tentava ser seu porto seguro, tal qual era o meu.
Ela se cansou da brincadeira, sentando-se sobre a mesa, abrindo as pernas e me chamando com o dedo indicador para que me encaixasse entre elas. E eu o fiz, sem pestanejar ou reclamar, envolvendo sua cintura com as mãos e enfiando minha ereção, ainda coberta pelo jeans da calça, em sua calcinha encharcada.
Acabou por pegar-me pelos cabelos mais uma vez e puxou-me para um beijo, ao qual eu aceitei de total bom grado. Nossas línguas se envolviam como velhas conhecidas, sempre conhecendo exatamente como o outro gostava. acabava mordendo sempre minha boca aos seus gemidos e eu tinha uma preferência maior ao chupar seu lábio inferior e vê-la apertar os olhos e suspirar.
- Eu quero sua língua - ela murmurou, com um suspiro. - Sua língua e seus dedos.
Apertei os olhos, indeciso entre o arrepio que me subia à espinha por ela ser tão deliciosa ou a dor de ter que esperar mais um pouco para me enfiar nela. , porém, tinha um gosto maior pelas preliminares e não era muito fã de pulá-las, como eu sempre preferia.
- Sim, senhora - respondi, porém.
Ela sorriu de lado quando eu envolvi seus seios em minhas mãos, tomando cuidado para não apertá-los demais porque sabia que eles ficavam mais sensíveis por conta da amamentação, e deslizei para o chão, ajoelhando aos seus pés, com a cabeça entre suas pernas. A calcinha que ela usava era mais larga do que parecia e eu cheguei-a para o lado com cuidado, enfiando-me nela. Quase gemi ao sentir o gosto do seu suco em minha boca e rebolou, agraciada pelo carinho. Enchi-me com sua carne, tratando-a com toda atenção que merecia e, ao começar a ouvir seus gemidos contidos, sabendo que tinha gente em casa e principalmente nossas filhas acordadas, e foi à deixa que eu precisava para enfiar meus dedos dentro dela, como a mesma tinha pedido.
Foram dois dedos de uma vez e eu a vi trincar os dentes, tentando conter o grito que eu sabia que ela daria se estivéssemos em um ambiente apropriado. Comecei a sugar seu botão, enquanto os dedos lhe penetravam na velocidade certeira que a faria gozar em poucos momentos e sem muito esforço da minha parte. Não que precisasse de esforço para fazê-la gozar em algum momento, tirando quando estava altamente estressada, ela era sempre fácil em minhas mãos, desmanchando-se algumas vezes antes que eu próprio o fizesse. E ela respondeu muito bem aos meus dedos, apertando meus fios de cabelo em desespero enquanto eu ia, pouco a pouco, aumentando a força das minhas investidas e inserindo mais um dedo.
Ela puxou meu cabelo com força quando alcancei sua exata preferência de força, ritmo e velocidade, combinado aos três dedos e eu a suguei com vontade, conseguindo sua resposta em forma de gemido, alto demais para quem precisava se conter.
também reparou.
- Para - Mandou, arrastando a respiração e eu parei imediatamente, respondendo suas ordem com o máximo de afinco. - Vem. Eu quero você.
Ela não precisava dizer duas vezes.
Levantei-me em um pulo para ver minha mulher levemente desesperada, com os dedos enfiados nos longos cabelos negros. Desabotoei minha calça rapidamente para sentir suas mãos substituírem as minhas no trabalho. Meu zíper foi cuidadosamente aberto enquanto cerrava os olhos em minha direção, tentando entender toda a tensão em meu maxilar. Naquela altura, tinha certeza que ela já sabia o que estava acontecendo dentro de mim. Minha calça caiu ao meu redor e seu olhar desviou para a minha cueca, que ela logo se desfez, apertando minha ereção entre suas mãos hábeis. Fechei os olhos com força, me concentrando nas sensações do breve momento em que ela me acariciou.
- Olha pra mim - pediu.
Abri meus olhos para encontrá-la me encarando após o mesmo pedido que eu lhe fizera tantas e incansáveis vezes. E o sorriso arteiro estava lá, quando soltou minha ereção e me puxou em um abraço doce demais para o momento. Seus olhos se derreteram em emoções e me disseram claramente o que eu queria ouvir.
Vai ficar tudo bem, . Só relaxe. Eu tô aqui.
Enfiei-me dentro dela de uma vez só, enquanto ela afundava o rosto em meu pescoço e mordia-o para conter o gemido, cravando as unhas nas minhas costas, enquanto nossos corpos se completavam na mais sutil perfeição. Suas mãos deslizando de forma leve até minha nuca, agraciadas com a velocidade calma, me informaram que era para continuar assim, tal como seus gemidos.
- Mais forte - ela pediu, porém.
E eu o fiz, sem nem pestanejar, sentindo seu corpo todo prestes a liberar a energia que o orgasmo soltava. Ela ondulava ao meu redor, me apertava e me mordia, tentando se conter. A experiência ao lado dela me informava que devagar e forte era a maneira que a fazia gozar por mais tempo, embora o ápice demorasse um pouco mais.
Como o esperado, depois de pouco mais de dois minutos mantendo o ritmo, seus gemidos e palavras desconexas soltaram a palavra “quase” e ela começou a gozar a seguir. E enquanto eu mantive o ritmo, ela gozou, apertando e contendo seus gritos em minha boca, até que meu pau escorregou para fora em uma investida e ela choramingou, respirando fundo.
Faltava bastante para mim ainda, então me enfiei nela sem nenhuma demora, com me abraçando e tentando recuperar a respiração, sem sucesso. Procurei seus lábios, puxando sua blusa para baixo, junto com o sutiã e enchi minhas mãos com seus seios, tentando não demorar demais.
- Sofá - Murmurou, ofegante. - Vamos para o sofá?
Não era mais uma ordem, mas correspondi como tal, suspendendo-a em meus braços, ainda enfiado nela, e carreguei-a até o sofá vermelho do escritório, deitando-a sobre ele. Estava preste a voltar os movimentos, quando ela escapou debaixo, ficando de pé em uma velocidade impressionante para quem acabara de gozar tanto. Um pouco perdido, sentei-me apenas para vê-la arrancar a blusa por cima da cabeça e, então, desabotoar o sutiã, exibindo seu corpo maravilhoso e me fazendo suspirar. Escorregou, também, a calcinha perna abaixo, voltando a mim e sentando-se sobre minha ereção sem demora.
Naquela posição, era difícil alcançar a velocidade que eu gostava, mas chegou bem próximo à ela e eu cravei minhas unhas ralas em sua cintura, jogando a cabeça para atrás, no encosto do sofá, sentindo os dentes dela em meu pescoço e dois nós sendo desmanchados ao mesmo tempo, um em meu coração apertado e o outro em minha virilha, liberando o meu gozo dentro dela, ao mesmo tempo em que ela arranhava os dentes pelo meu ombro e diminuía a velocidade, me deixando respirar.
Pouco demorou para que estivéssemos os dois satisfeitos e deitados sobre o sofá, ela em cima de mim, ambos tentando recuperar a respiração da movimentação realizada. dedilhava meu peito com adoração e cuidado e eu brincava com a ponta de seus cabelos, encarando o teto e sentindo a realidade, aos poucos, me atingir.
As lágrimas encheram meus olhos sem permissão. Apertei minhas pálpebras, tentando esconder a fraqueza de minha esposa, que conhecia demais todos os meus trejeitos para que tivesse sucesso. Provavelmente foi minha respiração que me entregou, mas não importava. Ela empurrou seu corpo para cima e beijou minhas pálpebras fechadas, molhadas pelas lágrimas que eu estava tentando não derramar.
- O que aconteceu? - sussurrou, tão baixinho que quase não pude ouvir, como que segredar a razão do meu comportamento fosse mantê-lo quieto no fundo da minha mente.
Já era.
- Um dos tratores virou em cima de outro funcionário - murmurei de volta e percebi que aquele tom de voz era o máximo que eu conseguiria, ao menos pelo resto do dia. - Eles foram para o hospital de ambulância, provavelmente para Goiânia, ainda não recebi notícias.
me abraçou apertado e eu senti metade do peso da responsabilidade passar para ela e um alívio encheu meu corpo.
- Eu sinto muito, baby - sussurrou.
Apertei-a também, respirando forte seu perfume misturado ao cheiro de suor e sexo que agora impregnava o ambiente. Lembrei-me de suas palavras, de apenas alguns dias atrás e murmurei um medo que vinha me assombrando há algum tempo por conta daquilo.
- Não sei o que eu faria se você não estivesse aqui - segredei.
queria trabalhar fora. Eu sabia que ela estava entediada, sabia que tinha capacidade para mudar o mundo se quisesse, mas eu era egoísta demais. Queria que ela ficasse por perto. Se fosse lecionar, estaria longe demais, inalcançável durante todo o dia, e a ideia me dava um pavor absurdo porque me lembrava das noites solitárias de distância de quando eu estava morando em São Paulo. E isso me sufocava.
- , por favor… - Ela suspirou, cansada de todas as vezes que nós já conversáramos sobre.
- Eu sei, amor - concordei, porque a lógica estava com ela e eu não podia negar. - Eu não posso, não quero e não vou ficar no seu caminho. que manda. Mas é que...
Como que eu ia explicar aquele aperto no peito e o medo irracional que eu tinha de ficar mesmo que poucas horas com ela longe do alcance dos meus braços? Eu já dividia sua atenção com três anjinhas e um pesticida famoso, e agora teria que fazê-lo com várias turmas escolares? Era um pouco complicado para a minha cabeça.
- Eu sei - concordou com um sorriso e eu soube que ela se sentia da mesma forma. - Tá tudo bem se sentir assim. Mas eu quero trabalhar…
- Então você trabalha - suspirei, levemente contrariado. - Eu prometi que ia te dar tudo que desejasse, não é?
Ela sorriu daquela forma doce, com a lembrança provocada pelas minhas palavras. Beijei sua cabeça e ela suspirou, estremecendo sem motivo. Abracei-a, com medo que fosse frio, mesmo que eu estivesse com calor.
- A gente vai se ajustando… - Ela prometeu. - De pouco em pouco.
Concordei, sem entender a totalidade de suas palavras.



3. Omissão




Os dias se passaram de forma lenta e arrastada, cada vez me deixando ainda mais desesperada com a decisão que precisava tomar. Sabia que se decidisse pelo não, tanto Manu quanto Cael compreenderiam minha postura, mas precisava pensar sobre o sim, logo quando lhes devia tanto.
Eu era o motivo pelo qual eles se casaram, afinal.
Cael e eu éramos prometidos na adolescência, pouco antes de tudo desandar. Estava disposta a engolir meu orgulho e aceitar ficar ao lado dele para agradar meu pai, já que não via muito futuro para mim naquela época. Cael era divertido, tornava aquilo mais fácil e nós começamos a sair por livre e espontânea vontade, apesar de todas as recomendações externas. Conseguia ver aquela vida pra mim, conseguia entender tudo o que viria a seguir e… Bom, eu tive uma recaída, então sumi do convívio de Cael e seu pai, com a minha imagem manchada demais para que eles firmassem qualquer aliança comigo e o meu pai.
Anos mais tarde, conheci e todo o meu mundo virou de cabeça para baixo. De alguma forma, acabei descobrindo que o pai de Cael ainda tinha suas ambições comigo, até que descobriu que não conseguiria nada quando eu me casei. E ao meu lado no altar, estava Manu.
Manu era ainda mais difícil que eu e sua fase de comportamento ruim estava durando a vida inteira. Bastou apenas uma ligação para o pai dela e ele entregou a mão dela de bandeja para Cael. Nenhum dos dois gostou muito da junção, mas Cael só fazia as coisas que lhe eram pedidas e Manu estava sendo ameaçada diretamente pelo pai, então quando vi, estava recebendo o convite de casamento dos dois.
Manu ficou zangada comigo por bastante tempo após seu casamento porque precisava culpar alguém e ela escolheu a mim. Até que ela apareceu em minha casa, algumas poucas semanas após o nascimento de Tati, chorando confusa entre a prisão de Renan e achar estar apaixonada por Cael. Só então, ali, eu entendi a complexidade de toda a operação que fora o casamento dela, mas fiquei feliz que dentre a adversidade, ela tinha conseguido encontrar a felicidade.
Só que eu entendia que minha decisão de me afastar e deixar aquela vida para que minha melhor amiga assumisse, tinha causado muita dor e sofrimento para aquelas duas pessoas que eu tanto amava (era estranho dizer que ambos eram ex namorados meus e agora eram casados? As vezes eu achava bastante estranho… Mas divertido) e eu me culpava por cada crise, cada lágrima derramada dos dois. Sabia que tinha uma dívida eterna, se eu estivesse no lugar de Manu, tudo seria bem mais fácil.
E lá estavam os dois me pedindo um favor especial. Algo que nem seria tão difícil assim de fazer, pois seria um emprego que eu com certeza amaria. Precisaria estudar muito, é claro, mas não podia negar que era uma cereja no bolo.
Tinham muitas coisas que precisavam ser analisadas. Minhas filhas, é claro, estavam no topo da lista. Sabia que um trabalho daqueles, por pelo menos quatro anos, me afastaria delas um pouco e o pavor me subia à garganta, fechando-a, quando eu pensava que perderia o primeiro beijo de Tati, toda a troca de dentes de Mari e os primeiros passos de Júlia. Eu deixaria um legado que seria utilizado por elas, por seus filhos e por todos que viriam depois, mas o quanto eu perderia das minhas Annas? Valia a pena?
Todas aquelas suposições e desesperos enchiam minha mente e me davam fortes dores de cabeça, que não passavam despercebidas por Lisbela, Maria e Catarina, as três moças responsáveis em me ajudar com a casa grande. Eu sabia que se elas me vissem tomar mais um comprimido, iriam relatar todo o meu comportamento esquisito para e isso não ajudaria em nada.
Até porque eu estava omitindo o problema dele, de qualquer forma.
Deixei entender que nós estávamos decidindo que eu trabalharia na escola das meninas ou em qualquer outra escola da região - não que fossem muitas - ou até mesmo da capital, que era um pouco distante, mas se pegasse só um ou dois dias de aulas por semana, tudo ficaria bem. Ele, inclusive, começou a se mostrar empolgado com aquela nova fase da minha vida profissional, deixando-nos imaginar que um dia eu daria aulas em uma universidade, o que achava engraçado, visto que minha educação tinha pausado na graduação, mesmo.
E a cada nova suposição que ele criava, mais eu me sentia mal por estar mentindo descaradamente para ele sobre no que eu queria trabalhar. Eu estava pensando em algo mais alto e ainda mais complicado, que ele dificilmente aceitaria, mas, apesar de tudo, ele mesmo havia dito que era minha decisão para tomar e era. E eu o faria sem sua interferência e suas reclamações, se possível.
Mas tinha que considerar seus medos. Ele era meu marido, meu companheiro e eu o amava. Tinha que respeitá-lo, mesmo se ele fosse um completo bobão. não tinha medo da minha independência financeira ou que eu conhecesse algum homem em meu trabalho (por incrível que parecesse, em todo o seu ciúme, ele tinha confiança de que qualquer problema não partiria de mim. Ele confiava em mim, não confiava era nos outros homens e no tamanho do poder do meu decote). Com todos os meus traumas adolescentes de depender do meu pai, que queria me abandonar até mesmo financeiramente, comemorava cada dinheiro que eu conseguia sozinha e comemoramos juntos todo o dinheiro que conseguimos em dupla em sua fazenda, deixando que tivéssemos uma vida tranquila, ajudando todo mundo que pudéssemos e dando uma vida cheia de seguranças para nossas três Annas. não se incomodava nem um pouco que eu fosse independente, pelo contrário. Ele gostava que eu fosse. Ele dizia que era um dos motivos que lhe fizeram se apaixonar por mim.
O problema de era a distância e a ausência. Nenhum de nós dois jamais lidou muito bem com aquilo e nos trazia memórias desagradáveis.
Eu compreendia seus medos e meu coração se apertava que eles pudessem se tornar realidade. E era por aquilo que eu tinha que tomar toda a decisão com cuidado.
Se eu aceitasse o ministério, estaria aceitando me mudar para Brasília. Mudaria a vida de todo mundo, ou e eu nos afastaríamos, ou ele teria que eleger alguém para tomar seu lugar na fazenda - e eu duvidava que qualquer pessoa pudesse fazer o trabalho tão bem quanto ele fazia -, teríamos que todos escolher uma nova casa, escolas novas para as crianças, talvez algumas das funcionárias tivessem que nos seguir para Brasília, Catarina com certeza, e sua família iria junto.
Tudo ia mudar.
Eu estava ficando apavorada.
Comecei a desejar que qualquer pessoa com quem eu pudesse conversar fosse imparcial, mas nenhum nome me vinha à mente. Todos tomariam um lado com extremo afinco e não havia ninguém que não se beneficiaria ou prejudicaria com aquela decisão para me auxiliar.
E eu queria conversar com . Queria deitar ao seu lado em uma de nossas noites em claro cuidando de Júlia e conversar com ele sinceramente, explicar meus motivos, minhas indecisões, minhas oportunidades, todos os prós e todos os contras… E queria que ele fosse imparcial e me ajudasse a decidir aquilo com a mente mais pura o possível, mas sabia que era basicamente impossível.
, seus medos e suas inseguranças dificilmente aceitariam que eu estivesse sequer cogitando a pegar esse ministério para mim. Por isso, e apenas por isso, decidi continuar omitindo meus planos e ficar remoendo minha lista mental de tudo que aconteceria se eu acabasse ministra do meio ambiente.
podia ficar no escuro por mais um tempo. Eu podia aguentar mais um pouco sem conversar com ele.
Minhas filhas eram as únicas que tiravam meu pensamento dessa escolha e de todos os problemas que vinham ou seriam causados quando eu tomasse minha decisão. Então, para não ter que tomar mais remédios para dor de cabeça, depois de quatro dias vivendo a base dos mesmos, decidi que aqueles seriam uns dias sem culpas e sem omissões, curtiria minhas filhotas e o dia como se não existisse uma bomba relógio prestes a explodir em minhas mãos.
Júlia, claro, era quem exigia mais cuidados. Estava se encaminhando para completar dois meses e chorava sem nenhum motivo. Eu era extremamente grata pela ajuda de Lisbela, a babá, que tinha toda paciência do mundo em niná-la quando estava só de dengo.
- Bom dia, Lis - quando me encaminhou ao quarto de Julia, Lisbela já estava lá. Ela morava na casa grande e seus pais, com problemas de saúde, viviam na vila dentro da fazenda. Lis tirava folgas apenas quando tinha que levá-los ao médico e era muito prestativa e agradecida. Graças ao incentivo de , ela estava terminando o ensino médio aos vinte e dois anos e começava a sonhar com uma faculdade. Queria ser professora, realmente gostava de crianças.
- Bom dia, senhora - e também não lhe importava quantas vezes eu lhe pedia para me chamar de ou, pelo menos, .
- Lis, que tal uma folga hoje? - Perguntei-lhe. - Não tenho nada pra fazer e vou ficar com as meninas. Você pode ir ficar com seus pais, se quiser.
- Seria ótimo, senhora, muito obrigada! - Ela pareceu ainda mais animada. Como o esperado.
Lis se foi rapidamente, não sem antes se despedir de forma carinhosa de Julia, colocando-a em meus braços. A pequenina abriu seus grandes olhos brilhantes escuros e era como me olhar no espelho. O sorriso era impossível de segurar.
O bom de ter uma criança pequena era que, com o canguru, você grudava-a em você e podia andar por aí, com os braços livres. Então Júlia e seu dengo não me atrapalhariam em tentar conseguir a atenção das outras Annas. Na verdade, a pequenina parecia mais contente assim, logo adormecendo em meus braços, mesmo que eu estivesse caminhando pela casa, atrás de Marianna.
Encontrei-a na sala, vendo TV e coloquei a tranquila Júlia para dormir no chiqueirinho que ali estava instalado, com o coração apertado e a culpa me dominando a mente. A garotinha ficava mais calma em meus braços, como eu não notara isso antes? Se eu começasse a trabalhar como ministra, meu tempo longe dela seria mais e ela sofreria mais.
Afastei meus pensamentos sem demora, pela promessa que havia feito aquela manhã, sentindo minhas pernas sendo abraçadas pelos bracinhos curtos de Marianna.
Quando seus filhos têm quatro ou cinco anos, você é a melhor coisa do mundo pra eles. Seus super heróis. Era uma das melhores fases porque eles eram independentes o suficiente para ficarem algumas horas assistindo desenhos ou pintando e desenhando, mas ainda eram apegados demais para precisar de você para pegar comida ou simplesmente te dar um abraço gostoso de adoração como aquele.
- Bom dia, mamãe - Mari disse com a rapidez e agitação, além de uma dicção boa demais pra quem tinha aquela idade.
Mas meu pequeno raio de sol de quatro anos era genial. Nós a levávamos para médicos e professores especiais pelos últimos dois anos. Tinha inteligência acima do normal e fazia perguntas complicadas o tempo todo. Naquela idade, já estava alfabetizada e lia livros infantis sem nenhuma dificuldade, a psicóloga que lhe acompanhava dizia que mais um ou dois anos, ela estaria apta para ler livros infantojuvenis. Naquele ano, iria para a escola pela primeira vez, para ter contato com outras crianças. Começaria em uma classe com crianças de dois a três anos mais velha que ela e eu achava tudo isso assustador, mas a psicóloga que a acompanhava falava que tudo iria ficar bem. Eu esperava que sim.
- Bom dia, pequena - abaixei-me e deixei-a envolver seus bracinhos em meu pescoço. Peguei-a pela cintura e a levantei, com um pouco de esforço. - O que você está fazendo?
- Vendo TV, mamãe! - Virei meu rosto para TV para encontrá-la assistindo um daqueles programas que ensinavam a fazer experiências científicas para crianças.
Ah, ótimo. Mais alguns meses e assim que ela tivesse qualquer indício de independência, minha cozinha começaria a ser destruída com suas pequenas experiências.
Isso até ela descobrir para que servia meu laboratório. Aí pronto.
- E sua irmã, você sabe? - Perguntei. Ela olhou para Júlia no chiqueirinho, um pouco confusa. - A Tati, onde está?
- Não sei - respondeu, fazendo biquinho.
Beijei o topo de sua cabeça e coloquei-a sentada no sofá para ir atrás do meu projeto de adolescente. Tati ainda tinha atitudes e gostos infantis, mas começava a ler revistas para adolescentes, querer a usar maquiagem e sair para festas, além daquela malcriação e rebeldia adolescente que tirava o sono de todos os pais. Eu estava engajada em leituras para tentar compreender aquela fase, com medo de que eu piscasse e qualquer uma das três acabasse em um problema tão grande quanto o que eu me metera. Até mesmo estava tentando ler um livro sobre e nós conseguimos conversar com a psicóloga de Mari sobre como lidar com Tati há algumas semanas. Mas tirando suas respostas ferinas, ela estava sendo razoavelmente fácil ainda, sem nenhuma discussão muito grande e nenhum rapaz envolvido.
Bom… Quanto aos rapazes, eu tinha lá um sexto sentido. Não que eu fosse dizer em voz alta nada sobre isso.
Pela música que ouvia no corredor dos quartos, um pop melado, beirando o rock sutil, encontrei Tatianna em seu quarto. Abri a porta do quarto sem bater - ela era nova demais para pedir privacidade - e encontrei-a deitada de barriga para baixo, mascando um chiclete e lendo uma revista distraidamente.
- Mãe! - Reclamou.
Caminhei até ela e estendi a mão.
- Você nem tomou café da manhã e já está nos doces? - Expliquei.
Ela revirou os olhos e me deu seu chiclete, nem um pouco feliz, mas isso com certeza iria ajudar na conta do dentista em alguns anos. Espiei por cima do seu ombro e a matéria da revista falava sobre…
Meninas que beijam meninas.
Ah, não, tão novinha. Meu coração se apertou de dor. Eu esperava que ela pudesse ter mais alguns anos antes de fazer aquela descoberta que eu já sentia, em meu interior, que era sua realidade. Mãe sabe, não é? E logo eu, que tinha aquela experiência, tinha que ter notado e notei. A maneira com que ela admirava Lola e andava para cima e para baixo atrás da garota… Não parecia ser só amizade. Eu sabia, eu sempre soube. Só esperava que ela pudesse descobrir isso um pouco mais tarde, ter um início de adolescência sem ninguém lhe ofendendo e a magoando por causa de algo tão natural quanto sua sexualidade.
E eu ainda sentia que ela poderia vir a ter problemas com sua identidade de gênero porque sempre preferira coisas mais masculinas e não estava se dando bem com suas incursões a maquiagem, roupas de mocinha e pequenos saltos. E também odiava seus novos e pequenos sutiãs, mas… Que mulher não odiava seus sutiãs? Não era a toa que eles que foram queimados em protestos feministas, e não calcinhas.
O que a gente fazia quando isso acontecia? O que eu queria que meu pai tivesse feito quando eu estava com Manu? Rodei minha cabeça atrás de uma resposta, antes que fosse tarde demais.
- Querida, se tiver alguma coisa que você queira conversar, você sabe que pode contar comigo, não é? - Perguntei, acariciando seu rosto.
Achei que era o tom perfeito. Não era invasivo, ela não iria se ofender ou se esconder, mas era o tom certo. Se precisasse de mim, eu estaria ali. Talvez fosse até um bom trazer a tona o meu passado com Manu em algum momento breve, para que ela se sentisse mais confiante e mais aceita. Por enquanto, eu achava que estava bom.
Tati cerrou seus olhos, confusa com minhas palavras e fechou a revista rapidamente, tentando disfarçar. Afastou de minhas mãos, pulando para o outro lado da cama, o mais longe possível de mim.
- Tá bom, mãe, tá - resmungou.
E batendo seus pés, rumou para fora do quarto e se trancou no banheiro. Aproveitei para dar uma olhada na tal da matéria e ver se tinham informações realmente úteis e não tinha nada realmente aprovável além dos depoimentos das moças. Soltei um suspiro, franzindo a testa, sabendo que eu teria que pedir uma nova hora com a psicóloga de Mari para pedir conselhos sobre como lidar com essa nova descoberta sem que fosse ainda mais complicado para Tati, sem , provavelmente, que era melhor que não soubesse daquilo por um bom tempo.
Provavelmente precisava comprar alguns livros com relacionamentos LGBTs para ela. Algum que não fosse muito erótico e explicasse de forma mais acertada.
Ser mãe era um negócio muito louco e difícil.



4. Descoberta


Era ótimo quando, ao final de um dia cansativo de trabalho, eu podia me sentar com minhas filhas ao redor e assistir TV.
Não que elas estivessem prestando atenção.
Tatianna estava com os fones de ouvido e parecia muito concentrada em seu celular, fazendo algo que eu não sabia o que era. Marianna estava no chão da sala e tentava montar alguma coisa super impressionante com sua coleção de legos. E Júlia estava milagrosamente adormecida em meus braços, enquanto eu assistia futebol, o que diria que era uma péssima ideia, mas estava no banheiro, tomando banho, e eu achei que podia curtir minha filhota adormecida enquanto isso.
Estávamos aguardando Catarina terminar o jantar, antes de se recolher e ir descansar. Era tarde para todos nós, que acordávamos tão cedo, mas arrastamos o jantar um pouco para frente para que pudéssemos jantar todos juntos. tinha ido com Mari até a psicóloga porque a garota iria para a escola no dia seguinte e queríamos que ela estivesse bem preparada para enfrentar aquele novo desafio, ainda mais porque iria para uma turma com crianças mais velhas e que provavelmente já se conheciam há algum tempo; eu acabei o trabalho, dispensei meus funcionários e cheguei em casa para encontrar Lisbela fazendo Júlia gorfar e Tati jogada de cabeça para baixo no sofá, assistindo televisão assim (já tinha desistido de entender porquê a garota fazia essas coisas às vezes). Tomei o lugar de Lis, coloquei futebol na TV (Tati quase reclamou, mas ela gostava também) e e Mari chegaram um pouco mais tarde. Mari se distraiu com seus legos, Tati resolveu ouvir música porque se irritava com Mari com facilidade e me deu um beijo antes de subir para tomar banho.
- Seu , a janta tá pronta - Catarina apareceu na sala, secando as mãos em um pano de prato.
- Brigado, Cata! 'Cê já pode ir embora, amanhã 'cê tem médico, né? - Perguntei.
Catarina estava conosco há alguns anos já e era amiga da família de longa data. Estava sempre presente, tinha ajudado com a Tati quando ela não tinha nenhum jeito com crianças e sentava conosco à mesa em todos os momentos importantes. Ganhava o salário mais alto dentre os que tinham baixa instrução, mas não conseguíamos fazê-la estudar. Mari era quem estava colocando na cabecinha dura de Catarina que ela poderia aprender a ler e estava tentando ensinar, mesmo que a própria ainda não tivesse dominado completamente a língua.
- Sim, sim - Concordou. - Não quer que eu ponha a mesa?
Catarina era discreta, mas estava com suspeita de câncer de mama. Nós já havíamos deixado bem claro que cuidaríamos de tudo, das medicações, do tratamento e ela ficaria confortável durante o período necessário - embora ela estivesse batendo o pé que continuaria trabalhando, mesmo se estivesse doente. dissera que não deveríamos discutir, mas alguns quartos estavam sendo preparados para Catarina e sua família em nossa casa, caso estivesse mesmo adoentada. Não deixaríamos Cata na mão em nenhuma circunstância.
- Não precisa, ainda tá no banho. A gente se vira. Pode ir. E me deixa informado, ok?
- Pode deixar, seu .
Catarina nos deixou sozinhos e eu aproveitei o intervalo para colocar a pequena Júlia para dormir no chiqueirinho. Ele era mais pra criança ficar confortável junto da sala, mas tinha preparado como se fosse uma caminha para Júlia, que ainda era pequena demais para curtir o espaço. Então, normalmente, só a colocávamos ali quando estávamos na sala ou na sala de jantar e ela estava adormecida.
Estava pensando em adiantar as coisas levando para a sala de jantar com a ajuda de Tati quando o telefone tocou.
- Alô - atendi rapidamente.
Tati tirou o fone do ouvido para fofocar sobre a ligação e eu cerrei meus olhos para ela, que fingiu que não ouviu.
Ela tinha mania de ouvir atrás das portas também. morria de medo que ela acabasse nos pegando em algum momento constrangedor ou em alguma briga. Vivíamos brigando com ela por conta disso, mas ela continuava fazendo e não sabíamos mais como cortar.
“Oi, !” Demorei alguns segundos para reconhecer a voz do meu sogro, visto que era difícil nos falarmos. Sabia que ele mantinha contato com com um pouco mais de frequência e embora ele acabássemos nos encontrando em festas de final de ano e aniversário das crianças. “Como é que vai, rapaz?”
- Ah, mas vai tudo bem - eu nunca sabia como me portar com ele. - E o senhor?
Desde que ele me oferecera a carta de recomendação para se afastar de , eu simplesmente não conseguia simpatizar com o homem. Depois que tive minhas filhas, então, eu não conseguia compreender como que ele tinha conseguido cortar relações com ela por causa da mulher e de sua carreira política. Porém, voltara aos louros com ele durante a gravidez de Tati, então eu o engolia e tentava tratá-lo suficientemente bem para não irritá-la.
“Também vou bem” respondeu-me. “ está por aí? Preciso falar com ela com urgência”.
- Ela tá tomando banho - respondi, confuso. O que ele poderia ter a falar com com urgência? Normalmente ligava para saber das crianças, coisa que eu poderia muito bem resolver sem nenhum problema. - Quer que eu passe algum recado pra ela?
“Ah, sim, isso seria ótimo” ele não agradeceu, é claro. A gente vivia na beira de um ataque um com o outro. Apenas nos aturávamos por causa dela. “Diga que Cael precisa de um posicionamento dela sobre o ministério. Pelo menos se ela vai pensar… Porque se não precisamos começar a cogitar outros nomes”.
Como é que era aquela história?
Senti o meu coração parando de bater por vários segundos e depois bombeando o sangue rapidamente, espalhando o ódio por todo o meu corpo. A dúvida estava pairando em minha mente e eu não conseguia acreditar, seja lá no que fosse que estivesse envolvida, que ela não conversara comigo sobre aquilo ainda. Tivemos tempo. Não tinha desculpas. Ela estava escondendo de propósito.
- Ahn… Claro - não sabia o que responder. Não podia pedir mais informações para ele ou ele estranharia meu comportamento. E não podia demonstrar minha irritação ou ele saberia que não havia contado e, como um bom político, encontraria uma desculpa para tirar minha dúvida gritante.
“E aí você pede para ela me ligar de volta, sim?” Pediu. Eu murmurei outra concordância e ele pareceu satisfeito. “Obrigado, , até mais”.
Despedi-me também e tentei controlar minha respiração e a minha raiva para não descontar na frente das meninas. Nós evitávamos qualquer tipo de confronto na frente delas embora, muitas vezes, acabava escapando uma ou outra coisa menor por sermos muito explosivos. Aquela, porém, seria uma discussão séria.
Era impressão minha ou o pai dela estava lhe oferecendo um cargo no governo? Em nome de Cael, que era ex de e já tinha dado em cima dela na minha frente, inclusive?
E não tinha contado nada. Se estivesse pensando em dizer não, ela teria me contado e feito chacota do pedido absurdo. Se ela não me contara era simplesmente porque estava pensando em aceitar.
Será que toda aquela discussão sobre ela dar aulas na escola das crianças era para diminuir minha reação? Será que ela tinha ideia de tudo que teria que acontecer e mudar se ela resolvesse aceitar aquela merda?
Perdi a fome instantaneamente. Sabia que, naquelas condições, não conseguiria me arrastar em um jantar em família e fingir felicidade em dividir a mesa com e as crianças, contando e ouvindo sobre o dia de cada um, como gostávamos de fazer. Minhas filhas, porém, precisavam de comida.
- Todo mundo para sala de jantar! - Tentei forjar animação para que Tatianna, a única que tinha maturidade o suficiente para perceber a dureza da minha expressão e a maneira que eu apertava minhas mãos em punhos.
Porém, Tatianna apenas revirou os olhos para a comemoração de Mari e caminhou atrás da irmã com seu novo desinteresse adolescente. Suspirei, dando uma olhada em Júlia, ainda adormecida, e comecei sozinho a levar a comida para a sala de jantar e servir as crianças.
chegou no momento em que eu tinha terminado de servir as crianças. Ela parou na porta com um sorriso gentil, como se aquela fosse sua cena favorita no mundo, mas congelou quando seu olhar encontrou com o meu e sua expressão calma foi definhando pouco a pouco.
Nenhuma palavra foi proferida para que houvesse um entendimento.
- Tati, quando vocês acabarem de comer, coloca os pratos na pia. E pra cama, porque amanhã vocês tem escola - instruiu. Tati fez que faria reclamações, mas ela a cortou rapidamente. - E sem “ah, mãe”. Se te pegar acordada, vai ficar sem celular. Entendeu?
dificilmente era rígida assim e eu sabia que apenas estava refletindo a tensão que instaurava no ar. Ela não tinha ideia do porquê eu estava emanando uma raiva excessiva, mas talvez soubesse. Talvez. Porque ela estava omitindo informações importantes e claramente tinha culpa no cartório.
Marchei para fora da sala de jantar no segundo seguinte e me acompanhou silenciosamente, um pouco assustada e de olhos arregalados. Eu parei no meio da sala, mas ela rumou direto para o chiqueirinho e pegou a adormecida Júlia nos braços. Cerrei meus olhos em sua direção, mas ela só balançou a cabeça negativamente, ninando a pequenina com cuidado.
- Me espera no quarto - pediu. Sua voz estava falha e eu quase desmanchei toda a minha postura irritada apenas por identificar seu medo. Porém, concordei com a cabeça e tomamos parte do caminho em conjunto, até que ela entrou no quarto de Júlia e eu segui para a porta seguinte, onde dormíamos.
Nosso quarto tinha uma decoração um pouco diferente da usual. Gostávamos, os dois, bastante da cor vermelha e sempre tinha bastante vermelho nas cortinas e em nossa cama. As paredes costumavam levar um tom leve de amarelo, mas reclamava que dormir ali lhe dava fome, então acabamos mudando para um azul-claro, bem sutil, quase branco. E estávamos com aquela cor já há cinco anos, retocando em uma ou duas ocasiões.
Caminhei até a janela e passei a mão pelos meus cabelos, tentando manter a calma. Ainda não sabia o que estava acontecendo, embora uma boa ideia já estivesse em minha mente. Era óbvio que o pai e Cael queriam usar e sua bem sucedida pesquisa de alguma forma. Em algum ministério. Queriam me roubar minha … Eu tinha lhe ajudado e lhe apoiado enquanto nenhum dos dois dava a mínima para ela e agora que ela tinha conseguido sua vitória, eles queriam simplesmente aproveitar que ela estava inerte e convencê-la a deixar a mim e as filhas por um cargo no governo.
entrou enquanto eu tentava controlar minha respiração, tirou seus chinelos e fechou a porta. Mantinha a cabeça baixa e seus olhos exibiam sua culpa estampada em cada pequeno brilho, ao qual eu já conhecia bem.
- Eu queria entender… - Comecei, tentando não soar muito rude. - Por que seu pai te ligou pedindo uma resposta sobre um ministério?
- , não é bem…
- Não é bem assim? - Questionei. - Essa é mesmo sua resposta?
- Você vai me deixar falar ou vai ficar me interrompendo que nem um babacão? - Cerrei meus olhos e engoli a seco. - Ele me ligou há alguns dias. Cael o convidou para assumir um ministério, mas ele acha que tá velho, então Manu sugeriu meu nome pro ministério do meio ambiente.
- Ministra? - Eu estava em choque. Esperava uma coisa menor, não um cargo daquele tamanho. Isso significava inúmeros problemas para a minha pequena grande família e meus olhos estavam arregalados de terror.
- Não ia ser o máximo? - Ela estava tentando parecer mais animada do que realmente estava. - Para a minha carreira. Ministra. A quantidade de coisas que eu poderia fazer pra melhorar tudo!
- … - Não sabia nem por onde começar.
- Eu sei, eu sei. Tem as crianças, tem a fazenda, a gente provavelmente teria que se mudar. Mas eu estava pensando nisso tudo…
- Você não acha que essa é uma daquelas ocasiões que a gente tem que tomar a decisão juntos? - Perguntei.
- É a minha carreira! - Reclamou, teimosa.
- É a minha família! - Rugi, finalmente deixando a raiva fluir pela minha voz. Voltei a engolir a seco, vendo seus olhos cerrarem em minha direção. - Isso muda tudo pra todo mundo, . Como é que você acha que a gente vai fazer? 'Cê acha que eu tenho que abandonar toda a fazenda e essas pessoas que precisam de mim pra ir atrás de você? Ou você vai ficar em Brasília e eu aqui? Porque nós já tentamos algo assim e não funcionou muito bem.
- Brasília não é tão longe assim…
- Não quero isso - resmunguei. - Não quero que você aceite isso.
- Não é sua escolha!
- Não é minha escolha - concordei, um pouco contrariado. - Mas você já sabia disso. Você sabia que eu ia ser contra, desde o começo. E você sabe, não é nada contra você e sua vida profissional ou qualquer coisa que você queira fazer pra passar o tempo!
- Passar o tempo? - Ela estava debochando, claramente irritada.
- É! - Reclamei. - Pra ganhar dinheiro é que não é.
Nós não precisávamos ganhar dinheiro, necessariamente. Nosso dinheiro aumentava consideravelmente todo mês e não precisava trabalhar para ganhar dinheiro.
- Você já pensou que talvez eu queria isso pra mudar o mundo e melhorar ele pras minhas filhas? - Ela questionou.
- Eu tenho uma notícia pra você, . Você já mudou a porra do mundo! Que inferno!
- Que inferno digo eu! - Ela esfregava as mãos no rosto e eu tinha a impressão de que começaria a chorar a qualquer momento. - Você não tem o direito de decidir isso por mim. Não tem o direito de decidir nada por mim! É minha escolha!
- Eu não tô questionando isso, porra! - Reclamei. - Você não me contou. Você tá decidindo se vai ser ministra na porra do governo do Cael e não me contou! Vai aceitar essa bosta, se juntar com um monte de gente que você odeia e carregar nossas filhas pro meio social que você detestou e que acabou com você, ou você nem nisso pensou?
- É claro que eu pensei!
- Pois não parece.
- Sabe o que parece? Sabe o que parece? - Ela estava subindo sua voz a cada palavra preferida. - Parece que só você pode trabalhar nessa merda de casa! Que só você pode ficar fazendo milhões e melhorando a vida das pessoas quando a sua adorada esposinha troféu tem que ficar sentada criando as filhas que botou no mundo porque ela é só uma mulher, não é? Vai trabalhar pra quê? Só pra passar o tempo, não é? Ela não pode fazer nada direito.
- Caralho, - eu não conseguia acreditar que ela estivesse vendo aquilo daquela forma. - Quer saber? Faz isso. Faça isso mesmo, tá? Vai lá, aceita essa porra de cargo. Coloca nossa vida de cabeça pra baixo e vai viver no inferno de antro que é a alta sociedade de Brasília. Enfia nossas filhas lá, as deixe conviverem com todos esses filhotes mimados de políticos. Vai lá mudar o mundo…
- Talvez eu vá mudar mesmo! - Ela resmungou, me interrompendo.
- É, vai lá mudar o mundo e destrua nossa família junto. - Terminei. - E quando foi mesmo que eu consegui te impedir de fazer alguma coisa, não é?
Sai do quarto antes que ela pudesse responder alguma coisa, com os punhos em riste, morrendo de vontade de socar alguma coisa até não restar nada além de pó. Parado, ao lado da porta, ouvi o choro desesperado de se intensificar e dei de cara com Tatianna e Marianna no corredor, indo para seus quartos.
- Beijo, papai? - Mari me perguntou, enquanto Tatianna franzia as sobrancelhas, como se entendesse exatamente o que tinha acabado de acontecer.
- Já, já, meu amor - respondi. - Vou tomar banho, vai deitar que eu já vou dar beijo.
As duas sumiram para o quarto e eu tratei de ir tomar um banho bem gelado para ver se acalmava o meu corpo em brasas de raiva e frustração.



5. Teimosia


Eu estava ardendo em brasas de raiva.
Pra começar, quem era ele para ficar investigando minha vida ou o que eu estava fazendo ou deixando de fazer? Tinha gastado a manhã seguinte à discussão em uma ligação irritada para o meu pai para reclamar porque ele havia contado a sobre o ministério e ele lhe disse que que perguntou sobre e ele achou que ele já estava informado.
Então, como eu poderia confiar em alguém que fazia aquele tipo de coisa surreal? Não confiava em mim? Que direito que ele achava que tinha?
E mais: quando fora que casamento tinha se tornado título de propriedade? Por que diabos achava que podia opinar na decisão sobre o meu futuro, a minha carreira? Até onde eu tinha checado, a dona da minha vida ainda era eu!
Era basicamente impossível colocar os pensamentos em ordem e eu mal sabia como havia conseguido dormir aquela noite. Tinha me acabado de chorar assim que saiu do quarto e dormi antes que ele pudesse retornar. Porém, a cama ao meu lado estava em sua bagunça usual e a roupa dele do dia anterior estava aos pés da cama, além do seu cheiro, o que me dizia que ele dormira ali.
Tinha feito uma coisa que não fazia há uns bons meses: dormira a noite toda. Acordei descabelada e desesperada em um choque de realidade para encontrar Júlia bem alimentada, limpinha e adormecida. Lis ainda não havia chegado, então isso significava…
Eu não cederia com apenas por ele ser bom pai. Não era mais do que a sua obrigação.
Querer me culpar por não pensar na minha família. Era só o que me faltava. Eu me perguntava quando era que eu não perdia minhas horas pensando nas Annas e nele próprio. Quando que eu tinha faltado com a minha responsabilidade para qualquer um deles?
Tinha uma única e simples resposta para aquilo: nunca.
E eu não deixaria que ele colocasse caraminholas na minha mente a ponto de que eu nem considerasse aquela oportunidade única, uma honra, sem nenhuma dúvida, por causa dos seus próprios medos. Quando ele quis ir para São Paulo atrás da merda de sonho de correr de carro, eu o apoiei, ajudei o pai dele na merda da fazenda e me matei de trabalhar para que ele pudesse tentar. Por que eu não podia ter a mesma gentileza de volta?
Porque não é seu sonho, uma voz no fundo da minha mente me alertou e eu engoli a seco, lembrando de todas as vezes que segurou a barra para mim, principalmente com Tatianna, enquanto eu trabalhava no meu laboratório. E todas as vezes em que eu estraguei sua plantação e causei prejuízos porque eu tinha certeza, daquela vez, que daria certo, mas nunca dava.
E quando deu… me arrastou em uma viagem comemorativa com Tatianna para a Disney e depois para o Caribe. Viagem que acabara resultando em Marianna, uns meses depois.
Droga. Eu estava ficando emotiva.
era um bom marido e um bom pai. Embora se zangasse as vezes por não conseguir a atenção toda que queria, ele era carinhoso e apoiador. Estava sempre ali, na primeira fila, para me pegar caso eu caísse ou bater palmas caso eu sucedesse. Não tinha tempo ruim e eu tinha uma ligeira impressão que ele achava que eu era uma espécie de Mulher Maravilha com super poderes e que eu podia fazer umas três mil coisas ao mesmo tempo.
Todavia, voltávamos ao cerne da questão: por mais maravilhoso, deslumbrado e atencioso que meu marido fosse, isso não lhe dava o direito de agir como um idiota e tentar boicotar minhas experiências porque ele preferia que eu ficasse cem por cento do meu tempo sendo mãe, trancada dentro da casa grande como uma bonequinha de vidro que fosse quebrar a qualquer momento. Era a porra daquele machismo babaca que tinha sobrevivido nele, por tanto tempo em convivência com o pai e com um monte de amigos imbecis, que eu não conseguia tirar dele não importava quanto tentasse. Tinha melhorado, sim, desde que nos conhecêramos. Conseguia me respeitar, conseguia abrir espaço e me ouvia bastante quando tinha que tomar suas próprias decisões. Mas quando se tratava das minhas escolhas, ele queria que eu fizesse exatamente como ele dizia. E qualquer outra possibilidade era descartada e errada porque o senhor rei de todo o universo era infalível e estava sempre certo.
Dava vontade de desferir um soco no meio daquele nariz bonito.
Apesar da minha manhã imersa em raiva, desprezo e como fazer pagar por ser um idiota, ao meio-dia, Mari e Tati estavam prontas para o primeiro dia de aula do ano letivo sob minha supervisão. Uniformizadas, mesmo que Tati estivesse bastante zangada porque, de acordo com ela, todo mundo ia para a escola de roupa normal durante o primeiro mês.
- Mas você não é todo mundo - retruquei.
Tatianna era toda reclamações enquanto Marianna estava se contendo entre empolgações e medos, assustada e animada. Queria colocar minha filha do meio no colo, mas meus braços estavam ocupados com a caçula. Tínhamos todas acabado de comer e estávamos nos arrastando para o carro para uma pequena viagem até a escola. Aquela era uma das únicas atividades que eu fazia fora dar uma olhada nos relatórios das alterações à fórmula que eu criara e seus resultados, todos os dias úteis da semana, eu levava as meninas para a escola, alguns dias da semana, várias vezes, porque Tatianna fazia inglês e lutas e Marianna agora se iniciaria no balé, mas embora sempre acabasse sendo na correria e me deixando de cabelo em pé, era uma das coisas que eu mais adorava no mundo.
surgiu ao lado do carro como uma aparição e tudo o que eu fiz foi cerrar meus olhos para ele, mas ele apenas me ignorou.
- Então, vamos pra aula, princesas? - Ele perguntou, me ignorando também.
Estranhei na hora a forma com que ele dizia.
Senti no ar aquela situação se formando sem que eu pudesse conter.
Estava colocando Júlia na cadeirinha e tentando convencer Marianna a afivelar o cinto, quando ela colocou a cabecinha para fora, oferecendo a bochecha para ganhar um beijo do pai que riu e lhe fez o agrado. Assim que eu, finalmente, consegui colocar Marianna em segurança, abriu a porta do motorista e se acomodou ali.
- O que você está fazendo? - Perguntei, rapidamente alerta.
- Mãe! - Tatianna começou a reclamar porque eu estava ajoelhada no lugar que ela ocuparia enquanto ela ainda estava do lado de fora do carro.
- Estou levando as crianças pro colégio? - disse, como se fosse óbvio.
- Eu estou levando as crianças para o colégio!
Pulei para fora do carro e Tatianna tomou seu lugar rapidamente, enquanto eu abria a porta de e o via me encarar com uma expressão de falsa inocência no rosto, fingindo não compreender minha indignação.
- Achei que você estaria muito ocupada pra isso - resmungou.
Tem uns momentos na vida da gente que a gente escolhe se quer ser preso por assassinato ou se quer continuar sendo uma pessoa livre e, naquele momento, eu me vi tendo que tomar aquela decisão. O que eu queria fazer era jogar no chão e passar com o carro em cima dele pelo menos umas cinco vezes, mas a única coisa que me impediu e me segurou de fazer aquilo era que eu traumatizaria minhas filhas para todo o sempre.
- Pai, você não vai dirigir não, né? - Tati murmurou.
- Papai dá medo no carro - Mari concordou.
Eu queria ter segurado o sorriso debochado ao ver a cara de traído que exibia ouvindo os comentários e reclamações das meninas espelhando todos os meus durante aqueles anos que estivéramos juntos. Não era que ele dirigisse mal, ele sabia todas as regras e artimanhas no volante de um carro, mas as corridas de racha tinham deixando-o afobado e irritado no comando de um carro e mesmo quando saíamos ou viajávamos em família, ele corria e ultrapassava os outros carros como se estivesse em uma eterna competição.
- Mas vocês, ein? - saiu do volante imediatamente, mas não sem antes desregular a poltrona só de implicância.
Aquele nem era o carro dele. Pra quê fazia aquelas coisas?
Tomei meu lugar rapidamente com um suspiro cansado e girei a chave na ignição, vendo-o tomar o lugar do carona, displicentemente e já voltando a ficar estressada por sua presença e, pior, por estar ao meu lado quando eu dirigia. Porque sempre me enchia de palpites de como fazer determinadas coisas que eu nem queria fazer, para começo de conversa.
- Você não tem nada pra fazer na fazenda não? - Perguntei, deixando bem claro que eu não queria sua proximidade ou presença.
suspirou e me lançou um olhar ofendido.
- Hoje é o primeiro dia de aula da Mari - ele abaixou o tom para que elas não escutassem, embora eu tivesse certeza que Tatianna estava suficientemente interessada para ter pego pelo menos o contexto. - Você não acha que eu deveria estar aqui?
Queria ter algo para contestar, queria simplesmente responder que não, arrancá-lo a força do meu carro e não olhar para a sua cara pelo resto do dia, mas ele estava certo. Apesar de nossa discussão anterior e do clima em que nós estávamos, ele era pai de Mari e hoje era um dia importante na vida dela. Era bom que ele estivesse presente e ainda melhor que fizesse tanta questão disso. Apesar de seus defeitos, naquele quesito especial, eu tinha escolhido melhor que minha mãe e ele não me cansava de provar isso.
Apesar dos meus medos, o caminho até a escola das crianças foi bastante tranquilo. se manteve ocupado tentando manter Marianna em uma conversa distrativa e ainda tentando inserir Tati nela, embora a garota estivesse mais concentrada em seu celular que qualquer outra coisa. Júlia choramingou um pouco durante o caminho e fiquei orgulhosa de Tati por ajudar o pai a acalmar a irmã caçula.
Chegamos antes do que eu queria, para falar a verdade.
Por mais que já tivesse feito isso anteriormente, deixar uma criança na escola pela primeira vez era sempre complicado… Era como se deixássemos um pedaço nosso se perder entre outros pedacinhos de outras pessoas que poderiam ser malvados por ela. Era a primeira vez que a gente tomava ciência que não criávamos os filhos para nós e sim para o mundo.
Doía feito o inferno.
Tatianna pediu dinheiro para o lanche e se foi com a sua mochila e um tchau displicente. Perdoei-a porque estava começando o sétimo ano e aquela fase de começo de adolescência era complicada, cheia de julgamentos, confusões e descobrimentos, aos quais eu sabia que ela estava enfiada de cabeça.
Mas Mari estava ali, subindo e descendo em seus pés, olhando as outras crianças indo e vindo com seus olhos curiosos e inteligentes, como se analisassem a situação e realmente compreendessem. Abaixei-me ao lado dela e senti seus bracinhos envolverem meu pescoço, ao mesmo tempo em que vi abaixar-se ao seu outro lado.
- Você lembra onde é sua sala, amor? - Perguntei.
Mari concordou com a cabeça. Tínhamos visitado a escola duas vezes e Mari já conhecia suas duas professoras, o que lhe passava alguma segurança. A instituição estava sendo fácil e ajudando bastante na adaptação de Mari, o que me deixava bem mais calma, mas ao senti-la tremendo de antecipação me quebrou o coração.
Escapou de meus braços e envolveu o pai em um abraço apertado. Tinha uma diferença considerável da forma que as meninas viam a mãe e o pai, embora eu achasse injusta. Para Mari, eu era uma amiga que as vezes brigava com ela porque ela fazia algo errado, mas com o pai… Era uma coisa mais platônica. Como se ele fosse uma espécie de super herói de filmes e estivesse ali só para ela.
Eu me corroía de ciúmes.
- Se acontecer alguma coisa ruim, você pede pras tias ou pra sua irmã ligar pra mamãe, tá bom? - lhe lembrou. - A gente vem correndo ver você, tá bom?
Eu já mantinha meus lábios apertados, morrendo de vontade de chorar quando Mari concordou com a cabeça, dei um beijo na bochecha de e um na minha e correu para dentro da escola como se ir rápido fosse mais fácil. Tampei minha boca, tentando conter as lágrimas e ela olhou para trás para me ver acenar antes de entrar e sumir pela porta que levava a área interna do colégio.
Eu estava chorando mais abertamente quando se levantou e ofereceu a mão para me ajudar. Aceitei-a porque orgulho de nada iria me ajudar naquele momento.
- Você ainda quer dirigir? - Perguntou-me.
Não havia deboche nem irritação em sua voz. Era preocupação real pela cachoeira de lágrimas que se derramava pelos meus olhos sem cessar. Ponderei se eu conseguiria voltar dirigindo e na clareza das informações… Era bem difícil.
- Tudo bem - concordei, lhe entregando as chaves e concordando com a cabeça, enquanto mais lágrimas caíam pelos meus olhos.
O carro estava estacionado ali do lado, provavelmente em local proibido, mas a dinâmica era complicada quando você tinha um bebê pequeno. Júlia estava ali, sob meus olhos, com a janela do carro aberta para que eu pudesse lhe vigiar dormindo seu sono tranquilo. Dei a volta no carro para entrar no carona enquanto tomava o lugar do motorista. Parecia sério e controlado enquanto eu me desmanchava em lágrimas, mas continuava com aquele tom de irritação e frustração que emanara e jogara sobre mim no dia anterior.
Começamos a rumar para longe da pequena concentração de estabelecimentos e de volta para a roça, através da estrada que cortava as fazendas e nos levava de volta para casa. Contrariando a reclamação que as meninas fizeram, ele ia de forma tranquila, calma e despreocupada, quase como se quisesse provar um ponto.
A tensão estava tão intensa que eu podia pegá-la com as minhas mãos, fazer uma bola e arremessar na cara de , mas, mesmo assim, nenhum de nós disse qualquer coisa até a metade do caminho. Tive a impressão que estava, apesar de tudo, respeitando meu momento de coração partido ao entregar mais uma filha para um local aonde eu não poderia protegê-la.
- Você falou com seu pai hoje? - perguntou.
Prendi a respiração com a sua pergunta. Era sutil, mas era a maneira dele perguntar se eu já havia tomado minha decisão e qual era. E, dependendo da minha resposta, talvez nosso relacionamento todo teria uma reviravolta ali. Porém, em momento nenhum eu permitiria que sua chantagem emocional influenciasse na minha decisão. Eu queria saber e decidir exatamente dentro dos meus desejos. Talvez aquele realmente fosse um passo importante da minha carreira e eu tinha que pensar com cuidado.
- Falei - respondi.
- E isso é tudo? - Questionou.
- O que você queria que eu dissesse?
- O que eu queria? Queria que você me deixasse participar da sua vida. 'Cê tá fazendo tudo sozinha, tomando decisões sozinha, me deixando de fora…
-
- E aí você vem com esse papinho que é a sua vida, que é a sua carreira, mas você não vê, , que isso não se trata só de você.
- Ah, é claro - debochei. - Porque você sempre acha que todas as coisas do mundo são sobre você.
- Você sabe do que eu tô falando, , não se faz de sonsa - ele segurava o volante com força, mas o carro estava entrando na fazenda com a mesma velocidade tranquila de toda a viagem. - Se você aceitar isso, a gente tá ferrado. Vai tudo mudar e eu não tô falando de mim, tô falando das crianças… Do nosso casamento.
- Você tá ameaçando separar se eu aceitar? - Perguntei, alarmada. - Você tá falando sério?
- Não, . Por Deus - ele estava tentando manter a calma, mas nossos tons de voz ameaçavam aumentar pouco a pouco. - Tô falando do geral. 'Cê vai pra Brasília, ficar cheia de trabalho, cheia de responsabilidades. Quando que eu vou poder te ver? Quando que a gente vai parar tudo só pra levar as crianças na escola outra vez? É disso que eu tô falando.
- Eu não vou abandonar minhas filhas, . Veja bem a bosta que você tá falando.
- Olha, eu tenho quase certeza que seu pai disse algo muito parecido há alguns anos.
- Você enlouqueceu? - O grito saiu com força total da minha garganta, assim que ele estacionou na frente de casa. - Se você acha que alguma vez…
- Quando seu pai te abandonou e te escondeu naquela reabilitação - ele me cortou. - Ele estava bem nesse ponto que estamos agora, não? Tentando abafar um escândalo porque estava sendo cogitado pra ser ministro?
- Cala a boca! Cala a boca!
Os meus gritos foram seguidos de soluços meus e, então, do choro assustado de Júlia, que acordara com a nossa briga. estava sendo cruel, desenterrando algo da minha vida que nunca cicatrizara completamente e ele sabia disso, por isso estava tentando usar contra mim, para me convencer, acabar me assustando com a possibilidade que eu fizesse algo parecido com as minhas Annas.
Não ia acontecer.
- Olha o que você fez - sussurrei, a voz falha pela corrente de lágrimas que escorria dos meus olhos e fechava minha garganta.
Curvei-me para o banco de trás e soltei Júlia da cadeirinha, trazendo-a para os meus braços e tentando acalmá-la. Encarei com as sobrancelhas franzidas de raiva e incompreensão e ele, frustrado, apenas bateu no volante e saiu do carro sem dizer mais nada.



 


Continua...



Nota da autora: (25.09.2016) Sem nota.


Nota da beta: Senhor, esses dois ainda me matam... Me mande logo atualizações, Leety!




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