Escrita por: Tah Rodrigues
Betada por: Laura Aquino




O que pensariam de um adolescente que tinha um fraco por beber e que não fazia questão de parar? Provavelmente pensariam “esse é um tipo de adolescente problemático” e se eu dissesse que esse gostava de festas e não media esforços para viver a sua vida no limite? Aí sim teriam a certeza que esse é um adolescente problema. Pois é, esse “adolescente” no caso sou eu, mas acho que não sou tão problema assim. Não dou trabalho para ninguém, estou fodendo com a minha própria vida e não estou atrapalhando os outros com isso. Por sorte, ninguém mete o bedelho na minha vida dizendo que estou errado, sou eu por eu mesmo.

Parte Um: Go to Hell


Festas.
Isso me agradava e em uma sexta-feira à noite eu não poderia estar em outro lugar.
Por que sexta? Bom, porque ainda tenho que terminar o terceiro ano, só mais um infeliz ano. Espero que eu consiga aguentar.
Voltando para festa. Eu estava jogado em um canto com sei lá qual bebia na mão de sei lá quantas. Meu estado não era dos melhores para saber, apesar de que estava consciente, mas meu interesse se prendia mais em uma garota do outro lado do salão de festas da casa de Ashley Miller, a garota mais popular, gostosa e puta que já conheci, mas devo confessar que ela sabe fazer um garoto feliz, só se não passar de um dia, ou melhor, uma noite.
A garota que eu observava usava um vestido com a saia rosa e a parte de cima revestida do que parecia pedrinhas pretas. Não sei dizer bem, ela estava longe e não sou bom nisso de moda, pouco importa. Não, ela não me chamava à atenção apenas pela roupa que usava, para falar a verdade não sabia por que ela me chamava atenção, eu sequer lembrava de a conhecer.
Ela estava sentada num balcão onde serviam as bebidas e brincava com um copo de vodka há quase meia hora – acho –, antes disso, não a vi com outra bebida na mão. Rodava um canudinho preto pelo copo, e os três cubos de gelo que sempre viam estavam quase derretidos. Seus cabelos castanhos claros e ondulados batiam na metade das costas e uma mecha estava atrás da orelha me dando visão de uma parte de seu rosto nada animado. Ela era bonita.
- Oi .
- Oi Ash – Fui ríspido.
- Que tal a gente sair dessa bagunça e ir para o segundo andar? – Desviei minha atenção da garota do outro lado do salão, para encarar a dona do vestido pink mais curto e provocante de todos na festa.
- Não to afim. – Continuei no meu tom rude e voltei a olhar para o bar. O copo estava lá, agora vazio, mas a garota não.
- Mas e...
- Na verdade, Ash – Me levantei e tomei o último gole da minha bebida, que não descia mais ardendo há muito tempo –, me cansei daqui. Cansei dessa festa. – Coloquei o copo em um lugar qualquer, saindo dali.
Vasculhei meus bolsos enquanto caminhava pela rua, até chegar ao meu carro e encontrar as chaves dele.
Destravei e entrei, errando três vezes a ignição para ligar. Quando finalmente a chave entrou, virei ligando o carro, mas mal deu tempo do motor roncar.
- Ei! – Olhei para a minha janela meio assustado. Quem em plena consciência, que não quisesse roubar, bateria na janela de um carro às quatro da manhã? – Ei! – dessa vez ela falou sem bater agora que já tinha a minha atenção. Era a mesma garota da festa, apesar de não ter visto muito bem seu rosto, reconheci o vestido.
Desliguei o carro e saí.
- O que você quer?
- Você não vai dirigir, né?
- Não, ia dormir no carro mesmo. É claro que ia dirigir!
- Mesmo depois de ter bebido vários copos de whisky, matines, vodkas ou sei lá mais que bebida tinha naquela festa?
- Não morri até hoje. – Ela pareceu se irritar com a minha resposta, começou a andar de um lado para o outro, reclamando que era por causa de pessoas como eu que o índice de mortes no transito aumenta cada vez mais. – Hey! – Gritei e ela parou assustada. – Cala a boca! Eu nem ao menos te conheço!
- Hey! Não me manda calar a boca! – Revirei os olhos. Por que diabos eu ainda insistia? Apenas virei e ia abrir a porta do carro se ela tivesse deixado. – Eu não gostei de você ter me mandado calar a boca e estou com uma puta raiva por causa disso, mas mesmo assim, não vou deixar você dirigir. – Ela me olhava com raiva, mas não só isso, parecia realmente preocupada.
- Você venceu! – Tirei a mão da porta e as levantei. – Agora como vamos para casa Srta. Gênio? Sabe dirigir ou acha que aquela vodka foi mais do que o suficiente para te pegarem numa blitz às quatro da manhã?
- Na verdade, são 3:45 – Grunhi de raiva.
- Garota! Eu não te conheço há nem 10 minutos e já te odeio, sabia?
- Sim, pelo menos é o mesmo que eu sinto por você. – Ela me olhou segura. Me irritei ainda mais com isso.
- Se me odeia, por que se importou com o fato de que eu poderia bater em um poste?
- Ninguém te aguentaria no céu.
- Quem disse que eu iria para o céu?
- Então ficaria no purgatório para sempre porque nem o inferno te merece. – Respirei fundo antes que a enforcasse com as minhas mãos.
- Vai me deixar dirigir agora? Ou vai ficar olhando para minha cara até que o efeito das bebidas passe?
- Tenho mais o que fazer sábado a noite, não vou ficar com você até lá.
- Então vai sair da frente do meu carro e me deixar dirigir?
- Não.
- Então como vamos para casa, imbecil? – Gritei nervoso.
- Já pensou táxi?
- E por que já não chamou a porra desse táxi? – Ela rosnou para mim e pegou o celular na bolsa lateral preta que usava.
Pensei em entrar no carro enquanto ela ligava para o taxi, a chave ainda estava na ignição, seria fácil se ela não resolvesse escorar na porta da minha BMW.
- Ele já está vindo. – Ela desligou o telefone e disse sem ao menos olhar para a minha cara.
Eu não entendia e nunca iria entender porque ela não me deixou ir sendo que já tinha deixado bem claro que não gostava de mim, mas mesmo assim fiquei esperando o táxi, de qualquer maneira, não tinha como eu entrar no carro, ela me vigiava e não saia um segundo sequer de perto da minha BMW branca.
Quando o taxi chegou, pulei para dentro com má vontade. Ela entrou logo em seguida.
- Para onde? – O taxista nos olhou pelo retrovisor.
- Pode ser você primeiro? – Ela me perguntou com uma educação inexistente há segundos atrás.
Dei de ombros e ela deu o meu endereço para o motorista.
A olhei e depois levantei a cabeça ainda a encarando.
- Como você sabe o meu endereço?
- Todo mundo sabe onde mora .
- E por acaso eu te conheço de algum lugar?
- Duvido. – Ela sequer me olhava.
Dei de ombros de novo e voltei a jogar a cabeça para trás encostando no assento. Eu estava começando a sentir o efeito da bebida, mas a essa hora já estaria em casa se a tal garota tivesse me deixando dirigir.
- Chegamos. – O motorista disse.
Levantei a cabeça tentando me situar com a ocasião, não parecia que eu tinha dormido, apenas que meu cérebro estivesse desligado por alguns longos minutos e a única coisa que funcionava era a minha audição. Olhei para a garota do meu lado e ela procurava algo dentro da bolsa enquanto sussurrava reclamações, até que me notou olhando.
- Eu também vou ficar aqui. – Ela entregou o dinheiro ao motorista.
Abri a porta e ela fez o mesmo, dei a volta no carro que logo arrancou e sumiu de vista.
- Bom, é aqui que a sua noite horrível termina.
- Já era hora.
- Nem sei se devo dizer tchau, mas... vou para casa. – Ela se virou e começou a andar. Fiz o mesmo, mas antes mesmo de subir o primeiro degrau algo me impediu de continuar. - Ou! – A chamei e ela olhou. – Está muito tarde, fica, amanhã você vai. – Ela se apoiou em uma perna e franziu o cenho. – Porra! Eu to tentando ser educado, se não quiser vai embora sozinha a essa hora da madrugada, garanto que não me importo. – Continuei andando.
- Espera. – Ela respirou fundo e correu em minha direção. – Desculpa, é que depois de tudo aquilo é meio difícil acreditar que você está sendo legal comigo.
- Para mim também.
Entramos no saguão do prédio e eu cumprimentei o porteiro da noite que olhou a garota de baixo em cima. Entramos no elevador e subimos, por um milagre durante a noite toda, ela não falava nada.
- Bom, obrigada adiantado. Sei que depois ou vou perder a vontade de agradecer ou simplesmente não vou conseguir.
- Foda-se.
- Ih! Começou, você não sabe ser educado por muito tempo. – Ela começou a tagarelar de novo e a reclamar, mas para falar a verdade eu não escutava, estava mais preocupado em achar a chave do apartamento do que a ouvir ela falando.
Achei a chave e coloquei na fechadura girando três vezes para destrancar e ela ainda não parava de falar. Então em um ato por impulso a puxei para mais perto e a beijei, nem sei por que fiz isso, apenas fiz, pelo menos adiantou.
- Assim que eu gosto, calada.
Abri a porta e entrei sendo seguido por ela que parou no meio da sala, tímida e calada. Tranquei a porta e joguei as chaves em cima do balcão da cozinha.
- O quarto de hospedes é aquela porta atrás da escada – Apontei. –, tem lençóis dentro do armário, se precisar de alguma coisa, não me chame. Vou subir. – Ela assentiu e eu subi para o meu quarto a deixando lá em baixo sozinha.
Fui ao guarda-roupa pegar algo para eu tomar um banho antes de dormir. Tirei uma roupa para mim e desci com outra na mão indo até o quarto de hospedes. A porta estava aberta, ela estava em pé “analisando” o quarto.
- Aqui. – Estendi a mão –, caso você não queira dormir de vestido. – Dei de ombros e ela pegou.
- Obrigada.
Voltei para o quarto, tomei um banho e dormi.
Parte II: Forget Everything


De manhã eu estava com uma dor de cabeça infernal – o que era de se imaginar – então tomei um banho gelado, depois desci e peguei café recém feito da cafeteira já programada. Sentei na cozinha e pus o café em cima da bancada de mármore negro, dando um tempo para a minha cabeça.
- Bom dia. – Olhei para o lado e ela estava parada, com o rosto amassado, cabelo preso de um jeito meio bagunçado e a minha camiseta cinza que ficava um pouco curta nela, apenas isso.
- Hum... Pega um remédio para mim no armário do banheiro lá em cima. – Ela foi sem falar nada, enquanto isso eu levantei e peguei um copo de água, depois terminei o café quando voltei para mesa, e então ela desceu.
- Você deve ter muita “dor de cabeça”, – Fez as aspas. – tem um arsenal de remédios para ressaca lá em cima – Ela me entregou. Não comentei nada, coloquei o remédio no copo com água enquanto a garota me encara parada no mesmo lugar.
A olhei.
- Vai ficar parada aí o dia inteiro? – Ela não fez nada, continuou parada. Revirei os olhos. – Tem comida se quiser.
- Comida? – Disse num tom surpreso.
- Acha que eu vivo só de álcool e remédios para ressaca? – Deu de ombros. – Você ainda me irrita. – Encarei o copo agora com o remédio todo dissolvido dando uma coloração esbranquiçada à água.
- Me conte uma novidade. – Foi até a geladeira. – Uau, quanta comida. – Ela era bem irônica, isso era evidente pelo seu tom de voz mesmo com a cabeça dentro da geladeira.
- Tenho 17 anos, moro sozinho e não sei cozinhar.
- Ta bom... – Ela tirou alguma coisa da geladeira e pôs na pia fechando a porta com a ponta do pé. – Posso ficar a vontade?
- Já não está? – Não respondeu.
Virei o copo todo de uma vez e fiquei quieto, de olhos fechados para que a dor aliviasse. Eu achava que não tinha bebido tanto para uma ressaca tão forte, se bem que, aposto que 90% da minha dor de cabeça é pela intromissão dessa tal garota na minha vida ontem. Ela não tinha nada o que aparecer e bancar a intrometida me proibindo de dirigir.
Um cheiro bom tomou conta do apartamento, mas mesmo assim não levantei a cabeça, pelo menos até ouvir um barulho de prato batendo em uma superfície, e o cheiro ficar ainda melhor e mais forte. Aí sim levantei a cabeça. Ela estava do outro lado da bancada que dividia a sala da cozinha com um prato posto a sua frente e, me encarando, pôs outro prato na minha frente.
- Achei que gostaria de comer algo que não fosse congelado. – Não entendi porque ela fez isso, mas também não questionei. O cheiro estava realmente bom e eu acabara de descobri que estava com fome. Há realmente muito tempo que não comia algo que não fosse congelado. Sempre fui um desastre na cozinha, culinária nunca foi o meu forte.
- Eu tinha ovo na geladeira? E como conseguiu arranjar tanta coisa para por? – Ela se sentou.
- Foi difícil, acredite – Era uma omelete cheia de coisas dentro. Experimentei e, assim como o cheiro, estava muito bom.
- Seu apartamento é bonito, as garotas devem adorar aqui.
- Não trago garotas para a minha casa.
- Ah... Achei que trouxesse pela fama que tem.
- E que fama eu tenho? – A encarei e ela enfiou uma garfada de omelete na boca tentando fugir da pergunta, mas continuei a encará-la até pensar que não valeria apena escutar, então voltei para o prato.
- E seus pais? Eles não deveriam estar aqui?
- Meus pais moram em Londres.
- Mas por que não moram aqui com você, ao invés de te deixar sozinho?
- Você é muito intrometida sabia? – A encarei de novo. – E fala demais. Vê se fica quieta. – E voltei para o prato.
- Tudo bem. Afinal, devo estar piorando a sua ressaca.
- Justamente. Piorando ainda mais o que já ia ficar ruim.
- Quer dizer que a culpada da sua ressaca agora sou eu?
- Sim. Se você não tivesse me tirado do carro ontem, hoje estaria tudo bem e o melhor de tudo: você não estaria aqui.
- E quem sabe você também não? Talvez um caixão ao invés da sua cama confortável.
- Por que você não me deixou dirigir? – Pus os braços na mesa, cruzando e a olhando disposto a receber uma resposta dessa vez. – Afinal, duvido que se importe tanto comigo.
- E realmente não me importo, mas pensei que alguém sentiria sua falta.
- Ah claro. – Disse desacreditado e voltando a comer os últimos pedaços de omelete no prato.
- É verdade! Eu perdi meu pai com 10 anos graças a isso, e a dor da perda não é uma coisa muito legal, é uma das piores.
- Pelo menos você tem a sua mãe. – Terminei.
- Minha mãe abandou meu pai deixando para que ele cuidasse de mim quando eu tinha um ano e oito meses. – Ela me encarava com o prato já limpo, e eu não pude evitar de encará-la para que continuasse, mas ela não iria falar.
- Você mora com quem então?
- Minha madrasta.
- E o que tem a ver eu dirigir, com a história da sua família? – Ela respirou fundo preparando a resposta.
- Minha mãe teve depressão pós-parto, na verdade ela nunca quis ter um filho e sempre se sentiu infeliz com essa vida, então assim que pode me abandonou com o meu pai que ficou muito magoado com isso. Magoado e desesperado.
- Então casou com a sua madrasta e bla bla bla...
- Não. Ele começou a beber, e conforme eu fui crescendo, fui descobrindo, mesmo ele bebendo sempre escondido. Com 7 anos, o fiz prometer que não beberia mais, e ele cumpriu a promessa, durante esse tempo conheceu a minha madrasta e se casou, mas acho que ele nunca esqueceu a mamãe, afinal, quando eu tinha uns 9 para 10 anos ele recebeu uma carta dizendo que a minha mãe havia morrido e então voltou a beber. Certa vez, eu já tinha 10 anos, e implorei para que ele não saísse de casa a noite, mas ele iria mesmo assim e eu sabia muito bem para que. Pedi então que não dirigisse e ele não levou o carro, para falar a verdade, naquela noite ele nem bebeu, talvez pensou em mim o implorando para que não fizesse, mas, eu nunca vou saber já que nessa noite, um carro guiado por um motorista bêbado o atingiu em cheio na faixa de pedestre com o sinal fechado para carros.
- E agora você vive feliz com a sua madrasta na sua casinha.
- Não exatamente. – Eu deveria ter parecido curioso já que ela continuou: – Sabe a história da Cinderela? – Ela ajeitou a coluna um pouco. – Vamos dizer que a minha vida agora é parecida se tirar as duas irmãs malvadas e o príncipe encantando.
- Hum... – Acho que ela esperava alguma resposta de mim, afinal, ficou me encarando por segundos até que levantou e pegou os dois pratos indo em direção da pia.
Eu sabia como era perder os pais, na verdade nossas situações eram semelhantes. Ela é órfã de pais mortos e eu de pais vivos. E ambos temos algo para viver: ela, a madrasta e eu, o dinheiro da minha mãe. Para falar a verdade não sei se é tão semelhante assim.
Respirei fundo, senti que não havia problema em lhe contar a minha situação, ela me contou a dela.
- Nunca tive um bom relacionamento com o meu pai, então assim que fiz dezesseis ele comprou esse apartamento para mim resmungando e se mudou para Londres. A minha mãe se dizia muito mal com essa situação, mas foi junto e me manda o dinheiro todo mês, mas ela está mais interessada nas compras e na vida de madame diferenciada da Inglaterra do que para o filho, e, penso eu, que só me manda o dinheiro porque a transferência é automática, para o caso dela não esquecer como fez diversas vezes.
Ela não respondeu, terminou de lavar os pratos e pôs para secar, depois se virou, enxugou as mãos na minha camiseta e passou uma mecha solta do cabelo castanho claro preso em um coque solto, para trás da orelha. Ficou me olhando com cara de paisagem como se eu não estivesse dito nada.
- Está tarde. É melhor eu ir. – Ela foi caminhando até o quarto do hospedes. Me levantei.
- Eu te levo. – Ela não respondeu, o que era estranho. – Espera ai, sem resmungos ou falação?
- Algo que eu disser vai mudar alguma coisa? Melhor eu não me intrometer. – Ela entrou no quarto.
Subi e coloquei uma roupa melhor para sair, depois desci para procurar as chaves do carro. Ela saiu do quarto de hospedes devidamente vestida como ontem à noite no exato momento em que achei as chaves.
- Vamos!? – Saímos do apartamento.
- Só uma pergunta: Você disse que iria me levar, mas como? Achei que seu carro estivesse ficado na casa da Ashley.
- E ficou. – Fomos direto para o elevador e o silêncio reinou pelo menos até chegarmos à garagem.
Apertei o botão da chave destravando uma Mercedes na quinta vaga seguindo reto.
- Como eu não imaginei um outro brinquedinho? – Pergunta retórica.
Entramos no carro e eu dei partida saindo da garagem. Poucas pessoas sabiam da Mercedes, eu sempre preferi sair com a BMW, me sentia mais a vontade, mas nesse caso, eu não tinha outra escolha.
- Ajudaria se você dissesse o seu endereço.
E ela disse. Me guiou por todo o longo caminho até uma rua discreta onde morava. Era um caminho longo e perigoso para se andar sozinho em plena madrugada.
Parei o carro e ela já ia sair. Mas tranquei a porta, fazendo com que me olhasse com uma gota de confusão em seus olhos.
- Eu gostaria que esquecesse disso, de tudo o que aconteceu.
- Por mim não aconteceu nada, não precisava nem ter dito. – Ficamos nos encarando por alguns segundos. – A porta. – Ela me lembrou.
Destranquei e ela saiu, atravessando a rua um pouco desengonçada encima do salto e com o cabelo, uns quatro dedos acima da metade das costas, voando com o vento por ter desfeito o coque.
Que diabos há comigo? Isso é loucura.
Parte III: Remember


- Que cara é essa mano?
- Meu pai veio enchendo logo de manhã.
- Com que?
- As coisas de sempre, que eu sou um vagabundo mirim e bla, bla, bla.
- E sua mãe?
- Minha mãe nunca faz nada, não sei por que ainda pergunta.
- Que barra.
- Eu sinceramente não vejo à hora de morar sozinho.
- Você só tem 11 anos, .
- E daí, Joe? Do jeito que meu pai fala, ele jogaria tudo para o alto e me deixava aqui, mesmo sem nem ter entrado na puberdade direito.
Gargalhadas altas começaram a vir de toda a parte, olhei para o centro do pátio confuso e pelo que eu entendi, zombavam de uma garota que passava por lá acanhada.
Não disse nada, apenas fiquei observando a cena. Eu tinha a impressão que a conhecia, não fazia ideia de onde.
Gritavam algo sobre ela está usando roupas de manga comprida escura no calor infernal da manhã, mas ela seguiu em frente parecendo não se importa com as insultas e risadas.
- Quem...? – Perguntei assim que a menina entrou na escola.
- , novata.
- Por que ela usava aquelas roupas? Está um calor infernal.
- Eu não sei, talvez tenha haver com o acidente do pai dela antes de ontem.
- Acidente?
- É. Um cara chapado estava a toda velocidade e acertou o Sr., ele voou longe! Morreu na hora.
- Como você sabe disso?
- Ela é a minha vizinha. As coisas chegam lá em casa mais rápido do que imagina. – Ele riu.
O sinal infelizmente bateu, significava que nossas cinco horas de tortura já iriam começar. Joe e eu pulamos de um banco de cimento que ficava no canto do pátio e fomos em direção ao prédio da escola.
- Que aula? – Perguntei.
- Estudos sociais.
- Passo.
- Vai matar aula de novo?
- Sim, eu vou.
- Vai acabar reprovando por falta. – Ri.
- Você é tão engraçado às vezes, Joe.
- Como quiser então. – Ele deu de ombros.
- Nos vemos mais tarde!?
- Falou.
Fui em direção ao fundo da escola e procurei chegar lá antes que a multidão aglomerada no corredor se cessasse. Ali tinha um jardim oculto, ninguém ia, ninguém via, excelente para matar aula.
Estava prestes a relaxar e a esperar o sinal bater, enquanto não fazia absolutamente nada jogado na grama bem verde, quando ouvi uma fungada alta. Alguém parecia estar chorando. Fui cauteloso até atrás da pilastra de onde vinha o som e eu estava certo. Uma garota estava chorando e por julgar a blusa de frio jogada no chão ao lado dela, era a mesma zoada no pátio. Como era mesmo seu nome?
- ? – Ela levantou o rosto bem vermelho, inchado e assustado para mim. – Tudo bem? – Ela virou o rosto e passou a mão tentando enxugar as lágrimas.
- Está.
- Não parece.
- Então por que perguntou?
- Você está assim por causa do seu pai? – Agora ganhei a sua atenção.
- Como... er... como... você...?
- Não importa como eu sei. É? – Ficamos nos encarando por alguns segundos, até ela baixar a cabeça e assentir.
Depois disso, ela pegou a camisa no chão e levantou num movimento brusco e rápido.
- Espera! – A segurei antes que pudesse fugir e não tive uma boa sensação ao tocar seus pulsos – O que...? – Os olhava perplexo – Por quê?
- Não é fácil perder quem ama.
- Mas daí a se cortar? O que vai adiantar? Não vai trazer essa pessoa de volta!
- Meu pai morreu! Não precisa fazer o papel dele! Eu mal te conheço e aposto que se não fosse pelo episódio de hoje, você também nem me conheceria. – Ela puxou o braço de volta – Quer saber? Sim. Eu me cortei, e devo dizer que foi um alivio para mim, uma sensação de paz invadiu a minha alma depois de horas torturantes de velório. Agora vai fazer o que? Contar para seus amiguinhos e para a escola inteira? Vai! Torne minha vida um inferno ainda maior! – Ela se virou e foi embora, me deixando com cara de palhaço surpreso demais para qualquer reação.

“Nightmare! Now your nightmare comes to life...” Meu celular gritou e eu levantei ofegante na mesma hora. Eu deveria ter cortado introdução da música um pouco menos, assim não acordaria num susto com algo dizendo “Agora seu pesadelo ganha vida”.
Eu estava suado e provavelmente com uma expressão aterrorizada. A sensação de que a conhecia que me invadiu há uns dias era real e mais do que isso.
- .
Parte IV: Warning


Eu não estou bem, nem um pouco. Isso não está certo! Nada está certo. Ninguém nunca ficou na minha mente como ela está, eu não estou me reconhecendo desse jeito. Todos os dias e noites, em sonhos ou até mesmo em pensamentos. Que diabos está acontecendo comigo?
- Achei que tinha esquecidos dos amigos.
- Eu te vejo todos os dias na escola.
- Mas mesmo assim, você parece muito distante.
- Você não presta para drama. Na verdade, não presta para porra nenhuma, mas... – Ele riu.
- Calma aí, vou pegar umas cervejas para a gente. – Ele saiu do quarto e eu me sentei numa cadeira atrás de mim.
Logo ele estava de volta. Fechou a porta, me jogou a bebida e se jogou na cama desarrumada.
- O que devo a visita ilustre?
- Eu? Ilustre? Sei que sou foda, mas nos conhecemos desde a primeira série, sempre fiquei mais aqui do que em casa. – Beberiquei a cerveja.
- E continua convencido. Mas vai, desembucha.
- Desembuchar o que?
- Como você mesmo disse, nos conhecemos desde a primeira série. Você não me engana , e quando eu disse que está distante, estou falando sério. Qual o seu problema, afinal?
- Eu não tenho problema nenhum.
- Me conta logo, brother – Disse impaciente.
- To com alguém na cabeça.
- E...
- Ela não sai de lá.
- Ela? Cara, tu ta apaixonado?
- Você ta louco, Joe!? Eu não...
- Espera! É pela garota que você levou ao seu apartamento depois da festa da Ash? – Ele parecia empolgado com isso, parecia não, estava empolgado, coisa que eu não estava.
- É sim, mas por que você está tão animado com isso? Depois que ela veio embora, era para eu a ter esquecido, como sempre. Ela é tão marrenta, e intrometida, respondona...
- E você está tão apaixonado por ela, que até os defeitos te agradam.
- Não.
- É sim . Agora me conta, qual o nome da azarada?
- Azarada?
- Ou sortuda né, sei lá, é algo que não creio muito. – Franzi o cenho. – Anda! Diz! Quem é?
- . – Ele gelou, arregalou os olhos de um jeito que pareciam saltar para fora de seu corpo e deixar suas órbitas vazias.
- ?
- É.
- Não ! Você não pode! – Ele gritou.
- O que eu não posso cara?
- Você não pode gostar da ! – Ele parecia assustado.
- Mas quem está dizendo que eu gosto dela é você.
- E por acaso estou mentindo?
- Eu não sei! – Explodi – Eu estou confuso! Você não entende? Há semanas ela não sai da minha cabeça, desde aquela maldita festa mês passado! Sabe por que eu não fui à festa do Jason esse final de semana? Porque simplesmente, eu mal encostei nas chaves que ela veio na minha cabeça de novo. Cheguei em casa mal para caralho depois da balada sexta, talvez por culpa, pelo fato de ter dirigido bêbado, depois de tudo o que aconteceu e do que ela me contou. Mas eu não consigo Joe! Não consigo deixar de fazer tudo o que faço, mas mesmo assim ela fica na cabeça me dando uma sensação horrorosa depois! – Ele pareceu gelar ainda mais com o que eu disse. – Sabe Joe, ela entrou na minha vida como um furacão, de repente e devastadora, ela destruiu tudo e a cada vez que tento reconstruir vem e derruba de novo como se eu estivesse fazendo errado.
- Escuta , a é problema, você não sabe no que está se metendo. Caso não se lembre, ela é a minha vizinha, consigo saber de poucas coisas que acontecem, e só são poucas porque ninguém sabe tudo o que acontece lá. Não dava para se apaixonar por alguém menos problemática?
- Ficar aqui não está ajudando. – Me levantei e pus a garrafa de cerveja, já vazia, no cômodo atrás de mim.
- É sério , me escuta, estou tentando te ajudar.
- Porra Joe! Você realmente não entende! Eu não consigo esquecer! Eu quero, mas não consigo! Sei lá, ela foi a única que se importou comigo, apesar de tudo, ela se importou, talvez seja só isso.
- Espero que seja apenas isso, para o seu bem.
- Falando assim até parece que ela é traficante de drogas, sei lá.
- Você não está levando isso a sério.
- Estou, claro que estou. – Esse papo já tinha me cansado, apenas.
- Não, não está! Olha , quando vocês foram fazer sei lá o que no seu apartamento...
- Não fizemos nada!
- Ok, ok. Esquece a garota perfeitinha que você viu lá, tenho certeza que a não é aquilo.
- Perfeita é a ultima coisa que ela pode ser.
- Que bom.
- Mas, mesmo assim...
- ! Por favor! Faz isso, sei lá, por mim já que não quer fazer por você mesmo.
- Cala a boca Joe! Não preciso que cuide da minha vida.
Saí do quarto batendo a porta. Como assim “a é problema”, do que ele está falando? E mesmo assim, eu quero esquecer, só não consigo! Não é uma escolha minha. Por mais que eu queira, não dá. Garota estúpida! Por que não consigo tirá-la da minha vida?
Parte V: Out


Eu estava atordoado com tanta informação tomando conta da minha mente. Não era fácil, principalmente com confusões de pensamentos me atormentando. Eu precisava tirar essa história a limpo, por as idéias em ordem para voltar a viver a minha vida normalmente como sempre foi e só havia um jeito para isso.
- Entra.
- Não.
- Entra!
- Não!
- Entra no carro ! – Ela enfim parou de andar e eu parei a minha BMW com qual andava lentamente a acompanhando enquanto tentava convencer aquela criatura marrenta e teimosa para caralho a entrar, e agora ela tinha ficado surpresa o suficiente por eu saber seu nome que bufou e entrou.
O silêncio reinou por alguns segundos, ela demonstrava claramente que não queria estar ali.
- Você sabia que o meu melhor amigo é seu vizinho? – Esse não era o melhor jeito de começar, mas era algum começo.
Ela ficou calada e eu aguardei com a paciência que nunca tive, mas parecia que o que me faltou toda a minha vida, havia se acumulado para essa conversa.
- Sei desde que tinha três anos.
- Quando seu pai passou da conta e a mãe do Joe a levou para a casa deles até que seu pai se recuperasse. – Provavelmente ela me olhou surpresa, pelo canto do olho pude notar que me olhava, mas não sabia bem qual era a sua expressão e nunca iria saber já que quando pude olhá-la já tinha virado o rosto.
- É.
Mais silêncio, da escola até a casa dela era longe, tínhamos tempo para fazer muita coisa. Porém, nesse ritmo não sei se a conversa iria muito longe, mas eu precisava saber seja lá o que ela tem a dizer.
- Eu me lembro de você, na quinta série. – Ela me olhou com surpresa e algo mais, e dessa vez não fez questão de esconder a expressão. – Você... você ainda faz aquelas coisas? – Ela não respondeu, esperei um pouco, mas minha paciência não estava das melhores, mais. – Eu gostaria de uma resposta! – A encarei e mais uma vez, ela tinha virado o rosto, mas dessa vez vi algo estranho. – Que roxo é esse no seu ombro, ?
- Não te interessa – Ala acertou a alça da blusa, tampando o roxo.
- Isso é um hematoma? O que aconteceu?
- Já disse que não te interessa! – Seu tom tinha raiva, como se eu estivesse sendo inconveniente, mas ela me devia essa.
- É o seguinte: – Me joguei na cadeira, soltando a mão do volante já que tínhamos parado num semáforo, e pelo trânsito, parecia que ia demorar, mas não estávamos tão longe mais. – por um motivo muito desgraçado, você não sai da minha cabeça e aquele sonho não ajuda em nada! Eu sei e lembro que você se corta. Que não me interessa, eu sei, e realmente não dou a mínima, mas quero voltar a minha vida normal e graças a você, desde aquele maldito dia que não me deixou dirigir, eu não consigo viver a minha vida em paz! Por algum motivo, se você não disser que está tudo bem eu não vou conseguir voltar a viver do jeito que eu vivia. Até para mim, falar isso parece um absurdo. Onde já se viu? Eu precisar da "autorização" de uma garota estúpida para viver, mas é verdade, se não fosse, você não estaria aqui!
- Você realmente quer saber, ? Sabia que você não se importava, era apenas individualismo seu, mas é. – usava muitas pulseiras nos braços, eram de pano, grossas nos dois pulsos e algumas outras para enganar as marcas que agora ela me mostrava – E lá se vão sete anos assim, já que se lembrou daquele infeliz dia, deve lembrar também do porquê, e quer saber mais? – Ela levantou a blusa me mostrando as costelas arroxeadas e depois abaixou. – A minha vida é um inferno e eu não tenho outra opção além de aturar. Está feliz agora? Deve estar, né? Já que descobriu que há pessoas com a vida pior do que a sua, já que não lhe falta nada. Se acha o rei dos problemas familiares apenas por não ter um bom relacionamento com o papaizinho e ter que sobreviver com uma grana mensal que é mais do que eu ganharei toda a minha vida! Você é apenas um riquinho mimado, com a vida melhor do que meia população mundial e vive reclamando como se sua vida fosse uma droga.
- Você não sabe de nada!
- Sei sim! Você é superficial, se diz um bad boy, mas é um moleque, um riquinho esnobe e prepotente, vive esbanjando o dinheiro certo todo mês, e qualquer coisa, basta ligar para a mamãezinha madame que manda mais grana...
- Sai do meu carro agora. – Disse entre dentes.
- Será um prazer.
Parte VI: Blood


Aquela garota me dá um ódio, uma raiva incomum, e apesar das coisas bem claras aquele dia, ela ainda não saia da minha mente. O que é um tanto estranho, afinal, não faz lógica lembrar tanto de alguém que lhe xinga e chama de riquinho mimado, esnobe e prepotente. Qual era o problema dela? Tinha o que? Merda na cabeça? Mal me conhece e se acha no direito de dizer aquelas coisas para mim?
Acho que o problema real era comigo, apesar de tudo. Eu estava em frente à casa dela com o carro pela terceira ou quarta vez na semana.
Já era noite, a rua estava muito pouco iluminada e a casa parecia estar vazia, mas eu sabia que ela estava lá. Também estava frio.
Eu não sabia porque diabos estava ali, mas todas às vezes foram assim, eu me sentia agoniado em casa, saia para dar uma volta de carro e parava justamente ali, ficava umas duas horas, no mínimo, olhando para a casa e depois ia embora quando já era altas horas da madrugada.
Era sempre do mesmo jeito silencioso, não dava para ouvir nada de lugar nenhum.
Me senti um pouco sufocado dentro do carro, então saí para tomar um ar, o vento que entrava pela janela já não era mais suficiente. Mal saí e ouvi o barulho de algo se quebrando, vinha da casa dela, isso eu tinha certeza, logo em seguida ouvi um grito meio agoniado vindo de lá e eu sabia que era da . Como se não bastasse o grito, ouvi estalos, uns três e foi nessa hora que eu fiz a coisa mais surpreendente da minha vida: corri até lá.
Não sabia se deveria bater, ou, entrar logo chutando a porta, mas a minha primeira reação foi tentar a maçaneta e por incrível que pareça, estava aberta. Entrei cauteloso na sala que a porta principal dava, mas não tinha ninguém, apenas estilhaços de vidro no tapete. Ouvi alguém na cozinha que era logo ali em frente, e algo me disse que esse alguém estava prestes a voltar e eu não gostaria de saber quem era, então subi as escadas com pressa, mas me esforçando para não fazer barulho.
A última porta do corredor estava meio aberta com uma luz amarelada saindo de lá, era o único lugar aceso de todo o pequeno corredor. Eu tinha que ir para lá e fui. Era um quarto enfeitado com amarelo e laranja, mas apesar de tudo, não tinha uma aparência muito alegre. Ouvi um barulho vir de uma porta na lateral, era uma espécie de metal caindo no chão, algo assim, então fui ver o que era e a estava lá, de um jeito deplorável de se ver. Usava shorts jeans, e uma camiseta clara que sinceramente não prestei atenção na cor, o que me apavorou, foi o sangue pingando no chão e uma lamina ensanguentada ao lado do pulso esquerdo cortado.
Ela me olhou, estava pálida e bem mais magra, não parecia ter comido muito bem há um bom tempo. Seus olhos estavam cansados, ela não aguentava os manter abertos e para aumentar o meu pavor, os fechou, deixando o corpo mole e caiu no chão frio do banheiro.
Parte VII: Stay


Quando me lembro da noite passada, eu mesmo não acredito no que vi ou no que fiz, mas vê-la pálida e largada no chão manchado com sangue não me agradou. Não sei bem como me senti, sei que não fui comovido, o que eu sentia por ela nunca foi pena, mas eu simplesmente não podia ver aquilo e a deixar lá, desmaiada e com aquela aparência horrível. Sei que não seria levada para o hospital e nem cuidada para que não continuasse daquele jeito, então a tomei em meus braços, a erguendo do chão e a levando para o primeiro andar com cuidado já que estava completamente inconsciente e mole.
Quando desci encontrei a madrasta dela, uma mulher de boa aparência com roupas caras, resmungado sobre uma garota estúpida que deixava tudo cair no chão e nem servia para limpar o que tinha quebrado. Assim que ela me viu com a nos braços, perguntou quem eu era e o que estava fazendo na casa dela com a enteada no colo, mas não respondi, fui direto para porta, então ela começou a gritar, dizendo que eu não podia fazer isso, que era sequestro e mais um monte de baboseiras.
- Socorro! – Ela berrava alto. – Tem um ladrão na minha casa! Vou ligar para a polícia! – Cansei de ela gritar, não conseguia aceitar o fato de ela estar me chamando de culpado sendo que a estava daquele jeito por causa dela.
- Chama! Aposto que ela vai querer saber porque a está desse jeito! – Gritei de volta. – Espero, por ela, te ver no inferno.
Saí de lá e a coloquei no banco da frente do carro, fechando o cinto e pus minha blusa de frio por cima. Dei a volta no carro e entrei no lado de motorista, ligado e o arrancando dali o mais rápido que dava. Não sabia para onde a levar, pensei no hospital, mas o que eles pensariam se um cara chegasse vestindo uma camiseta com sangue levando uma garota naquele estado? Iriam faze perguntas demais. Achei também que quando ela acordasse, não iria gostar de está lá. Um lugar... um lugar.... um lugar...

(...)
- Você está bem? – Ela abriu os olhos devagar, com dificuldade talvez pela luz repentina. Pareceu estranhar o lugar, mas estranhou mais ainda o fato de eu estar lá.
- ? O que você está fazendo aqui? O que... – Ela tentou se levantar, mas não tinha forças para isso.
- Calma.
- Só vou ficar calma quando você me contar o que aconteceu e onde estou.
- Onde você está é fácil, na minha casa.
- Faltou o que aconteceu.
- Aí já complica, do que se lembra? – Ela franziu o cenho, forçando a memória.
- De um vaso de vidro caindo, eu corri para dentro do quarto e então, você estava lá! O que você estava fazendo no meu quarto?
- Ouvi o vidro cair, você gritar, três estalos e a lamina caindo no chão do seu banheiro quando eu já estava dentro da sua casa. – Ela arregalou os olhos, desesperada pensando que eu vi a cena e não gostou disso. – Eu não sei o que eu estava fazendo em frente à sua casa, sei que estava lá.
- Como das outras vezes.
- Você me viu?
- Como eu não iria notar uma Mercedes preta em frente à minha casa? Não existe muitos carros luxuosos por aqueles lados, sabia?
- Tenho a impressão que você está bem melhor. – Ela tentou se levantar e dessa vez conseguiu, mas com certa dificuldade.
Sem que eu menos esperasse, ela soltou um curto grito.
- E onde estão as minhas roupas!? – Então, me olhou desesperada.
- Lavando.
- E posso saber por quê? Acho que tenho esse direito.
- Por que tanto desespero?
- Ah claro! Por que é super comum uma garota acordar de calcinha e sutiã na cama de um cara que mal conhece sendo que estava inconsciente!
- Na verdade, é normal sim.
- Você me entendeu, ! – Ela disse irritada – Para de enrolar e me diz logo o que aconteceu!
- Eu estava lá e ouvi aquilo tudo como já disse, então entrei na sua casa, a porta estava aberta e sua madrasta não estava lá. Subi e entrei no seu quarto, te encontrei realmente mal e então você desmaiou. Te trouxe para cá, sei o que a sua madrasta te faz, achei que não gostaria de acordar num hospital. Suas roupas estavam com sangue, assim como as minhas, a diferença é que eu tenho outras aqui e você não, ainda. – Ela olhou para o pulso esquerdo e passou os dedos da mão direita sobre a atadura que protegia o local. – Você foi longe dessa vez, machucou muito.
- O que você quer dizer com “ainda”? – Ela ainda olhava para o braço.
- Hã?
- Você disse “a diferença é que eu tenho outras roupas aqui e você não, ainda.” O que quis dizer com “ainda”? – Agora eu havia ganhado a sua atenção.
- Eu quero que você fique aqui.
- O que quer dizer com isso?
- Quero que more aqui , não posso deixar você voltar para a sua casa. Não com aquele monstro que você chama de madrasta que quase te matou.
- Não foi ela , eu fiz isso. – E de novo olhou para o braço.
- Não defenda ela, .
- Eu não estou defendendo ela, ! – Ela olhou para mim de novo, dessa vez me mostrando o pulso enfaixado. – Eu que fiz isso! Eu que peguei o lâmina e quase me matei! Por que você iria querer alguém assim morando com você? Para que quer ter uma louca que tenta se matar, não pela primeira vez, de baixo do mesmo teto que você? – Ela falava alto, desesperada e pela primeira vez desde que eu a conhecera, seus olhos lacrimejavam.
- Por isso mesmo que eu quero você aqui! Não quero que tente de novo! Não posso deixar você voltar para lá. Por favor, , eu nunca me importei com alguém, nem sequer parecido como acho que estou me importando agora, então, não faça com que eu me arrependa. – Ela baixou os olhos de novo, deixando o lençol cair, tampando do umbigo para baixo.
- Será que isso vai dar certo? Sabe, nossos encontros não tem sido os mais pacíficos. – Ri.
- Nisso eu tenho que concordar. – Ela sorriu, era a primeira vez que eu a via sorrir. – Você está melhor, né?
- Se você parar com esses seus ataques preocupados, sim. Você não serve para isso.
- Nem eu sei por que estou assim. – Respondi, rindo um pouco mais uma vez. – Sabe , eu não vou mudar, já estou diferente demais e isso está ficando bizarro.
- E quem disse que você ia?
- Só não quero que se surpreenda, nesse tempo que ficar aqui.
- , eu sei bem como você é, pode ter certeza que me surpreender seria a última coisa que aconteceria. Eu também não quero que você mude.
- Não?
- Não, seu idiota! Se fosse para você ficar diferente nada teria acontecido. – Ela falou como se fosse óbvio. – Relaxa, vamos ver quanto tempo aguentamos até tentar nos matarmos.
Ela sorriu mais uma vez, e foi aí que eu notei, que pela primeira vez as coisas estavam realmente bem, até demais.

Parte VIII: Shut up


- Você... você é louco! Eu disse para esquecer a .
- E eu te disse que não conseguia.
- Mas daí a levar para morar com você? Não acha que é um pouco demais, ?
- E o que eu poderia fazer, Joe? Sabendo do que ela passava lá?
- Precisava fazer nada! Como você sempre fez, absolutamente nada!
- Eu não podia fazer isso, depois do que eu vi muito menos.
- ! A é problemática! E ela tem depressão!
- Filho da puta! Isso quer dizer que você sabia? – Ele não respondeu e desviou a atenção de mim. – Você sabia, Joe? E por que não me falou nada? – Conversávamos aos gritos, quase.
- Eu nunca te vi apaixonado , eu não sabia o que você poderia fazer!
- Em nenhum momento eu disse que estava apaixonado por ela, foi você quem criou essa ideia.
Eu não sabia o que responder, Joe sempre foi o meu melhor amigo e nunca brigamos assim, mas ele me escondeu sobre ela. Talvez se tivesse dito logo teria acabado com tudo de uma vez e as coisas não teriam chegado onde estão agora. Que porra! Ter brigado com o Joe pela primeira vez na vida e logo agora não ajudou muito, sem contar que me deixou irritado. Quando fui para o refeitório, minha cara já não era das de quem queria conversa, mas, depois de uma semana sem vir para escola – por causa da mudança da , foi uma confusão cheia de gritos e palavrões – parece que tudo tinha que dar errado em um único dia.
- Nós precisamos conversar! – Eu não precisava, sequer, levantar os olhos para saber quem era. – Estou falando com você Sr. ! – não respondi. – Quer que eu faça um escândalo aqui?
- Não é isso que já está fazendo? – Ela ignorou a minha resposta.
- Que história é essa de você chegar com aquela patética da hoje? Já não bastava os boatos estúpidos de você ter saído com ela da minha festa? – Pela primeira vez eu notei como o jeito patricinha mimada da Ash e aquela fala nojenta que ela tinha me irritava. – Que por acaso eu acho um absurdo, porque – ela soltou uma risadinha. – você nunca – ênfase em “nunca”. – me trocaria por ela.
- Eu saí da festa com ela.
- O que? – Ela gritou, nesse momento tenho certeza que ganhamos a atenção de toda a escola – O que ela te fez? Te drogou? Deve ter te passado alguma doença só de te tocar, eca. Ela é tão estranha, patética, estúpida, idiota... – Enquanto ela tentava lembrar de xingamentos nada inteligentes já que era uma coisa que ela não tinha, inteligência, enrijeci meu maxilar irritado, até não aguentar e por impulso levantar da cadeira ficando de frente para ela.
- Qual é o seu problema, vadia? – Ela fez uma expressão surpresa.
- Do que você me chamou? – E disse num tom mais baixo.
- Sei muito bem que você não é surda. – Respondi do mesmo tom, e ela, ainda indignada, virou as costas. – Ah não! Agora você vai me ouvir. – Mas eu a segurei pelo braço e a puxei de volta, forçando a ficar.
- Me solta! Você está me machucando! – Ela tentou se soltar, mas a segurei mais forte não deixando que saísse.
- Não sei por que ficou tão indignada por eu ter te chamado de vadia, é o que você é e todo mundo sabe. Nunca mais fale da assim, você não tem esse direito porque não chega aos pés dela, e nunca vai chegar, entenda: você se tornou um lixo, um nada, e é isso que você é para mim, um nada. – Eu a olhava nos olhos e ela estava surpresa.
Para mim já estava na hora daquela palhaçada ter um fim, então a soltei e virei às costas andando para a saída.
- Vai lá! – Ela gritou recuperando a atenção que tínhamos perdido. – Vai ficar com aquela estúpida que... – A interrompi.
- Que você está com ciúmes, já que sempre me deu, mas nunca ganhou nada de mim além de pena, ao contrário dela e você sabe disso.
Saí do refeitório e a deixei lá, perplexa por causa de uma verdade tão evidente.
Escorei ao lado da porta do refeitório, pondo o pé na parede e passando a mão na nuca e no cabelo, estressado e irritado, quando ouvi as vaias altas de todo um batalhão de adolescentes contra uma única garota: Ashley Miller.

Parte IX: Depressing


- ? - Aqui. – Levantei do sofá e fui para frente da que tinha acabado de chegar. – Ta... e aí?
- A coisa não anda bem para o meu lado. Agora eu entendo porque meu pai me levava ao psicólogo todo mês...
- E eu posso saber por quê?
- Parece que ele tinha medo de que eu desenvolvesse alguma coisa, talvez por causa da falta da mamãe, e o fato de eu ter parado de ir depois que ele morreu não me ajudou em nada.
- Puta que pariu. Dá para dizer logo ou vai ficar enrolando até amanhã?
- Remédios controlados, acompanhamentos psicológico todo mês e um trabalho para pagar tudo. – Ela suspirou fundo. – Eu tenho sorte por todas as tentativas de me matar durante todos esses anos não tenham dado certo.
- Você, de fato, tem depressão então?
- Tenho.
- Eu não sei bem o que é isso. – Disse desconfortável, mudando o peso de uma perna para outra.
- É uma doença, fato. Normalmente as pessoas são muito acanhadas, não sentem vontade de fazer muita coisa, mas mudam de humor fácil, às vezes estão felizes e do nada ficam tristes.
- Para mim isso é bipolaridade.
- Que também é uma espécie de depressão. É comum perda de interesse nas coisas, um péssimo humor, alterações de apetite e sono, a pessoa se sente fracassada e tem problemas com se concentrar. Pode acontecer também dela não ter vontade de viver, chorar a toa ou ter dificuldades para isso, pessimismo, dificuldade para tomar decisões, inquietação, irritabilidade e impaciência, sentimento de culpa, desesperanças... Enfim, nada de bom. – Ela me olhou. – Ta vendo o problema que você arrumou?
- Que problema?
- Eu, oras.
- Para mim, você não é nenhum problema. – Dei de ombros. – Eu não me importo, você não disse que tem uns remédios aí? – Ela assentiu. – Então! Por que seria um problema? – Ela abaixou a cabeça e sorriu, depois ergueu de novo.
- Eu fiquei sabendo do que disse para a Ash ontem.
- Eu não sabia que as coisas corriam tão rápido assim naquela escola.
- Na verdade, foi a própria Ash que me contou.
- E por que ela faria isso?
- Eu não sei, mas foi muito estranho. – Ela franziu o cenho.
- Por quê? O que ela disse?
- Disse que você faria comigo o que fez com ela, ou se não pior, porque você já disse que a amava e depois a chamou de vadia na frente da escola toda. O que não faz sentindo porque, nós nunca transamos e você nunca disse que me amava.
- Você respondeu isso a ela?
- Não, eu disse apenas “Ta”.
- E ela não comentou mais nada?
- Não, eu virei às costas e fui embora, então mesmo que tivesse algo para dizer, não deu tempo – Ri.
- Acho que esse pouco tempo aqui já está te influenciando demais. – Ela deu de ombros.
- Valeu , eu não sei como te agradecer.
- Você faz as compras e eu não como comida congelada há quase duas semanas, por mim já está ótimo. – Ela riu, depois veio em minha direção e me deu um beijo.
- Boa noite, bad boy.

Parte X: Pressure


O vento batia em nossos rostos, os fios soltos da trança que fez no cabelo voavam. Era evidente que ela estava tensa e não era para menos, eu, no lugar dela, estaria pior então, por mim, ela estava aguentando até que muito bem toda essa pressão e ansiedade.
- Eu não acredito que estou fazendo isso. – Ela disse enfim.
- E eu não acredito que estou aqui, mas estou e, é, você está fazendo isso.
- Não , você está feliz da vida enchendo a cara em casa.
- Até em horas de pressão seu senso de humor continua intacto, sabia? – Ela fechou os olhos e respirou fundo.
- Foi mal.
- Tem certeza que quer fazer isso? Sabe, podemos ir embora daqui agora mesmo, se quiser.
- Não, eu... eu preciso, sinto que só assim posso ficar em paz de uma vez.
- Isso é vingança.
- Prefiro chamar isso de justiça, ela me torturou por quase oito anos! Não suportaria a ideia dela viver feliz com o dinheiro e a casa do meu pai.
- Eu não te tiro a razão, acho que está certa. Não acredito que me envolvi nisso tudo, até agora tento entender como, sei lá, parece coisa de filme.
- Mas não é, . Nos filmes sempre, sempre, há um final feliz e quando não há para os principais, as pessoas dizem que é ruim e que preferem o final feliz clichê de sempre. Isso não é uma brincadeira de Hollywood, é a vida real. – Ela encarava os prédios a nossa frente e tinha certo tom de melancolia na voz.
- Srta. ? Cinco minutos para começar, poderia me acompanhar, por favor? – O segurança chegou por trás de nós, quando o olhou, respirou fundo mais uma vez como se não tivesse mais outra escolha e assentiu, depois me olhou acertando a coluna e desencostando no muro.
Fiz o mesmo.
- Vê se não fica nervosa e desata a falar.
- É pressão e nervosismo demais para isso, é do tipo que me faz ficar calada e não dizer nem o necessário.
- Não faça isso também.
- Vou tentar.
- Srta. ... – O cara apressou.
- Boa sorte. – Disse e ela me deu um beijo, mas nenhuma palavra saiu de sua boca.
Eu fiquei lá, nervoso, ansioso, mas nada animado. Respirei fundo e fui em direção a uma grande porta de madeira maciça e outro segurança a abriu para mim. Pude vê-la sentada lá na frente, apoiada na mesa, mesmo a metros de distância podia sentir a sua tensão.
Antes que eu pudesse me sentar em qualquer banco bem atrás, virou a cabeça olhando para trás, varrendo o local com os olhos até achar os meus e eu tive a sensação que se aliviou um pouco.
Nessa mesma hora o juiz entrou, ela virou a cabeça para frente e eu me sentei. O homem de beca preta se sentou na cadeira mais alta e logo depois bateu um martelo três vezes na mesa a sua frente.
- Vamos iniciar a sessão.

Parte XI: Final Sentence


Eu estava completamente mal acostumado com essa vida, com a na minha casa é tudo cômodo demais, ela faz as compras e eu não como comida congelada desde então.
As coisas não parecem estar tão diferentes mais. Demorou, mas me acostumei com a vivência dela lá, assim como todos que conhecemos se acostumaram com a gente juntos. Aí que está a palavra que deveria ser estranha: “Juntos”. Eu nunca fui de ficar com uma garota por mais de um dia, talvez, uma vez e tempos depois outra, mas direto assim, nunca. Mas se mostrou completamente diferente do que eu imaginava, depois que aquela visão de uma garota problemática e frágil passou, eu a vejo diferente. Ela é tão “tanto faz” para “qualquer coisa”, simplesmente não se importa, é tão diferente de mim, ou não, é tão igual que pode se dizer que é a minha “versão feminina”’ apesar de que quem olha por fora nunca imaginaria que é assim, já que, boa garota é algo que ela não é.
Eu não sei se conseguiria me acostumar a viver sozinho de novo, como eu disse. É cômodo e não só pela parte da comida. Estou acostumado a ficar até a madrugada assistindo televisão com ela, ambos largados no chão da sala, ou fazendo coisas que não são necessárias serem ditas agora. Ela ainda tinha os defeitos que sempre detestei, continuo a achando uma garota marrenta e que fala muito quando está nervosa, mas que quando é pressão demais, não diz nem o que deveria, ela consegue ser irritante quando quer e a ironia é algo que não a larga nunca, mesmo assim, eu não sei se conseguiria ficar sozinho de novo. Porque, ela foi a única que não se mostrou vadia ao ficar comigo, o contrário de todas as outras.
Eu gostava daquilo, daquele tipo de vida, as festas e as saídas continuam, mas agora eu não procuro uma garota. Já tenho a minha e ela não me controla, não pega no meu pé e dirige para casa no final da noite – ou início da manhã.
- Ficou feliz com a sentença?
- Nem consegui me acostumar com a ideia ainda, é estranho demais.
- O que?
- Saber que eu sou “livre”. De cara achei que dois anos e meio de cárcere privado era pouco, mas agora não.
- E o que te fez mudar de ideia? Para mim ela merecia bem mais.
- Não importa o crime que aquelas mulheres cometeram, elas têm a consciência que torturar uma criança é pior do que o crime delas. Minha madrasta vai ser odiada naquele lugar, acho que ela vai sofrer o suficiente e espero que vá para o inferno de lá mesmo. – Silêncio.
Ambos estávamos um pouco atordoados com o que acontecera há umas duas horas atrás, era tanta pressão, ansiedade e nervosismo que ainda não havíamos nos recuperado.
Se eu ainda estava meio atordoado, imagine ela, o alvo principal de tudo, dos olhares, das palavras, dos sentimentos notáveis dentro daquela sala fechada e quase vazia... Era de se esperar que a pintura de um carro verde musgo a nossa frente a interessasse mais do que qualquer outra coisa da paisagem fora do tribunal.
- Quer? – Lhe ofereci um gole da garrafa de cerveja, pelas metades, que eu comprara e estava bebendo.
- Não, os remédios e tal. – Justificou e depois disso, mais silêncio. – Eu nunca vou esquecer as palavras do júri. – Ela sorriu de lado e abaixou a cabeça.
- Quais palavras? – Ela levantou a cabeça e voltou a olhar para o carro estacionado, mas não tão perdida em pensamentos como antes.
- “Crianças são seres puros, que se transformam apenas quando são contaminados pela maldade humana. Um lar seria o lugar onde elas apreenderiam o verdadeiro significado de certo e errado, um lugar que simbolizasse proteção e aconchego, onde toda a maldade do lado de fora fosse esquecida. A réu não teve esse “lar”, sofrera por anos até conseguir uma chance de viver, lhe foi tirada a infância, dando lugar ao trabalho e a surras. Tudo na vida deixa marcas, hematomas, arranhões desaparecem, mas a dor psicológica de alguém que foi amargamente tratada enquanto deveria viver a melhor fase de sua vida, não desaparece assim tão fácil.” e a melhor notícia da minha vida: “Nós, do júri, declaramos Marie Kateryne Hudson, culpada.”.
- Pelos crimes de blá, blá, blá. – Tomei outro gole e ela riu.
- Esses mesmos.
- Eu não sabia que você tinha feito aquelas fotos, e aquele exame lá.
- Corpo de delito?
- É.
- Achei que não fosse necessário contar. Falando nisso, valeu pelo advogado, acho que esse processo demoraria mais uns meses para acontecer se você não tivesse me ajudado.
- Demoraria bem menos se tivesse me contado logo.
- Tanto faz, no final deu certo. – Ela encostou a cabeça na parede.
Nós mal nos olhávamos, a rua parecia bem mais interessante a maior parte do tempo.
- Você vai voltar para a sua casa, agora? – Essa era uma dúvida que me roía por dentro sempre que eu pensava no assunto. Devo admitir que não queria isso, mas não poderia deixar de perguntar, era crucial.
- Não sei. Acho que não estou pronta. Aquela casa me traz oito anos de más lembranças, acho que se eu voltar agora meu tratamento vai todo para a puta que pariu.
- Então você fica na minha casa.
- Se não houver problema... – Ela desencostou a cabeça da parede e olhou para o outro lado, talvez por anseio do que eu poderia falar.
- Não estou perguntando, estou afirmando.
- Sem problemas Sr. Ignorante. É bom saber que me quer por perto. – Mais silêncio e então lembrei da minha cerveja e dei mais um gole.
- Sabe o que vai fazer agora?
- Não.
- A escola está acabando, normalmente as pessoas vão para a faculdade... – Eu tentava discretamente, a todo custo, chegar a resposta que eu queria, ou seja, que esse tempo estranhamente “juntos” não duraria apenas dois meses.
- É o que você pretende fazer? – Ela me olhou.
- Não.
- Então pronto. A última coisa que eu quero é passar mais quatro anos enfiada em uma universidade qualquer fazendo alguma merda por qual eu com certeza não estaria interessada. Agora eu sou livre.
- E daí?
- E daí , que eu posso fazer o que eu quero, quando eu quero, sem ninguém gritando nos meus ouvidos, sem responsabilidades além das que eu, apenas eu, achar necessárias. Não quero mais obrigações e viver de falsas aparências. Eu estou livre. Eu sou livre.
- Então... Pretende começar essa vida de curtição quando? Afinal, estamos jogados na calçada do Tribunal de Justiça como se fossemos mendigos, a diferença é que bem vestidos. Acho que esse não seria um bom começo.
- Tem razão. – Ela se levantou e eu fiz o mesmo, depois de acabar com a cerveja já quase ficando quente. Seus olhos de repente ficaram vagos. – Se parar para pensar é tudo tão estranho. Minha vida virou ao avesso tão rápido que não sei dizer quando foi, e quando eu estava tentando por tudo no lugar, outra coisa vinha e derrubada tudo de novo, como...
- Como um furacão. E ele sempre voltava como se estivesse tudo errado, até que de repente ele desaparece e enfim, te dá à sensação que tudo está sendo reconstruído do jeito certo. – Ela me olhou.
- Como você sabe?
- Vamos dizer que as coisas não andavam muito “claras” para o meu lado também. – Seus olhos confusos encaravam os meus, até que relaxou a testa como se estivesse esquecido do assunto.
- Para onde vamos? Seja lá qual for o destino, eu dirijo.



FIM





comments powered by Disqus


Qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Para saber quando essa fic vai atualizar, acompanhe aqui.



TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO SITE FANFIC OBSESSION.