Fic by: Sarah B. | Beta: Flávia C.


- Você viu meu celular? - perguntei, levantando todas as almofadas do sofá.
Minha irmã continuava tagarelando sobre algo. Eu não estava prestando muita atenção, eu só queria achar meu celular.
- E então eles tiraram a minha pinta! Você acredita nisso? Eles simplesmente apagaram minha pinta e imprimiram com a minha pele completamente livre de marcas!
- Você viu meu celular? - perguntei de novo.
- Eu fui no outro dia na agência e reclamei. Minha pinta de nascença!
- Liz, você é modelo. Você vende sua imagem, eles tem o direito de tirarem uma pinta se eles quiserem, não é como se tivessem tirado seu umbigo no Photoshop. Mas você não viu mesmo meu celular? - falei enquanto olhava debaixo da cama.
Essa personalidade bagunceira é de família, eu também não sou nada organizada, mas minha irmã se superou. Era como se um furacão tivesse passado pelo seu guarda roupa e ela nunca tivesse reparado.
- Você tentou ligar para ele? - ela perguntou.
- Sim, óbvio, mas ele está no modo silencioso.
- Esquece seu celular, estamos atrasadas.
- Você sabe que eu preciso do meu celular.
- Esquece um pouco seu trabalho! Relaxa um pouco.
- Achei! - exclamei com ele na mão.
O maldito tinha caído entre o colchão inflável e a quina da parede.
- Ótimo, porque eu estou atrasada.
- Mas eu não arrumei meu cabelo nem me maquiei ainda!
- , estamos indo para uma fashion week. Cabeleireiros e maquiadores são o que não faltam.
Eu concordei, mas não me agradava muito a ideia de chegar a uma fashion week toda desgrenhada. Podia não ser a New York Fashion Week ou, sei lá, Paris Fashion Week, mas era uma fashion week. São Paulo Fashion Week para ser mais exata. Podia não ter a mesma cobertura de mídia que uma em um grande centro no exterior teria, podia não ter um número muito grande de top models famosíssimas internacionalmente, podia ser visada mais no Brasil mesmo por ter apenas uma parcela pequena da população que realmente acompanha o mundo da moda, mas era uma fashion week. Ou seja: todo mundo espera que todo mundo vá na moda e todo mundo tem os olhos atentos a qualquer deslize fashion. Línguas coçam por um pouco de veneno sobre a base mais clara que a cor de pele do outro. Sobre o lápis de olho borrado. A camisa soltando fio. O cabelo ressecado.
Minha irmã? Ugh. Tenho até raiva. Ela é bonita quando acorda. E pra mim quem é bonito quanto acorda, é porque é realmente bonito. Ela fica bonita chorando. Suada depois da academia. Ela ficou bonita até depois de tirar o siso. Mas eu não sou invejosa. Longe disso. Eu amo minha irmã. Eu a vi crescer. Eu fazia tranças no seu cabelo. E eu fui quem a transformei numa modelo. Só que às vezes é tedioso ser a irmã mais feia. A genética pregou uma bela pegadinha comigo. Mesma mãe, mesmo pai. Mesmo modo de reprodução. Primeiro vem eu. Depois, pra surpresa de todos, vem minha irmã. Como se meus pais tivessem jogado numa máquina caça níquel. Na minha vez, um dos símbolos não combinou com o resto e não teve prêmio. Meus pais puxaram a alavanca de novo. 3 símbolos iguais. Um saco cheio de moedas brilhantes.

Mas, aproveitando que a vida não é um cassino, lá estava eu, chegando no backstage de uma das passarelas mais famosas do Brasil com uma modelo que esteve estampada nas capas de revista mês passado. Talvez eu não devesse reclamar. Eu não era feia, mas perto dela eu era horrível. Mais baixinha, apesar de ser mais velha. Bem mais gordinha, não que eu seja gorda. Minha irmã que era um palito. Eu tinha olheiras. Tinha pontas duplas. Tinha cravos no nariz, ainda que não muitos. Minha roupa não era de algum estilista. Meu sapato eu havia comprado na promoção. Minha irmã vivia em outro mundo, que, apesar de ser do lado do meu, era completamente diferente.

- Liz, vai se arrumar, agora. O desfile começa em 10 minutos e eu não quero nenhuma desculpa esfarrapada pro seu atraso! - foi a primeira coisa que ouvimos quando chegamos
Minha irmã não se importou, apenas se dirigiu à uma das cadeiras e fechou os olhos, deixando maquiadores e cabelereiros a arrumarem.
- E quem é você? - o baixinho careca se dirigiu a mim agora.
- Eu sou irmã da Liz.
Ele me encarou como se não acreditasse. É, meu filho, eu sei. Não dá pra acreditar que eu saí do mesmo útero que a miss universo ali.
- Só não atrapalhe - foi tudo o que ele disse antes de começar a gritar com outra modelo.
Ah, o mundo da moda. Sempre tão agradável e gentil!
Sentei-me em uma das cadeiras do lado de minha irmã. As luzes no espelho na minha frente doíam meus olhos. Eu olhava para o meu celular, esperando, esperando...
- , desliga esse celular - minha irmã falou, de olhos fechados deixando o maquiador passar uma grande quantidade de sombra em sua pálpebra
Eu bufei. Eu realmente estava fazendo papel de palhaça.
- Esperando mensagem do bofe? - o maquiador perguntou.
- Ainda se fosse, Gerard! Deve estar esperando email de trabalho!
- Menina, hoje é sábado! Vai curtir! Tem um coquetel maravilhoso lá na entrada! E o melhor: de graça!
Eu continuava olhando pro celular. Pra tela rachada em 5 pedaços.
- Esquece, ela não vai. Eu conheço minha irmã - Liz falou com uma voz nasal, esticando a boca para que o maquiador passasse um batom cor de pêssego em seus lábios
Eu não falei uma palavra. Discutir com minha irmã era perder tempo.
- Perfeita! - ele disse, virando a cadeira e deixando com que minha irmã olhasse seu reflexo.
O cabelo todo puxado para trás. A sombra clara. O batom cor de pêssego. As várias camadas de rímel. A luz do espelho deixando tudo mais natural.
- Obrigada, Gerard! - minha irmã falou com a graça de uma integrante da família real - Você não teria um tempinho para dar um jeito na careta aqui do lado? Arrastei ela de casa e nem deu tempo dela se arrumar.
- Mas é claro, meu bem. Agora vá colocar a roupa, era para você estar pronta já.
Liz se levantou e eu não quis ver para onde ela tinha ido.
- Então vamos lá - ele falou e eu fechei os olhos, deixando com que ele fizesse qualquer coisa com meu rosto.
O celular preso à minha mão, eu esperando com que ele vibrasse. Isso só mostrava o quão patética eu era.

Abra os olhos. Abra a boca. Estica os lábios. Boca de peixinho. Olha pra cima. Fica reta na cadeira. Fecha os olhos.
Eu não servia para ser modelo. Eu não servia para aceitar ordens. Geralmente era eu quem as dava.
Eu não serviria para vestir as roupas que me mandavam. As marcas que me obrigavam. Os sapatos desconfortáveis assinados por um velho italiano. Eu gostava de decidir o que eu queria, eu gostava de decidir tudo. Um pouco controladora? Talvez. Mas acho que é pré-requisito para ser diretora de arte. O que eu era quando não estava dormindo.
- Pronto!
E então eu abri meus olhos e não me encontrei no espelho.
- Uau - foi tudo o que eu disse.
Eu não sabia que eu podia ser assim. Eu estranhava mais e mais a mulherona no espelho.
- Incrível o que uma base e uma sombra usadas corretamente fazem, né? Mas seus lábios também ajudaram e muito. Você deveria começar a usar batom escuro com mais frequência.
Eu estava diferente. Muito diferente. Talvez a luz no espelho ajudasse. Meu cabelo estava mais definido e brilhoso. Meus lábios maiores. Meus olhos seriam a definição de "olhos de ressaca" de Capitu. Uma foto do meu rosto poderia ser colocada no livro, porque eu sempre quis saber o que eram olhos de ressaca. Sempre me vêem à cabeça os olhos inchados de dormir até às 4 da tarde depois de uma festa open bar. Mas agora eu estava diante dos olhos de ressaca de Capitu e eles não tinham nenhuma olheira debaixo de si. Olhos de deixar qualquer Bentinho maluco. Agora eu entendi o livro, não precisam mais fazer contato sobrenatural com Machado de Assis para desvendar o mistério, se é que alguém esteja tentando.
Atrevi a comparar-me a minha irmã. Acreditem ou não, eu estava parecida demais com ela. Talvez não tão magra, não tão estilosa, talvez uma versão plus size da mesma (ou quem sabe uma versão com carne e não só pele e osso). Uma versão normal. Um versão não capa da Vogue.
O celular vibrou. O celular na minha mão finalmente tinha vibrado. Eu olhei para sua tela rachada. "Ok." Essa foi a resposta dele. Eu escrevi um texto de pelo menos umas 10 linhas e, 10 linhas para uma mensagem de texto é praticamente uma Bíblia. E tudo o que ele respondeu foi "ok". Ele por acaso sabia que "ok" significa "0 killed”, zero mortos? Porque parecia que não. Talvez devesse escrever "1k". 1 pessoa morta. Eu. Morta para ele.
- Eu estava certo, né? Você estava mesmo esperando mensagem do bofe!
Eu segurei o celular com mais força, quase quebrando a tela agora em 6 pedaços. Olhei ao redor. Eu não tinha reparado na quantidade de homens modelos trocando de roupa para entrar na passarela ao meu redor. Eu sabia que a maioria deles era gay.
- Você que tem sorte. Um monte de homem gay aqui e aposto que eles não brincam com seu coração que nem héteros fazem com o nosso. Talvez mulher tenha cara de coitada mesmo.
Ele riu.
- Eu não sou gay.

Horas atrás, nesse mesmo dia, eu estava com o celular na orelha, ouvindo tudo o que Henry tinha a dizer. A tela ainda não estava rachada.
Ele falava, mas tudo o que eu ouvia eram desculpas esfarrapadas. Tudo o que eu ouço dele há pelo menos um mês não passam de desculpas esfarrapadas. E olha que eu não sou do tipo de namorada ciumenta, pelo menos eu aprendi a não ser. Namorar cara em bandas faz isso com você: te faz criar uma confiança de outro mundo na pessoa. A cada dia em um lugar novo, com festas e bebida para todo lado, groupies e fãs apaixonadas por toda parte. O que me restava era confiar.
Nós conhecemos quando dirigi um clipe para a sua banda. Confesso que nunca gostei muito da música da banda dele. O vocalista me odiava porque eu sempre falei que a banda era boa, o que estragava era sua voz. Eu sempre disse isso em tom de brincadeira, mas eu falava sério. A voz e as letras sem sentido me irritavam. Devo ter ouvido o último álbum apenas uma vez, mas não contem isso para ninguém. Eu postei no twitter que não conseguia parar de ouvir as músicas. Que eu estava orgulhosa dele. Na verdade, eu preferia que ele saísse da banda e fizesse outra coisa.
Olhando agora, nossa relação não passava de interesse no começo. Eu aprendi a gostar dele, é claro. Mas eu gostava de quando ele falava que escreveu uma música pensando em mim, apesar da música não ter nenhuma rima inteligente. Ele escreveu meu nome em sua guitarra. Eu recebia ameaças de morte e ao mesmo tempo pedidos desesperados para que nós casássemos. Criaram até um fã-clube para mim, que no princípio pensei que fosse pelo meu trabalho como diretora de arte, mas era só porque eu namorava o guitarrista mais badalado do momento. É uma vida divertida, não posso negar. Ir a programas de TV, acompanhar photoshoots, viajar para o outro lado do mundo e ficar em um hotel de graça. Eu não tenho muito o que reclamar. Eu ganhava atenção, minha vida não era nada tediosa e eu tinha alguém para chamar de meu. Eu amava ser amada, mesmo que de mentirinha, porque ele não me amava, apesar de sempre dizer que sim. Eu também não o amava. Mas isso não significa que ele possa me trair. Confiança não tem muita coisa a ver com amor nesse caso. Tínhamos um compromisso e colocar chifres um na cabeça do outro estava fora do contrato.

Eu tinha certeza que ele estava me traindo. E agora eu só consigo pensar no tanto de garotinhas que ele deve ter comido enquanto eu não estava por perto. E eu preferia não saber, tem coisas que doem menos quando a gente tem o benefício da dúvida.
Porém, hoje ele deu sua última desculpa. Ele não estava em turnê, ele não estava compondo nada, ele não estava no ensaio, ele não tinha nada pra fazer, mas mesmo assim inventou desculpas para não me acompanhar na fashion week. E isso para mim é o mesmo que falar que não quer mais me ver. Ele nunca mais queria me ver, mas não falava isso na cara. Eu estava fazendo papel de boba.
Escrevi uma mensagem enorme falando que não estava mais funcionando pra mim, que eu queria terminar. Deixei tudo claro para ele em 10 linhas de mensagem de texto. Ele simplesmente não me responde mais. Se naquela hora eu soubesse que ele iria me responder apenas "ok"...
Todas as vantagens de ser namorada dele não compensavam ter grandes chifres na cabeça e a palavra "idiota" tatuada na testa. Namorar caras em banda é a pior coisa que você pode fazer, salve exceções. Músicos, atores, escritores, todos tem um charme especial, mas fuja antes que seja tarde! Eu deveria ter namorado um engenheiro. Um médico. Um advogado. Não pelo dinheiro, mas eles são mais exatos, mais seguros. Nenhum vai chegar suado fedendo a maconha e vodka com uma guitarra quebrada na mão no seu apartamento depois de um show. Tudo seria menos complicado. Tedioso, mas menos complicado.
Eu joguei o celular na parede, com raiva do papel de idiota que eu estava fazendo. E foi assim que o celular ficou com a tela rachada. E foi assim que o celular entrou entre o vão do colchão. E, agora, foi assim que eu me vi solteira de novo.

Eu ri. Pensei que ele estava brincando.
- É sério, eu não sou gay.
A voz havia mudado. Sua postura também. Ele se encostou na penteadeira, de frente à minha cadeira. Fiquei esperando alguma risada. Ele só podia estar brincando.
- Você? Hétero?
Ele assentiu com a cabeça.
- Maquiador? Com a calça mais apertada que a minha? Falando desse jeito usando duas vezes a palavra "bofe"?
- Exatamente por isso. Acredite, é muito mais fácil se fingir de gay aqui do que fazer as pessoas acreditarem na verdade.
- Isso não deveria ser o contrário?
- Uma coisa é se esconder no armário porque o quarto do lado de fora está cheio de héteros. Aqui, nesse mundo, todo mundo está no armário e eu estou praticamente sozinho no quarto.
Eu arqueei uma das minhas sobrancelhas, que agora estava perfeitamente desenhada.
Sabe quando você até acha a pessoa bonita, mas, no segundo seguinte, percebe que ela não joga pro seu time e automaticamente começa a considerá-la mais uma do time adversário? Mas agora tudo tinha mudado. Ele devia ser muito bom ator porque o homem na minha frente, encostado na penteadeira e de braços cruzados esperando que eu acreditasse em sua palavra nada tinha a ver com o que estava maquiando minha irmã minutos atrás. A não ser pela calça apertada cuja virilha eu tentava ignorar.
- Fingir ser algo que você não é não é meio cansativo? - perguntei
- Não é isso o que meio mundo faz? Não é isso o que todo mundo nessa sala está fazendo?
Olhei a redor. Vi que ele tinha razão. Todo mundo ostentava ser algo muito além do que eles eram. Suas roupas de marca emprestadas. Seus colares de diamante. Homens e mulheres trocando de roupa depressa para serem nada mais que preenchimento de roupa na passarela.
- E ninguém aqui sabe? Sei lá, você nunca ficou com nenhum cara aqui só pras pessoas acreditarem?
- Já me agarraram, serve? Mas, sei lá, só me ajudou a provar pra mim mesmo que eu não gosto de homem. E, acredite ou não, o preconceito que tanto falam lá fora é o mesmo aqui dentro, só que o contrário. Até com as meninas, é difícil achar uma aqui que não tenha pego uma outra modelo. Não porque elas sejam lésbicas, mas é o normal. Muitas vezes elas fazem pra conseguir a atenção de outros homens.
- Isso é meio deprimente, não é? Sei lá, ninguém é realmente o que parece ser.
- Ninguém tem uma identidade aqui. Ninguém sabe quem realmente é aqui. E isso sim é algo deprimente, mas a maioria nem percebe.
- Por outro lado, você deve até gostar de ter um monte de mulher bonita trocando de roupa na sua frente aqui, né? - eu brinquei.
- Acho que eu já tô acostumado... - ele se desencostou da penteadeira - Nada muito novo pra ver. Nada que realmente me interesse. A maioria é muito superficial, muito preocupada com a imagem, sendo que a imagem delas pra mim não é nada atraente.
Ele agora estava atrás de mim, olhando para o espelho, analisando minha imagem.
- Mas acho melhor você dar uma volta por aí. Você está deslumbrante e não merece desperdiçar esse tempo aqui falando sobre minha vida.
O elogio soou diferente agora. E eu sabia a razão. Ser elogiada assim por um gay é como ser elogiada por sua melhor amiga. Mas por um hétero...
Eu me levantei, ajeitando um pouco a blusa larga que eu estava vestindo, deixando meu ombro de fora, e subi minha calça, ficando de pé em cima do meu salto gigante e desconfortável.
- Arrasa! - ele falou, com o jeito de antes, a postura de antes, como o maquiador de antes
Eu simplesmente fiquei confusa, mas ri.

Flashes. Imprensa. Gente bem vestida. Gente fashion demais. Gente com roupa que eu nunca usaria. Gente com uniforme e crachá. Gente de avental servindo gente fashion. Eu, perdida lá no meio, procurando um rosto conhecido. Procurando um nariz que não estivesse empinado. Acabei conversando com alguns fotógrafos que eu conhecia de alguns outros projetos. Conversei até com o barman. Passei por todos os stands das marcas e peguei amostras grátis de quase tudo e coloquei na bolsa. Eu estava bem entediada.
Minha irmã participaria de um outro desfile e eu estava esperando a hora passar, pensando nos momentos anteriores. Eu não conseguia parar de analisar todo mundo que cruzava meu caminho. Praticamente ninguém era o que aparentava ser. Um sorriso para a câmera. Um rosto fechado assim que estava livre das lentes.
O desfile da minha irmã foi o que sempre era. Ela desfilando com outras várias meninas e meninos de no máximo 25 anos, todos vestindo roupas caras que eu provavelmente não compraria. Uma música eletrônica ao fundo. Passos, uma paradinha e uma mão na cintura, uma virada, passos. Celebridades locais sentadas na primeira fileira fingindo o máximo interesse. Eu não tinha saco pra isso. Apesar de ser diretora de arte, eu achava tudo quadrado demais ali. Algumas coisas fugiam do convencional e estas me agradavam mais, mas era tudo praticamente a mesma coisa. Passos, voltinha, passos, aplausos, fim.
- Aceita? - o garçom chegou ao meu lado com uma bandeja
Eu analisei a comida.
- Não, obrigada.
Eu estava com fome e o champagne e o vinho estavam misturados dançando no meu estômago vazio. Festas não deveriam ser divertidas? Ou pelo menos terem comidas boas e não esses canapés minúsculos com gosto de grama com gergelim?
Tentei falar com minha irmã, ela até me apresentou para algumas pessoas que fingiram interesse na hora, mas só na hora. O que importava era Liz e não a irmã baixinha dela.
Decidir me levantar e andar um pouco. Talvez até avisar Liz que eu ia pegar um taxi pra casa sozinha. Eu não estava me sentindo muito bem bêbeda, entediada e solteira novamente. Eu não sei se ainda sabia ser solteira. Se ainda sabia o que fazer numa festa.
Uma outra bandeja passou por mim, mas não tinham taças nem canapés em cima dela. Tinham comprimidos brancos em cima dela.
Eu tenho o direito de estar um pouco assustada? Fala sério, minha irmã menor está inserida nesse mundo, eu tenho a obrigação de estar assustada. Enquanto tentava procurar Liz, avistei o maquiador-gay-que-não-era-gay discutindo com outro cara. Tentei não reparar muito na discussão por educação, mas o outro homem agarrava seu pulso e ele se largava, irritado. Decidi intervir.
- Ei, posso falar com você um minuto? - eu disse e o outro homem simplesmente me olhou de cima a baixo
- Claro - o maquiador disse
Ele me acompanhou, irritado, estressado.
- O que você quer falar comigo? - me perguntou
- Na verdade, nada. Foi só para te tirar daquele barraco.
- Obrigado - ele ajeitou a gola, bufando
Eu não falei mais nada. Eu já me intrometi uma vez, não quis me intrometer de novo.
- Desculpa, eu estou bem irritado. Obrigado mesmo, você me livrou. E desculpa se eu fui grosso, eu estou cansado e morrendo de fome.
- Minha barriga está roncando de fome também... Entendo que é uma after-party de modelos, mas isso é praticamente comida de passarinho. E das piores.
- Eu conheço uma barraquinha de hot dog que fica aberta até umas 2 da manhã virando a esquina. Quer tentar? Ainda temos 25 minutos.
- Por que você não disse antes? Vamos agora.
Nós abandonamos a festa e saímos pelos fundos. Ele estava calado. Tirou a camisa de dentro da calça e passou a mão pelo cabelo, bagunçando o topete, tentando tirar o efeito do gel. Eu podia sentir que ele ainda estava irritado.
Avistei a barraquinha e ela ainda estava aberta. O cheiro fez minha barriga roncar mais forte. Pedi um cachorro-quente completo, com tudo o que tinha direito. Purê, carne moída, duas salsichas, milho, ervilha, batata palha... Ele pediu o mesmo. Decidimos dividir uma coca-cola e nós sentamos no degrau de uma loja, debaixo da marquise, com as costas na porta de alumínio fechada com um cadeado. Era São Paulo, quase duas horas da manhã e no meio da rua. Mas, mesmo assim, o cheiro do cachorro quente e a TV ligada na barraquinha me fizeram sentir confortável, um pouco mais segura.
- Acho que ainda não te agradeci o suficiente por ter me tirado daquela merda de festa. Muito obrigado mesmo, mais um segundo lá dentro e eu ficaria maluco - ele comentou depois do silencio e aparentando estar mais calmo
- Relaxa, não foi nada. Eu estava morrendo de tédio. Mas, se não for me intrometer muito, o que aquele cara queria com você?
- Sei lá, ele é apaixonado por mim ou algo do tipo. Talvez obcecado seja a palavra certa.
- E ele estava tentando te agarrar? - eu perguntei, dando uma mordida
- Tem cara que não entende que não é porque eu, na cabeça dele, sou gay, tenho a obrigação de ficar com ele só porque ele também é gay. Não funciona assim. Nem se eu fosse realmente gay eu pegaria ele. Nem se ele fosse a miss universo. Ninguém merece uma personalidade daquelas.
Eu não me aguentei e ri de seu comentário. Era uma situação tão inusitada que me fazia questionar tudo o que eu já vi no mundo.
Ele deu mais uma mordida no cachorro quente e começou a rir também, provavelmente pela mesma razão que eu.
- Mas deixe meus problemas para lá. E aí, o que você achou do primeiro dia da fashion week?
- Vou ser sincera - falei com a boca cheia - Achei um porre.
Ele riu.
- Eu também acho – comentou.
- Sem querer te desanimar, hoje é apenas o primeiro dia - eu disse.
Meu celular apitou. Eu o retirei do bolso, torcendo para que não fosse uma mensagem do mesmo cara que me mandou um "ok". Não era. Era algo pior.
Acontece que eu iria gravar um clipe semana que vem e eu tinha encontrado o local ideal. Uma galeria de arte contemporânea. O problema é que agora a galeria deu para trás, alegando que não queria que as obras fossem danificadas... Como se a gente não fosse tomar todo o cuidado possível.
Agora eu tinha uma banda e uma atriz esperando para gravar um clipe, uma equipe toda de direção e edição e nenhum lugar. Precisava ser um lugar bem iluminado e bem colorido para minha ideia dar certo. Talvez a gente pudesse encontrar uma pista de skate cheia de graffiti, porque outra galeria ia ser praticamente impossível, vendo que essa que deu pra trás nos deu um grande trabalho para conseguir.
- Você parece preocupada - ele comentou e eu desviei o olho da tela rachada do celular.
- É que meu dia hoje está sendo uma completa merda – bufei.
- O cachorro-quente também?
- O cachorro-quente foi a única coisa boa dela, obrigada - eu sorri, mas eu estava preocupada demais para manter o sorriso - São problemas na vida profissional e pessoal.
- Você não é a única.
- Mas então me diga, Gerard. Você realmente gosta de maquiagem tanto assim?
- Ok, primeiro - ele disse dando a última mordida no cachorro quente - Sei que você deve ter visto sua irmã me chamar de Gerard, mas esse não é meu nome.
- Não é seu nome?
- É meu nome artístico. Sei lá, achei que ia ficar melhor pra um maquiador... Um nome francês, sabe? Meu nome de verdade é .
Eu não aguentei, eu gargalhei. Não por mal, mas ele entendeu.
- Quantas identidades você tem? Por acaso você é um agente secreto?
A barraquinha de cachorro quente apagou as luzes e decidimos levantar e andar de volta ao lugar da fashion week.
- Só duas - ele respondeu minha pergunta - Mas caso eu fosse um agente secreto, você nunca iria saber. Se eu te contasse, eu teria que te matar - ele piscou.
- Mas, então, )... Se não for me meter muito, como você acabou criando esse dupla identidade?
Eu estava sim curiosa.
- Eu sempre quis ser pintor.
- Ok... Continue... - eu disse depois que ele se calou.
- E eu tentei ser por um tempo. Mas é em difícil conseguir um nome aqui no Brasil. E você simplesmente não consegue sobreviver de pintura sem um nome. É uma elite muito restrita essa tal de arte nesse país... Então eu pensei: maquiagem é praticamente a mesma coisa, mas a tela é um rosto. Eu estudei muito sobre todas as sombras e cores e iluminação do rosto e testei a maioria dos materiais. Eu fui aos poucos crescendo no ramo, ganhando contatos. Mas, lá dentro, eu não queria ser reconhecido pela maquiagem e sim pelas minhas telas, então eu decidi criar uma nova identidade, um novo nome, algo que se encaixasse mais. Acabou dando certo. Começou com algo pequeno, mas agora faz parte da minha vida e eu não consigo mais me livrar... Eu só tento não ser engolido por isso, me perder.
- É difícil voltar a ser uma pessoa só de novo, não é?
- Eu só estou esperando por uma oportunidade. Espero que não seja tarde demais.
E, em silencio, chegamos de novo ao lugar da after party. Ele colocou a camisa para dentro da calça de novo e eu fingi não reparar.
- Foi bom te conhecer - ele falou.
- Foi o ponto alto da minha noite - eu sorri, um pouco sem graça.
Ele estava encarando demais os meus lábios e eu fiquei desconfortável.
- Meu dente está sujo? - acabei perguntando.
- Não - ele chacoalhou a cabeça - É que esse batom fica realmente bom em você!
- Obrigada, Gerard! - eu falei brincando e ele entendeu - Agora eu tenho que achar minha irmã.
- Te vejo amanhã?
Eu assenti e andei pela festa, procurando Liz. Mas, antes, parei em algum espelho para ver se meu dente não estava realmente sujo.

Encontrei minha irmã apagada em um sofá. Carreguei Liz sozinha para dentro do táxi e depois a carreguei para dentro de seu apartamento, deitando-a na cama. Tirei seu salto alto e a cobri. Eu odiava bancar a mãe, e tenho evitado isso desde que nossa mãe morreu. Porém Liz estava me preocupando. Foi por isso que concordei em ir com ela nessa fashion week e é por isso que planejei ficar em seu apartamento essa semana. Eu não sabia se ela estava apagada por causa de bebida ou por causa da pílula branca que eu vi sobre a bandeja. Ou quem sabe droga pior. Eu achava que ela tinha idade suficiente para se cuidar e nunca fui de dar sermão, mas eu estava chegando no meu limite.
Eram 4 da manhã e eu estava com insônia e uma dor de cabeça insuportável. Nada nesse dia estava me ajudando a ter uma noite tranquila. Decidi então ir até a sala, ligar a TV, tentar achar algo entediante pra me fazer cair no sono. Porém, qualquer som parecia uma martelada no meu cérebro.
Fui até o banheiro e tentei achar onde Liz guardava os remédios. Procurei entre as milhares de maquiagens e produtos para pele e não achei. Na gaveta de esmaltes, avistei uma necessarie e pensei que os remédios talvez estivessem lá.
Engano meu. Tudo o que eu achei foram doces. Chocolates de todos os tipos. Para não mentir, achei sim remédio. Um laxante e um para inflamação de garganta. Eu sabia o que aquilo significava.
A irmã mais velha dentro de mim se desesperou. Procurei pela casa e achei mais chocolates escondidos. Dentro de vasos, em uma caixa de sapato no armário e alguns em meio à roupa suja. Na geladeira, não havia nada com mais de 100 calorias, mas havia tudo o que uma modelo era proibida de comer diariamente pelo resto da casa.
Eu juntei todas as balas, as jujubas, as barras de chocolate, os bombons, os biscoitos recheados, os doces de leite em cubinho. Simplesmente juntei tudo e os coloquei em cima da mesa junto com os remédios. Eu mal pude acreditar na quantidade. Eu teria que fazer algo a respeito.

Não consegui dormir, apesar de ter tentado. Eram quase duas da tarde quando Liz chegou na cozinha com cara de sono e com o cabelo bagunçado. Eu estava almoçando, com o prato em cima da mesa lotada de chocolates. Ela ficou parada, olhando para a mesa, sem saber o que dizer.
- Bom dia! - eu disse e ela continuou estática - Quer tomar café da manhã primeiro ou prefere me explicar de uma vez porque tem chocolate escondido em cada canto da sua casa?
Ela começou a chorar. Eu me levantei e a acudi.
- Liz… Eu não vou brigar com você. Acho que você tem idade o suficiente para fazer o que quiser. Mas eu estou preocupada. E eu estou aqui para ajudar.
- Eu não consigo, ! Eu não consigo... - ela falou, chorando
- Então desiste dessa vida! Isso claramente não está te fazendo bem. Ou você desiste de ter essa pressão por um corpo magérrimo ou você vai ter que aprender a se controlar de um jeito saudável. Eu não acho que você tenha que abolir doces da sua vida, mas isso não é saudável para ninguém. E não pense que eu reparei nos remédios. Eu sei muito bem que você está comendo e colocando tudo pra fora com medo de fazer alguma diferença.
- A mamãe sempre comia tudo o que queria e era magra - ela se sentou à mesa, encarando os chocolates com os olhos molhados
- Liz… Mamãe era atleta. Ela corria maratonas. Ela comia tudo o que queria porque queimava tudo no momento seguinte. Mas, mesmo atleta, duvido que ela comia essa quantidade de chocolate assim.
- É, ela era saudável até demais e olha o que aconteceu! Morreu em um acidente de carro. De nada adianta.
Eu a encarei. Desde quando ela havia se tornado tão pessimista?
- Você também vai morrer se continuar com isso. Mas não vai ser um caminhão desgovernado que vai te matar, vai ser você mesma.
Eu fui até a área de serviço e busquei um saco de lixo. Joguei tudo o que estava em cima da mesa no saco e Liz chorou, se desesperou, gritando comigo. Eu fiquei assustada. Eu não havia percebido as olheiras fundas dela, o rosto magro demais, puxado, as mãos com ossos aparentes. Ela gritava para que eu não jogasse nada fora. Gritava que eu não tinha nada a ver com aquilo. Gritava que eu não era a mamãe. Eu não aguentei mais, abaixei a cabeça e chorei de tristeza. Um choro que veio acumulado de vários anos.
Ela parou de gritar e eu a olhei.
- Olha, faça o que você quiser. Eu não vou te obrigar a entrar em uma reabilitação, ou procurar um médico. Eu não vou te obrigar. Você já é adulta, já ganha seu próprio dinheiro. Eu só vou te ajudar se você quiser e para isso você vai ter que me procurar primeiro. Eu não sou a mamãe, eu não estou morta, mas cansei de ser sua babá.
Joguei o saco de lixo no chão e saí da sala, deixando-a chorar. Meu coração tinha se quebrado ao ser tão seca, mas eu achei que era preciso. Peguei minhas coisas e decidi voltar para meu apartamento, eu não tinha mais clima para ficar ali. E eu tinha coisas para resolver, como por exemplo achar outro lugar para a gravação do clipe semana que vem.

Apesar de tudo, decidi ir na fashion week, só que um pouco mais tarde. Não foi muito difícil entrar, já que eu conhecia algumas pessoas e já que eu era irmã de uma modelo famosa. Eu estava querendo mais era proteger Liz, apesar de tudo o que eu disse para ela. Eu tinha o coração de mãe - e também sentia a obrigação de cuidar dela exatamente por ter sido praticamente sua mãe esses anos todos. Os desfiles estavam terminando e tudo estava começando a ficar mais vazio. Enquanto foi fácil até demais entrar no evento, não foi muito fácil entrar na after-party. Fiquei argumentando com o segurança e a hostess fez questão de me ignorar, cheguei até a mostrar minha identidade e uma foto no celular, mas nada adiantou. Quando eu estava prestes a desistir, (ou quem sabe Gerard?) apareceu pela porta e me avistou, falando com os seguranças que estava tranquilo, que eu estava com ele e era realmente irmã de Liz.
- Você não veio com a sua irmã hoje, pensei que nem viria... - ele comentou.
- Eu tenho que vir para checar Liz. Eu deveria deixar para lá, mas não consigo... Mas com quem eu estou conversando agora? Gerard ou ? – brinquei.
- , mas shhhh - ele colocou o dedo na boca - pros outros só existe o Gerard. E vejo que você aceitou minha dica sobre o batom.
Eu sorri, um pouco sem graça, esticando meus lábios vinho escuros.
Avistei Liz do outro lado do cômodo, deitada de pernas cruzadas, com um copo de champagne na mão e comendo um daqueles canapés horrorosos que ela sabia que iria vomitar mais tarde. Um homem moreno, meio careca, estava com as mãos debaixo de sua cintura e falando algo em seu ouvido. Ela ria, mas eu sabia que era falsidade. Era o tipo de homem que dava nojo a Liz.
Seus olhos se encontraram com o meu enquanto eu fui pegar uma taça de champagne. Ela sorriu sem graça, nada além disso.
- A comida está horrorosa de novo! - me fez tirar os olhos de Liz.
- Quanto mais rico, menos bom gosto pra comida, viu? - eu comentei.
- Cachorro quente de novo ou...?
- Na verdade, quando a gente estava sentado ontem lá fora eu vi uma lanchonete de hambúrguer caseiro. Quer ver se está aberta?
- Qualquer coisa que não cheire a ova de peixe, por favor! - ele riu.
Saímos andando pela rua de novo e eu percebi que ele não teve que tirar a camisa de dentro da calça: ela já estava do lado de fora desde que o encontrei.
- E o cara de ontem? Continua te perseguindo? - puxei assunto.
- Quem?
- O cara de ontem, que eu vi agarrando seu pulso.
- Ah, sim. Não sei. Eu não o vi mais, ainda bem.
Mais silêncio.
- Mas você fala pras outras pessoas que você é gay? - perguntei enquanto entrávamos na lanchonete.
- Nunca falei. Mas todo o jeito que eu finjo denuncia. Acho que ninguém desconfia do contrário. As pessoas simplesmente assumem que eu sou e eu não preciso tomar nenhuma posição.
- Já escolheram? - cara do outro lado do balcão usando uma touca higiênica perguntou.
- Quero um X-Tudo - eu fui a primeira a me pronunciar - Sem salada.
- Quero o mesmo - disse.
Enquanto esperávamos o sanduíche ser montado, soltou o seguinte:
- Eu gosto de como você não tem essas fressuras que a maioria das garotas lá dentro tem - ele se referiu à fashion week.
- Como assim?
- Você sabe que não tem sentido pedir salada num X-Tudo.
E isso me fez rir. E essa frase me fez sentir bem comigo mesma. Eu amava comida, mas às vezes minha imagem no espelho apontava para mim e ria. Eu me forçava a fazer exercícios regularmente porque eu sabia que dieta não era pra mim. E eu costumava a ter muita fome e muita vontade de comer quando eu estava estressada. Acho que foi por isso que eu pedira um cachorro-quente completo ontem e um X-Tudo hoje. Eu odiava fazer esse tipo de programa com Henry. O ex. Lembra dele? Pois é, jurava que eu também já tinha esquecido. Henry sempre brincava que eu ia sair rolando. Ficava apertando minha barriga. Eu tinha vontade de apertar sua cara com as unhas toda a vez que ele fazia isso.
Nos sentamos na mesa dobrável de ferro com a estampa de uma cerveja qualquer.
- Eu nunca te perguntei... - ele falou enquanto eu jogava ketchup na borda do pão que eu estava prestes a comer, como sempre fiz - Você trabalha com o quê?
- Sou diretora de arte.
- Uau.
- Parece mais legal quando eu falo que sou diretora de arte do que realmente é ser uma diretora de arte – comentei.
- Algo que você dirigiu que eu possivelmente já tenha visto?
- O catálogo de Natal da Natura que está circulando por aí agora, talvez... Ou quem sabe um clipe de uma música chamada "Nossos Abraços"? De uma banda chamada "Clive"?
- Nossa, sim! Eu odeio essa música!
Ele falou com tanta sinceridade que eu gargalhei. Ele sem seguida ficou sem graça por ter falado que odiava uma música cujo clipe eu havia dirigido. Gargalhei porque eu também odiava a música.
- Sem problema, eu também odeio - eu ri e ele pareceu mais relaxado.
- Mas o clipe é muito bom!
- Ah, pode parar. Tenho certeza que você nunca viu o clipe inteiro! Acho que eu mesma só vi uma ou duas vezes depois de pronto. Ninguém merece ouvir aquela voz por mais de 30 segundos.
- Prometo que assistirei no mudo assim que chegar em casa - ele brincou - Mas o que te levou a fazer um clipe para essa banda? Eles são horríveis! Pelo menos pagaram bem?
- O guitarrista era meu namorado.
chegou a engasgar.
- Desculpa - ele disse sem graça.
- Desculpa por quê? Eles são horríveis, o vocalista então... As letras são bregas também.
- E qual música ele fez para você? - ele brincou.
- Uma que eu nunca deixei eles gravarem. Eu disse que queria que fosse algo privado, especial - eu disse rindo - Mas agora acabou. Quer dizer, ontem acabou.
- Ele terminou com você? Ou você terminou com ele? E ontem? Por mensagem?
já tinha entendido tudo o que tinha acontecido ontem. O celular com a tela rachada, eu nervosa...
- Foi meio mútuo, mas terminamos com uma mensagem. Escrevi um texto gigante que acabava com "isso claramente não está dando certo... você não acha melhor darmos um tempo?". Tudo o que ele respondeu à minha pergunta foi um "ok".
- Desculpa, mas que filho da puta.
- Obrigada.
- Por ter chamado ele de filha da puta?
Eu concordei com a cabeça enquanto dava uma outra mordida no hambúrguer. riu.
- Agora eu tenho um outro clipe para dirigir, de uma banda realmente boa, mas o lugar no qual eu ia gravar deu pra trás. Não sei se vai dar certo.
- Qual era o lugar?
- Era uma galeria de arte contemporânea que fica perto do cruzamento da Afonso Pena com a Getúlio... Mas já era. Tudo o que eu precisava era um lugar bem iluminado com muitas cores. A gente ia usar um pouco de tinta e aqueles pigmentos em pó e eles deram para trás achando que a gente ia danificar as obras de arte. Isso porque a gente era quem estava correndo o risco de pagar uma multa alta se isso acontecesse. É claro que iríamos tomar cuidado e proteger as obras. Agora vou ter que achar uma outra galeria em 5 dias ou, sei lá, gravar num muro cheio de graffiti.
- Se você quiser, pode gravar lá em casa.
- Como assim?
- Eu moro em um apartamento na Vila Mariana. Alugado, nada muito grande ou chique. Mas é bem iluminado e eu garanto que é cheio de cores. E eu acho que se eu mover a minha cama pra um canto, o espaço fica bom pra uma gravação. Mas eu não sei qual a sua ideia, talvez dê certo, talvez não.
- Eu teria que ver o lugar, mas quanto mais opção melhor! Não tem problema mesmo? Quer dizer, a gente vai usar tinta...
- Esqueceu que eu sou pintor? Devo ter mais tinta do que você está pensando em levar! - ele riu.
- Ok, quando posso ir conhecer o lugar e fazer uns testes de fotos e iluminação?
- Assim que a fashion week acabar? Eu realmente estou bem ocupado essa semana.
- Sem problema, quando for melhor pra você.
Eu não queria demonstrar, mas finalmente alguma esperança surgiu no fim do túnel e eu comecei a me sentir muito melhor. Dei mais uma mordida no X-Tudo, que era gigante. A lanchonete já estava fechando quando eu acabei de comê-lo inteiro. Andamos de novo até a festa e eu expliquei o que eu estava pensando em fazer no clipe. Ele gostou da ideia e foi tudo bem divertido até eu chegar de volta à after party e encontrar Liz apagada de novo no sofá. Só que desta vez o homem que antes estava do lado dela estava tentando se aproveitar. Eu fui um pouco rude e exigi que ele deixasse minha irmã em paz. Eu carreguei-a em meus braços de novo do táxi ao seu apartamento e à sua cama. Foi assim que eu percebi que talvez Liz não estava apagando assim por estar drogada ou bêbada e sim por estar fraca demais.

Os dias seguintes foram até bons na medida do possível. Eu tive que comparecer a alguns compromissos de trabalho na parte da manhã e resolvi algumas contas pendentes. Eu fiz questão de ir a todo o dia de fashion week. Primeiro para ficar de olho em Liz, segundo para poder realmente conversar com alguém sobre coisas relevantes, ou seja, conversar com . Bom, pelo menos quando ele era . Eu sentia angústia em vê-lo de Gerard, sentia angústia porque eu sabia que ele não estava confortável naquele papel.
Em um dos dias, andamos mais longe para comer pastel. Eu ia ficar realmente uma balofa se não voltasse pra academia e continuasse comendo assim, mas eu estava lá mais pela conversa do que pela comida, apesar do pastel ser delicioso - e gigante.
- Você não acha que se preocupa demais com a Liz? - ele disse enquanto eu tagarelava sobre ela.
- Eu tenho que me preocupar. Ainda mais agora.
- Por que ainda mais agora? Ela já é bem crescida.
- Promete que essa conversa não vai sair dessa mesa?
- Prometo.
- Vão querer mais alguma coisa? Foram bem servidos? - a garçonete da pastelaria perguntou, tirando o prato vazio.
- Não, está tudo certo - disse.
- Qualquer coisa é só chamar - ela disse sem quase olhar para mim e saiu.
- Acho que alguém gostou do maquiador aqui... – impliquei.
- Quem?
- A garçonete? Que acabou de passar olhando firme para você e praticamente me ignorando?
- Nem reparei. Mas, continue, por que você está mais preocupada agora?
- Eu descobri que Liz tem um distúrbio alimentar.
Ele não pareceu surpreso.
- Bulimia? Anorexia?
- Talvez os dois, não sei. Eu encontrei vários doces escondidos pelo apartamento dela, junto com um laxante e remédios pra garganta. Ao mesmo tempo que ela não come nada, ela come esses doces todos e coloca tudo para fora, de uma forma ou de outra. E a cada dia ela está ficando mais magra e mais fraca.
- Você vai ficar brava se eu falar que isso é normal? A pressão de ficar magra nesse meio é maior do que você imagina, pode fazer a cabecinha de adolescente dessas meninas virar de ponta cabeça.
- Isso não é normal, . Se algo faz mal pra pessoa, não é normal. E é minha irmã. E eu sou a mais velha. Eu deveria cuidar dela, mas acho que não estou fazendo esse papel direito desde a mamãe morreu.
- Eu usei a palavra normal errado, desculpa. Quis dizer que é comum. Não que seja saudável.
- Tudo bem, eu nem sei porque estou fazendo você escutar meus problemas... Desculpa.
- Talvez porque você teve que ouvir os meus? E não me julgou e nem tentou me dizer o que fazer? Acho que eu posso ouvir os seus também...
Eu sorri sem mostrar os dentes, tentando segurar todo o peso emocional dentro de mim. Naquele dia, nosso caminho de volta à fashion week foi silencioso.

Eu limpei o apartamento de Liz após o ultimo dia de desfile. Ela estava apagada na cama de novo enquanto eu jogava todas as guloseimas que encontrava no lixo. Joguei os remédios fora e os substituí por complexos vitamínicos. Ela ia logo perceber, mas eu estava tentando reverter a situação de forma não muito opressiva. Pensei em avisar para seu agente, mas talvez isso só fosse complicar mais. Eu também não queria a noticia estampada no jornal, eu não queria expor minha irmã.
Fiz uma limpeza também no meu celular, apagando todas as fotos de Henry, todas as mensagens, simplesmente apaguei todo o rastro dele. Eu não o tinha mais em minha mente, qual seria o sentido de tê-lo no meu celular?
Combinei de ir ao apartamento de logo na segunda-feira e, se tudo desse certo, gravaria o clipe na terça. Enchi tanto o saco dele para aceitar receber algum dinheiro por estar cedendo seu quarto a nós que ele acabou aceitando. "Mas eu nem sei se vai dar certo", ele disse. "A gente faz dar certo, nem que isso signifique pintar todas as suas paredes". Ele apenas riu, talvez até gostou da ideia.

Às vezes, eu odeio São Paulo. E a maioria dessas vezes acontece quando estou dentro do carro, num calor de novembro que só aumenta com a quantidade de asfalto e concreto e fumaça de caminhão ao meu redor. Eu já estava atrasada para encontrar na casa dele e o trânsito estava congestionado, eu não saia do lugar há pelo menos 5 minutos. Liguei o radio, mas não tinha nada de bom passando. E além de tudo, quando desisti de procurar uma radio e deixei em uma qualquer, veio uma música (se é que chamavam aquilo de música) da tal bandinha do meu ex. Esse dia não podia ficar mais insuportável e eram apenas 2:30 da tarde.
Cheguei no endereço que me passara 45 minutos atrasada e pedi mil desculpas quando ele me recebeu na entrada do prédio.
- Eu sei como é o trânsito de SP, relaxa - ele sorriu - Você não quer entrar?
Pedi licença ao entrar e ele subiu uma escada. Eu o segui, subindo atrás. Nessa hora, reparei que suas calças eram mais largas que as minhas, bem diferente das calças de semana passada. Ele estava de chinelo de dedo, também muito diferente dos sapatos brilhosos com excesso de graxa da semana passada. Ele parecia não ter penteado o cabelo desde que acordou e sua camisa era branca, larga, simples. Era como se eu finalmente tivesse visto quem ele era de verdade.
Assim que subi a escada, ele abriu a porta na qual os números 1 e 6 estavam pendurados por um prego que estava quase caindo.
Quando entrei pela porta, eu mal acreditei que aquela era sua casa. As paredes eram todas coloridas, com quadros que eu sabia que foi ele quem pintara. Uma janela grande, batendo sol, iluminando todo o ambiente ficava bem no meio da parede lateral, coberta apenas por uma cortina branca fina, fazendo contraste com todo o colorido. Ele já havia puxado sua cama pro lado, e eu tinha percebido que aquela era para ser a sala, mas acabou sendo seu quarto. Havia uma prateleira cheia de tintas e pincéis e algumas telas ainda não terminadas. Eu pude ver algumas maletas com maquiagens caras ali no meio que seriam o sonho de qualquer mulher. Sua cama também estava coberta por um edredom um pouco amassado e em cima do edredom estavam várias outras tintas e papeis com alguns sketches.
Suas telas eram como nada que eu já havia visto antes. A moldura fazia parte da obra, não a limitava como outros quadros. Às vezes a parede atrás do quadro acompanhava a pintura, o traço do pincel, como se ele tivesse pintado ele já pendurado na parede. A maioria era abstrato, mas eu podia identificar alguns rostos e paisagens entre as cores. E a parede inteira era coberta por esses quadros, molduras, desenhos, cores. Ele tinha uma exposição de arte na parede.
- Então... Você gostou?
Ele estava de braços cruzados do meu lado, esperando uma reação. Um pouco apreensivo, mordendo os lábios.
- Se eu gostei? , isso é digno de uma grande exposição de arte! Por que é que você não mostra isso pro mundo?
- Da última vez que tentei mostrar, chamaram de "bagunça visual".
- Mas não é exatamente esse o contexto no qual estamos vivendo?
- Como assim?
- A cada segundo, criam-se milhões de novas informações, imagens, vídeos pelo mundo e a maioria é lixo, é tudo uma bagunça, uma sobrecarga de assuntos novos. Sua "bagunça", ou seja lá do que algum ignorante a tenha chamado, reflete toda essa nossa era. Mas é uma bagunça que é completamente interessante. Nada pode ser descartado. A cada lugar que você olha você descobre algo novo que te intriga. E todo o conjunto é lindo, instigante.
Ele ficou calado e eu tive que olhar para o lado. Ele também estava me olhando, um pouco sem jeito.
- Se você não vai dizer "obrigado", eu digo "de nada" mesmo assim. De nada.
- É que... - ele passou a mão pela barba que estava começando a surgir em seu rosto - Ninguém nunca havia analisado meu trabalho dessa forma.
- Ninguém nunca parou para prestar atenção, né? , confia em mim, você é mais que bom nisso.
- Como não confiar numa diretora de arte? - ele riu.
- Você nasceu pra fazer isso.
- Então você vai gravar o clipe aqui?
- Lógico! - eu exclamei com muita empolgação - Isso é melhor que qualquer galeria de arte por aí. Claro, se não tiver problema para você, eu adoraria gravar aqui amanhã.
- Sem problema nenhum - ele sorriu
- Se importa se eu tirar algumas fotos pra testar os ângulos e a iluminação? Pra trabalhar o meu roteiro.
- Claro que não, sinta-se à vontade!
Eu tirei a câmera de dentro da mochila, assim como o tripé. Posicionei a câmera em vários lugares, tentando achar o melhor para cada cena. A luz da tarde que batia em algumas moedas jogada no criado mudo, ao lado da cama, me interessou e eu posicionei o ângulo ali, fazendo com que o brilho refletisse na lente e gravando um video com algumas diferenças no foco. Nesse momento, ele me abordou com um copo d'água.
- Você adivinhou o que eu queria! - eu disse.
- Eu que fui mal educado de não te oferecer antes.
- Imagina... Esse calor dessa cidade nessa época do ano me faz derreter! Não suporto. Minha maquiagem já deve ter descido pro meu queixo.
- Quer que eu retoque?
Foi aí o que percebi quão burra foi minha frase. Soou como se eu estivesse jogando um verde para ganhar uma maquiagem de graça.
- , não vou fazer você me maquiar e ainda de graça! Por favor, esquece minha frase, não quis abusar de você.
Mas ele já tinha buscado uma cadeira e já tinha me mandado sentar. Eu não tive muita escolha. Ele limpou meu rosto, passou primer, um pouco de base, desenhou um pouco minha sobrancelha, usou um pouco de sombra marrom, um iluminador, um pouco de pó, passou rímel e ainda um pouco de blush alaranjado, bronzeado.
- Você está com seu batom aí? - ele perguntou
Eu busquei o batom vinho da mochila e ele começou a aplicá-lo com um pincel nos meus lábios. Silêncio. Tudo o que eu ouvia eram os carros passando na rua lá fora. Suas mãos passando o batom com o pincel em meus lábios não estavam muito firmes e eu estranhei. Eu já havia sido maquiada por ele, ele não havia tremido tanto. Meus olhos, que estavam fechados, se abriram um pouco para ver o que estava acontecendo. Ele estava perto demais de mim, com os lábios presos na boca, tenso. Abri os olhos por completo e o encarei. Seus olhos encontraram os meus e parece que se perderam lá dentro. Sua mão com o pincel continuou nos meus lábios, mas sua concentração já havia sido perdida, fazendo com que ele fizesse um risco de batom do lado da minha boca, fugindo da área demarcada.
- Desculpa - ele falou, percebendo o que tinha feito - Eu posso consertar isso.
Ele estava perdido, tentando encontrar algo para limpar, sendo que podia até limpar com os dedos.
- Ei - eu chamei sua atenção para mim e peguei seu dedo indicador, passando mais ou menos onde ele tinha borrado, mostrando o que ele devia saber: que não precisava de um algodão.
Momentos depois eu descobriria que esse ato foi o estopim para o que ocorreu.
Ele ficou me olhando nos olhos de novo, sem falar uma palavra. Cada vez mais perto. Até que meus lábios recém-pintados carimbaram os seus. Até que meus olhos se fecharam de novo. O gosto de batom se confundiu com o gosto de sua boca, fazendo com que eu quisesse aprofundar mais aquele beijo. Ele curvado sobre meu corpo e eu ainda sentada, com o pescoço pra cima. Ele parou e me olhou de novo com seus lábios agora manchados de corante vinho. Nós dois sabíamos que não tínhamos mais como evitar. Pra quê evitar?
Ele me beijou de novo, mais rápido, e eu, durante o beijo, me levantei aos poucos da cadeira, ficando em pé na sua frente.
Sua mão apertando minha nuca, meus dedos entre seus fios de cabelo. Suas mãos descendo à minha cintura, minha mão na lateral de seu rosto, meu polegar passando devagar por sua barba rala que acabara de crescer. Eu não conseguia me lembrar da última vez que senti um beijo como aquele. Os olhos fechados, mas as pontas de meus dedos viam tudo. Meu lábio, todo o tato de sua língua, meu coração acelerado, era tudo claro, visível.
Partindo desse beijo, surgiram outros. E outros. E enquanto algumas coisas surgiam, outras desapareciam, como por exemplo nossas roupas. Ou quem sabe minha vergonha, minha timidez. As roupas ficaram no chão. Eu poderia dizer que era porque estava fazendo um calor do cão naquele dia, mas seria mentira, não foi por causa do calor que nos despimos. Pelo menos não pelo calor vindo do Sol.
Uma coisa levou a outra e todas essas coisas nos levaram à sua cama. Sua cama bagunçada, cheia de tintas e pincéis e sombras e blushes. Nós nem nos demos conta. Nos livrávamos do que estava em nosso caminho, do que estava incomodando ao se deitar em cima. O resto continuou pelo edredom.
Sua mão entrelaçada na minha, seus dedos cruzados com os meus na lateral da cama. Suas pernas se confundindo com as minhas, nossos peitos juntos, nossa respiração pesada. Minha mão agarrando os lençóis, agarrando a beirada do colchão, agarrando seu cabelo. Sua mão agarrando outras partes de meu corpo. Sua boca agarrando outras partes do meu corpo também.
Minhas pernas flexionadas, seus braços também flexionados no colchão em baixo de mim. Minhas mãos em suas costas. Suas pernas retas, meus joelhos no colchão debaixo dele. Suas mãos na minha cintura.
Nós estávamos fazendo uma bagunça. Algumas tintas se abriram e outras, que já estavam abertas, escorriam pelo edredom, manchavam os lençóis. Nós nos pintávamos sem perceber. Minha boca manchada de batom assim como a boca dele. Como o pescoço dele. Como o peito dele. O rímel e a sombra ficaram na fronha do travesseiro. Estávamos fazendo uma bagunça, mas eu sabia e ele sabia que não era algo ruim, algo que precisasse ser arrumado.

Quando tudo se acalmou, quando meus batimentos cardíacos tiveram um descanso, eu me vi deitada de frente para janela, com os raios de do sol se pondo entrando pelo cômodo. Uma luz dourada e forte que iluminava parte da parede, parte da cama. A cortina branca balançando, fazendo com que os raios de sol a acompanhassem.
A ponta de seu nariz subiu pela minha nuca devagar. Ele deitado ao meu lado, de frente às minhas costas, com sua mão abraçando minha cintura. A outra mão estava acima da minha cabeça, mexendo às vezes no meu cabelo. Eu olhei para o chão e tudo o que eu vi foram manchas de tinta e pincéis jogados. Nossas roupas estavam lá em algum lugar. Abaixei os olhos e o edredom que antes era claro agora era colorido. Minha pele parecia ter sido usada como alvo de uma partida de paintball. Eu não disfarcei um sorriso.

Na gravação do clipe no dia seguinte, eu tive que agir normalmente em relação a . Talvez porque ele não estava sendo ele e sim Gerard. Havia algumas pessoas da equipe que o conheciam como maquiador, então ele teve que apertar o botãozinho e ligar seu modo gay. Mas, depois da tarde de ontem, eu tinha certeza de que ele não era, nem um pouco, homossexual. Sei lá, acho que quando se é gay de verdade, a pessoa não consegue nem chegar perto do que ele fez comigo ontem.
Eu, assim que cheguei, reparei que a cortina não estava mais branca e sim colorida. Com manchas de todas as cores fazendo degrades suaves. Perguntei-me se ele tinha pintado a cortina pro clipe.
- Antes que você ache isso bizarro, as manchas não saíram do lençol e eu coloquei na máquina duas vezes com água sanitária ontem - ele sussurrou ao meu ouvido durante a gravação
Foi então assim que eu percebi que a cortina nova não era bem uma cortina e sim um lençol. Eu apenas ri. E apenas segurei o riso quando vi alguém elogiar a tal cortina. Se eles ao menos soubessem como foi o processo de tingimento...

O dia foi longo e exaustivo. Vários takes diferentes e tudo teve que ser feito rápido, enquanto ainda estava claro. A casa de estava virada de ponta cabeça, tudo o que estava em seu quarto-sala foi para sua cozinha, banheiro e até para o hall de entrada. Sua cama foi parar em pé do lado do fogão e somente as prateleiras de tinta sobreviveram à mudança. Toda a equipe tomou cuidado para não danificar a parede, mas disse que poderíamos aprimorar a obra se quiséssemos. Para mim já estava perfeita.
A banda ainda não sabia o que esperar do resultado, mas também pareceu animada. Eu gostava deles. Conheci-os porque abriram os shows da bandinha de Henry algumas vezes, e, sinceramente, eles é que deviam ser a banda principal. No final da gravação, um integrante da banda veio falar comigo e perguntou de Henry, queria saber como ele estava, por onde andava. Eu simplesmente disse a verdade com o maior sorriso do mundo no rosto: "eu não faço a menor ideia".
Após coletarmos todos os arquivos de video para editar, eu lembrei que havia tirado algumas fotos no dia anterior e, assim que eu peguei a câmera, vi que o cartão de memória estava cheio. Estranhei, já que ele estava praticamente vazio ontem. Fui ver o que era, talvez apagar algumas coisas para tirar mais algumas fotos do resultado final no cenário, já que agora todo o chão também estava colorido. Quando vi o último video gravado, eu quis me esconder. Ao gravar o brilho das moedas na cabeceira, eu havia deixado a câmera gravando em cima do tripé, eu não havia apertado o botão para encerrar a gravação. Passei rápido o filme para frente, com medo do que poderia aparecer, mas o ângulo não pegou muita coisa. Apenas uma parte da cama era visível no canto direito e somente algumas vezes nossas mãos sujas de tinta e maquiagem apareciam em cena. Se apertando, entrelaçando, enroscando.
- Passou todos os arquivos? - um dos editores me perguntou
- Na verdade eu acho que esqueci de passar um...

Foram dois dias de trabalho exaustivo em cima do clipe e ainda tinha muito trabalho a ser feito. Não é a coisa mais fácil do mundo gravar vários takes diferentes, tirar o áudio, sincronizar perfeitamente com a música versão estúdio e ainda ser do jeito que você quer. Mas eu confiava na minha equipe. Apesar de ser a pessoa que carregava o nome de "diretora de arte", eu sabia que não era nada sem eles.
Ao encerrar um dia de trabalho satisfeita com o resultado, tendo fechado o clipe definitivamente e indo agora para o processo de divulgação, eu andei até o estacionamento, disposta a voltar pra casa e tomar um banho gelado, já que o calor de São Paulo conseguia me deixar mais estressada do que eu já era. No caminho até o estacionamento, procurando as chaves do carro dentro da bolsa, eu passei por uma banca e olhei para uma revista de fofoca. Tive que olhar duas vezes. Minha irmã estava na capa junto com a palavra "bulimia" escrita em letras garrafais. Eu quase não acreditei na hora, tive que folhear a revista e ler a reportagem. "Fontes confiáveis revelaram que a modelo sofre de bulimia nervosa". Não foi Liz que fez essa revelação. Não fui em quem disse nada. Ou Liz contara para mais alguém ou eu tinha certeza de quem fora. Virei mais uma página da revista e lá estava minha cara. "Henry, baterista da banda Clive, termina o namoro". Foi o fim. Agarrei a revista e saí, sem ao menos pagar. O homem da banca não percebeu, mas, caso percebesse, eu me recusaria a pagar por aquele lixo disfarçado de reportagem.
Deixei o banho pra lá, fui direto ao apartamento de Liz. O porteiro me conhecia, então consegui entrar direto. Se eu conhecia minha irmã, ela já sabia que estava na capa da revista e provavelmente se trancou no quarto jurando nunca mais sair.
- Liz! - eu gritei batendo na porta do apartamento - Sou eu! ! Abre, eu sei que você está aí.
Ninguém respondeu.
- Liz! Por favor! Abre! - eu pedi.
Ouvi-a andar até a porta. Parou um pouco antes de abrir, talvez conferindo o olho mágico. Um barulho de chave girando se fez e a porta se abriu devagar. Eu entrei, encontrando Liz de roupão, com o cabelo preso de jeito bagunçado, andando para seu quarto, de costas a mim. Sem falar nenhuma palavra.
- Olha pra mim - eu a puxei pelo braço
Foi como ter agarrado uma barra de metal. Tudo o que eu senti foi seu osso. Ela me olhou, com cara de choro. Eu não sabia mais o que era lagrima, o que era remela, o que era seu nariz escorrendo. Ela estava um caos. Os ossos do rosto aparentes, as olheiras fundas.
- Minha carreira acabou, não é? - ela falou, baixo.
- Não, Liz. Não acabou. Você só está é acabando com a sua vida.
- Por que é que você me tornou modelo? Por que é que você me usou assim? - ela já estava gritando
- Porque você queria ser! Porque você quis virar modelo! Você sempre disse que era seu sonho...
- Por que você me deu algo só para tirá-lo de mim?
- Você não está pensando que eu, eu, sua irmã, fui até uma droga de redação de uma revista nojenta para ganhar dinheiro em cima da sua doença? - eu não acreditava no que estava ouvindo.
- Quem mais seria? Você era a única que sabia! E você mesma disse que eu teria que me virar!
- Eu disse que se você quisesse ajuda, você ia ter que pedir, Liz. Mas acho que eu errei. Você não tem a menor noção do que é bom para você, você não tem a menor noção de quem você é e você parece que não sabe quem sou eu também.
- Você tem que desmentir isso. Falar que fez por vingança, por inveja. Eu não sou doente.
- Você é doente - eu falei firme.
- Eu não sou doente! Eu sou magra, eu sou bonita, eu sou modelo, eu não sou nem estou doente! - ela gritava - Isso é inveja sua. Você inventou essa história toda só porque eu sempre fui a irmã mais bonita, mais bem sucedida! Mamãe sabia disso também!
Aquela foi a última gota. Liz acabará de cortar o último fio de paciência dentro de mim. Virei a mão, dando um tapa com força em seu rosto. Acabou doendo mais em mim. Eu odiava ter perdido a cabeça. Ela não parecia acreditar, sentou-se em sua cama com a mão cobrindo a bochecha vermelha do tapa. Eu segurei seu rosto, fazendo ela olhar para mim.
- Olha aqui - eu disse apontando o dedo em seu rosto - Você está doente. Você precisa de ajuda. Você vai perder a carreira e a vida desse jeito. Se eu quisesse algum mal para você, eu teria feito coisa muito pior do que divulgar isso. Eu teria deixado você morrer. Agora limpa a boca antes de falar da mamãe. Ela te dava mais atenção porque você nasceu prematura. Eu te dava atenção porque você era a mais nova. E só. Ela me amava também. Você não é filha única, eu não sou sua babá. Você tem que aprender a me tratar como sua irmã mais velha e não como uma criada. Qual foi a última vez que você me perguntou como eu estava, como ia minha vida? Por acaso você sabe qual foi meu último trabalho? Porque eu sei qual foi seu último desfile! Por acaso você sabe que eu terminei com o Henry semanas atrás? Eu sempre estive aqui e tudo o que você fala sobre é só mesma! Você vai procurar um médico, você vai procurar um psicólogo, você vai abaixar essa merdinha de ego, você não é melhor que eu porque é modelo. Você não é melhor que ninguém por ser modelo. Você está sendo pior. Eu não vou desmintir merda nenhuma porque é verdade.
- Não é verdade... - ela sussurrou baixo.
- E essa mancha de chocolate no canto da sua boca é o que então, cacete? - eu gritei - Seu apartamento cheira a vomito, Liz! Eu consigo ver embalagens de doce escondidas debaixo do edredom! Eu não sou cega! - falei, jogando o edredom no chão e deixando todos os doces à mostra.
Liz começou a chorar. Eu não era quem ia consolá-la. Eu iria marcar um médico. Um psicólogo. Quem sabe até interná-la se fosse preciso. Mas eu não ia passar a mão na cabeça dela até ela aprender a me tratar bem, como uma pessoa e não um objeto. Enquanto ela chorava, soluçando, peguei seu celular e revirei os contatos até a letra G. Vai que ele me deu o número errado? O número do seu alter-ego era o mesmo do dele? Mais alguém precisaria ouvir tudo o que eu tinha para falar hoje. Porém ele não atendeu. Deu caixa postal depois do celular tocar várias vezes.
- Você deveria estar em algum lugar agora? - perguntei a Liz e ela respondeu soluçando que sim.
Abri o calendário do celular e, no mesmo horário, Liz deveria estar em um outro desfile. Saí de seu apartamento, deixando-a como estava, em seu estado deplorável. Eu tinha outros assuntos para resolver.

Sabe aqueles programas armados de polêmica? Aqueles que geralmente passam de tarde ou no domingo? Onde todo mundo é pago uns 10 reais para aparecer na câmera fazendo um barraco? Eu fiz praticamente isso, mas sem ser pagar um tostão. O segurança tentou me barrar, mas não conseguiu. Eu entrei pelo backstage em disparada, olhando para todo o lado, procurando por ele. Encostado em uma penteadeira, conversando até animado demais com outro cara usando calças apertadas e um corte de cabelo esquisito, lá estava . Ou Gerard. Ou seja lá qual for seu nome de verdade. Cheguei já gritando, sem pedir licença.
- Olha aqui - joguei a revista em seu peito - Você é um desgraçado. Você me usou pra isso? Para ganhar dinheiro divulgando a vida pessoal de outras pessoas?
Ela tentava me interromper, falando meu nome, com a revista na mão e fazendo cara de mal-entendido.
- Eu pensei que eu podia confiar em você e você faz isso? Quão baixo você é? Seja lá quem você for! Porque eu não sei nem por qual nome eu devo te chamar!
Ele tentava me parar, me pegando pelo braço, mas eu me largava, agitada.
- Você é um mentiroso! - eu gritei - Você mentiu para mim! Eu nunca deveria ter chegado nem perto de você!
Eu já estava chorando, mas era de raiva. Ele tentava me acalmar, mas eu andava para trás, me soltando. Eu sabia que o cômodo tinha parado para ver a cena. Eu sabia que o segurança também estava tentando me capturar para me tirar dali. Não importava.
- Ou você mentiu para mim, ou você fez tudo o que fez só para se afirmar, ou você está mentindo para si mesmo! E eu não sei qual é pior! - eu gritei - Mas isso foi baixo demais! Ela é minha irmã, ! Gerard! Seja lá quem você for! E você só a jogou ainda mais pro fim do poço! E eu nem digo nada sobre a noticia sobre o meu namoro! Qual é!? A capa não foi o suficiente?
- , para um pouco e me escuta - ele disse, tentando me pegar pelo braço
Eu me soltei. Olhei para seu rosto com decepção, indignação, confusão. O segurança me puxou para fora de novo e eu me soltei, gritando que já estava saindo.
- Eu não faço ideia de quem você seja... Eu ainda não acredito que coloquei aquela cena no clipe - foi tudo o que eu disse antes de sair.

Alguns meses se passaram. Liz começou a se cuidar e parecia ter melhorado a questão do ego também. Acho que ela se olhou no espelho e viu realmente quem era ela. Ou quem sabe não se viu refletida. O processo continua sendo complicado, já que a maioria de sua doença está na cabeça. O corpo é só uma consequência. Sua carreira teve de dar uma pausa e a imprensa também pareceu esquecer a história. Eu não sabia se Liz ainda iria querer ser modelo, mas com certeza adorariam vê-la fazendo um retorno. Iriam-na chamar de guerreira por ter vencido o distúrbio. Eu até gostaria de ver Liz indo à imprensa depois de saudável de novo, seria um bom jeito de conscientização para quem também sofre do mesmo. Mas quanto a voltar a desfilar eu não tinha muita certeza.
Eu continuava com meu trabalho. Uma coisa ali e lá e eu me virava. Era estressante mas eu gostava do que fazia, sempre gostei.
Depois de sair do backstage aquele dia quase carregada pelo segurança, me seguiu. Eu não queria vê-lo, mas ele fez questão de me segurar e me fazer olhar em seus olhos. Disse que não fora ele, que ele nunca faria algo assim. Que ele não precisava de dinheiro para fazer algo tão baixo. Eu tentava me soltar, mas ele foi mais forte.
- Você era a única pessoa para a qual eu não precisava mentir, . Por que eu faria isso?
Eu tentei me soltar de novo, mas foi inútil.
- Pensa bem, se eu quisesse ganhar dinheiro com fofoca, eu já estaria milionário com tudo o que eu ouço e sei dessas pessoas nesses desfiles! Tem coisa muito mais cabeluda do que essa história da sua irmã ou do seu ex!
Aquilo fazia sentido, mas eu não cedi. Eu estava com raiva demais para abaixar meu orgulho.
- Você é a única que sabe quem eu sou, caramba! - ele me largou e passou os dedos pelo cabelo - Você é a única pessoa que eu deixei se aproximar de mim do jeito que você se aproximou. E eu mal sei a razão! Mas você não me julgou. Você me ouviu.
Ele estava com os olhos molhados ou era impressão minha?
- Eu te amei aquela tarde, . Com tudo o que eu tinha. Eu decorei cada traço do seu corpo e você não pode mais tirar isso da minha mente - sua mão foi ao meu pescoço e eu segurei a respiração.
Se eu sentisse seu perfume, eu poderia acabar cedendo.
- Eu desisto de tudo por você. É só me pedir. Eu vou naquela sala lotada agora mesmo e conto toda a verdade. Eu desisto dessa mentira. Eu desisto dessa minha carreira e vou fazer o que eu realmente sempre quis. É só falar. Eu faria isso tudo por você.
- É isso que está errado, . Você não precisa fazer nada por mim. É a sua vida. Você precisa fazer isso tudo por você.
Eu dei um passo para trás e saí. Se eu continuasse perto dele mais um segundo acho que eu perderia minha mente de novo.

Desde então, nunca mais vi . Não faço ideia de como ele está. O clipe foi bem aclamado pela crítica, muita gente ligou e mandou email perguntando sobre o local da gravação, mas eu sempre passava para alguém responder para mim. Quando elogiavam qualquer coisa no clipe, eu ouvia, mas entrava por uma orelha e saia pela outra. Devo ter visto o clipe umas duas vezes no máximo e ainda sim fazia questão de olhar para outro lugar toda vez que a cena das nossas mãos apareciam. Eu não queria pensar nele. Eu lutava contra isso todo dia, até me distrair. Mas, de noite, ele voltava para me perseguir. Foi só uma tarde, foram só algumas horas, mas a intensidade durou até hoje. Fernando Pessoa explica.
- Vamos, Liz! - eu gritei - Estamos atrasadas.
- Eu não quero ir nisso.
- Nem eu, mas a gente precisa. Vamos.
- Ugh - ela reclamou, entrando no carro enquanto eu buzinava - Detesto exposições de arte.
- Eu também prefiro ver muros grafitados, mas você marcou esse compromisso e precisa aparecer. E eu preciso ir pro trabalho, então me agradeça por estar te levando.
- Não vejo a hora de ter meu carro de volta da oficina - ela reclamo.
- Acredite, eu também mal posso esperar.
Dirigi até o lugar, já atrasada para outro compromisso. Liz precisa me agradecer pelo resto da vida por essas caronas. Ela desceu do carro e deixou o convite da exposição no banco do passageiro. Eu buzinei, abrindo a janela para que ela buscasse, mas ela fingiu não ouvir. Já irritada, eu soltei do carro e fui até o lugar segurando o convite. Acabou que ela já tinha entrado sem ele.
Eu bufei. Sério, o que eu fiz para merecer isso?
Olhei para o convite e algo me pareceu familiar demais. Tudo me pareceu familiar demais. O nome "" me pareceu familiar demais. Decidi entrar, não importando o meu próximo compromisso, não importando o quão atrasada eu estava. Nada me pareceu mais importante que aquela exposição.

Eu olhava para as pinturas expostas, querendo que não fosse ele o artista. Pura covardia. Eu sabia que só podia ser ele. E ele estaria ali, afinal, que artista faltaria a inauguração da sua própria exposição? Um garçom passou por mim com taças de champagne e eu logo peguei uma. Seria demais para meu coração permanecer sóbria durante aquele momento. Mas eu quase engasguei com o champagne quando, passando por algumas pessoas observando a obra, eu vi o lençol colorido. Desgraçado. As pessoas em volta admirando os degradês, as cores que "pareciam ter passado por um logo estudo" antes de serem colocadas no lençol, discutindo o que a obra as fazia sentir, tentando achar um sentido completo para aquilo. Bobagem. Eu tinha vontade de gritar "duas pessoas transaram em cima do lençol cheio de tinta, esse é o sentido, pronto, agora vão fazer algo mais interessante da vida, cacete". Mas eu me contive.
De repente, vi-me parada sozinha perante o lençol e tive que virar a taça de champagne garganta abaixo.
- É estranho para você olhar para isso? Porque é estranho pra mim. Talvez seja por isso que eu a expus.
A voz surgiu do meu lado, mas eu não virei o pescoço para ver quem era. Eu não precisava.
- Você só a expôs porque queria rir das pessoas bolando mil teorias para um lençol que elas nem imaginam como foi pintado.
Ele riu.
- Talvez eu o expus porque foi a única coisa aqui que eu não fiz sozinho. Talvez porque é a única coisa aqui que realmente me faz sentir algo.
Eu olhei para o lado, vendo-o vestindo um blazer aberto e uma calça jeans. O cabelo não estava muito arrumado. O rosto estava coberto pela barba não muito grande. Eu sorri, com o coração pulando dentro do peito. Ele também sorriu, parecendo confortável consigo mesmo, mas um pouco desconfortável com a situação.
- E, pensando bem, você colocou praticamente uma sex-tape nossa num clipe pro Brasil inteiro assistir, acho que eu posso colocar nosso lençol numa exposição, certo? - ele brincou.
- Praticamente uma sex-tape? - eu brinquei - Foi meramente artistico! E a crítica adorou, ok?
- Eu adorei também - ele riu - Foi por causa desse clipe que eu consegui ganhar um pouco de nome. Várias pessoas me procuraram depois dele. Tenho que te agradecer.
- Não há de quê. Foi um prazer.
- Sim, literalmente - ele brincou e eu quase gargalhei - Mas como vai a vida? Liz parece estar bem melhor.
- Está se recuperando aos poucos... E você a usou de isca para me trazer até aqui, não é?
- Talvez… - ele sorriu.
Eu olhei para o lençol de novo, rindo.
- É estranho - ele comentou - Ver minhas obras assim. Organizadas em painéis brancos. Com uma legenda do lado. Me deixa um pouco desconfortável. Eu gostava da minha bagunça.
- Eu gostava da sua bagunça também.
- ! - ouvi a voz de Liz - Você resolveu ficar!
Eu assenti com a cabeça.
- Ah, e você é , certo? Bela exposição! Essa obra em especial, maravilhosa! Deve ter dado muito trabalho para fazer - ela se referiu ao lençol
Eu e tentamos segurar nossa risada, mas não conseguimos.
- O que é tão engraçado? Espera, vocês se conhecem?
Pelo visto, Liz não havia reconhecido .
- Bom, eu vou pegar mais um champagne! - e ela saiu
Eu e caímos na gargalhada.
- Tem alguma comida decente nesse lugar? - eu perguntei, brincando.
- Não, mas eu conheço uma barraquinha de cachorro quente perto daqui. Interessa?
- Você deixaria sua própria exposição?
- É minha, certo? Então eu acho que posso.
Eu estava feliz. Feliz por ele, por ter se libertado, por ter conseguido sucesso fazendo o que ele amava. Eu fiquei feliz por ter sido parte disso, por tê-lo ajudado, sem ao menos saber. Eu gostava de não ter muitos segredos com ele mais, tirando, é claro, nossa cena no clipe e o lençol em sua exposição. Quando estávamos no caminho para fora da galeria, em busca de comida de verdade, ele, discretamente, entrelaçou suas mãos com as minhas.
- Você realmente fica bem de batom escuro - ele comentou.
Ele não sabia, mas eu estava morrendo de vontade de carimbá-lo em seu rosto, borrá-lo inteiro. Fazer outro lençol, fazer outras cores, fazer outra bagunça, criar novos segredos. Ele não sabia, mas estava prestes a descobrir.

FIM


N/A.: Acho que me empolguei um pouco com esse especial, né? A fic ficou gigante! Hahaha! Espero que vocês tenham gostado. Era uma ideia que já estava comigo faz tempo e eu não havia tido uma oportunidade de realizá-la… Até surgir esse especial. Tô super sem tempo, mas consegui escrever essa história em 2 semanas usando o tempo que eu fico no metr! Apesar de ser a primeira fic que eu escrevo para um especial, tenho outras fics no site: The Untouched e Freedom’s Last Bullet, long fics restritas e em andamento; The Darkness of Us, short restrita finalizada; e Floor, short restrita em andamento. Um beijo no coração de quem leu. Qualquer dúvida, pergunta, sugestão, critica, entre outros, usem os comentários ou meu ask.fm. PS: Não tive muita certeza de decisão sobre o título, mas é uma música do Parachute então tá valendo ♥.




Nota da Beta: Qualquer erro de português e/ou html/script, me informe pelo e-mail.

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