Última atualização: 23/05/2022

Prólogo

“O tempo, para muitos, é conhecido como o primeiro passo para curar as feridas e os erros do passado de um ser humano. Porém, como seria se voltássemos na realidade e controlássemos tudo, até restarem poucos minutos de um novo amanhã? O que de fato aconteceria?”

As coisas se transformaram. Porém, antes de virar adulta, muitos acontecimentos e possíveis tragédias com a pessoa que amava vieram inesperadamente. Ela não mais se encontrava naquele lugar tão cheio de vida e sentiu saudades de todos os momentos que ambas viveram: andar a cavalo, tocar violão, brincar nos balanços altos e fazerem de conta que eram duas aventureiras vaqueiras.
Deitada em sua cama, viu a fotografia manchada de quando criança, abraçada com Carolyn Meyer. Ambas de chapéus de caubói atrás de uma árvore, numa foto que foi registrada pela velha polaroid de seu pai: John Meyer.
John foi seu herói de humor e personalidade ácida, que infelizmente faleceu por fugir das autoridades e não ter pagado o que devia para o governo.
Elizabeth sentia um aperto no coração e não conseguia ao menos esquecer que tudo aquilo aconteceu justo no seu aniversário. Alguém importante morreu, e a linda garota tornou-se uma alma vazia.
Os Meyer enfrentavam rixas e situações arriscadas. Carolyn de fato conhecia e sabia bem sobre seu pai ter sido um pistoleiro sanguinário a vida toda, mas era nova demais para ter aceitado facilmente que ele se fora. Já a matriarca Charlotte Redfield queria poder desistir de viver.
Elas amaram aquele homem até o fim de suas vidas e, embora todos os pais tenham seus defeitos, John soube construir uma boa história. Um homem valente que não tinha medo de absolutamente nada. Carregado de sarcasmo, sensatez, ironia e coragem. Sua aparência rebelde de cabelos castanhos longos e pontas douradas, as roupas clássicas de motoqueiro e tatuagens mostravam sua dádiva de criminoso.
O que de fato Carolyn faria algum dia seria se vingar dos covardes caçadores de recompensa. Bom… talvez Elizabeth deva estar pensando demais no passado ao invés do futuro que ela teria. Passaram-se oito anos quando ele partiu, voltar não mudaria nada – por enquanto.


•••


Era meados de 2006, no final de uma tarde de julho, no interior do estado do Arizona. Naquele local existia uma cidade chamada “Crystal Eyes”. Foi onde se deu origem ao fatídico dia em que pôde acontecer – pelo menos para ela – o seu aniversário e o momento mais aguardado: a meiga garotinha de cabelos castanhos, Elizabeth Aidan Grayson, faria finalmente os seus 13 anos.
Amigos e parentes tiveram a chance de comparecer àquele momento especial. Sua inocência, juntamente a um sorriso cordial, soprou as velas acima do bolo de morango e chantilly. Assim que apagou as chamas, de repente uma lágrima percorreu o rosto de sua melhor amiga. Seus pais discutiam no canto mais isolado dos fundos da residência dos Grayson.
Elizabeth a viu desaparecer sem sequer se despedir da aniversariante. O balançar dos cachos emaranhados chamou sua atenção e, quando a menina mais nova deu um passo à frente, os olhos azuis encaravam seus passos. De repente, a garota estava prestes a entregar o primeiro pedaço do bolo para sua mãe. Em um instante, Grayson chamou pelo seu nome, alcançando sua destra. Os toques chocaram as duas, e, antes da despedida, Elizabeth esperou que ela falasse:
— Preciso ir embora! — a mais nova chamava-se Carolyn. As últimas roupas que ela vestia consistiam em um vestido azul e rodado de verão e um cordão dourado com um pingente de cavalo dado pelo patriarca John. Os olhos verdes e o rosto triste reprovaram sua aparência delicada; aquelas palavras deixaram a aniversariante chocada. — Meu pai está com problemas, preciso saber o que aconteceu com ele!
— Você não pode ficar mais um pouco? — ansiosa, ela juntava suas mãos uma na outra com a chance de vê-la dizer o motivo de ter chorado quando viu seus pais desesperados do lado de fora. A menina de cabelos escuros só revirava os olhos para cada direção, assustada e insegura. Carolyn queria poder ficar e estar feliz ao lado dela, mas não tinha opção. — Estou tão feliz em te ver aqui.
Carolyn suspirou, balançando seus braços. Processava alguma resposta sincera, contudo, somente negações e dúvidas surgiram de suas palavras, algo que perturbou a mente da aniversariante.
Em uma fração de segundos, após nenhuma das duas se explicarem, Meyer finalmente respondeu sem hesitar ou ter medo do que diria logo em seguida.
— Lizzie… Me desculpa, mas eu não posso! — ela correu para o lado de fora da casa. Seus sapatos ecoaram pelo chão, e a partir desse momento, ambas nunca mais se encontraram. Elizabeth só queria poder dizer que também não estaria mais ao seu lado.
Carolyn se arrependia profundamente. Foi uma situação estranha, todavia, complicada de entender na época. Sua mãe andou em passos rápidos, desesperada atrás do seu marido. Tentou impedi-lo da decisão, mas o homem parou e encarou a família – não foi uma escolha justa abrir mão de quem amava. Charlotte, ao lado da pré-adolescente, notou o semblante atordoado de John depois de toda a discussão.
— John, você não pode fazer isso! Você pode morrer! — exclamava, implorando para que o criminoso se rendesse. — Essa vida que você escolheu é arriscada e pode nos colocar também em perigo!
— Não se preocupem comigo, vou sobreviver! Longe… Mas, irei, prometo para vocês! — afirmou, beijando a testa de sua esposa antes de partir. — Quero que me encontrem no rancho dos Dickens e entrem no carro. Leve a Carol contigo, e deixe que eu mesmo lute contra isso.
— Pai? Você tem certeza que vai ficar bem? — a menina abraçava o patriarca, o seu último abraço. Olhou diretamente para aquele rosto e não deixou de tocar em seus cabelos. — Eu ainda posso ficar na casa da Lizzie, não se preocupem comigo.
— E por que essa garotinha tão corajosa deixaria sua própria mãe sozinha? — John sorriu sem humor. — Saiba que nada nesse mundo te condenará enquanto eu estiver aqui! Sei que vocês queriam uma vida melhor, mas infelizmente a vida não é tão justa quanto parece. Acredito que algum dia você vai orgulhar a sua mãe, confie em mim. Papai estará bem e vivo!
— Você promete?
— Eu prometo! Agora vá e proteja a sua mãe no caminho.
— Tome cuidado, querido — avisou Charlotte. — Nossa filha estará sob o meu controle.
— Digo o mesmo pra vocês! O homem subiu na Harley Davidson, encostou as luvas de couro no guidão e jogou o cabelo para trás. Suas botas encostaram no chão áspero e ele aproveitou para jogar seu último cigarro pisoteando no maço já usado.
John beijou os lábios da esposa e disse seu último “eu te amo”, antes do sol desaparecer. A mulher afastou-se do parceiro e a filha do casal andou até o velho Chevrolet, sentando-se no banco do passageiro. Charlotte virou a chave e pisou no acelerador com muita força para percorrer mais rápido o ponto de encontro.
Carolyn visualizou pelo retrovisor a imagem do patriarca desaparecer, no mesmo momento em que a mulher acelerava o carro e cortava o caminho para o velho rancho. A adolescente sentiu o peito doer e suas mãos esfriarem. Estava completamente gélida, e uma sensação ruim veio à tona. Torcia para que seu pai ficasse seguro, porém, aquilo infelizmente não aconteceu. Apenas as clássicas músicas de The Rolling Stones a faziam se preocupar menos, com boas lembranças de seu pai tocando violão sentado na entrada da casa rústica em que passavam as férias.
O senhor Meyer na beira da estrada estava pronto para seu destino, sem olhar para trás. Auxiliando as mãos na moto, indo diretamente ao local isolado e tentando se esconder da polícia. Não estavam o perseguindo, até o momento em que o clima ficou mais intenso.
Passando próximo ao deserto, tiros e sirenes deixaram John assustado. Mais e mais acelerava a sua moto, estava pouco se fodendo para as multas que pagaria. As pessoas tentaram atacá-lo, nada foi páreo para o seu revólver. A bala percorria, atingindo o peito de cada inimigo. Sentia-se como um pistoleiro no faroeste controlando seu cavalo. Matar pessoas não era novidade, e salvar sua própria pele não era mais um problema preocupante.
Desviando dos tiros e enganando seus respectivos perseguidores, acabou ficando sem gasolina, mas mesmo assim a polícia não desistiu.
John se deparou com o rancho abandonado, correu sem pausas e atravessou todas as plantações que o cercavam. O criminoso tentava novamente não olhar para trás, até que sua única defesa caiu de seu bolso: a arma havia sido derrubada.
O homem encarou as autoridades, prontas para dar o seu fim. John tentou pegar o revólver e sacá-lo, puxando o gatilho para todos aqueles homens; porém, o que ganhou foram doze tiros no peito.
Ele estava morto, e a promessa de sua filha não foi cumprida. Seu cadáver ficou exposto, morto a diversos tiros.
Sua família saiu do carro; a esposa e filha tiveram de acreditar que ele se foi. Charlotte gritava pelo seu nome, Carolyn estava sem reação. Ela chorou quase em lágrimas de sangue.
Desde então, o aniversário de Elizabeth foi o momento mais tenebroso. E ela nem sequer tinha culpa, marcada também pela morte do seu herói e também sua redenção.
“Eles vão pagar! Eu juro que vou achar o filho da puta que matou o meu pai!”, a adolescente pensou, furiosa, apertando os punhos. Charlotte pediu para que se acalmasse, e no final daquele dia, ambas foram embora acreditando que John agora pudesse descansar em um lugar melhor.


Capítulo 1

Elizabeth acordou com a luz do sol refletindo em seu rosto. Ela estava feliz dentro do avião, pois com muito esforço conseguiu a tão esperada bolsa de estudos na melhor universidade intitulada “Harvey State”.
Agora com seus vinte e um anos, Lizzie estava livre e disposta a realizar seus sonhos; viver com os pais em Portland no início foi estranho e embaraçoso depois de ter saído da cidadezinha natal que tanto adorava. Apesar dos momentos inesquecíveis, algo não saía de sua cabeça: como estaria Carolyn nesses oito anos que se passaram? Ela não respondia mais seus e-mails ou ligava para o seu telefone desde a morte do pai. A moça acabou ouvindo dizer que ele foi morto a tiros justo em seu aniversário.
Enquanto lia um livro romântico qualquer, o avião enfim pôde pousar no destino. Em suas costas levava a mochila; nas mãos uma mala tiracolo preta com roupas e utensílios pessoais. Os coturnos acharam o chão – Lizzie já não aguentava mais ficar sentada tendo a visão do céu como sua única fonte de distração. Pelo calor, tirou seu casaco e o pendurou pela cintura, ficando com sua regata verde musgo à mostra. Dali em diante, partiu em destino à faculdade.
Durante os estudos, pensou sim a respeito do que iria realmente cursar, e literatura inglesa parecia mesmo uma boa opção. Porém, não estava preparada para ter uma colega de quarto na trajetória. Imaginou como seria uma nova amiga: líder de torcida? Chefe gastronômica iniciante? Ou só uma mulher metida e superficial? As dúvidas não paravam de crescer.
Foi quando alcançou um táxi na saída do aeroporto de Phoenix – aquele estado continuava com seu mesmo estilo rústico e tradicional, principalmente as pessoas que pediam cheeseburgers no Jollibee ou só andavam em dias normais. Elizabeth, saindo dos devaneios repentinos, ouviu o taxista chamar sua atenção. Distraída, ela notou e pôde entrar no carro, arrumando sua postura no banco de trás.
— Qual o destino, senhorita? — um idoso de aparentemente 56 anos perguntou à moça de rosto sardento. Era asqueroso o ambiente cheirando a café puro e cigarros.
— Universidade Harvey State! — ela respondeu, ligando o celular que estava nos bolsos da frente de sua mochila, um dos objetos no qual era difícil não sair do vício. As mensagens de seus pais, amigos e família a deixavam fora de controle.
— Certo… É sua primeira vez aqui? — o homem decidiu puxar um assunto comum para não ficar em silêncio. Gostava de satisfazer seus passageiros, inclusive turistas. — Ou já esteve neste estado?
— Morei e nasci aqui com muito orgulho! — afirmou, dando uma risada descontraída. — Era de Crystal Eyes, acho que o senhor deve conhecer.
— Ah, sim, a cidade dos forasteiros? Que interessante! — falou, intrigado, curtindo um pouco a música mais tocada do rádio. — Você sabia que atualmente continuam vários ranchos e passeios a cavalos por lá? Meus netos amam visitar fazendas. Dizem que tem umas boas lojas de armas, mas gosto de ir pelas praias, por assim dizer.
— As praias são mesmo os lugares mais bonitos daqui — concordou com o taxista quase em frente ao local destinado. — O senhor poderia mudar a estação de rádio, por favor?
— Claro! Não sou muito fã dessas músicas jovens. Nada melhor que um bom e velho country!
Então, procurando a estação ideal, o homem relaxou no percurso ao som de Hurt, justo aquela música… a favorita do pai de Carolyn.
Lizzie não entendia exatamente quais as novas sensações aquele lugar poderia trazer. Ela refletia e fechava seus olhos sem preocupações, só ouvindo a música de Johnny Cash pacientemente, e mais as velhas lembranças se libertavam de sua mente.


•••


Embora não soubesse o que de fato aconteceu anos atrás – e o porquê de ter sido justamente no seu aniversário –, a imaginação de Elizabeth sabia criar um meio em que seus sonhos lúcidos tornavam-se significativos, só tendo imagens e flashbacks do passado, presente e futuro, como uma rápida viagem dentro de uma máquina do tempo.
Ela, de repente, entrou em um outro universo.
Estava vestida com roupas diferentes, menos habituais das quais costumava usar. As cores leves se transformaram em um conjunto de jaqueta xadrez marrom, camisa branca, calças rasgadas nos joelhos e tênis All Star. Lizzie ficou presa em uma plantação de trigo.
Sem entender nada, começou a andar em passos rápidos pela triticultura; às vezes se perdia e dificilmente encontrava uma saída, pois o que estava em sua frente era apenas aquele plantio, nenhuma casa ou celeiro por perto. Elizabeth se manteve ciente quanto àquilo e só correu pelo meio do nada.
Abaixando as plantações para conseguir correr mais rápido, a garota sentiu o chão tremer. Cavalos correram no final da triticultura. Ela encontrou um rancho, e de lá notou uma voz gritar o seu nome.
Depois daquilo, Lizzie acordou no mesmo lugar que se encontrava antes. Não tinha sido nada além de um sonho maluco – ou visão? – arrepiante.
Ela acordou afobada, e a única coisa que viu foi ter chegado finalmente em Harvey State. Se recompôs e saiu do táxi, pagou o motorista em dinheiro e enfim tirou seus pertences do porta-malas.
“Viajar de avião não foi realmente minha melhor forma de escapar do sono”, pensou enquanto bocejava, esticando os braços para o alto e pisando no chão áspero da entrada. O clima ensolarado de 21°C no fim do último dia de verão até deixava o lugar mais bonito, diferente de Portland, onde ela nem saía direito do quarto a não ser para levar o lixo ou ler embaixo do pé de limão suíço nos finais de semana.
Olhando para cima, viu diretamente imensos muros alaranjados e enfeitados por diversos tipos de cactos em volta de cada um. Curiosa e animada, a garota atravessou o portão aberto e foi em direção à secretaria para confirmar o registro de sua matrícula.
Caminhando pela paisagem de enormes palmeiras, prestou atenção nas pessoas e estudantes sentados na grama, conversando assuntos comuns do dia a dia. Elizabeth segurava firme suas bagagens e percebia diversas campanhas de alunos desesperados por atenção. Assuntos e doações para a caridade eram os demais comentados, mas ela não havia trazido nenhum trocado. Se realmente tivesse, ajudaria quem precisasse do dinheiro. Afinal, usou o que tinha para conseguir viajar tranquilamente.
Sua família sobrecarregou muito suas decisões, por mais que tivessem tentado consertar as coisas do seu jeito. Ser adulta não era nada fácil quando o assunto era relacionado a família. O lazer não era mais como simples férias escolares, a tendência era trabalhar forçado para sobreviver todos os dias.
E tudo pôde se resolver e estar novamente nos eixos quando Elizabeth decidiu partir para onde era realmente feliz. Ao receber e abrir sua carta de admissão, foi como ter aberto diversas portas de oportunidade.
Claire e George exigiam as profissões e escolhas da primogênita o tempo todo, um casal de pais conservadores composto por médico e consultora de imóveis, e essas profissões não interessavam Elizabeth nem um pouco. Seu amor por livros nunca morria. Seus pais, por outro lado, nunca conseguiram entender seu sonho. Nem tudo era dinheiro em primeiro lugar.
Antes, perguntava-se: qual era o tipo de filha que queriam ter, a garotinha mimada de 13 anos ou a que só obedecia e fazia as obrigações sem reclamar?
Todavia, nunca desistiu daquele objetivo, nunca parou – apesar de não ter cortado os laços com quem se importava com ela embora as discussões. O esforço valeu a pena, e estar naquele espaço que conquistou foi a melhor forma de buscar sua própria felicidade.
Após ver os arredores do imenso campus, Grayson apareceu batendo na porta da secretaria. Uma mulher alta de cabelos loiros presos em um coque fixo, vestindo camisa e saias sociais lhe deu boas-vindas e boa sorte. Lizzie respondeu com um sorriso e adentrou a sala, tirando seus documentos da bolsa e os colocando sob a mesa do diretor.
— Seja muito bem-vinda, senhorita Grayson! — um homem de terno e gravata borboleta pouco acima do peso levantou-se para entretê-la com um aperto de mão. — Ouvimos muito a seu respeito e estamos encantados em vê-la aqui.
— Muito obrigada — respondeu nervosa, pois era a sua primeira experiência. Não parava de encarar ao redor do salão. — Trouxe toda a documentação necessária para confirmar minha matrícula também.
— Perfeito! Creio que a senhorita vá cursar literatura inglesa, eu suponho.
— Sim. Na verdade, não escrevi uma simples redação à toa — riu, descontraída. — Para ser sincera, passei dias trabalhando nela.
— Isso é admirável, disso não tenho dúvidas — espontâneo e benevolente, o homem levantou-se da cadeira e viu a estudante fazer o mesmo. — Enfim, senhorita Grayson, bons estudos e quero ver a dedicação de sua parte amanhã.
— Certo! — ela balançou os cabelos para trás e concordou com a cabeça logo em seguida. — Onde fica meu dormitório?
— Nossa representante de turma, Tracy, pode mostrar para você onde será seu novo dormitório. Ela quem tem todas as chaves — afirmou o diretor, direto ao ponto. — Tracy está no corredor leste da entrada depois da biblioteca, e aqui está sua chave do armário também! — ele entregou a chave de número 409 para a estudante, que o agradeceu educadamente.
— Obrigada! — Elizabeth, então, se retirou.


•••


O tamanho do campus era um pouco intimidante, e Lizzie sentia-se mudada quanto àquilo. Quando estava em busca da representante, a de cabelos castanhos claros seguiu até a biblioteca. Saberia o quanto havia uma forma de escapar de um perigo evidente por ali, o curso não mostrava dúvidas. Até que, de repente, notou uma ruiva elegante e excêntrica passar de braços cruzados.
Ela vestia clássicas roupas de animadora de torcida, que aparentavam ser peças brancas e confortáveis. Seus lábios eram belos e rubis; os cabelos ruivos estavam presos em um impecável rabo de cavalo. Tracy observou a novata de cima a baixo, e, sem perder tempo, Grayson se pronunciou sobre sua chegada:
— O diretor me pediu para entrar em contato com você — disse ela de queixo erguido, por mais que a ruiva quisesse não notar sua chegada. — Você é mesmo a representante de turma?
Com um semblante de reprovação, Tracy respondeu:
— Infelizmente sou obrigada a cumprir esse trabalho de mostrar esse lugar chato para os calouros — cruzou os braços, depois revirou os olhos insatisfeitos. — Você vai cursar o quê?
— Literatura inglesa — respondeu, inocente.
— Que triste! — debochou em uma riso escárnio, e Elizabeth preferiu ignorar a arrogância dela. — Enfim… me acompanhe! Vou te levar até o salão B, você pode ficar com o B25! Virou quarto vago depois que Shannon Boswell desapareceu.
Shannon Boswell? Aquele nome não era estranho nem familiar, porém a deixou intrigada mesmo não conhecendo quem era. E por quê ela desapareceu? Elizabeth não parava de pensar naquele nome.
— Como assim desapareceu uma pessoa? Está me dizendo que nada neste lugar é seguro? — indagou quase ríspida. Não conseguia deixar a insegurança de lado.
— Para uma garota certinha como você, provavelmente não aconteça isso. Eu não entendo nada do povo daqui, fui obrigada a conviver com esses caipiras depois de meus pais terem me tirado da Califórnia — Tracy a guiou até o dormitório. — Shannon foi uma pessoa teimosa desde que a conheço em minha vida toda, mas depois de ter namorado uma aluna que foi expulsa do campus, começou a ser pior.
— Sério? Então alguma coisa muito ruim deve ter acontecido com ela, ou talvez o relacionamento dela estava com problemas — Elizabeth não conseguia entender por que se interessava tanto sobre o assunto. — Ou não é isso?
— Ela desapareceu misteriosamente depois de uma noite no clube da Delta Ômega. Enfim, vamos logo com isso! — a ruiva deslizou a chave dos bolsos de sua blusa de moletom na porta e abriu o dormitório de duas camas com uma mesinha pequena. — Pronto, chegamos no seu quarto. As coisas dela serão retiradas em breve, pode decorar como quiser!
E foi ali que os olhos de Lizzie começaram a viajar pelo quarto pequeno. E mais: ela pensava que estava em um espaço onde não a pertencia, e sim a outra pessoa. Sua atenção despertou com o lado coberto de cartazes de música e filmes antigos que ela nunca ouviu falar; a cama com o lençol dobrado e o cobertor perfeitamente arrumado. Tudo estava organizado demais para um dormitório vago.
Os objetos traziam um pouco da energia caótica de Shannon: diversas camisetas coloridas e listradas, jeans rasgados, jaquetas xadrez, coturnos, colares e gargantilhas. Elizabeth imaginou que se ambas conhecessem-se pessoalmente, provavelmente não seriam amigas comuns.
A estudante universitária pediu licença para que a ruiva se retirasse e, antes de ela ir, fez o seguinte convite:
— Espero que goste do novo quarto. Hoje à noite teremos uma festa de boas-vindas aos novatos, se quiser vir, fique à vontade para fazer novas amizades — entregou-lhe um convite. Elizabeth não queria recusar, mas pelo cansaço, queria poder tomar um banho e descansar.
— Obrigada pelo convite, Tracy! — a garota trouxe as malas para dentro do lugar. — Vou pensar mais a respeito. Geralmente não sou muito fã de festas, cheguei de viagem e preciso descansar também.
— Tá bem, nos vemos por aí — Carlson se despediu. “Que garota sinistra”, pensou perversa ao sair do corredor dos quartos.
Durante suas preciosas horas no banho e finalizar o dia desfazendo as malas para se deitar na cama, não foi como se acabasse tão cedo as obrigações habituais. Lizzie já se sentia sozinha e cheia de dúvidas, pois quem seria sua nova colega de quarto era uma desaparecida que nunca mais voltou. Criou-se um mistério junto a uma sensação de desconforto e exaustão em Elizabeth. Aquela ruiva metida também deu uma pista: disse sobre ela ter sido rebelde e irresponsável ao longo da vida. Porém, e se isso não fosse verdade?
Antes de anoitecer, a estudante permaneceu de pé, andando ao redor do quarto com o objetivo de conhecer mais a fundo o novo espaço. Grayson retirou os últimos pertences da mala, dentre eles um relógio dourado fechado. A garota abriu a tampa e notou ele funcionando normalmente; o tinha desde criança e sequer sabia o porquê daquele presente especial ganhar um significado importante para a trajetória de sua família. Era o relógio do falecido bisavô materno. Quando criança, Elizabeth ouvia histórias sobre ele ter sido um grande viajante do tempo e que acreditava na ciência de adentrar em qualquer realidade alternativa, mudando pequenos detalhes do passado.
Talvez fosse alguma mentira ou as clássicas histórias que o povo contava; outrora a fama de Crystal Eyes, além dos celeiros e plantações, tinha algo mais a se explicar sobre as origens de seus habitantes e quais trajetórias tiveram ao longo dos anos.
Seu bisavô Roger viveu anos e anos por ali sendo considerado louco; todavia, antes de sua morte, havia diversos blocos de notas com registros de cada acontecimento futuro na cidade: onde um suposto tornado atacaria e destruiria casas e todos os habitantes morreriam. Roger cismou que alteraria a tragédia através de poderes sobrenaturais.
A esposa e filhos se preocupavam com aquele problema; porém, Roger não desistiu de salvar todas as pessoas com o seu poder. Muitos diziam que ele era capaz de mudar pequenas coisas do passado. Provou através de feridas e manchas no corpo que nunca sequer apareceram ou tinham significado.
Sua mulher não suportou toda aquela loucura, pediu diretamente ao manicômio para cuidar de Roger; o homem implorou por misericórdia que precisava dar um basta naquilo tudo e salvar a cidade, por mais que tentasse provar expectativas fora do comum e seus argumentos não resultaram em nada mais. Até que, de repente, tudo o que ele previu realmente aconteceu.
Tudo se estremeceu, o chão rachou e o lustre de vidro desabou contra a mesa; ele estava certo e a cidade consumiria caos e trevas se não tomasse iniciativa. Quando os doutores chegaram em frente ao seu portão, o relógio acelerou e o tempo não estava normal. Roger não tinha mais opção, o que restou foi seus filhos fugirem para longe e a mulher correr para se salvar.
No final dessa história, Roger então correu e impediu os doutores, estendeu as mãos para o exato momento que corriam e os deixou parados. Foi como se tivesse pausado uma cena de filme. Ele andou lentamente e não entendeu o fato de ter sido o único a mexer-se em meio a um mundo parado.
Encontrou no fim um plantio de girassóis, e lá de longe lia e relia suas anotações sobre o passado. O mundo começou a tremer, mas apesar de muito esforço, Roger infelizmente faleceu. O que sobrou foi seu relógio, a única herança valiosa. O vento pareceu levar toda sua esperança, mas viu que voltar no tempo causou desastres.
Por um lado bom, a cidade foi salva, o tornado não mais existiu. Roger salvou todos, inclusive sua família, que atualmente não estava mais entre os Graysons.
Elizabeth achava a história uma piada, não acreditava realmente na possibilidade daquilo ser real. Todavia, preferiu deixar o relógio em seu devido lugar, em cima de uma escrivaninha. Posteriormente aos seus devaneios, voltou à terra enfim tirando os livros preferidos da mochila, de autores ingleses: William Shakespeare, Thomas Hardy, Jane Austen, Virginia Woolf, Oscar Wilde. Eles seriam bem úteis no semestre, e apresentar dificuldades em resenhas seria algo negativo em sua lista.
A universitária finalmente pôde descansar e tirar seus calçados; amanhã seria um novo dia com novas pessoas para conhecer. Porém, uma dúvida a ser esclarecida seria saber sobre quem foi a tal Shannon, desaparecida. Curiosa, Lizzie queria saber mais sobre o lado do quarto cheio de pertences dela.
No início, soube como era invasão de privacidade vasculhar objetos de outras pessoas, mas não adiantava. Lizzie queria saber mais sobre aquela garota e estava muito preocupada sobre ela ter sumido de repente. Sem olhar para frente, ela encarou o closet aberto, tocando nas camisetas de bandas, nos casacos e nas guitarras penduradas na parede, bem em frente à cabeceira de sua cama.
Shannon era uma clássica mulher rebelde que talvez gostasse de ser vaidosa e estilosa demais, alguém que amava cantar ou ir em shows de rock desrespeitando horários. Depois de Elizabeth analisar o estilo e preferências da jovem, mais à frente em cima de gargantilhas, colares e brincos, um retrato chamou sua atenção.
A garota ergueu os pés e tomou cuidado para que a foto não caísse. Esticou seu braço o máximo que pôde e conseguiu alcançar o retrato, revelando um casal de duas garotas: uma moça de cabelos ondulados e volumosos, pele escura, usando uma regata branca, cordão de penas azuis e jaqueta de couro preta. Sua maquiagem era perfeitamente detalhada – um batom vermelho nos lábios, sombra cinza e, delineado preto. Lizzie deduziu que fosse mesmo Shannon Boswell sorrindo. Ao seu lado, uma outra garota exótica, de cabelos roxos, piercing no septo e uma camiseta da banda Led Zeppelin. Ela mostrava a língua e o dedo do meio. Seu visual de fato deixou Elizabeth menos interessada, até notar um cordão familiar no pescoço dela. Um idêntico ao de Carolyn, o mesmo pingente de cavalo dado por John aos seus 8 anos.
“Carolyn? É Você? Não entendo…”, pensou em voz alta. Impossível aquela pessoa ser Carolyn Meyer. Ela não teria uma borboleta tatuada no peito ou algo assim.
A estudante universitária sentia-se estranha. De repente, sua visão se tornou trêmula e os ponteiros do relógio voltaram em sentido anti-horário. Elizabeth não sentia seus pés tocarem no chão; seu quarto girava sem parar e seus cabelos voavam. O que estava acontecendo? Ela não fazia ideia. A garota fechou os olhos e tentou deixar a cabeça voltar para o lugar.
Porém, ao novamente abrir seus olhos, ela estava em um lugar onde não podia imaginar: acordou presa dentro de um armário. Em outro lugar, em mais outra presença desconhecida.
— Onde estou? — perguntou para si mesma, virando a cabeça para os lados. Abriu a porta do armário vazio e por fim encontrou um quarto de paredes também cheio de pôsteres e garotas conversando.
Lizzie escondeu-se em um lugar fechado e lá pôde encontrar semblantes tristes e a mesma moça de cabelos coloridos ao lado da garota negra, que colocou seu braço esquerdo em volta dos ombros da garota que aparentava ser sua namorada.
— Sei que o seu pai não queria isso — ela dizia paciente para sua parceira. — Mas os tempos mudam. Sua mãe casou com outra pessoa, e Sean pode ser o padrasto mais merda que for, mas continua sendo da sua família.
— Ela foi covarde em ter mudado o sobrenome do homem que ela dizia amar para o filho da puta do marido novo — falava aos prantos. — Desde quando se chamar agora de “senhora Marston” muda alguma coisa?!
— Claro que não muda nada, mas é assim a vida de alguém quando casa com outra pessoa. Sua mãe não seria viúva a vida inteira, né? — a cacheada indagou, vendo o sorriso da moça surgir. — Seu pai foi mesmo um cara muito foda pelas histórias que me conta! E sei o quanto ele deve tá lá em cima te vendo e se orgulhando do que você é capaz.
— Você tem razão. Mesmo ele não estando comigo, ainda posso descobrir o que ele passou. Mas depois de sua morte, eu não esperava tudo isso! É muito estranho andar a cavalo, tocar violão e andar por aquele celeiro sem me lembrar dele — suspirou, apertando as mãos da cacheada. — Foi tudo tão rápido. Aqueles fodidos oito anos passaram e não deixaram de ser uma eternidade.
— Entendo como você se sente, Carol! — beijou sua bochecha. — Ainda vamos descobrir quem matou seu pai, e o cara vai pagar caro por tudo o que ele fez.
— Quem dera se fosse possível voltar no tempo para descobrir quem foi — riu sem humor, abraçando a garota. — Posso não ter meu pai aqui, mas nada vai me fazer se livrar de você, por mais que minha mãe não aceite nossa relação.
— Ah, manda o foda-se pra tudo isso — respondeu debochada. — Quem liga para o que os outros pensam de nós?! Teremos sempre o nosso próprio momento.
— Sim, você nunca vai deixar de ser incrível — beijou os lábios da morena. — Eu te amo, Shannon Boswell!
— Eu também te amo, senhorita Meyer!
Elizabeth realmente não estava errada, mas o que ainda estava fazendo naquele lugar? Ela ao menos nem podia falar, sua cabeça estava doendo.
E só então percebeu que voltou para o mesmo lugar. A estudante acordou assustada, deitada no tapete do quarto. Tinha voltado para o mesmo lugar, havia anoitecido e suas coisas ainda ficaram no mesmo lugar.
Como assim? Ela não tinha organizado?
Elizabeth ficou confusa. Pingos de sangue surgiram em seu nariz, estava tendo uma hemorragia. Correu para limpar e se olhar no espelho – estava com a franja longa quase cobrindo seus olhos, a garganta estava seca. Não estava nada bem.
Novamente tomou outro banho e organizou as coisas de seu quarto, tirando seus sapatos. Pareceu que tudo havia voltado, até os livros ainda dentro da mochila. Então, ela voltou alguns segundos no tempo.
Talvez a história de seu bisavô pudesse mesmo ser verdade.
Aquilo não podia ser um sonho. Shannon tinha alguma ligação com Carolyn, e Lizzie só saberia daquilo futuramente.


Capítulo 2

O som estridente de seu despertador pôde tilintar sem parar ao redor de todo o cômodo. O tão esperado primeiro dia de aula passou voando, e Elizabeth não queria se atrasar depois de uma última noite mal dormida – aliás, pela premonição bastante esquisita, que sequer entendeu como aconteceu. Queria poder tentar fazer aquilo surgir de novo, mas não sabia nem ao menos como acabou controlando e entrando tão rápido de um lugar para o outro.
Elizabeth só se questionava: “Shannon foi mesmo a namorada de Carolyn ou era também mais um sonho?”, pois queria acreditar seriamente que fosse apenas paranóia de sua cabeça. Todavia, se ligasse os pontos, faria mesmo bastante sentido, afinal, não ouviu vozes tão incomuns.
A voz de Carolyn costumava ser singela e compreensível, e agora parecia de uma depressiva alma fria e assustada. Seus cabelos, antes loiros, agora eram roxos fortíssimos, e as sardas do rosto não mais eram visíveis como antes. Quando criança, seu rosto era cheio de sardas pelo excesso exagerado de sol. Ela nem mais devia sair para fora ou ajudar a matriarca a lavar a roupa suja todas as tardes.
Diversas mudanças rondavam os pensamentos da Grayson, que enfim saiu exausta de cima da cama e levemente forçada a abrir seus olhos azuis enquanto dobrava os lençóis brancos, bocejando em frente ao espelho. Ter um banheiro próprio era mais outra e útil vantagem, porque sabia o quanto tinha vergonha de estar nua perto de pessoas desconhecidas – incluindo visões femininas que nunca viu. Lizzie odiava o desconforto.
De dentes escovados, madeixas jogadas pelo rosto e lavando-as depois secando-as com uma toalha azul, ela percebeu que seu nariz sangrou aos poucos. De fato não entendeu nada daquela hemorragia. Seus cabelos de manhã não lhe traziam uma aparência agradável; estava mesmo achando o quanto sua vida nova era totalmente outra coisa, e a agonizante sensação de voltar no tempo não era brincadeira. Queria muito poder fazer aquilo acontecer novamente, pois nada foi normal ou soube como fazer essa habilidade acontecer de novo.
Evidentemente, Elizabeth soube não estar delirando e cismou que aquilo era algo real demais para ser um simples sonho. A estudante recordou-se das cores da parede invadida por pôsteres, a ventania levantando as cortinas, a cama desleixada e o beijo doce entre as duas garotas.
Ela entrou em uma lembrança do passado, disso teve certeza. Porém, as lembranças e sua possibilidade do suposto poder sobrenatural assemelhavam-se claramente à teoria do caos, descoberta anos atrás por Roger. A jovem piscava momentaneamente, acreditando estar mesmo paranóica – provavelmente, até pior do que estar fora de si. Portanto, preferiu deixar aquilo para outro momento.
Começando enfim a cumprir seus rótulos, Lizzie penteava seus cabelos, jogando a franja para o lado esquerdo para contemplar as madeixas amarradas em seu rabo de cavalo impecável. Desacostumada com seu dormitório, decidiu ignorar o espaço de Shannon para nenhuma coisa estranha acontecer outra vez. Abrindo seu closet, de lá tirou peças básicas e confortáveis para encarar o dia corrido: uma camiseta branca, jeans azuis e uma jaqueta colegial vermelha-escura com listras horizontais nas mangas. Por fim, calçou seus tênis Converse branco de cano alto e ajeitou o cinto de couro neutro.
Saiu confiante carregando sua bolsa, no entanto, vibrações e música alta vinham de seu celular. Grayson olhou o visor iluminado e notou o contato de Claire, a matriarca desesperada a quem odiava responder perguntas sobre sua vida. Elizabeth deslizou com o dedo indicador para atender a chamada, tinha alguns minutos de atenção sobrando.
— Oi, mãe, bom dia! Desculpe não te atender ontem, estive cansada por conta da viagem — exclamou, fingindo animação.
Quer dizer que já chegou na faculdade? Deve estar gostando, não? — como de costume, Claire só estava interessada na localização da garota.
— Aqui é um lugar formidável. Hoje começam as aulas do primeiro semestre — forçou um riso. Dificilmente sua mãe tinha senso de humor quando o assunto se resumia em estar longe dela.
Fico feliz em saber, querida — a mulher do outro lado da linha sorria de lado. — Estou com muita saudade de você! Sei o quanto se esforçou para conseguir este sonho, foi erro meu não ter reparado nisso.
— Também sinto o mesmo, mãe! Principalmente do nosso tempo juntas. Entendo você e o papai terem me pressionando, mas não desisti fácil durante o processo.
Você ainda é jovem, Lizzie. Haverá muitas outras oportunidades ao longo da vida, não se prenda no passado! Tudo o que fizemos foi por amor.
Claire não estava errada de fato, assim como todas as mães protetoras que incentivavam os filhos a seguirem as metas de seus próprios futuros. Conhecia bem a garota e entendia que ela era sonhadora e conectada com várias histórias. Claire, sim, sabia o quanto demorou para aceitar a escolha e realidade da filha, mas no fim percebeu o desenvolvimento de sua garotinha meiga vir rapidamente.
A vida de Grayson mais nova só dependia dela mesma para acontecer – disso não foi obrigada a esquecer ou largar para trás.
E quanto ao Arizona? Acha mesmo que foi certo voltar para aí? Sabe… Depois daquele dia terrível no seu aniversário…
Antes de sua mãe terminar, Lizzie a interrompeu logo em seguida:
— Foi trágico! Sei disso! Ainda é estranho para mim comemorar mais um ano de vida e lembrar do que aconteceu com os Meyer. Imagino como Carol deve estar se sentindo, passaram-se oito anos e ainda a imagino devastada depois do choque.
O lado bom é que talvez Carolyn não esteja mais sofrendo. Sua avó me dizia muito sobre o tempo ser capaz de fechar e curar as feridas do passado. Aposto que, assim como você, Carol deve estar feliz e nada atingiria seus sonhos. O luto é algo complicado na idade de vocês, mas depois de tudo, percebemos que já passou.
A universitária queria acreditar naquilo. Claire sabia e tinha razão; pelas suas experiências, soube como sofrer calada ao perder e não conhecer diversos parentes. Ninguém parecia ser normal na sua família, e com certeza Elizabeth também não seria, apesar do poder enigmático do bisavô.
Lizzie respirou fundo e encarava demais o ponteiro parado do relógio antigo em cima da escrivaninha. “Como assim, ele não estava funcionando?”, ela franzia o cenho em interrogação.
— Mãe? E se essa história toda sobre tempo for o que meu bisavô dizia? — perguntou, receosa. — O tempo é capaz de mudar mesmo se alternar uma realidade da outra?
Do que está falando? — a matriarca não compreendeu.
— Nada! Deixe pra lá! Encontrei o relógio que era dele dentro da minha mochila e tive essa pergunta de repente — riu descontraída.
Ah, sim! Ele era mesmo alguém misterioso. Ainda acho que possa ser uma história boba da minha infância. Sua avó dizia muito que o pai dela acreditava em mudar de realidades, consertar erros do passado. Mas, para ser sincera, isso não é nada mais do que uma lenda! Acredito que o tempo é incapaz de aceitar mudanças. Então, não se preocupe!
— Como queria te contar… — Elizabeth resmungava, porém a mãe não escutou absolutamente nada. — Enfim, preciso desligar! Depois nos falamos mais, ok? A aula começará daqui a pouco.
Tudo bem, filha! Boa sorte, eu te amo!
— Também te amo, tchau!
Lizzie desligou o celular após a chamada e o guardou no bolso, decidindo focar nos estudos ao invés daquela loucura da noite passada. No entanto, saiu do dormitório feminino, trancou a porta e seguiu até o salão principal do campus, correndo desesperadamente.


•••


O corredor imenso era preenchido por vários universitários e professores; os pátios contemplavam uma grande nostalgia do ensino médio. Claro que não foram seus piores momentos. Apesar das relações interpessoais, aquela imagem de anos atrás interveio posteriormente ao seu redor ao ver diversos estudantes de estilos diferenciados, como a companhia de teatro e artes cênicas. Somente boinas e roupas sofisticadas os identificavam como pessoas, e Lizzie não se reconhecia em tais estereótipos. Aliás, estar perdida entre redações e livros era muito mais razoável.
Observou claramente os arredores e, ao perceber garotas rindo entre si e demonstrando certo olhar crítico pela caloura – que, por sua vez, ignorou boatos e sátiras a seu respeito –, atravessou segurando os cadernos e estojo firmemente ao corpo para não cair. Tentou evitar a aglomeração de pessoas nada simpáticas e educadas, sem saber dar nem ao menos um “bom dia”. Onde estaria a educação delas, não é mesmo?
A única pessoa reconhecível da multidão havia sido a figura ruiva vestida e ajeitada formalmente, cumprindo o papel de representante mais importante do campus. Elizabeth acenou e abriu um sorriso educado, mas o que ganhou foi Tracy revirando os olhos esverdeados e acenando com indiferença. Decidiu não incomodá-la; todavia, foi obrigada a virar-se para frente e deparar com ela e mais duas garotas atrás.
A do meio era alta, em torno de 1,69 cm, carne parda e sorriso carismático. Seus cabelos negros chanel mostravam charme e beleza diante das argolas prateadas. Suas roupas delicadas eram mescladas em um conjunto de camisa amarela, blusa de lã preta e saia jeans. Sua parceira era elegante, com um caminhar semelhante ao de uma modelo. Os cabelos eram trançados e enfeitados por grampos brilhantes; os lábios eram ligeiramente carnudos e vermelhos; o vestido tubinho azul lhe dava uma aparência de mulher perigosa e fatal.
“Como podiam ser tão estilosas? Será que eram de famílias ricas?”, Lizzie pensou consigo mesma enquanto coçava a nuca após um minuto de silêncio.
Até, no entanto, cumprimentar Tracy educamente:
— Olá, Tracy! — exclamou contente. — Como vai?
— Estou ótima, obrigada! — ela forçou um riso surgindo pelos lábios rosados. Não estava maquiada como de costume. — Pena não ter ido à festa ontem à noite. Estava tão divertido, né, meninas?
As duas concordaram com a cabeça.
— A viagem me deixou exausta, sinto muito por não ter ido — Lizzie respondeu, sincera. — Tudo é tão novo aqui que nem sei por onde começar.
— Outras oportunidades virão — respondeu a mais baixa, de cabelos curtos. Possuía um sotaque engraçado puxado para o espanhol. — Nunca te vi antes, mas seu gosto por livros é muito interessante! También es una chica muy bonita, no?
— Ah… G-Gracias! — Elizabeth não se considerava fluente em espanhol, mas era incapaz de não aceitar elogios. Suas bochechas criaram um rubor de repente; estava tímida demais para falar outra coisa que não fosse se apresentar: — Sou Elizabeth.
— Prazer! Me chamo Camila Valdez, responsável pela companhia de teatro.
Ambas deram um aperto de mão, quando, de repente, a ruiva interveio no meio das duas moças:
— Roberta e eu cursamos moda — Tracy se mostrou cheia de si, enquanto a mais alta ao seu lado sorria de canto.
— É um bom talento! — Lizzie riu. — Bom… por mais que eu ainda goste de ler.
— Pessoas quietas amam leitura, principalmente as antissociais, mas não me dou bem com essa gente estranha — a mexicana mais alta balançava as madeixas em puro sarcasmo. — Sem ofensas.
— Não me ofendi — balbuciou, se afastando do trio onde sentia-se desconfortável. — Foi muito bom conhecê-las, mas eu preciso ir!
— Boa sorte! — Tracy acenou, observando a introvertida sair até a sala que procurava.
Roberta e Tracy costumavam ser frias e superficiais com quem não chegasse ao seus níveis de popularidade. A princípio, sua amiga Roberta Sierra Hernandez e o irmão Alex Hernandez eram também os filhos do maior empresário de todo o estado Carlos Sierra, responsável pelo passado corrupto e perseguido por sonegação de impostos. Carlos estava cansado do país onde vivia, e se mudar para a terra americana fez um rumo diferente a seus planos.
Era agora um homem poderosíssimo e pobre de rico. Ninguém seria capaz nem de rebaixar ou incriminar seus filhos.
Enquanto isso, as três mulheres debochavam da novata por seu comportamento certinho e “estranho” no ponto de vista delas.
O determinado trio – incluindo a mexicana Hernandez – soube que Lizzie se hospedou no quarto da garota desaparecida, questionando se aquilo pudesse ter obviamente alguma coincidência.
— Acham mesmo que ela pode ter conhecido a Shannon? — Camila perguntou inocentemente. — Não parece que sabe de alguma coisa.
— E não sabe! — a ruiva revirou os olhos — Ontem à noite percebi o quanto ela olhava para os objetos que eram dela, falava até sozinha. Tive medo!
— Também não exagere, amiga — Roberta a tranquilizou. — Camila se atrai por tudo que é estranho, isso explica a amizade com a caipira de dentes tortos e separados da McFarlane.
— Ei! Não diga isso da Marie! Ela é uma pessoa legal — Valdez retrucou.
— Clássica mania de ver o bom lado das coisas, né? “Chica desamparada” — apontou o dedo indicador em seu peito em risos de escárnio.
No me importa! — virou o pescoço para trás. — Vocês duas devem aceitar as igualdades, só isso. A vida é muito mais do que garotos e festas de fraternidade, incluindo Juan Escuella o seu “namorado”.
— Não fale desse pendejo! — cruzou os braços, indignada. — Desde o desaparecimento da Shannon ele anda estranho. Sequer fala comigo!
— Houve boatos de que ele estava envolvido com a ex dela, a tal da Carolyn — Tracy comentou. — Vocês souberam?
— O que ele faz não é problema meu! — Hernandez piscou os olhos, carregando seu fichário. — Enfim, vamos ao que interessa. Não quero reprovar no meu terceiro semestre.
— No nosso — corrigiu Tracy. — Hasta luego, Valdez!
— Até! — Camila também se retirou. — Vejo vocês mais tarde.


•••


Lizzie entrou confiante na sala onde começaria pela primeira vez sua vida de estudante universitária. Contava até nos dedos os dias e semanas que passaria diversos conflitos se alunos ignorantes novamente tivessem as mesmas atitudes intimidadoras contra ela. Grayson entendeu mais ou menos como as coisas funcionavam e estava insatisfeita em saber sobre sua introversão incomodar as pessoas que odiavam leitura.
O professor alto de olhos caramelo pôde encará-la como sua única aluna a não chegar atrasada, pois todos os outros sempre desrespeitaram as normas de horários pelas distrações e irresponsabilidade. De alguma forma, ele entendeu que a novata estava interessada nos compromissos.
Quando Elizabeth achou o assento, viu o homem de terno sorrir ladino para a moça introvertida, lhe desejando boas-vindas. Ela apenas acenou educadamente e não disse absolutamente nada. Até que o professor se pronunciou, deixando aquele redor um pouco estranho:
— Você é a senhorita Grayson? — perguntou, ajeitando os óculos de lentes quadradas. — Ouvi dizer que você gosta muito de elaborar boas redações!
— Ah… Sou eu mesma! — revelou sua identidade, arrumando a postura na cadeira. — Já percebi o quanto é difícil se adaptar aqui.
— Tudo pode acontecer em Harvey State — afirmou antecioso enquanto escrevia no quadro negro com giz branco seu o nome, Professor David Sawyer. — Então aproveite e siga os parâmetros para conseguir boas notas.
— Certo! — afirmou enquanto mais alunos entravam na sala vazia. — Obrigada pela informação, senhor Sawyer.
— Pode me chamar de David — deu uma piscadela, enfim encerrando a conversa.
“Por que sinto neste lugar presenças arrepiantes?”, pensava Elizabeth, impassível, como se diversas pessoas estivessem a fitando com os olhos a todo redor que passava. Mesmo se a Terra girasse por um triz, os acontecimentos não paravam de se agilizar.
Diante da explicação de David, a estudante abriu seu caderno e anotou o que era somente necessário, ignorando textos informativos e se atentando apenas às questões de interpretação. Sua caneta não parava de colocar tudo em prática no papel. Ela soube responder na ponta da língua, até que, de repente, uma colega de cabelos róseos cutucou seu ombro e atrapalhou sua atenção:
— Ei! Você me empresta um lápis? — a voz sussurrava em seus ouvidos pedindo por um simples lápis de escrever.
— Quem usa lápis no ensino superior? — Elizabeth virou para o lado, notando a colega de roupas coloridas de lã e com coques na cabeça — Desculpe, mas infelizmente eu não tenho.
— Uh, foi mal! — se desculpou. — Como você se chama, garota cética?
— Cética? — Grayson riu. — É Elizabeth, Elizabeth Aidan Grayson.
— Você parece meio cética, sim — debochou, sensata. Porém, Lizzie não conseguia saber exatamente o seu senso de humor duvidoso. — Sou Grace Brighton, diretamente nascida das fronteiras do Arkansas.
Ambas apertaram as mãos educadamente.
— Criada e nascida em Crystal Eyes — falou de sua origem também. — Engraçado, pois pelo seu jeito não parece ter saído do Arkansas.
— É uma longa e velha história — Grace balançava a cabeça para os lados junto a um sorriso carismático. — Ainda tenho 19 anos e odeio estudar algo que melhora só na minha intuição de feminista. Afinal, ninguém sabe o que fazer ainda, né?
— Feminista?
— Sim! Usar Virgínia Woolf como influência é importantíssimo — disse, séria. — Ela era uma mulher lendária! É graças a Woolf que várias mulheres são bem sucedidas no mundo literário. Se não fosse pela sua intuição genuína, nós teríamos apenas homens para ler e escrever.
— Bom… Não posso discordar da sua opinião — Lizzie voltou a olhar para o quadro-negro. — Raramente se encontra mentes brilhantes como a sua liberdade de expressão mostra.
— Me acha alguém inteligente? Nossa, me deixou lisonjeada — Grace ria animada, quase elevando um pouco a voz por tanta euforia. — Você também parece ser diferente do povo de Crystal Eyes. Uma amiga minha mora lá. Na verdade, cuida de um rancho chamado Dickens.
— O rancho Dickens? — Lizzie ergueu o cenho, impressionada ao saber que aquele lugar ainda existia depois de longos anos trágicos após o assasinato de John Meyer.
As colegas, em tanta conversa, foram interrompidas pelo professor. Inclusive Grayson, confusa sobre a matéria que ele estava passando.
— Senhorita Grayson? Gostaria de participar da explicação?
— E-Eu? — ela gaguejava nervosa, ouvindo risos de outros alunos mais ao fundo. David ordenou silêncio logo depois, para enfim Elizabeth processar alguma resposta: — Sim, senhor!
— Certo. Então quem é o autor dessa frase? — ele arrumou a postura antes de citar —, “O bater das asas de uma borboleta, num extremo do globo terrestre, pode provocar uma tormenta no outro extremo no espaço de tempo de semanas.”
Grayson não conhecia aquela frase, muito menos o autor da obra; todavia evitou responder, assim optando por acertar no chute. Embora os assuntos sobre tempo não parassem nunca de rondá-la, se recordou do sonho lúcido no dormitório e foi impossível ver aquilo acontecer de verdade.
A universitária ergueu a cabeça, constrangida e assustada, como se tivesse uma pulga atrás da orelha, sem pensar. No entanto, ela respondeu qualquer nome específico vindo de seus pensamentos, mesmo não tendo lido livros sobre a Teoria do Caos.
— Stephen Hawking? — engoliu em sec,o apertando a mesa de madeira. Tinha certeza que havia errado.
— Errado — David cruzou os braços, indignado. — Edward Lorenz! Sugiro que pesquise sobre isso no final da aula ou encontre livros deste autor. Falaremos dele neste semestre.
— Tudo bem — sentou-se na cadeira com um semblante cabisbaixo, mas se assustou quando sua bolsa foi derrubada e de lá saiu seu relógio girando sem parar.
Lizzie deu passos rápidos até pegar o objeto antes que quebrasse. Conferindo se ele estava funcionando, de repente parou os ponteiros em um horário – 13:15. Como, se ontem estava rodando o horário corretamente?
“Como essa droga parou justamente agora de funcionar?”, ela resmungava baixo olhando para o relógio parado. Naquele instante, sua cabeça não parava de doer. Seu estômago estava embrulhado e Elizabeth percebeu que talvez aquela maluquice acontecesse de novo, mas em outra contagem, pegando-a em um relance.
Guardando disfarçadamente as coisas na bolsa, a garota voltou em seu devido lugar e notou a rosada dar um soquinho em seu ombro direito, tentando distraí-la.
— Mais sorte da próxima vez, Liz! — apelidou carinhosamente a dos cabelos castanhos, que mostrava zombaria ao mostrar seu dedo do meio.
— Muito obrigada, Brilhinho! — entrou na brincadeira, ouvindo gargalhadas altas da garota colorida.
— Acho que você tem que conhecer minha amiga, Marie. ‘Cêis duas iam se dar bem.
— Quem sabe.


•••


David havia pedido à sua aluna um breve trabalho sobre o autor mencionado até o fim da primeira semana. Justo em seu primeiro dia de aula, Lizzie queria se dar bem, mas seu professor criou um impasse em relação ao modo que havia se desatentado na explicação. Afinal, errar não foi proposital, e aconteceu tudo em um instante.
Grayson conseguiu novas amizades no campus, até o momento a garota Brighton. Mesmo sendo extremamente falante e agitada, Lizzie tinha boas oportunidades tendo ela ao seu lado. Por mais que a irritasse na maioria das vezes, a dos cabelos castanhos e olhos azuis só respondia com “uhum” em cada frase dita pela jovem de lábios brilhantes.
Quando o sinal tocou, ambas colegas se despediram. Grace havia chamado Elizabeth para conhecer suas outras amigas, entretanto a mais velha respondeu que gostaria de ficar sozinha para revisar a matéria estudada. Ao compreender, a rosada acenou a mão e deu tchau para Grayson, e assim elas foram para lados opostos.
Diante de suas preciosas horas vagas, em torno de 12:45 Elizabeth encontrou os degraus da imensa escadaria. Desenrolou seus fones que retirou do bolso do jeans e conectou o cabo no celular, deixando tocar sua playlist de músicas antigas em décadas variadas enquanto circulava pelos locais da instituição. Foi sem muita pressa e, depois, finalmente passou na biblioteca principal, já que seu dinheiro era insuficiente para sair e pegar um ônibus a caminho de Crystal Eyes, por mais que tenha pensado muito a respeito daquilo – então, preferiu ir outro dia –, além das lembranças de sua infância. Esqueceu o pensamento, ajeitou os cadarços desamarrados dos sapatos e, por fim, desceu as escadas tranquilamente ao som de suas músicas favoritas.
“Você não sabe que estarei ao seu lado para te guiar em seus momentos de fraqueza para deixá-los para trás? Saindo de pesadelos e só sombras, nós acenderemos uma luz e você ficará bem. Nós acenderemos uma luz e você ficará bem por agora… ”
Cantarolava Crosses de José Gonzáles em meio às pessoas aglomeradas no pátio, falando sobre assuntos rápidos e aleatórios entre elas. E o mais intrigante era andar ouvindo vozes sem que ninguém reparasse.
Chegando mais perto, Elizabeth pôde sentir a excitação dos estudantes. Era contagiante e divertida.
Muitos davam risadas, sentados no corrimões, beijando namorados. Jogavam mochilas de um lado para o outro, resultando em uma brincadeira de mau gosto. Já era de esperar um clima daqueles. Incomodada, ela se afastava e evitava esbarrar-se neles, aos poucos olhando incrédula para os arredores. Até que, então, um poster chamativo fez unir suas sobrancelhas, curiosamente erguendo uma das mãos para observar com atenção.
Foi revelado um cartaz de uma garota desaparecida, sendo ela Shannon. Lizzie lia atenciosamente, no entanto deduzindo: “Essa moça está com a vida em risco, e todo mundo só mostrar sua imagem não resolverá nada.” Diversas partes da folha foram pichadas com xingamentos e desenhos ofensivos alegando que “Shannon é uma impostora” e “Boswell deve estar morta e queimando no inferno”.
Por que tanto ódio gratuito? O que ela fez para merecer isso? Lizzie estava começando a se cansar diante de tanto mistério. Só queria saber sobre o real motivo da jovem ter sumido!
— Ei! — um rapaz negro de corpo atlético a abordou, e, pela voz grave, a garota virou-se para trás, notando o semblante tedioso do mais alto. — O que está olhando no pôster da minha prima? Já ouviu falar de respeito e educação?
— A-ah, desculpa! É que muitas pessoas falam dela, e acabei deixando a curiosidade me levar.
— Se você não for igual aos hipócritas e filhos da puta daqui, está de bom tamanho! — ele cruzou os braços para a situação, analisando a estudante de cima a baixo. — Quem é você? Conhecia ela?
— Não! Eu cheguei ontem à tarde, meu nome é Elizabeth — engoliu em seco devido ao nervosismo.
— Brandon — o garoto revelou seu nome. — A senhorita ficou com o quarto que era dela, se não me engano, né? Minha namorada me contou sobre você.
— Fiquei — assentiu, concordando com a cabeça. — Não foi minha intenção mexer nas coisas dela, eu realmente estava ansiosa pelo ambiente. Juro não tocar mais em nada!
— Relaxa, não precisa se justificar… — o atleta ergueu o cenho. — Só sinto muita falta dela. Tudo bem que ela agia toda complicada, mas… pareço ter perdido uma irmã muito querida, sabe?
— É… Sei muito bem como é a perda.
— Creio que ela esteja viva e só fazendo pirraça para não voltar — murmurou, abaixando a cabeça. Depois, se recompôs e voltou a olhar para frente.
— Pode ter certeza que ela está viva — a estudante de literatura mostrou-se confiante, mas pela falta de assunto, decidiu se despedir do rapaz. — Enfim, nos vemos por aí!
— Tchau!


•••


Os fundos da biblioteca permaneciam barulhentos, e o mais previsível foi no determinado horário mostrado em seu relógio, às 13:15 em ponto. Extraviada na volumosa estante da sala de leitura que comportava quinhentas pessoas por dia, Grayson pegou um livro sobre ficção para começar seu trabalho. Sozinha e sem mais ninguém por ali, seus olhos azuis avistaram um corredor escuro e, pela audição apurada, pôde ouvir vozes misteriosas discutindo pelo local.
Elizabeth não estava sozinha. E também não foi observada.
Enquanto lia brevemente as informações que precisava, no corredor escuro observou que tinha alguém familiar, e teve a certeza que era sua ex-amiga de anos atrás. Lizzie não precisou se levantar da cadeira para acreditar nisso. Entretanto, a jovem escolheu somente mudar de mesa para poder ouvir direito a conversa.
Certamente o início da evolução atual de Meyer havia ultrapassado gerações a gerações vazias e manchadas de sangue na alma inocente da criança linda e sorridente, que agora havia se tornado uma dona de coração amargurado, tendo os lábios trêmulos e as costas apoiadas nas paredes frias.
A morte do patriarca criminoso foi um choque inexplicável, mesmo fazendo exatos oito anos. Claramente a informação passava pelo cérebro da garota parecendo não ser capaz de apagar as imagens fortes da redenção de John e o estrondo das doze balas de calibre 38. Embora não ter visto o pai morrer em sua frente, Carolyn abria e fechava os olhos e imaginava o homem gritando e cambaleando perdendo todos os sentidos: visão, tato, olfato. E assim seu corpo não existindo mais no mundo, perdendo a respiração, virando cinzas eternas, voando lentamente para o céu a maior estrela, sendo a mais brilhante e marcante e achando seu ponto de encontro. John estaria no céu lhe guiando nos momentos difíceis.
Sim, Carol sabia que aquilo seria um ato relativamente impossível, afinal, remoer a perda para sempre ajudaria em nada, exceto aceitar a vida que sua mãe escolheu – casando-se com outro homem e mudando seu sobrenome de viúva de “Meyer" para “Marston”. Foi uma decisão catastrófica e revoltante para a filha, que odiou tudo naquele padrasto metido e cheio de si. O homem trabalhava para a segurança civil e sua mãe servia como garçonete na lanchonete local, West Donalds. Infelizmente, seus bons tempos sorrindo não passaram de uma ilusão.
Meyer havia perdido tudo ao longo dos anos, presa chorando no quarto: amigos, pai, oportunidades, carreiras, sonhos. Ao invés disso, adquiriu uma amarga solidão, sendo aquele o espaço onde criou seu próprio mundo livre de lembranças inúteis das quais nunca se atreveu a esquecer, sempre forçando a se lembrar do que a fazia feliz. Mas pela mente perversa pregando peças, não houve momento nenhum de felicidade quando adulta. Todavia, esse sentimento de culpa simplesmente foi ignorado até conhecer realmente seu porto seguro.
Numa noite de rock ’n’ roll, sua banda favorita, Vivid Scream, ia tocar no pub. Com muita sorte, Carolyn conseguiu comprar o ingresso após dias recebendo a mesada durante os meses que trabalhou na antiga fazenda de seu tio avô, pois odiava os anos de faculdade que fazia contra sua vontade. Ela saiu confiante acendendo um cigarro enquanto dançava com a cabeça e dirigia sua velha caminhonete vermelha.
Quando chegou a dos cabelos coloridos para enfim assistir a banda, até arrumou algumas confusões com jovens das escolas e fraternidades, quase sendo ameaçada de agressão. Por pouco uma mulher salvou sua pele dos rapazes punks, jogando-se para frente e colocando os folgados para correr.
Foi amor à primeira vista, e ver aquele sorriso branco fez o coração de Meyer palpitar; era a garota mais popular do Harvey State vista de outros olhos. Apaixonada por seus cabelos afros, aquele amor se chamava Shannon. Por coincidência, tinham o mesmo curso de biologia, e bom, era difícil não reparar nela. Seus cabelos sempre viviam soltos, sua pele morena e o jeito tão único de se vestir – coturnos, um choker enfeitando seu pescoço, brincos grandes, jaqueta de couro, camisas de bandas antigas e shorts curtos rasgados –, a tornava uma figura saída de alguma gangue.
Shannon e Carolyn eram unidas e sabiam cuidar uma da outra. Tinha sido um alívio ter alguém que não mais a abandonasse ou a protegeria dos perigos desde que se arriscou procurar respostas sobre os assassinos cruéis de John, pois seus outros amigos – incluindo Elizabeth –, abandonaram-na sem aviso nos tempos de outrora.
A amizade entre elas duas surgiu de uma forma totalmente natural. No começo, as pessoas comentavam muito em seu perfil do Facebook, desde a noite do show sobre a garota “maneira” de cabelos roxos; porém, logo evoluiu para algo maior do que apenas uma simples amizade. Carol não negava se lembrar de Lizzie naquela época. Shannon e ela sempre estavam juntas; a namorada lhe fazia sorrir boba com seu jeito brincalhão de ser e, graças a sua confiança, Meyer voltou a tocar violão e cavalgar até o Grand Canyon, uma coisa que herdou de seu pai.
Porém, como um doce, aquela felicidade não durou muito. Charlotte não conseguia aceitar o namoro da filha, e muitas das vezes as duas brigavam feio por isso. Sua família não pensava a respeito sobre orientação sexual. A matriarca não se incomodava sobre sua filha gostar de garotas, ela só sabia o quanto Boswell parecia suspeita por trazer drogas e ficar bêbada junto da filha mais velha. Mesmo com os altos e baixos, tiveram que se separar por tempo indeterminado.
Carolyn não deixava de trocar algumas ligações com a namorada durante a madrugada em que o sono não vinha devido à sua rotina desgastante. O que lhe doía todos os dias era saber que sua mãe só ficaria satisfeita se ela parasse de dizer sobre seu passado, dedicar-se aos estudos e conseguir um bom emprego.
Alguns meses se passando, Charlotte e Sean descobriram que a mais nova tinha brigado e pichado o espelho do banheiro da faculdade os seguintes dizeres: “Me mandem para o inferno se quiserem! Mas nunca vou parar de odiar essa pessoa babaca que apronta pra caralho aqui!” Ao dar o recado a rebelde, fugiu e declarou sua expulsão, não voltando mais para a universidade dos sonhos. Aliás… os sonhos da sua mãe.
Ninguém perguntou sobre a briga, mas a direção afirmou que era pelos problemas de socialização e pressão psicológica. Carol, então, retirou os pertences do armário e voltou para casa.
Ao sair, inesperadamente, Meyer soube que Shannon havia desaparecido em uma noite de festa da fraternidade, então entrou desesperada e mais arrependida pelo que aconteceu. Ela estava sozinha e sobrecarregada, mas precisou saber por que Shannon havia sumido.
Voltando para a realidade atual, a garota de cabelos roxos conseguiu invadir os fundos da biblioteca para resolver um problema e uma dívida com Juan Escuella, sendo esse rapaz também envolvido no desaparecimento da ex-namorada. Ela estava cansada de ver aquele idiota não falar nada, então falou na vez dele:
— Eu já estou com a droga do dinheiro! O que me interessa é saber dessa festa. Você disse que viu a Shannon saindo, e pra onde ela foi?! — falava afobada e preocupada, batendo os pés no piso e fazendo ecoar o som côncavo da sola de suas botas.
— Ela saiu sem avisar, foi isso que aconteceu — Juan ajeitou a postura, respondendo ameno e revirando os olhares sem parar. — Agora me dá o dinheiro da erva e saímos satisfeitos, si?
— Nem fodendo, eu sei que está mentindo! — ela apontou raivosamente para o rosto do mexicano, deixando-o assustado pela reação. — Não é possível que ela tenha saído assim. Você esteve no mesmo momento e na mesma hora quando ela desapareceu!


•••


No momento em que estava estudando, Elizabeth deslocou-se do ambiente pelo barulho proeminente que escutou de uma conversa dos fundos. Ela teve certamente um desfecho intenso composto por raiva e rivalidade entre os supostos indivíduos, que desconfiou somente pelo tom das vozes.
Intrometida e ambígua, Lizzie aproximou-se pausadamente da última estante do corredor, escorando as costas em livros fechados e organizados determinadamente na ordem alfabética. Ela tentava ser discreta o suficiente para nenhum dos dois vê-la ou acharem que havia alguém sabendo do assunto.
Carol rangia os dentes, segurando e engolindo em seco, mesmo apertando os punhos frequentemente, porque Juan só ria e desviava do assunto, tratando suas preocupações como piada.
O mexicano tomou seu lugar de fala, então a respondendo da seguinte forma:
— Carol… Neste mesmo dia, a única coisa ter aparecido e em comum foi ela saindo. Te garanto que não falamos nada. Eu estava fazendo outra coisa, e ela só saiu entregando os 900 dólares que devia pro Chad — explicou cinicamente, com uma das mãos acima do queixo e olhando a jovem desamparada. — Estou fodido, tanto mentalmente quanto fisicamente. Você acha que brigando desse jeito comigo com tanta hostilidade deixaria seu pai feliz?
— Que merda você está falando?! — falou ríspida. — Não intrometa meu pai nisso!
— Seu pai está a sete palmos embaixo da terra. Ele está morto! — Juan decretou o pior, como se fosse óbvio. — O meu só sabe viajar e estar ausente desde meus cinco anos de idade. Pra mim também é como se estivesse morto! Quem garante que ela também não esteja na mesma merda? Acabou! Pare de ir atrás disso!
— Cala a boca! — o grito desesperado e furioso chocou o rapaz, que teve o rosto atingido com um soco. Depois, foi puxado pela gola da camiseta cinza, e Carol berrou contra sua vontade: — Você não sabe nada sobre mim, nem do meu pai! Estou farta de tudo isso e quero logo de uma vez saber, onde ela estava?!
— Tudo bem… — ele a empurrou fortemente ao revisar um golpe violento no estômago. Em seguida, tirou um canivete suíço do bolso, revelando a faca pontuda. — Já que você não vai me dar o dinheiro e me tirar dessa história idiota, cariño, você terá o que merece — malicioso e perverso, Juan caminhava até Carolyn, pronto para dar seu fim.
— O quê? Não faça isso! Por favor, senão vou gritar! — levantou com dificuldade, implorando de mãos erguidas contra seu rosto, tremendo-se toda.
Grayson não podia ficar parada, senão uma moça estaria morta em sua frente. Ela correu rapidamente e, no exato momento em que Juan mataria Meyer, uma pequena borboleta de asas coloridas, junto ao perfeito tom de âmbar, sobrevoou seu rosto.
Seus passos estavam sem ritmo, e o mundo de repente pareceu parar de girar. Ela virou a cabeça para frente e para trás, e, no mesmo instante que ouviu um grito de horror, tudo aquilo desapareceu como se nada tivesse sido real.
Sons de conversas ecoavam pela sala e fizeram com que Lizzie acordasse do pavor ainda mais perplexa. Ela ergueu a cabeça ao perceber que estava sentada e vendo David pedir silêncio para a turma. “Eu estou lúcida?”, a estudante pensou.
— O sono da beleza te pegou antes da explicação, senhorita Grayson? — indagou ríspido o professor, batendo os pés na madeira.
Talvez ela realmente soubesse como voltar e mudar as realidades em contratempos. Se aquilo aconteceu horas atrás, então talvez pudesse acontecer outra coisa, algo que não prejudicasse ou salvasse a garota que morreria nas mãos de um aluno frio e sociopata.
Elizabeth, sabendo o que aconteceria, decidiu então dizer exatamente a mesma resposta de horas atrás e responder de forma correta:
— Desculpe! — ajeitou a postura. — Do que o senhor estava falando?
— Pois bem, agora me diga quem é o autor dessa frase.
David novamente escrevia na lousa e a lia com sua voz embargada e séria. A garota tinha a resposta na ponta da língua e a mudaria com certeza. Aquele era mais um passo para mudar um erro do presente – era agora ou nunca.
“O bater das asas de uma borboleta, num extremo do globo terrestre, pode provocar uma tormenta no outro extremo no espaço de tempo de semanas.”
— Edward Lorenz — a garota ergueu a mão, atônita e sorrindo torto.
— Meus parabéns! — David falou orgulhoso e animado. Era muito melhor ver aquele professor agindo assim. — Como um prêmio você será dispensada da apresentação. É aluna nova e nem precisa demonstrar tanto potencial.
“Ele disse mesmo isso?”, pensou. Lizzie não soube responder mais nada; estava sem resposta alguma e chocada pelo que acabara de fazer.
— Não, o senhor pode deixar que eu faço o trabalho e a apresentação — afirmou a primeira coisa vinda de sua mente.
— Certo, me entregará até o final do mês — ele ajeitou os óculos e virou-se para o quadro-negro.
— Mas isso não é possível… — Lizzie falou consigo mesma, notando que seus pés mexiam sem parar. O tic-tac do relógio voltava a funcionar normalmente. Seria um novo começo para mudar as coisas?
Virando-se para o campo de visão da jovem rosada, também foi diferente. Ela ao menos elogiou ou costumou falar sem parar:
— Grace? — Elizabeth chamou a sua atenção.
— Nos conhecemos? — a mais nova perguntou, duvidosa.
— Sim! Você veio do Arkansas, né? E está cursando literatura contra sua vontade — Lizzie começava citar do que se lembrava sobre Brighton. — Gosta de Virgínia Woolf!
— Uau! É algum tipo de adivinha? — Grace se impressionou. — Elizabeth, né?
— Isso! — era estranho demais recomeçar do zero. — Você pode me apelidar de Liz, caso queira.
— Eu ia te perguntar isso! — sorria boba, balançando a cabeça. — De onde você é?
— Crystal Eyes — respondeu novamente sobre sua origem. — Conhece alguém de lá?
— Minha amiga, Marie McFarlane. Ela cuida de um rancho — sim, Lizzie não estava mesmo maluca. — Rancho Dickens!
— Sim… o Dickens — suspirou, quando de repente o sinal do último horário tocou.
A estudante levantou-se do seu lugar e, antes de correr para a biblioteca, foi puxada pelo braço esquerdo, vendo Grace alegre e compreensiva:
— Nós também somos amigas?
— Sim, Grace! — Grayson assentiu. — Seremos boas e grandes amigas, Brilhinho.
A rosada riu envergonhada pelo gesto intimidador da colega.
— Tudo bem! Nos vemos por aí — as garotas viraram seus caminhos diferentes.
Ela estava confusa sobre seus poderes e do que acabou vendo frente a frente, mas a dúvida ainda surgia: o que de fato aconteceria se também mudasse os erros do passado no longínquo ano de 2006? E se John estivesse vivo? Ela estaria feliz? Ou se conseguisse trazer Shannon e impedisse seu desaparecimento?
Elizabeth parecia estar com uma pulga atrás da orelha, não conseguia aceitar facilmente essa ciência. Mas se conseguia controlar o tempo, então controlava qualquer coisa, ou até consertava um objeto quebrado sem sair do lugar.
Sem delongas, a jovem acelerou seus passos e deixou o objeto velho de lado, enfim correndo para a imensa biblioteca. Entrou no lugar onde o sádico mexicano de cabelos cacheados levantava a faca tirava o canivete do bolso. Foi quando Lizzie pegou um dos livros da estante que estava escorada da outra vez e esperou o momento certo para impedi-lo.
— Já que você não vai me dar o dinheiro e me tirar dessa história idiota, cariño, você terá o que merece…
Entre o balançar de seu rabo de cavalo pelos passos rápidos, Elizabeth atacou o livro no rosto de Escuella antes que pudesse “matar” Carolyn. No mesmo instante em que a dos cabelos claros se escondeu, o rapaz deixou sua arma cair e bater no chão.
Meyer, não estando mais em pânico, desferiu uma sequência de chutes e teve a oportunidade de fugir pela porta da saída.
Elizabeth salvou a pessoa que um dia fora sua amiga. Porém, isso demoraria para ser esclarecido como gostaria, e a primeira volta no tempo demonstrou mais descobrimentos.


Capítulo 3

Aparentemente aquela ilusória mudança no contratempo igualou-se a um inesperado caos na realidade. Apesar da catástrofe que Lizzie impediu, diversas coisas ao seu redor causariam consequências futuras. Quando salvou Carolyn das garras do insano Juan, Elizabeth tentou acreditar em outra possibilidade no momento, uma em que ela não interromperia o homicida. Mas a amiga obviamente estaria na cadeia cumprindo pena ou a matriarca sofreria assim como na morte do ex-marido.
Lizzie continuava ainda na mesma situação ádvena. Sentia-se dentro de uma aventura não-planejada; entretanto, possivelmente capaz de alternar sua vida por completo de forma despretensiosa, e tudo mais lhe pegava de surpresa.
Digitando sem parar nas teclas do notebook, Grayson lia e relia inúmeras páginas sobre o assunto “efeito borboleta”, que originalmente soube ter algo a ver com sua habilidade. Porém, um artigo que chamou sua atenção havia o seguinte trecho encontrado no tema “imprevistos decisivos”:
“A essência da teoria do caos é que uma mudança muito pequena nas condições iniciais de uma situação leva a efeitos imprevisíveis.”
Ela analisava com calma e entendeu mais ou menos a essência da teoria – uma simples e pequena mudança, embora fosse mínima, nas condições iniciais de uma situação, levava a efeitos imprevisíveis. Então, sim, era real e possível mudar o tempo se ela quisesse.
Sua situação tornou-se muito mais realística. Inclusive, nem queria pensar no dia seguinte e ter que contar para o diretor sobre o ocorrido na sala de leitura. Lizzie até entendia que não dava a mínima para o assunto, pois não era problema dela; no entanto, relembrar do semblante vingativo de Escuella amedrontou a garota mesmo não olhando diretamente para seu rosto.
Após estudar e checar suas redes sociais, decidiu repousar na cama. Foi quando percebeu o quanto seus pensamentos ruins nunca a deixariam em paz.
Lizzie tocou a lua dourada que pendia em seu pescoço. Sob a ventania da janela, afastou os cabelos caídos em seu rosto e aguardou o sono surgir para poder fechar lentamente os olhos enquanto as estrelas do céu desapareciam.
Iria procurar respostas a partir de outro momento e começaria através da pessoa que certamente conhecia os tempos atuais de Crystal Eyes, e melhor do que ela.


•••


O amanhecer despontava no Harvey State, e as alunas despertavam e conversavam entre si nos dormitórios. Grayson saiu de seu quarto caminhando pelo corredor e testemunhando garotas que riam e dançavam músicas latinas. Não tinha se preparado para se socializar como de praxe; porém, preferiu cumprimentar todas que passavam por ali.
Durante alguns minutos, Lizzie encontrou o mural de anúncios e notícias que rolava atualmente: esportes, moda, teatro, jogos. Era o entretenimento de todo o público, e, pelos cartazes coloridos, muitos chegavam para ver.
Ela ficou atenta por um momento e ali percebeu que haviam retirado os pôsteres de desaparecidos com a imagem de Shannon. Afinal, ninguém deu mais extrema importância, e de fato aquele assunto deixava Elizabeth preocupada.
Virando para frente e revirando os olhos entre diversas portas escancaradas, notou alguém acenando e chamando seu nome – Grace e Camila estavam dentro do quarto que parecia ser da rosada. Dando de ombros, a estudante seguiu em direção às duas e fechou a porta a pedido de Grace.
O quarto dela era imenso e colorido, mostrando bem sua personalidade. O tapete era incrivelmente peludo e cor-de-rosa; as figuras de ação de vários animes junto aos livros estavam empilhados na prateleira. Na prateleira com um espelho em formato de coração, estavam maquiagens e escova de cabelo. Na parede, desenhos, instrumentos de corda e uma televisão de tela plana com um Playstation 4 novíssimo. Lizzie considerou aquele ambiente um quarto de criança.
“Grace é tão única nesse espaço… Quem me dera expressar quem eu sou assim”, pensava enquanto analisava o dormitório.
Todas as fotografias coladas na parede cor salmão foram tiradas de uma polaroid antiga. Nelas havia uma garota alta e loira abraçada com Brighton atrás de um celeiro. Suas roupas consistiam em um estilo mais rural: camiseta branca, macacão jeans azul, coturnos marrons, e usava o cabelo trançado encoberto por um chapéu rústico. O rosto dela tinha diversas sardas, seus olhos eram caramelos, e o sorriso doce era também um pouco engraçado pelos dentes da frente serem separados.
Elizabeth deduziu que fosse Marie McFarlane, a pessoa que cuidava do famoso rancho da cidade atualmente.
— Achou meu quarto bonito? — Grace arqueou a sobrancelha em interrogação, esperando Elizabeth respondê-la.
Envergonhada, a dos cabelos castanhos sorriu sem mostrar os dentes. Então, afastou-se da parede e voltou a olhar para a rosada:
— Tem muita personalidade — cruzou os braços e balançou a cabeça. — Enfim, do que estão conversando?
— Nada importante — Camila respondeu por ela. — E você, garota nova? Soube que ficou com o quarto da Shannon.
— Todo mundo só sabe comentar sobre isso agora? — indagou, indignada.
— Desculpa — respondeu, rindo sem humor. — A Tracy foi quem espalhou, ela não para de ser o centro das atenções.
— Às vezes me pergunto por que você é amiga dela — a rosada riu.
— Preciso de estilistas para as peças — Valdez retrucou, enrolando os fios de cabelo nos dedos pelo nervosismo. — Falta figurino, já te falei sobre isso.
— Esquece! Não me incomodou! — se redimiu, percebendo sua atitude. — Me deixei levar.
— Não ligue para os boatos, Liz — Grace consolou a mais alta. — É a primeira vez que alguém desaparece nesse lugar, todo mundo está curioso.
— Eu sei — Elizabeth empurrou um banquinho de madeira para se sentar, suspirando logo em seguida. — Devo estar nervosa à toa. Diversas coisas aconteceram em tão poucos dias comigo.
— Quer nos contar? — a rosada se preocupou pelo semblante cabisbaixo de sua colega. — Podemos te ajudar, se quiser.
— Vocês vão me achar louca se eu contar.
Elizabeth queria contar a verdade em algum momento, mas sabia o quanto se arrependeria. Camila parecia nada confiante, mesmo agindo tão gentilmente.
A estudante baixou o olhar de forma incomodada. Estava se sentindo diferente, ou talvez insegura consigo mesma? Por duas moças que diziam ser suas amigas até um instante atrás, várias opções e respostas rodavam na mente dela, dando a entender que aquela sensação não era exatamente uma má ideia.
Imaginou facilmente mais outra forma de testar seus poderes, por isso preferiu sequer responder a qualquer coisa errada.
Elizabeth se recompôs, ergueu a cabeça e soube exatamente sua decisão. Poderia ou não dar certo, todavia pensou logo de uma vez no assunto.
— Eu consigo controlar o tempo — revelou rapidamente, ouvindo risadas das colegas. — Sei que parece loucura, mas é verdade!
— Tipo o quê? Saber o que acontecerá no futuro? — Camila indagou com desdém na fala. — Conta outra! Isso é impossível!
— Espera, pode ser mesmo verdade — Grace exclamou, desesperada. — Mostre para nós, o que vai acontecer?!
— Bom… Eu não prevejo o futuro — respirou profundamente com as mãos no joelho. — Mas acho que posso voltar alguns segundos no passado.
— Sério? Então tá! — a latina ajeitou a postura. — Mostre os seus “superpoderes”. Como eles funcionam?
Seus “superpoderes” dariam uma segunda chance nas previsões de Elizabeth dependendo do que erraria. Aliás, ela soube exatamente como voltaria segundos depois. Lizzie manteve a mente aberta, mas os olhos fechados. Usando uma técnica de se concentrar através dos sons e batidas atrás da porta, ela foi a única a ouvir duas garotas discutirem feio do lado de fora, e essas moças tinham ligação com o futuro – Lizzie sentiu isso num instante.
Uma porta escancarada surgiu com alguma garota loira e raivosa batendo-a com força. Ainda assim, os risos maléficos perturbavam os arredores. Sua voz implorou por ajuda, chorando desesperadamente. Automaticamente, Elizabeth tomou iniciativa e se arriscou a salvar outra pessoa.
As vozes invadiram o lugar; risadas altas e gritos ensurdecedores chocaram-na, e rapidamente os vibrantes olhos azuis abriram rapidamente junto a uma respiração ofegante. Lizzie pressentiu o perigo, e aconteceria novamente da mesma forma se não tomasse iniciativa.
— Calma! Está tudo bem, foi só um susto — Valdez e sua melhor amiga tentaram ajudá-la. — Viu alguma coisa, não viu?
Sim, ela ouviu e percebeu uma consequência futura para resolver. Entretanto, Elizabeth sabia bem que continuava sendo a hora errada para revelar seu segredo, então virou a cabeça para os lados e estendeu sua mão esquerda rente ao seu rosto, percebendo os arredores girarem e distorceram a imagem do dormitório.
Voltou lentamente o momento em que Camila e Grace pediam para ela mostrar os seus poderes. Então, Lizzie voltou a abrir seus olhos e ouviu novamente a mesma pergunta da mexicana:
— Uma garota estará correndo perigo aqui! — num relance, Elizabeth soltou ao ouvir os mesmos gritos atrás da porta.
— Oh, não… — as duas reconheceram a voz; era Marie sendo xingada por Roberta. Elas não aceitariam aquilo, precisavam dar um basta antes que fosse tarde demais. As colegas também ouviram e, assustadas pela previsão, encontraram a garota loira que Grayson reconheceu, irritada pelos risos das outras.
— O que foi, Marie? — Roberta deu um passo à frente; seus lábios vermelhos repuxaram um sorriso maníaco. — Esqueceu de tirar fotos dessa sua cara ridícula? Ou vai me falar se foi verdade ter mesmo colocado aquele lindo aviso de “puta metida” no meu armário?!
— Roberta, deixe ela em paz! — Camila segurou o braço da mais alta em forma de protesto. — Ela não xingou ninguém! Já disse sobre parar de descontar a raiva nela, Marie é inocente!
— Cala a boca! — gritou ríspida com Valdez, vendo-a se afastar. — Não adianta defender! Ninguém me xinga pelas costas!
— Deixa ela! — Marie levantou-se com dificuldade, colocando o chapéu de volta na cabeça. — Eu juro, se você fizer alguma coisa com ela…
Quando terminou, Hernandez recebeu de Marie um empurrão. As duas brigaram ali, até que num instante Lizzie e Grace impediram a briga das duas.
— Já chega! Chega! — gritou a rosada. — Roberta, o que está acontecendo?
— O que está acontecendo? — alarmou, incrédula. — A amiga de vocês pichou meu armário, foi isso que aconteceu!
— Eu não tenho nenhuma tinta spray na minha bolsa! — exclamou a moça de olhos caramelos enquanto cruzava os braços. — Estava tirando fotos para o trabalho!
— Talvez você tenha só se confundido, Roberta — Elizabeth não estava gostando daquela briga mesquinha. Roberta parecia mesmo o tipo de mulher perfeccionista que detestava ser contrariada. A mais alta encarou a novata, depois riu em escárnio. — Bom… Eu dei meu palpite!
— Palpite? Huh, me poupe! — Roberta não gostou nada da atitude das alunas;, sua carranca desprezível entregava tudo. — Pois bem, garota dos livros, saiba que nós duas não iremos nos dar bem aqui, não sabe? — apontou o dedo indicador sobre o rosto de Grayson, que franziu o rosto como resposta. — Eu tive mesmo a certeza que Marie fez aquilo! Posso estar errada, mas quero que entendam uma coisa… Eu sou a mulher mais rica dessa merda de faculdade! Se eu ver alguma de vocês me julgarem, podem declarar a expulsão!
Roberta manteve a pose blasé para Elizabeth, revelando as sobrancelhas confusas. A elegância de seu andar hipnotizou-a sem querer, assim como outras alunas também souberam que a invejável e lustrosa Hernandez sabia ser prestigiosa apenas pelas roupas importadas e brincos belos de diamantes pendurados, enfeitando as orelhas de uma rainha nobre.
Ainda imóvel e sem saber o que dizer para a latina, Lizzie afastou-se aos poucos dela, percebendo uma corajosa Camila e uma debochada Grace defendendo sua pele da patricinha – que, embora tivesse dinheiro e poder, não era capaz de ver o bom lado das pessoas mais simples –, irritada, batendo o salto alto no assoalho.
Camila e Roberta sabiam muito bem se entender quando o assunto era a importância de suas amizades, pois seus pais eram melhores amigos; ambas as meninas cresceram juntas na América.
— Não adianta ameaçar a coitada sem motivo! — Valdez repreendeu o argumento da mais alta. — Todos sabem que nossas famílias são importantes na cidade! Só é errado você ridicularizar os outros por não quererem aceitar sua opinião.
Elizabeth, até a presente situação, preferiu evitar adversidades entre as garotas, que de fato demonstravam ser especiais. Não foi necessário voltar no tempo para consertar isso.
— Ela está certa — falou finalmente sem pensar, mesmo tendo deixado o momento desnecessário. — Vamos parar de brigar, é imaturo pensar assim. Antes disso, quero pedir uma coisa para você. Roberta…
— Sou toda ouvidos — ela cruzou os braços, orgulhosa de si. — Desembucha!
Cogitando o processo bem altruísta, vieram duas oportunidades para a latina abastada dar liberdade às duas garotas e terminar o assunto. No entanto, Marie afirmou ser inocente. A estudante por fim decretou a seguinte proposta – algo que fez Roberta se interessar bem mais na novata, escondendo suas más intenções.
— Que parem de espalhar boatos sobre mim e a garota desaparecida — afirmou. — Podemos fazer o seguinte: você deixa minhas amigas em paz e a gente esquece toda essa história.
— Certo. Parece interessante. De qualquer modo, já desconfiava que você era próxima de Shannon. Creio que essa nossa discussão não vai chegar a lugar nenhum, então encerramos por aqui — deu de ombros, saindo de trás de Grayson.
— Então, estamos de acordo? — aguardou a garota respondê-la, sentindo-se conforto ao olhar para o semblante reprovador da Brighton. Não escolheu de imediato aquilo que estava acontecendo, portanto era melhor resolver assim. Nem conhecia aquela aluna totalmente.
— Elizabeth — Grace sussurrou em seu ouvido antes que pudesse falar —, você acha mesmo isso certo? Ela é uma Sierra Hernandez, é quase dona da metade desse estado. O pai dela é o maior corrupto. Quer mesmo confiar nela?
— Não é justo voltar no tempo por esse motivo — falou o mais baixo possível. — A melhor forma de conquistar respeito é mostrando confiança, mesmo sabendo que esta pessoa vai mentir quando virar as costas. Não importa quem seja, é mais fácil ter respeito ao invés de uma falsa amizade.
— E se precisar dos seus poderes? — murmurou, então Lizzie concluiu.
— Terei outras e mais outras opções! A primeira opção é única agora, não posso rejeitar.
— Sim! Estamos de acordo — a patricinha virou para frente, mantendo a clássica pose elegante. — Qualquer dia desses podemos ir até minha casa. Te mostro meus sapatos, roupas, jóias. Hm… e meu irmão, ele é um gatinho!
— Obrigada pelo convite, Roberta — a mais baixa estendeu a mão educadamente, saindo um sorriso ladino da mexicana. — Tenho certeza que vou gostar muito de conhecer sua casa.
— Que ótimo! — bateu as palmas das mãos, gloriosa de si. — Enfim, até breve, meninas. E peço desculpas pela minha grosseria, principalmente com você, Marie.
— Oh, desculpas aceitas — ironizou. — É bom saber que seus homens não vão mais invadir a fazenda da minha família, certo?
Elizabeth olhou a mimada sair, sem responder mais nada. Depois, notou as amigas dando de ombros. Sem muito assunto, retirou-se e avisou que as encontraria no final da aula, entrando novamente em seu quarto. Arrastou uma cadeira e observou sua expressão aborrecida no reflexo da janela.
Não podia lutar contra ninguém. Tinha certeza que Harvey State era cheia de mistérios, e a sensação de medo lhe trouxe um aperto no coração. Elizabeth, por sua vez, encontraria um meio de consertar as coisas, mas sem precisar voltar por alguns segundos no relógio.
Durante os devaneios, percebeu que a aula ia começar, então saiu correndo para não chegar atrasada. Pegou sua bolsa e trancou a porta do dormitório; os estudos eram mais importantes no momento.


•••


Foi chocante saber aquela informação, nem a própria Grayson acreditou. O tão memorável rancho Dickens, o lugar onde viveu boas recordações, também se tornaria propriedade dos Sierra? E por qual motivo? Criou-se um mistério sobre o assunto. Era óbvio que Roberta teria algum tipo de patriarca quase milionário, portanto a teoria mais razoável com certeza foi tomar o rancho para arruinar a vida dos McFarlane, ou simplesmente provocar a fotógrafa rural que tanto odiava.
Os estudos e discursos do professor lhe davam dor de cabeça. Elizabeth queria muito manter o foco. Infelizmente seus instintos de preocupação diziam outra coisa, e certamente não estava tão interessante como costumava ficar nas matérias.
Ela girava a caneta em círculos pela folha do caderno aberto, tendo ideia nenhuma para prosseguir ou responder às questões. A garota sobrepôs o dorso da mão em seu rosto, monótona e entediada. Brighton, sentada perto dela, parecia refletir sobre algo, até em certo momento notar um rapaz familiar nos fundos. Lizzie relembrou-se do jogador que alegou ser primo de Shannon antes de retornar para outra realidade.
O semblante triste de Brandon revelava estar preocupado com o desaparecimento da parente distinta, pois era o único a se importar com sua existência; os pais dela ligavam diariamente para a polícia. O caso não foi adiante e os cartazes nas ruas estavam envelhecendo.
— Aquele é o primo da Shannon, certo? — Grayson perguntou para sua colega ao lado que assistia aos slides do datashow.
— Ah, o Wiles? — indagou confusa, notando o moreno solitário. — Não o conheço muito bem, nem sabia que era primo da Shannon.
— Eu soube — disse Elizabeth —, e sinto que ele é o único que se preocupa verdadeiramente com ela.
— Olha… Acho ele muito bonito, vou ser sincera — admitiu —, mas infelizmente namora a Tracy, se é que ainda estão juntos.
— Isso não me interessa, sinto que vou precisar falar com ele. É estranho, mas acredito que vou.
— Se você diz, quem sou eu pra te julgar, Liz? — declarou, simplória. — Seus poderes tem significado desde o passado, presente, futuro.
— Não querendo me gabar, mas concordo com sua opinião.
Brighton decidiu comentar sobre a briga:
— Mudando de assunto um pouco — a rosada olhou fixamente para a mais velha —, que foi aquilo no dormitório? Por que aceitou ir na casa de Roberta? Ela não é confiável!
— Só porque ela não é confiável que eu devo ficar calada? — franziu o cenho, alarmada. — Nada se resolve com violência.
— Mas se resolve com vingança — concluiu. — Marie pode perder a fazenda do tio dela, sabe… Ninguém até hoje sabe o que houve em um dos celeiros. Tem uma história sobre um homem ter morrido muitos anos atrás, sei lá.
— Fala de John Meyer? O pistoleiro fora da lei?
— Esse cara aí! — assentiu. — Dizem que o espírito dele vive lá pra ameaçar e matar quem chega perto do lugar, mas talvez seja só lenda do povo.
Grace e Elizabeth não deixaram de rir sobre o conto bizarro inventado pelo povo. Crystal Eyes costumava ser tradicionalmente preenchida por lendas diferentes enquanto gerações e gerações passaram ao longo dos anos, mas aquela sobre John estava longe de ser real.
As estudantes começaram a se conhecer melhor; Grace era uma garota especial, boa companheira. Seu jeito lembrava o de Carolyn quando criança, tão meiga e brincalhona. Diferente de Meyer, ela tinha seu pai vivo. Ambas eram tolerantes e meigas o bastante naquela época. Talvez era isso que faltava, um pouco de alegria.
Os cabelos rosados lhe trouxeram a tranquila nostalgia; vê-la sorrir foi como olhar para a pequena Carol segurando suas mãos até o balanço.
— Você está inventando! — deu-lhe um empurrão. — É mentira, né, sua boba!
— É… Inventei sim — admitiu. — Esse caso foi esquecido. Aquele celeiro velho também não adiantou de nada.
— Então vamos investigar, o que acha? — Lizzie sugeriu, precisando saber como estava aquele rancho. — A Marie vai estar lá?
— Precisa ser hoje?
— Pela manhã. Encontrarei vocês no estacionamento — Elizabeth ouviu o instrutor pedir para guardarem os materiais, encerrando a aula. — Tenho algumas pesquisas para o trabalho, vou aproveitar o fim de semana para irmos lá.
— Tudo bem — Grace sorriu, seguindo seus passos para fora da sala. — Vou falar com ela. Até amanhã!
— Até! — acenou as mãos, andando até o pátio.


•••


Escrevia, apagava, errava uma palavra. Seus textos sucintos iam de mal a pior. A biblioteca costumava ser o lar das ideias, no entanto, sua paz desapareceu após presenciar um quase assasinato. Porém, enquanto as palavras fluíam na folha avulsa do fichário, Elizabeth queria logo terminar aquele trabalho, só não sabia como. As indicações de livros encontradas na internet demonstraram ser úteis até certo ponto, lhe restava mais tempo e atenção.
De repente, sons de passos invadiram sua mesa; assobios e um estalar de dedos se aproximaram. Ao virar para trás, notou seu professor puxando uma cadeira próxima da aluna. David olhou de soslaio para a jovem, tão bonita e dedicada nas atividades.
Grayson cumprimentou o homem, logo puxando assunto:
— Estudando para o trabalho?
— Sim — exclamou, animada. — De vez em quando dou uma pausa. Essa pesquisa levou muita coisa para revisar.
— Entendo — ele cruzou os braços, atencioso e observador. Não conseguia parar de encarar a garota, achava-a tão bonita, principalmente os olhos azuis radiantes. — Por que anda desatenta em minha aula? Percebi estar nervosa. Aconteceu alguma coisa?
— Comigo? — balbuciou, encaixando os dedos das mãos, demonstrando timidez. Ela ao menos sabia o que tinha, nem tristeza e nem felicidade, só alguém avoada e neutra com seus sentimentos. — Eu não sei exatamente, ando me sentindo estranha.
— Uma garota como você não merece se sentir estranha — o homem mostrou-se intimidador, sequer revelou interesse amoroso. Mas Lizzie percebeu o quão ficou desconfortável perto daquele professor misterioso. — É escritora, não?
— Não! Estou descobrindo outros talentos no momento, se é que alguma habilidade — riu. — Também algumas pessoas daqui costumam ser diferentes e mal educadas. Pareço incomodar toda conversa que participo.
— Quer um conselho? — ele ajeitou os óculos do rosto. — Quando estiver chateada ou preocupada consigo mesma, pense em uma estratégia inteligente de lidar com seu sofrimento, ou descubra um meio de mudar o futuro.
“Mudar o futuro é realmente algo bem previsível”, suspirou, batendo os pés embaixo da mesa.
— B-Bem, eu posso descobrir alguma forma de viajar no tempo… — disse em transe, olhando-o com os olhos semifechados, fazendo David questionar.
— Ora, ora! — pôs as mãos na cintura, orgulhoso. — Edward Lorenz anda te inspirando, pelo visto.
— Não necessariamente — falou entredentes. — Enfim… Tenho mais uma pergunta.
O mais velho cruzou as pernas no momento em que apoiou os braços na mesa. Ele procurava algo dentro de seu bolso, sua cartela de cigarros; entretanto, decidiu controlar sua abstinência por enquanto. Por mais misterioso que fosse, o professor presumia ser o mais discreto possível. E justamente perguntar sobre o campus facilitaria as dúvidas da aluna, além dos estudos que não compreendia.
Colocando os fios castanhos atrás da orelha e a posição ereta na cadeira, Grayson limpou a garganta, tendo medo do que seu professor responderia a seguir.
— Diga! — ele a notou desleixada antes de prosseguir com o assunto. — Não precisa ter vergonha, esse segredo estará guardado.
— Se o senhor conhecesse alguma pessoa que possuísse habilidades anormais, acharia comum? — questionou de forma implícita. — Habilidades a ver com o efeito borboleta ou outro poder em específico…
David, então, disse o óbvio:
— Senhorita Grayson, posso afirmar que essas teorias não foram comprovadas 100%. O mais possível é causar mudanças pequenas.
— Oh, entendo — a garota suspirou. — Então não é certamente verdadeiro.
— Nunca encontrei ninguém desse tipo. Para ser sincero, acharia essa pessoa no mínimo maluca.
— Muito obrigada pela conversa, professor! — Lizzie levantou-se do assento, recolhendo os exemplares. — Vou descansar, aproveitarei o fim de semana com algumas amigas amanhã.
— Divirta-se — o homem deu-lhe uma piscadela.
“Maluca? É… Acho que estou longe de ser normal”, ela pensou. Então, saiu andando para a estante dos livros de exatas.
Atrás das estantes, pôde ouvir algum casal discutindo em diversos sussurros altos e xingamentos sobre o episódio no dormitório. Lizzie reconheceu a figura mexicana dos cabelos alisados frente a frente com um rapaz, debochando dela sem vergonha nenhuma na cara.
Certamente não era da sua conta espiar ou ouvir fofocas; entretanto, estava fora de cogitação Roberta Hernandez – junto ao vulgo quase-assassino de Carolyn – falando da briga entre ela e McFarlane.
Elizabeth, embora não fosse fluente em espanhol, já imaginava qual era o problema além da garota: o celeiro dela.
Realmente cree esta palurda que puede ir contra mí? — bufou. — Mi padre depende del rancho! Las fábricas han ido a la quiebra desde la muerte de Quien Tú Sabes.
Juan cruzou os braços enquanto observava a patricinha andar de um lado para o outro, agitada.
Los Meyer nunca se cansarán de cuidar esa propiedad abandonada — sorriu de canto. — Esa pequeña perra que me atacó tampoco lo hizo.
Quién? Es, el ex de Shannon? Cómo te atacó? — exclamou boquiaberta; seus olhos quase saíram de suas órbitas.
“Carolyn, quem me dera se você estivesse aqui”, Elizabeth murmurou o mais baixo possível, sem que ninguém soubesse que ela estivesse ali.
Os dois enfim voltaram a falar em inglês, depois de Escuella pedir que a garota ficasse em silêncio para não atrair mais pessoas do outro lado.
— Ela me deve 800 dólares pela erva. O problema é ela estar mais desconfiada da Boswell. Se ela descobrir nossos planos, estarão arruinados!
— Você é mesmo um burro! — Roberta o xingou. — Ela está aproveitando do bel-prazer dela, te usando como isca! Quanto mais ficar exigindo o dinheiro, mais vai te tirar respostas!
— O que devo fazer então, espertinha?
— Hm… — a garota apoiou uma das mãos no rosto, sorrindo cruel ao criar um plano maligno em mente. — Só existe uma garota que está curiosa sobre Shannon por aqui.
— Quem?
— Elizabeth Grayson — mencionou a dos cabelos claros. No entanto, só não foi capaz de sentir a ansiedade nítida da estudante com o coração batucando muito no peito.
Devido aos sintomas estranhos e o calor que invadia seu corpo, Grayson decidiu ir embora tendo o suficiente das pistas. Ele estaria atrás dela, e também descobriria que ela foi a responsável de parar sua tentativa de morte.
— Ouviu isso? — Juan virava a cabeça para os lados. — Alguém respirou ofegante ou estou louco?
— Não ouvi nada — disse, insatisfeita. — Até mais, te encontro na fraternidade do Delta Gama amanhã.
— Ei! Ei! — ele a puxou pelo braço, fazendo-a se virar para o mais alto. — Quer que eu dê um susto na Marie por você?
Sensualizando, o rapaz colava seu corpo contra o da latina, pedindo um beijo, mas recebeu um puxão na orelha.
— Eu cuido das garotas, Don Juan — Roberta amenizou o tom de voz junto a um ronronar sedutor. — Livre-se das dívidas e não deixe a novata saber sobre você, nem de Shannon.


•••


Até aquele momento, Lizzie não podia acreditar em como as coisas ao seu redor sempre traziam surpresas inesperadas. Pensou que estaria sob controle; todavia, num piscar de olhos, Elizabeth certamente estaria encurralada. E o tempo se agilizaria para cada lugar que ela pisaria os seus pés. A garota não fazia a mínima ideia ou sequer pensava na reação que teria ao dizer que seus inimigos estavam em busca de vingança. Portanto, decidiu encontrar outro meio de controlar seus poderes antes que fosse tarde.
A jovem acabara de cair no sono, após chorar muito dentro do banheiro. Tirou as poucas coisas de dentro da mala e de lá pegou uma polaroid antiga de ambas as melhores amigas fingindo ser grandes vaqueiras. “Que saudades desse momento”, ela pensou melancólica.
Fechando seus olhos devido à exaustão, Elizabeth entrou na terra dos sonhos ouvindo o tic-tac do relógio sem parar. Descobriu que nem todos seus sonhos, mesmo não sendo reais, podiam ter significados piores no futuro. Lembrar do passado não de fato assustava-a, ela se sentia segura com as memórias. Porém, não soube consolar e descansar sua mente minutos antes.
Suas memórias doces revistaram sua mente toda vez que os olhos oceânicos encaravam a fotografia. Vozes e risos de outras pessoas chamavam atenção, todas conhecidas. E cada uma falava que um dia isso poderia terminar.
O clique da câmera surgiu, e Grayson de dez anos abraçou a loira, fechando o sorriso em seguida. Ficou aprisionada em um local conhecido e de lá viu John sorridente tirando a foto já revelada das duas garotas. Do jeito que viveu, ainda passando as férias escolares, sabendo tudo que aconteceria.
— Bela pose, grandes vaqueiras! — brincou o homem, vendo a filha rir tímida. Porém, a morena ficou confusa por estar ali. — Que foi, Lizzie? Está se sentindo bem?
Quaisquer tipos de plantas e dentes-de-leão invadiram o gramado, onde havia aquele balanço amarrado na árvore e uma brisa gélida. Era um rancho tão lindo e cheio de vida, sem contar o céu azul, tão radiante naquela tarde.
A garota ao seu lado trajava algo delicado – um farfalhante vestido florido de cor branca, que deixava seus ombros nus, e os esvoaçantes cabelos dourados cobertos pelo chapéu do patriarca. A elegância das botas de caubói só enfeitavam o clima de verão.
Quanto a Elizabeth, suas tranças castanhas, a jardineira jeans azul celeste pouco rasgada pelos joelhos e a camisa de desenho animado mostravam um pouco da inocência infantil que tinha. Olhando para baixo, suas botas também de caubói a fez sorrir introvertida.
Em meados de 2003, John e sua família tomaram uma vida mais tranquila fora do “trabalho” dele. Às vezes, investigadores e policiais avaliavam seu lar ou insistiam em interrogatórios. Prometeu não mais matar ladrões em troca de anistia, vivendo em segurança.
A menina distraída deu atenção aos dois já sabendo o que faria adiante. A nostalgia duraria por pouco tempo.
— Estou bem, senhor Meyer! — respondeu. — Fiquei perdida por um momento.
— Eu, hein! — Carol debochou. — Pensei que estaria parada assim só nas fotos.
— Ué, a culpa não é minha — mostrou a língua, repreendendo-a de forma divertida.
— Também não precisa zoar sua amiga — o mais velho saiu de cima do tronco em que havia sentado. — Vamos andando. Já, já vai escurecer. E a mocinha precisa ajudar sua mãe, não?
— Pai! — balbuciou, batendo os pés na grama molhada e seguindo os passos dele. — Ela é uma chata! Só sabe gritar e brigar comigo. Aí você me fode, né?
— Olha a boca suja! — ele a alertou. — Sua mãe está cansada, só isso. Mas ela te ama!
— Amava — arrumou o verbo. — Quando ainda era um bebezinho.
— Vocês duas são cheias de rivalidade — o pistoleiro riu anasalado. — É mesmo de família.
— Puxei isso de você! — Carolyn deu de ombros, aguardando a amiga andar até pai e filha.
Era uma noite calorenta quando chegaram na casinha de campo. Os arredores da fazenda mostravam a visão de galinhas e patos correndo para o galinheiro; vacas e bois eram mantidos cercados em um pasto distante. No entanto, era mais bonito ver pessoalmente do que na televisão. Um rancho rico em plantações, animais, celeiros e hortas.
Na infância, Elizabeth sentia-se dentro de livros juvenis, especificamente das tradicionais histórias americanas de tempos antigos. No pacato anoitecer, a esposa aparentava estar tranquila ao tirar as tortas de cereja das janelas e os biscoitos do forno, embora odiasse cozinhar naquela época devido ao trabalho que dava as receitas caseiras.
Entrando na casa, o trio encontrou a mesa decorada por uma toalha xadrez e uma mulher de semblante feliz, trocando afagos no rosto do marido.
Charlotte parecia uma camponesa de época vitoriana, sempre usando saias compridas, camisas de botão, coque alto realçando seu rosto fino, principalmente os lábios rosados e o sorriso branco. Ela servia café ao amado que saboreava um de seus deliciosos biscoitos de leite, enquanto a filha ao lado os olhava com certo nojo. Nada interessada em romantismo, apesar de sua idade mínima.
Será que o seu sonho pôde ter mais alguma ligação com seus poderes? Talvez sim, talvez não. Infinitas vezes, Grayson imaginou mil formas de criar uma mudança capaz de criar eternas raízes sob sua amizade, porém tinha medo de não ser a hora certa. Então, decidiu ignorar por um instante.
— Torta de cereja cremosa! — Charlotte anunciou para a mais nova. — Cortesia minha para você, pequena Beth! Sua mãe me disse o quanto gosta.
— Ah, muito obrigada! — disse contente. — Mamãe disse que ficarei aqui até o fim das férias.
— Estamos muito felizes em recebê-la! — a dona de casa revelou. — Carol fala muito sobre você.
— Certamente — a loira resmungou, cortando pequenos pedaços do doce. — Eu não seria nada sem ela! — a menina abria e fechava os olhos. O que Carol queria naquele momento era a companhia dela; contudo, Elizabeth apenas sorria e acenava educadamente.
Droga! Por que sentia-se boba escutando as gargalhadas deles? Não mais parecia ser aquela criança inocente voltando naquela época tão sensível.
Os Meyer eram animados e alegres. A menina sentia o estômago embrulhar enquanto pensava no futuro. Era uma pena aceitar que seria assim, um paradoxo injusto.
— Er, sim… — balançou a cabeça para os lados, vendo todos encará-la. — Também não seria nada sem a sua companhia!
Carolyn riu e continuou a comer com a menina entrelaçando os dedos finos nos dela embaixo da mesa. Sentiu um rubor em suas bochechas, pois a sensação era diferente da anterior.
Charlotte percebia John cantarolando depreciativamente a cada mordida. Ele nem precisava pedir mais para a esposa, pois já colocava mais no prato enquanto a olhava com o flerte que vinha usando há anos.
Os Meyer se divertiam na mesa com assuntos descontraídos, algo que fez Carol se animar depois das poucas discussões diárias com sua mãe.
— Nossa — Meyer se inclinou para trás após limpar o segundo prato de torta. — Acho que dormirei bem satisfeito depois dessa!
A mulher percebeu que o marido estava precisando de um banho pelas roupas incrivelmente surradas e o cabelo desgrenhado.
— Hm… definitivamente não! — Charlotte o encarou. — Você está terrivelmente imundo, e antes de dormir deixarei você limpo, nem que eu tenha que amarrá-lo para fazer isso.
— Não me importo em estar amarrado com você — piscou em zombaria, escondendo o sorriso enquanto limpava a mesa.
— Eca! — a filha do casal reclamou. — Podem fazer isso sem nossa presença, por favor?
— Carol, meu bem, pare de ser mal amada — a mãe pôs as mãos na cintura em uma carranca insatisfeita: — Vou ajudar seu pai, espero que arrume a mesa. Não mereço trabalhar dobrado!
— Tá bem — suspirou. — Boa noite!
— Boa noite! — John se levantou e seguiu a esposa. — Tomem cuidado caso se machuquem!
— Não se preocupe, senhor Meyer — a outra menina começou ajeitando as louças sujas para que sua parceira lavasse. — Iremos lavar e secar todos os talheres.


•••


Grayson sentia-se péssima em dizer qualquer palavra entre inseguranças e preocupações por todos seus acontecimentos da realidade atual perturbando a sua paz. Nunca achava algo profundo que realmente fosse capaz de distraí-la por muito tempo, ao secar tantos pratos guardando nos determinados armários.
Por fim, ambas as meninas entraram no quarto, o que foi outra surpresa para Lizzie. Ela podia novamente explorar os detalhes existentes naquelas paredes rosas com rabiscos registrados aos seus cinco anos. No centro do teto de forro de gesso, havia pendurado um lustre velho. O chão era feito com madeiras alternadas, e entre tantos móveis e brinquedos espalhados pelo chão, havia uma pequena estante de livros que costumava ler pela tarde. Duas camas firmes de colchão mediano tinham cobertores estampados com flores e travesseiros, tendo ao lado uma penteadeira com espelho redondo onde Carolyn fazia seus habituais e delicados penteados.
— Vamos brincar de bonecas? — A primeira coisa que Carolyn reparou foi sua boneca de pano ruiva da personagem Jessie do filme Toy Story, com Barbies e cavalinhos de plástico. — Ou quer assistir alguma coisa?
Lizzie estava sem opção. Vendo os brinquedos e filmes acima do vídeo cassete, entendeu que não queria nada, a não ser acordar de seu sonho. Porém, desejou passar algo marcante com a Meyer. Sua decisão foi assistir Shrek, um filme que lhe fazia rir e chorar de emoção, por mais que fosse genérico.
— Vamos ver Shrek — decidiu Elizabeth.
— Ainda não vi esse filme.
— Uh, bom… — ela percebeu que estava muito antes de quando foram ao cinema ver o filme. — Melhor que ir ao cinema, né? Seu pai alugou tanta coisa para assistirmos.
— Tem razão! Podemos ver, então!
Enquanto assistiam ao filme sobre um ogro apaixonado, dali em diante as duas amigas falaram de absolutamente nada a não ser comentários sobre as cenas.
Por um breve momento, até Elizabeth conseguir manter sua atenção naquele programa, seu peito causou um desconforto horrível e seu coração se descompassou em fortes palpitações. Suas mãos ficaram pálidas e suaram frio; todavia, a melhor opção seria se esconder no banheiro.
A única a estar feliz era Carolyn, e não ela. Pediu licença para a loira e novamente não esperou pela resposta; Lizzie foi rapidamente mas tentando ser discreta, por mais difícil que fosse agir como tal. Ela entrou no cômodo, trancou a porta, se encostou nela e notou aquilo sufocá-la. Não soube se ali era o lugar ideal para sofrer uma crise de ansiedade, mas só queria acordar, correr, talvez sumir da face da Terra e morrer ali, mesmo sabendo de seu destino terrível.
Pois aquele horrível sentimento – impossível de não controlar sequer seus poderes e emoções ou processar os fatos de forma mais racional –, era quase uma tortura psicológica, e até mesmo física, que agora fazia a mais nova estremecer inteira a ponto de perder a força de suas pernas.
Sentou-se, abraçou seus joelhos contra o corpo e desabou em lágrimas, tentando com todas as forças que restavam para sair daquele lugar, porém não conseguiu. Lá ficou Lizzie por um bom tempo, refletindo.
Houve um aumento brusco da sensação de ansiedade e medo de tornar seu mundo por ela quem quer que fosse o assassino de John naquele fatídico aniversário. Os desaparecimentos e seus sonhos de universitária sumiriam se fizesse a escolha errada. Aquele sentimento estava prestes a matar Grayson sufocada e entorpecida com suas próprias lágrimas.
Carol a ouviu atrás da porta ao notar a demora de sua melhor amiga, que gemia de tanta dor. Quando Lizzie percebeu a porta remexendo, disfarçou seu sofrimento ao dar descarga no sanitário tampado e limpou seu rosto com papel. Logo então saiu dali respirando ofegante e assustada; Carolyn observou seu semblante cabisbaixo e deprimente. Não dizendo nada, não lhe perguntou o porquê de ela estar chorando, pois se Elizabeth contasse, teria que se sacrificar pelo erro causado no tempo.
Tudo que restava era gritar e pedir para acordar de uma vez por todas.
Sem dizer absolutamente nada, Carol se afastou do campo de visão da menor e a levou para tomar um ar fora de casa. Suas unhas se aproximaram de seu ombro esquerdo, e Elizabeth a encarou logo reparando na sua intenção. Subitamente foi recebida por um abraço confortável enquanto batia suas mãos nas costas dela lentamente.
O abraço era diferente, reconfortante, e lhe livrou dos perigos. O balançar das flores ao luar trouxe poucos minutos de paz.
As meninas se sentaram na varanda. Carol aproveitou ao máximo antes de seu pai voltar e tocar violão na cadeira, pois, querendo ou não, sua mulher o inspirava.
— Você não anda bem, o que houve? — questionou. — Sabe que somente eu sei tudo da sua vida, pode me contar! Quero te ajudar, Lizzie.
— Vai achar que estou ficando louca — hesitou em um tom seco. — Andei pensando no futuro, o que pode acontecer com nós duas. Se nos separarmos.
— Lizzie — a chamou antes que pudesse chorar —, nos afastaríamos por quê? É besteira pensar assim.
— Eu… — ela não teve respostas o suficiente para aquilo. — Deixa pra lá.
— Não sou idiota, sei que não tem só isso te pertubando — puxou-a para seu campo de visão, com seus braços encostados nos dela. Lizzie balançou com a cabeça pelo ritmo; sua mão tocou seu rosto choroso, que se mantinha sem reação. — Queria ter te dito antes, mas quando estamos juntas, é algo tão mágico. Parece que se algum dia meu pai ou você forem embora, vou me fechar tanto para o mundo.
Foi aí que Elizabeth teve uma ideia:
— Então… E se nós fizéssemos algo para isso não acontecer?
— O quê?
— Se eu… beijasse você?
— Ah… me beijar? — se chocou. — E por que nos beijaríamos?
— Porque sinto que isso será especial. Pode não dar certo, mas quero que tenhamos algum vínculo se isso acontecer.
— Você tem certeza?
A menina ficou calada quando os toques da estudante chegaram em seu rosto, fixamente submersa e perdida naquela decisão.
— Tenho!
As mãos da loira afastaram os fios castanhos. Ela, no entanto, viu a amiga fechar os olhos devagar, fazendo um bico com seus lábios e se aproximando dos rosados de Meyer.
O beijo entre as duas foi comum e inocente. Lizzie nunca chegou a beijar uma garota, mas veio uma decisão de tê-la consigo mesmo distante. Era assim que as coisas funcionavam.
Pelo susto que as atrapalharam no ato romântico, Carolyn abriu seus olhos confusos, porém encarou o rosto sardento e riu do semblante acanhado. A loira riu sem humor, estava com o coração acelerado. Uma sensação boa e esquisita freneticamente.
— I-Isso? — gaguejou, abaixando a cabeça. — Foi…
— Desculpa — revirou os olhos, escondendo o rosto. — Nem era minha intenção, foi no calor do momento.
— Tudo bem, também beijei você — riu. — Só vamos fingir que isso não aconteceu, tá?
— Sim!
Até que, de repente, mais alguém saiu da porta, risonho e segurando o violão preto em uma das mãos. Os passos do homem chamaram a atenção da garotinha, que o abraçou como nunca.
— Do que estavam conversando? — John puxou conversa, ajeitando os cabelos curtos para trás quando a filha se sentou próxima a ele.
— Lizzie estava com saudades da família dela — Carol mentiu, jogando uma piscadela para a garota. — Acabou chorando.
— Entendo, também sinto falta da minha de vez em quando. Muito bem, garotas, já que estamos juntos, querem me ouvir tocando alguma música?
— Claro! — Elizabeth sabia exatamente a música que John costumava tocar em momentos dramáticos. — É outro sucesso dos The Doors?
— Como adivinhou? — ele arqueou a sobrancelha, surpreso. — Hm, ela é mesmo esperta.
— Eu te disse — concluiu Carolyn. — Ela conhece o mundo inteiro.
Os acordes da viola deixavam a canção gostosa de se ouvir em um silêncio agradável aos ouvidos. E se ela não estava enganada, seria a música “You're Lost, Little Girl”, que tinha uma letra familiar, definindo como Grayson se sentia naquele “sonho”.
Olhando para o céu estrelado, passou diversos momentos refletindo, esperando dormir e voltar tudo ao normal. Relaxou os braços para cima e assim curtiu a música.
Lizzie ficou encantada em viver naquela fazenda, ouvindo músicas antigas cantadas por John, algo que gostava nas férias. E, no fim de tudo aquilo, foi muito satisfatório vê-lo vivo com sua filha tão querida, pelo menos em vidas passadas.

Acho que você sabe o que fazer
Impossível? Sim, mas é verdade
Acho que você sabe o que fazer, sim
Eu estou certo de que você sabe o que fazer

Você está perdida, garotinha
Você está perdida
Me conte quem
Você é


•••


Elizabeth despertou inesperadamente da cama. Ela pressentiu o caos. Respirava sem controle; o peito batucava como se fosse explodir, constatando uma maldita dor de cabeça. Inconscientemente, sua mente passava devaneios tão diferentes que nem a própria garota se lembrava.
A primeira foi notar que Carolyn e ela, depois daquele beijo, se tornaram mais unidas. Porém, quando John morreu, continuava sendo a mesma coisa.
Sua aparência foi mudando. Lizzie assistia às cores do cabelo loiro se tornarem roxas, frente ao espelho e chorando por alguma razão.
Estava fora de si. Seu nariz não parava de sangrar. As pernas tremiam, seu paladar se tornava seco. Quando deu-se por conta, estava apenas mareada e enjoada sem motivo. Voltando ao normal, cuspiu na lata de lixo do quarto o resto de sangue que havia saído tanto do nariz quanto de sua boca.
Tossia sem parar. Demorou para se recompor.
Embora o computador estivesse ligado na mesa como única fonte de claridade, o quarto ainda estava escuro, e Elizabeth não conseguia se levantar de jeito algum. Os eventos de ontem e do seu sonho ficavam repassando em sua cabeça como um longo filme: a briga, o rancho, o beijo em Carolyn e a nova garota, Marie.
Foi tirada de seus devaneios pelas batidas na porta. Imediatamente correu para limpar seu rosto, e o pavor de abrir a porta a invadiu. Quem estava atrás era Grace, dizendo para já saírem do campus. Elizabeth pediu mais alguns segundos para se arrumar, e por fim vestiu um short branco de cintura alta, regata preta e sapatilhas.
Mesmo trêmula, abriu a porta torcendo para não notarem sua cara de morta, mas não adiantou. Grace riu como tola para o rosto exausto da colega; entretanto, Lizzie inventou uma desculpa de ter batido o nariz com muita força na cabeceira.
A rosada perguntou se ela estava bem, e o que recebeu como resposta foi um aceno.
Elizabeth preferiu não dar nenhum detalhe referente aos poderes dela, por mais que Grace insistisse em saber. A amiga não seria capaz de entender que nada do sonho era ilusão, e sim uma coisa que aconteceu verdadeiramente.
Saindo do dormitório, Lizzie olhava para os alunos comemorando mais um fim de semana. Os gritos ecoavam em seus ouvidos, Harvey State começou a se agitar. Ela queria desistir do destino, mas quando soube do que fez, mudou totalmente de decisão. Fez questão de começar o dia de uma maneira diferente e um pouco melhor. Era um momento para se divertir.
O dia ensolarado foi o mais bonito de se admirar, pois aquele estado era um dos considerados mais quentes de todo o Estados Unidos. Elizabeth queria esquecer dos acontecimentos ruins dos dias anteriores, então resolveu encontrar Marie perto da sua caminhonete rural suja pela terra molhada.
A fotógrafa demonstrava-se alguém séria e amarga sem suas fiéis companheiras por perto. Sua personalidade também falava através do estilo caipira que divergia do de seus colegas. Seus trajes eram, em sua maioria, compostos por peças vintage e antigas.
De braços cruzados, observou Brighton acompanhada pela novata, sem estar com o cabelo preso ou penteado para trás. As duas se abraçaram, sorrindo uma para outra. Elizabeth acenou tímida ao cumprimentar Marie.
— Onde está a Camila? Ela não vem? — perguntou, preocupada com a outra amiga.
— Diz ela estar ajudando os rapazes da fraternidade — afirmou Grace. — Trouxe a Elizabeth, ela quer muito conhecer o rancho. Falou bastante dele.
Marie riu sem mostrar os dentes:
— Tem mesmo cara de quem gosta — pôs as mãos na cintura. — E a propósito, ela nos defendeu da vadia Hernandez!
— Isso — balançou a cabeça para os lados. — Peço desculpas se não era o que esperavam.
— Relaxa — deu de ombros, indo conferir a parte de trás do veículo. — Precisamos ir andando, essas maçãs não duram pra sempre.
Olharam para os caixotes de frutas enfileirados na traseira.
— Atreus é mesmo um cavalo de sorte! — a rosada olhou incrédula. — Há mais trabalho para a grande Apple Jack.
— Não se atreva, Fluttershy!
Os apelidos deixaram Elizabeth confusa.
— Por que vocês se chamam assim?
— Nunca assistiu My Little Pony? — indagou a dos cabelos coloridos, incrédula. — Impossível!
— Não — respondeu Grayson, sincera. — Nunca fui fã quando criança.
— Ela é mesmo a mais normal de nós três — debochou McFarlane, e todas riram em uníssono. — Quando éramos crianças, dizíamos ser pôneis. Ela era a Fluttershy e eu a Apple Jack. Convenhamos, pareço mesmo ela.
— Principalmente seu sotaque fofo — apertou suas bochechas. — Saudades quando você falava bem caipira!
— Ei! Não abusa — afastou as mãos de Grace, envergonhada. — Enfim… Lá não é o lugar que gosto de ficar, mas meus pais e irmãos dizem ser um paraíso.
— Eu conheço por causa da minha cidade.
— Mais um meio de nos entendermos melhor! — ambas deram um aperto de mãos. — Prazer em conhecê-la oficialmente, Elizabeth.
— O prazer é todo meu!
“E isso é só bom começo”, pensou. A estudante de literatura esperou abrir as portas do automóvel.
— Eu vou na frente, hein! — Grace se animou, sentando-se no banco do passageiro.
— Vocês que mandam! — apertou os cintos, ligando a chave na ignição.
O vento invadia o carro pelas janelas abertas; a adrenalina percorria suas veias, espalhando uma sensação de êxtase pelo seu corpo. Finalmente, paz! Com as jovens, Elizabeth gargalhava divertida pelas conversas. Ao ver o carro partindo da faculdade, a confirmação de sua presença ali apenas fazia com que tudo ficasse ainda mais mágico.
Seria injustiça mudar aquela sensação caso fosse obrigada algum dia a usar seus poderes.
Encostou a cabeça no banco e apreciou a paisagem em tonalidades azuis, vendo os cactos e a areia alaranjada passar rapidamente – algo que lembrava a antiga cidade do interior. Com certeza estava se sentindo apreensiva pelo que cometeu. No entanto, vinha a dúvida nesse instante: e a realidade antiga? E agora, foi mesmo certo beijar Carol antes do adeus?
O que deveria fazer neste instante? Provavelmente aquilo tinha a magoado demais, mas ainda assim, estar despreocupada era o que mais a deixava eufórica. Tinha certeza que faria mais viagens por Crystal Eyes. Sentia, no fundo, uma nostalgia contagiante.
Fazia uma hora que estavam na estrada, e Lizzie finalmente havia encontrado algo diferente além da passagem em sua volta. Em certa altura do passeio, decidiram ouvir música enquanto ficavam em silêncio. Nos ruídos do rádio velho, a canção House Of the Rising Sun, dos The Animals, agitou o percurso. Marie amava aquela música, e seu balançar de mãos e cabeça para o alto contra a ventania indicavam isso.
E Elizabeth sorria. Cada mínima lembrança que tinha sobre a cidade parecia um reino onde a infância nunca morria. E mais se sentia uma criança. Uma criança feliz e despreocupada.
Crystal Eyes, assim como toda boa cidade pequena, conseguia ter seus altos e baixos. Geralmente salões, bares e lojas de armas eram destaque. Porém, o mais especial com certeza foi o clima rural e gostoso semelhante a filmes de faroeste. Recordava das casinhas simples e bem enfeitadas. Ninguém lá costumava ser rude ou mal educado com a vizinhança.
Ela achava harmonioso correr pelas praias ou andar a cavalo em dias de pôr do sol, visitando diversos lugares mais floridos ou preenchidos com hortas de saladas frescas. Seus pais não trabalhavam todos os dias, o tempo era livre para qualquer coisa. Esse reencontro trazia esta sensação, o glorioso significado de felicidade: viver sem responsabilidades. E quanto mais desejava crer naquilo, mais suas expectativas lhe acalmavam.
Quando alcançaram o caminho até a cidade, tudo começou a entrar nos eixos. No entanto, não era exatamente como o desejado. O lugar parecia vazio e sem graça.
Ela só precisava saber como seria estar naquela fazenda mais uma vez.
Pois a cidade estava longe de ser a mesma que lembrava.


Capítulo 4

A cidade nunca esteve tão diferente do que costumava ser há oito anos. Onde haviam se metido as cantorias dos bares? As belas floristas? Ou os caubóis passeando com seus cavalos? Querendo ou não, nada mais daquele pedacinho de interior havia sobrado além das lojas tão quietas.
Uma surpresa trágica acabou estragando suas expectativas, e um sorriso fechado aflorou no rosto de Grayson. Diante da janela meio aberta, ela observou os cactos secos em terreno vazio, sentindo a mente se afastar dos antigos momentos.
Crystal Eyes e sua placa de boas-vindas estavam se apagando aos poucos. Em uma tinta verniz descascada, o nome da cidade desaparecia sendo vítima de esquecimento, como uma terra sem lei. Os anos morriam lentamente, sem uma memória sequer.
Elizabeth respirava calmamente no momento em que respondia às mensagens enviadas por sua família no percurso da viagem. Era um meio de distração, pois as colegas não tinham mais assunto desde quando saíram animadas de Harvey State. No banco da frente, Marie encarava a vista da janela, contemplando a paisagem do desfiladeiro que assomava o ambiente; Grace, ao seu lado, olhava através de seus cabelos coloridos para a tela brilhante de seu Nintendo DS rosa pastel, concentrada em mais uma batalha Pokémon.
O carro avançou em velocidade média, serpenteando pelas estradas de terra seca. A motorista foi forçada várias vezes a girar o volante para que não caísse em algum buraco sorrateiro, pois ultrapassar a estrada quebrada estava sendo um desafio até chegar à fazenda.
Desde as promessas políticas de Carlos Sierra, os espaços foram tomados por seus homens. Ele prometia moradia, saúde, educação e propriedades luxuosas para os humildes cidadãos com o intuito de ter benefícios maiores de um governador desejável, aumentando o vocabulário e manipulando quem conseguisse através das palavras enganosas entre cada excelente discurso civilizado. Todas as empresas que ele administrava quase estiveram à beira da falência. Carlos foi esperto o bastante para ter pensado mais em duplicar sua grana, porém pegando dinheiro de um povo iludido e lutador. Entretanto, assim como qualquer corrupto, ele tendia a fingir nobreza e inventar propostas pelo povo para enfim idolatrarem sua atitude.
Em Crystal Eyes era impensável aceitar aquelas mudanças; ao menos Lizzie quis acreditar em estar na cidade certa. Tudo era tão novo e desconhecido para ela.
Ainda estava quieto, mas Elizabeth já podia observar os pedestres marchando nas ruas e calçadas. As estradas de terra foram sendo gradualmente preenchidas por robustos e barbudos motoqueiros de jaqueta sentados em cadeiras de plástico resistente, flertando e assobiando para garçonetes sedutoras de camisas curtas e provocantes, dando visão de suas tatuagens tribais e servindo cerveja em rebolados e piscadelas. Nos fundos tocava um rock clássico em cada bar que aparecia.
As garotas passaram rapidamente por um grande centro comercial chamado West Donalds, de estilo tradicional americano. O letreiro neon manteve-se acesso, porém costumava ser mais chamativo pelo chapéu gigante no telhado.
Uma sensação de déjà-vu veio de repente, e os olhos semicerrados de Elizabeth apenas fingiam que não viam nada. Ela queria andar por ali quando estivesse sozinha.
Havia postos de gasolina em toda parte, considerando uma parte da cidade algo nada convencional. Pelo fato de Lizzie odiar lugares silenciosos, ela deslizou o corpo e achou uma posição confortável para se deitar no banco de couro, apenas querendo refletir na beira do silêncio. O teto foi sua única distração no caminho todo, transformando a trajetória menos parada.
Enquanto os pneus rolavam pelo percurso tranquilamente, ela pôde ouvir Marie comentar sobre os ranchos e sítios mais famosos do Arizona. A loira mencionou origens e tradições que ocorreram ao longo dos anos na cidade – não como se Elizabeth já soubesse, porém antigos costumes acabaram sendo nada importantes, por mais que estivesse interessada em saber por que tudo mudou.
Lizzie e seus pais moravam numa simples e clássica residência pintada de branco. Por trás do portão de ferro, existia um enorme jardim repleto de rosas, margaridas e lírios. A grama, sempre molhada em dias de chuva, era o espaço onde brincava quando mais nova. Foi tão inevitável se esquecer do antigo lar que, ao passar pelas outras moradias, uma lágrima se atreveu a cair de seu rosto pela emoção de rever tudo que se perdeu. Agora adulta, Lizzie sentia-se uma intrusa. Não mais era seu mundo.
A casa desapareceu através da velocidade, pois os eventos trágicos de seu 13º aniversário voltaram a atormentá-la. Aquela casa não tinha mais as mesmas histórias; afinal, os tempos mudam, mas não curam.
Faltou pouco para chegarem ao rancho. Uma pequena rua enfeitada por hortênsias azuis e violetas anunciou beleza e paz. O sol cálido, unido ao vento responsável pelo balanço das flores, tornava a atmosfera daquele paraíso algo mais tranquilo.
Elas podiam ver os vegetais, verduras e frutas em suas determinadas estufas. Os turistas costumam comprar alimentos de boa qualidade dos agricultores. Naquela época de junho, a clientela não parecia tão cheia – ao menos aqueles alimentos estavam bons para comer.
Ao entrarem pelo caminho indicado, seguiram novamente outra estrada de terra montanhosa, deixando Marie um pouco receosa quanto a estar no caminho certo que se lembrava. Não queria ficar perdida de propósito antes do entardecer, contudo, elas estavam certas em seguir a estrada de terra. Logo depois de um caminho de brita rodeado de grandes casarões, dando outra boa vista longe do Grand Canyon coberta por montanhas, elas haviam chegado.
O rumo intrigou a estudante. Marie e Grace estavam acostumadas; Elizabeth sentia-se uma criança de cinco anos viajando pela primeira vez na vida.
Após a longa caminhada, pararam o carro quando encontraram a entrada do local. Placas de madeiras indicavam os seguintes dizeres em perfeita caligrafia itálica: Rancho Dickens: um lugar harmonioso. Os matos e gnomos enfeitavam o lado de fora do campo, trazendo uma vista vibrante e agradável. Lizzie teve como fonte de distração os pássaros cantarolando e sobrevoando os galhos. Aquele era mais um cenário retirado dos contos de fadas, os quais a garota conhecia muito bem.
Elizabeth ficou em cima de uma perna no banco para ver melhor e abriu mais a janela do carro. O rancho estava gigantesco; fora o caminho florido, existia um casarão campestre embaixo do vale, onde mais dava para encontrar o sol.
A motorista pisou no acelerador, dando ré e espaço para que seu veículo subisse sem causar erro nenhum, pois geralmente chovia sem parar no cerrado e a lama acidentalmente entalava qualquer coisa que aparecia. Marie e Grace desceram primeiro, e, logo atrás, a colega estava pronta para investigar e explorar tudo de novo naquela fazenda.
A fotógrafa carregava um caixote de maçãs sozinha enquanto pedia ajuda para alguém da casa. Seus irmãos não apareceram, nem seu tio ou pai. Se os conhecia bem, soube deles terem saído para caçar, algo que faziam muito; porém, a matriarca odiava que os filhos fossem para longe do rancho, inclusive caçar com os dois. “Teimosos desmiolados”, era o que ela costumava dizer.
Marie chamou mais uma vez os irmãos, anunciando que já chegara e trouxera visitas; todavia, ninguém apareceu.
O que viram foi uma mulher descendo os degraus da varanda antes mesmo que sua filha pudesse abraçá-la. Era uma belíssima moça alta; seus cabelos loiros estavam presos num perfeito coque. Ela possuía um estilo característico de uma fazendeira: calças legging, camisa xadrez e roxa de botões meio abertos que exibiam o decote V, luvas de couro e botas pretas de cano curto.
Aterrizando os pés no chão, a mulher ansiosamente cumprimentou sua filha com carinho, abraçando-a com toda sua vontade. A McFarlane mais nova estranhou aquele gesto, pois, como perfeitamente conhecia, soube o quão ela costumava ser mandona, mal-humorada e questionadora com o teimoso de seu pai.
— Onde estão todos? — perguntou para a mãe, logo cruzando os braços e voltando a ser desconfiada como de costume.
— Saíram — confirmou a mulher. — Bom você ter trazido mais maçãs pros cavalos! Você não nos visita há tempos.
— Eu sei, mãe, são os problemas do dia a dia. Já comentei sobre isso — ela revirou os olhos tediosos. — Trouxe minhas amigas também!
— Olá, Grace! — a matriarca a cumprimentou e beijou suas bochechas, logo encarando Lizzie com um sorriso. — Quem é esta? Eu a conheço?
— Esta é Elizabeth Aidan Grayson — disse a rosada por Marie —, uma caloura que cursa literatura inglesa comigo. Ela nos disse ter vindo aqui há muito tempo.
— Oh, sério? — ela ergueu o cenho. — Não me lembrava de você, deve ter mesmo vindo muito antes.
Lizzie apertou a mão da senhorita, se adiantando para não parecer mal-educada.
— Muito prazer, querida! — a mulher a recebeu bem.
— Te digo o mesmo, senhora McFarlane!
— Ah, não, não! — riu anasalada, depois a corrigiu. — Não precisa ser tão formal, me chame só de Rose.
— Certo… Eu conheci este rancho quando era criança.
— Hm, interessante — disse, espontânea, piscando as íris castanhas para a estudante de literatura. — Vamos entrando? Tenho tarefas a cumprir.
Rose guiou as garotas, logo depois indo ajudar sua filha a carregar os caixotes para dentro de casa. No entanto, algo chamou sua atenção: seu marido e filhos chegaram montados em um Puro-sangue inglês preto de crina cinza, junto ao velho preguiçoso em cima de um Appaloosa Leopardo. Com um semblante suspeito, Rose pediu para que sua filha deixasse as caixas restantes no chão, pois daria uma bela bronca em seu pai antes.
O senhor McFarlane era bobo e fanfarrão, assim como Marshall Dickens, seu tio-avô distante. Antes que os homens fossem engatar seus corcéis e descer com as crianças, o marido recebeu um puxão de orelha da esposa raivosa.
Jacob era o oposto de Rose. Raramente mostrava-se responsável quando o assunto tratava-se sobre sua família, outrora agia e trabalhava como caçador de recompensas nos anos oitenta ao lado de seu falecido irmão, Hamish. Havia o perdido num horrendo tiroteio após salvar sua pele de bandidos cruéis.
Sua aparência era de se estranhar para um patriarca de família. Quem o olhava pensava seriamente em um caubói ou algum caipira de muitos antepassados. Jacob tinha um rosto fino e sardento, olhos verde-esmeraldas, encaracolados cabelos ruivos e claros, pele cor de mel, além de um corpo esbelto por pernas e braços másculos. O homem era altíssimo, tinha cerca de 1,74 de altura. A jaqueta jeans preta rasgada nos ombros, o lenço vermelho no pescoço, o chapéu branco, as botas de couro e a regata bege conseguiam emanar de certa forma uma excelente imagem tradicional de um homem nativo do Alabama.
O tio-avô de meia-idade impunha sua chegada por seu oportunismo e velha sensatez de qualquer sujeito alcoolista. Como a maioria dos idosos aposentados, Marshall exalava um cheiro asqueroso da boca – um hálito quente e desagradável do qual se podia sentir o fedor de uísque barato e Marlboro misturados na ponta da língua.
Ele coçava a barba enquanto semicerrava os olhos para aquele casal discutindo. O homem se entretia com discussão, tossindo rouco e pondo as mãos no cinto pendurando sua picareta, encontrada após anos enterrada em uma de suas minas abandonadas. Marshall estava mais para um agregado fútil ocupando espaço no rancho além de suas responsabilidades habituais. Ele sabia ser divertido e sarcástico na maioria dos momentos, todavia, as dores na coluna o fizeram desistir de viver. Não dependia mais de ninguém, nem dele mesmo.
A mulher conteve-se na postura; olhava-os com repulsa e certo desdém para o ruivo risonho. E, como se não tivesse dito nada, Rose cruzou os braços, esperando uma explicação dos dois debochados.
— Santo Deus, mulher! — Marshall reclamou da agressividade dela no momento que se redimiu pela brincadeira sem graça. — Estávamos buscando um ótimo achado. E adivinha? Foi a primeira caçada do pequeno Andy!
— O quê?! — ela bateu os pés na terra. — Foram caçar sem me consultar outra vez?
Jacob riu nervosamente, coçando a nuca.
— Rose… Precisamos de dinheiro — ele desceu de seu cavalo, ajudando os filhos mais novos a alcançarem o chão. — Garanto que esta pele de urso pardo pagará todas as nossas dívidas.
Infelizmente, os McFarlane compreendiam as condições financeiras e que todo lucro seria sempre investido na fazenda, senão Dickens e seu único lar estaria queimado ou desmoronando em pedaços, também pressionado a virar fábricas do empresário latino antes de tornar-se prefeito da cidade rural.
Seu sobrinho disse que ainda tomou as medidas administrativas cabíveis para que as ameaças não se repetissem. Foi inútil, pois quando John Meyer faleceu, apenas a filha dele continuou dando importância ao espaço, querendo ter as lembranças de seu eterno pai ainda vivas.
Descobrindo os valores da vida em meio ao caos que viviam, Jacob e sua família aprenderam a apreciar o bem-aventurado de Crystal Eyes aos seus redores. Foi neste meio que a primogênita capturava cada miudeza que podia.
Marie acabou crescendo com uma câmera na mão, ganhando-a de sua mãe com um grandioso orgulho, e logo após isso, sabendo como manusear. Por influência de um aposentado fotográfo que notou o talento da McFarlane dava para seu objeto e especiais habilidades com ângulos, indicou – mesmo percebendo as indecisões da vida adulta – que ela se formasse como fotógrafa.
Eles diziam que Marie era a mais sábia e inteligente da família; todavia, graças aos padrões e ignorâncias, ela sofreu grande preconceito de outras pessoas pelo forte sotaque e seus dentes separados. A filha raramente sorria por isso, só mudou de verdade quando sua melhor amiga Grace voltou para o Arizona, emancipando mais cedo e tendo seu próprio lugar.
Foi doloroso abrir mão de quem amava. A garota ao menos soube se era mesmo o sonho que iria seguir. Marie se arrependia às vezes, e isso claramente lhe chateava.
Rose viu a empolgação de seu menino mais novo com um arco e flecha balançando nas pequenas mãos, falando em ter atirado num coelho. O comportamento fez a matriarca se incomodar ainda mais.
— Mamãe! Eu cacei um coelho! — o pequeno dava pulinhos no chão. — Papai conseguiu atirar no urso que quase nos atacou!
— Isso não é motivo de exaltação — ela comentou. — E quanto vai lucrar nessa tralha, Jacob? Tapete de urso está fora de moda.
— Penso em uns seis mil dólares — riu convencido, passando uma das mãos enluvadas pelo ombro da esposa. — Assim aquele babaca não se mete nas terras do Tio Marshall.
— É gritante vê-lo trabalhar tanto para manter essa terra — ela posicionou a destra no rosto do marido. — Precisa descansar.
— Um homem nunca descansa — ele beijou sua testa. — Faço tudo para cuidar de nós.
— Marshall, você está ficando velho, não tem mais energia — a mulher foi sincera. — Mas… prometa que não vai mais caçar sem me avisar antes, hein?
— Tá bem — ele balançou a cabeça para os lados. — É mais fácil pensar no sustento do que na perda.
— Só não vamos comentar sobre isso na frente de nossa filha.
— Jessica?
— Não, a Marie.
— Ah, sim — ele relembrou-se da mais velha, esperando sua mãe aparecer do lado de fora. — Ela não aparece desde semana passada.
O casal andava em passos lentos até o lar enquanto os dois gêmeos corriam e brincavam de pega-pega pelo gramado. Atrás deles, Marshall orientava os cavalos para dentro do estábulo antes de voltar a seu descanso após horas pela floresta.
Pequenas e lindas crianças ruivas deram um abraço apertado na irmã mais velha, como se nunca a tivessem visto após uma longa despedida. Marie adorava crianças, e seus irmãos foram seu refúgio de problemas desde a vida complicada e os estudos.
Jessica era risonha e meiga, suas tranças ruivas denominavam sua personalidade. Com apenas dez anos, parecia a mais vaidosa e feminina; suas saias verdes, compridas, rodadas e xadrez, as botas marrons, camisa azul, sandálias, os cílios longos, os lábios vermelhos e as sardas exageradas faziam-na se parecer um personagem de clássicos literários.
Andrew, assim como todas as crianças de seis anos, sabia ser esperto e brincalhão como o pai, porém não costumava ser tão amado quanto as garotas. Ter um único menino na família tinha sido deveras adorável para o pai, mesmo que ele não fosse próximo das meninas da casa.
Marie cumprimentou o patriarca, o tio e, logo chegando atrás com um semblante educado, apresentou suas amigas. No entanto, Elizabeth foi contrariada pelo velho sendo chamada por outro nome:
— R-Ruth? Ora essa! Como você está bonita — ele tossia em meio a risadas roucas. Não foi nenhuma novidade achá-lo gagá.
— Quem é Ruth? — questionou, arqueando a sobrancelha.
Elizabeth ouviu algo sobre este nome em algum lugar, mas não lembrava quem havia contado sobre essa pessoa. Estava óbvio que o mineiro escutaria uma bronca e, para aproveitar, o ruivo deu gargalhadas ao se lembrar de quem se tratava.
— Essa mulher está morta, tio! — Jacob exclamou. — Ruth Meyer foi nada além que a sua paixão de verão!
— Ah? — o velho virou os rosto para os lados e coçou a barba áspera, notando a estudante ainda confusa. — Para mim, ela me lembra alguém.
— Parem de falar isso! Estão assustando as nossas visitas — Rose bateu as mãos. — Esta é a Elizabeth, senhor Dickens. Ela veio aqui há muito tempo.
— Elizabeth? Bonito nome! — ele a elogiou. — Realmente não me lembro da senhorita, mas me parece alguém familiar.
— O-Obrigada — ela sorriu, acanhada. — Creio que a sua amada foi mesmo uma mulher muito especial.
— Ruth era uma guerreira — disse, orgulhoso. — Um filho dela foi cedo por não obedecê-la no passado!
— Feche essa matraca — esbravejou Jacob, irritado. — Que eu saiba o senhor tem muito a fazer! Bom mesmo ajudar minha mulher, sim?
— Ah, poupe-me, sabem o quanto sofro de lumbago — ele tirou o chapéu da cabeça e acompanhou os passos da mulher.
— Engraçadinho — Rose riu, incrédula. — Vamos entrando e dando um espaço para nossas visitantes. Você me ajuda com as tortas!
— Por quê?
Em uma tentativa de provocação, Jacob deu um leve chute nas costas de seu tio, que cambaleou pelo chão e logo depois mostrou o dedo do meio, tirando risadas de todos que estavam ali assistindo.
— Vocês nunca entenderão mesmo. Não sou alguém preguiçoso, só odeio trabalhar! — ele reclamava para Rose, que o ignorou completamente.
— Tá bem, vamos, vamos! — ao virar-se para trás, ela deu-lhe uma piscadela, acompanhada dos gêmeos e das garotas.
“Ruth Meyer? Seria ela a mãe de John?”, Lizzie pensou e revirou os olhos, desconfortável em meio aos fazendeiros.
Adentrando a casa, Grayson gostou de absolutamente nada; o lugar tinha um péssimo cheiro de móveis usados e a lareira queimava a brasa. A sala até era aconchegante: pufes organizados, um grande piano quase próximo da TV e uma estante preenchida com muitas bebidas. Seus ouvidos não aguentavam tanta conversa, os irmãos mais novos brigavam entre si e a matriarca lhes dava bronca em todo momento.
Marie auxiliou a caçula Jessica a pegar as cestas e guardar todas as maçãs restantes para irem cuidar dos cavalos; Elizabeth foi obrigada sair da cadeira que estava sentada graças ao charme da loira. Grace também foi atrás da melhor amiga, e assim todas começaram a trabalhar pelos estábulos e a levar os cavalos para dentro.
A pequena McFarlane abriu a cesta com cuidado para alimentar uma pequena égua Shetland – que chamava de Cherry –, afagando seu pêlo denso e dourado.
— Tome! — a ruiva deu-lhe pequenos pedaços de fruta para que sua pônei pudesse mastigar. — Bom apetite.
— Ela ensinou tudo o que você sabe, né? — Elizabeth puxou assunto através do silêncio tedioso.
— A maioria das coisas ela aprendeu com minha mãe — respondeu, virando-se para frente com os braços apoiados na palha. — Estive fora quando ela e meu irmão cresceram.
— Andy continua um chato — retrucou Jessica —, assim como todos os meninos.
— E por que ele é tão chato, Jess? — Lizzie indagou, erguendo as sobrancelhas.
— Não sabe ser responsável. Aprendeu a falar besteiras e implica comigo o tempo todo! Papai defende ele ao invés de mim.
Marie gargalhou e manteve o sorriso ladino:
— Eles são homens. Papai e tio Marshall são as únicas inspirações dele.
— E os homens são muito bobos! — mostrou a língua em deboche. — Me orgulho de ter amadurecido antes da hora.
— Um dia mudará de opinião, quando estiver mais velha — bagunçou seu couro cabeludo, ouvindo-a xingar.
— Nunca! Eu odeio todos os meninos, eles são bobos e chatos!
— Continue pensando assim — pôs as mãos na cintura. — A não ser que queira ser valente como nossa mãe!
— Mamãe é só alguém mal-humorada, igual a você — provocou. — A Cherry não está mais com fome, acho que irei catar amoras e morangos.
— Boa sorte, irmãzinha!
A menina ruiva saiu até os portões enquanto sua irmã e colega riam entre si. Porém, Lizzie sentiu-se pensativa ao tentar compreender as tais palavras ameaçadoras e misteriosas de Juan para Roberta. Suas íris azuis cansavam conforme as abria e fechava sem parar. Apenas tinha olhares para um belo corcel branco, que relinchou, assustando-a.
Ele batia as patas no chão e virava a cabeça para os lados. Estava agitado, e algo de estranho lhe incomodava. A fotógrafa, então, se aproximou do animal para ver o que estava acontecendo com ele.
— Atreus! — protestou, pacífica, ao ver seu Clydesdale malhado trotando no chão frio. — Tudo bem, tudo bem… Eu estou aqui.
Assim que as delicadas mãos de McFarlane pararam na crina dourada, ela lhe ofereceu uma maçã que o cavalo logo mastigou com vontade.
— Bom garoto.
Elizabeth se levantou e bateu o tecido da camiseta, tirando um pouco do feno cercado em sua roupa.
— Você não parece ser alguém que curta esse tipo de coisa, né? — perguntou, desconfiada.
— Nunca morei em fazendas — Lizzie cruzou as pernas e olhou para baixo. — A única coisa que aprendi foi ordenhar uma vaca ou correr em um mato fechado.
— E há quanto tempo parou de fazer isso?
— Uns oito anos — começou a contar. — Eu tinha uma melhor amiga. Éramos muito unidas e nunca escondíamos nada uma da outra, até que de repente uma tragédia destruiu e marcou algo pesado tanto para mim e tanto para ela.
— O que está dizendo? Quem te deixou?
— Bom… — ela manteve a postura ereta. — No meu aniversário de treze anos, o pai dela foi assassinado aqui. Ele sofreu e levou doze tiros no peito, foi uma notícia terrível.
Foi então que Marie começou a entender.
— Espera… O pai dessa garota por acaso é o tal do pistoleiro que meu tio bêbado tanto fala?! — perguntou, e Elizabeth assentiu que sim com a cabeça. — Que coisa horrível! — disse, espantada. — Antigamente achava uma lenda, e o lugar onde os Meyer estão foi largado. Às vezes uma garota passa por lá, no entanto, acho tolice lutar por aquela terra.
— Acredito que a mãe dela tenha se casado com outro homem — Elizabeth deduziu —, por isso não tenha mais vindo para cá.
— Sim, a Charlotte Marston aparece aqui de vez em quando — Marie ajeitou o chapéu, andando para os lados. — Se não me engano, a filha dela que aparece sempre.
— Marston? — a garota curvou as sobrancelhas em forma de interrogação. — Então aquela visão é mesmo real…
— Que visão?
— Ah, nada! Deixa pra lá — balançou a cabeça, nervosa. — Me diz, Marie, o que gosta tanto em Crystal Eyes? O assunto da Roberta é mesmo verdade?
— Sim — ela murmurou. — Carlos Sierra está envolvido com as terras do meu tio, e a parte abandonada já está perdendo os dias de posse. A Carol não é capaz de pagar mesmo limpando o terreno.
— Hm…
— Olha, em vez de falarmos sobre isso… quer ir comigo até lá? Para investigar melhor?
— Tem certeza? — Lizzie sentiu as mãos de Marie segurar as suas, quando veio um devaneio repentino. A mesma sensação de segurança. — E sua mãe? Ela pode ficar preocupada.
— Já tenho quase vinte e dois anos, nada acontece comigo — mostrou-se convincente. — E aí? Vamos ou não?
— T-Tá! Podemos ir!
— Beleza, fechado!
As duas amigas subiram em Atreus, logo então cavalgando até o lugar indicado. Segurando a cintura daquela fotógrafa, Lizzie sorria de canto ao sentir um pouco de liberdade.
Seus longos cabelos dourados, encobertos pelo chapéu, voaram sob o vento. Ela notava o sol se pondo e os girassóis rodeando seu caminho. A estudante de literatura mais tinha medo de cair, então seus braços apertavam o casaco da fazendeira.
O desejo de Grayson era ver aquele lugar bonito outra vez. Esquecer e perceber o que mudou ainda lhe aterrorizava.
No entanto, sob o pôr do sol, Marie não aguentava mais se queimar à luz do sol enquanto cavalgava até a parte mais misteriosa do rancho.
E tudo aquilo restaria saber sobre Crystal Eyes e o que estava por vir.


Continua...



Nota da autora: Sem nota.


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