Nas Páginas de um Livro


Escrita por: L. Marques
Betada por: Cocó




Prólogo


Aeroporto Internacional John F Kennedy, Nova Iorque, 20XX



– Anna, tem certeza? – perguntou pela nona vez naquele dia – Você pode sempre voltar comigo – e pela nona vez, Wendy insistiu.
Ela estava preocupada, não podiam culpá-la. Aliás, todos estavam preocupados. A irmã iria sozinha para um país onde não conhecia ninguém pessoalmente. A própria Anna estava preocupada, mas se sentia corajosa por enfrentar algo novo sem ajuda da família.
– Já comprei a passagem, não vou desperdiçar – disse e deu de ombros.
Tinha essa mania. Dar de ombros quando não tinha mais nada para dizer.
Chegaram à Nova Iorque há uma semana para conhecer o novo namorado de Wendy. Conheceram-se pela internet, e já que Anna iria para Portugal na semana seguinte, achou que seria errado deixá-la ir sozinha. De qualquer forma, Wendy quase implorou para que fosse acompanhada. Anna não pensou muito antes de decidir, já que sempre quis conhecer Nova Iorque, mas como os pais eram muito protetores, nunca saia de Toronto sozinha, mesmo que os dois locais fossem tão perto. Claro que eles poderiam tê-la acompanhado, mas o ódio que sentiam pelos Estados Unidos era demasiado para satisfazer o desejo da filha.

Elas estavam sentadas nas cadeiras do aeroporto esperando que os voos fossem anunciados. Wendy estaria indo de volta a casa, em Toronto, e Anna para Lisboa, pela primeira vez e sozinha.

Se fosse um ano atrás, Anna não viajaria sozinha, e sim com a avó que nasceu nas terras lusitanas. Infelizmente, faleceu há um ano e meio, seis meses antes da partida. Ela e a avó planejavam a viagem à Portugal há alguns anos, quando Anna tinha apenas 13 anos. Ficou tão chocada com a repentina morte da avó que durantes muitos meses, sequer pensou na hipótese de viajar. Tinham uma ligação especial; além de avó e neta, também eram amigas, e Anna a via como uma confidente. A anciã lhe ensinou português e contou cada detalhe da sua infância, que fora muito difícil. Mesmo que Portugal não tivesse participado da II Grande Guerra, o país estava sobre o domínio de Salazar e a época da ditadura não tinha sido fácil, ainda mais para uma criança de sete anos. Mas a avó dizia que aprendeu a procurar a felicidade nos pequenos detalhes da vida.

– Para de mexer no vestido, quer chegar com ele amarrotado? – ralhou Wendy.
Imediatamente Anna parou de mexer na barra do vestido vermelho com bolinhas pretas. Não tinha notado no que fazia, estava nervosa e aliviar sua força em algo parecia fazer com que relaxasse, apesar de que, naquele momento, não fizera o efeito desejado.
Então se lembrou de que trazia um livro na mala. O livro chamava-se “O Perfume”, de Patrick Süskind. Era a terceira vez que o lia e ainda se surpreendia com a genialidade do autor, afinal, fazer com que um assassino parecesse tão inocente aos olhos do leitor, não era fácil.
Anna não lia um livro mais de uma vez por ele ser especial; a verdade é que sempre gostara de reler uma história, pois assim conseguiria dar mais atenção aos detalhes que antes não pareciam relevantes.
Abriu o livro onde tinha parado na noite anterior e começou a ler, mas não conseguiu chegar ao final do primeiro parágrafo quando Wendy a interrompeu.
– Eu realmente acho que você devia pensar melhor.
Anna fechou o livro e suspirou. Não estava irritada ou com raiva, talvez só um pouco cansada daquele assunto. Virou-se para a irmã e a olhou nos olhos.
– Wendy – fez uma pausa. Queria dizer algo que fizesse a irmã compreender. – Eu quero isto. Eu quero ir para Portugal, eu quero esta aventura. Já não sou uma criança, tenho 19 anos. Eu quero conhecer Lisboa desde que me entendo por gente, você sabe disso. Após a morte da vovó, fiquei muito triste para viajar naquele momento e não tive coragem para pensar em como seria dali para frente, mas o tempo passou e eu estou aqui, já tomei a minha decisão e estou pronta, eu quero fazer isso.

Não estava mentindo, queria conhecer Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, os Açores… Queria conhecer os cenários das histórias que a avó contava.
Wendy abriu a boca para dizer algo, mas logo a fechou. Anna esboçou um sorriso e deu um beijo na bochecha da irmã. Em seguida, voltou a abrir o livro, ignorando todo o barulho exterior. A sua mãe dizia que isso era um dom. Conseguir ignorar o mundo quando começava a ler, mas fazer isso num aeroporto que estava lotado, não era muito fácil.
Era a primeira vez que estava em um aeroporto, pois quando saiu de Tontonto com destino à Nova Iorque, fora de comboio, mas estava gostando do que via. Havia muitas pessoas alegres ali, mas a maioria delas estavam tristes. Talvez pelo fato de estarem no segundo andar, na zona de embarque. Pensou que as pessoas do primeiro andar estavam muito mais felizes, pois os parentes, amigos, amantes ou simplesmente alguém especial estavam para chegar, enquanto ali as pessoas partiam.
Havia pessoas de todas as partes do mundo, que falavam todos os tipos de línguas e sentiu-se frustrada quando não conseguiu distinguir algumas delas. Achou impressionante como tantas pessoas diferentes estavam num só local.
Já tinha lido dois capítulos quando sentiu Wendy tocar-lhe o braço para chamá-la.
– Acho que você tem que ir para a plataforma de embarque agora – a voz de Wendy já começava a ficar chorosa.
Anna fechou o livro novamente, mas dessa vez guardou-o na bolsa preta de couro e colocou-a no banco. Levantou e olhou para a irmã. Sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.
– Bem, acho que tenho que ir.
Wendy levantou-se e apertou a irmã num abraço.
– Eu te amo tanto! Tanto! Não pode imaginar como me sinto ao deixar a minha irmãzinha ir sozinha para o fim do mundo.
– Oh Wendy, eu também te amo. Falaremos todas as semanas – as lágrimas começavam a escorrer sem vergonha ou constrangimento.
– Sua tola, falaremos todos os dias – Wendy fungou o nariz ruidosamente. – Vou sentir tanto a tua falta – confessou.

Ambas já choravam desesperadamente; as pessoas ao redor começavam a olhar. Algumas tinham um sorriso no rosto, de modo simpático, outras até chegavam a rir alto, achando graça na cena, porém quatro ou cinco olhavam com compaixão. Pareciam entender o que elas estavam sentindo.
Essa despedida não era definitiva, ambas tinham certeza disso, mas sentiram o coração apertado por uma saudade prematura. Anna tinha certeza que dentro de alguns meses a irmã e os pais a visitariam, mas durante esse tempo, não teria nenhum familiar por perto quando precisasse.
– E eu a tua – respondeu. Tomou ar e depois começou a chorar ainda mais escandalosamente. – Diga aos nossos pais que os amo, e que ligarei assim que descer do avião.

Separaram-se e Wendy balançou a cabeça positivamente como uma criança. Além dos olhos vermelhos e inchados, tinha o nariz escorrendo, e ainda assim, Anna pensou em como a irmã era adorável. Mesmo tendo 27 anos, parecia uma criança quando estava triste e todos faziam algo para que ela se sentisse melhor e sorrisse ou, no caso de Anna, para que continuasse com o rosto adoravelmente tristonho. Ao contrário dela mesma, que tinha certeza que seu rosto redondo estava muito menos adorável do que o da irmã, que era magro e belo, mas não pensou muito mais nas expressões que estava fazendo.
Não é que fosse feia, mas não se considerava bonita. O cabelo era castanho claro e caia onduladamente até a cintura. Os olhos eram azuis-escuros e por cima deles, as sobrancelhas eram muito finas; o nariz não era feio, mas tão pouco era bonito, e a boca era pequena, mas bastante rosada. O pescoço era comprido, nem muito fino, nem muito grosso, ele se ligava aos ombros estreitos. A cintura era fina, mas o quadril e as coxas eram largos demais e os seios pequenos. Não gostava muito da própria aparência, mas tentava não dar muita atenção a isso.
– Faça uma boa viagem – disse Wendy à Anna e deu-lhe um beijo na testa.
Olhou a irmã nos olhos, limpou as suas próprias lágrimas e deu-lhe um beijo na bochecha. Depois murmurou “obrigado” enquanto pegava a mala de mão no banco onde antes estava sentada e foi em rumo à plataforma de embarque. Não sabia dizer como se sentia. Estava triste, pois se separaria da família pela primeira vez na vida, mas estava feliz por conhecer o país onde a avó nasceu e que tanto sonhou em visitar. Era possível estar feliz e triste ao mesmo tempo? Acabara de descobrir que sim.

Além da mistura de dois sentimentos opostos, Anna também estava ansiosa. Uma nova aventura começaria, na verdade, a primeira aventura da sua vida. Nunca tinha saído de Toronto, bem, sim, saiu pela primeira vez quando veio para Nova Iorque com a irmã há uma semana. Mas isso era diferente, ela atravessaria o Oceano Atlântico, o segundo maior oceano do planeta. Em algumas horas, estaria bem distante do local onde nasceu e cresceu.
Parou e sorriu para si mesma. Sentia-se livre. E pouco depois de se sentir livre, sentiu o traseiro contra o chão e o início da dor no mesmo local. Alguém tinha ido de encontro com ela, derrubando-a de imediato. Devia ser um bruto com muita pressa, pois a batida foi bastante forte.
– Oh! Me desculpe! – disse uma voz grossa e rouca, com o sotaque britânico muito acentuado. – Não foi minha intenção.
O homem que acabara de falar abaixou e a ajudou a se levantar. Ela aceitou sua ajuda, mas ele deve ter usado muita força, pois Anna foi contra o seu peito. Sentiu-se envergonhada e alisou a saia do vestido. Ainda não o tinha olhado; de início, deu mais atenção à dor que sentia no traseiro – e a vergonha, mas uma vez que o fez, não conseguiu desviar os olhos dele. Era o homem mais bonito que já tinha visto, pelo menos pessoalmente. A cabeça de Anna apenas chegava ao queixo dele, fazendo com que ele parecesse muito alto, quando na verdade ela quem era baixa demais. A pele era clara e parecia muito macia; quis tocar para confirmar, mas claro que não era tão corajosa e atrevida. Os cabelos eram tão negros como a noite, os olhos eram de um tom igualmente escuro e também eram pequenos. O nariz era fino e delicado, mas não de um modo feminino; era o nariz mais masculino que havia visto, e ainda assim, tinha seu encanto. A boca era mais fina na parte de cima do que na de baixo, parecia simplesmente perfeito.
– Você está bem? – reparou que o homem a olhava nos olhos quando perguntou.
Anna continuou a observá-lo. Não era apenas o rosto que era bonito – o corpo, coberto por um terno preto, era muito atrativo; os músculos nos braços eram bastante visíveis, mas não eram exagerados, apenas fazia com que ele ficasse mais belo. Passava a imagem de um homem forte e ao mesmo tempo delicado. Esse homem dava sentido ao Homem Vitruviano¹, seu corpo tinha as proporções perfeitas.
– Você está bem? – repetiu.
Ao dar conta que estava tão absorvida pela imagem daquele homem, sentiu-se extremamente envergonhada.
– Ah! Sim, Sim! Estou bem, não foi nada demais – apressou-se em dizer. – Eu devia ter prestado mais atenção. Desculpa mesmo.
– Não, não foi culpa sua. Nunca vi este aeroporto tão cheio – sorriu.
Ela retribuiu o sorriso da mesma forma e viu que ele olhou para sua boca. Os lábios ficaram repentinamente secos; umedeceu-os e ele continuou a olhar. Sentiu as bochechas quentes e teve a certeza que estava corando, e o pensamento de estar o fazendo, apenas com um olhar de um homem que estava vendo pela primeira vez, fez que ficasse ainda mais vermelha. Então baixou o olhar para a boca dele. Não encontrava as palavras certas para descrevê-la e sempre foi boa com adjetivos.
Voltou a olhar para seus olhos e notou que ele tinha as sobrancelhas arqueadas. Pelos deuses! Até mesmo as sobrancelhas do homem eram atraentes. Eram grossas e tão escuras como o cabelo que roçava os ombros, de uma forma que achou muito sensual. Tinha agora um sorriso torto no rosto, mas ainda sem mostrar os dentes. Anna teve certeza que o homem sabia exatamente o que ela estava pensando, fazendo com que ela corasse novamente.
Ele suspirou e ela se sentiu… Estranha. Eram muitos sentimentos ao mesmo tempo. Não estava acostumada a tanta intensidade. Estava mais confusa do que há segundos atrás, quando pensou que não era possível que uma pessoa ficasse feliz e triste ao mesmo tempo.
Ele olhou o relógio que tinha no pulso e abriu os olhos como se estivesse surpreso, mas, mesmo com os olhos arregalados, eles continuavam pequenos e encantadores.
– Bem, peço desculpa novamente. Eu tenho que ir agora ou então perco o avião.
E então se foi. Anna virou-se e observou suas costas se afastarem, mas rapidamente desapareceram, pois além do aeroporto estar realmente muito cheio, ele andava rapidamente. O homem desconhecido continuou assim… Desconhecido. Não que fizesse muita diferença saber, não iriam se encontrar novamente. Provavelmente era inglês e parecia bastante rico, dava para ver na mala de viagens que levava e pelo terno que vestia. Ela conseguia distinguir um terno de marca. O pai, Jorge, tinha o estranho hobby de colecioná-los.

Suspirou profundamente. Era o homem mais bonito que já vira. Não tinha dúvidas disso.
Deu de ombros, virou e foi para a plataforma de embarque.

¹Conceito apresentado na obra Os dez livros da Arquitetura. O Homem descrito por Vitrúvio apresenta-se como um modelo ideal para o ser humano, cujas proporções são perfeitas, segundo o ideal clássico de beleza.


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