N/a: Coloque essa música.

É o cheiro de cappuccino com creme derramado. As últimas notas de uma música triste tocada no rádio. O fim do mundo. E não adianta continuar negando. Meu olhar acompanha a sua boina vermelha na fileira de “Aventuras”. As órbitas te seguem, mesmo sem permissão. É incontrolável. E mesmo que fosse, não seria. Suas sobrancelhas se erguem em dúvida e meus lábios se curvam em um sorriso instantaneamente. É mais forte do que eu. Mais forte do que a minha vontade de querer ser mais forte. Você coça sua cabeça, ainda indecisa, e suas unhas pintadas de um azul descascado são todo o contraste de que meus olhos necessitam. Como um imã. O som das suas sapatilhas pretas sobrepõe-se até ao irritante ventilador. O toc toc ressoando em minha mente. Você olha para mim e desvia ao me perceber te encarando. Cora. Forma uma linha com os lábios. Dá meia volta e se vira, agora na fileira “Catástrofes”. A ondulação de seus cabelos me lembra das dobras de meu lençol. O perfume do meu shampoo grudado em meu travesseiro. O espaço vazio ao meu lado que poderia muito bem ser preenchido por você. Mas que não é. E não vai. Porque você não me liga. Não olha para mim. Porque você me ignora. E eu não passo de um atendente de uma locadora de vídeos qualquer sem nenhum tostão nos bolsos. Mas que, em compensação, carrega o mundo na mochila. E você continua a não me olhar. Eu sorrio triste. Atendo pai e filho, que vieram alugar o mais novo e bizarro filme do Tim Burton, e volto a te procurar. Lá está você. E está me olhando. Engulo em seco. Coço a nuca. Finjo procurar por algo no balcão. Deixo cair uma pilha de capas de DVD. E lá está você. Rindo da minha atitude exacerbada. Porque me olha, moça? Não percebe que sou eu quem deve te encarar? Meus olhos são stalkers, não os teus. Nunca os teus. Você nega com a cabeça ao me ver abaixar atrás do balcão. Ainda posso te observar através do vidro. Tão linda. Tão tão linda. E tão cheia de um futuro cheio de mim. Suspiro e rio. Balanço a cabeça negativamente. Porque tão linda, pequena? O lugar no topo do pedestal é teu. Só teu. E meu. E nosso. Nosso sim, porque não? Minha mente é abarrotada de você. Você grande, você pequena, você de azul ou você de mim. Mas você, sim. Só você. E mim. Você começa a andar em minha direção. O que devo fazer? Ajeito o avental às pressas. Tudo com você é às pressas. Arrumo a gola da minha blusa. Checo o odor nas axilas, que poderia estar melhor. E você vem em câmera lenta. Medo. Receio. Desespero. O seu sorriso de dentes perfeitos. Me tremo todo. Por que faz isso? Trabalha na companhia elétrica agora? Os choques são terríveis. Abusivos. Languidos. E você nem liga. Continua vindo. E ninguém nota o que você faz comigo. Nem mesmo o pervertido na sessão pornô. Está quase me alcançando. Vontade de correr. Correr pros teus braços. Pros teus lábios. Pés estancados. Malditos sejam. Lá vem você. Só mais dois passos. O “Oi” já taxado em sua boca vermelha. E que boca. Inspiro fundo. Pigarreio. Suas mãos pousam no balcão e...

Silêncio.

Sim, silêncio. Ficamos assim, por segundos talvez, nos encarando. Seu olhar questionador me causa espasmos. Escondo os braços arrepiados sob o balcão. Você não precisa disso. Não precisa de mim. Só eu de você. E fim. Não vai falar nada, moça? Vai me deixar na espera de ouvir a sua voz? E esses teus olhos curiosos aí, não vão dizer nada também? Você tomba a sua cabeça. Uma graça. Coloca os DVDs sobre o balcão e se afasta. Não vá pra longe, moça. Fique aqui. Fique em mim. Pego o primeiro filme em mãos, sem tremer, sem respirar tampouco. Magnólia? Interessante. Ergo uma sobrancelha.
- O quê? – Você pergunta.
- “O quê” o quê? – O retardado em mim responde.
- Por quê?
- “Por quê” o quê?
Você franze o cenho. Me analisa. Corre os olhos pelo meu rosto. E não diz mais nada. Fico inquieto. Quero te ouvir de novo. Observar seus lábios se moverem. Você sorri. Você é maluca. E eu sou são. E nós somos. Pego o segundo DVD da pilha. Mad Max? Sorrio o seu sorriso. Você gosta, eu percebo. Eu também gosto. Gosto de você.
- E então? – Você pergunta.
- “E então” o quê?
- Fim do mundo ou vinte e um de dezembro?
- A vida.
- Assim, sem escolher?
- Exatamente assim.
Você morde o lábio inferior.
- Então seria o dia e não o fim.
Não, não seria. Seria você perto de mim.
- Sim.
- Não acredita?
- Não.
- Por quê?
- Não notei preliminares.
- O fim do mundo não é sexo, é o fim do mundo.
Mas é o fim. É o fim de mim.
- Não é o fim. Ou tudo o que os estudiosos de reencarnação teriam em mãos seria uma vida de ironia. Não é o fim. É o nosso fim. Mas não é o fim. Aquela montanha ali? Não é o fim dela. Nunca foi. E nunca será. Mas para nós, é o fim.
- Não entendo. Nosso fim ou nosso fim?
- Não se pode ter um fim sem começo. A não ser que se queira um. Você quer?
- Um fim ou um começo?
- Os dois.
- Qual vem primeiro?
- Boa pergunta. Não sei. Talvez as preliminares.
- Já disse que o fim do mundo não é sexo.
- As nossas preliminares, não do mundo.
- E quais seriam?
- Um café, uma caminhada, a sua casa ou a minha.
- Mas e o mundo?
- O mundo acaba.
- Com começo, meio e fim?
- Assim.
- Mas e as pessoas?
- As pessoas morrem.
- Elas sofrem?
- Não, nem sentem. A não ser que você queira que sim.
- Não quero.
- Então não.
- E porque tem que ser o fim?
- Não entendeu? Não é o fim.
- Mas e se fosse?
- Então seria.
- Mas não é.
- Não.
- Deve ser, se todo mundo anda dizendo.
- “Vai dar tudo certo” minha mãe disse, mas não era verdade.
- O que aconteceu?
- Ela morreu.
- De quê?
- Da dor do fim.
- Sinto muito.
- Obrigado.
Você suspira.
- Você é tão contraditório.
- Sou sim, mas é o fim, não é?
- É sim.
- E então, vai levar?
- Você ou o fim?
- Os dois.
- Só se vier com um começo.
- E meio.
- Então sim.
- Mas e o mundo?
- O mundo acabou, você não viu?
- Não, eu pisquei.
E a terra tremeu.


E fim.


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