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Nothing last forever, even cold november rain.
November Rain - Guns 'N Roses


Chapter 01.
(coloque para tocar quando ver a letra em português. Música do capítulo.)

A sexta—feira era o típico dia de sair com os amigos e frequentar um pub localizado a poucos quarteirões de minha casa. Era um pequeno pub, onde no primeiro dia do fim de semana tinha um microfone aberto para que alguns se arriscassem e tentassem convencer o público com as músicas. Porém, naquele dia eu não estava muito a fim de cantar, tampouco de sair. Mas Aimée, minha namorada ruiva de curvas sinuosas e sardas que recobriam a tez branca, insistira que eu não deveria me isolar em pleno dia de festa.
— Vai ter que me recompensar depois. — murmurei no ouvido dela, antes de depositar um beijo atrás de sua orelha e sentir o adocicado odor de rosas que ela transpirava. A risada que ela soltou tinha aquele tom pitoresco de safadeza e vergonha que eu gostava.
Apoiando o queixo sobre o topo da cabeça dela, comecei a observar os grupos no ambiente, meu olhar se perdendo entre as diversas fisionomias felizes que circundavam pelo salão até, sem querer, esbarrar numa garota de expressão pensativa. Franzi a testa, observando os lábios cheios se retorcerem numa linha fina por alguns segundos antes de parecer soltar um suspiro. Repeti o gesto dela inconscientemente e em seguida, percebi seu olhar sobre mim. Eu não a conhecia, mas seus olhos pareciam cheios de intimidade e afeto, algo que me deixou desconcertado. Ela não estava perto de mim, só que eu podia sentir sua presença me tocar. Expirei fundo: quem era aquela garota?
— Está tudo bem, ? — a ruiva me lançou um olhar questionador. Assenti firmemente, forçando um sorriso que deve ter sido o suficiente para convencê—la pelo menos naquele momento. Mordisquei o lábio inferior e espichei o olhar para fitar novamente a misteriosa garota, porém ela já não estava no mesmo lugar. Agora, ela se dirigia em passos leves, mas firmes em direção a pequena banqueta. Uma aura quase angelical parecia envolvê—la e, novamente, eu me senti desconcertado.
— Boa noite. — um timbre profundo soou pelo microfone e parecia que todos prestavam atenção no que ela dizia. — É a primeira vez que eu toco aqui. — ela abriu um sorriso de lado. — Então não joguem nada em mim se não gostarem! — um riso baixo se espalhou pelo bar, enquanto ela se ajeitava para ter acesso tanto ao microfone quanto ao teclado que sempre deixavam disponível em situações como aquela. — Ah propósito: me chamo .
Os dedos pálidos correram sobre as teclas tão claras, iniciando uma melodia lenta. encheu seu pulmão de ar, expirando fundo antes de começar a cantar baixinho, num tom trêmulo, demonstrando seu nervosismo. Mesmo vacilando, sua voz era tão profunda e cheia de emoção que eu estava tão inebriado quanto se tivesse entornado toda a cerveja daquele bar. Era impossível, não? Impossível alguém atrair sua atenção tão fervorosamente, sem sequer conhecê—la. Então ela me olhou novamente.
Your eyes are so blue. — engoli em seco. — I can't look away as we lay in the stillness. — um sorriso pequeno tomou—lhe os lábios, ao mesmo tempo em que eu umedecia os meus. Eu estava nervoso. — You whisper to me...
? — Aimée quebrou meu contato visual com . Ela carregava um olhar pesaroso, com lágrimas que lhe enchiam os olhos. — Me beije. — disse, apertando minha cintura e se pondo nas pontas dos pés. E eu me inclinei, complementando o beijo e sentindo seu gosto conhecido misturado ao sal de suas lágrimas. — A voz dela me enche de melancolia. É como se eu pudesse sentir tudo que a música fala, verso por verso. É como se me enchesse de um sentimento que eu desconhecia. — eu apenas sorri, porque entendia o quão difícil era descrever a sensação que a garota nos passava. Era agridoce, azeda e afável. Derretia—se no paladar, mas me fechava a garganta. — Está tudo bem?
— Está. — não, não estava. Eu havia sido tocado por alguém que desconhecia e estava tomado por algo que não conseguia definir. E, sentindo um olhar sobre mim, levantei o rosto e encontrei a doce garota de olhos profundos e misteriosos me encarando. Um sorriso estava pendurado fracamente em seus lábios e, como numa despedida, ela piscou os olhos significativamente para mim, antes de dar as costas e deixar o pub e me deixar confuso.

*

Dias havia passado desde aquela sexta—feira não tão qualquer. Todas às vezes, antes de dormir, minha mente se esvaziava aos poucos e, como uma canção de ninar, aquela música vinha embalar meus sonhos cheios de reflexos de olhares misteriosos e sorrisos melancólicos. Cada vez que acordava, me tornava mais frustrado por ainda me prender a uma estranha que surgira do nada e agora bagunçava meus pensamentos. Aimée não sabia, mas percebia minha perturbação de longe e minha quietude diante das palavras dela. A cada vez que olhava minha menina, sentia que seu olhar cheio de perguntas e principalmente, transbordando de mágoas por não me abrir completamente com ela. Eu sabia que toda vez que Aimée falava algo, na verdade, é como se me desse uma brecha para confessar. Mas, Aimée, como você me entenderia se eu dissesse que estou pensando em outra? . Então, qualquer ímpeto esmorecia no meu peito e eu só tornava a abrir um sorriso mecânico e pegava em suas mãos quentes e colocava sobre meu peito, pois queria que aquele calor esquentasse meu coração que parecia estar mergulhado na frieza.
Então, um dia, superamos a barreira do silêncio. Durante o café da manhã, Aimée se sentou à mesa com duas xícaras de café, estendendo—me uma. Seus cílios longos piscaram duradouramente e um pequenino suspiro chegou aos lábios, antes dela mordê—lo sofregamente. Ela deixou sua própria xícara e estendeu as duas mãos para o meu peito, repetindo aquele gesto que eu estava fazendo tantas vezes com ela.
— O que te atormenta, meu menino? — segurei firmemente as mãos dela e beijei o dorso de seus dedos.
— Eu não sei.
— Promete que me conta assim que descobrir? Me deixa a par de todas as suas decisões? — eu tive a impressão que ela sabia de algo que, talvez nem eu soubesse. Foi seu sorriso que me passou essa sensação esquisita de quem sabe um segredo e espera o momento certo para contar. E nessa vibe etérea que eu a deixei para caminhar sozinho pelo bairro.
Meus pés me guiavam cegamente até uma praça que eu frequentara tantas vezes com Aimée. Era um lugar onde havia um parquinho infantil, onde várias crianças passavam o dia gastando energia, enquanto seus pais lançavam olhares amorosos. Era assim que Aimée e eu encarávamos todas aquelas crianças: com tanto afeto, esperando que daqui a algum tempo, nossas próprias pudessem estar ali também. Por isso, meu olhar foi rapidamente atraído para uma roda de crianças perto de um chafariz da praça. Quando me aproximei para saber o que tanto captava sua atenção, surpreendi—me ao encontrar a menina de meus pensamentos sentada no chão, bem no centro da roda com um violão de madeira escura. De primeira, ela não me viu e continuou cantando alegremente para as crianças que a acompanhavam. Porém, num momento levantou os olhos e eles se encontraram diretamente com os meus: resfoleguei ao ver a surpresa deliciada de me ver e a ingênua vergonha de transparecer isso num único olhar. Meus lábios sussurraram mudos: Olá. E seu sorriso era a resposta que eu precisei para sentar ali e apreciar sua música. Uma criança pequenina de olhos espantosamente violetas e cabelos negros como o ébano permaneceu me encarando com o sorriso que se estendia de orelha a orelha e uma alegria que a fazia quicar no seu lugar.
— Olá, lindinha. — murmurei, baixinho, me inclinando para ela. — Você me conhece de algum lugar? — ela soltou uma risadinha travessa.
— Seus olhos são bonitos. — o elogio me derreteu. — A tia não mentiu quando disse que você tem o sorriso mais bonito do mundo. — totalmente sem graça, alisei os cabelos dela, antes de endireitar—me e lançar um olhar significativo para , que desviava o olhar, apesar do sorriso verdadeiro. Ora bolas! Uma criança que não deve ter mais que sete anos conseguiu me deixar sem palavras. Os minutos se arrastaram e os pequenos foram se dispersando, cada qual para seus pais ou babás, que chamavam para almoçar. A garotinha que antes falara comigo se levantou ao ver uma loira de olhos iguais aos seus se aproximar e que lançava um sorriso ao grupo. Me despedi dela com um aceno, mas não esperava que ela voltasse até mim carregando algumas florzinhas que cresciam junto aos gramados do parque.
— Dê para tia. — acariciei as bochechas rosadas por segundos antes que ela corresse para o colo da mãe, que sorria feito boba pelo gesto adorável.
— Sempre é um sucesso com as crianças? — a voz dela parecia perto demais, mesmo quando eu virei e a encontrei sentada no mesmo lugar, guardando o violão no case.
— Eu te pergunto a mesma coisa. — guardei as mãos no bolso, porque não sabia o que fazer com elas quando a via sorrir tão delicadamente. Um sorriso que parecia ser mais para suas próprias reflexões do que para mim.
— Eu gosto de crianças. — replicou, levantando o olhar para mim. — Sempre que as olho, me questiono em como perdemos aquela pureza que brilha em seus olhares depois de crescermos. E em como nos prendemos em sintaxes e acentos errados, esquecendo o que está sendo dito na frase. — franzi a testa diante da reflexão dela, sem compreender o que ela queria dizer. — Desculpe. Eu tenho essa mania de mais confundir que esclarecer.
— Hum. — murmurei, sem saber o que falar e isso pareceu diverti—la.
— Com licença. — disse, ficando em pé. Deu um sorriso aberto e uma piscadela, antes de girar os calcanhares e dar dois passos. Foram somente dois passos, porque eu a impedi de se afastar segurando em seu braço. — Sim? — questionou, virando o rosto para me encarar.
— Posso te acompanhar? — disse rapidamente, surpreendendo a ela e incrivelmente a mim. O que eu estava fazendo? Eu tinha uma namorada incrível em casa e estava me convidando para fazer companhia a uma garota que eu mal conhecia. Uma garota cujos olhos estavam arregalados e brilhavam em algo que eu desconhecia. Uma garota que assentiu minimamente e me estendeu um sorriso que enfraqueceu meus joelhos.
Então começamos a andar, ambos em silêncio. De rabo de olho, olhei a garota andar tranquilamente, com seus olhos voltados para o céu junto a um sorriso contido. Me perguntei se aquilo era porque eu estava ali, mas era besteira demais, pois talvez ela mal soubesse quem eu era.
— Por que não fala o que está pensando? — a voz dela fluiu calma e profunda, silenciando meus temores. — Você parece que está engasgado com algo.
— De onde você me conhece?
— De onde mais eu te conheceria, ? — replicou, baixando seus olhos até que chegassem aos meus. — Eu o vi no pub. Várias e várias vezes. — o sorriso que antes habitava seus lábios se desfez numa expressão séria, porém ainda simpática. — Sei que é idiota, mas algo em você me chamou a atenção.
— Entendo o que quer dizer. — desviei de seu olhar porque me sentia desnudo. — Nunca reparei em você.
— Nem eu repararia com uma namorada tão bonita quanto a sua. — o comentário me fez erguer as sobrancelhas.
— Você... — a insinuação causou uma risada nela.
— Não! — exclamou, tombando a cabeça em minha direção. — Dou a César o que é de César, . Sua namorada é realmente muito bonita e nunca negaria isso. — a constatação dela causou um estranhamento em mim. Aimée era, de fato, maravilhosa em todos os termos. Mas, em todo o tempo que estive com ela, nunca houve a sensação distinta que tinha com essa estranha garota no minuto em que ela me encarava. — O que foi? — então percebi que estava fitando—a por mais tempo que o desejado e corei. Era patético corar como um colegial quando se tinha 24 anos, mas era incontrolável e reações como essas pareciam certas perto da garota.
— Você me deixa desconcertado. — não tinha certeza se queria dizer isso, só que ela parecia aceitar esses argumentos mais facilmente que a maioria das pessoas. não falou nada, então engoli em seco. — Me desculpe.
— Não entendo porque as pessoas se desculpam por sinceridade e se sentem confortáveis quando mentem. — comentou, mexendo nos próprios cabelos. — E obrigada. Não me senti ofendida, pelo contrário! — exclamou. Andamos por mais algum tempo, até que chegamos a uma pequena casa, de fachada azul pálido, numa alameda cheia de árvores frondosas cujas folhas cairiam logo menos com a entrada do outono. — Eu moro aqui. — destrancou o portão de ferro e se virou para mim. — Obrigada pela companhia, . Mande lembranças para sua namorada. — novamente, ela me lançava aquelas piscadas de despedida que pareceram fechar a minha garganta.
— Nos veremos de novo? — a pergunta saiu mal calculada e enrubesci de novo, mordendo meu lábio e chutando meu traseiro mentalmente.
— Sempre que posso, estou na praça com o meu violão. — ela suspirou. — Mas talvez não devêssemos nos ver. Seria mais fácil. — passou a corrente pelo portão e fechou com o cadeado. — Tchau, . — Tchau. — disse. E lhe estendi as minúsculas flores que a menininha havia me dado. E eu juro ter visto uma profunda tristeza nos olhos dela quando segurou os pequeninos caules que isso me pegou desprevenido.

*

Eu juro que tentei me manter afastado e seguir com a minha vida nos dias que se seguiram. Contudo, quando eu tirava alguns minutos para andar sozinho, meus pés me levavam imediatamente a praça. Não foi uma ou duas vezes que me peguei olhando para o chafariz. Eu a olhava de longe, entretendo as crianças e pensava em me aproximar, mas só em pensar no amoroso olhar que Aimée me lançava antes de ir trabalhar no início dos dias, eu fugia me remoendo em culpa.
Percebi, porém, que na última semana, ela não esteve pela pracinha em dia algum. Talvez estivesse frequentando num horário diferente e eu era um desavisado que ficava circulando à toa por ali. Na quinta feira, voltando do mercadinho, escolhi o caminho mais longo através da praça e parei, mais uma vez, sem esperança de encontrá—la ali.
— Boa noite. — a voz suave me surpreendeu e deixei as sacolas de papel no meu colo caírem, com seu conteúdo se espalhando. Me ajoelhei e comecei a recolher as coisas e pude vê—la fazer o mesmo, tomando as coisas com uma delicadeza diferente da minha agitação. E, sem querer, nossas mãos se encostaram quando tocamos a lata de conservado. Foi um pequeno arrepio quente que se espalhou, como alguém tivesse soprado minha nuca. Era delicioso, mas surpreendente, o que fez retirar de imediato a mão.
— Obrigado. — disse, segurando novamente as sacolas e finalmente olhando cara—a—cara, observando o sorriso fraco no rosto da minha garota platônica. Seu rosto bonito estava mais magro, assim com o resto de seu corpo e olheiras escuras se destacavam. Os lábios que contornavam o sorriso estavam secos e parecia que fazia uma força para contê—los ali.
— É sempre um prazer. — apertou o violão contra seu corpo. — E desculpe se o assustei.
— Não foi nada. — engoli em seco e baixei o olhar. Afundamos nesse silêncio por algum tempo.
— Como está... — a voz dela morreu.
— Aimée está bem. Obrigado por perguntar. — disse, adivinhando sua pergunta.
— E você, como está? — os olhos grandes me encararam. E tive aquela sensação de não ter mais filtro sobre o que falava.
— Desconcertado. — isso a fez rir e me fez sorrir constrangido.
— Que tal conversarmos um pouco e ver se você para de se sentir embaraçado perto de mim?

Quando me vi, já estava sentado entre as árvores, com a garota de longos cabelos ao meu lado, dedilhando seu violão com uma calma e ternura que não conhecia. E, a conversa fluía aos poucos, devagarinho, começando sobre o tempo e depois se estendendo até gostos musicais e outras intimidades que eram partilhadas sem pressa e sem tempo. Era confortável estar sentado ali porque a tranquilidade que residia naquela mulher era transmitida para mim por palavras, gestos e sorrisos. E me vi caindo em seu encantamento como se acorda de um sonho: começando devagarinho, indeciso entre se aprofundar ou tocar o limbo até que a luz forte chegasse e irradiasse meus olhos.
Foi uma epifania que tive naquela praça: em meio ao seu canto baixo e os sons que seu violão cantava, eu a chamei e, assim que seu rosto chegou à altura do meu, fiz a única coisa que podia ser feita ou a ao menos, a única que realmente pensei. Seus lábios sob os meus estavam úmidos e ansiosos e se movimentaram lenta e inocentemente até que chegássemos a um consenso delicioso sobre o que fazer. Mas, tão rápido quanto senti seu toque molhado misturar—se ao meu e as pequenas descargas elétricas que aumentavam meu fervor, tão rápido me desfiz de seu beijo, lançando um olhar assustado e culpado. Estava tão cheio de pesar que recolhi imediatamente minhas sacolas e fui correndo para casa. Não esperava encontrar Aimée, porém assim que abri a porta e surpreendi sua expressão de amorosa felicidade ao me ver, me descobri afogando numa tormenta de culpa. Culpa por ter beijado e por ter adorado os poucos segundos. Culpa por saber que, naquele momento em que eu me inclinava para selar os lábios de Aimée naquela sala, eu não sentiria nem uma fagulha do que o outro causara. Eram lábios conhecidos por sua maciez e doçura que me acalentavam nas noites londrinas, sussurrando palavras amáveis. E eram lábios que agora, pareciam insossos.
— Você está bem, ? — os olhos verdes reconheceram a mudança na minha face e se prenderam no sorriso amarelo que lancei.
— Estou cansado, amor. Vou tomar um banho quente e deitar. — mesmo sabendo que havia algo errado, não houve manifesto de sua parte, então deixei as sacolas na cozinha e subi as escadas com passos cada vez mais pesados. Me desfiz das roupas e entrei no chuveiro de água escaldante. Minha pele queimava, mas não tanto quanto meus lábios diante da lembrança feminina que os havia alcançado. Soquei a parede do chuveiro três vezes e minha raiva se dissipou, restando apenas a decepção de mim mesmo. O banho talvez tenha durado mais que eu pensava porque quando entrei no quarto, Aimée estava enrolada em seu lado da cama. Ao aproximar—me, descobri olhos verdes tristes que me encaravam e eu toquei seu rosto, depois de me enfiar sob as cobertas.
— Você está diferente de quem eu me apaixonei, . — meu coração ficou em frangalhos diante da declaração dela. E para que não visse meus olhos ficarem avermelhados e uma ou duas lágrimas de culpa por sentir coisas indevidas, eu virei para o outro lado e fingi não perceber que ela não me abraçara para dormir.

*

— Você sabe que está agindo como maluco, certo? É uma obsessão. — exclamou , com seus pequenos olhos arregalados. — Você nem a conhece! — afundei meu rosto na dobra do cotovelo, como se aquilo pudesse me esconder do mundo. — E Aimée? Aquela mulher daria a vida por você, ! E olhe para mim quando te chamo de idiota! — fui obrigado a rir quando o observei.
... — endireitei—me na cadeira para que pudesse encarar realmente seus olhos. — Você acha que estou feliz com essa situação? Acha que sinto algum prazer quando vejo os olhos de Aimée e percebo que eles não brilham como antes? Que a cada vez que ela diz as três palavras mágicas, eu não vejo um pedaço do coração dela se desintegrar quando não a respondo na mesma intensidade? — Então você continua a amá—la. — confirmou meu amigo.
— É impossível eu deixar de amá—la de uma hora a outra, . O que estou te dizendo é que não existe mais intensidade entre nós. Em um momento, estávamos bem e felizes no nosso mundo e parece que uma onda nos alcançou e me levou. Ela está esperando que eu volte.
— Você não vai voltar? Por causa de uma desconhecida? — ele se inclinou para frente e cruzou as mãos sobre a mesa do restaurante onde estávamos. — Você enlouqueceu de vez.
— Eu só escrevo pecados, não tragédias. — ele sorriu diante da minha ironia. — Então, vamos pedir? — ao sinalizar para o garçom, esbarrei sem querer em alguém que passou ao meu lado. Quando me virei para pedir desculpas, encontrei o rosto enrubescido de . A desculpa se agarrou a minha garganta e um pico de adrenalina se instalou no meu corpo.
. — tanto quanto me chamaram.
— Esta é , . — engoli em seco ao ver a reação espantada dele, antes dele se levantar e cumprimentar a garota educadamente. Independente de quem fosse ela, sempre trataria com a maior educação e polidez que podia. Mesmo julgando erradas minhas ações. — Por favor, , sente—se e nos faça companhia.
— Vou ter que dispensar. — abriu um sorriso triste. Era impressão ou ela estava mais magra? Fazia uma semana que eu não a procurara. — Meu turno começa agora. Mas obrigada pelo convite! — seu sorriso de agradecimento foi direcionado a , que retribuiu com um aceno da cabeça. Quando estava a uma distância considerável da nossa mesa, ousou me olhar com a melhor expressão de espanto que tinha.
— O que foi?
— A Aimée é consideravelmente mais bonita, . — abri a boca para contestar. — Mas os olhos dessa garota! Nossa, quando eu os encaro, tenho vontade de escrever uma música sobre eles. — fui incapaz de segurar a gargalhada que me arranhou a garganta. — Do que está rindo, seu bastardo?!
— É porque, cada vez que olho para aqueles olhos, eu penso a mesma coisa. É quase como se eu me afogasse neles e não tivesse vontade alguma de sair.
— E a voz dela? Não temos possibilidade de enfiar ela na nossa banda? — olhou para trás, mesmo que ela não estivesse a nossa vista. — Era uma brisa da noite acariciando meu rosto.
— Você é viado demais, cara.
— E você 'tá fodido demais. — ele estendeu o punho fechado.
— Obrigado, amigo. — dei um soquinho na mão dele e suspirei. Enquanto almoçava, observava de rabo de olho a garota servindo outras mesas com gentileza e distribuindo sorrisos tímidos. tossia a cada vez que me pegava no flagra e eu voltava a olhar para o meu prato, pensando como eu era um babaca. Não passavam dez minutos e eu estava lá, de novo, olhando a mulher. Era como se houvesse um imã que grudasse meu olhar em seu passo firme e leve. Terminei meu almoço silenciosamente e gesticulei para o garçom, pedindo que fechasse nossa conta. Contudo, ao mesmo tempo, um cliente que conversava com estendeu a mão, apalpando—a de forma indecente. Eu não percebi quando fiquei em pé e nem todo o espaço que andei até chegar a eles. Na minha cabeça, eu estava sentado na mesa e no instante seguinte, eu torcia o braço do filho da mãe, ameaçando quebrá—lo. O resto dos clientes prendia a respiração e olhava assustada para mim.
— Senhor, por favor. — o gerente colocou a mão para intervir, mas uma olhada minha o fez recuar.
— Por favor, solte ele. — pediu , sua voz vibrando de leve.
— Se ele pedir desculpas e se retirar. — torci mais fortemente, vendo—o franzir a testa com a dor. estava atrás de mim, apertando meu ombro, num gesto mudo para que relaxasse. — Por favor, . — ela quase implorou, tocando minha mão. — Obrigada, mas eu resolvo sozinha. — afrouxei a torção e o cara retirou rapidamente a mão se encolhendo na cadeira. Inspirei fundo e dei as costas, vendo as pessoas relaxarem e voltarem atenção para sua mesa. Voltei à mesa apenas para deixar o pagamento dentro da pastinha e sai do restaurante a passos largos. Mas, na esquina do restaurante, lembrei—me do rosto assustado da garota e, sem pensar novamente, retornei ao restaurante e encontrei a mulher na mesa mais próxima da porta. Quando ela levantou o olhar e me encarou firmemente, senti a coragem para conseguir falar.
— Podemos conversar quando seu turno acabar? — ela ergueu as duas sobrancelhas, mas assentiu. O peso que havia se instalado em meu peito diminuiu um pouquinho. — Que horas?
— Às 22 horas.
— Voltarei aqui, então não fuja de mim. — a risada dela amoleceu meu nervosismo.
— Nem se eu tivesse a oportunidade. — era como se meu coração tivesse freado bruscamente e depois acelerasse ao máximo. Era estranho e divertido de sentir.

*

Às dez horas, em ponto, eu estava encostado numa árvore em frente ao restaurante. Girava uma margarida amarela entre os dedos e pensava sobre o que poderíamos conversar. Como eu chegaria naquele tópico super sutil de tê—la beijado e corrido como se fosse uma garota cujo pai chegasse no exato instante que beijava o namorado? Eu me afundei tanto nesses pensamentos que não percebi sua chegada silenciosa, apenas o toque macio de seus dedos no meu ombro. Meu susto arrancou uma risada dela e me fez rir também.
— Boa noite. — comentou ela, ajeitando uma mecha de seus cabelos para trás da orelha.
— Boa. — repliquei, mordiscando os lábios, meio sem palavras. Percebi seu olhar sobre a margarida e a estendi para ela. — Para você.
— Obrigada! — exclamou, levando flor ao nariz e aspirando o perfume fraco. Eu a encarava com um sorriso automático e ela percebeu. — O que foi?
— Ahn, nada. — cocei a nuca, sem graça.
— Às vezes, tenho a impressão que você me corteja com essa sua falta de jeito. — contou baixinho, como se confessa um segredo. Senti meu rosto enrubescer e fiquei ainda mais sem graça. — Você me chamou para conversar, e não para ficar olhando para o chão.
— Você é uma garota bem direta.
— Pode—se dizer que sim. — então ela abriu um sorriso calmo e balançou a cabeça numa única direção. — Vamos? — não sabia o que ela queria dizer com isso, então apenas a acompanhei, olhando para o chão enquanto tentava organizar meus pensamentos tolos. O que eu queria dizer para ela, afinal? Era eu que tinha convidado—a para tal coisa, então eu deveria começar a conversa, não? — . — levantei o rosto, encarando seus olhos absurdamente profundos. — Você está se matando por dentro por causa daquele beijo, não? — a constatação dela me fez soltar uma risada irônica.
— Se não estiver me matando, ao menos me tortura cruelmente.
— E por que você fez aquilo? — a verdade brincou na ponta da minha língua antes que fosse proferida.
— Porque eu quis. — riu sonoramente. — O que foi?
— Você fala como um garoto mimado.
— Talvez eu seja. — parei de forma brusca e me virei para ela. Analisei seus lábios cheios e que eram macios ao toque; e seus cabelos ligeiramente desgrenhados pelo vento. — Eu nunca quis tanto alguma coisa quanto eu quero você. — no fundo da minha cabeça, eu realmente desejava que ela ficasse ruborizada e sem graça. Ou que sorrisse abertamente e correspondesse em palavras igualitárias. Mas foi uma surpresa ao ver sua pele adquirir um tom pálido e seus olhos se encherem de tanta tristeza. Num piscar, a garota que estava a minha frente avançava em passos largos, sem sequer olhar para mim. Era uma negação, só que eu não queria aceitar, por isso alcancei—a, segurando seu braço.
— Cadê sua namorada, ? — questionou, inspirando fundo.
— Ela... — engoli em seco e observei seu expirar lento. Ela umedeceu os lábios.
— Volte para ela. Peça desculpas e a aconchegue em seus braços, sussurrando que a ama. Pegue—a no colo e leve para cama e faça amor lentamente com ela. E repita. Repita até que você não lembre quem eu sou. — o lábio inferior estava pálido e tremia de leve.
— Por quê? — questionei, apertando seu braço.
— Porque é o certo. — ela tentou dar um sorriso, que não se firmou. E eu vi em cada linha de sua expressão esbelta que ela desejava que fosse o contrário.
— E se eu não quiser? — o riso forçado me irritou.
— Está falando como um garoto mimado novamente. — olhou para minha mão. — E por favor, me solte. Está machucando meu braço. — eu não conseguia perceber a força que fazia até ver as marcas de meus dedos em sua pele homogênea.
. — alisei meus cabelos num gesto nervoso. — Eu sei que eu mal conheço você e que estou agindo como um irracional. Sei que parece que eu só preciso de você para me agradar entre quatro paredes por duas ou três horas e que, depois, eu te deixaria dormindo e nunca mais te procuraria. — segurei suas mãos e levei ao meu peito. — Mas não é isso. Eu não sei qual hipnose seus olhos lançaram sobre mim, tampouco quais encantamentos sua voz proferiu, só que preciso de você. Não me faça justificar algo que nem eu sequer sei pôr em palavras. Que, sequer, eu entendo completamente! — as lágrimas escorriam pelo rosto dela e me senti impulsionado a secá—las, mas não o fiz. Apenas soltei suas mãos e esfreguei—as uma contra a outra, antes de levá—las a minha boca, como se sentisse frio. — Se você soubesse o quanto estraçalha meu coração com essas palavras, não as diria em voz alta, . — queria entender como, apesar de suas lágrimas, sua voz se mantinha firme. — Eu não sei o que falar ou dizer que vá te convencer a voltar para a sua vida pacífica.
— Mas... — eu disse, engolindo o bolo na minha garganta.
— Mas eu sei que não posso arruinar algo desse jeito, não importando quanto eu esteja interessada. — umedeceu os lábios novamente e percebi como aquilo não a agradava de forma alguma.

Então ela disse adeus. E eu quis entender como palavras num tom tão suave conseguiam ser tão afiadas para deixar meu coração em pedaços.

*

A minha volta para casa tinha sido tão imersa em reflexões sobre meus sentimentos e eu que mal percebi a minha chegada. E, desatento como estava, não percebi que a luz da varanda estava acesa, sendo que eu sempre a esqueço de ligar. Só percebi que algo estava diferente quando encaixei a chave na fechadura e a porta estava aberta. Inspirei fundo e girei a maçaneta, encontrando Aimée encolhida num canto de nosso confortável sofá. Ela não se mexeu diante do barulho das minhas chaves nem do meu cumprimento. Como se soubesse o que fazer naquela situação, puxei uma das poltronas até a frente dela e me sentei, cabisbaixo.
— Eu pedi que você fosse franco comigo. — começou, sua voz rouca e baixa.
— Como descobriu?
— Daisy e o marido estavam passeando e, ao te ver, foram te cumprimentar e acabaram ouvindo parte da sua... Conversa. — Aimée embolou os dedos uns nos outros. A descrição física me lembra vagamente alguém. — levantei meu rosto. Se fosse para ter aquela conversa, que fosse de cabeça erguida.
— Lembra de quando fomos ao pub há pouco mais de um mês? — inspirei fundo e vi em seus olhos o reconhecimento.
— A garota de voz melancólica? — assenti, inclinando—me para frente. — Vocês se encontravam...?
— Encontrei com ela no parque aqui perto, só que foi sem querer. Na verdade, nada aconteceu propositalmente, Aimée. — ela levou as mãos aos lábios.
— O que te faltava aqui, Danny? Eu não supri seu amor, seu carinho? Não transamos o quanto você quis? — as lágrimas rolaram por sua pele pálida e eu juntei minhas mãos em suas bochechas, secando—as.
— Não, não, não! É claro que não! — proferi, recolhendo cada gota que manchava seu rosto imaculado. — A culpa não foi sua, pelo amor, Aimée! Nunca me faltou nada. Eu não estava procurando nada nem ninguém!
— Então como você a achou?! — vociferou, retirando minhas mãos de seu rosto. — Como você... — um soluço completou sua frase e eu me desmoronei ainda mais.
— Não tenho as respostas que eu quero, quiçá as que você quer, Aimée. — murmurei. Então senti seus tapas e socos. Não fiz nada para me defender, apenas fiquei parado, sentindo seus punhos baterem contra minha pele até que sua raiva se esvaísse por completo. Até que ela caísse de joelhos no chão, chorando entre minhas pernas e eu me abaixasse para abraçá—la, enquanto seus soluços molhariam minha camisa. Entendi o que falara sobre ter o coração estraçalhado por palavras. O meu, que já não estava bem antes, agora se quebra em minúsculos cristais diante da terrível sensação de separação. Porque ela tinha sido meu apoio durante dois anos, a mulher com quem eu mais me envolvera. Sabia que poderia estar me equivocando com o rompimento, mas era melhor que estender essa novela por mais alguns capítulos. Quando seus soluços pararam, ela se levantou e ajeitou os fios ruivos atrás da orelha.
— Vou pedir um pouco de paciência para eu sair daqui. — disse, não olhando em meus olhos. — Tenho que falar com minha irmã e, se ela deixar, eu me mudo para a casa dela.
— Por favor, fique o tempo que precisar, Aimée. O suficiente para achar uma casa, se quiser.
— Não, Danny. — vi um sorriso que ia aos extremos de tristeza se formar em seus lábios. — Não vou conseguir olhar para você todos os dias e me perguntar o que eu fiz errado. — beijou o topo da minha cabeça e deixou a sala. Eu me encolhi no sofá do mesmo modo como ela fizera e dormi. Dormi desejando que tudo fosse um sonho.

*

O tempo que passou depois foi cruelmente só. Evitava ficar em casa para não ver por todos os lados a memória de Aimée, pessoa a qual sentia muitas saudades da companhia agradável. Também, quando precisava ir a algum lugar, contornava por caminhos mais longos, querendo evitar um possível encontro com . Era assim que meus dias se seguiam, afundados numa solidão depressiva. Até que, por fim, quando meus amigos — principalmente —, pensou que eu poderia me suicidar, ele me obrigou a sair de casa e tomar alguma coisa com eles no pub onde todos os meus problemas haviam começado.
Na quinta cerveja, quando tudo estava ficando mais borrado (acredito, não sou um bom bebedor, ou seja, tenho baixa resistência!), alguém pareceu familiar no meio de tanta gente. Não deveria ser surpreendente o fato da minha ex—namorada estar sentada no mesmo bar que eu. Analisei seu rosto e vi olheiras profundas, mesmo que ela esboçasse um sorriso na direção de sua irmã, que lhe fazia companhia. Mas, parecendo ouvir o chamado da minha mente, ela se virou e encontrou meu olhar, arregalando um pouco seus olhos verdes, antes de encolher os ombros. Aquela sensação de medo e tristeza me fez ter nojo de mim mesmo por causá—la a alguma mulher. Abaixei minha cabeça e virei o resto do conteúdo da garrafa em dois goles. De rabo de olho, vi que ela discutia com a minha discretamente e apontava na minha direção. Suspirei, querendo uma resposta divina.
E, na minha cabeça, aparentemente a resposta foi um microfone vazio na noite de karaokê. Fiquei em pé, numa súbita consciência iluminada e caminhei em passos firmes até o palco. Tomei um violão deixado para a ocasião e comecei a dedilhá—lo, para saber se estava afinado. Todos nos bar me encaravam, esperando ação minha, com exceção de , que sinalizava para que eu descesse. Sacudi a cabeça negativamente para ele, antes de olhar para o pouco público daquela noite fria de novembro.
— Boa noite. — algumas pessoas replicaram educadamente. — Eu subi aqui e não faço ideia do que falar. — poucas pessoas riram da minha falta de jeito. — Mas eu machuquei uma pessoa legal, sabe? É uma garota maravilhosa que nunca mereceu um perdedor como eu!— o olhar de Aimée estava sobre mim e eu tremia levemente. — E, quando eu penso nas coisas que deveria dizer a ela, uma única música floresce a minha cabeça. Talvez seja apropriado porque é um clássico e porque ela gosta de clássicos. — sorri de lado, negando meu nervosismo. — Espero que gostem.

Fechei os olhos e comecei a dedilhar as cordas do violão, limpando minha garganta, baixinho, antes de me aproximar ainda mais do microfone e começar a cantar os versos que pareciam ter sido escritas para aquela situação.

Fale comigo suavemente,
Há algo em seus olhos
Não baixe sua cabeça na tristeza
E por favor, não chore

Sei como você se sente por dentro
Eu já estive lá antes
Algo está mudando dentro de você
E você não sabe



Eu ainda mantinha meus olhos fechados, tentando encher o refrão com todas as minhas desculpas. Eu queria que, através da minha voz, como tantas vezes Aimée fizera, ela entendesse que eu estava me desculpando. Que eu estava implorando seu perdão com toda a intensidade que minhas cordas vocais pudessem passar.

Não chore esta noite
Existe um paraíso sobre você querida
E não chore esta noite

Como num sussurro, naquela ligação que ela e eu ainda compartilhávamos, ouvi sua voz me pedir que a encarasse. Então o fiz, encontrando seus olhos chorosos e um sorriso que perdurava sobre os lábios que eu já havia beijado várias e várias vezes.

Continuarei pensando em você
E nos nossos momentos que tivemos, querida

Sua resignação veio em forma de um único assentir de sua cabeça e um corpo minimamente elevado, como num brinde a nós dois. Ao fim de uma história que já havia durado o suficiente para nos deixar com boas lembranças. Por isso, eu cantei com mais intensidade aqueles últimos versos e dedilhei aqueles acordes, pois era nossa última música como nós.

Querida, talvez algum dia
Não chore, não chore por nada
Não chore esta noite

Inspirei fundo e molhei meus lábios antes de deixar o violão de lado, sob os aplausos dos presentes no pub. Um alívio percorreu minhas extremidades conforme eu descia do pequeno palco e caminhava em direção à ruiva, cujo olhar permanecia constante sobre mim.
— Aimée. — tomei suas duas mãos e levei aos lábios. Ela acariciou meu rosto com seus dedos delicados.
— Obrigada. — ela disse olhando diretamente em meus olhos. — Você me fez feliz, . Ainda me dói saber que existe outra para que você faça feliz também.
— Você vai encontrar alguém melhor do que eu. Que vá te amar do início ao fim do dia, sem interrupções. Um homem que vai amar cada pedacinho seu e amá—la por inteiro até que você se afogue nos sentimentos dele. Um dia, nos encontraremos nesses encontros casuais e acharemos a explicação para não continuarmos o que começou há dois anos. — o verde de seus olhos pareceu transparecer aos poucos, deixando que a mágoa fosse diluída em suas lágrimas salgadas.
— Odeio quando poetiza tudo, . — ela riu, afastando as lágrimas com o dorso de suas mãos. Ela respirou profundamente e deixou o ar sair pela boca lentamente, com os olhos fechados antes de me encarar novamente. — Chega de despedidas! — então me empurrou com as palmas levemente. Não usou força ou qualquer outra coisa, mas entendi o que seu gesto queria dizer. Beijei suas mãos pela última vez e, com o melhor sorriso que pude oferecer, deixei—a com sua irmã.

Voltei rapidamente a minha mesa e deixei minha parte da conta e me despedi dos meus amigos, mesmo sob uma chuva de reclamações. Eu não tinha mais vontade de ficar naquele lugar cheio. Eu precisava de ar fresco e de um momento sozinho com meus pensamentos de bêbado. Caminhei sob as nuvens de cor estranha, na rua estranhamente vazia para aquele horário. Andei sozinho até meu lugar não tão secreto, me sentando num balanço e encostando minha cabeça na corrente gelada. Uma chuva fina começou e pouco me importei de estar ficando encharcado a cada gota. Era bom e reconfortante as gotas geladas sobre a minha pele quente. Até que, de súbito, elas pararam de cair sobre mim, apesar de molharem ao meu redor.
— Pretende pegar uma pneumonia e morrer? — sem querer, suspirei diante da voz absolutamente deliciosa que encantava meus ouvidos.
— Talvez. — murmurei, aconchegando meu rosto na corrente do balanço. — O que é a morte?
— É a perda de tudo. — ela respondeu, dando a volta por mim e parando a minha frente. — É a perda de uma batida e um suspiro que não virá. — piscou seus grandes olhos e sorriu. — Por que faz isso comigo? — ergueu suas sobrancelhas, me questionando sobre meu próprio questionamento. — Diz que não podemos ficar juntos, mas cada vez que desejo que você esteja aqui, você aparece com seu sorriso e seus olhos. — afundei o rosto nas minhas mãos porque eu não queria vê—la ali. Só que ao mesmo tempo, eu queria abraçar sua cintura e apoiar meu rosto em sua barriga. — Me desculpe, então. — a chuva voltou a me molhar e eu não quis olhar para ver que estava sozinho. Mas eu o fiz. Afastei as mãos de meus olhos e encontrei a silhueta da mulher ainda parada a minha frente, com a água banhando seu corpo. — Me desculpe por tudo. Eu nunca quis que você... — ela engoliu as palavras, como se quisesse reorganizar seus pensamentos. — Sei que vai me achar louca, , mas desde a primeira vez que eu o vi e escutei sua voz... Era como se uma parte de mim reconhecesse você, mesmo que nunca tivéssemos nos encontrado. — meus lábios se abriram diante dessa confissão, porque era o que, desde a primeira vez, eu quis exprimir e não conseguia. baixou o olhar até mim e acariciou meu rosto com tamanha delicadeza que parecia apenas o toque de uma pena a roçar na minha pele.
— Quando...
— Bem antes de você me notar. — ela afastou a mão de mim. — Eu deveria ter ido embora assim que... Mas eu insisti em ficar. Tão tola. — desta vez, parecia que falava mais consigo mesma do que comigo. — Bom, o que está feito, está feito. — prendeu o cabo do guarda chuva em seu pulso e escondeu as mãos no bolso do casaco. — . — não precisei que ela completasse a frase, pois seus olhos me disseram tudo. Ela me deu as costas. Então eu fiquei em pé e, com passos tortos, abracei seu corpo, encaixando meu rosto na curva de seu pescoço.
— Não vá. — sussurrei, apertando forte seu corpo, mesmo que não se mexesse. Ela sussurrou meu nome, como se implorasse para que eu parasse. — Fica comigo.
— E se eu dissesse que não daria certo?
— Então eu diria para trabalharmos juntos até que desse. — ela pareceu resfolegar diante das minhas palavras.
— E se mesmo assim...
— Pare com o se e comece com o quando. — sua mão tocou a minha e eu sorri de verdade. Assim, se virou, ainda abraçada por mim. Seus olhos pareciam tímidos e seu sorriso hesitante. Alisei as bochechas molhadas até o contorno de seus lábios, onde meu polegar refez o desenho.
— Diz que tudo vai dar certo, . — me inclinei quase beijando sua boca.
Quando não der, faremos dar certo de um jeito ou outro. — e então, dei fim ao pouco que nos separava. Ela correspondeu o beijo com paixão, distribuindo lentamente seus toques sobre os meus, com uma ternura que eu não esperava. Ao mesmo tempo em que me incitava, ela acariciava o tormento em minha mente e era como se sussurrasse paz ao meu coração.
A chuva apertou sobre nós e, ao nos afastarmos, mal conseguíamos nos ver. Mas eu pude enxergar seu sorriso de felicidade em meio a tanta água e seu olhar para os céus, como se agradecesse por tudo que lhe acontecia. Seus braços se enrolaram em meu pescoço e ela se inclinou ao pé do meu ouvido e disse:
— É uma chuva fria de novembro.

Chapter 02.

Eu queria dizer que depois desse dia, tudo havia se tornado as mil maravilhas. Que estávamos ganhando o prêmio de "Casal mais bonito do mundo" ou que alguém quisesse escrever um livro sobre nosso romance, mas não. Éramos realmente um casal muito bonito e se esforçava todos os dias para ser melhor namorada que eu poderia ter e, na maioria das vezes, ela conseguia. O início do relacionamento foi divertido e nós tivemos um primeiro, segundo e terceiro encontro, com direito a música cantada ao pé do ouvido e colheradas de sobremesa na boca. Tivemos nossa primeira vez, entre olhares tímidos e rubores em suas bochechas a cada peça perdida, assim como a primeira manhã após, onde ela acordou entre meus braços com um sorriso sonolento. Um primeiro encontro com meus amigos para que ela conquistasse todos com seu jeito manso e olhar firme. E os dias foram passando até completarmos mais um mês, adicionando—os num pequeno calendário na minha cabeceira. Todavia, eu ainda sentia que estava presa a alguma coisa e não me contava. Em seus olhos, por trás de toda a felicidade, havia certa melancolia que me incomodava e, mesmo que eu tocasse no assunto, ela desviava dele com um sorriso paciente.
— Só está imaginando coisas. — sussurrou ao meu ouvido, enquanto sentava sobre meu colo e me cobria com seus beijos.
— Não sei o que te atormenta, mas promete que me conta assim que descobrir? Me deixa a par de todas as suas decisões? — murmurei contra sua bochecha. E então, ela repetiu:
Só está imaginando coisas.

Eu não estava e nunca estive. Fazia 12 dias que eu não a via. Não havia ninguém em sua casa e ela não atendia ao seu celular. Quando fui ao restaurante aonde ela trabalhava, seu gerente havia dito que tinha pedido dispensa por duas semanas. Nunca estive tão perdido quanto agora. Não sabia por que tinha ido embora sem um aviso prévio, sem um adeus. E não sabia por qual motivo. Seria outro homem? Seria algo que eu tinha feito? Ou até mesmo que não tinha feito?
Quando essas dúvidas martelavam em minha cabeça, apenas o álcool conseguia diminui—las. E era num bar que eu estava naquele momento, afogando as mágoas, incomodando a bartender como meus problemas que nada a envolviam.
— Por que ela fez isso? — questionei, a voz engrolada por causa do excesso de vodca e lágrimas.
— Às vezes, houve uma emergência e ela teve que ir. E logo menos, voltará. — eu ri de suas desculpas. A mulher me olhou com pena e escondi meu rosto porque se estava sendo digno daquele sentimento, eu deveria estar no fundo do poço. — Vamos fechar o bar. — ela acariciou meus cabelos, como uma mãe faz com seu filho que estava triste. Eu assenti e com dificuldade, separei o dinheiro e joguei em cima do balcão. — Você não vai embora sozinho, vai?! — questionou ela, segurando meu ombro. Sorri para ela, afastando sua mão e andei para fora do bar. Meu rosto ficou gelado repentinamente pela brisa da noite e parei por um momento, observando a rua vazia. Peguei meu celular no bolso e disquei um número dos favoritos. Chamou longamente até que uma voz sonolenta atendesse.
— Quem é?
— Você devia ver a noite agora. — comentei, começando a andar distraidamente.
, seu maldito, vai dormir. — replicou , agora com fúria misturada ao seu tom de voz. — O que 'tá fazendo acordado essa hora?
— Comemorando quatro meses de namoro! — exclamei, gargalhando. E não soube o motivo do gosto salgado na minha boca. — Vem comigo! — ficou silencioso no outro lado da linha por um momento.
— Você... — ele suspirou. — Onde você está? Eu vou te buscar.
— Ah, ao menos você não me abandona! — disse, tropeçando um pouco nas palavras. — Não que nem a... A... — não consegui xingá—la. Não consegui fazer nada, a não ser ajoelhar onde estava e deixar a dor no meu peito.
— Cara, onde você tá?! — o telefone caiu de minha mão e eu me dobrei. Porque eu não conseguia respirar, não conseguia pensar direito. Mas que merda de feitiço aquela garota tinha jogado em mim que me deixava tão transtornado? E a questão só martelava em diversos tons na minha cabeça. Por quê? Por quê?
Por quê?
Então, aconteceu rápido demais para que eu compreendesse. A dor pareceu se extinguir e eu tive a impressão de flutuar num limbo cuja sensação era semelhante ao colo de . E por isso, eu sorri. Ela estava de volta.

*

Fui acordado por uma extrema dor física. Até mesmo respirar doía e eu queria poder não fazê—lo, mas a necessidade de oxigênio era maior. Inspirei uma, duas, três vezes e percebi que ainda não havia aberto os olhos. Com um esforço descomunal, o fiz e uma luz forte se irradiou contra eles, me obrigando a fechá—los novamente.
— Achei que morrer fosse menos doloroso. — resmunguei e alguém me deu um tapa molhado.
— Você vai morrer por ser um babaca. — a voz que ecoou fez meu coração disparar e, mesmo que doesse, abri os olhos novamente, procurando a fonte das palavras, encontrando—a ao meu lado.
. — disse roucamente e ela abaixou o rosto. Era minha e, ao mesmo tempo, não era: seus cabelos negros caíam pelo rosto, mas agora paravam na altura do seu queixo; e seus olhos profundos pareciam opacos. Seu rosto estava bem mais magro, com suas maçãs destacadas. Havia olheiras profundas e sua pele estava pálida e parecia ressecada.
— Eu. — e tentou sorrir, mas seus lábios estavam cortados e doloridos de tão secos.
— O que está fazendo? — ela olhou para o lado, fitando um suporte de soro por alguns segundos, antes de olhar para mim.
— Você foi atropelado e sua sorte foi que o carro não estava a uma velocidade muito alta, então você só quebrou a perna, . — ela estendeu a mão esquerda, tocando meu braço. Observei hematomas espalhados na sua pele.
— Onde você esteve? Por que... — meus olhos se umedeceram, tanto por vê—la e tocá—la quanto por me movimentar bruscamente e sentir dor. — Por que me abandonou?
— Não te abandonei, seu idiota suicida. — exclamou baixo. Ela ficou em pé e eu vi sua calça de moletom e regata frouxas diante de seu emagrecimento súbito. Arregalei meus olhos quando a vi carregando o suporte de soro com ela, pois ele estava conectado em sua mão direita. — Eu vou chamar o médico. — deixou a sala e eu me sentei, tentando ignorar toda a dor que parecia esmagar meus músculos. voltou em seguida com o médico que começou a me questionar diversas coisas, tentando diagnosticar a gravidade das sequelas que o atropelamento poderia ter causado. Cerca de meia hora após, ele constatou que só havia danos físicos e, acertando a dose de analgésico numa máquina ao lado da minha maca, deixou a sala.
. — chamei baixinho, observando suas costas magras. Ela olhava para os enfermeiros que estavam no corredor. — Por que você fez isso? Por que você está aqui? O que aconteceu com você? — o silêncio dela me incomodou. — Por que não diz nada? — ela se virou e vi seus olhos vermelhos. Ela lambeu seus lábios, tentando umedecê—los.
— Danny. — chegou até a mim e sentou na beira da maca, pegando minhas mãos entre as suas. — Não sei nem como começar.
— Talvez pelo início. — sugeri, um pouco apressado e rude, o que a magoou visivelmente.
— É válido. — replicou em seu tom calmo. — Há alguns meses, eu fiz exames de rotina e meu médico constatou um nódulo no meu pâncreas por ultrassonografia. — prendi a respiração, esperando pelo pior. — Fiz uma cirurgia para remover e o material foi levado para biópsia. — ela levou a mãos aos lábios e apertou o inferior entre o indicador e polegar. — Era maligno e comecei a quimioterapia. — baixou o olhar para seus próprios joelhos. O tratamento adjuvante não durou muito tempo e não tive tantos efeitos colaterais. — levou a mão aos cabelos. — Um mês depois que começamos a namorar, voltei ao médico e houve reincidência. — soltei o ar esvaziando quase que por completo meus pulmões. — Após o diagnóstico, comecei a fazer os preparativos para cirurgia e há treze dias, eu fui internada para operação e retomada da quimioterapia.
— Por que não me falou? — sussurrei, sentindo as lágrimas tocarem minha boca. — Eu podia...
— Podia o que? — replicou, apertando meu braço com carinho. — Como eu ia falar para o cara que eu amo que eu tenho câncer e pode ser que morra? — começou a chorar.
— Falasse, porra! — gritei, mas ela não se assustou. Pelo contrário, ergueu o rosto magro e seus olhos chorosos fizeram meu coração descompassar. — Você me deixou pensando merda durante todo esse tempo! Eu não conseguia dormir, trabalhar ou fazer qualquer outra coisa que não pensar na porra do motivo que eu poderia ter dado para você ir embora sem mais nem menos! Eu... — desabei, deixando meu choro correr livre, ao passo que ela me abraçava.
— Me desculpe. — pediu, ao pé do meu ouvido. — Se soubesse que você ficaria tão destruído, eu... — ela suspirou. — Não sei o que faria, na realidade. Por mim, você não saberia disso, Danny. — Acho que eu preferia que tivesse terminado comigo. — exclamei contra o corpo dela e aquilo quebrou o coração de .
— Eu pensei em fazer isso. — confessou, alisando meus cabelos. — Só que eu fui tão egoísta que eu quis você para mim, mesmo sabendo que poderia fazê—lo sofrer. Eu fui ridícula e patética em querer mantê—lo e talvez esse foi meu maior erro.
— Você está sendo patética e ridícula agora. — proferi, me afastando dela. Sequei meu rosto com o lençol e segurei suas mãos. — Vai ser difícil perdoá—la, sabe por quê? — o lábio dela tremeu e eu segurei suas mãos. — Você ficou sofrendo sozinha, guardando esse segredo. Você está em ruínas por causa do seu medo de me quebrar. Eu sei que você é forte, mas até mesmo o mais resistente dos pilares pode vir a rachar, , e você me escondeu isso. De uma forma misteriosa, destino, Deus, chame do que quiser, eu vim parar aqui. Atropelado e todo ferrado, porém, se não fosse assim, eu não te encontraria. — beijei suas mãos, enquanto grossas lágrimas escorriam por seu rosto. — Nós vamos passar por isso e eu prometo, , que daqui a algum tempo, olharemos para isso e diremos que foi só mais um obstáculo ultrapassado. — ela assentiu e percebi que, mesmo pequeno, havia um sorriso em seus lábios.

*

O tempo que passou depois desse dia poderia ser dividido em dois pontos: dias de céus e dias de inferno.
Os dias de céu eram quando podíamos agir como um casal de verdade, podendo sair um pouco e nos divertir, sem a sombra do câncer por nossas cabeças. Eram as horas que passávamos conversando sobre tudo e ela se mostrava aberta emocionalmente falando. Eram os dias que eu conseguia fazê—la sair de casa para andarmos sob o sol da manhã e comermos em algum lugar que a agradasse, assim como quando marcávamos de sair com nossos amigos para beber ou apreciar a noite.
Porém, existiam os dias de inferno: eram as épocas da quimioterapia, que aconteciam a cada duas semanas. Os efeitos colaterais eram intensos e desgastavam ainda mais o corpo de . Às vezes, por causa do vômito ou diarreia contínua, ela precisava voltar ao hospital para reidratação e, nesses dias, quando ficava ao lado de seu leito, eu podia observar as expressões dos enfermeiros e médicos. Mesmo que tentassem agirem de forma neutra, havia a conformação de que aquela paciente não duraria muito. Depois de um tempo, eu parei de ficar ao lado de seu leito por dois motivos: um deles era a própria , que se ficava desgostosa em vê—la daquela maneira. Ela se escondia embaixo das cobertas e de suas muitas vestimentas de inverno (afinal, ela era imunossuprimida e pacientes assim devem ter a maior cautela para não contraírem doenças simples como gripe, pois o quadro evoluía para casos graves com elevada rapidez) e se virava para o outro lado, envergonhada de tudo. Eu a ouvia comentar com sua melhor amiga, , como se odiava por estar assim. Se odiava por não ser a mulher que seria capaz de estar ao seu lado.
O segundo motivo era ainda pior: eu não ficava ao seu lado porque eu sentia pena. Mas não era dela e sim de mim: pena de ser um filho da puta que não aguentava ficar ao lado da mulher que amava a cada vez que via a decepção nos olhares dos médicos. Pena da minha incapacidade de agir naquela situação e pena porque ela estava tentando ser forte por nós dois e eu não conseguia fazer isso. Então nesses dias, depois de ficar algum tempo com ela, eu deixava o quarto e caminhava para a capela do hospital e, ajoelhado no chão, chorava compulsivamente. Chorava por mim e por ela e pedia que alguém, o que quer que fosse, nos ajudasse a seguir em frente e nos dessa força para nos sustentarmos.
O problema é que havia mais dias de inferno do que de céu. E esses dias pareciam competir para ver qual seria o pior.

*

Eu estava na cafeteria, comendo qualquer coisa para disfarçar o vazio no meu estômago quando o médico de , — Dr. Lawrence me puxou para conversarmos. Ele sentou numa das mesas de fórmica com tampo laranja e cruzou as mãos grandes e de unhas curtas, além de ficar olhando um tempo para elas.
— Sr. ...
. — corrigi, vendo sua aceitação.
, não sei como dar esta notícia. — a essa altura, minha ansiedade já havia se transformado em lágrimas e eu lutava contra soluços que queriam se tornar sonoros. — O tratamento que fizemos não trouxe qualquer resultado e ainda há células cancerosas na região inicial. — eu abaixei minha cabeça sobre meus braços e escondi meu rosto, desejando me esconder do mundo. Dr. Lawrence esperou por um longo tempo até voltar a falar novamente. — Existe um novo tratamento. — eu levantei o olhar e encontrei seu rosto de feições aristocráticas e olhos que traziam certa confiança.
— E pode curá—la? — minha voz rouca e impregnada de choro era terrível.
— Os melhores resultados foram apresentados para quem respondeu à quimio. — engoli em seco. — Mas queria incluí—la nos testes.
— Você já falou com ela? — o médico assentiu.
negou. Disse que não quer ser cobaia. — ele inspirou fundo antes de continuar. — Por isso tenho esperança que você possa convencê—la. — assenti e ele se despediu com um aceno.

Depois de passar no banheiro e melhorar minha cara, fui direto ao seu quarto conversar com . Ela me recebeu com um sorriso fraco e nos pusemos conversar, até que do modo mais sutil que pude, coloquei a proposta oferecida pelo Dr. Lawrence.
— Não. — replicou de maneira firme. — Estou cansada, .
— Mas ... — peguei em suas mãos.
— Não. — me repeliu e cruzou as mãos sobre seu colo. — Eu não consigo mais.
— Por favor, , Dr. Lawrence tem se mostrado otimista com o resultado e...
— Chega! — exclamou, levando as mãos à cabeça, alisando o lenço de seda colorida que usava depois que seu cabelo começou a esvair. — Olhe isso, ! — apontou para seu corpo, seu rosto, para si por inteiro. E as lágrimas começaram a correr. — Eu não sou mais mulher, : não tenho mais cabelo, posso contar quantos ossos tenho e não tenho libido alguma! Passo mais tempo conversando com o vaso sanitário do que com você e a única vaidade que tenho é comprar mais lenços para cobrir minha cabeça raspada! — Pelo amor de Deus, , pare com isso!
— Não sabe o quanto corta meu coração vê—lo dormir aqui dia após dia e seu desespero cada vez que escuta um bipe diferente. — e ela abaixava o rosto e se esquivava a cada toque meu. — E as vezes que eu tenho que fingir que não vejo a pena nos seus olhos, meu Deus, como isso dói! — sua voz estava exaltada e eu não sabia o que fazer enquanto ela se debatia. — Isso tem que acabar, ! Não dá mais para aguentar!
— O que você quer dizer? — olhei em seus olhos chorosos e percebi o que estava escrito neles.
Nós tem que acabar, , não dá mais!
— Por que isso agora, ?! Seja racional e... — segurei em seus ombros. — Por que agora?
— Vai embora. — pediu, sacudindo os ombros e eu fiz força para segurá—la em meus braços. E, não soube como, conforme ela conseguiu empurrar—me para longe, o circuito do soro se prendeu em meu braço e arrancou o acesso venoso dela, fazendo sangue começar a jorrar no dorso de sua mão. Fiquei olhando, sem saber o que fazer, enquanto ela apertava o rasgo e impedia o sangue de sair. Então, corri do quarto dela e avisei a primeira enfermeira que vi, antes de seguir sem destino pelos corredores do hospital até parar na capela.
Eu vibrava em ódio, decepção e andando até o pequeno altar que tinha, eu comecei a amaldiçoar a quem quer que fosse em voz alta. E a questionar porque fazia isso com ela e comigo. O que tínhamos feito de errado para levantar todo esse ódio voltado a nós? Sabia que não tinha sido um bom cristão, mas não matei, roubei ou seja lá o que fosse um pecado grave para receber tamanha cruz! E eu gritei isso a bons brados, ouvindo minha raiva ecoar dentro da capela junto ao meu choro inconveniente. Quando eu caí de joelhos no chão, já não tinha força para nada, exceto para chorar e repetir a mesma coisa várias vezes: por quê? Por quê? Por quê? Fiquei assim por longos minutos até sentir o toque no meu ombro.
— Sim? — resmunguei, limpando meu rosto com a manga da blusa. A resposta veio em forma de uma carícia em meus cabelos, daquele modo com avós fazem com seus netos, o que me fez levantar o rosto e encarar o dono da mão. Me surpreendi com um senhor que aparentava uns 75 anos me encarando com olhos —piscina intensos. — O que foi?
— Sua dor me chamou atenção. — replicou, estendendo a mão para mim. — E talvez a do resto do hospital. — ele sorriu como um avô sorri para seu neto quando este cai da bicicleta. — Precisa conversar com alguém? — continuei encarando—o, sem responder, até que ele se cansou e sentou no banco mais perto de mim, pondo as mãos enrugadas sobre seus joelhos. — Por quem chora, jovem? Sua mãe, seu pai, um avô...
— Minha namorada. — disse como se arrancasse um esparadrapo. — Ou melhor, ex.
— Ouch! — replicou o senhor. — Por quê?
— Ela tem câncer. Já fez quimio e... — não precisava completar pois ele imaginaria o pior. Nós, humanos, temos a tendência obscura de sempre imaginarmos o pior. E, na maioria das vezes, estamos certos.
— Rapaz, sua situação é difícil. — ele abaixou a cabeça e olhou para suas próprias mãos. — Já estive em seu lugar, sabe? No mesmo chão, questionando a Deus porque me dar um fardo tão grande. Lembro que eu chorava tanto e me sentia tão patético e pequeno. Eu me sentia a pior criatura de todas.
— É exatamente assim que me sinto. — disse, engolindo minha vergonha. — Mas por que...
— Por que eu me sentia assim? Ah, meu filho, é uma história relativamente longa de um velho.
— Fale, por favor.
— A alguns bons anos atrás, eu conheci uma jovem enfermeira enquanto servia no exército. Ela era linda e na primeira vez que bati os olhos nela, eu soube que estava apaixonado. Nossa! Ela tinha cabelos escuros e olhos verdes como as árvores na primavera! E mãos leves como pena. Eu sempre fui um homem que detestava agulhas, mas não sei se foi porque estava impressionado com sua beleza ou pela leveza de suas mãos que não senti aquela maldita coisa me perfurando. Demorei meses cortejando ela — ela era meio feminista e não aprovava muito a ideia de casamento, mas eu a convenci! Um ano depois e nós estávamos deixando a Igreja como marido e mulher — e eu te afirmo, meu jovem, era a noiva mais bonita que conheci. — eu ri com o amor dele transbordando em suas palavras. — Anos depois, tivemos filhos lindos e eles cresceram, nos orgulharam com seus diplomas de faculdade. Depois disso, algum tempo depois dos nossos filhos deixarem nossa casa, percebi que ela passou a esquecer coisas. Eram coisas pequenas como onde tinha deixado as chaves de casa, ou deixava de pagar alguma conta. Comecei a achar que era por causa do trabalho como enfermeira, mas ela insistiu em ficar exercendo a profissão. Era boa naquilo e amava seu trabalho tanto quanto amava os filhos. Estava convicta que precisava de boas férias e as tirou. Mas não adiantou... O tempo foi passando e seu esquecimento foi piorando. Abria o chuveiro e deixava o banheiro sem tomar banho. Esquecia panelas sobre o fogo e quase incendiava a casa. Quando fomos ao médico, o diagnóstico era de Alzheimer precoce, afinal, ela só tinha 53 anos! Eu fiquei apavorado, sabe, mas ela se manteve tranquila e aceitou com mais confiança do que eu. Lembro que, ao deixar o hospital, ela pegou nas minhas mãos e disse que estaria ao meu lado para sempre. Isso faz 10 anos.
— Bem... E o que aconteceu? — perguntei, mas no fundo eu sabia a resposta.
— Alzheimer é uma doença egoísta, meu filho. Rouba tudo para ela, inclusive coisas que nem lhe pertencem como as lembranças. A cada mês que passava, ela ficava mais decadente com sua memória até chegar ao ponto de um dia eu acordar e, quando encarar seus olhos verdes, saber que ela não me reconhecia. — ele levou as mãos ao rosto e limpou as lágrimas que escorriam. — Mostrei fotos de nossos filhos, de nossos netos e até mesmo as poucas que existiam do nosso casamento e não houve resposta alguma. Tudo tinha ido embora, menos o meu amor por ela. — ele olhou para as mãos enrugadas novamente. — Depois de interná—la no hospital, eu vim para essa capela e comecei a quebrar as coisas daqui, afinal, havia sido Deus que tinha dado aquilo a ela, não? — as mãos pálidas tremiam. — Levou um tempo até perceber que eu não podia culpar Deus por tudo, meu filho. Quando aceitei a condição de minha esposa, eu havia aceitado que apenas eu teria nossas memórias para o resto da vida. E eu passei a vir praticamente todos os dias para criar novas memórias. Eu me dou ao trabalho de gravar cada conversa que temos porque eu sinto que devo isso a ela.
— O senhor ainda a ama?
— A amo por nós dois, filho. Ela não me reconhece e sempre que chego, acha que sou apenas alguém do hospital. Eu sei que isso logo vai acabar, ela já está num estágio bem avançado da doença e eu não sou um garoto, muito pelo contrário! Mas eu quero morrer sabendo que a amei até o fim e isso é o que importa.
— Ouvindo assim, eu me sinto um tolo. — confessei, tocado pela história do senhor. Ele apenas me ofereceu uma risada.
— Nunca se é um tolo quando falamos de alguém que amamos, jovem. Tive o prazer da memória dela por mais de 35 anos e o prazer de ser casado há 50 anos. E ainda existe o prazer de amá—la a cada dia que passa. — ele apoiou a mão no meu ombro. — Se minhas palavras puderem te dar força para seguir em frente com a garota que gosta, eu serei um senhor feliz.
— Tenha certeza que elas me deram. — eu o abracei num impulso. — Muito obrigado, senhor...
— Steve Coben. — disse, quando o soltei. — Quando precisar conversar, estou ou na capela ou na ala psiquiátrica. Ah e me chame de Stu. — eu assenti e me despedi com mais agradecimentos antes de voltar para o quarto de . Encontrei—a dormindo e, silencioso, sentei ao seu lado, observando seu modo tranquilo de dormir. Sua mão estava enfaixada e a culpa de seu ferimento formou um bolo na minha garganta. Não soube quanto tempo passou até que ela acordasse e me encontrasse com a cabeça sobre sua maca.
? — questionou, sonolenta. Seus olhos estavam inchados e eu mal podia ver a coloração de suas íris.
— Me deixa ficar e te fazer feliz, . Me deixa mostrar que você ainda é a mulher que eu amo e amarei até o fim.
— Oh, ... — disse, mas eu cobri sua boca com minha mão.
— Me deixa ficar aqui e te mostrar sua feminilidade. Não me importo com seu cabelo, porque com ou sem ele você é linda! Mas se sente falta, um dia ele cresce e até lá, podemos ir naquelas lojas de travestis e comprar várias perucas para você usar. — ela riu da minha piada sem graça. — E eu juro que faço todos os dias aquelas macarronadas que você diz tanto amar até que saia rolando. Só peço... Fica comigo. Diz que um dia, eu vou te convencer a casar comigo e que teremos filhos. Ter uma menina tão linda que vou ter que comprar uma arma por causa dos marmanjos que irão atrás dela e ter um garoto para jogarmos basquete e videogame! Diz que eu vou poder te amar a cada dia que passa mais um pouquinho!
— Não posso prometer isso. — afirmou, com seus lábios tremendo.
— Então prometa tentar. E isso já me fará o homem mais feliz do mundo! — parou por alguns segundos, antes de assentir firmemente e arrancar mais lágrimas de mim, dessa vez de felicidade. — Eu prometo! — peguei suas mãos e comecei a beijá—las. E, quando olhei seu rosto, eu pude ver algo que há tempos havia se perdido no olhar dela, assim como em seus lábios. Eu pude ver a esperança renascendo, assim como o sol nasce todos os dias.
Então, meu coração se encheu de alegria.

*

Quatro meses haviam se passado após o início do novo tratamento. Era um tratamento que fazia injeções de medicamentos nas células que acusavam mutações mas, apesar de ser um tratamento mais restrito, causava dores terríveis em , que levava como podia, enfrentando períodos duradouros de sofrimento, pois nenhum analgésico podia ser aplicado por cortar o efeito. Eu permanecia firme a seu lado, ajudando como podia e utilizava algumas técnicas paliativas para dor que havia aprendido com duas enfermeiras eficientes.
Como eu havia herdado uma empresa de meu pai, eu trabalhava em casa o máximo possível e só saía quando era estritamente necessário, como reunião com fornecedores e possíveis investidores. Naquela semana, em especial, havia reuniões todos os dias e tinha ficado em casa com , que também praticamente morava conosco e me informava de tudo que acontecia quando eu estava fora. Na sexta feira, estava com a consciência pesada de ter me ausentado tanto tempo e, por isso, fiz reserva num dos melhores restaurantes da cidade. Também comprei uma roupa especial para ela e mandei que entregassem na casa dela, deixando em sobreaviso.
Ela já é linda. Mas deixe—a absolutamente perfeita, disse a ela no telefone.
Quando cheguei em casa, as duas estavam trancadas no quarto, me restando tomar banho e me arrumar no quarto de hóspedes, onde alguma das duas havia separado uma roupa específica para mim sobre a cama. Com cabelos penteados e barba feita, desci as escadas para a sala e me surpreendi ao olhar para o sofá. Meu coração foi até a boca e voltou em batidas descompassadas. — ? — ela abriu um sorriso tão bonito que eu me via de quatro por ela. Vestia a saia longa de cintura alta e uma blusa clara de rendas, com um colar simples e brilhante que combinava com brincos longos que usava. E seus cabelos... Me acostumara tanto a vê—la de lenço que não percebi como haviam crescido! Ela tinha feito um corte bonito e bagunçado que caía tão bem em seu rosto maquiado. — Não vamos mais sair. — ela arregalou os olhos, assim como . — Não quero um bando de marmanjo olhando para minha mulher, sem chance! Vamos pedir comida tailandesa e ficar em casa! — ela andou até mim com o sorriso mais bonito que tinha acompanhado de suas bochechas rubras.
— Isso quer dizer que estou bonita, ? — enlaçou meu pescoço, me envolvendo totalmente em sua névoa suave de perfume fresco.
— Quer dizer que você já é linda e está ainda mais. — beijei seus lábios macios com tanto fervor que nos interrompeu com uma tosse tipo "estou engasgado com meu pulmão". — Desculpe, querida. Mas não entendo como você não virou lésbica por causa dela. — disse para , que desatou a rir.

Depois que deixamos ela em casa, fomos para o restaurante e eu fiquei encantado novamente por todas suas boas maneiras e seu jeito de pensar. Desde o modo como umedecia seus lábios até o jeito de olhar para mim com seus olhos suaves, de natureza profunda e misteriosa. Mesmo tanto tempo juntos, ainda me encontrava hipnotizado por seus maravilhosos olhos e olhares. Toquei seu rosto com o dorso dos dedos, recebendo um sorriso em resposta.
— Tenho algo para dizer!
— Quero falar uma coisa! — dissemos em uníssono e desatamos a rir por nossos pensamentos se completarem. — Vai, damas primeiro. — disse, segurando a mão dela.
— Então... — ela ficou olhando para seu prato, visivelmente nervosa. — Fui ao Dr. Lawrence hoje para ver quando seria a nova rotina do tratamento.
— E o que ele disse?
— Fiz uma nova rodada de exames e... — levantou o olhar. — Não foi encontrado nada. Não preciso de uma nova rodada, mas preciso ficar sob vigia médica por dois anos.

Eu não percebi que tinha entrado em choque, tampouco que comecei a gritar dentro do restaurante como um louco, chamando a atenção de todos, incluindo o do gerente que veio saber o que estava acontecendo. Quando contei — aos gritos de felicidade, o gerente começou a comemorar conosco e fez questão de abrir uma garrafa de champanhe para nossa mesa. apenas nos olhava, surpresa, com o sorriso mais aberto que podia me oferecer.
— Essa mulher... — disse, ficando em pé em cima de uma cadeira, enquanto ela chamava minha atenção. — Case comigo, !
— O que? — exclamou ela, levantando da cadeira. — Para de agir feito louco, !
— Não posso. — gritei, me agachando e pegando suas mãos, levando—as até meu peito. — Não quando eu tenho você. Case comigo! — tirei uma caixinha de veludo de dentro do bolso e estendi a ela, permitindo que visse o solitário que eu carregava comigo há dois meses, esperando a data certa para fazer isso.
— Eu... — uma lágrima escorreu pelo rosto dela. — Sim, eu caso, seu louco!
— ELA ACEITOU. — gritei para o restaurante, que levantou uma salva de palmas enquanto eu descia e abraçava minha futura esposa.

E, quando voltávamos para a casa, ela se inclinou até o pé do meu ouvido e me contou mais uma surpresa. Contou que havia ficado tão feliz com a notícia do médico que passou numa loja e comprou várias roupas íntimas e estava louca para mostrar. E a única coisa que pude responder, enquanto acelerava o carro, foi: Você me deixa louco.

*

O casamento foi realizado cinco meses depois. tinha dado duro na organização do evento e, mesmo que fosse simples (pedido mais dela que meu, já que por mim, a festa duraria três dias para que o mundo soubesse que eu havia casado com ela), havia demandado bastante tempo de sua parte assim como dedicação. Então, quando , dentro da parte reservada aos noivos e padrinhos, se eu estava nervoso, eu simplesmente neguei. Apoiei minhas mãos sobre seus ombros e olhei fundo nos olhos de meu amigo.
— Estive com Aimée por mais tempo que com e nunca tive tanta certeza de estar fazendo algo certo na minha vida como agora, . — ele arregalou os olhos e eu gargalhei. Até mesmo respirar estava fácil porque em poucos minutos, eu estaria casado com a mulher da minha vida. — Você vai sentir isso algum dia, meu caro, e vai ver que não existe sensação melhor.
Então a organizadora pediu que fôssemos para o jardim do hotel onde casaríamos e, depois de um aperto de mão e um abraço, nos dirigimos até o portal de flores coloridas, entrando primeiro com , madrinha de . Peguei o braço de minha pequena mãe e, depois de secar as lágrimas dela para não borrar a maquiagem tão bem feita, começamos a caminhar entre os convidados. As pessoas já secavam lágrimas apenas ao meu ver, fazendo meu sorriso aumentar. Quando cheguei perto de minha irmã, que havia me apoiado tanto quando eu estava prestes a cair durante a doença de , eu roubei uma das orquídeas que enfeitavam os bancos dos convidados e passei por seu rosto, como se a cortejasse. Eu estava radiante de alegria e pudera! Parei no lugar destinado ao noivo após dar um beijo em minha mãe e permaneci esperando. Não aguentava a ansiedade que os minutos traziam até que as melodias do violino e violoncelo misturados começaram a se espalhar e a causar a euforia nos convidados. Todos se surpreenderam, inclusive eu, a perceber que não era a Marcha Nupcial tradicional e sim Sweet Child O' Mine, do Guns e eu ri comigo mesmo, sabendo que aquilo era a maneira de se distinguir de todos. Assim que ela pôs os pés no portal, eu soube que estava apaixonado para todo o sempre. Lembrei da história do senhor no hospital e sabia que guardaria a lembrança dessa mulher entrando pelo arranjo de flores até o fim dos meus dias. , atrás de mim, me cutucou e murmurou um sortudo, me fazendo sorrir ainda mais. Nossa, parecia que eu rasgaria minha boca de tanto que eu sorria.
Ela veio andando até mim com um sorriso tímido, acompanhada de seu pai que a entregou depois de um beijo em sua testa. Diante do superior religioso, fizemos as orações e, depois, diante do juiz de Paz, fizemos nossos votos. Entendi porque os noivos choravam no altar e percebi, quando a beijei, tomando—a como minha esposa, que todos em seus lugares de noivos, deviam se sentir os homens mais felizes do mundo.
Na festa, após os cumprimentos, foi puxada por seu pai para A primeira dança. Ela balançava de um lado a outro, como se estivesse sendo ninada, com seus olhos fechados e eu a olhava, radiante. era minha para todo o sempre — ou até que a morte nos separasse e, Deus! Eu rezava que fôssemos eternos para vivenciar aquilo por inteiro. Com um sorriso pregado nos meus lábios, tirei—a gentilmente de seu pai e a trouxe para meu peito, envolvendo sua cintura.
— Alguém já disse como você é linda? — murmurei, encostando o queixo em sua bochecha.
— Alguém já disse que você está absurdamente sexy nesse smoking preto? — replicou, beijando meu pescoço. — Eu te amo, .
— Eu te amo, . — minhas palavras nunca soaram tão verdadeiras. Então selei seus lábios, enquanto o resto das pessoas se juntavam a nós na pista de dança. a tomou dos meus braços, rodopiando—a pelo salão, enquanto a via gargalhar. me encarava tão fixamente, com um sorriso estampado que franzi a testa.
— O que foi? — ela balançou a cabeça de um lado a outro e pegou sua Nikon profissional (segundo , ela tinha feito um curso de fotografia e era apaixonada por fotos). Começou a clicar algumas vezes meu rosto e eu não prendi o riso, até que ela me puxou para seu lado e tirou uma selfie de nós.
— Obrigada por fazer feliz, .
— Obrigado a ela por me existir e fazer a minha existência feliz. — comentei, olhando novamente para minha esposa, vendo seu rosto resplandecer enquanto brincava com seus amigos. Andei até ela, mas antes de alcançá—la, meus amigos me prenderam e, se entreolhando, me jogaram por cima de seus ombros e começaram a dançar, ao passo que me jogavam para cima, atraindo a atenção de todos. me olhava batendo palmas, incentivando os garotos a continuarem até que cansassem e me deixassem no chão ao lado dela. Ela estendeu a mão e me guiou até a mesa do bolo para que o cortássemos.
E as horas foram passando. Porém, quando faltava pouco para o fim da festa, algo aconteceu. Eu estava conversando com e estava com a alguns metros olhando umas fotos na câmera. Olhei para o lado para mandar—lhe um beijo e ela repetiu o gesto mas, segundos depois, sua cor passou de corada a pálida; ela apertou o próprio estômago e sua expressão se alterou para dor. As coisas dali em diante passaram muito rápido: coloquei—a no carro e saímos como loucos até o hospital com e em nosso encalço. A entrada na emergência foi rápida e logo ela estava na maca, sendo enviada para um médico que não deixou que entrássemos. Fiquei andando de um lado a outro; meu paletó estava jogado sobre os ombros de , que orava silenciosamente no canto enquanto a abraçava. Uma hora se passou até que o médico veio até nós com uma expressão indecifrável.
— O senhor deve ser o marido, certo? — assenti, engolindo em seco. Por favor, Deus, seja bom comigo. Seja bom conosco. Ou, mais uma vez, nos dê forças. — Pode entrar. — quase corri para o quarto, encontrando—a sentada na cama. tinha trocado o vestido de festa pela roupa de hospital e cochilava um pouco até que acordou ao som dos meus passos.
— sussurrou. — Cadê e ?
— Estão no corredor. — ela pediu que os chamasse. Quando entraram, ambos se puseram ao seu lado no leito. E o médico entrou carregando alguns papéis.
— Sra. , está tudo bem. — disse ele, fechando os papéis e sorrindo. — O dia do seu casamento está sendo bem tumultuado, não? — comentou ele para mim, quando eu sentava aliviado na cadeira. — São nessas horas que vejo que meu coração é forte. — disse, respirando fundo.
— Se importa se eu der meu presente de casamento? — franzi a testa ao passo que o médico me entregou os envelopes que segurava. A primeira era uma imagem preta—e—branca que eu não enxergava absolutamente nada. Fingi entender qualquer coisa que estava naquele troço e passei para uma folha seguinte.
Beta—HcG: positivo — 35.000 mUI/mL.
Minhas mãos começaram a tremer e olhei para meus amigos: ambos esperavam que eu dissesse algo, mas eu não conseguia? Aquilo era o que eu estava pensando? Não poderia ser... Ou poderia? Olhei de novo para a imagem em preto—e—branco. Meu coração se acelerou e lágrimas vieram aos meus olhos antes que pudesse controlar. Meu Deus!
— Você está grávida? — minha voz mal saía. Meus amigos arregalaram os olhos e encararam minha esposa, que sorria também com olhos marejados. assentiu. — Você sabia?
— Não até alguns minutos atrás. — comecei a gargalhar, ao mesmo tempo que chorava. O médico nos deu parabéns e deu alta a .

Não havia maior verdade do que esta: eu era o homem mais feliz no mundo naquele momento. *

Na minha concepção, os meses haviam passado rápido demais. Cada dia era uma nova surpresa, desde que a barriga de começou a crescer. Ela tinha desejos loucos como bacon e chocolate ou vontade de comer sabonete, mas nada que não pudéssemos dosar. Também, quando o bebê começou a chutar. Lembro de quando dormia e acordava com a barriga roliça de em minhas costas. Porém, um dia, algo diferente me acordou. Era algo forte e repentino, que me fez acordar e encarar minha esposa que, sonolenta, me fitava.
— O que foi isso? — ela pôs a mão e quase instantaneamente um sorriso se formou. Repeti seu gesto e senti contra a palma um chute fraco, que me fez encará—la. — Cara... — comecei a beijar a barriga dela e a falar com o neném.
Desde aquele dia, eu perdia horas conversando com a barriga da minha mulher, sob seus olhares inundados de amor e as respostas mudas de nosso filho. era uma grávida linda, que passava os dias de vestidos longos e saias cobrindo sua protuberante barriga. Agora, ela trabalhava como minha auxiliar no trabalho, me ajudando a organizar o novo escritório e gerenciando meus materiais, pois entrava como sócio na minha microempresa. Era divertido vê—la andando de um lado a outro com a expressão compenetrada e, mais divertido ainda, de roubar beijos escondidos para ver suas bochechas rosarem.
Então, chegou o grande dia. Eu estava no meio de uma reunião, — onde estava ausente, pois sentia muitas dores nas costas naquele dia —, quando atendeu ao celular discretamente. A cor de seu rosto mudou na hora e ele ruborizou.
— Era . — estava namorando a garota há alguns meses, o que fez muito feliz. — É melhor finalizarmos a reunião agora.
— Está nascendo? — ele assentiu. Comecei a me desesperar, até que levar dois tapas fortes de , acordando para a realidade. Com imensas desculpas, deixei que meu amigo tomasse conta do evento e deixei o trabalho às pressas para encontrar as garotas na casa de parto humanizado. tinha sido clara: não queria que seu filho nascesse onde passara tanta dor e por isso optamos por aquele tipo de instituição.
Assim que cheguei, ela estava sentada, de costas contra uma bola de yoga e mantinha sua fiel Nikon em mãos.
! — exclamou minha amiga ao me ver.
— Deus, parece que estão me arrebentando por dentro! — exclamou minha esposa — que por sinal estava muito delicada naquele momento. — Tão delicioso para fazer, mas para sair é essa dor infernal! — não contive uma gargalhada sonora, mas o olhar raivoso que ela me lançou foi suficiente para me calar.
Não passou muito tempo e a parteira anunciou que estava na hora. foi transferida a uma sala para tudo começar e me mantive firme ao seu lado. Ela estraçalhava minhas mãos e respirava profundamente, fazendo força conforme pedido e, algum tempo depois, o choro de nosso filho invadiu o ambiente. Olhei para o rosto de e vi seus olhos marejados quando pegou nosso filho no colo.
— Obrigada, . — franzi a testa. — Por ter me dado as duas coisas mais preciosas da minha vida: você e ele. — beijei seus cabelos molhados de suor ao passo que cobria a mão que apoiava as costas de nosso neném com a minha.
— Eu amo você. — sussurrei.

*

O tempo foi passando e e eu mal percebíamos. Eu vivia as voltas com a empresa, enquanto ficava em casa com David. Cada noite que eu chegava em casa, visivelmente cansado, era surpreendido por um sorriso de minha esposa segurando nosso filho. A cada novo dia, ele se parecia mais fisicamente comigo, porém os olhos possuíam as exatas forma e cor dos de sua mãe. Então, quando me deixava a sós com Dave para descansar um pouco, eu me pegava apaixonado por seus olhos e pela forma como sorria. Assim como durante a gravidez, eu passava bons minutos conversando e brincando com meu filho, até vê—lo cair no sono e poder colocá—lo no berço.
Certa noite, entrei no quarto e estava com o roupão aberto diante do espelho. Quando me viu, fechou a peça logo, corando, me fazendo franzir a testa.
— O que foi? — ela balançou a cabeça de um lado a outro, mas fui até ela e toquei o nó do roupão, desfazendo—o. Seus dedos finos tentaram me impedir e seu olhar se mantinha baixo.
— Não faça isso, . — ela estava com vergonha de seu próprio corpo, conclui. Tentava se esconder com as palmas das mãos, sem muito sucesso. — Por favor.
— Olhe para cima. — toquei seu queixo, erguendo—o até que seu olhar encontrasse o reflexo dos meus no espelho. — Está vendo? — toquei seu abdome e seu baixo ventre, alisando a barriguinha proeminente que a incomodava. Alisei os traços brancos que, por mais que ela tivesse tomado o maior cuidado, ainda assim apareciam em sua pele, finos e tortuosos. — Tome essas linhas como cicatrizes pois toda cicatriz tem sua história, e as suas contam a história de nosso filho. Sei que sua vaidade se sente afetada por causa das consequências da gravidez em seu corpo, mas... — ajoelhei—me e girando seus quadris, pude apoiar a cabeça em seu ventre. — Eu continuo amando—o como amei no início do namoro ou após as sessões de quimio. — beijei a pele macia de sua barriga.
— Faz tempo que Dave nasceu e eu achei que meu corpo voltaria a ser o mesmo. — seus dedos se enfiaram em meus cabelos. — Não importa quanta salada eu coma ou exercícios eu faça...
— Por favor, . Seja saudável, pois linda você já é. — repliquei, sorrindo amorosamente para ela e seus olhos se marejaram.
— Você é único, sabia? — suas carícias se tornaram mais íntimas, seguindo o passo dos meus. Minhas roupas foram jogadas de lado junto ao roupão felpudo e seu corpo se fez lar novamente para mim.

Alguns anos depois, viria a ter Abigail para completar nossa família e me fazer descobrir que poderia ser tão feliz quanto eu desejara.

*

Até conhecer , eu não pensava muito nesse negócio de carma, destino ou qualquer entidade mística e, mesmo depois, eu tentava não usar isso como artifício para justificar coisas na minha vida. Mas existem certas situações a qual deve—se prestar atenção e eu nunca fui um dos mais observadores.
Naquela quinta—feira, o despertador não tocara tão alto ou eu havia travado e não me lembrava. Pouco importando, levantei às pressas da cama, assustando e me enfiei no chuveiro, sentindo a água gelada bater na minha pele quente: algum problema no circuito de gás que não deixava a água ficar quente. Batendo o queixo, deixei o chuveiro alguns escassos minutos depois, vestindo uma roupa que separara para mim depois de entender a situação. Passando os dedos pelos cabelos, desci as escadas correndo, buscando meus sapatos sociais assim como meu celular e bolsa. Nada parecia se encontrar em seu devido lugar coisa que estava me irritando.
— Não vai tomar café? — estava sentada na mesa da cozinha, seus cabelos revoltos e olhos inchados, segurando Gail em seus braços, amamentando—a.
— Tomo na rua. — já passava pela porta quando seu chamado me travou. — O que foi? — apenas seu olhar mortal me fez entender o que ela desejava, então voltei a passos largos, inclinando—me para dar um selinho de despedida. , porém, aprofundou o beijo o suficiente para que, quando eu me afastasse, me sentisse tonto.
— Agora sim. — disse, sacana e eu me denunciei com um sorriso malicioso, antes de beijar o topo de cabelos ralos de minha filha e deixar a casa.

No trabalho, cheguei atrasado e minha sorte foi que comandara a reunião habilmente até meu comparecimento. Mas, mesmo assim, durante a reunião, fui tomar um pouco de café e queimei a boca, além de derramar na minha blusa clara.
— Como o dia está? — questionou meu amigo, rindo da minha cara, enquanto tentava limpar a mancha após a reunião.
— Uma grande bosta. — repliquei, desistindo de tirar a mancha. — Queria que algo desse certo hoje.
— Acalme—se, amigo, vai dar tudo certo. — disse , antes de sair da copa. — Mas um banho de sal grosso acelera o processo! — disse, gargalhando. Era um bastardo, pensei, enquanto o seguia para sua sala, sentando em sua poltrona de couro. Parei para observar as fotos em sua mesa, observando e sua filha, Shae, numa delas. Eles tinham casado pouco depois de Dave completar um ano. E, sem querer, um estalo veio a minha cabeça.
— Que dia é hoje? — questionei a , vendo—o consultar o calendário. A sua resposta fez um furacão em minha cabeça: era o dia em que começamos a namorar!
— O que foi? — perguntou ao me ver afundando a cabeça no meu braço.
— Faz seis anos que a pedi em namoro e me esqueci de comprar o presente dela.
— Tenta fazer uma reserva para um jantar à luz de velas. — encarei meu amigo. Era uma ideia boa, mas já tínhamos feito isso tantas vezes que sequer parecia especial. Talvez soasse arrogante, mas eu queria que ela lembrasse de cada mínimo detalhe e queria surpreendê—la. Queria ver o brilho de espontaneidade em seus olhos. Então pensei em algo que poderia deixá—la feliz. Sorri com a ideia e contei a , que se animou rapidamente e se ofereceu para ajudar no que podia.

As horas passaram até que a noite caísse e eu pudesse voltar para a casa. Tomei um revigorante banho quente e vesti jeans, uma polo escura e calcei um par de tênis confortáveis. tinha combinado de passar o dia na casa de seu pai com as crianças, então peguei o carro e dirigi por cerca de dez minutos, buzinando quando cheguei na frente da pequena casa de fachada azul. Meu sogro apareceu na porta, sinalizando que eu deveria entrar, então fiz como o pedido, encontrando minhas crianças sobre um edredom no chão da sala, envolto de brinquedos. Me ajoelhei, começando a brincar com as crianças e a trocar palavras carismáticas com meu sogro. Não passou muito tempo, tocou meu ombro, me fitando com um sorriso delicado em seu rosto. Ela estava com um vestido soltinho e um cardigã para o frio que o sereno da noite poderia nos causar. Segurei firme em sua mão e, depois de agradecermos ao pai dela por ficar com nossos filhos, começamos nosso rumo à surpresa que eu tinha preparado.
— Você tinha esquecido, não tinha? — disse ela, em dado momento, enquanto apertava minha mão sobre seu colo.
— E se eu disser que sim? — não guardávamos segredos um do outro, mesmo que isso magoasse.
— Eu ficaria chateada, mas me poria no seu lugar: você está cansado. Trabalha demais e ainda chega em casa com ânimo para brincar com as crianças até dormir. — brincou com meus dedos. — Tem dias que eu sequer lembro qual meu nome de tão cansada! — parei o carro no sinal e me inclinei para roubar—lhe um beijo no meio de uma de suas risadas. — Obrigada por se esforçar para mantermos a tradição.
— Você merecia bem mais. — ela balançou a cabeça de um lado a outro.
— Já tive tudo que pude nessa vida, . — beijou o dorso da mão que segurava e sorriu. — Obrigada mesmo. — franzi a testa diante de seu agradecimento pois me passava a ligeira impressão de um adeus. Mas decidi deixar de lado e voltei a dirigir. Chegamos ao local e, depois de enrolar meu braço em seu pescoço, começamos a andar até a imensidão de luzes que era o London Eye. Não era a ideia mais original, nem chegava perto, só que parecia certo naquele momento.
Estava tarde e não havia muitas pessoas para visitação, então entramos apenas com um grupo reduzido e conseguimos ficar bem para a grande parte de vidro da cabina. Quando a roda gigante atingiu seu auge, ficamos absortos num silêncio pensativo. Eu a abraçava firmemente, apoiando o queixo em sua cabeça, apreciando a visão de Londres inteira, vendo os trinta minutos de nosso passatempo se arrastarem só para ficarmos juntos.
— Eu te amo, . — murmurei. Não parecia que tinha ouvido, mas soube que tinha quando se virou e, ficando na ponta dos pés, tocou meus lábios com seus suavemente.
— Não consigo acreditar que ainda sinto meu peito se inflamar cada vez que me diz isso, . Quando murmura essas três palavras, me sinto transportada até o dia em que você disse isso pela primeira vez, gaguejando e incapaz de me olhar nos olhos. — suas palavras eram intercaladas por selinhos e, mesmo que eu estivesse ruborizado, via a seriedade em sua expressão. — Se é isso que chamam de amor, então te amo mais do que pensei que seria capaz de amar alguém um dia.
Encarei seus olhos. Eram seis anos juntos e o brilho misterioso de seus olhos era incapaz de ser traduzido em palavras. A única certeza que tinha era que eles eram um oceano e eu me afogava cada vez mais neles. Me afogava cada vez mais em seu amor.
Cobri sua boca com a minha e beijei—lhe com todo meu amor, paixão e libido. Eu queria tirar tudo dela só para oferecê—lo com maior vigor e intensidade. Ela seria a junção de todas as mulheres, mas seria a única que eu queria e desejava.
Nos sentíamos adolescentes de novo e deixamos a roda gigante em direção ao carro. Era um lugar escondido e tudo que precisávamos para suprir nossa saudade e comemorarmos nossos seis anos juntos. Eu me sentia transbordar ao ver sua felicidade e, quando a possuí, duas lágrimas escorreram de seus olhos antes que me encarasse novamente. Juntos, sussurramos a única coisa que poderia caber ali.
— Te amo. — seu abraço era quente e aconchegante.

*

Entendam, leitores, que eu tinha a necessidade que tudo estivesse ao meu controle. Mas certas coisas não estão em nosso poder, por mais que desejemos. e eu estávamos voltando para casa e decidimos parar em algum lugar para comer. Quando deixamos o carro, meu celular começou a tocar e eu parei para atender, afinal, devia ser apenas . Atendi ao telefone, ao mesmo tempo que ouvia o sussurro baixo de a certa distância, o que me fez virar sorrindo.
A cena que me aguardava não podia ser a pior: tinha sido rendida por alguém que usava uma máscara. Ele segurava uma faca enorme contra o ventre de minha esposa.
— Passa o carro. — assenti devagar e joguei a chave do carro para ele.
— Só não machuca ela, cara.
— Cale a boca! — grunhiu ele, apertando a faca contra a pele dela e provavelmente machucando—a, visto a expressão aterrorizada. — Vai fazer o que eu mandar! — assenti novamente, sentindo meu coração disparado e meus músculos da perna fraquejarem.
O problema foi que alguém viu e gritou. Gritou pela polícia ou qualquer coisa que não prestei atenção pois naquele exato momento, o assaltante rasgou a barriga de antes de sair correndo. Não sei como tive forças para andar até ela, enquanto gritava por socorro. Também não me lembro direito do que aconteceu em seguida, mas sei que foi difícil para os paramédicos me separarem de para socorrê—la. Lembro vagamente de sentir o espetar de uma agulha e, aos poucos, mesmo que não quisesse, cair num sono profundo.

A luz do hospital era ofuscante, principalmente sob efeito de sedativos. Ao abrir os olhos, encontrei a enfermeira ao meu lado anotando alguma coisa em sua prancheta.
— Água. — pedi e ela atendeu com prontidão, me estendendo um copo para que pudesse amenizar a secura de minha garganta. Demorou certo tempo até voltar a mim; até recordar tudo que havia acontecido e, quando o fiz, sentei num gesto rápido. Comecei a questionar sobre , mas a enfermeira nada poderia fazer a não ser chamar o médico do plantão.
Parecia uma tortura esperar, mas logo um médico na casa dos quarenta chegou, com seu jaleco impecável. Olhou a prancheta e sentou—se à beira do leito.
— Minha esposa? — disse. Eu já chorava sem permissão.
— Ela entrou em estado grave, Sr. , mas conseguimos estabilizá—la por algum tempo. — ele suspirou e olhou—me por cima de seus óculos. — Não sou o melhor a dar notícias ruins, senhor, mas o estado dela é delicado demais e são poucas as chances de... — não completou a frase, pois não precisava. Perguntou se eu queria vê—la e respondi que sim. Assim que meus olhos encontraram seu corpo, lágrimas incontidas se misturaram aos meus soluços. As pessoas pelo corredor passavam com uma cara espantada, mas há muito parara de me importar com estranhos me vendo chorar.
O médico autorizou minha entrada na UTI, permitindo que eu ficasse ao lado de seu leito. Sua pele estava tão pálida e fria que, se não fosse pelo medidor de batimentos, eu não acreditaria que estava viva.
Suas funções vitais estão baixas por causa de choque hipovolêmico que ela teve até estabilizarmos aqui. Sua mulher está sendo forte, senhor .
Minhas mãos tocaram seu baixo ventre por cima dos finos lençóis sentindo o curativo volumoso.
A causa do choque foi uma hemorragia por lesão uterina. Pelas alterações estruturais, era bem provável que estivesse...
Aquele era o resultado de não ter feito absolutamente nada. Uma das mulheres mais amara em sua vida estava no leito com a vida se esvaindo gota a gota. Indo embora como a vida do possível filho que estivera em seu útero antes...
Minhas lágrimas caíram em seu lençol branco. Deveria existir um limite para dor, assim como para lágrimas. E, se existisse, eu devia estar tão longe assim para alcançar? Porque eu não queria mais experimentar nada daquilo. Era possível pedir isso?
Toquei seu rosto macio e gélido.
— Fique bem. — murmurei. — Eu prometo voltar o mais rápido possível. Preciso ver como nossos filhos estão. — os batimentos cardíacos de parecerem responder a minha voz, enchendo—me com um fio de esperança. — Obrigado.

Chapter 03.

— Todos os presentes aqui, Deus, desejam que Tua Filha habite o seu seio, com sua alma livre de pecados. Oramos para que sua história de vida seja honrada nos céus por Sua Graça...

O enterro de Marie foi numa quinta feira chuvosa. Havia muitas pessoas presentes: principalmente amigos com seus filhos em seus colos. Todos vestiam roupas coloridas a meu pedido, pois sabia que não suportaria o preto habitual. Eles choravam e suas lágrimas pareciam se transformar em gotas de chuvas geladas que alcançavam meus cabelos. Eu não tinha mais lágrimas. Talvez tivesse alcançado meu limite para isso. A dor, porém, ardia como se um ferro em brasas atravessasse meu coração, queimando a carne. Sentia a falta de meus filhos, mas preferi deixá—los com uma babá pois não mereciam ver aquele caixão de mogno cujo corpo de sua mãe repousaria pela eternidade.
Aos agentes funerários, pedi que colocassem seu vestido branco — o que eu mais gostava. Seus cabelos estavam penteados e, em seus lábios, havia um brilho vermelho de batom. Quase parecia viva, mas sua pele fria fazia questão de comprovar o contrário. Lembro de tê—la beijado dentro da capela e seus lábios não reconheceriam mais os meus. Acompanhar a procissão doía e talvez não o tivesse feito se , e Aimée não estivessem lado a lado comigo até sua sepultura.
Seu caixão estava aberto e pessoas deixam flores. Eu deixei apenas um papel com rabiscos.

Eu nunca vou achar ninguém para te substituir
Vejo que terei que superar isso, dessa vez
Dessa vez, oh, dessa vez sem você...
Eu nunca quis que você morresse.
Estranged — Guns N' Roses

Fecharam a tampa e, aos poucos, vi seu caixão entrar em sua sepultura. As pessoas diziam seu adeus com flores que caíam sobre a tampa brilhante e molhada. Eu era incapaz de dizer algo. Apenas estava parado, minhas mãos enfiadas no bolso e meus cabelos sobre a testa, escorrendo filetes de água cuja temperatura eu sequer sabia. chorava sobre o ombro de , enquanto o marido acarinhava os cabelos longos da esposa. Aimée estava com seu noivo, Richard, a certa distância: seus olhos se fechavam e suas mãos, juntas, diziam que fazia uma prece. Não percebi que o tempo passava até ver que quase não existiam mais convidados ao redor observando a terra sendo jogada sobre o objeto. Não existiam mais pessoas para se despedirem.
— Vamos. — mal acreditava que essa ordem tinha saído de minha boca. Mal acreditava que ainda conseguia falar. Ao me virar, esbarrei em alguém cuja aparência não reconheci de imediato. Era uma jovem com no máximo catorze anos; tinha cabelos negros e olhos violetas.
— Seus olhos choram. — então reconheci quem era. Era a mesma menina de alguns anos atrás: aquela que me ofereceu flores e elogiou meu sorriso. — Tome. — estendeu aquelas minúsculas flores para mim, aquelas que eu havia entregado para . — Quando chegar sua hora, você vai poder entregar estas a ela. — as pontas de seus dedos acariciaram meu rosto como a brisa mais suave e, ao piscar, suas costas se afastavam há muito.
Sem permissão, meu coração descompassou em batidas desesperadas. Meu choro se embolou em minha garganta, fraquejando minhas pernas. Olhei as florzinhas na palma de minha mão, tão destoantes de seu tamanho e olhei mais uma vez para frente, já sem sinal algum daquela jovem. Fitei o céu nebuloso e as gotas gordas que caíam dele. E, como uma fugaz lembrança, escutei sua voz pertinho do meu ouvido.
— É a chuva fria de novembro.

Então olhei para onde havia apenas um monte de terra. E tudo que eu parecia ter contido até o momento transbordou de mim.

Quando olhos nos seus olhos
Posso ver um amor reprimido


Os bipes insanos dos aparelhos eram altos o suficiente para me acordar do cochilo. Ao abrir meus olhos, uma algazarra de enfermeiros e médicos se fazia presente na sala e, contra minha vontade, era arrancado da poltrona ao lado de seu leito. Dois enfermeiros me prendiam do lado de fora da sala enquanto eu me debatia, vendo o corpo de convulsionar em sua cama. Ela não poderia estar...
Não.
Ela não faria isso. Eu sei que não.
Os funcionários iam de um lado a outro, injetando coisas e aferindo os aparelhos até que, por fim, pareceu que a situação estava controlada. Minha entrada foi concedida e eu corri até sua cama, vendo o rosto vermelho de minha esposa, com seus olhos arregalados e inspiração ofegante.
— Você voltou para mim. — sussurrei, tocando seu rosto com delicadeza, como se aquilo pudesse ser um sonho e eu acordaria a qualquer momento. — Você...
. — sua voz rouca e baixa parecia assustada.
— Sou eu, meu amor, sou eu. — disse, me abaixando até encostar a cabeça em seu peito. — Estou aqui. — eu tremia conforme meu coração disparava. — Está tudo bem.
— Dave e Abigail?
— Estão com seu pai. — suas mãos acariciavam meus cabelos num afago maternal. — Estão bem e te esperando.
... — levantei meu rosto para vê—la. — Eu não vou voltar. — seus olhos eram sérios apesar da expressão serena que habitava seus traços delicados.
— Não fale isso. Nã—não... — minha respiração se tornou ofegante. O tom de voz que ela usou era tão real. Mas não podia ser. Ela tinha que ficar e lutar. Pelas crianças. Por mim. — Você tem que lutar e...
— Não estou te abandonando, . — sua voz parecia mais baixa ou era meu psicológico? — Eu sempre estarei ao seu lado.
— Eu quero você ao meu lado agora. Viva como agora. — seu sorriso doce encrespou em seus lábios.
— O mundo não é uma fábrica de realização de desejos*, . — suas mãos caçaram as minhas até encontrarem—na. — Obrigada por ter ficado comigo nos bons e maus momentos. Obrigada por ter me aceitado na sua vida e por ter me dado meus melhores presentes: meus filhos. Obrigada por ser tudo que eu queria e ainda mais.
— Por quê? — ela deu os ombros.
— Quem sabe a própria vida te responda o porquê. — ela falava tão baixo e sonolenta que parecia prestes a dormir. — Eu te amo. — seus olhos se fecharam devagarinho e um meio sorriso se formou da mesma maneira que ela fazia quando dormia.
— Não durma. — pedi, a voz estrangulada. — Não...
Já era tarde. Os aparelhos voltaram a soar e me tiraram da sala novamente. Os médicos tentaram reanimar, mas eu saberia que ela não voltaria. Que a mulher da minha vida tinha entrado noutra jornada. Uma jornada que, por agora, deveria fazer sozinha.


Porque nada dura para sempre


Não percebi que Aimée me abraçava com toda a doçura que possuía, tampouco que chorava em seu ombro. Seu calor parecia reconfortante, assim como seu silêncio. Aquela ausência de palavras que era necessária, que demonstrava como alguém podia dizer muito sem dizer qualquer som.

Voltar para a casa era difícil. Todavia, o mais difícil foi explicar ao seu pai o que havia acontecido a única filha. Vi a negação em seu olhar e a ira de quem perde algo. Em seus olhos, brilhavam a culpa de tê—la deixado comigo. Afinal, eu realmente era o culpado. Deveria ter feito algo para ajudar, em vez de responder aos comandos do bandido. Aquele peso recaía sobre meus ombros e percebi que eu não tinha o direito de chorar.
Mea culpa.
Apesar de tudo que eu via, meu sogro nada falava. Apenas abaixou a cabeça e se deixou levar pela apreensão e dor. Disse que ficaria com meus filhos, que eu podia voltar ao hospital. Lá não era lugar de crianças. Assenti devagar pouco antes de sair de sua casa sem qualquer adeus. Não queria voltar para casa, não queria ir ao hospital. Meus passos me guiaram até uma casa ali perto. A fachada amarela era destoante da antiga cor branca e parecia resplandecer felicidade. Quando bati a porta e esperei, não tinha certeza se alguém me atenderia.
Mas a porta se abriu.
. . — exclamou, sonolentamente. — O que está fazendo aqui? — os cabelos ruivos continuavam bonitos assim como sua dona.
foi ferida por um assaltante. — encarei os olhos verdes cheios de surpresa. — Ela morreu, Aimée. — seus braços finos me envolveram num abraço terno e, quebrando a regra de não chorar, comecei a colocar toda minha dor em forma de sal e água. Os soluços reverberavam por meu corpo, em convulsões intensas. Fiquei assim por longos minutos até meu coração se acalmar. Foi quando percebi que tinha caído de joelhos, mesmo sem sentir. — Me desculpe. — minha voz estava tão falha que não passou de uma frase rouca.
— Não peça desculpas por sentir. Não peça desculpas por ser um humano.


Sei que é difícil manter o coração aberto
Quando até mesmo os amigos parecem te machucar


e se certificaram de me levar até em casa. Eles não queriam que eu ficasse sozinho, mas era preciso. Eu precisava ficar sozinho naquele lugar e falar alto e chorar. E ter a certeza que ninguém iria me acolher em seus braços novamente, dizendo que tudo ficaria bem. Queria ter a absoluta certeza que se fora. Eu precisava daquilo.
Sozinho, andei até o quarto de Abigail e Dave. Estava intocado, mas algo parecia ter mudado. Olhei a cama de Dave, vazia e desarrumada, com suas pelúcias espalhas por todo o comprimento.

— Não estou conseguindo, ! — a voz chorosa de se misturou a de Gail. As duas estavam sentadas numa poltrona ao lado do bercinho cor—de—rosa e tentava amamentá—la. Fazia pouco tempo que haviam deixado a maternidade sob garantias da própria para a enfermeira que conseguiria se virar sozinha, já que era seu segundo filho. — O leite não sai! — eu tinha acabado de chegar de uma reunião que durara o dia inteiro quando ouvira seus pedidos no andar de cima, chegando afobado ao quarto.
— Por que não?
— Eu não sei. — disse, as lágrimas começando a escorrer. A gravidez de Abigail, diferente da de Dave, havia sido mais turbulenta. As variações de humor eram mais constantes, assim como enjoos durante os nove meses. Parecia irônico pois se divertido mais na segunda gravidez vendo as mudanças súbitas que aconteciam com ela. — O que eu faço, ?
— Calma. — disse, indo ao banheiro, lavando as mãos com sabonete e álcool. Voltei ao quarto segurando Gail. — Vá tomar um banho quente.
— Mas... — balancei a cabeça negativamente para ela, que entendeu que não deveria contestar. Deixou o quarto e em poucos segundos, ouvi o barulho do chuveiro sendo aberto. Gail chorava contra o pano que cobria minha blusa e eu me sentei no canto da cama de Dave, esticando as pernas por todo o comprimento do colchão.
— Não chore, pequena. — acariciei seu rostinho miúdo com as pontas dos dedos e Gail, virando, capturou meu dedo mindinho com a boca, sugando—o de vez em quando com a boca pequenina e ávida. — Eu sei, pequena, mas mamãe já volta para te amamentar. — seus cabelos ralos eram sedosos. Ela parecia uma versão mini de , com olhos que seguiam a genética de minha família. — Meu coração se aperta só de pensar que algum dia um marmanjo pode te roubar de mim, sabe? — ela o fitou com seus olhos enormes. — Diz que só vai perder a virgindade e se casar com trinta anos, por favor. É só piscar. — ela piscou, como se entendesse. — Boa garota.
— Por favor, pare de fazer minha filha de dois dias fazer promessas que não cumprirá. — retornou ao quarto com uma camisola mais leve e seus cabelos úmidos. Bati entre minhas pernas e ela se acomodou ali, encostando as costas no meu peito, ao mesmo tempo que acomodava Gail em seus braços.
— E aí? — negou com a cabeça, ouvindo o choro de nossa filha. — Calma. — murmurei, apoiando as mãos em seu pescoço. Comecei a apertar os músculos com vigor, sentindo os nós de tensão se desfazerem sob meus dedos. Fiz isso seguindo a curva de pescoço até seus ombros; não satisfeito, desci até seus seios e repeti os gestos até que o líquido quente molhou minha mão e um gemido de alívio escapou dos lábios de . — Jantar, Gail. — disse, secando a mão em sua fralda, escutando a risada suave de minha esposa.
— Obrigada por isso. — replicou, acomodando—se no meu peito. Olhei as duas por cima de seu ombro, acariciando a cabeça de minha filha ao passo que deixava um beijo no pescoço da Sra. .
...
— Hm? — disse, sonolenta.
— Por que Abigail? — questionei. Já não era a primeira vez que perguntava. — É um nome antiquado e doce, mas...
— Você já procurou o significado desse nome, ? — disse, em meio a um sorriso calmo. Respondi uma negativa. — A gravidez de Gail foi difícil, . Eu acordava me sentindo mal, passava o dia todo sem querer comer ou vomitando ou com uma enxaqueca miserável. Mas tinha uma hora do dia que nada disso acontecia: quando você chegava do trabalho. — ela inspirou fundo. — Você chegava e a festa dentro do meu útero começava e a no meu estômago acabava. Você passava horas conversando com ela e eu só conseguia dormir se você estivesse encostado na barriga. — virou o rosto para mim. — Sabe o que significa Abigail, ? Meu pai se alegra. — então, meu peito parecia se encher de felicidade. — Eu vi esse nome num livro de nomes e achei perfeito.

Mas se pudesse curar um coração partido
Não haveria tempo para te encantar?


Peguei uma das pelúcias de Dave, um macaco de braços e pernas longos que se enrolava na cabeceira de sua cama. A afirmação daquele dia só me fez amá—la ainda mais. Então tínhamos David, que significava O Amado e Abigail. Meu pai se alegra.

Eu devia ter dormido por um tempo até acordar com um barulho na sala. Desci as escadas, encontrando sentada no sofá da sala. Já era de manhã.
— Me desculpe voltar assim de surpresa. — disse ela, com seus olhos inchados. Uma caixa grande repousava em seu colo. — Eu tinha que entregar isso. Foi um pedido de .
— Ah, obrigado. — agradeci e, depois de sentar ao seu lado, abri a caixa.

Havia inúmeras fotos espalhadas no interior da caixa. Algumas eram datadas de cinco, seis anos atrás quando ainda namorávamos. Eram fotos nossas em festas ou em casa. Fotos caseiras e profissionais se misturavam, cada uma com sua data anotada num canto na parte de trás da foto. Tinham fotos da época em que ela fazia quimioterapia, com seus cabelos ralos e lenços coloridos. Uma em especial chamou—me atenção. Eu estava deitado em seu leito e meu braço passava por seus ombros, enquanto a cabeça dela repousava em meu peito, dormindo.
— Em qual momento você tirou essa? — questionei.
— Eu tinha acabado de chegar e achei que isso merecia uma foto. — esclareceu , sorrindo. — Foi o dia que ela aceitou fazer o tratamento a seu pedido. — olhei novamente a foto, percebendo o brilho amarelo—laranja do sol iluminando nossos rostos. E eu percebi o amor que transbordava de meus olhos ao vê—la tão indefesa em meus braços. Naquele momento, eu queria protegê—la e dizer que tudo estava bem. Mas, na realidade, quem fazia isso era ela. Com seus sorrisos, acalentava meu coração e com seus abraços, me fazia sentir—me em casa como nenhum lugar havia me feito antes.

Havia a cronologia de fotos das duas gestações, sempre correspondendo à data certinha de um mês lunar para a nova foto. Também existiam as que e faziam partes, tocando sua barriga enorme ou pintando—a no chá de bebê. Fotos nossas com nossos filhos e fotos quando ainda namorávamos. Então eu percebi que tudo aquilo tinha sido minha vida por um bom tempo e que seria difícil deixar esta parte para trás. Então meus olhos se encheram d'água novamente. Continuei remexendo as fotos até encontrar um envelope lacrado. Apenas um rabisco do ano num canto amarelado.
— Quando...?
— Quando achou que não passaria pelo quimio. — sussurrou . — Ela fez uma para cada um de nós, incluindo . Vou deixá—lo a sós para ler, ok? — minha amiga deu dois tapinhas no meu ombro e foi embora.

E quando seus temores se acalmarem
E as sombras ainda permanecerem


, Eu nunca fui muito boa com começos, tampouco com finais, então peço que perdoe minha falta de sensibilidade para isso. É minha sina não saber introduzir—me adequadamente. Então, se quiser pular esses parágrafos e ir para a folha de trás, eu compreenderei (mas sei que sua curiosidade não vai deixar, há!)

Imagino que esteja se questionando o porquê desta carta, mas eu sei que ela chegará as suas mãos quando for a hora. Eu pedi a que fizesse isso para mim e ela sempre me foi fiel e não será nesta hora escura que deixará de fazê—lo.
Eu achava que nunca poderia ter chance com você. Desde a primeira vez que o encarei naquele palanque malfeito no dia de karaokê de um pub, eu soube que você era diferente. Era pelo seu jeito de sorrir nervosamente ou seus olhos maravilhosos que nos encaravam enquanto cantava. Sua voz alcançava meu coração e se enchia de alegria e eu, na minha ingenuidade, tinha que me ajoelhar e agradecer a por ter me tirado de casa naquele dia quando minha vontade era contrária. Mas eu nunca fui dotada de grande beleza exterior a não ser meus cabelos. Eu sempre os adorei e é triste vê—los caindo pouco a pouco durante este maldito tratamento. Também não tinha qualquer coisa que pudesse chamar sua atenção e minha esperança logo murchou ao vê—lo andar em direção a uma ruiva gostosona e linda (que teria me feito virar lésbica se você não existisse, deixo bem claro!).
No dia em que cantei e percebi seu olhar sobre mim, me senti realizada. Eu poderia ter morrido naquela hora porque meu amor platônico me percebera, mas alguns meses antes, eu descobri que não queria morrer. Descobri também que não deveria fazer mais ninguém se apegar a mim pois já tinha visto a tristeza de meu pai quando me vira no leito durante os tratamentos da primeira quimioterapia. Em resumo: eu não deveria te encontrar mais. Eu podia estar sem câncer naquela hora, dia ou mês, mas sempre haveria a sombra dele pairando sobre minha cabeça como uma nuvem escura.
Contudo, você se fez presente na praça enquanto eu cantava para crianças. Não era minha intenção atrair aquela rodinha, porém, quando menos percebi, já estava cercada delas (sabe que sempre adorei crianças então não podia negar aquela diversão passageira). Você me fez companhia por alguns minutos e me entregou flores de campo que ainda permanecem secas dentro das páginas de meus livros favoritos. Então você quebrou toda minha armadura de forte quando questionou se poderia me ver novamente. Eu queria, ó Deus, como eu queria te ver de novo! Só que a sombra que pairava sobre minha cabeça sussurrava seu veneno em meu ouvido. "Não é certo, não é!"
Voltamos a nos encontrar e, desta vez, você não só quebrou minha armadura. Você me quebrou quando me beijou daquela maneira esplêndida que eu sonhava desde que me vi caindo por você. Eu me senti completa de um jeito que não deveria e, na nuvem que eu carregava comigo, um raio de sol me iluminou. Foi um segundo de paz e horas de derrota depois que você saiu correndo, me deixando atordoada sob seu efeito.
Não esperava que você voltasse, , mas eu esperei até tarde no parque. Até que a verdade estapeasse minha cara e eu voltasse com o coração em frangalhos. Só que, de novo, você voltou. Demorou, mas nos esbarramos no restaurante e você exigiu conversar comigo. Eu estava deliciada e mortificada. O que poderia ser nesta vez?
Então você se declarou daquela maneira tão aberta. Eu fugi porque não queria encarar que me sentia daquela maneira, mas você foi atrás de mim e me prendeu. Fisicamente, porque meu emocional já estava ligado ao seu há sabe—se lá quanto tempo. Eu chorava de felicidade, pois era tudo que desejara com fervor; ao mesmo tempo, chorava de dor, com medo de magoá—lo. Com medo de feri—lo com minhas maneiras indiscriminadas de ser. Disse adeus com meu peito sangrando. Não deveria destruir o que você e Aimée tinham criado, não era certo.
Passado algum tempo, eu resolvi voltar no pub. Era meu pequeno raio de esperança que me guiara e meu egoísmo que me fizera permanecer até vê—lo subir naquele palco e cantar para Aimée. Ligando uma coisa a outra, percebi que haviam terminado. Quis me chutar por me sentir feliz. Eu era uma bruxa de fazer isso. E mais bruxa ainda foi quando te segui e tive coragem de falar com você. Chovia tanto e você estava encharcado. Você voltou a se declarar fazendo meu coração dançar como no Mardi Gras e eu me deixei envolver nessa sua névoa de ternura e paixão. Eu queria aquilo.
Saímos juntos várias vezes até ter o teu pedido de namoro oficial. E um mês depois, ao fazer meus exames de rotina, descobri que meu medo se concretizava. Era injusto! Era aquilo que eu gritava para o médico quando foi confirmado o diagnóstico. Era injusto porque eu tinha encontrado minha felicidade. Mas eu aceitei. Aceitei tudo como a vida me dava.
Não te contei por medo, por egoísmo e por cuidado. Eu queria mantê—lo ao meu lado, mas também não queria fazê—lo sofrer. Me internei em segredo e fiz a cirurgia. Então, dias depois você me aparece — com o perdão da palavra — todo fodido e me encontra. Destino? Tanto faz.
Me vi obrigada a te confessar tudo e tive medo da piedade que sofreria de sua parte, mas você se mostrou atencioso e disse que ficaria ao meu lado. Era tudo que eu precisava para ter fé.
Mas entenda: mesmo que eu me esforçasse, sabia que você sofreria. Eu não tinha qualquer tipo de tesão e você logo perderia o seu depois de me ver com tantas reações à quimio. Eu via o sofrimento em seu olhar e tinha horas que eu desejava morrer por causar isso a você. Depois das rodadas de quimio, receber a notícia que não havia funcionado pôs um ponto final a minha vida. Eu iria morrer com aquela porcaria de células cancerosas, só que eu tinha que te deixar livre. Como eu faria isso?
Decidi não aceitar o novo tratamento. Era arriscado e trazia poucos resultados. Você brigou comigo e, pela primeira vez, não queria suas desculpas. Queria que tivesse juízo e fosse embora. Você foi e eu adormeci em paz pela primeira vez em semanas. Estava sozinha e era melhor assim. Só que você, , é um teimoso e voltou para pedir que eu fizesse o tratamento. E seu pedido me tocou demais para que eu negasse.
Essa carta data de um mês após o início do novo tratamento. É madrugada e eu estou com tanta dor que acho que não sobreviverei à noite. O motivo deste blá blá blá é só para dizer as coisas que me fazem amá—lo. Porque eu não posso morrer sem dizer isso para você. Me desculpe se tomo o seu tempo, mas se você recebeu essa carta é porque o meu tempo acabou.


Minhas mãos tremiam tanto que eu era incapaz de ler decentemente o papel. Não sabia como era capaz de chorar ou ainda de pensar. Aquilo era a realidade no ponto de vista dela e, perto da minha, sofrera como uma pessoa amadurecida pela vida. Eu deveria agir da mesma maneira, então, antes de pegar a folha de trás, eu me servi de uma dose forte de bourbon, sentindo a ardência cortar minha garganta. Então, virei a folha. Virei, sabendo que aquele seria seu último adeus.

**Razões porque eu te amo: por Marie.
1. Pela maneira como você canta
Wake me Up When September Ends quando eu tento acordar cedo.
2. Pelo modo que você canta. E ponto final.
3. Pelo seu jeito de sorrir diante das minhas criancices e de beijar minhas mãos quando quer ser carinhoso.
4. Porque você me faz rir igual a uma idiota e me faz chorar da mesma maneira quando se declara.
5. Você faz cada dia de inferno parecer um dia de céu quando sorri e diz que tudo dará certo. Minha confiança é você.
6. Porque você não faz ideia de como é lindo. Quase tanto quanto eu.
7. Porque você me olha com tanto amor mesmo depois de colocar minhas tripas para fora.
8. Pelo fato de você ser igual ao cara dos meus sonhos e ter um adicional: você existe, !
9. Porque, quando eu acho que não posso me sentir mais apaixonada por você, você me canta depois de eu brigar com você; tropeça nos próprios pés enquanto dança sozinho ou sorri daquele jeito fofo que me faz perceber que amor não tem limite.
10. Porque eu não te amo apesar dos seus defeitos. Eu te amo por causa deles.
Bônus: Porque eu sei que você vai passar por tudo isso e vai ser capaz de seguir em frente. Você vai ser capaz de aceitar o que a vida te dá.


EPÍLOGO
O aniversário de meu neto Lorenzo, filho de Dave com Melanie, a garota por quem era apaixonado desde o colegial tinha sido hoje, junto ao meu de sessenta anos. e continuavam juntos, mesmo que brigassem mais do que outra coisa, pois seu amor era superior a isso tudo. A casa esteve cheias de pessoas que adoravam ao meu neto. Além disso, como um prazer mais que solene, Abigail me ofereceu um dos melhores presentes: sua voz cantando meu álbum preferido do Pearl Jam. Era tanto carinho que eu mal podia me aguentar.
Tarde da noite, após me despedir de todos, sentei—me na minha cadeira de balanço e fechei os olhos por um instante. A tranquilidade pairava no ar e minha felicidade fazia meu coração se acelerar um pouco mais que o normal.
. — a voz que eu não escutava há anos se fez presente. Abri os olhos e pude constatar ajoelhada a minha frente. Sua aparência continuava a mesma que minha memória, há muito não tão fresca, se recordava. — Parabéns.
— Você voltou. — não gostava da minha voz de velho: era falha e feia. Nem parecia que tinha os traços do passado daquela voz que ela gostava tanto.
— Eu disse que voltaria. — sussurrou, colocando as mãos sobre meus joelhos protuberantes. — Nossos filhos ficaram lindos, . Eles são bondosos, afáveis e generosos e nossos netos não ficarão por menos. — aqueles olhos a quem senti tanta falta de encarar se fixaram sobre mim. — Mas está na hora de irmos.
— Posso pegar algo ao menos? — ela assentiu e, com a lerdeza de um idoso, me ergui da cadeira e fui a passos tortuosos e difíceis até minha estante de livros. Separando meu favorito, abri numa página marcada e tirei aquilo que me interessava, me virando para . — Tome. — as flores secas ganharam vida quando tocaram a palma de sua mão resplandecente. — Uma garotinha disse que eu poderia entregar quando chegasse a hora.
— São lindas. — sorriu para mim. — Obrigada.
Estendeu a mão em minha direção e eu a segurei. Agora, era a vez de fazer a nossa trajetória.

Nada dura para sempre
Nem mesmo a fria chuva de novembro

FIM.

*Referência a uma frase conhecida de Augustus Water, personagem de "A Culpa é das Estrelas", sob autoria de John Green.
**Referência a lista presente no livro "Muito Prazer, Amy", sob autoria de Amy Molloy.


N/A (09/02/2014)
: Oi. Eu sei que muita gente vai querer me espancar depois dessa fic (e se você for sensível como eu, depois de chorar sua alma). Ela é uma "reescritura" de mesma fic homônima e eu melhorei a linguagem e tentei passar melhor as emoções acerca de... Tudo. Por favor, se você leitor(a) gostar, fale comigo. Caso contrário, também o faça. Eu recebo os elogios e críticas de braços abertos porque são duas coisas que me fazem crescer como autora. Um agradecimento enorme (e um puta abraço de urso) para a Mary Lira e para a Mirian Schuaste. A sinopse da fic é delas e está sendo devidamente creditada (além de ter sido cedida sob desejo delas!). Muito obrigada a você que chegou até aqui e até a próxima!

Qualquer erro nessa fic é meu, só meu. Reclamações por e-mail ou pelo twitter.

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