Saints & Sinners


Escrita por: xGabs Andriani
Betada por: Thay Sandes


CAPÍTULOS: [Capítulo Único]



Capítulo Único


“A insanidade está dominando, deixando-nos a autodestruição”.

A garota de cabelos compridos e levemente armados, com cigarro sempre na mão e soco inglês na bolsa, andava apressada pelas ruas de York na volta de seu trabalho forçado, ou melhor, voluntário. A verdade é que ela estava cumprindo sua primeira punição depois da grave explosão que tivera ao socar e chutar um imbecil de sua escola quase até a morte, ou até deixá-lo com traumatismo craniano, por descobrir que ele envenenou cinco gatos em sua vizinhança. Bom, o que dizer? As vozes em sua cabeça apelavam por justiça e ela precisou atender ao pedido de seus únicos amigos confiáveis.
Próxima à sua casa, a garota de dezessete anos, mas que aparentava por volta dos vinte, ouviu gritos e algo que parecia com um urro vindo do beco escuro atrás da casa do Sr. Bowman.
Você precisa matá-lo.
A voz conhecida ecoou por sua mente e todos os seus sentidos ficaram mais aguçados. Ela estava atenta aos movimentos agressivos que seus olhos registraram no breu do beco. A raiva, o ódio e o nojo que a invadiu era incontrolável e ela precisava acabar com aquilo.
Mate-o!
Ouviu mais uma vez, mas dessa vez, a voz ordenava de forma enérgica e ela precisava ouvir. Não podia deixar o asqueroso do novo marido de sua mãe abusar daquela pequena indefesa, mesmo que não conseguisse vê-la direito, não podia deixar que um ser humano maltratasse alguém inocente. Por que as pessoas eram tão sádicas e maldosas?
Ela teve tempo apenas de puxar o soco inglês da bolsa e colocá-lo em seus dedos antes de cerrar os punhos. Determinada, caminhou até o homem que já tinha as calças no meio das coxas e agradecendo por não ter percebido sua suave aproximação, atingiu-o em cheio a parte de trás de sua cabeça com a arma branca. O estrago feito fora suficiente para fazê-lo parar, cair ajoelhado com uma expressão terrível de dor e sangrar.
Continue. Ele merece.
Ela chutou o tronco do homem e conseguiu, por meio da luz da lua, ver o medo nos olhos opacos dele. Mais golpes foram dados, sempre no rosto e sempre com o contato visual sustentado. Ela queria que o padrasto soubesse que era ela a finalmente acabar com ele e com tudo de ruim que havia feito para ela e sua família. Ele realmente merecia aquilo, e os gemidos de dor e desespero só a motivavam mais. Era ela quem estava no controle ali, no controle depois de tantos abusos físicos, sexuais e psicológicos.
Acabe logo com isso.
A pequena vítima do homem tinha seu vestido rasgado, os cabelos bagunçados tampando parte de seu rosto e sangue escorrendo no canto de sua boca. Estava assustada, e mais ainda pela cena de espancamento à sua frente, mas não conseguia mover um único músculo. Encostou-se a parede encolhida e quando finalmente o corpo do homem parou de se contorcer, as duas respiraram juntas.

- Desculpa por isso, foi preciso. - A agressora disse sem ao menos olhar para a menina.
Você não tem que se desculpar. Ele tinha que morrer.
- O...o...o que vo...cê fez? - Mal dava para se ouvir a indignação da vítima.

Quando a mais velha virou-se para olhar a garota que sofrera na mão do monstro que conhecia bem, a luz da lua possibilitou que os olhares das duas se cruzassem. Aquela era , a pequena .


BETHLEM ROYAL HOSPITAL, Dezembro 2002.
As trancas da pesada porta de aço faziam um barulho ardido ao serem abertas e com um rangido ensurdecedor, a luz do corredor entrou no pequeno cubículo de . A paciente tinha seu cabelo preso de qualquer jeito e muitos fios, principalmente na frente, estavam desgrenhados. Ela não mudava sua posição quase nunca, ficava sempre em sua cama, abraçada a seu joelho, balançando o corpo para frente e para trás com o olhar perdido.

- , querida. - A enfermeira disse da porta e a garota levantou os olhos. - Você quer almoçar com os outros hoje? - A mulher perguntou docemente.

parou de se balançar e levantou os olhos.

- Eu posso? - Depois de tanto tempo sem falar, sua voz saiu como um sussurro.
- Pode, querida. O Dr. Byron conseguiu reaver a sua pena e, mesmo que você não possa sair de nosso lar, vamos te transferir para um quarto normal hoje. Será como uma nova vida. Um recomeço.

Lar. Quem chamaria um sanatório de lar? A paciente demorou alguns segundos nos olhos de Meredith.

Vá!

obedeceu a tão conhecida voz, levantou-se da cama de má vontade e calçou seus chinelos. Como fora instruído, seguiu a enfermeira até um banheiro, onde pudesse tomar um banho decente, em um chuveiro de água quente, regalia que não tinha. Vestiu roupas limpas e confortáveis que conhecia bem. Sua mãe devia ter mandado aquelas coisas já na intenção de livrar-se dela de uma vez, só podia. Aproveitou e também penteou os cabelos e os prendeu em um rabo de cavalo antes de sair e encontrar com a senhora baixinha que a levaria até o refeitório.

- Não se esqueça de sua terapia com o Dr. Byron às 3h. - Meredith informou antes de anotar algo em uma prancheta e virar as costas.

Era a primeira vez de no meio de tantas pessoas naquele lugar e muitos deles a encarava de forma intimadora. Uma garotinha, de no máximo dez anos de idade, parou de pentear o cabelo de sua boneca de porcelana para não tirar os olhos da grande novidade do lugar.
Imitando o que a maioria fazia, ela pegou uma bandeja na lateral da grande mesa, um prato e talheres de plástico, típico, e deixou que a cozinheira a servisse. No final, pegou um copo, também de plástico, com algum líquido que não soube identificar e olhou as retangulares mesas de madeira e o primeiro espaço vazio, foi o que ocupou.
Uma garota ao seu lado não tirava os olhos dela e foi inevitável não se aguentar calada.

- Quer falar alguma coisa comigo? - A sobrancelha, normalmente arqueada, agora erguida de a deixava mais assustadora.
- Ela não fala. - Uma voz grossa respondeu e reparou então, pela primeira vez, no garoto sentado a sua frente.

Pele bem cuidada, cabelos bem cortados e penteados, roupas normais e aparentemente, por volta dos dezoito anos. O que ele fazia ali? Será que como ela, ele estava sendo injustiçado por um crime que não deveria ser considerado crime?
esperou que as vozes conhecidas lhe dessem alguma direção, que lhe indicassem o que deveria fazer, mas isso não aconteceu.

- Desculpa. - sussurrou dando de ombros.

A garota pegou seus talheres e cutucou o bolo de carne em seu prato. O cheiro estava bom e a aparência também, aliás, era bem melhor do que a mistureba que vinha para ela na solitária. Encheu a primeira garfada e a colocou em sua boca. O sabor também era mil vezes melhor.

- Você não vai comer? - Perguntou ao garoto, que não tinha bandeja e nem nada a sua frente.
- Não, estou bem. - Deu de ombros.

olhou no relógio que ficava bem no alto de uma das paredes e automaticamente reparou na quantidade de câmeras instaladas na espaçosa sala. Ainda não conseguia acreditar que estava ali, que teria que viver ali por muitos anos de sua vida por acharem que ela tinha uma doença perigosa.
Sociopata. Esquizofrênica. Psicótica. Já nem lembrava mais todos os nomes que ouvira dos médicos em que foi levada por sua mãe. Ela tinha tantos sintomas diferentes de tantas doenças mentais, que ficava cada vez mais difícil diagnosticá-la.

- Posso te levar em um lugar? - O garoto levantou-se depois do convite e sorriu, esperando que ela aceitasse. - Confie em mim... - Como se lesse os pensamentos da garota, ele completou sério.

Terminado o seu almoço, também se levantou, deu a volta na extensa mesa e o encontrou na saída do refeitório. Os dois andaram por um corredor e dobraram duas ou três vezes por ele, até chegarem a uma escada, da qual subiram. O garoto parou enfim em uma grande janela de vidro, muito bonita, que dava de frente para o terreno do sanatório. - Gostou? É um ótimo lugar para se esquecer daqueles loucos lá dentro.
o olhou curiosa, mas logo concentrou-se no vasto e lindo jardim que se via pela janela. A grama muito bem aparada e as flores em cores vivas a encantava e acalmava. Realmente, era um ótimo lugar para se esquecer de tudo, para sonhar e ter esperança de novo. Coisa que não sentira mais desde aquela fatídica noite.

- Como você se chama? - sentou-se no parapeito da janela, obviamente fechada, e lhe perguntou.
- . - Ele sorriu.
- . - Ela sorriu de volta.- ...
- Eu sei. - Colocou as mãos nos bolsos, e encolheu os ombros em uma típica pose de quem sabe de tudo.
- Como? - Ela juntou as sobrancelhas.
- Eu sei de tudo sobre você. Sei que tem uma irmã, que sua mãe se chama Liz e que você nunca teve um namorado de verdade. - sorriu, como se saber da vida da garota toda e confessar isso na primeira conversa depois que se conheceram fosse normal. - Eu sei o que você fez...
- Você não sabe de nada. - Vociferou e ficou de pé em um salto, pronta para descer as escadas e deixá-lo pra trás. Prepotente! Xingou mentalmente.

já tinha descido quatro degraus quando congelou ao ouvir o garoto novamente.

- Você matou uma pessoa. - Ele sussurrou de onde estava, e mesmo assim, ela ouvira. - Um cara que, na verdade, merecia ser torturado. - Completou com a maior naturalidade do mundo.

Seus pulsos cerraram e ela subiu os degraus novamente. Em um surto, pegou-o pelo colarinho e, mesmo sendo mais alto que ela, conseguiu empurra-lo até que as costas do garoto batessem contra a parede.

- Como você sabe disso? - Ela o prensou com força e sua raiva aumentava cada vez mais por ver que estava se divertindo com aquilo.
- Eu sei de tudo sobre você - Ele praticamente deu de ombros.

procurou qualquer sinal de mentira nos olhos do garoto, mas ele nem ao menos exitou. Ela, então, soltou o garoto ao ouvir pessoas se aproximando e depois que duas enfermeiras passaram por eles na escada e se afastaram, ela fez menção de atacá-lo novamente, mas sorriu. Quem era aquele garoto? aproveitou para arrumar sua roupa e voltar a ficar impecável como antes.

- Você fica mais bonita ainda, toda irritadinha. - Sorriu ladino.
- Cale a boca. - Rosnou em tom de aviso. - Só me responda uma coisa... Por que você está aqui? - Quis saber.
- Pelo mesmo motivo que você. - Respondeu simplesmente. - Aliás, estou aqui por você. - Ela realmente o vira piscar de forma galante? Não, ele não podia estar dando em cima dela.
- Duvido. - Ela revirou os olhos.

O degrau rangeu novamente por causa da antiga madeira e Meredith apareceu nas escadas, demonstrando preocupação.

- , querida, estava te procurando. - A mulher estendeu a mão, de forma a chamar a garota para descer e se juntar a ela. - Está tudo bem?

A garota respondeu que sim com um aceno de cabeça e desceu sem ao menos olhar para trás e se despedir de . Meredith tentou passar seus braços pelos ombros de , mas a garota recuou. Era muito recente tudo o que passou e não conseguia ainda lidar com certos tipos de contatos físicos de qualquer pessoa. Era aceitável apenas quando ela iniciava o contato.

- Desculpe. - A enfermeira pediu parecendo se lembrar de alguma coisa e desistiu de tocar em .

Sem responder nada, a garota apenas seguiu a enfermeira até um posto de medicação, onde recebeu três comprimidos diferentes. Supervisionada, engoliu-os e mostrou a língua, como estava acostumada a fazer também pelo vidro da solitária. Por incrível que pudesse parecer, aqueles remédios a ajudavam a pensar mais claramente e a controlar a ansiedade.

- Muito bem, . Sua mãe me disse que você toca piano. Gostaria de tocar um pouco? - Meredith sorriu maternalmente.
- Pode ser. - A garota deu de ombros e mais uma vez, seguiu a mais velha até uma ampla sala que deveria ser de lazer.

O pequeno banco de madeira e de assento estofado com couro estava com pequenos rasgos devido ao tempo de uso. Pela aparência do piano, ele devia estar ali desde 1800 e alguma coisa, quando o sanatório fora fundado provavelmente. Mas não teria problema, se tivesse afinado, estaria satisfeita.
Ela subiu a tampa do instrumento e tirou o veludo de proteção das teclas. Fechou os olhos e respirou profundamente algumas vezes até que começou finalmente a dedilhar um clássico de Claude Debussy. Abriu os olhos novamente e quase se assustou ao ver em pé, ao seu lado.

- Ah... Você de novo... - Suas sobrancelhas se uniram e ela disse sem parar de tocar.
- Você é boa. - O sorriso de lado já estava em seus lábios novamente.
- Obrigada. - Agradeceu e se concentrou em novas notas, fechando os olhos novamente.
- Quer dar uma volta?

afundou seus dedos nas teclas e parou de tocar enfezada, encarou e desejou estar com sua bolsa e seu soco inglês, caso ele não fosse confiável como a maioria das pessoas que conheciam, e caso continuasse a rodeá-la. Era pedir demais ficar sozinha? Ele deveria estar planejando alguma coisa para ela e ela precisava tomar cuidado.
, de forma natural, sentou-se na ponta da banqueta e empurrou um pouco o corpo da garota para o lado. O pequeno espaço possibilitou que os dois coubessem ali, mas suas coxas estavam coladas uma a outra e sentia-se levemente incomodada, apesar de não dizer nada. O sorriso nos lábios dele parecia não querer larga-lo por nada. Ele estava sendo insistente de um jeito insuportável.
Os dedos compridos de apertaram algumas teclas do lado direito, em que estava, e o som abafado e grave, soou como algum suspense. Automaticamente, segurou a mão do garoto com força e a tirou dali.

- Pensei que você não gostasse de toque. - Ele comentou, olhando-a de lado.
- Não gosto que me toquem. - Enfatizou o ‘me’.

Com as mãos de longe do piano, ela voltou a tocar, deixando-se levar pela música e lembrando-se de quando era criança e seu pai, o grande incentivador para que aprendesse piano. Ele costuma dizer que ela alegrava a casa com as notas arrastadas. Só ela sabia o quanto queria voltar a ser criança, voltar para a casa em York com seu pai, sua mãe e sua irmãzinha.

- Eu não te julgo, sabia? - voltou a falar e só continuou depois de ver a expressão perdida de . - Sobre o que você fez.

Ele conseguiu fazê-la parar de tocar mais uma vez. Será que haveria uma forma de explodi-lo? Ela queria mesmo dar um fim naquele garoto. Primeiro por ser tão invasivo em seus assuntos pessoais e depois por ficar com aquele sorriso irritante a maior parte do tempo, como se conseguisse seduzi-la facilmente. Por que homens sempre acham que tudo é fácil e que todas vão cair em seu charme? Ridículo. Ela nem ao menos merecia uma atenção daquela depois de tudo o que fez.

- Ótimo. Isso é muito bom! - Resolveu entrar na dele. - De onde você é? – Preferiu por mudar de assunto e só quando virou para olhá-lo, que se deu conta do quanto estavam próximos.
- York.

estranhou, mas não comentou nada. Quais as chances dele ser do mesmo lugar que ela, ter feito à mesma coisa que ela para estar ali e estar internado no mesmo hospital psiquiátrico que ela em Londres?

- Eu preciso ir agora, . Tenho uns choques pra tomar. - Foi irônica quanto ao seu tratamento.

Realmente estava na hora de se encontrar com o psiquiatra, Dr. Byron, mas a verdade é que não queria continuar perto de . Ela sentia que era mais um problema para resolver e sem seus amigos conversando com ela, corria um sério risco de se apegar, confiar e talvez, ou com certeza, quebrar a cara. Levantou-se de forma preguiçosa e andou pelo extenso corredor mal iluminado. Aquele lugar, por mais clichê que pudesse parecer um sanatório ser medonho, lhe dava medo.
O Dr. Byron já esperava pela paciente, sentado atrás de sua mesa que estava atolada de papéis. entrou e alguém fechou a porta atrás dela antes que ela sentasse na cadeira vazia de frente à mesa. Devia ser a enfermeira que ficava à porta.

- Como está se sentindo hoje, ? - O médico psiquiatra perguntou anotando algumas coisas em um grande bloco de papel, com folhas amareladas.
- Ótima. - Respondeu secamente.
- Alguma alteração de humor, vozes, desconfortos, pensamentos ruins, pesadelos? - Insistiu.
- Não, nada. - Encarou os óculos redondos do doutor.

estralava os seus dedos da mão e procurava não observar muito o consultório à sua volta. Queria manter contato visual, pois era a partir deles que conseguia, na maioria das vezes, ler as pessoas.

- Já fez alguma amizade em seu primeiro dia com os outros pacientes? - Ele a olhou.
- Não. – Respondeu no mesmo tom, sempre de forma taxativa.
- Já conversou com alguém? - Melhorou a pergunta ao ler alguns sinais no comportamento da garota.
- Talvez. - Revirou os olhos.

se ajeitou na cadeira, sentando-se em cima de uma de suas pernas dobradas. Estava desconfortável.

- É bom que você socialize e tente criar laç... – O Dr. Fora rapidamente interrompido.
- Ele sabe o que eu fiz. Ele disse que sabe que matei uma pessoa. Vocês deixam qualquer um ler os arquivos, Dr Byron? - Ela o interrompeu. Seu tom de voz subiu algumas oitavas e a veia saltada deixava clara a mudança rápida de humor em forma de irritação.
- Obviamente que não. Quem é ele, ? - O médico havia voltado a escrever em seus papéis em uma letra nada caprichada.
- . - Soltou o nome junto com seu ar. Ao menos o garoto havia se apresentado como .
- Quem? - Byron levantou os olhos por segundos.

O doutor analisou a paciente atentamente. Seus óculos redondos deixavam o formato de seu rosto mais oval ainda, e o cabelo branco, juntamente com a gingante barba, o fazia parecer quase que o papai Noel.

- Ele disse que seu nome é .
- Fale-me sobre ele. - A caneta tinteiro escorregava habilmente, mesmo com as mínimas respostas de .

Rapidamente, ela comentou sobre as pequenas conversas que tiveram. Apontou detalhes pequenos, como ele saber exatamente tudo sobre ela e ter imensas coincidências, como ser do mesmo lugar, ter feito a mesma coisa e etc. Byron não pareceu muito impressionado. Provavelmente era um velho paciente manjado e que não tinha personalidade própria. Poderia até ser um idiota que lia o arquivo de todos os pacientes e passava a interpretar, tomando aquelas fichas como a dele. Seria loucura demais pensar algo assim de um garoto de dezoito anos e com um sorriso admirável nos lábios? Byron terminou de ouvi-la pacientemente e levantou os olhos novamente.

- Você conversou com ele sobre o que fez? Sentiu vontade de contar detalhes? - Byron perguntou.
- Não! Eu nem sei quem ele é. E você, Dr. Byron, só sabe de tudo porque a polícia me fez te contar.
- Vou mudar a pergunta. Sentiria vontade de contar para ele e conversar sobre isso? - A garota se mexeu inquieta e passou a batucar seu pé no chão.
- Talvez. Ele disse que fez o mesmo... E que não me julgava. - Respondeu baixo e completou mentalmente: ‘Talvez ele possa realmente me entender’.

Uma demorada pausa silenciosa ocorreu no pequeno consultório.

- , e as vozes? - O interrogatório parecia recomeçar. Fazia parte do tratamento, mas irritava.
- Diminuíram. Vocês me entopem de remédios e eu mal consigo ficar acordada, quanto mais ouvir vozes. - Foi sincera.

O Dr. Byron passou mais alguns minutos escrevendo nos papéis e em silêncio depois da última resposta de , até que finalmente levantou de sua cadeira e estendeu a mão para a garota.

- Ótimo. Você pode ir agora. - Disse.

se levantou também, e sem apertar a mão oferecida, saiu da sala muito bem arrumada e decorada do terceiro andar do sanatório.


Perguntou-se mentalmente onde estaria Meredith. Ela queria saber onde era seu quarto para poder arrumar suas coisas e descansar. Não teria visitas para receber, sabia disso. Havia conseguido o ódio de sua irmã e sua mãe e até as únicas companhias que tinham, já não apareciam mais. Sua última opção era descer até a sala de lazer e ter a sorte de conseguir uma poltrona vazia para um cochilo.
E fora isso que aconteceu. Um sofá de dois lugares estava vazio e estava se aproximando dele vitoriosa quando jogou seu corpo, deitando-se ali.

- Você é, absolutamente, o louco mais inconveniente daqui. - deixou escapar.
- Quer dividir? - Ele apontou para o sofá e ela, automaticamente, cruzou os braços com uma carranca.
- Não, obrigada.
- Qual é. Vem aqui... - sentou-se em um espaço e bateu a mão no outro, chamando a se sentar. Ela o fez.

pegou uma das almofadas e a abraçou, como uma criança abraça um ursinho. Deixou o corpo escorregar e apoiou sua nuca no encosto do sofá. Sabia que em poucos minutos dormiria, mas a terapia que acabara de ter estava lhe fazendo despertar para os questionamentos. Ela precisava perguntar tudo a logo de uma vez, e quem sabe se abrir também.

- Me conta o que você fez? - Pediu quase com bico em seus lábios.

pareceu avaliá-la pelo canto dos olhos, pensativo.

- Minha história é chata. A sua parece muito mais interessante. - Ele sorriu.
- Oh. Você acha interessante que para não ir presa eu tenha que estar aqui? Apesar de que eu não fiz nada de errado, eu não deveria ser punida. - Desabafou.

Como se a entendesse, aproximou da garota e passou tranquilidade em seu olhar antes de responder.

- Não deveria mesmo. Você estava apenas defendendo a . – procurou a mão de e a segurou, firmemente. A garota nem ao menos percebeu ou se incomodou com toque, deixou que acontecesse.
- Meu único erro foi deixá-la ver quem eu sou. Eu sempre a defendi e defenderia quantas vezes fossem necessárias, mas... Elas me odeiam agora.
- Ela só precisa lidar melhor com isso.

O polegar de acariciou as costas da mão de e o que a garota sentiu, era algo que não sentia há muito tempo. Conforto, compreensão. Lugar comum.
O que ele falava era verdade. era sua irmã, elas sempre estiveram juntas e era uma novidade saber que a irmã assassinara alguém e sim, ela precisava apenas entender melhor as coisas e ver que o que fez foi justificável. Ela a defendeu e acabou consequentemente com o sofrimento de sua família e o dela mesma também.
O padrasto não merecia continuar vivo. As vozes falaram aquilo para ela, as vozes a ajudaram a dar fim naquilo e ela estava aliviada, mesmo que estivesse internada em um sanatório, estava aliviada por ter ajudado a mãe a se livrar daquele asqueroso.

- , você não pode se culpar. – Falou de forma compreensiva.
- Eu não me culpo. Eu me sinto bem com isso. Elas me pediram para fazer isso, as vozes me ajudaram a me libertar. Elas eram como o meu guia, mas desde que estou aqui, elas sumiram e eu preciso delas.

começara a ficar eufórica com seus pensamentos a mil, seu pé batia ao chão repetidas vezes por segundos, estava muito agitada. Mesmo que tudo estivesse fazendo sentido para ela, nada estava fazendo sentido realmente. Ela não sabia o que pensar ou fazer. Ela sabia que era doente e não se sentia doente. Por que estavam forçando a se tratar sendo que ela fora apenas justa? Por que estavam acabando com o que ela tinha de melhor? Essa era a solução? Deixá-la sozinha, isolada, abandonada e cheia de questionamentos?

- Você tem a mim agora. - a abraçou de lado e tampou o rosto com as duas mãos antes de deixar seu rosto deitar no peitoral do garoto. Não queria demonstrar fragilidade, mas não tinha como evitar as lágrimas que insistiam em descer.

A vida dela tinha acabado. De acordo com o Dr Byron, ela era esquizofrênica e por isso seu julgamento não fora comum. O advogado usou sua doença e alegou que era instável e perigosa, e isso a fez ser mandada para aquele lugar, onde ficaria por 32 anos. Ela conseguia racionalizar suas ações e conseguia enxergar as consequências de seus atos, então por quê? O que tinha de errado com ela?
Não era como se ela fosse pegar uma arma e entrar em sua antiga escola para matar todos os alunos que a olhavam torto ou faziam piadinha por causa de seus cabelos armados. Não era como se ela fosse torturar um inocente e assassiná-lo a sangue frio na frente de outras pessoas. Ela se via incapaz de machucar alguém.
Ok, ela tinha machucado o garoto da escola. Mas aquilo aconteceu porque ele havia matado gatinhos pelo simples fato de vê-los sofrê-los. Por que alguém faria uma coisa daquelas? Ele sim merecia estar em um sanatório ou até mesmo preso. E ok, ela havia matado seu padrasto. Mas ela estava defendendo sua irmã mais nova de ser abusada, e ela estava descontando todas as marcas de queimadura de cigarro que tinha nos braços, que eram frutos dos dias em que ele chegava bêbado; estava defendendo sua mãe e toda a agressão que sofria e estava se defendendo também, defendendo a honra que lhe fora tirada quando ele a abusara quase todas as noites. Quem era o doente ali, na verdade?
sentia-se injustiçada e se pudesse pedir uma coisa ao mundo, pediria justiça.

- Está tudo bem. – Ela sorriu ao ouvir a voz de .

Ao menos isso. Ela podia não ter mais seu pai, que morrera muito cedo, podia não ter mais ou sua mãe, podia não ter mais as vozes amigas, mas agora realmente tinha alguém e sentia que teria pra sempre.


BETHLEM ROYAL HOSPITAL, Agosto 2003.
A sala que servia de consultório estava em completo silêncio, que às vezes era quebrado apenas por conta do barulho das páginas dos livros pesados que o Dr Byron não parava de ler e estudar. Em sua profissão, assim como qualquer outra área da medicina, era preciso sempre se atualizar, principalmente quando tinha alguns pacientes que desafiavam o seu conhecimento.
Três batidas secas na tão conhecida porta de madeira e o ranger dela anunciou a entrada da enfermeira Meredith acompanhada de uma jovem, uma pequena garota de no máximo quinze anos, de cabelos armados e aparência muito semelhante a uma paciente do sanatório.

- Desculpe atrapalhar, doutor. Mas essa mocinha precisa falar com o Senhor... – Meredith indicou e depois de fechar a porta, as duas passaram a ocupar as cadeiras de frente à mesa bagunçada do recinto.
- Pois não... – Dr. Byron disse simpaticamente.
- Eu sou , doutor. Irmã da . Bem, eu precisei vir até aqui porque gostaria de ver a minha irmã e gostaria também de saber como ela está. – A voz era doce e infantil, mas a atitude, e as palavras eram de alguém madura, alguém que a vida fez ficar madura, provavelmente.
- Eu já lhe disse que ela só pode visitar acompanhada de um responsável maior de idade, doutor, e ela trouxe o namorado, mas não é família. – Explicou Meredith.

Byron recostou-se em sua grande e confortável cadeira e cruzou os braços em frente ao seu corpo analisando a situação. Seria bom para ver a irmã. Poderia ajudar no tratamento saber que não a abandonaram para sempre.

- Ela não tem ninguém. Eu não tenho ninguém. Não sei se o Senhor soube, mas minha mãe está em depressão e bem, eu me tornei a responsável da casa e me dei conta que preciso ajudar minha irmã. – Tentou convencê-lo.
- Você pode vê-la. – Ele autorizou. – Será ótimo para ela. Mas Meredith precisará estar junto em todas às vezes.

A enfermeira assentiu rapidamente e sorriu de forma maternal.

- Eu agradeço muito. – estava feliz, radiante, na verdade. – Mas como ela está? Tomando remédios? Progredindo? Realmente há uma doença? – Perguntou.

Meredith pousou sua mão no ombro da garota, como se pudesse passar tranquilidade, preparando-a para ouvir o Dr Byron dizer que não poderia falar sobre o caso com ela pelo mesmo motivo que estava dificultando as coisas anteriormente. Ser menor de idade em muitos momentos era ser privado de muitas coisas.

- Eu estava estudando sobre o caso dela nesse exato momento... – O Dr. respondeu apontando o livro.
- É algo muito ruim? – Em sua simplicidade, se preocupou.
- , desconfio que a na verdade não sofre de nenhuma doença psíquica. Tenho motivos para acreditar que ela sofre de transtornos psicológicos decorrentes dos traumas que sofreu. – A garota ouvia atentamente. – Sofrer as agressões físicas, deixou-a com afefobia, que é o medo de ser tocada. É muito difícil que alguém a toque, ela apenas permite toques quando é ela quem inicia o contato, do contrário, ela entra em crise. Outro problema grave são as vozes que ela dizia escutar. Bem, na verdade, elas sumiram, porém algo a substituiu. – Ele fez uma pausa e olhou para Meredith.
- , sua irmã tem visto uma pessoa. – A enfermeira disse.
- Isso é bom, não é? Ela namorar alguém, se relacionar com alguém... – Os olhos da garota estavam arregalados com tanta informação, mas ao menos no meio disso, precisava ter alguém para a irmã conversar e dividir a vida.
- Não querida, não ver desta maneira. – Meredith usou o seu tom mais cauteloso para continuar a explicação. – Como as vozes cessaram, foi como se o cérebro de criasse uma outra maneira de não estar sozinha. Como se ela tivesse um amigo imaginário... – Usou o termo chulo.
- Ela está alucinando? – Os olhos de encheram de lágrimas. Aquilo estava mais sério do que ela pensava.
- Na verdade, não. – Byron voltou a falar. – Ela criou essa pessoa. É uma fuga psicológica. Ela me reportou algumas conversas dos dois e nelas, pude perceber que ele apenas reflete a consciência dela. – Concluiu.
- E o tratamento? – perguntou com os olhos cheios de lágrimas.
- Estamos lhe dando alguns remédios que tem respondido muito bem, mas agora é terapia intensa. Ela precisa voltar onde tudo começou a desandar e ir fechando essas cicatrizes. Entende? – Ele explicou.

pensou por um minuto. Fazê-la reviver e lembrar, não seria algo que parecia bom e nem o melhor para sua irmã. Mas se isso desse resultado, ela apoiaria.

- Eu ajudarei no que precisar, Dr. – sorriu forçado. – Mas eu posso vê-la agora? – Levantou-se limpando, batendo suas mãos na saia de seu vestido florido.

Com o aval de Byron, Meredith foi chamar . Aquele poderia ser o momento mais significativo na vida da paciente. Não demorou muito para que a enfermeira voltasse com uma garota extremamente mal humorada por ter que ir ao consultório sem ao menos ser o horário de sua terapia.
bufou quando a porta se abriu e quando seus olhos registraram quem estava dentro daquela sala, a paciente estancou. O que sua irmãzinha estava fazendo naquele lugar feio e medonho, se ela a odiava?

- Oi, irmã. – A pequena saudou com um sorriso no rosto.

Instantaneamente, correu até e lhe deu um abraço apertado e reconfortante ao mesmo tempo. As duas ficaram ali por minutos a fio, passando a em seguida do contato físico, conversarem sobre diversos assuntos que foram interrompidos em consequência a toda turbulência que viveram.

Byron saiu de trás de sua mesa e se juntou a Meredith, à porta do consultório.
- Essa é a melhor parte do nosso trabalho. – Meredith sorriu. – A reinserção... – Completou.
- Eu espero que com essa proximidade, ela esqueça todo esse assunto de . – Ele comentou.

Meredith sorriu ao ver as duas garotas se abraçarem novamente e então se deu conta do que o médico havia acabado de dizer.

- ? – Perguntou.
- Sim. O garoto que diz ver. – Sussurrou. – Por quê? – Perguntou ao ver os olhos arregalados de Meredith. Sua pele agora lívida estava o assustando.
- é o nome do meu filho, Byron. O meu único filho, que se matou depois de matar o padrasto pelo mesmo motivo que ela. – A voz de Meredith saiu fraca como uma brisa.

“Santos! Não tenham medo
Deixe sair, quero escutar vosso estrondo
Pecadores! Estão prontos para enfurecer?
Alto e orgulhoso, quero escutar vosso estrondo
Santos! Não tenham medo
O homem lá de cima quer sentir vosso estrondo
Pecadores! Estão prontos para enfurecer?
A besta de baixo quer sentir vosso estrondo”



FIM



Nota da autora:Ual. Fic pesadinha, hein? Será que alguém leu até aqui??? Mimi. Bem, acho que ando assistindo muitos filmes de terror e suspense. Ou não, porque na verdade faz tempo que não vejo filmes rs. Deve ser loucura da minha cabeça mesmo, hahahaha. Mas e aí? Gostaram? Nem eu acredito que essa short saiu tão... como posso dizer... tão... redonda. Simplesmente comecei a escrever e foi indo e indo e quando vi, terminei. Espero que vocês não me matem pelo suspense e nem pela PP não ter realmente ficado com o PP. Rs Comenteeeeem! E ah, há um grupo no facebook sobre as minhas fics e uma em especial que eu estou adorando escrever e que eu espero que vocês leem também. Ok, é isso rs P.S: O nome da fic é uma música da banda, são da banda Bullet for my Valentine e as partes em negrito do começo e do final são dessa música.
Nota da Beta: (Aquele momento em queinvertemos os papéis O/).PUTA QUE PARIU, xisGabis! Que fic é essa? Maravilhosa e com o final surpreendetemente inesperado. Te perdoo por ela não ter ficado com o Principal, acho que percebi que eles não ficariam juntos desde o início, mas esse final? Nunca, na história da face da terra, que eu ia esperar por ele. Queria que houvesse continuidade, BUT. Quero mais fics sua, amorzinho. Amei ser sua beta por um dia, sua linda e talentosa. Não esqueçam de comentar, tá, gente? Xx

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