Down and Out
Por Rafys

Já era a segunda vez naquela noite que eu sonhava com ela. Não era porque estava dentro de um ônibus cruzando aquelas estradas que, agora, não me preocuparia com ela. Peguei-me perdido em pensamentos enquanto olhava a paisagem fria daquela época do ano ao lado, em minha janela. Duas e quarenta e seis quando olhei no visor do celular. Era a foto dela ao fundo. Ela sorria.
Todos pareciam bem acomodados dormindo tranqüilamente (se é que se pode dormir bem acomodado e tranqüilamente dentro de um ônibus) e só eu não conseguia nem ao menos aliviar os pensamentos.
Eu tinha certeza de que ela havia ido para a casa que pertenceu ao seu avô. Ela sempre ia para lá fugindo do padrasto. Era onde ela se sentia protegida. Eu só queria saber o porquê de ela largar simplesmente tudo e ir. Ela já tinha seus 20 e poucos anos e nenhum padrasto para enfrentar... Talvez só fantasmas de um passado que ela provavelmente queria esquecer. Mas eu estava ali para ajudá-la e sempre estaria a qualquer custo e em qualquer momento. Mas ela parecia não saber disso.
Contrariado por lembrar de tais coisas, me mexi no banco fazendo com que meu caderno, onde eu costumava rabiscar algumas frases que possivelmente depois os dudes e eu melhoraríamos até virar uma música que fosse decente, caísse do meu colo aberto exatamente naquela folha em que eu tinha escrito o que mais eu lembrava nos últimos tempos e, coincidentemente, o que mais queria esquecer.
“Tudo o que é bom, dura tempo o suficiente para ter valido a pena...”
Foi a primeira coisa que li quando me levantei para pegar o caderno. (É, que li. Ninguém mandou o ter medo de escuro. Justamente por isso sempre temos que ir com algumas lâmpadas acesas pelo ônibus.)
Sentei-me novamente olhando aquela frase, extremamente contrariado porque eu não queria acreditar que tinha escrito aquilo. De certa forma não era algo errado, mas eu não me conformava simplesmente de ela ter acabado com aquilo sem nem ao menos me consultar. Não era orgulho ferido. À essa altura do campeonato, acha mesmo que eu vou me preocupar com orgulho? Cara, era a minha garota. A que estava por trás de todas as canções que eu compunha. A que me fazia sorrir que nem um idiota quando dizia que me amava. A que me fazia querer perder a vida toda à espera de um sorriso dela, ou então a que me fazia pensar coisas idiotamente românticas às três e alguma coisa da manhã, dentro de um ônibus à caminho de um dos maiores shows da minha vida. Era a garota que eu amava. Ou talvez ainda ame.
Partindo do princípio que nunca existe uma caneta por perto quando você precisa de uma, eu sempre ando com um monte delas em todos os lugares prováveis, então, logo peguei uma que estava dentro do copo de coca-cola ao meu lado, e voltei a rabiscar coisas sem sentido naquele caderno.
Lembrei-me do dia em que cheguei na casa dela à noite e ela usava aqueles óculos escuros grandes, dentro de casa. Eu dei risada quando ela veio abrir a porta porque eu simplesmente não sabia que ela havia chorado o dia todo. Ela ainda morava com o padrasto e eu não sabia das coisas que ela vivia dentro daquela casa. Soube naquele dia…

Why do you wear sunglasses in the home
When the sun went out about an hour ago?


Rabisquei algumas frases na folha e me lembrei que nesse dia eu havia prometido a ela que nós fugiríamos pra Vegas, longe de todas aquelas coisas e pessoas... E seríamos apenas nós dois a partir de lá. E eu... Ainda consigo me lembrar do sorriso de excitação dela com a minha idéia estúpida.
É, estúpida... Eu nunca poderia cumprir aquilo naquela época... Menos ainda agora. Talvez esse fosse um dos motivos de sua frustração... Mal sabia ela que era um dos motivos da minha também.
Olhei para fora da janela novamente, apoiando a cabeça no encosto do banco. A paisagem fria parecia não mudar.

You dream of demons while you sleep
That make you stutter when you speak
Now that I’m grown I’ve seen marriages fall to pieces


Escrevi mais algumas palavras quando me lembrei da madrugada em que ela chegou na minha casa, completamente atordoada por ter tido pesadelos com relação a seus pais e a tudo o que ela menos gostava. Ela mal conseguia falar. Foi aí que eu fiquei sabendo que sua mãe não havia morrido nas mãos de seu pai por muito pouco... E por menos ainda nas mãos de seu padrasto.
costumava rir da minha cara me questionando o porquê de eu ter me apaixonado por uma garota tão cheia de problemas, e eu sempre rebatia dizendo que gostava de viver perigosamente curtindo desafios... Na hora, nós dois dávamos risada, e ele ainda dizia que ela seria responsável pelos meus cabelos brancos antes da hora ou se não pela minha morte aos 32. Eu nunca concordei com isso, mas vejo que tinha um pouco de razão quando disse isso.

The writers weren’t kidding about how
All good things must end.
Then again some things are far, too good to go ahead and let go.
The writers weren’t kidding about
The good things will live in our hearts.


Eu me sentia depressivo. Era ridículo. Logo mais à noite eu teria um show e teria de estar bem para ele. Mas mais ridículo do que estar depressivo era ter que subir ao palco e fingir estar bem. Tudo bem, foi o que escolhi para mim. Mas às vezes eu me arrependia dessa escolha...
O banco voltou a me incomodar com aquela posição horrível que me deixava todo torto. Desejei a morte de quem tinha projetado os bancos dos ônibus daquela maneira e ao mesmo tempo desejei estar em casa, no conforto da minha cama. Minha cama que também era a dela. Tudo bem que morar comigo não era algo fácil, mas eu achava que ela estaria melhor lá do que com o padrasto. Ela nunca havia tido coragem de sair de casa... Isso foi o que mais me revoltou, não encontrei as chaves do carro dela em lugar algum. Por que ela não deixou nem ao menos uma carta? Quando dizia que ela era a ‘Rainha do Drama’ eu sempre achava que ele estava brincando, afinal, nunca se pode confiar em algo que diz.

Out of the house, she grabs the keys.
Runs for the hills and doesn’t leave a letter.
That way the impact will be much better.
Away from the man that she’s grown so fearful of.


Naquela hora, me bateu um sentimento de raiva... Mas logo eu me lembrei de uma coisa que ela vivia me dizendo...
“A raiva é uma extensão covarde da tristeza.”
Por isso eu nunca a via com raiva... Apenas triste por não poder mudar o que mais a chateava.
Por Deus, o que eu estava fazendo de errado? O que eu havia feito de errado? A única coisa que eu queria era que ela tivesse um futuro melhor do que o que ela esperava ou poderia ter ali, vivendo como vivia. E eu queria que esse futuro fosse ao meu lado.

Now that I’m grown I’ve seen marriages fall to pieces.
Now that I’m grown I’ve seen friendships fall to pieces.


Olhei no visor do celular... Três e cinqüenta e dois. Reli as coisas que havia escrito. Tudo estava uma porcaria. Grande coisa. era uma porcaria sem a garota que ele amava. Tentei me lembrar de como havia a conhecido, mas isso já nem fazia diferença. Ela já era uma parte de mim. Eu só queria que aquele dia passasse logo, para que eu pudesse voltar o quanto antes para casa e ir procurá-la... De novo. Eu odiava aquela mania que ela tinha de não atender ao telefone.
Enquanto pensava nisso, acabei pegando no sono e acordando algumas horas depois, com me cutucando. Dude, como eu odiava ser cutucado.
- Acorda ai, ô Bela Adormecida.
- Não fode, dude. – Sorri de lado, tentando parecer normal para os caras, e tentando achar graça das piadas deles e das brincadeiras sem noção do . Mas realmente estava difícil.
_

Finalmente, noite. Show. E três horas depois estávamos os quatro dentro do ônibus, voltando para casa. Na verdade, deveríamos dormir em um hotel e ficar na cidade até o domingo, mas eu fiz os caras voltarem na sexta. Não poderia perder tempo. Havia algo me dizendo pra que eu voltasse o quanto antes para casa. Eu tentava dormir... Mas não conseguia. Toda a hora acordava num sobressalto estranho. Até que acordei com meu celular tocando. Era um número diferente, eu não conhecia.
- Sr. ? – Uma voz masculina perguntou do outro lado, assim que atendi.
- Sim, quem é? – Indaguei, sentando-me reto no maldito banco que acabava com a minha coluna.
- É o Policial Smith. Lamentamos informar, mas encontramos o corpo da sua namorada próximo a uma casa abandonada, na South Hills... – A voz do homem foi ficando longe e tudo parecia confuso... Como assim... Morta?
_

Um ano e meio depois, eu ainda me lembro exatamente daquele dia. Quando cheguei à cidade, logo soube as causas de sua morte. A investigação mostrou que o miserável do padrasto dela havia a seqüestrado na nossa casa e a levado pras colinas... Senti uma raiva que nunca achei que fosse capaz de sentir. Mas o animal pagou um preço muito justo. Dois meses após ter sido preso, ele morreu. Só me sinto mal por não ter sido eu mesmo a tê-lo matado com minhas próprias mãos.
Hoje, uma das músicas que mais pedem para que toquemos nos shows, é aquela que ninguém sabe o motivo de ter sido escrita. Não sei como, mas a história da morte dela não vazou para a imprensa e, logo, ninguém soube que ela existiu. É por isso que eu penso que nossa história nós podemos moldar em determinados casos. Ninguém nunca soube que eu perdi a garota que mais amei na vida, justamente porque todos acham que meu passado só teve coisas felizes e lembranças boas para contar. Mal sabem eles que eu convivo com isso até hoje. Não da mesma forma, talvez de uma maneira mais conformista... Mas ainda assim, sentindo a sua falta.

Notas:

- Pra quem não sabe, “Down and Out” não é do McFLY, mas sim do The Academy Is... :D
- A fic está meio sem noção porque eu não tenho dom pra escrever shortfic. Minhas historinhas legais são mais longas mas eu nunca tenho paciência pra terminar. *apanha*

Agradecimentos: (únicos e exclusivamente às melhores amigas)

- Nikih (a Jones que divide o Jones comigo nas minhas crises Jones-Judd-Fletcher): a melhor beta do Addiction (H). Agradeçam a ela por ter me mostrado “The Academy is...” há séculos atrás, mas ainda ta valendo, né?
- Mari (a Poynter mais insuportável que eu conheço!): só pro nome dela aparecer aqui e ela não se chatear depois... *apanha²* Mentira, tenho que agradecer ela por ler minhas fics e opinar antes de todo mundo *o*’

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