Finalizada em: 04/05/2021

Capítulo Único

estava em seu quarto, próxima da janela tentando aproveitar o resquício de sol que entrava por ali. A rua vazia, as lojas fechadas e o silêncio instalado na cidade era o reflexo de uma das causas da pandemia. Presa dentro de casa, assim como tantas outras milhares de pessoas, tentava buscar formas de se distrair diariamente, isso quando não ficava presa com o trabalho acumulado. Entretanto, como se não bastasse todos os problemas, ela ainda morava com , sua atual-ex-namorada.
O apartamento de dois cômodos acabou sendo a salvação para que elas evitassem o contato, principalmente quando perceberam que o relacionamento tinha chegado ao fim no meio de uma pandemia. Depois de três anos de namoro, parecia que a convivência tinha se tornado uma atividade impossível de ser desenvolvida por ambas, mas elas sabiam que não conseguiriam outro lugar para morar tão cedo, então passaram a evitar os mesmos cômodos em que uma estava ao mesmo tempo. Era um tratado de paz, mesmo sendo um tratado de paz horrível.
Naquela manhã, resolveu fazer algo diferente e arriscar, se não desse certo, ela poderia dizer que ao menos tentou. Acordou alguns minutos mais cedo e preparou um café para as duas. Sabia que a pior parte do dia para era o período da manhã, afinal ela só saía do quarto depois do meio-dia. Não, ela não acordava nessa hora, ela começava o dia cedo, assim como , mas para evitar qualquer grosseria da sua parte, evitava o contato com qualquer pessoa nesse período.
No centro da mesa ficava um vaso de girassol, próxima da janela ficava um rádio tocando uma playlist de músicas para uma manhã relax, como elas costumavam chamar; o cheiro do café passado e um prato de cookies era a melhor coisa para começar o dia. A rotina de e nunca mais seria a mesma, elas sabiam disso, talvez suas prioridades mudassem ainda mais quando toda aquela pandemia acabasse, mas enquanto vivem debaixo do mesmo tento, tentaria manter a melhor relação possível com .
… — deu duas batidas na porta, nada. — Tem café pronto, fique à vontade.
não esperou alguma resposta, não estava criando expectativas, pelo menos não era o que ela assumia em voz alta para si mesma. Mas lá no fundo, lá no seu subconsciente, ela queria que abrisse a porta e a fizesse companhia naquela manhã.

•••

O despertador tocou às oito horas em ponto, e por algum milagre, já estava acordada há alguns minutos. O que era estranho quando se tratava dela, mas talvez aquilo fosse um sinal para ela mudar um pouco sua rotina. Desligou o celular e levantou mesmo a contragosto, calçou os chinelos e correu para o banheiro, ligando o chuveiro no quente (ou quase fervendo) e deixou a água cair por seu corpo, fazendo-a despertar totalmente. Assim que desligou o chuveiro, olhou-se no espelho, as olheiras estavam ali aprovando mais uma vez que ela estava exausta, e já estava cansada de ficar exausta. Viver dentro de casa por muito tempo estava sendo um desafio, mas ela sabia que era para o próprio bem. Cansada de permanecer com sua aparência desleixada, começou a limpar a pele com o sabonete líquido para o rosto, massageou bem e logo enxaguou-o, passando por último um creme para área dos olhos e um hidratante facial. Seu corpo implorava por uma mudança, nem que fosse mínima.
Quando estava prestes a sair do banheiro, escutou algumas batidas na porta em frente a do banheiro. Ela ficou realmente surpresa, já que ela e não conversavam há alguns meses, outra coisa que tinha mudado muito entre elas. Por medo de que fosse desistir e por curiosidade em saber o que ela fosse fazer, acabou ficando trancada no banheiro por mais alguns segundos, ansiando por uma resposta. De todos os defeitos de , uma coisa que ela nunca foi durante todo o tempo que mantiveram um relacionamento, era ser invasiva. Ela sabia quando queria espaço, e sabia respeitá-lo muito bem. Isso era muito valorizado por .
… — Ela escutou ser chamada pela ex-namorada. — Tem café pronto, fique à vontade. — se permitiu sorrir, ela amava quando alguém fazia café da manhã para ela. E tinha sentido muita falta disso.
Por um instinto, abriu a porta rapidamente e parou no meio do corredor. As duas ficaram se encarando, guardando na memória cada traço uma da outra, mesmo sabendo todos os seus trejeitos de cor.
— Oi. — Foi a única monossílaba que foi capaz de produzir, mas o suficiente para fazer o peito de faiscar.
— Quer tomar café? — apontou para a cozinha, ainda sem saber o que fazer.
— Claro, só vou colocar uma roupa. — Então, como duas adolescentes, foi direto para a cozinha e entrou rapidamente em seu quarto.
A falta de contato uma com a outra foi um período longo e terrível, marcado por alguns momentos de tristeza que a fizeram questionar se estariam fazendo o certo. Com certeza não estavam. Mas agora, talvez, o contrato invisível de paz pudesse ser transformado em um novo contrato onde elas mantivessem uma relação civilizada como antigamente.

— Ei, o que temos pra hoje? — entrou correndo na cozinha, após largar a bolsa em cima do sofá e tirar o tênis no meio do caminho.
— Sushi para mim e Lamen pra você. — respondeu enquanto colocava a sua janta no prato.
— Não entendo porque você nunca come na caixinha, é mais prático e não precisa sujar louça. — pegou uma garrafinha de água gelada, tomando pelo menos metade do líquido. É, São Paulo não estava economizando no calor infernal.
— Não gosto, sei lá. Acho que é por causa desse barulho de plástico. — Ela deu de ombros.
imitou o movimento de , lavou as mãos na pia da cozinha e se juntou à namorada na mesa. Satisfeita com a sua janta, ela desviava o olhar da tigela apenas para prestar atenção na novela que passava. Após o jantar, lavou a louça, e preparava um mousse rápido de maracujá, apenas para ter algum docinho para beliscar mais tarde.
— Vamos assistir um filme hoje? — começou a distribuir beijos pela extensão do pescoço de , o que fez soltar algumas risadinhas.
— Acho que desse jeito não vamos chegar até a sala. — Ela virou-se, ficando de frente para e entrelaçando seus braços no pescoço da mulher.
— Essa é a intenção.
puxou a namorada para perto, colando ainda mais seus corpos e grudando seus lábios de uma vez só. desceu os beijos para o pescoço de , fazendo-a arrepiar, assim como ela sentiu minutos atrás, indo de encontro a sua boca logo após. Elas sorriram entre o beijo e a noite se seguiu com muitos outros.

Assim que abriu o guarda-roupa e uma blusa de caiu junto com as outras, a lembrança apareceu quase como automático em sua mente. Afinal, naquela mesma noite usava a blusa dos Beatles, blusa essa que acabou pegando emprestada na manhã seguinte.

•••

— Tá tudo bem, mãe. — tomou mais um gole do seu café quase frio. Sua mãe tinha ligado bem na hora que ela voltava para a cozinha, e com a distância e o isolamento, passou a manter contato apenas por telefone com a mulher. — Não precisa sair de casa, tá? Mais tarde eu levo as coisas do mercado que faltam pra senhora.
entrou na cozinha, servindo-se de uma xícara de café. Em silêncio, esperou até que terminasse de conversar com a mãe ao telefone, o que não demorou para acontecer.
— Ela ainda tenta dar aquela escapa de sempre? — comentou, casualmente, assustando um pouco . Elas não conversavam já fazia tempos.
— Sim, sempre. — Ela riu, tentando controlar seu nervosismo. — Ficou bom o café? Era extraforte.
— Tá ótimo, coloquei um pouco de água. — enfiou um cookies na boca, saboreando o biscoito. observava a mulher à sua frente, os cabelos cacheados de pendiam num coque alto de sua cabeça, ela usava uma camiseta básica preta e um short de malha fina rosa. Não era sua cor favorita, mas ainda assim ficava perfeito em .

… — As duas sorriram uma para outra ao se chamarem pelo apelido. — Não quero mais ficar nesse clima. Acha que podemos conviver normalmente?
— Tenho certeza que sim. — fez um carinho de leve na mão de por cima da mesa. — Sinto sua falta, e acho que deveríamos ter tido essa conversa quando terminamos.
— Mas nos ignorarmos foi mais fácil — completou a frase, elas sabiam que tinham escolhido a opção mais fácil, porém dolorosa, ao invés da mais sensata. — Também sinto sua falta.

•••

Os dias ficaram mais fáceis quando elas resolveram lidar com as diferenças. O relacionamento não era o mesmo, elas sabiam que nunca mais voltariam a ser um casal, mas poder conviver, conversar e se divertir — mesmo dentro de casa — tornava o clima mais ameno. Naquela manhã chuvosa, típica de São Paulo, e resolveram assistir um filme juntas na sala, o que há tempos não acontecia.
— Eu preparo a pipoca. — disse, pegando o pacote da pipoca de microondas.
— Ei, isso não é justo. — pegou uma panela para preparar o brigadeiro.
— Você sabe que a última vez que eu tentei fazer brigadeiro ficou torrado, é melhor não arriscar.
— Nossa, é verdade. O cheiro parecia que não ia sair mais daqui de dentro. — balançou a cabeça concordando, após tirar o pacote de pipoca do microondas.
— Quer suco ou refrigerante?
— Suco. — voltou a mexer o leite condensado na panela, dessa vez ficando mais séria. — Conversei com a minha mãe, ela me pediu desculpas.
ficou em silêncio, ela sabia desde o início do relacionamento que não mantinha o melhor dos relacionamentos com a mãe. Tudo isso, porque a mãe não aceitava do jeito que ela era. Nas palavras de Laura “jamais aceitaria uma filha lésbica”.
— E como você está se sentindo?
— Por incrível que pareça, estou bem. Mas não somos melhores amigas, entende? Pelo menos ela entendeu que eu não gosto de homens.
— Isso é bom, fico feliz por você.

—Você já está chegando, né? — disse um pouco mais baixo do outro lado da linha.
— Sim, algum problema? Precisa que eu leve algo? — ajeitou a bolsa no ombro enquanto descia do ônibus.
— Minha mãe já chegou. — Ela soltou um suspiro alto. — Traga mais um vinho, por favor.
— Chego em cinco minutos, te amo.
— Também te amo.
voltou a olhar para a sala de estar, assim que desligou o telefone, soltando um suspiro antes de se sentar novamente ao lado do pai.
— Tá tudo bem? — Sérgio perguntou para a filha.
— Tá sim, pai. — Alguns minutos depois, entrou com uma sacola de mercado em mãos e a bolsa pendurada no ombro. Um pouco afobada devido a caminhada mais rápida que teve que dar para não demorar ainda mais.
— Boa noite. — percebeu que estava mais nervosa do que imaginava.
— Mãe, pai, essa é a , minha namorada. — entrelaçou os dedos nos de e sorriu para os pais, torcendo para que eles aceitassem.
— Prazer em conhecê-la, . — Sérgio foi o primeiro a falar, enquanto Cecília observava a filha de cara fechada sem falar nada. — Bom, acho que podemos jantar agora e aproveitamos para conversar mais, o que acham?
— Claro, desculpe a demora. — sorriu, um pouco envergonhada pelo atraso.
fala bastante de você, pelo jeito estão felizes juntas.
Sérgio era simpático e durante todo o jantar fez questão de manter um clima agradável, apesar de Cecília nem sequer ter cumprimentado quando ela chegou no apartamento.
— Mãe, eu fiz pudim, sei que a senhora adora. — tentou puxar assunto com a mãe, sem sucesso.
— Não estou com vontade de comer doce. — Ela voltou a ficar quieta.
— Qual o problema dessa vez? Porque pra você nunca é o suficiente. — explodiu, e na mesma hora segurou em sua mão tentando acalmá-la.
— Por que você não pode ser uma pessoa normal e me apresentar um namorado? Sempre tentando chamar a atenção, .
— Eu sou uma pessoa normal, mãe. E é quem me faz feliz, por isso aceitei esse jantar, pra compartilhar isso com vocês.
— Eu preferia que você não tivesse feito isso, na verdade, é um desgosto pra mim. Você é um desgosto, . Pode esquecer que você é minha filha.
— Cecília, chega! Vamos embora. — Sérgio interviu na discussão. Cecília sabia ser cruel e ela conseguiria ser muito mais se continuassem ali.
ficou sentada, no mesmo lugar, sem conseguir reagir a tudo aquilo. Quando escutou o barulho da porta sendo fechada, se deu conta do que realmente tinha acontecido e desabou. Na mesma hora, a abraçou e falou palavras de conforto, mesmo que a dor em seu peito fosse insuportável.
— Desculpa, . Tudo que eu mais temia aconteceu. Desculpa por isso.
, você não me deve desculpas. Eu sinto muito pela sua mãe, mas você não fez nada de errado. Ela só não aceita que você seja feliz com uma pessoa do mesmo sexo.
— A gente sabe que isso tem nome, . E minha mãe não consegue esconder a homofobia dela, essa é a parte que mais tá doendo. — voltou a chorar, dessa vez, abraçada em .

— Você não consegue esconder quando lembra de algo que te magoa. — encarou , esperando que ela continuasse. — Você enruga a testa e fica séria.
— Desculpa, aquela foi uma noite longa.
— Eu sei.
— O brigadeiro está pronto? — mudou de assunto, tentando não ficar com o clima esquisito.
— Tá sim, quer a rapa da panela?
— Claro, estava só esperando esse momento. — lambeu a colher, cuidando para não queimar a língua.
— Vamos logo assistir esse filme, porque com essa chuvinha já tá me dando sono de novo.
Talvez a escolha do filme não tenha sido das melhores, no final de Marley & Eu, as duas se encontravam chorando sentadas no sofá. Sabiam que isso sempre acontecia quando assistiam filmes de cachorros, mas insistiam em continuar sofrendo com dramas aparentemente fofos e inabaláveis. estava deitada no sofá, enquanto fazia um cafuné gostoso em , elas não tinham reatado o namoro, mas já conseguiam conviver como gostavam e costumavam. Acima de tudo, elas eram amigas e compartilhar as coisas sempre foi uma parte importante daquela relação.
— Eu vou embora. — comentou. Os créditos do filme apareciam na televisão, mas nada mais importava além da companhia uma da outra.
— Eu sei, vi as caixas arrumadas no seu quarto. — confessou, mantendo o mesmo tom de voz baixo.
— Vou sentir sua falta.
— Eu também. — levantou a cabeça, encarando nos olhos. — Mas desejo, acima de tudo, que você seja feliz.
— Eu te amo, . — abraçou-a ainda com lágrimas nos olhos.
— Eu te amo, .



FIM!



Nota da autora: Olá, é minha primeira história lgbt, mais especificamente entre duas mulheres, e eu espero que vocês tenham gostado. Tentei mostrar que nem todos os términos precisam ser ruins, e acho que Amélia e Jesse fizeram isso muito bem.
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Até a próxima ❤



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