Finalizada em: Out/2021

heartbeat

A impressão era que Jungkook sabia do que estava falando.
As alegações inflexíveis, as broncas e os conselhos dados ao amigo eram desesperadas, pareciam conter algum tipo de embasamento. Mas se o perguntassem, ele não saberia responder. Era algo que ele simplesmente fazia.
E só se lembrava de ser assim.
Parando para pensar, ele não se lembrava de ser de outro jeito em momento nenhum. Mesmo que tentasse, não conseguia.
Mas não via utilidade nisso. Afinal, quem estava vivo por tantas eras não precisava se recordar de todas para continuar fazendo seu trabalho.
No entanto, ao olhar para Jimin e Renai, agora segurando um pequeno bebê de alguns meses nos braços através da janela da casa, ele sentiu algo gelado na boca do estômago, um desconforto que não era propício aos anjos da guarda.
E percebeu que, o que estava diante de seus olhos, já fizera parte de um desejo escondido no seu mais profundo interior, aquele que não pertencia mais a si mesmo e era acessado constantemente pelo alto escalão, e sempre aprovado com louvor.
Jungkook era o projeto mais bem-sucedido do Céu. Um anjo corrigido, expurgado de qualquer sentimento mundano.

LONDRES, 1968


Shea não parava de se mexer.
Era sempre assim quando estava preparando a papelada dos novos protegidos. Era uma separação interminável de nomes, idades, sonhos e azares. A vida inteira de uma pessoa em míseras três páginas de papiro.
Ele parou, estendendo as informações de Shaye para Jungkook, seu novo anjo da guarda, que estava louco por umas férias após seu último protegido, Ngoc Chan, um cidadão bem detestável nos Estados Unidos, ter sido pego por fraudes na bolsa de valores e sofrer uma retaliação pesada antes mesmo de vestir o uniforme laranja da penitenciária. O sistema celestial reconhecia que os anjos só podiam ir até um certo ponto; e que nenhum deles passaria por cima do karma.
A garota nova tinha seus míseros 21 anos de idade e uma gama de boas ações. Todas elas condizentes com trabalho voluntário e entregas de bike da pequena mercearia de produtos orientais dos pais em um subúrbio de Londres. Uma pessoa normal e, aparentemente, sem ambições perversas que a colocaria em problemas.
Só havia uma coisa estranha: sua lista de sonhos estava zerada.
Apenas dois tipos de humanos carregavam aquela condição: idosos e pessoas à beira da morte.
não parecia pertencer a nenhuma das categorias. Até que Jungkook esticou os olhos pelas letras miúdas do registro e ergueu a cabeça com o maxilar trincado.
— Isso é brincadeira? — bufou, largando o rolo de papiro em cima da mesa quadrada — Quer me designar para uma pessoa que vai morrer em 3 meses?
Eu não quero nada — Shea deu de ombros, continuando suas tarefas pacificamente, sem se afetar pelo tom grosseiro do colega — Essa decisão não vem de mim, você sabe. O alto escalão. Reclame com eles.
— De que adianta perder tempo com alguém que vai morrer? Os estagiários podem cuidar dela até a data prometida. Por que eu…
— Alto escalão, Jungkook — Shea permanecia impassível. Os óculos redondos de grau ficavam presos em seu nariz — Se eles não te rebaixarem por causa dessa reclamação, então considere-se com sorte.
O anjo grunhiu e voltou a tomar o registro, olhando com pesar para o rosto sorridente na foto em miniatura. Shaye, 21 anos, tumor maligno cerebral. Um aneurisma que estouraria a qualquer momento nos próximos três meses. Qual o intuito de uma proteção?
— Isso não vai dar certo — ele murmurou, preparando-se para deixar a sala.
— Não vai dar certo para ela ou para você? — Shea levantou os olhos pela primeira vez. Jungkook riu em escárnio.
— Volta para o que estava fazendo — e saiu da sala, caminhando de encontro à sua nova protegida.

✝️


A primavera era a estação preferida de .
Todo o renascimento de flores e cores estonteantes pareciam preparar o mundo inteiro para um verão radiante, mesmo que o verão não fosse literalmente em escala global. No entanto, todos os acontecimentos na vida de eram levados nesse peso literal: sua nação era a cidade de Londres; o planeta Terra inteiro cabia dentro da Inglaterra.
E a melhor coisa para se fazer em uma bela manhã de primavera era entregar limões e curry frescos encomendados pelos moradores de Notting Hill e Brick Lane no dia anterior, diretamente de sua Monark batida e enferrujada, mas que aguentava a viagem há muitos anos.
O caminho de pedregulhos era o mesmo, e o cuidado precisava ser redobrado na Avenida Paddington, mas naquele dia foi diferente. Naquele dia, diferente dos anteriores, tinha uma TDK no bolso do jeans, jogando a voz de Elton John em Bennie and the Jets em seus ouvidos através dos fones, trazendo mais empolgação para a viagem, porém menos percepção. O presente de aniversário tinha sido adiantado por motivos que bem sabia, mas não comentava. Seus pais haviam driblado totalmente sua insistência em não receber nenhum presente, mas, no final, ela estava feliz por desfrutar de boa música fora do vinil repousado na sala.
Ela deveria saber que a ideia não daria muito certo. Em um cruzamento fechado, onde já deveria percorrer um zilhão de vezes desde o ano passado, sua mente não pareceu se recordar da rua estreita ao lado, onde os carros esperavam sua vez para irem em frente após o sinal da avenida principal finalmente fechasse. Por algum motivo louco, ela não se lembrou. Simplesmente viu os carros parando pouco a pouco e continuou pedalando em frente, bem na parte que Elton cantava “Oh, Bennie, she’s really keen, she’s got eletric boots, a mohair suit, you know I read it in a magazine, ohh-oh”.
A voz de Elton John só foi abafada repentinamente pelo barulho da buzina do grande ônibus vermelho. não teve tempo de pensar. Seu corpo inteiro foi paralisado e suas pernas pesaram como chumbo. Antes mesmo que decidisse largar a Monark para trás ou tentar firmar os pés no chão, ela sentiu o corpo ser jogado há quilômetros de distância, ou pelo menos pareceu pela lentidão com que o cenário passava por seus olhos. Elton John também foi surrupiado e lançado para longe de seus ouvidos, desaparecendo em algum lugar do céu azul. Ela jurou ter visto um limão passar voando do lado de sua bochecha. Tudo pareceu estar acontecendo há horas, com seu corpo flutuando no ar por anos a fio e nunca atingindo o chão. A sensação mais louca que uma pessoa poderia sentir.
Esse era o famoso filme de toda uma vida que acontecia antes da morte? Impossível. Ela tinha coisas mais legais a se lembrar antes de morrer, estava tentando construir isso, pelo menos. Já que morreria em breve.
Quando finalmente sentiu o chão sob seus joelhos, também sentiu a dor. Se a perspectiva louca do tempo a deixou cair devagar, tinha soltado-a ao chão sem dó alguma. Seu corpo caiu para o lado e deve ter rolado umas duas vezes até que finalmente abrisse os olhos devagar, fechando-os logo em seguida pela luz forte do sol, que brilhava acima de sua cabeça como se estivesse do seu lado.
No entanto, não importava o quanto o sol estivesse forte, ele ainda a deixaria ver o asfalto e os prédios ao redor. Algo em cima de seu rosto brilhava em fogo vivo. Um fogo que envolvia dois círculos negros, como pupilas presas em um incêndio. E então ela escutou, tão claro e firme como a queimação daqueles olhos sobre si:
— Acho que agora entendi porque você precisa tanto de proteção — uma risada estonteante soou da luz, balançando seu corpo inteiro — Que piada.
E então, a luz era tão forte que ela não conseguia mais suportar. Seus olhos pesaram de forma brutal e ela apenas se deixou levar pela inconsciência.

✝️


Jungkook era um ser destituído de dores físicas, mas tinha certeza de que suas pernas doeriam, caso pudessem, se ficasse mais uma hora naquela posição.
O parapeito da janela era estreito, mas largo o bastante para que ele esticasse as pernas até que seus pés tocassem a parede. O anjo bufou, vendo a cena à frente se repetir novamente, tomada de um drama diferente toda vez em um intervalo de minutos. Consistia em: , sua nova protegida, sentada à beira da cama, tentando explicar pela milésima vez aos dois adultos pálidos e aterrorizados de que ela estava bem e, principalmente, viva. Os curativos eram pequenos e irreais para uma pessoa atingida por um ônibus; apenas uma faixa branca na lateral da testa e no joelho, que foi o que mais sofreu. Fora isso, a garota estava perfeitamente bem e saudável, mesmo que não soubesse explicar como – nem ela, e muito menos as testemunhas, que já tinham sido categoricamente levadas a esquecer o ocorrido.
O anjo francamente não tinha paciência com aquilo. Ele já havia levantado, esticado as pernas, caminhado pelo quarto e tomado seu lugar na janela de novo. E os dois adultos ainda não haviam saído. Enquanto a mulher se retirava para buscar o jantar, o homem ajeitava travesseiros e colocava para deitar. Depois, a mulher voltou e o homem dizia preparar um chá de ervas que a deixaria nova em folha dali há dois dias. Era um misto de choque e espanto da parte dos dois; Jungkook esperava felicidade, oras. Um pouco de reconhecimento pelo seu trabalho seria bom.
A cada minuto, parecia olhar pela janela, franzindo o cenho de encontro ao sol que se punha. A lembrança dos olhos flamejantes não deixava sua mente nenhum segundo sequer. Quando os pais desesperados, finalmente, vieram dar um boa noite definitivo, a garota esperou a porta do quarto ser fechada, aguardou alguns minutos até se certificar que não voltariam e sentou-se ereta no colchão, virando-se para a janela.
— Tá legal, quem é você? — perguntou ela.
Ele não entendeu de imediato. Por vários segundos, ficou parado, e até olhou para os lados em busca de algum ser vivo com quem ela poderia estar se referindo, mas não havia ninguém. Só tinha ele na janela, e era exatamente para onde os olhos dela focavam.
— É, é com você mesmo que eu estou falando — disse, ríspida. — O que você é, um fantasma?
Jungkook franziu o cenho, jogando as pernas para dentro do quarto. O barulho fez com que se assustasse levemente. Ele ainda não sabia exatamente o que responder.
— Fantasma? — ele riu em sarcasmo, encarando-a ofendido — Eu seria o fantasma mais burro do planeta se ainda estivesse vagando por aí depois de tanto tempo. — Ele cerrou os olhos e se levantou, caminhando até a garota sentada, que agora engolia em seco — Você está brincando, não é? Consegue mesmo me ver?
— M-mas é claro que consigo — gaguejou ela, sentindo um pesar no peito com a presença que se aproximava — Não estou falando com você?
O anjo mordeu o lábio inferior, pensativo. Examinou todo o rosto da garota em busca de algo que a caracterizasse como diferente, um projeto mal feito da humanidade, mas nada vinha. Ela o fitava com nervosismo, mesmo que tentasse disfarçar, e estava mais assustada do que aparentava.
— Já sei. — Jungkook falou, estalando os dedos, e então, abriu as asas por completo.
O comprimento do par de asas brancas era espetacularmente assustadora. O quarto de consistia em algo comparável a uma caixa de sapatos, apertada e escura, e o abrir de plumas a fez soltar um grito, que a mesma abafou sozinha pondo uma das mãos na boca, enquanto arrastava o corpo para trás até se encolher na cabeceira, sentindo o vento ao redor, o bolo gelado no estômago, o fogo queimando nas pupilas negras enquanto o anjo sorria vitorioso.
E então, tudo sumiu. As asas se encolheram novamente, a luz da lua voltou a entrar pela janela e o ar se tornou fresco e sereno de novo. Parecia que nada tinha acontecido. A não ser pelo mesmo sorriso do sujeito à sua frente, que era idêntico à cena anterior.
— E então, conseguiu ver isso? — ele perguntou, como se já soubesse a resposta — Diga que viu uma enorme cortina de fogo, ou um vácuo negro, céu estrelado, coberturas de prédios, não sei, é diferente para cada humano…
— Suas asas… — ela sussurrou e o sorriso dele sumiu por completo — E os olhos… Eu sabia, era você! Você me salvou do acidente hoje.
Jungkook deu um passo para trás, abismado demais para dizer alguma coisa.
Essa garota, sua protegida, alguém sem sonhos e com morte marcada, foi capaz de ver algo que nenhum outro ser humano foi capaz de fazer.
Pelo menos, não no último século.
— Era você, não era? — ela perguntou novamente, agora esticando as pernas para fora da cama — Você me salvou. Eu tenho certeza, você apareceu em uma luz, e eu… — sua perna vacilou ao tentar se levantar, e seu corpo foi tombado para a frente. Ela despencaria no chão, se não fossem os braços que tomaram seu tronco, erguendo-a de volta para cima. Ela encontrou o rosto mais próximo do seu, mas não sentia nenhuma respiração. Nem cheiro, calor ou frio, nada. Parecia uma visão holográfica, sem as falhas de circuito. Ele parecia algo vivo pessoalmente, mas era uma imagem em 3D.
Em contrapartida, o anjo se encontrava completamente confuso. Uma dor — ele avaliou como dor, porque tinha um teor terrivelmente incômodo, algo que o deixava extremamente desnorteado — palpitou em seu peito, e uma chama ardeu e apagou quase instantaneamente, como um lapso maluco de segundos de duração. Ele sentiu arder. Podia jurar que tinha.
— É, era eu — ele soltou seus braços, se afastando dela desorientado, ajeitando a postura — Prazer, seu anjo da guarda, seja lá como vocês humanos interpretam isso.
o fitou, aturdida por alguns segundos, até soltar uma risada entusiasmada. Ele juntou as sobrancelhas, lembrando-se das duas únicas reações possíveis que as pessoas teriam frente à revelação: chorar ou pedir alguma coisa.
Os humanos tinham o péssimo hábito de relacionarem anjos com o Alto Escalão, quando eles eram somente… Anjos. Nem eles mesmos eram capazes de realizar pedidos, quanto mais repassá-los.
Mas Shaye riu. E não parecia uma risada feliz, do tipo que religiosos fanáticos teriam com a visão de um ser celestial, mas era uma risada amarga, irônica. Como se Jungkook tivesse contado uma piada trágica.
— Anjo da guarda. Fala sério — ela disse quando as risadas cessaram, voltando para a cama e puxando as cobertas — Diga à Ele que não preciso de um de vocês. Só está recebendo trabalho à toa.
Ela esticou as costas e se deitou. Jungkook juntou as sobrancelhas, olhando-a com curiosidade.
— Vai explicar ou vai dormir na melhor parte? — ele deu de ombros. Ela bufou, apoiando-se em um cotovelo.
— Não faz sentido ceder proteção para alguém que vai morrer.
Ela respondeu incisiva, como quem dá um bom dia qualquer. Era uma informação muito repetida em sua mente, diariamente. E não parecia nada alarmada em saber disso.
— Você sabe que vai morrer? — perguntou ele.
— A qualquer momento — ela suspirou, deitando-se de lado, puxando as cobertas até os ombros — Alguma coisa vai explodir no meu cérebro e fazê-lo sangrar até que eu desmaie. O médico disse que meu coração vai continuar batendo por um tempo, mas nada no meu corpo vai funcionar porque a grande máquina central pifou. E quando isso acontece, não demora muito para que tudo comece a morrer também — ela bocejou, começando a fechar os olhos — Portanto, senhor anjo, agradeço a ajuda de hoje, mas não precisa se preocupar. Se quiser realmente ser útil, pergunte ao seu chefe quantos dias me restam para que eu possa me certificar de que todas as encomendas sejam entregues.
Ela bocejou mais uma vez e fechou os olhos em definitivo. Jungkook continuou parado no mesmo lugar, observando a garota que falava tão serenamente sobre a própria morte com choque e espanto. sabia que ia morrer, e por isso não tinha sonhos. Muito menos ambições, luxúria ou avareza. Jungkook conseguia ler a sua mente, com um estranho delay de percurso: ela pensava em como recuperaria as frutas perdidas no acidente, e se a família Bernal faria uma nova encomenda, e se sua mãe conseguiria fazer a contabilidade sozinha no dia seguinte. Essas coisas se passavam na mente tranquila da garota, as únicas coisas.
O anjo bufou e a observou mais uma vez, esperando por mais, mas nada veio. Ela já dormia profundamente em poucos minutos. Ele batucou os dedos no queixo, pensando na certeza que a garota tinha de que ele não tinha conhecimento dos seus exatos dias contados, quando na verdade tinha. Uma verdade que ele nunca pretendeu deixá-la saber.
Antes que ele sumisse pela janela e se embrenhasse na noite lá fora, visualizou pela última vez as chamas nos olhos do anjo antes que caísse no sono profundo.

✝️


Jungkook tinha sua visão quase que inteiramente focada no local em que se mantinha naquela hora. Não entendia porque estava tão intrigado com aquela cena, já que o cômodo como de costume, sempre era o mesmo que ela costumava estar.
A garota tinha suas mãos apoiando o livro que segurava e seus olhos não pareciam curiosos com qualquer outra coisa. Nada parecia importar para ela se não fosse estar imersa na história em que lia.
O que, para ser sincero, não era diferente do que ela costumava fazer em sua rotina.
Aquilo fez o anjo piscar algumas vezes, sequer notando o jeito em que a observava, mesmo que não tão longe e algo dentro de si de remexeu minimamente, o fazendo pensar até que fosse um resquício de incômodo, mesmo tendo certeza que isso seria impossível. Já que, Jungkook mais do que ninguém, sabia muito bem sobre o fato de que, por ser um anjo, nada poderia ser sentido por ele.
Ele bufou. Não conseguia entender o misto de pensamentos embaralhados que passavam por sua mente naquela hora, todos sendo ligados a um único objetivo: fazer aproveitar o máximo que pudesse, mesmo sabendo que suas limitações o impediria de boa parte das ideias que tinha tido.
Não era como se estar com ela naquele quarto, com parte do silêncio o inundando e o fazendo ser apreciador de como ela se tornava tão serena focada em algo, fosse ruim de todo modo. Desde o dia em que havia descoberto que ela poderia vê-lo, Jungkook sentia que devia estar mais próximo do que costumava estar de seus protegidos, mesmo com toda a teimosia que a garota insistia em se fazer presente de não querê-lo ali.
Ele até entendia o que havia impulsionado todas as fortes emoções que conseguia ver com clareza pela garota, mas não era como se fosse parar ali.
Jungkook não deixaria que ela continuasse daquela forma, não sabendo que poderia estar fazendo muito mais do que apenas desfrutar de seus dias com um livro interessante.
— Você não cansa? — a garota perguntou, sem tirar seus olhos da página que folheava com delicadeza e com a mínima pressa possível.
O anjo soltou um pigarro, ao notar que havia sido notado observando-a.
— De que?
Ela virou o rosto em sua direção, arqueando uma das sobrancelhas como se perguntasse se ele estava falando sério sobre aquilo. Quando notou que Jungkook parecia perdido em seus pensamentos e que realmente não havia entendido sua pergunta, soltou um suspiro pesado e cansado.
— Você não para de me olhar. Qual é o problema? — bufou, o encarando por completo. — E parece que tá pensando demais! O que foi? Assim você me irrita.
apontou para ele rapidamente, rolando os olhos no instante seguinte. Jungkook deixou uma risada fraca escapar de seus lábios ao estudar a atitude inteiramente impaciente da garota, agora sentada na cama, e deixou a cabeça cair para o lado, achando graça em como o fato de apenas olhá-la, a tirava do sério. Ele conseguia se lembrar com clareza da primeira vez que havia visto a mesma corresponder com aquela atitude e que agora não parecia tão estranho assim, como tinha achado.
— O que? Não posso ficar te observando?
— E desde quando deixei você fazer isso?
O anjo riu.
— Não preciso de sua permissão, protegida. — rebateu, soltando um resmungo antes de jogar suas pernas da janela, para dentro do quarto, ficando de pé. Piscou algumas vezes antes de continuar. — E eu estou ficando entediado com você sentada aí o tempo inteiro. O que é que você tanto lê?
— Nem ouse… — iniciou, o vendo se aproximar e tentou afastar o livro para que ficasse o mais longe possível do anjo. O que não deu muito certo, já que ao piscar seus olhos, Jungkook estava parado do outro lado da cama, tirando o livro de capa grossa de suas mãos. — Ei, Jungkook! Isso não vale! Eu já falei para você não usar seus poderes divinos enquanto estiver aq-
— Tudo bem, tudo bem, mas deixe-me ver o que tanto prende sua atenção… — a cortou, dando uma volta na cama para que pudesse sentar na beirada, um pouco mais próximo dela. Mas, quando bateu seus olhos na capa escura do livro, piscou algumas vezes, em surpresa. — O que é… Isso?
— Eu falei para você não pegar!
— Um Amor Para Recordar? — Jungkook tinha seus olhos no título, o lendo em voz alta e virando o rosto para olhá-la. parecia um pouco enrubescida pelo ato do anjo e tentava desviar sua atenção para qualquer que fosse outro lugar. — Não sabia que se interessava por romances.
— É, bom… Não é algo que me interesse, é só que… Isso me deixa curiosa. Sei que não vou conseguir viver algo relacionado, mas não custa nada tentar entender todos esses sentimentos. — tentou se explicar, um tanto exasperada. Jungkook ainda a olhava, com certo tipo de curiosidade. Nunca havia visto a garota tão vulnerável daquela forma, nem quando praticamente discutiam sobre seus dias de vida ou sobre o que ela pensava em fazer até que seu final chegasse.
Por um resquício de momento, Jeon Jungkook quase teve certeza de ter visto uma faísca de esperança nos olhos de .
— Você nunca se apaixonou? — perguntou ele, em voz baixa. Ela engoliu em seco.
— E você já? — respondeu ela com ironia velada, pegando o livro de volta. Jungkook sentiu um embrulhar no estômago, algo nada normal e característico.
Não sei, ele quis responder. O que é se apaixonar?
Talvez ele estivesse precisando ler aquele livro. E também poderia conceder o último desejo daquele olhar de . Não entendeu nos primeiros segundos, quando uma vontade incontrolável começou a impulsionar cada canto de seu corpo, como se ele pudesse mesmo sentir aquilo e sua cabeça começou a borbulhar em pensamentos sobre como queria poder proporcioná-la algo como aquilo que lia.
Ou, ao menos, queria entender assim como ela também queria.
— E o que é amor, ? O que é o amor para você?
A garota ergueu seu olhar, podendo sentir seu coração bater forte e rápido dentro do peito. O olhar de Jungkook ainda caía sobre si e sua íris escura transparecia o misto de dúvidas que provavelmente passavam por sua mente. Ele parecia não saber mesmo o significado daquela palavra.
E parecia mais ainda querer uma resposta para sua pergunta.
— Não é algo que você vá querer saber. Ou entender. Não vale a pena.
balançou a cabeça veemente, deixando que seus olhos caíssem sobre uma página qualquer e a virou, tentando não demonstrar o quão irritada havia voltado a ficar com aquele assunto. Ele permaneceu em silêncio, divagando sobre sua pequena conversa com a garota e se questionando sobre o real significado da palavra amor.
Jungkook ao menos percebeu quando uma pequena chama iniciou a resplandecer em seu coração.

✝️


Ele queria sentir a brisa que o lugar conseguia emitir naquele momento, só de ver os cabelos esvoaçantes da garota próxima de si.
O horizonte que Jungkook conseguia vislumbrar daquele lugar era o que lhe transmitia tranquilidade, por mais que boa parte do tempo, não precisasse daquilo. Ele ao menos conseguia definir o que era se sentir daquele jeito.
O que era estar em paz, afinal? Se Jungkook pudesse arriscar dizer, estar ali, olhando toda a extensão do mar, poderia chegar bem perto da resposta para aquela pergunta.
Aquela não era a primeira vez que visitava a praia de Bournemouth deixando que sua visão ficasse focada apenas em admirar toda a imensidão azul, bem à sua frente. Em todas as vezes que deixava seu corpo repousar por cima daquela enorme rocha, Jungkook quase conseguia sentir certo vestígio de felicidade, ou até mesmo, persistência. Aquele lugar em específico conseguia lhe fazer sentir que suas missões dariam certo, de alguma forma. E que ele faria o possível para alcançar aquele objetivo em questão.
No entanto, levar até Bournemouth havia passado por sua mente no dia em que se questionou se ela deveria viver daquela forma até que sua vida escapasse de seu corpo lentamente. Não parecia ser nem um pouco justo levar uma vida como aquela até que chegasse ao seu final.
Por mais que soubesse que não havia muito o que fazer, ele tinha que tentar.
E foi assim que, com muita insistência, conseguiu tirar a garota do cômodo que havia passado seus últimos dias e agora estava ali, sentindo a maresia de todo o oceano que tinham bem à frente.
Jungkook sabia que, no fundo, poderia ser uma tentativa falha e pelo que conhecia de , seria difícil tentar convencer do quão bom seria estar ali, apenas deixando os olhos repousados pela paisagem pintada pelo seu superior e em como todo aquele esplendor poderia fazer com que valesse a pena querer viver um pouco mais.
Era o que ele queria que ela percebesse.
Com um pigarro baixo, pôde ouvir o resmungar da garota ao seu lado.
— Eu posso olhar?
— Se você quiser, mas não tenho certeza que vá gostar…
— Então porque me trouxe se sabe que não vai me agradar, Jungkook?
Sua pergunta fez com que o anjo soltasse uma risadinha fraca, achando graça da forma com que ela sempre lhe respondia com acidez, mesmo que aquela não fosse a intenção. tinha aquele jeito que ele não soube decifrar com facilidade no começo, o gênio fugaz e perspicaz. Todas aquelas respostas na ponta da língua e o sarcasmo exatamente como o dele.
Não fazia ideia de que a garota preencheria seus dias monótonos e cansativos, lhe dando um motivo a mais para não querer que sua missão acabasse tão cedo.
Ele podia ver a feição curiosa que transparecia naquele momento e deixou que sua cabeça inclinasse veemente para o lado.
— Eu conheço esse aroma. É parecido com o…
Ficou em silêncio nos segundos seguintes.
— Parecido com o? — a incentivou. Ela respirou fundo, levando uma de suas mãos em direção à faixa que cobria seus olhos. Invenção do anjo para que ela não descobrisse para onde ele estava a levando.
— Parecido com o mar.
Com isso, a garota desamarrou o tecido que tampava seus olhos, os piscando rapidamente para se acostumar com a visão e assim que caiu em si de que estavam no alto da rocha, podendo ter todo o horizonte somente para eles, sentiu seus olhos marejarem brevemente. E de imediato, aquilo fez com que Jungkook sentisse um leve incômodo em seu peito que nunca imaginou que poderia sentir algum dia.
— Por que me trouxe aqui? — disse, com sua voz falha. A expressão que estampava seu rosto era quase como se ela não quisesse falar muita coisa para ele, apenas sentir.
— Precisava te mostrar como ainda existem coisas que valem a pena você experimentar. Como a brisa que esse oceano emana e toca sua pele nesse exato momento.
O anjo mantinha seu olhar sobre o dela, por mais que a garota tivesse toda sua visão focada nas ondas que quebravam ao longe. Jungkook queria deixar mais claro que aquele céu azulado, como ela deveria começar a pensar em aproveitar cada pequena chance que sua vida poderia lhe proporcionar, por mais que seu tempo seja curto. Sua vontade era de levar uma de suas mãos em direção ao rosto da mesma, em uma carícia fraca, sem ao menos entender o motivo daquele impulso repentino e muito menos sem ter a noção de que conseguiria tocá-la.
Jungkook queria poder fazer e sentir tanta coisa que por míseros segundos quase se esquecia de que seria incapaz de tal coisa.
— Você… Eu já te falei sobre isso, não é como se eu pudesse escolher e…
, você pode. Ao menos pode tentar sentir tudo pela primeira vez. — a voz do anjo era calma, mesmo que explicativa. Ele não tinha a menor intenção de tentar parecer autoritário com sua fala. — Olhe ao seu redor, há uma imensidão de coisas que esperam por você. Não faz ideia de como o mundo está à sua espera e que existem tantas coisas que ainda tem que fazer por aí. Conhecer lugares, pessoas, viver momentos e sensações… Você merece muito mais.
A garota virou o rosto em sua direção, engolindo em seco ao ouvir as palavras do anjo lhe impactarem daquela forma. Desde o começo, quando soube do pouco tempo que restaria para si, havia perdido seu interesse em conhecer qualquer outra coisa, pois tinha sua concepção de que não valeria a pena.
Ela perderia tudo aquilo após fechar seus olhos.
Havia jogado seus planos e ambições ao vento, se esquecido por completo de que por mais que não fosse ter a vida que desejou, poderia tentar fazer valer a pena de alguma forma. Mesmo que minimamente.
— Você, mais do que ninguém, sabe que não estou errado quanto às minhas palavras. — balançou a cabeça, vagarosamente. — Você confia em mim?
podia responder qualquer coisa. Poderia gritar para Jungkook e dizer que ele era um louco, que deveria voltar para seu tão querido reino e parar de tentar convencê-la de sua decisão, mas algo dentro de si não queria fazer ou dizer nada daquilo. Pela primeira vez, a garota queria tentar de verdade.
Ela queria tentar e se sentiu mais do que apenas corajosa para começar a experimentar e viver todas as possibilidades que ele lhe ofereceu.
O que era aquilo dentro de si? A queimação, seu coração acelerado e batendo como se não houvesse amanhã.
A garota olhou do oceano límpido e azulado, a paz que lhe transmitia sem qualquer outra explicação e voltou seu olhar para o anjo ao seu lado, que ainda a olhava admirado, como se não tivesse qualquer outro trabalho a fazer.
Aquele era o seu.
levou uma de suas mãos em direção ao peito, mais precisamente acima de seu coração e ergueu seu olhar em direção ao dele, podendo ver toda a pureza e sinceridade que emanavam dos olhos de Jungkook.
— Então é isso que é o amor?
Soltou, como se fosse algo que estivesse agarrado no fundo de sua mente. Não notou quando os olhos do anjo se arregalaram gradativamente com sua pergunta, fazendo com que ele começasse a se sentir exatamente como ela, mesmo sem ao menos perceber.
Jungkook não notou quando o torpor começou a sumir imperceptível do redor de seu coração, nem mesmo quando suas mãos começaram a formigar pela proximidade que tinha de .
A única coisa que ele pôde ter certeza naquele momento, como nunca pensou que desejaria antes, era de poder se sentir como um mero humano, como qualquer um deles.
Só para poder sentir o mesmo que sentia ao olhá-lo e principalmente, correspondê-la.


✝️


Grandes coisas aconteciam a seres que cometiam grandes impulsos. Essa regra não era diferente para os grandes guardiões do Céu. Os anjos eram, sem dúvidas, os sujeitos menos vigiados da grande hierarquia divina – eram muitos, e eram diligentes. Não havia porquê se preocupar com eles quando tantas coisas mais importantes estavam acontecendo nas outras partes do universo.
Essa negligência foi o que levou um certo anjo a se questionar sobre o sistema. E, mais perigoso do que isso: sobre si mesmo.
Ele vinha fazendo isso há um tempo, à medida que passava mais horas com , que experienciava a vida humana como nunca antes, Jungkook teve a chama da curiosidade crepitando dentro do peito. Quando exatamente foi humano? Como passou a ser quem é? Ele também tinha pais, como ? Tinha sonhos, desejos, obrigações e frustrações? Se comportava como eles, comia como eles, se apaixonava como eles?
Eram questões nebulosas e sem resposta concreta. É claro que havia sido humano, mas isso foi há tanto tempo que poderia facilmente pertencer a uma velha civilização. Era impossível que se lembrasse de sensações e imagens, mas quando estava com , coisas diferentes aconteciam dentro de si. Como um resquício, uma memória que não se revelava, mas que estava ali. Era claro que a presença dela evocava algo diferente nele.
E isso refletia diretamente em suas ações com sua nova protegida. Ele não suportava vê-la triste ou desanimada. Sentia ansiedade para tomar seu lugar habitual na janela de seu quarto, mesmo que fosse só para observá-la folheando livros e rabiscando cálculos em uma folha. Pensava em novos lugares bonitos que pudessem povoar a mente da garota e lançar para fora os pensamentos negativos a respeito de seu futuro falido. Jungkook queria vê-la feliz, e isso por si só, já burlava uma enorme lista de regras.
Ele soube disso quando, em um belo dia comum, onde movia os ombros preguiçosamente enquanto passava por entre a multidão da abarrotada avenida principal, resolveu verificar floriculturas pomposas, que foram inteligentes o bastante para se apossarem das melhores orquídeas daquela primavera e surrupiar alguma delas discretamente, teletransportando-se em seguida para o seu posto favorito a algumas quadras dali, colocando o presente bem ao lado do travesseiro de .
Mas Jungkook não chegou nem perto disso. As pessoas frearam os passos. As sombras dos corvos que sobrevoavam o topo dos prédios antigos estacaram no asfalto. Os sorrisos viraram infinitos. As gotículas de água da fonte flutuavam no ar. O tempo congelou.
E então, Jungkook foi puxado para cima, para algum lugar bem além das nuvens, onde tudo era frio e pálido, inclusive os rostos que o encaravam por trás da mesa retangular e comprida.
— Jungkook. — disse um homem de feições severas e olhos cerrados. Seu queixo inclinou-se para cima e ele acrescentou: — Certo?
— Certo. — Respondeu uma voz atrás dele. Era Shea, que mexeu nos óculos antes de caminhar até a mesa, depositando ali uma pasta aberta.
Jungkook viu claramente sua foto escapar da lateral de uma folha de papel.
— Posso ajudar? — ele conseguiu dizer, levantando os ombros para esconder o nervosismo. Haviam 7 cadeiras. 7 homens com uma aura prepotente e poderosa — O que os senhores Arcanjos querem comigo?
— Até seu tom está corrompido… — sussurrou outro deles, que tinha os cotovelos apoiados no tampo e os olhos fixos no anjo.
— Agora não, Rafael — murmurou o primeiro, sem tirar os olhos da folha — Ele veio das primeiras gerações. Morreu em batalha. Um guerreiro fiel a Deus e a seus próprios instintos — ergueu o olhar para o anjo, ainda imóvel — O que aconteceu para começar a fraquejar agora?
— Eu não sei do que você está…
— Ele fala com a garota! Não ouviu o que o outro disse? — desta vez outro falou, alguém mais à esquerda, que não parecia preocupado com etiquetas à mesa. Seu dedo apontou para Shea, que respondeu com uma curvatura automática.
— Falar com a protegida?
— Correto, senhor Miguel. Jungkook e a humana se comunicam. Os sentimentos mundanos estão invadindo seu coração de forma avassaladora e perigosa.
Jungkook encarou Shea com surpresa e, em seguida, raiva. Pelo menos parecia com raiva, aquele sentimento secular que fazia o indivíduo querer quebrar os dentes de alguém.
— Shea, seu…
— Eu vejo sua ira, Jungkook — continuou Miguel, trajando a voz esplêndida e autoritária que trincava os ossos de Jungkook — Vejo sua vida inteira nas batidas de seu coração. Posso conhecê-lo em cada detalhe. Forte, corajoso, descontraído, obediente, competente. Um exemplo nato. Mas sua integridade parece seriamente abalada…
O anjo engoliu em seco. Seus sentimentos pareciam bastante claros agora. O coração batia acelerado, a garganta ficou seca e rígida e o latejar da veia em sua têmpora indicava perigo. Miguel o escaneava com afinco, e Jungkook sabia que tinha sido pego em flagrante.
— Ele ama a mortal — cuspiu Rafael, ríspido, sem esconder o desgosto pela palavra — E isso é o maior insulto contra sua raça.
Jungkook paralisou na frase dita pelo Arcanjo, e sentiu o corpo tomado de uma revelação absurda, e terrível. Como a resposta definitiva de todos os seus problemas.
— Eu… amo? — sua voz saiu em um sussurro chocado. Miguel franziu o cenho, enquanto Rafael soltou uma risada em escárnio.
— Como imaginei… Ele não fazia ideia — disse uma voz aveludada na ponta do cinturão de autoridade, e pela expressão plácida, Jungkook arriscava dizer que se tratava de Gabriel — Então foi convocado a tempo.
Jungkook não tinha palavras. Se sofresse esse tipo de acusação há algumas semanas, teria os argumentos em sua defesa na ponta da língua. Seu conhecimento sobre a estrutura celeste das regras e sobre seu próprio corpo etéreo era fixo e intransponível. Anjos não podiam amar. Anjos não podiam sentir. Anjos se encontravam muito acima dessas coisas humanas.
Mas nada foi dito. As engrenagens de seu cérebro trabalhavam para entender o que amor significava, e porquê parecia fazer sentido quando relacionada ao nome de .
— Senhores, acho que está havendo um engano aqui — pontuou ele, buscando uma forma eficiente de sair dali o mais rápido possível e tentar entender suas mudanças internas por si mesmo. — Meu trabalho é proteger Shaye, e não existiram falhas sobre isso em momento algum. O assunto tratado aqui…
— Você não precisará se preocupar com Shaye por mais tempo — cortou Rafael, recostando-se na poltrona enquanto cravava os olhos inflexíveis sobre Jungkook — Esse problema está presente na comunidade celestial desde o início dos mundos. A tentação da Terra, os erros de fabricação, a reconstituição de sentimentos causados por humanos. Todos esses disparates que são rapidamente identificáveis e, pacificamente, eliminados. Sua protegida é uma dessas falhas, uma humana que carrega essa habilidade perigosa e incômoda, que nada mais é do que um teste à sua índole no fim das contas. Então, não se preocupe, vamos cuidar disso.
Os demais companheiros da reunião apenas balançaram a cabeça em concordância, sem nada a acrescentar. Miguel ainda encarava o rosto do garoto na ficha, lamentando que seu bom histórico tenha sido manchado por algo tão banal, quando ouviu a respiração pesada do anjo ser acompanhada pelo grito que escapou de sua garganta:
— E-eliminada?! — Jungkook tinha os olhos arregalados quando compreendeu a palavra. Todos os rostos à mesa voltaram a mirá-lo — O que estão dizendo?
— Ela morreria de qualquer forma, Jungkook. Não se lembra? — Shea respondeu entre dentes, jogando um aviso claro para que o companheiro controlasse o tom de voz.
Jungkook não estava disposto a formalidades. Um desespero gritante crescia dentro de si. Seus pés se moveram por conta própria, avançando a um passo.
— Não! — arfou, olhando para cada rosto do ambiente esquálido, as pupilas aumentando gradativamente — Não, não! Vocês não podem fazer isso! Vocês não podem…
Mais um passo à frente e seu corpo foi jogado para baixo violentamente. Cordas invisíveis ataram seus pés e braços, para então seu tronco rígido ser erguido novamente, mantendo-se de pé por puro poder telecinético do alto escalão, que não moveram um único cílio enquanto prendiam o anjo.
— Eu o aconselho a se controlar, guardião — Miguel usou a voz elegante e gelada, causando ainda mais angústia no garoto. — Seu coração está mais entregue do que pensei. Sua razão não comanda mais os seus movimentos. Onde já se viu? Um anjo da guarda com sentimentos tão terrestres quanto os habitantes do sub-mundo. Isso é intolerável — ele respirou fundo, olhando rispidamente para a resistência que Jungkook emitia sobre as cordas — A garota seria aniquilada de qualquer jeito, assim que fosse descoberta. Não está mais em suas mãos. Mas não precisa se incomodar, a alma dela ganhará um lugar de paz no Paraíso…
— NÃO! — o anjo gritou com toda a força de seus pulmões. — Não, por favor! Senhores… Miguel… Por favor! Ela é inocente, eu sou o culpado! Eu que me deixei levar, deixei que meu coração se solidarizasse com sua dor, deixei que o desejo me consumisse… Fui eu, eu! Não façam isso com ela, não roubem ainda mais do tempo que resta!
— Que baboseira… — Rafael riu em desprezo, estreitando os olhos — Já está decidido, garoto. Acharemos um novo protegido para você — e encostou a palma da mão sobre o tampo alvo.
O barulho do ato foi como o bater do martelo de um juiz. Uma decisão tomada e irreversível. Jungkook sentiu o corpo inteiro ficar gelado como um cadáver. A luz sumiu de seus olhos, e toda a aura divina foi dissipada de seu entorno. Com uma força inacreditável — para ele e para todos os outros ao redor —, o anjo da guarda se desfez de suas amarras sobrenaturais e se transportou a uma velocidade formidável para perto da mesa, com fogo ardendo nas pupilas, um fogo azulado característico de profano, de humanidade.
Mas Jungkook era apenas um anjo da guarda. E estava na presença da mais alta cúpula do Céu. Seu corpo foi travado pela mesma mão que Rafael dispôs sobre a mesa, agora adornando o pescoço do garoto, que se mexeu com fúria ao encarar o Arcanjo de pé, que demonstrava as sobrancelhas juntas em choque pela atitude repentina do guardião.
— Mas… O que foi isso? — a voz de Shea parecia mais distante agora, vinda pelas costas de Jungkook.
— Perdição — respondeu Rafael, sem desviar os olhos do garoto — Você passou de todos os limites, fedelho. Merece receber uma punição digna desse pecado.
— Pois então me dê a punição! — grunhiu Jungkook, sentindo o aperto se estreitar em seu pescoço — Me dê todas as punições que desejar! Mas deixem em paz! Ela não tem culpa!
— Claro. A garota não tem culpa — os passos de Miguel eram silenciosos o bastante para surpreender até mesmo Rafael, quando este se aproximou dos dois — Ela não tem culpa de fazê-lo se apaixonar. De fazê-lo querer coisas que não deveria. Como tocar nela… — ele arranhou a frase com desdém. Jungkook engoliu em seco — Sabe o que acontece com anjos que desejam coisas do mundo aos seus pés? Eles caem. Tenho certeza de que conhece bem essa história — o Arcanjo se aproximou de seu rosto, e seu tom foi tão gélido que causou arrepios na pele do garoto — Eu poderia oferecê-lo a mesma coisa. A expulsão. Não é como se quiséssemos um membro problemático em nosso meio. Mas isso não mudaria a situação da garota — ele levantou os ombros, falando de forma simples — Ela será retirada imediatamente e você vagaria pela Terra por anos a fio até que seu corpo especial achasse alguma forma de morrer. E você nunca mais a veria, porque o destino de anjos caídos é sempre o inferno, no fim dos tempos. O bem e o mal não se misturam nesse patamar. As duas coisas só estão presentes dentro dos seres humanos. E você não é mais um deles.
A boca de Jungkook não conseguia emitir nenhum som. A agitação das mãos de Rafael não o incomodavam mais. O choque de realidade das palavras de Miguel o deixaram em um estado de transe. Ele sentiu o peito inflar e retroceder várias vezes quando ouviu a palavra cair. Deixou que as expectativas de tal ato se apoderassem de sua imaginação por alguns segundos, que o deixassem viajar pela possibilidade de tocar , de abraçá-la, de estar com ela em uma presença total. Percebeu que esse era um desejo tão forte e tão oculto; tão proibido, a ponto de ser guardado a sete chaves no canto mais escuro de sua mente.
Mas existia algo mais importante do que o seu desejo. Este algo era o amor. E seu amor era .
— Não. Por favor… — disse ele novamente, sentindo o nó na garganta que não era mais proveniente do aperto de Rafael — Por favor, eu faço tudo que quiserem. Faço qualquer coisa! Mas não façam nada com ela, deixem viver!
— Que petulância…
— Rafael! — desta vez, Gabriel se aproximou, delicado como um floco de neve, ou algo parecido com uma folha de outono — Se me dão liberdade de opinar, gostaria de ver esse guardião ardendo no sub-mundo o quanto antes, na companhia dos outros que ousaram trair o Reino deixando-se corromper com métodos terrestres, que são a maior ruína do Céu. A vigilância sobre a sua raça é ridícula, e você certamente não será o último a ser tentado, mas sua presença aqui afeta toda a ordem mantida pela hierarquia desde o início dos tempos. Mesmo que continue aqui, e que eliminemos a falha, esses malditos sentimentos ainda estarão presentes em seu coração, crescendo como o ódio cada dia mais, até que eles explodam e causem um problema maior ainda, que incitará todo um caos geral em nossa casa. É inadmissível, você precisa sair…
— Então arranque meu coração! — Jungkook gritou, os olhos ainda fervendo de chamas azuis — Pode jogá-lo no inferno, se assim preferir! Pode me açoitar até que eu me esqueça do meu próprio nome! Podem me lançar à Terra se for a melhor punição, mas por favor, por favor… Não toquem nela! Não toquem de jeito nenhum!
Um fungar discreto revelou a intensidade de reações que Jungkook tentava afogar dentro de si. Ele não sabia o que era desespero, até senti-lo. Ele não tinha certeza do amor, até pensar na ideia de perder . Algumas coisas só são percebidas na hora certa, mas no caso dele, essas coisas estavam terrivelmente atrasadas.
— Não seja idiota… — continuou Rafael, e travou quando Miguel ergueu um dos dedos, fitando o anjo com curiosidade.
— Você ama mesmo essa garota, não é? — perguntou, retórico. Jungkook o olhou bem no fundo dos olhos e respondeu, mais confiante do que nunca foi:
— Eu a amo.
— E está disposto a tudo para salvar a vida dela? — disse Miguel. Jungkook apenas assentiu em concordância, deixando que a faísca de esperança queimasse em seu peito.
Gabriel instalou um olhar furtivo sobre o irmão, que virou a cabeça ao mesmo tempo em sua direção, como se prevessem o movimento um do outro.
— Miguel… — começou ele.
— Seria um desperdício, meu caro irmão. Não vê que temos um ótimo guardião ao nosso dispor?
— Ele está corrompido! — Gabriel trincou os dentes. Miguel suspirou.
— Podemos dar um jeito nisso — disse ele. O Arcanjo inclinou o queixo para Shea, ainda parado no mesmo lugar — Shea? O experimento.
O subordinado o olhou em dúvida, mas o mestre permaneceu impassível. Shea coçou a garganta duas vezes antes de começar.
— Bom, se o problema for os sentimentos maliciosos adquiridos na Terra, podemos apenas nos livrarmos deles. Podemos prendê-los dentro de seu próprio coração — ele explicou, para ninguém em específico. Um olhar rápido na direção de Jungkook revelou um pouco de misericórdia na proposta.
O silêncio reinou por alguns instantes. Shea havia sido breve, mas necessário para uma reflexão geral. Jungkook tentou se lembrar de um método capaz de realizar tal coisa como trancar sentimentos, mas a parte burocrática do serviço nunca lhe interessou o suficiente.
— Podemos fazer isso — Miguel finalmente disse, chamando toda a atenção para seu veredicto — Vamos reformular suas regras e deveres em cada parte viva do seu ser, caro guardião. Você receberá ordens expressas e as cumprirá com diligência e neutralidade, sem qualquer interferência do lado de fora. Seu coração e mente servirão ao Céu e somente ao Céu, blindados contra qualquer tipo de tentação e fiscalizando os demais anjos da guarda que tentarem transpor as regras, como você mesmo ousou. Você não se lembrará de nada, e por isso merece uma escolha. — O Arcanjo se aproximou de Jungkook, murmurando as seguintes palavras: — Sim ou não?
O anjo prendeu a respiração. O ultimato era cruel e sádico. No fundo, ele sabia que não existia escolha. Mas poderia existir negociação.
— Eu aceito — respondeu, retribuindo o mestre com um olhar duro — Com uma condição.
— Insolente… — Rafael apertou-o com mais força, mas Miguel tocou levemente seu ombro, pedindo silêncio.
— Prossiga — pediu.
Jungkook respirou fundo, tendo consciência que seu atrevimento poderia levá-lo à morte, mas aquele tipo de oportunidade única não aconteceria de novo.
— Deixem viver — disse ele. — Eu digo viver de verdade. Uma vida longa, com sonhos, esperança, amor e energia. Apaguem aquela data na frente de seu nome, destruam a doença de seu cérebro, mas deixem ela viver!
Os 7 Arcanjos ficaram em silêncio. Jungkook se preparou para o pior. O rosto de Rafael não escondia a ofensa, o de Gabriel endureceu até a mais linda linha angelical e Miguel permaneceu estático.
— Que absurdo. — um dos homens à mesa soltou uma risada irônica. Gabriel trincou os dentes.
— O quão estúpido você é para pedir para interferirmos na vida e na morte de forma tão vulgar?
— Sei que podem fazer isso! Estavam dispostos a ignorar os 3 meses há alguns minutos atrás, creio que podem ignorar mais 70 anos — disparou Jungkook, fazendo o Arcanjo adquirir uma cólera que deformava suas sobrancelhas. O garoto engoliu em seco e virou-se para Miguel — Por favor. É o meu único desejo. Permitam que tenha uma vida longa e saudável. Se cumprirem isso, eu faço o que quiserem. Me entrego de corpo e alma a todas as regras e restrições, sacrifico meu coração e sentimentos. Serei o melhor anjo guardião de todo o Reino. Serei de vocês.
Uma série de murmúrios ainda corria entre o corpo de autoridade, refutando todas as linhas do pedido do anjo, mas Miguel, Rafael e Gabriel se despiram de sua magnitude ao serem atingidos pela determinação do garoto. Os olhos de Jungkook ainda brilhavam em fogo vivo, mas atestavam uma decisão tão firme, provinda do canto mais profundo de seu ser, que os Arcanjos não puderam negar. Estavam sendo testemunhas de um poder que não compreendiam: a força marginalizada do amor verdadeiro.
O amor que é capaz de sacrificar a si mesmo.
Miguel ergueu um dedo novamente, calando as vozes dos outros irmãos. Rafael soltou as mãos do garoto e Gabriel olhou para o horizonte infinito do ambiente.
— Está disposto a se tornar o melhor subalterno? — perguntou, a voz instantaneamente gentil. Jungkook concordou com a cabeça, sem hesitar um segundo sequer.
Miguel inclinou o queixo novamente para Shea, que tinha o rosto mais pálido que o normal pela recente demonstração de insubordinação do colega.
— Shea. Providencie uma vida longa e plena para Shaye imediatamente, por gentileza — afirmou ele, lançando o veredicto final. As demais autoridades não moveram um músculo.
Jungkook baixou os ombros, sentindo o alívio invadir cada célula de seu corpo, assim como a tristeza inevitável da realidade a que foi submetido.
— Obrigado — sussurrou, com voz trêmula. Ele sentiu a mão graciosa e imperceptível de Miguel em seus ombros, erguendo seu rosto cabisbaixo com a outra.
— E você. Em respeito à uma ficha brilhante, lhe darei uma gota de misericórdia. Pode se despedir de sua amada.
O mestre se afastou de Jungkook, que agora tinha as íris brilhantes. Ele encarou o Arcanjo em choque e confusão.
— Você tem apenas essa noite. Aproveite para derramar alguma lágrima — pontuou Miguel, virando as costas para se retirar — Afinal, será a última vez que você será capaz disso.

✝️


Talvez fossem as nuvens acinzentadas que já passeavam por todo o céu naquela escura noite de outono. Ou talvez, fosse apenas o fato de que seu coração é quem parecia estar sendo rodeado dessas nuvens para que estivesse tão pesado em questão.
Jungkook não sabia dizer. Ele já não sabia descrever o que acontecia dentro de si. Podia sentir seu corpo pesado, quase como se um fardo enorme estivesse o apoiando e por mais que soubesse o motivo real por estar se sentindo daquela forma, não queria focar naquilo.
Não era hora para isso.
Desde que se entendia por um indescritível anjo da guarda, nunca pensou que passaria por aquela situação. Ao menos imaginou que seria possível conseguir sentir algo. Parecia fora do seu alcance, afinal, sua missão era a de proteger.
Não a de amar.
Ele respirou fundo, soltando todo o ar que podia. Jungkook não queria se despedir daquele jeito, não queria que tivesse um fim. Ele queria poder continuar ali, nem que fosse apenas a observando ao longe, mas ainda assim a protegendo. Não achou que pudesse ter consequências tão grandes como aquela.
O anjo podia sentir seu peito queimar em um sentimento melancólico, o qual quase o fazia querer desistir do que havia sido acordado. Não achou que poderia ser tão difícil se despedir daquela forma.
Ele não queria ter que ir embora. Não era sua vontade.
Seus olhos ainda permaneciam focados no quarto de , a vendo imersa em um sono tão tranquilo e sereno que por míseros segundos achou que aquilo seria suficiente. Apenas olhá-la como se não houvesse nenhuma outra preocupação e daquela forma, poder partir com seu coração, desta vez, em paz.
Mas porque Jungkook sentia que seu peito ainda continuava a queimar com aquele misto de sentimentos que, ele podia ter certeza que, se continuasse daquela forma, não caberia mais dentro de si?
Pôde-se lembrar das palavras do Arcanjo que lhe deu a permissão de se despedir e olhá-la pela última vez e não achou que poderia ser tão difícil como sentia que estava sendo.
Com um pouco de delicadeza e silêncio, o anjo se aproximou da janela entreaberta do quarto da garota, colocando seus pés para dentro e assim, deixando o corpo encostar-se à parede, se sentindo um pouco mais confortado por observá-la tão próxima como naquele momento.
Ele podia notar alguns dos fios do cabelo de caindo por seu rosto, enquanto ela mantinha seu corpo de lado, apoiando uma das mãos confortavelmente sobre o travesseiro abaixo de sua cabeça.
E aquilo a deixava ainda mais graciosa do que era.
Se não tivesse que voltar, Jungkook poderia jurar que ficaria ali o resto daquela noite apenas tendo aquela pintura sendo observada por seus olhos.
Mas tão breve fora aquele momento como o sorriso que ousou crescer no canto de seus lábios, quando a viu abrir seus olhos vagarosamente, quase voltando a dormir outra vez.
Teria que ser agora, pensou.
Jungkook impulsionou o corpo para frente, andando até a cama e se sentando na parte livre do colchão, fazendo esse pequeno ato chamar o pouco da atenção que tinha naquele instante.
— Ei, ...
— Jungkook? — o chamou, com a voz ainda sonolenta e os olhos baixos. O rapaz observou a cena admirado com a beleza que ela continha, mesmo dormindo. — O que faz aqui?
— Ora, eu vim te ver. Não é esse o meu trabalho? — respondeu, tentando deixar outro sorriso surgir em seus lábios, mas algo maior o incomodava. Sua garganta continha um nó bem enlaçado.
— Ah. É, sim… — concordou, fechando os olhos mais uma vez. Desta, a garota se remexeu um pouco. — Não se preocupe, tenho certeza que nada vai me acontecer enquanto você estiver olhando por mim, mesmo que longe…
Aquela frase fez com que Jungkook piscasse algumas vezes, sentindo algo esquentar seus olhos. Não soube dizer certamente o que era, nem mesmo o motivo pelo qual eles ardiam, mas na medida em que seu coração se apertava, o arder aumentava um pouco mais.
Ele vislumbrou parte do rosto de sendo iluminado pela luz da lua que adentrava pelas frestas da janela e céus... Como ele não queria ter que deixá-la ali.
— Eu sempre vou estar aqui de alguma forma, .
Jungkook murmurou aquela curta frase, antes de erguer uma de suas mãos em direção à ela. Ele tinha certeza de que no dia seguinte, não se lembraria de nada do que havia acontecido, ao menos se lembraria de que possuía um anjo protetor e que ele se mostrava para ela todo o tempo.
Não. não se lembraria dele.
E Jungkook não fazia ideia de como saber daquilo poderia doer tanto.
Ele tentou sorrir, uma última vez, antes de deixar que seus dedos se encontrassem com os dela, em um apalpar carinhoso, sem qualquer pressa, de suas mãos.
Por um momento, o anjo sentiu como se não quisesse soltá-la mais.
abriu seus olhos, ainda pequenos, com o ato do mesmo e piscou lentamente, como se aquilo fosse fazê-la acordar por completo. Ela podia ver, mesmo com pouca nitidez, o rosto do anjo próximo ao seu, tão lindo e único. Podia ver de relance sua mandíbula definida, os lábios avermelhados, assim como seu nariz não tão afilado e os cabelos escuros, brilhantes como aquela noite.
Por um momento, quase achou que Jungkook fosse humano.
— Uma vez você me perguntou o que era o amor para mim… — com isso, levou sua mão que segurava a dela em direção ao lado esquerdo de seu peito. A virou com afabilidade, deixando que a palma da mão dela tocasse quase em cima de seu coração.
não entendeu de primeira, mas quando pôde sentir as batidas do coração do anjo pulsando pela palma de sua mão, seus olhos quase se abriram por completo, em surpresa e incredulidade de que aquilo estava mesmo acontecendo.
Jungkook tinha um coração. E ele estava batendo.
— Espero que essa seja a maior prova de que sinto ele, graças a você.
— O que?...
A garota tentou dizer algo, ainda com os olhos do anjo sobre o dela. Só quando deixou que os seus pousassem sobre o dele, que conseguiu perceber o que acontecia ali.
Ele tinha seus olhos marejados, transbordando de uma forma que não soube explicar. Os olhos escuros, que antes achava tão misteriosos, agora escorria uma lágrima fina e brilhante, quase como se fosse surreal.
Jungkook apenas balançou sua cabeça, deixando que aquele sorriso que tanto estava contido no canto de seus lábios desde que havia chegado ali, transparecer de uma vez, tentando mostrá-la que não havia problemas ali.
Que tudo estava bem.
Não deixou que ela fizesse qualquer outra indagação, apenas aproximou seu rosto do de , podendo sentir a respiração um pouco acelerada da garota de encontro ao seu e com toda a gentileza do mundo, depositou um beijo delicado em seus lábios, fechando seus olhos por breves segundos.
— Está tudo bem, , você vai ficar bem. Mesmo que eu não esteja mais aqui…
Aquela havia sido a última frase que a garota havia escutado antes de fechar seus olhos em um sono quase profundo, ainda se lembrando perfeitamente das feições do anjo próximo a si, a repousando leve sobre seu travesseiro.
Jungkook queria sorrir outra vez, mas sabia que não aconteceria.
Por que, por mais que entendesse que nunca mais a veria, naquele momento, ele soube que, finalmente, poderia ir em paz.

✝️


Jungkook estava de volta no cenário desbotado e insosso, contrastando a forma como se sentia por dentro. Não existia horizonte ou paredes. Imitava perfeitamente um lugar sem vigor ou esperança, contradizendo tudo que os cristãos pregavam todos os domingos.
Desta vez, sua única companhia era Shea e uma cadeira de couro pálido. O colega estudava pastas diversas e murmurava línguas celestiais enquanto o garoto se acomodava no assento. Deixou que seu corpo mole fosse abraçado por ela e seus braços frios e desconfortáveis, encarando a imensidão branca agora acima de deus olhos.
Ele não via nada ao redor. Seu corpo parecia anestesiado. O fim daquele sofrimento era tudo que queria alcançar.
— Pronto? — A voz de Shea surgiu em algum canto da sala. Jungkook não se virou para respondê-lo. Meneou com a cabeça lentamente e sentiu gosto de ferro entre os dentes — Vai doer.
Jungkook moveu a cabeça devagar na direção do colega. A luz, mais forte e repentina que saía pelos poros de Shea e o envolviam em uma aura brilhante e tranquila, iluminaram os olhos ainda molhados do anjo, mostrando o caminho das lágrimas secas na bochecha e a ponta do nariz vermelho. E então, ele respondeu:
— Já está doendo.
Shea não disse nada. Não achou que deveria. A voz de Jungkook era carregada de tanta tristeza que ele esperou mais alguns segundos antes de finalmente se aproximar, erguendo a palma da mão para tocar a testa do companheiro. Quando a luz emergiu dos polegares do anjo, Jungkook sufocou um grito enquanto seu corpo se enrijeceu por completo.
Aconteceu mais rápido do que se esperava. Correntes invisíveis adentraram em seu corpo celestial, migrando até seu coração — um artefato sujo, na visão do Céu — e se enroscaram em volta do órgão, prendendo-se firmemente e trancado-se com cadeados eternos e recheados de poder dos 7 Arcanjos. O barulho da tranca retumbou por todas as paredes da Cidade Luz. Aquele som seria relembrado por todos os milênios seguintes; o som da punição divina. O símbolo da prisão do maior pecado que infestava o seio divino. A correção de um anjo delinquente.
A memória foi apagada durante todo o processo. A memória do cérebro, mas não a memória do coração, que precisou ser trancada em um cárcere escuro para que não fosse mais visualizada. Nunca mais.
As pupilas desapareceram por um tempo até que voltassem ao foco. Ele abriu os olhos devagar. Estavam negros como a noite, impassíveis como os do alto escalão. Aquele novo anjo agora emitia tanta autoridade quanto seus superiores.
Ele se lembrava ser Jungkook, o anjo da guarda diligente dos Céus. Piadista de humor ácido, reclamão, amante de paz e sossego. Lembrava-se de missões designadas e concluídas, de problemas a resolver pelo caminho, de caminhar por entre os planaltos do litoral da Inglaterra.
Tudo era claro em sua mente. Nada havia mudado, mesmo que uma estranha sensação no fundo do peito o fazia crer que estava perdendo alguma coisa.
— Jungkook? — Shea hesitou ao chamá-lo.
— Hm? — o anjo respondeu, retirando-se de seus próprios devaneios.
— Você está bem?
Jungkook juntou as sobrancelhas, confuso com a pergunta. Girou o pescoço pelo ambiente infinito e se levantou do assento, que agora lhe parecia com uma poltrona normal de residências classe média na Terra.
— É claro, Shea. Por que não estaria? — ele deixou escapar uma risada divertida, levando os braços acima da cabeça para se espreguiçar — Acho que tirei um tempo de descanso longo demais desta vez. Por que não me acordou mais cedo? E eu… — seus dedos tocaram a maçã do próprio rosto. Ele parou com a sensação molhada que traçava um caminho desde os olhos. Uma gota grudou-se em seu dedo indicador, e seu cenho franziu em choque e confusão — O que é isso?
— Um teste! — Shea respondeu imediatamente, sentindo-se um tolo por não ter se livrado das lágrimas antes — Eu estava atestando a salinidade dos mares da Pangeia. Sabe, inspeção de rotina.
Jungkook estreitou os olhos para a resposta, mas por fim, deu uma risada e aceitou de bom grado, limpando o resto da água dos olhos. Shea respirou fundo, apreensivo com o próprio resultado, sem vontade alguma de comemorar o seu sucesso.
— E então, o que tem pra mim? — perguntou o colega, pondo as mãos nos bolsos e começando a caminhar para fora. Shea coçou a garganta antes de segui-lo.
— Um garotinho no Oriente Médio — respondeu. — Lembra que queria passar uma temporada no Marrocos?
Jungkook franziu os lábios, imerso em pensamentos por um instante.
— Pra falar a verdade, parece que levei uma pancada na cabeça ao invés de descansar porque não me lembro de nada — ele deu uma risada nasalada, e Shea engoliu em seco — Mas tudo bem. Marrocos então!
E então, Jungkook foi enviado para o outro extremo do planeta, bem longe de Londres e de todos os gatilhos que fariam seu velho coração voltar a se agitar.
Em contrapartida, também acordou de um sono profundo, recheado de sonhos que mais pareciam memórias. Ela chorou e sentiu falta de alguém que não se lembrava. Também chorou de choque quando o diagnóstico de “milagre” chegou em suas mãos no dia seguinte. Ela não tinha mais uma bomba-relógio na cabeça e poderia sonhar. E viver. E ela viveu.
viveu uma vida longa, saudável e recheada de sonhos. Foi corretora de imóveis, mãe, esposa, alpinista, equilibrista, viajante e morreu aos 94 anos, em Londres. Olhando para o mesmo pôr-do-sol que via pela sua janela.
Antes do último suspiro, ela sentiu o peito se apertar de saudade mais uma vez. A saudade sem nome e sem rosto. O amor esquecido que ela sentia ter vivido.
E Shaye nunca mais viu anjos novamente.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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