Última atualização: Fanfic finalizada

PARTE UM – O INÍCIO

CAPÍTULO 1

”Feet don’t feel me now
Take me to the finish line”
Lana Del Rey – Born to Die


acordou naquele dia com menos disposição do que gostaria.
Ela acreditava que deveria estar sentindo algo diferente, afinal era Ano Novo, mas tudo o que sentia era a mesma vontade de continuar deitada pelo resto da vida. Tudo parecia o mesmo; pelas paredes finas conseguia ouvir seu pai roncar sonoramente no quarto ao lado.
Remexeu-se no sofá-cama e sentiu os calombos do colchão machucarem suas costas. Talvez fosse por isso que não se sentia diferente: a realidade fodida da sua vida continuava a mesma. Suspirou e decidiu se levantar. Se não iria dormir, ao menos que fosse útil.
Saiu do quarto sem se preocupar com o barulho que fazia. Considerando o quanto ele havia bebido na noite anterior, Anthony não acordaria tão cedo, então ela pode tomar seu banho mais demorado do que o normal, arrumou-se ainda no banheiro com uma roupa quente e saiu para a cozinha a fim de comer qualquer coisa que pudesse forrar seu estômago antes de se dirigir para a garagem.

O Corvette 1957 estava parado na entrada de casa - ou melhor, na frente da pequena cabana de três cômodos que dividia com seu pai, localizada dentro do Highlands Mobile Home Park. Como fazia todas as manhãs desde que Anthony lhe havia ensinado o básico sobre carros, levantou e foi cuidar do automóvel, com todo o carinho possível, para que ele fosse restaurado e ficasse bom para ser usado novamente. Era seu projeto pessoal, a única coisa que a mantinha sã dentro do pesadelo constante que era a sua vida.
Seu pai havia ganhado o carro em um jogo de pôquer, mas o motor estava completamente destruído, assim como outras coisas essenciais como o carburador e o disco de freio. A ideia de Anthony era restaurá-lo junto com - alguma ideia deturpada de criar um laço entre pai e filha -, mas ele nunca conseguia se manter sóbrio por tempo o suficiente para conseguir ser útil, então a garota decidiu fazer tudo sozinha.
- ! Ei! - Ela estava embaixo do carro, suja de graxa até o nariz, quando ouviu uma voz familiar lhe chamando. Gemeu frustrada, pensando em ignorar, mas conseguia ouvir os passos do rapaz parando do lado direito de sua cabeça. Suspirou fundo e se arrastou, até que conseguiu sair completamente de debaixo do automóvel. estava em pé, abraçando-se para tentar espantar o frio, completamente não preparado para o clima de janeiro, e a encarava com um sorriso esperançoso nos lábios. já sabia o que esperar.
- O que você quer, ? - Seu tom de voz era enfadonho, mas nem isso era o suficiente para abalar o sorriso do rapaz. - Eu estou meio ocupada no momento, não sei se você percebeu…
- Eu sei… Eu não quero atrapalhar. - Ele se apressou em dizer, quase embolando as palavras. - Eu só queria ver se você tem interesse em ir na corrida comigo essa noite.
Oh
Ele a encarava com expectativa, esfregando uma mão na outra, e tudo o que conseguia pensar é que eles se conhecerem tinha sido um tremendo erro e que agora ela teria que ser a filha da puta que iria acabar com suas esperanças no amor. Ela o odiava por tê-la colocado nessa posição.

A cidade de Bishop, Califórnia, ficava bem ao norte de Owens Valley, um espaço de deserto plano cercado por montanhas e cactos por todos os lugares. Por ser fora da cidadezinha, quase nenhum policial se preocupava em vigiar a área, o que a tornava mais do que propícia para virar o palco de corridas clandestinas que os jovens de Bishop organizavam todos os fins de semana.
Foi em uma dessas corridas, organizada antes da neve começar a cair, que conheceu .
costumava namorar um dos corredores quando frequentaram o ensino médio juntos. Por força do destino, ou simplesmente desinteresse de ambas as partes, o relacionamento não durou, mas eles ainda mantiveram uma amizade sólida e, por conta dessa amizade, a garota costumava frequentar Owens Valley todo sábado.
apareceu em uma noite como qualquer outra. Sentou-se ao lado de na cadeira de praia que havia levado e a ofereceu uma cerveja. Eu nunca o vi por aqui antes, ela lhe disse, sentindo-se particularmente sedutora. Mas eu já reparei em você outras vezes, ele lhe respondeu sorrindo e a encarando com aqueles olhos incrivelmente azuis e doces.
Ela pôde notar que ele era mais novo, no máximo dezenove anos, entretanto a energia quase inocente que ele irradiava a encantara. E por aquela razão eles terminaram a noite transando em silêncio no quarto de .
É só uma noite, ela lhe falou. Porém o garoto era extremamente obstinado, o que lhe trazia novamente para a sua garagem, com as mãos dentro da calça jeans clara, a cabeça baixa e um olhar de cachorrinho esperançoso.
- Eu já te disse não duas vezes, . - lhe respondeu, sentindo-se saturada. - O que te faz achar que dessa vez a minha resposta vai ser diferente?
- Porque a terceira vez é a que dá sorte! - Ele respondeu com um sorriso brincalhão. - E porque dessa vez eu vou correr, e ia te convidar para sentar no banco do carona durante a corrida.
hesitou.
Ela havia deixado escapar o seu desejo por correr alguma vez para o rapaz quando eles se conheceram, porém nunca achou que realmente fosse acontecer.
Primeiro porque para entrar na corrida você precisa de um carro, segundo que todos os corredores deveriam pagar uma taxa de 100 dólares para os organizadores - que juntavam todo o dinheiro e aquele virava o prêmio para o vencedor. Seu carro não estava pronto, e todo o dinheiro que conseguia trabalhando como garçonete no restaurante do posto de gasolina era inteiramente destinado para os reparos do Corvette.
Mas agora a estava oferecendo - mesmo que não exatamente da forma que ela queria - uma oportunidade de estar dentro da pista.
- Com que carro você vai correr? - Ela não quis deixar o entusiasmo ou a ansiedade transparecer na voz, limpou a graxa das mãos na calça e fingiu estar indiferente à oferta.
- Mustang 65. - Ele deu de ombros e pode sentir o desejo corroendo em suas veias. - Recém reformado.
A garota o olhou, mordendo o lábio inferior indecisa. Ela queria mais do que nunca estar na corrida, mas ao mesmo tempo, aceitar significaria dar falsas esperanças à .
- Vamos, . - Ele apelou novamente, sorrindo. A garota já conseguia ver a esperança dentro dele ser alimentada. - Eu te deixo dar uma volta no carro… Se você quiser, é claro.
Que inferno, .
- Ok. - Por fim, disse derrotada. - Mas nós não vamos transar de novo. - Ela o advertiu, sabendo que provavelmente estava mentindo para si mesma. Não poderia deixar de sentir um calor ao pé da barriga ao observar o sorriso completamente iluminado no rosto do mais novo.
Ela não tinha nenhuma força de vontade, e estava se aproveitando muito bem disso.

O ronco do Mustang se assemelhava à um gato ronronando.
sorria em êxtase enquanto acelerava pelo deserto. estava sentado ao seu lado, seus lábios refletiam o sorriso da garota.
A corrida havia terminado algumas horas antes - chegara em quarto de cinco corredores -, porém estava animada demais com a possibilidade de poder dirigir o carro para que pudessem ir embora. E como prometido, assim que as pessoas começaram a se dissipar, entregou a chave na mão da garota e mudou para o assento do carona.
Ela sentia-se como uma criança deixada em uma loja de doces com uma quantidade ilimitada de dinheiro. Toda vez que o carro respondia sem esforço à aceleração que ela o submetia, ria deslumbrada.
- Alguém já disse que você fica maravilhosa quando sorri desse jeito? - comentou de surpresa, sorrindo para ela. sentiu o rosto corando, não sabendo muito bem como lidar com o elogio inesperado. Por que ele precisava estragar aquele momento?
- Nós somos apenas amigos, . - Ela o olhou de soslaio com um sorriso torto nos lábios, decidida a não deixar o garoto ir mais adiante com os sentimentos. - E só porque você é insistente demais! - acrescentou. - Se eu fosse você não ia querer uma garota como eu na sua vida.
Era verdade. tinha um ar ingênuo e doce demais para ser maculado com toda a sordidez que trazia consigo.
Aquela resposta parecia ter sido o suficiente para que ele ficasse quieto; continuou dirigindo, dessa vez em direção à estrada que a levava para casa. A hora de brincar já tinha acabado, e ela não queria saber se o pai já estava bêbado o suficiente para não importuná-la quando chegasse.

- Eu sei que eu não te conheço à muito tempo… - começou o que parecia um discurso bem pensado assim que estacionou em frente à sua casa. - Mas eu sei que você está só tentando se passar por alguém muito mais complicado e sombrio do que realmente é, .
Ela não estava preparada para àquela acusação. Ele nem a conhecia, como ele poderia falar aquilo com tanta certeza?
- Acho meio difícil você ter alguma autoridade pra falar algo de alguém que você conhece há menos de um mês. - Seu tom era sarcástico, mas não foi o suficiente para fazê-lo desistir. Por mais que quisesse se sentir ofendida, o olhar que o lançou o encorajava a continuar seu raciocínio. Obviamente ela não entendia qual era a fonte da sua curiosidade, entretanto quis ver qual era a imagem que ele tinha dela.
- Eu sei que eu não tenho nenhuma autoridade. - O rapaz sorriu torto e isso fez com que algo dentro dela se remexesse. - Mas, se você me desse só uma chance de te conhecer melhor e me aproximar mais, eu tenho certeza que minhas suposições se provariam verdadeiras.
- Duvido muito. - Rebateu em um tom desafiador.
- É uma aposta? - Os olhos azuis do garoto tinham um brilho brincalhão, mas ela duvidava que ele não levaria a ideia a frente. Suspirou derrotada, não sabendo o que dizer para despistar o garoto de sua vida.
- Eu não curto caras mais novos… - Tentou uma última vez.
- Nós dois sabemos que isso não é bem verdade. - Seu tom provocativo lhe trouxe as memórias da noite que passaram juntos e se odiou levemente por elas trazerem aquela contração conhecida entre as pernas. Mas que porra, .
Não havia mais o que fazer. Tomou uma golada profunda de ar e descansou a cabeça no banco.
- Depois não diga que eu não o avisei, . - Ela sabia que não deveria sentir o coração pulsando ligeiramente mais rápido ao dizer aquilo. sabia que definitivamente ia partir o coração do pobre rapaz, mas se era o que ele queria não poderia fazer nada.
- Eu não sou tão inocente como você acha que eu sou, . - Ele respondeu com certeza, inclinando o corpo para mais perto. - Eu sei me cuidar.
Ele lhe encarou com tanta intensidade que ela não pode evitar sentir o rosto esquentando. Encarou os lábios de em dúvida, não sabendo se naquele momento ela queria beijá-lo, ou correr para o mais longe possível.
Decidiu-se pela segunda opção e saiu o mais depressa que pôde do carro, dando a volta no mesmo a fim de entrar em casa. Não quis olhar para trás, mas não conseguiu evitar fazê-lo quando já estava diante de sua porta. a encarava, escorado no carro, com as mãos no bolso e um sorriso presunçoso nos lábios. Mandou-lhe um pequeno beijo no ar, fazendo com que ela risse incrédula e balançasse a cabeça.
Só conseguia se perguntar no que estava se metendo quando abriu a porta de casa e entrou apressadamente.


CAPÍTULO 2

Assim que fechou a porta atrás de si, deu de cara com o seu pai em pé no meio da sala. Qualquer traço de sorriso que tinha no rosto morreu imediatamente ao notar a garrafa de rum na mão de Anthony. Ele passara a noite bebendo, e não estava feliz.
- Onde diabos você se meteu? - A voz estava pastosa e enfurecida, a língua dele parecia ligeiramente presa. - Isso são horas de chegar em casa? Com quem você estava? É bom que não seja um garoto que tenha te tirado de casa.
Qualquer olho mais destreinado poderia confundir aquele interrogatório com proteção paternal. Mas sabia que não era esse o caso.
Ela tomou fôlego, tentando pensar rapidamente em uma resposta que não fosse lhe deixar mais irritado do que já estava. Não poderia falar que estava com , nem que havia ido correr. Não se atreveria a deixá-lo arruinar a noite boa que tivera.
- Estava na casa da Lyandra. - Respondeu num fôlego só. Ela e Lyandra Stone não se falavam desde o ensino fundamental, mas por sorte ele passara aqueles anos muito mais bêbado do que sóbrio para saber desse fato; para seu alívio, a resposta pareceu o suficiente.
- Não quero você fora de casa tão tarde. - Ele tomou um gole longo da bebida e caiu desajeitadamente no sofá puído que tinham na sala. - Você é nova demais pra isso.
Evitou de informá-lo que já tinha vinte e dois anos, e decidiu que não deveria abusar da sorte, portanto só assentiu com a cabeça e tratou de se apressar para o quarto. Aparentemente ele não estava tão mal humorado, porém não queria testar essa teoria e arriscar uma briga.
Uma vez dentro do quarto, ela trancou a porta e se jogou de barriga para cima no colchão. Por mais que não quisesse, o sorriso presunçoso de lhe veio à mente, e contra toda a sua força de vontade um sorriso contido se formou em seus próprios lábios.
Onde eu tô com a cabeça? Quis gritar em frustração, mas ao invés disso, apenas afundou a cabeça no travesseiro até perder o fôlego. Depois ajeitou-se na cama e esperou que o sono viesse lhe pegar.
Quando os olhos pesaram e a respiração ficou mais profunda, deslizou grata para a inconsciência.

Domingo passou e segunda feira chegou mais rápido do que ela gostaria.
Cumpria seu turno com menos disposição do que deveria, arrastando-se lentamente pelo restaurante, causando irritação nos clientes que passavam por lá para almoçar.
Estava limpando com mal gosto uma mesa da sua sessão quando a sineta da porta tocou, indicando que alguém havia entrado no estabelecimento. Guardou o pano que usava para a limpeza dentro do seu avental e tirou o bloco de papel e a caneta do bolso pronta para anotar um pedido.
De canto de olho pode enxergar se aproximando. Esperou quieta enquanto ele se sentava à mesa recém limpa e a olhava com calma, sorrindo como se eles compartilhassem uma piada interna.
Balançou a cabeça, mordendo o lábio para que não sorrisse de volta, e retomando a compostura, pigarreou para limpar a garganta e se endireitou.
- Bem vindo ao Canterbury’s, como eu posso lhe atender hoje? - Despejou o mesmo discurso decorado que dava à todos os clientes.
- Você poderia sair comigo. - apoiou os cotovelos na mesa e cruzou as mão embaixo de seu queixo. Ela não conseguia acreditar que ele era tão cara de pau. Um sorriso incrédulo apareceu contra sua vontade.
- Se você não percebeu, eu estou trabalhando. - Ela apontou a caneta para o próprio uniforme - um vestido amarelo e azul completamente horroroso, com um avental por cima. Depois girou o dedo indicando o restaurante inteiro. - Então, se você estiver pronto para pedir comida, eu estou pronta para te atender.
continuava lhe encarando com um sorriso divertido nos lábios. sentiu a irritação crescer dentro dela, ele sempre tinha o mesmo ar que encarava tudo como se fosse alguma piada ou algo muito divertido. Ou mais precisamente como se ela o divertisse, e isso a incomodava. Ou isso, ou era a ideia de que ela gostava daquele sorriso prepotente, portanto preferia acreditar que ela apenas não queria ser feita de entretenimento.
- Que horas o seu turno acaba? - Ele continuou, insistente. deixou uma respiração longa e impaciente escapar de seus lábios e sentou-se em frente ao garoto.
- Seguinte, eu tenho que trabalhar para poder consertar logo aquele carro e dar o fora dessa cidade, então se você quer saber que horas eu saio, você vai ter que pedir algo pra comer. - Cruzou os braços no peito enquanto via o rosto do garoto permanecer inabalado. - Saio às três e meia.
Ele riu, balançando a cabeça e ajeitando o corpo na cadeira.
- O que você recomenda para o almoço? - Ele perguntou, olhando superficialmente o cardápio.
se levantou por fim, ajeitando o avental e começando a anotar o pedido antes que o garoto realmente pedisse algo.
- Você vai querer um bife grande com acompanhamento de arroz, fritas e molho barbecue, uma coca-cola com limão, nem pense, não vendemos álcool para menores de idade. - Ela o cortou quando ele abriu a boca para fazer alguma interferência. - E de sobremesa um pedaço de torta holandesa. Mais 25% de gorjeta pra sua garçonete por um trabalho tão bem feito.
Ele a encarava com a boca meio aberta em incredulidade, mas um sorriso despontava nos cantos. Ela sorriu de volta.
- Mais alguma coisa? - perguntou, guardando a caneta atrás da orelha. Ele negou com a cabeça e cruzou os braços no peito. - Ótimo, volto já com o seu pedido.

Alguns minutos depois, apareceu com o prato de . A bandeja estava pesada pelo tamanho do prato que ela o fez pedir, e por dentro sentia-se um pouco culpada por fazê-lo gastar tanto dinheiro com aquele almoço. Mas não deixou o remorso tomar conta de si. Se ele não pudesse pagar ela daria um jeito.
- Espero que goste de seu almoço. - Sorriu, colocando o prato a sua frente. - Qualquer coisa estou à disposição.
- Então você poderia se sentar e me fazer companhia. - Ele sorriu esperançoso. Ela riu.
- Sem chance, se Alfie me ver batendo papo com cliente eu to na rua.
- Não to vendo o Alfie aqui, você está? - perguntou, mesmo já sabendo a resposta. sentia que nos últimos dois dias estava dando mais suspiros derrotados do que em todos os seus vinte e dois anos. Olhou ao redor, e após se convencer de que o movimento não estava grande o suficiente para ser atrapalhado se ela tirasse uma pequena folga, sentou-se.
sorriu vitorioso e tomou um gole de sua Coca-Cola.
- Então, você quer dar o fora dessa cidade… - Ele começou, cortando displicente seu bife. - Somos dois.
O mais novo tinha uma voz desgostosa, totalmente destoante de sua personalidade alegre, e não conseguiu imaginar o que poderia tê-lo deixado tão consternado. Ela o encarou, ele dava uma garfada grande e mastigava silenciosamente.
- Quem não quer dar o fora de Bishop? - Ela perguntou, dando de ombros e roubando uma batata frita do prato do rapaz.
- Meus pais. - O tom ressentido estava novamente em sua voz, mas ele parecia querer esconder isso. - Algumas pessoas gostam deste lugar.
- Algumas pessoas não conhecem melhor. - O tom de era despretensioso, mas sua curiosidade havia sido despertada. O que poderia deixar aquela criança, tão otimista, ressentida daquela forma? - É por isso que eu preciso sair daqui. Preciso conhecer algo melhor do que esse fim de mundo.
Eles permaneceram em silêncio. Não aquele silêncio desconfortável, onde existe uma necessidade de se fazer conversa fiada apenas para o clima não ser estranho. E sim um silêncio cheio de coisas não ditas, mas que talvez ainda não precisavam ser pronunciadas em voz alta. Ela apenas o observou comer.


CAPÍTULO 3

Quando seu turno acabou, se trocou e encontrou com na porta do restaurante. Ela não gostava de admitir, mas ele era bonito e… sexy, mesmo sendo três anos mais novo que ela.
Pela primeira vez ela realmente se deixou olhá-lo. Seu cabelo loiro estava cortado bem rente, um corte quase militar, os olhos azuis estavam cerrados por conta do sol. Usava seus jeans de lavagem clara e uma jaqueta de couro por cima da blusa de lã. Combinado com o cigarro que fumava, ele poderia até passar um ar de bad boy. A única coisa que estragava a imagem era o sorriso caloroso que ele dirigiu à quando ela saiu porta afora.
- Fumar vai te matar. - Ela o repreendeu, mas aceitou o maço que ele lhe ofereceu. Ele deu de ombros, protegendo a chama do isqueiro que sacou para acender o cigarro de . Ela deu um trago profundo e soltou a fumaça. - Mas a gente nasceu pra morrer mesmo, então tanto faz.
Caminharam lado a lado até o Mustang, um trajeto curto, mas que de repente parecia mais demorado que ir para casa.
Quando chegaram ao carro, ela apagou o cigarro na sola da bota e sentou-se no banco do carona, colocando o cinto logo em seguida.
- Então, onde vamos? - Ela perguntou, de alguma forma ela ficou extremamente ciente da presença do garoto no banco ao lado. A expectativa de continuarem sozinhos por mais algumas horas fazia seu estômago se revirar em ansiedade.
- Pensei em algo tranquilo. Nada de cigarros e bebidas. - Ele não disse mais nada. Ligou o carro e saiu do posto de gasolina, seguindo leste na Sierra Highway.
Pelo o que sabia, não existia muito o que fazer à leste de Bishop; se continuassem naquele caminho acabariam parando em Mesa. Porém, antes disso - após aproximadamente uma hora de viagem (completamente em silêncio) - virou à esquerda na Ed Powers, e à direita, entrando num parque natural. reconheceu como uma área de camping popular em West Bishop.
- Se eu soubesse que a gente iria acampar, teria trazido uma mochila. - Ela comentou ironicamente quando passaram no portão de entrada. sorriu.
- Não vamos acampar. - Procurou um lugar viável para estacionar e parou o carro. - Eu costumava vir aqui com o meu irmão. O pôr do sol é uma visão e tanto no meio das montanhas.
- Então você me trouxe para uma caminhada. Saudável. - Ela riu, saindo do carro e seguindo o garoto. Uma placa lhes dava boas vindas ao Millpond Park, logo embaixo mostrava que era uma área para acampamento, assim como para cavalgar, nadar e praticar arco e flecha.
Andaram por algum tempo, até encontrarem a entrada para uma trilha. A neve estava se acumulando no chão, e o tempo estava visivelmente mais frio do que estava na cidade. Sentiu-se tentada a voltar para o carro.
- Deveria ter pego um casaco. - Ela se abraçou, tentando conservar o calor corporal. - Não imaginava que a gente ia enfrentar neve.
então se deu conta que a blusa que a garota usava era fina demais, tirou sua jaqueta e lhe ofereceu, ficando só com a blusa de lã que usava mais cedo. aceitou, envolvendo-se no couro, sendo arrebatada subitamente pelo cheiro amadeirado misturado com cigarro mentolado que exalava dela. O cheiro de .
Após aproximadamente meia hora, chegaram em uma planície entre duas montanhas. O pôr do sol acontecia mais ou menos às sete horas, então a visão que tiveram quando chegaram foi de um céu extremamente limpo pintados em tons laranja e vermelho. Era de tirar o fôlego.
- Você costumava vir com o seu irmão aqui? - Ela perguntou, sentando-se em uma pedra. Ele assentiu com a cabeça e sentou-se ao seu lado.
- Assim que peguei minha licença para dirigir, todos os fins de semana vínhamos até aqui para acampar.
Ela sentiu que estava em um lugar especial para o garoto, e para sua surpresa, ao invés de desconfortável, sentia-se bem por lá.
- Onde ele está agora? Faculdade?
Ele negou com a cabeça e fixou o olhar no horizonte. Permaneceu um tempo em silêncio até que suspirou triste.
- Ele é um ano mais novo do que eu. Ano passado se envolveu com as pessoas erradas, fez algumas coisas erradas, e agora está pagando por isso. - Deu de ombros, como se aquilo fosse algo a que já estivesse acostumado, porém conseguia perceber a tristeza por trás das palavras.
- E seus pais? - Ela tinha medo de ir muito longe e espantá-lo, mas a memória do ressentimento no rosto dele ainda estava fresca. fechou as mãos em punho e as colocou no colo.
- Acham que ele procurou por isso. - Então era daí que vinha a raiva… - Eles deveriam ter cuidado da gente, mas estavam ocupados demais brigando pra perceber o que os filhos estavam se tornando.
- Sinto muito. - Ela falou baixinho, tentando consolá-lo de uma maneira estranha, dando tapinhas desengonçados no ombro do rapaz. Ele riu.
- E você? Quantos esqueletos você guarda no armário?
sabia que o tom era de piada, mas se sentiu desconfortável, tirou a mão das costas do garoto e cruzou os braços no peito, na defensiva. Não era só porque ele começara a se abrir com ela que ela iria fazer o mesmo. Certo?
Ficou quieta e se aconchegou mais na jaqueta.
- Por que você tem tanta relutância em deixar alguém se aproximar de você? - Ele sussurrou a pergunta. Seus olhos se encontraram e por algum motivo ela não conseguia desviar de seu olhar. Sentiu-se sugada por aquela imensidão azul, que definitivamente era mais profunda do que aparentava. Sentiu o impulso de dar um salto na fé e deixá-lo ver dentro de si mesma, mas logo a razão voltou aos seus sentidos.
- Porque as pessoas tendem a fugir quando chegam perto demais. - Ela deu de ombros e voltou a olhar para frente. Ainda assim, sentia o olhar do rapaz a queimando. - As pessoas não gostam do escuro, e é por isso que eu não as deixo entrar.
- Nunca tive medo do escuro.
Naquele momento ela ponderou qual seria o limite seguro. Até onde poderia ir com ainda mantendo sua mente e seus segredos para si mesma. Ela não sabia o porquê de ele ter se interessado por ela, nem porque não havia desistido quando ela claramente tentou fugir dele. Aliás, não entendia porque ela nunca conseguira cortá-lo definitivamente.
Ele sempre conseguia ir cada vez mais fundo, cada vez mais perto, ignorando todos os sinais que ela lhe dava para parar. Até quando ela poderia continuar mantendo as coisas sem ceder? Ele não desistiria, mas será que não fugiria se ele descobrisse demais?
- Meu pai é alcoólatra. - Começou com algo leve, todos sabiam que Anthony não conseguia se manter sóbrio. - Minha mãe nos deixou quando eu tinha sete anos. Acho que se cansou de apanhar até a inconsciência. Então simplesmente pegou as coisas dela num dia, saiu pela porta e nunca mais voltou.
se manteve quieto, apenas a observando. acreditou que era melhor daquela forma. Se ele tentasse falar algo, provavelmente ela desistiria e iria embora.
- Acho que eu acabei tomando o lugar dela na cabeça dele. Não como a mulher dele, mas a pessoa que precisa fazer o mundo virar de ponta cabeça só pra que ele tenha um lugar pra cair bêbado. Desde que eu fui expulsa da escola eu trabalho pra que ele não caia morto pela rua. Não porque eu o amo - na verdade eu odeio -, mas é só porque é a única coisa que eu sei fazer, entende?
Ele assentiu, sem desviar seu olhar.
- De qualquer forma, a convivência com ele é um inferno. Minha casa só é um lugar habitável depois que ele bebe até desmaiar. Então eu consigo ter um pouco de paz e fantasiar sobre fugir daqui e viver em um lugar onde ele não possa me encontrar.
- Você pretende procurar a sua mãe? - A garota conseguia perceber o tom cauteloso na pergunta. Negou com a cabeça e suspirou.
- Acho que não. De alguma forma eu até que entendo o porquê dela ter ido embora. Eu só to esperando uma oportunidade para fazer o mesmo.
- Vamos fugir juntos. - Ele falou depois de um tempo em silêncio. caiu na gargalhada. - O que? Você não é a única que quer fugir de pais de merda.
- Você é doce demais. - Ela sorriu o encarando com carinho. Pela primeira vez notou que sentia isso pelo garoto e, se fosse parar para pensar mais sobre, era algo assustador. Ele a encarou com um bico nos lábios como se fosse uma criança contrariada, mas o desfez assim que seus olhos se cruzaram.
Ela não sabia quanto tempo passaram se encarando, mas sabia que foi o suficiente para que o espaço entre eles diminuísse a uma nesga de ar. Sua respiração estava entrecortada e saía vapor por conta do frio, mas de alguma forma ela se sentia quente. Em algum momento os olhos de passaram para os lábios de , e a garota fez o mesmo com ele após notá-lo umedecer levemente seu lábio inferior.
Estava outra vez na situação de não saber se queria beijá-lo ou fugir. Mas daquela vez escolheu a primeira opção.
Com uma calma que a surpreendeu, ela acabou com a distância entre os dois. Suavemente juntou seus lábios, e de início fez apenas isso. Ainda com os olhos abertos estudou a reação do rapaz: Ele tinha os olhos fechados, a respiração era curta e rápida e aparentava estar tomando o maior cuidado possível para não quebrar aquele contato. Depois disso, permitiu-se fechar os olhos e moveu gentilmente seus lábios, sendo correspondida.
Aprofundou o beijo aos poucos, permitindo-se sentir os arrepios prazerosos que subiam por sua espinha e que nada tinham a ver com o frio. A mão de subiu até seu rosto, envolvendo sua bochecha com delicadeza.
Então ela quebrou o contato, e com calma abriu os olhos, apenas para encontrar os azuis de perto, analisando-a.
- Eu juro por Deus, . - Ela sussurrou contra seu rosto. - Se algum dia você me magoar, eu te mato.


PARTE DOIS– O MEIO

CAPÍTULO 4

”Sometimes love is not enough
And the road gets tough
I don’t know why”
Lana Del Rey – Born to Die


A frase saiu por acidente.
Finalmente todo o vestígio de neve tinha derretido, e a primavera começava a dar seus primeiros sinais de vida. O dia estava quente, tinha uma brisa fresca que fazia com que os braços descobertos de ficassem arrepiados. Ela conseguia sentir o batimento ritmado de em seu ouvido, e sentir seu cheiro enquanto eles estavam deitados no capô do Mustang, no meio do deserto.
Ela não planejava falar. Mas ele fazia um carinho delicioso na base de sua espinha, e toda a racionalidade foi ralo à baixo.
Eu possivelmente te amo.
Não era exatamente a melhor declaração que alguém já havia feito. Mas já era bem mais do que ela permitira sentir com alguém antes. Ela se amaldiçoou milhares de vezes em um segundo por ter deixado escapar. Após um silêncio que ela considerou constrangedor, levantou os olhos e o encarou.
O sorriso em seu rosto era de tirar o fôlego. Sentiu seu coração sair de compasso.
- Que tipo de declaração é essa? - Ele mordeu o lábio, a encarando. sentiu o rosto arder.
- Podemos esquecer que isso aconteceu? - Ela se sentou rapidamente, enterrando o rosto nas mãos. Pode ouvir que ele se ajeitava ao seu lado rindo gostosamente. Ainda sem olhá-lo, sentiu o rosto dele se afundar na curva de seu pescoço. Ele inspirou fundo e soltou o ar com calma, causando arrepios e cócegas na garota.
- Eu com certeza te amo. - Ele falou baixinho no ouvido dela. lentamente o encarou, querendo ter certeza que ouvira certo. Ele estava com o queixo apoiado no ombro da garota, e sorria com os olhos. Da forma que só ele sabia fazer.
Tudo estava bem.
Ela sorriu e se aproximou, beijando-o com calma. Ela amava sentir o gosto de menta que o hálito do garoto tinha, amava como ele encaixava sua língua na dela, como ele envolvia seus dedos em seu cabelo e a puxava cada vez mais para perto dele. Beijar era como fazer os mundos se alinharem e o tempo parar.
se sentia em uma comédia romântica, e para fechar o clichê, gotas grossas de chuva começaram a cair sobre os dois, trazendo um alívio gelado para o tempo quente.
Quando a deixou no trabalho, ela não poderia se sentir mais feliz. Porém ainda existia uma vozinha no fundo da sua mente que lhe dizia que algo estava para dar errado.
Ela nunca se permitira tal felicidade antes, e agora que a tinha, o medo de tudo ir por água abaixo a deixava paralisada.

Quando se vive com um pai alcoólatra e abusivo, você tende a criar alguns sistemas de defesa, tanto pessoal quanto material. O quarto de em geral era uma área proibida para Anthony, mas ainda assim existiam alguns lugares seguros na qual ela costumava guardar todas as coisas que fossem valiosas para ela: indo desde o dinheiro que economizava até suas lembranças mais sentimentais.
Ao voltar para a casa aquele dia dirigiu-se diretamente para o quarto, fechou a porta atrás de si, abriu a tábua solta do assoalho logo ao lado da porta e pegou o baú que continha todas as coisas que ela mais valorizava.
Sentou-se no chão com a caixa no colo e a analisou carinhosamente. O baú era de um tamanho mediano, que pertencia à sua mãe e fora deixado para trás quando Joan foi embora. A prata já havia escurecido, mas ainda era possível ver todos os detalhes complexamente intrínsecos que o cobriam. seguiu um deles com o dedo, e depois abriu a arca, revelando seu conteúdo.
Havia um porta jóias pequeno de marfim e um colar de pérolas que haviam sido de sua avó materna, algumas cartas que Joan lhe enviara logo após ir embora - por algum tempo ela manteve contato com a filha, procurando saber como estava, mas eventualmente elas pararam de chegar. A garota ainda as mantinha, apesar do ressentimento que guardava de sua mãe.
Mais recentemente, algumas fotos polaroides de haviam se juntado à sua coleção. Uma em específica era a favorita de : Os dois estavam abraçados, sentados no chão do quarto dele. mostrava a língua para a câmera e sorria, a olhando de canto de olho. Aquela foto havia captado um momento único e íntimo, dividido pelos dois. Ela podia dizer o quão feliz estavam. Com um sorriso nos lábios, devolveu a foto para o baú e pegou a pequena carteira que continha sua modesta poupança. Todas as gorjetas e salários que não eram gastos com o Corvette iam para aquela bolsinha de couro desgastada.
Pegou então o bolo de dinheiro que havia feito de gorjeta naquele dia e o guardou na carteira, fechou o baú e colocou novamente em seu compartimento secreto.
Assim que terminou de colocar a tábua para fechar o buraco no chão, a porta do quarto escancarou com violência. O coração da garota deu um pulo e ela se levantou apressadamente, correndo, quase sem pensar, para a direção oposta, encostando-se na parede como se pudesse se fundir com a mesma e passar despercebida. Ela sabia o que estava por vir, mas, ignorando seu instinto que lhe dizia para fugir, fitou a porta.
Anthony estava parado na soleira, sua mão tremia - o que geralmente era um sinal de que não bebia havia pelo menos 12 horas -, a testa brilhava de suor e os olhos estavam arregalados. conseguia administrar o pai bêbado, em geral era quando ele menos dava problema. Porém sóbrio e com crise de abstinência, ele se tornava um pesadelo.
Deveria ter trancado a porta. Amaldiçoou-sem em pensamento.
- Preciso de dinheiro. - odiava quando aquilo acontecia.
Anthony costumava arranjar o próprio dinheiro, fosse pelos bicos que arranjava na oficina próxima ao estacionamento de trailers ou fosse no jogo de pôquer. Em geral não precisava se preocupar com ele indo atrás de seu dinheiro.
Mas existiam dias de vacas magras. Principalmente se ele passava por um longo período de tempo embriagado, e era nesses períodos que ele recorria à filha.
- O banco já fechou hoje. - Ela se apressou em responder. - Passa amanhã.
- Eu não tenho tempo pra suas brincadeiras hoje, . Não testa minha paciência. - Ele fechou os olhos e massageou as têmporas como se quisesse se livrar de uma dor de cabeça inconveniente. - Me dá logo o que você fez em gorjeta hoje e não me contraria.
negou com a cabeça, tremendo internamente pelo medo. Ela sabia que estava lidando com uma bomba prestes à explodir: qualquer movimento em falso e ela seria atingida pelos estilhaços. No entanto, lhe dar dinheiro estava fora de cogitação, ela não poderia pegar uma nota sequer sem revelar a localização do seu tesouro particular.
- Movimento fraco, quase não tive gorjet… - Ela não pode terminar a frase porque naquele momento Anthony já havia disparado pelo quarto e a prensara na parede, segurando-a brutamente pelos braços. Ela podia ouvir o próprio coração ressoar em seu ouvido com a dose de pânico que foi injetada em suas veias.
- Eu sei que você tem guardado dinheiro, sua putinha. - Ele cuspiu as palavras e a encarou com desprezo. - Você vai me dar algum, e eu não vou pedir outra vez.
- Que parte do “eu não tenho” você não entendeu? - Ela reclamou desbocada, e logo sentiu uma dor latejante na lateral do rosto. Seu pai havia desferido um tapa com força em sua bochecha esquerda.
Não era a primeira vez que ele a batia. Anthony tinha momentos de fúrias descontrolados e completamente imprevisíveis. Às vezes passava meses sem encostar nela, outras vezes a batia pelo menos uma vez por semana. tinha plena consciência de que deveria fazer algo contra, mas nunca conseguia se defender quando ele decidia ser violento.
- Não posso te emprestar nada! - Ela bravejou furiosa. Tinha medo de uma retaliação, mas ao mesmo tempo a raiva que sentia daquele homem fervia em seu sangue. raramente ousava aumentar o tom de voz contra Anthony, entretanto, naquele momento sabia que era fisicamente incapaz de se controlar. - Eu não sou a porra dum banco pra poder sustentar teu vício!
Ela sabia que tinha sido um erro no momento em que as palavras terminaram de sair da sua boca.
O ódio de seu pai era palpável. Com um movimento brusco, os dedos calejados do homem entrelaçaram os cabelos da garota. Fechando-os com força, envolveu todos os fios num nó apertado demais, porém o movimento que fez a seguir fora o mais hediondo. Com uma violência desnecessária, ele puxou a cabeça dela e a empurrou contra a parede. ouviu a pancada abafada e sua visão escureceu por um momento. Sua respiração falhou em encher seus pulmões e lágrimas involuntárias vieram até seus olhos. Só notou que estava sangrando quando sentiu o fluído descer quente pelo rosto.
- Talvez você tenha esquecido como tratar seu pai - Ele apertou mais o nó nos cabelos, aproximando o rosto da garota do seu. Sua visão estava embaçada pelas lágrimas e quando ele puxou com mais força seu rosto, ela soltou um gemido baixo de dor. - Mas espero que isso te faça lembrar de ter modos e me respeitar.
Então o dinheiro havia sido esquecido. Ele a soltou e saiu de seu quarto batendo a porta com tamanha força que o quadro pendurado na parede despencou e quebrou. Por fim, com uma última golada de ar e os dedos frágeis massageando o couro cabeludo inutilmente, despencou no chão, sentindo o corpo tremer com os soluços de seu choro.


CAPÍTULO 5


O lado esquerdo de seu rosto estava pintado em uma coloração arroxeada. O corte no supercílio não era profundo o suficiente para necessitar de pontos, mas havia deixado seu olho direito consideravelmente inchado, a ponto de não conseguir abri-lo muito mais do que uma pequena fresta.
De alguma forma, Anthony conseguira dinheiro para se afogar de novo no rum, e a deixou quieta em seu quarto durante o dia todo. Sentia-se mais fraca que o normal, e com o emocional abalado demais para encarar a vida fora daquele cômodo.
Ao invés de trabalhar, passou o dia todo na cama, tentando não se entregar à depressão profunda e sentindo raiva do universo por não deixá-la aproveitar ao menos um pouco de felicidade antes de jogar em sua cara o quanto sua vida era uma merda. Em sua cabeça, ela começava a comparar o conceito de felicidade com um castelo de cartas: difícil de conseguir e extremamente frágil uma vez atingido.
Passando das dez da noite, finalmente os roncos pesados de Anthony começaram a ressoar, permitindo-a considerar levantar e tomar um banho até que ouviu um barulho suave na sua janela.
Seu quarto era um cômodo pequeno e quadrado, composto pelo seu sofá-cama que sempre estava aberto, uma cômoda com alguns produtos cosméticos e suas poucas roupas e uma escrivaninha onde costumava escrever poemas e músicas quando se sentia particularmente inspirada. Antes havia também um violão, mas seu pai o vendeu para comprar mais bebida.
O sofá cama ficava encostado na única parede com janela, era praticamente minúscula e ficava no alto, de forma que para que ela conseguisse enxergar o que estava fazendo o barulho, deveria ficar nas pontas dos pés em cima da cama e esticar o pescoço.
estava do outro lado, jogando pedras no vidro sujo. Ela tentou voltar para baixo antes que ele pudesse a ver, mas foi lenta demais. Assim que seus olhos se cruzaram, o garoto começou a balançar o braço a chamando para ir até o quintal.
Oh, droga. O que ela falaria pra explicar o rosto roxo sem fazer com que o garoto perdesse a cabeça e fosse assassinar seu pai durante o sono?
Sem muito tempo para pensar numa resposta, colocou-se em pé e marchou decidida até a porta da frente. Abriu apenas até onde a corrente de segurança permitia.
tinha um sorriso tranquilo no rosto quando a porta abriu, mas ao ver o rosto de sua expressão se fechou de forma instantânea em preocupação. Ela sabia o que estava passando pela mente dele, e sentiu a ansiedade lhe embrulhar o estômago.
- O que ele fez com você, ? - Ele falou alto demais, raivoso demais. Ela tratou de pedir silêncio, se concentrando em tentar ouvir os roncos de Anthony indicando que ele ainda permanecia adormecido. - Abre essa porta! Eu vou matar esse cara, me deixa entrar agora e ele pode ter uma briga de verdade com alguém do tamanho dele.
- Shh! Você vai acordá-lo.
A preocupação e a raiva de a aquecia por dentro, trazendo uma sensação de que ela não estava sozinha apenas por saber que ele se importava. Porém, a ideia de presenciar uma briga entre ele e Anthony a apavorava mais do que conseguia imaginar.
- Eu caí no banho, . - A mentira veio fácil, assim como todas as outras vezes que ela precisou explicar porque estava com hematomas nas costas, ou com um corte no rosto, ou várias marcas roxas no pescoço… Ela passara a vida mentindo, mas dessa vez doeu. - Sério, eu to bem.
- Você chama isso de bem? - A voz do garoto tinha adquirido um tom mais alto pela incredulidade sobre o que ouvira. Era óbvio que não acreditava em uma única palavra. Suas sobrancelhas estavam franzidas em uma linha única de preocupação e os olhos cerrados em raiva enquanto a observava através da fresta da porta. - Ele mete a porrada em você e você tem coragem de dizer que tá tudo bem, ?
A indignação dele era completamente compreensível, ela sabia disso. Porém não havia nada que pudesse fazer. Ela já tinha se preparado para fechar a porta quando o pé do rapaz a impediu.
- Passa essa noite na minha casa. - Ele pediu baixo. Encostou a testa no batente e procurou a mão da garota. Ela sentiu o coração bater mais rápido quando ele entrelaçou seus dedos no dele. - Por favor, me deixa te proteger desse filho da puta. Pelo menos por essa noite.
Ela sabia que deveria negar, mas seu coração a implorava para aceitar.
- Só me deixa pegar minhas coisas. - assentiu em silêncio e se afastou da porta. a fechou e tratou de pegar uma mochila em seu quarto, colocando algumas trocas de roupa e produtos de higiene. Não sabia qual seria o humor de Anthony quando acordasse, mas havia uma chance de que ele ficasse verdadeiramente emputecido quando não a encontrasse em casa. Rezou para que isso não acontecesse e saiu.
Entrou no carro de e permitiu que o cheiro do rapaz acalmasse seus batimentos cardíacos e lhe ajudassem a cochilar serenamente pela primeira vez no dia. Ela estava bem agora, tudo ficaria bem.

acordou de manhã ainda envolvida nos braços de .
Assim que chegaram na noite anterior, a garota tomou um banho e enfiou-se debaixo das cobertas junto com o mais novo. Não falaram sobre nada, ela apenas aproveitou o carinho que ele fazia em seu cabelo até pegar no sono.
Levantou-se com cuidado para não acordar o rapaz dormindo ao seu lado, e foi até o banheiro. Escovou os dentes, lavou o rosto e observou o mesmo no espelho. O inchaço do olho havia diminuído consideravelmente e o roxo estava atingindo tons esverdeados. Ainda estava feio, mas pelo menos estava melhorando.
- Bom dia. - Ela sentiu-se envolvida por trás por um abraço firme e caloroso. Sorriu, mesmo que o ato lhe causasse um pouco de dor. - Meus pais não estão em casa, vamos tomar café.
A casa de era uma construção de madeira e pedra de dois andares num bairro classe média da cidade. Ela tinha ido poucas vezes, em nenhuma havia conhecido seus pais.
observava as fotos da infância de enquanto desciam as escadas. No fim dela tinham dois garotos sorridentes posando para a câmera. Reconheceu à esquerda: ele era mais alto e os cabelos eram tão loiros que pareciam brancos.
Ao lado do rapaz, o outro garoto tinha um sorriso banguela e um corte de cabelo tigela. Diferente do irmão, ele tinha o cabelo extremamente escuro, parecido com o dela. Não pode deixar de se perguntar, se um dia tivesse filhos com , eles seriam mais parecidos com ele ou com ela?
Após o café, subiram novamente para o quarto. levava uma bolsa térmica gelada para tentar continuar diminuindo o roxo do rosto.
Deitaram-se na cama, sem falar nada e só ficaram abraçados. Ela se sentia segura, e a última coisa que gostaria agora era de voltar para encarar Anthony.
- Vamos embora dessa cidade, . - falou em seu ouvido enquanto passava gentilmente seu dedo pelo braço dela. - Só nós dois. Essa noite.
- E ir pra onde? - A carícia lhe causava arrepios, mas ainda assim lutava para ser racional. Não poderiam fugir agora, não sem dinheiro, não sem um plano. - Eu iria pra qualquer lugar com você, , só que agora é impossível.
Ele ficou quieto, parecendo chateado. quis voltar na hora no que havia falado e ter aceitado a proposta. Mais do que nunca ela tinha a necessidade de ficar com ele pra sempre, longe de toda aquela confusão que era a vida dos dois em Bishop. Mas precisava se manter forte.
- Se a gente vencer a corrida nesse sábado, a gente vai ter dinheiro o suficiente para ir pelo menos até Novo México. - O rapaz se levantou rapidamente, sentou-se na cama e a olhou como se ele tivesse descoberto a América. - Esse sábado os boatos é de que são 10 competidores. São mil dólares.
- , eu não quero jogar um balde de água fria, mas a última vez que você correu, você não foi um dos melhores. - Ela não fez questão de ofender, ele não sabia correr naquele terreno. Mas se ele havia se ofendido, não demonstrou.
- A gente tem uma chance se você dirigir. - O sorriso ainda era o mesmo, o brilho de esperança ainda estava nos olhos azuis.
- Eu? - os olhos de se arregalaram em surpresa.
- Eu já vi você dirigindo várias vezes, . Eu realmente acredito que a gente conseguiria vencer.
- O Corvette não aguentaria.
- Você dirige o Mustang. A gente ganha o prêmio, vai pra bem longe daqui. Novo México não é tão longe quanto eu gostaria, mas seria temporário, só até a gente conseguir trabalhar o suficiente lá pra arranjar mais dinheiro e cair na estrada de novo. - Ele buscou a mão dela e entrelaçou seus dedos. - Não é o plano perfeito, mas nós estaríamos juntos.
Não, não era um plano perfeito. Na verdade era um plano cheio de falhas e uma probabilidade gigantesca de dar errado. Porém, ao observar o brilho de fé no olhar de , e seu sorriso confiante, ela não conseguia não imaginar os dois indo embora juntos, recomeçando juntos.
Suspirou fundo e assentiu em silêncio.
- Isso! - comemorou sentado, mas logo o sorriso morreu. - Só tem um problema… Como a gente vai encontrar o dinheiro pra entrar na corrida?
Ela não queria de jeito nenhum gastar o que tinha economizado com tanto esforço nesses anos trabalhando. Todas as vezes que evitou sair, todos os almoços sem nenhuma mistura apenas para poupar dinheiro… Era um tiro no escuro, e era extremamente arriscado, entretanto, de repente ela se viu mais do que disposta a tentar.
- Fica tranquilo. Eu cuido do dinheiro da inscrição.

- Você quer penhorar ou vender? - O homem atrás do balcão lhe perguntava com um ar de tédio enquanto encarava o porta jóias que pertenceu à avó de na mesa à sua frente.
Assim que a deixou em casa mais cedo, correu para seu tesouro particular. Ela conseguira juntar um pouco mais de quatro mil dólares durante aqueles anos, e sabia que era dinheiro o suficiente para sair de Bishop, mas nunca havia tido coragem de usar aquilo antes, portanto a ideia de gastar aquela quantia que havia juntado em todos os anos recebendo más gorjetas e salários injustos no restaurante não era sua favorita.
Ao invés disso, decidiu que poderia arrecadar ainda mais dinheiro se desfazendo de alguns objetos com menor valor sentimental, como o porta jóias de prata e madrepérola de sua avó.
- Quero vender. - Ela lhe respondeu, com o coração mais pesado do que gostaria. - Esse porta jóias tá na minha família há gerações, e tem um grande valor sentimental pra mim. Mas eu preciso do máximo de dinheiro que eu conseguir com ele. - Falou de uma vez, mordendo o lábio inferior em ansiedade.
O atendente da loja de penhores não deveria ser muito mais velho do que ela. Usava um óculos embaçado e torto, o cabelo loiro era meio ensebado e dava a impressão que não era lavado há pelo menos uma semana. Ele observou o porta joias novamente, examinando com atenção - embora ainda parecesse que gostaria de estar em qualquer outro lugar do que ali -, colocou no balcão e respirou fundo.
- Posso dar 250 por ele.
- Só isso? - Suspirou frustrada. - Por favor, tem muito valor sentimental.
- Todo mundo que entra aqui acha que valor sentimental conta na hora de vender algo. - Ele deu de ombros, sentou em uma cadeira, cruzou os braços sobre o peito e a fitou descontente. - 250 ou nada.
Era bem menos do que ela achava que poderia fazer com a peça, mas ao menos pagava a inscrição da corrida. Assentiu amuada, pegou as notas que o rapaz depositou sobre o balcão e saiu da loja.

Uma semana havia se passado. Caminhava sozinha de volta para casa após seu turno no restaurante, observando o pôr do sol no horizonte. Os tons avermelhados e alaranjados se misturavam, formando uma obra de arte que durava apenas por um momento, antes da escuridão da noite engolir tudo à vista e a única luz vir dos postes precários que iluminavam parcialmente a rua.
Naquela sexta, eles decidiram que não iriam se ver. queria visitar seu irmão no reformatório, o colocar à parte do que estavam planejando, tendo esperanças de que assim que ele saísse daquele lugar pudesse segui-los, e os três ficariam juntos longe de todos aquele problemas. Ele não deixava transparecer, mas sabia como ir embora sem o irmão o deixava triste.
Chegou ao seu quintal e observou a casa, sabendo que aquela seria a última oportunidade que teria de se despedir do local. Suas malas já estavam no Corvette, e assim que acabasse a corrida no dia seguinte, ela e sumiriam de vez de Bishop.
A grama precisava ser cortada, ervas daninhas cresciam ao redor do pavimento de entrada, as janelas estavam acesas, indicando que seu pai estava provavelmente acordado na sala. Sentiu-se desanimada e a vontade de encará-lo, mesmo que no breve caminho entre a entrada e seu quarto, era inexistente. Decidiu caminhar.
Sentia-se sozinha, desacostumada a passar o dia inteiro sem . Sua mente estava cheia de incertezas e ela já conseguia sentir a ansiedade se formando em seu estômago. Todas as dúvidas em relação àquela fuga, todas as incertezas que a assombravam desde o dia em que decidiu fugir com , voltaram para lhe assombrar. E se não desse certo? E se eles perdessem a corrida… E se e ela não dessem certo?
Ela sabia que o amava, mas só o amor era o suficiente?


PARTE TRÊS - O FIM

CAPÍTULO 6

”Choose your last words
This is the last time
‘cause you and I
We were born to die”
Lana del Rey – Born to Die

O quarto não parecia diferente, a não ser que você decidisse abrir os armários e as gavetas e notar que todas as (poucas) roupas que a garota possuía não estavam mais lá. A única coisa intacta era seu baú embaixo da tábua solta do assoalho.
O medo de que Anthony vasculhasse o carro e encontrasse o tesouro era grande demais para arriscar, portanto achou melhor mantê-lo em seu esconderijo secreto até o último momento. Agachou-se e pegou o pedaço de madeira do chão, revelando o compartimento secreto - a ideia era pegar tudo agora e guardar na casa de até a hora de irem para a corrida -, porém antes que pudesse pegar o baú e seguir discretamente até seu carro, seu pai abriu a porta do quarto de sopetão, lhe dando tempo apenas para poder devolver a tábua no lugar e ergue-se em pé, sobressaltada e com o coração disparado sob o olhar inquisitivo do homem.
- O que você tá fazendo? - Ele disparou para a garota, que lutava para manter a respiração equilibrada.
- Só checando essa madeira solta. Descobri isso agora. - Ela apontou com o pé, rezando para que ele acreditasse que era verdade.
Ele continuou a encarando desconfiado. Aparentava estar sóbrio, mas não estava violento. Aparentemente tinha tomado um banho, porque gotas grossas caíam do cabelo denso e escuro, igual ao de .
- Você precisa de alguma coisa? Vou sair pro mercado. - Ela pigarreou, e caminhou de forma despreocupada até a porta do quarto. Ele negou e deu passagem para a filha, que andou o mais apressada possível até o Corvette, o ligando e saindo rapidamente da garagem. A única coisa que conseguia pensar era que o dinheiro todo da fuga havia ficado no baú, e que tudo o que ela menos queria, era voltar.

- Eu não acredito que eu vou ter que voltar lá! - Exasperou frustrada no meio do quarto de , assim que terminou de contar o que havia acontecido para o rapaz. Mais uma vez os pais do rapaz brigaram feio o suficiente para que os dois precisassem sair de casa para não se matarem, deixando o garoto sozinho.
- Não tem problema, ! - Ele respondeu, andando até ela e a abraçando numa tentativa de acalmá-la. Ela correspondeu o carinho, escondendo o rosto no peito dele. - A gente já pagou a corrida adiantado, assim que acabar a gente volta, pega o baú e cai fora.
Ela queria se acalmar, sentir o perfume dele a ajudava, mas não conseguia tirar do peito a sensação de que algo daria errado. Havia passado a madrugada em claro com esse sentimento mortificante apertando seu coração e a deixando ansiosa. Sentia-se tão sobrecarregada que, quando percebeu, estava chorando.
- Ei! - se afastou apenas o suficiente para segurar seu rosto nas mãos e a fazer olhar para ele. Passou o dedão em sua bochecha, secando uma lágrima que corria solta e aproveitou para lhe fazer um carinho na região. - O que foi?
- Tem algo errado, . - Ela se sentia sufocada, seus pulmões não obedeciam seu cérebro e qualquer tentativa de puxar ar só lhe deixava mais frustrada e sufocada. - Algo vai dar errado, eu sei disso, eu tenho certeza.
Ela o encarou em súplica, pedindo silenciosamente que, apenas por olhá-lo, esse pressentimento fosse embora. Absorveu cada detalhe: os lábios comprimidos em uma linha fina, a pele levemente ruborizada; as sobrancelhas estavam franzidas em preocupação, porém ele a encarava com carinho. Aproximou seu rosto do dela e depositou um beijo leve em sua testa, voltando a abraçá-la com força, acariciando seus cabelos.
- Vai dar tudo certo! - Ele garantiu. - Não tem porquê ficar assim, respira… - Ele começou a falar palavras de conforto aleatórias enquanto a abraçava e acariciava seus cabelos. Aos poucos sentiu a tensão sumir. Seus músculos foram relaxando e o ar ia para seus pulmões sem dificuldade.
- Tá melhor? - Ele perguntou baixinho em seu ouvido. Ela apenas assentiu e se afastou. - Vai dar tudo certo. - Repetiu, sorrindo confiante.
Ela amava tanto aquele sorriso. Era bonito demais para que ela não quisesse juntar seus lábios ao dele imediatamente.
correspondeu ao beijo no mesmo instante, segurando o rosto da garota de forma delicada, porém firme. , por sua vez, envolveu o pescoço dele sem nenhuma delicadeza, o puxando violentamente para ela. De alguma forma, sentia uma necessidade absurda de experimentá-lo mais próximo, mais intenso.
Naquele momento, a única coisa que importava eram os braços do rapaz a segurando, e o cheiro familiar de casa invadindo seus pulmões. Tudo ficaria bem.

Ela nunca tinha visto Owens Valley tão cheia quanto naquele fim de tarde. O sol se punha, imenso e laranja, atrás da multidão de adolescentes e jovens adultos sentados ao redor da pista improvisada, onde mais e mais carros chegavam.
O estômago da garota se revirava e contraía em ansiedade, e seu peito parecia prestes à explodir enquanto ela observava e analisava todos os veículos que se organizavam para a corrida: um mar repleto de mustangs, corvettes, camaros… Engoliu em seco, esperando que a sensação de que seu coração pularia da boca sumisse.
- Ei! - segurou sua mão - molhada de suor e gelada -, chamando a atenção de para ele. Ela o encarou, sabendo que provavelmente o pânico estaria evidente na sua cara. - Vai dar tudo certo, você sabe o que tá fazendo.
Ele assentiu como se fosse uma certeza e a única coisa que conseguiu responder foi com um aceno fraco antes dos seus olhos desviarem novamente para a pista. Ela sabia mesmo o que estava fazendo? Em um intervalo de meio segundo pensou mil vezes em desistir, mas não teve tempo de verbalizar a ideia, pois já chamavam os corredores para seus lugares.
Com o coração batendo a mil por hora, entrou no banco do motorista do Mustang e girou a chave na ignição. entrou e sentou-se ao seu lado, colocando o cinto e sorriu confiante. Se ele estivesse nervoso, poderia se considerar um ótimo ator.
Por favor, que tudo dê certo. Ela pensou, antes de respirar fundo e pisar no acelerador, segurando o freio de mão. Os pneus do carro na estrada de terra levantavam uma poeira que deixava quase impossível de se ver algo, mas ainda era possível ouvir a imensa buzina de caminhão sendo acionada, indicando o início da corrida.
desceu o freio de mão, e o carro disparou sem nenhum aviso em linha reta, quase sem controle. Seu coração disparou e seus rins injetaram uma super dose de adrenalina em seu sangue. Ao mesmo tempo em que sabia tudo o que estava acontecendo ao seu redor, tudo passava como um borrão sem forma.
Ela conseguia distinguir os gritos animados de ao seu lado toda vez que fazia alguma ultrapassagem; o suor escorria pelas costas e seu coração estava tão acelerado quanto o Mustang que dirigia. Em algum momento, um carro ameaçou fechá-la pela direita, vindo de seu ponto cego, mas a garota apenas engatou a quarta e acelerou mais, evitando ser ultrapassada.
- Só mais uma volta, baby! - Ela conseguiu distinguir a voz de no meio do turbilhão de pensamentos que inundavam sua cabeça. Eles iriam ganhar, isso realmente estava acontecendo. Ela tinha ultrapassado a maior parte dos competidores, disputando a liderança por centímetros de diferença de um Corvette bem parecido com o dela.
Isso realmente estava acontecendo, ela não poderia acreditar que finalmente estava correndo. Engatou a quinta e acelerou; o Corvette acelerou também, ficando na dianteira. Gemeu infeliz, já vendo a última curva se aproximando, e sem ideia de como fazer para ultrapassá-lo.
- Segundo lugar não é tão ruim assim! - O rapaz falou ao seu lado, colocando a mão na sua perna de forma carinhosa. Mas sabia que não era o suficiente. Não tinha entrado nisso pra perder. Não iria perder.
Enquanto o Corvette desacelerou para a curva, apenas afundou o pé mais ainda no acelerador. Era uma decisão extremamente perigosa, se não virasse no momento certo, perderia o controle do carro e poderia sair da pista. Contou até três mentalmente; de canto de olho conseguiu ver se ajeitando no banco e segurando-se com mais força ainda na alça do teto.
- Baby, não seria melhor desace… - Ele começou a questionar algo, porém só gritou alto e com força, antes de jogar o volante totalmente para a esquerda, derrapando sonoramente na pista por alguns segundos, antes de conseguir retomar o controle em linha reta e ultrapassar a linha de chegada.
E então tinha acabado.
Eles tinham ganhado.
Tudo daria certo.


CAPÍTULO 7


O sorriso estampado no rosto de morreu um pouco quando eles estacionaram na esquina da casa de . As malas estavam todas no Mustang, os mil dólares do prêmio estavam na carteira do rapaz, só faltava o baú. E era por isso que eles estavam lá.
respirou fundo, e segurou a mão do rapaz com força antes de depositar um beijo rápido em seus lábios e sair do carro. Agachou-se no vidro aberto, olhando-o com carinho e, dizendo um “até logo”, saiu andando até seu quintal, com a promessa de que voltaria rápido.
Parou na frente da porta de entrada, estranhando a falta de luzes de dentro da casa. Aquilo levantou uma bandeira vermelha em sua mente, e por algum motivo seu coração disparou e todos os seus instintos gritaram para que ela desse o fora daquele lugar. Entretanto, não poderia. Precisava de seu tesouro.
Abriu a porta com cuidado, sentindo que o calor tinha saído de seu corpo ao ver a casa toda revirada. Cacos de vidro se espalhavam pelo chão, a mesinha de centro estava virada de ponta cabeça, assim como o sofá. Entrou rapidamente, e algo em seu estômago se revirou.
Correu para o seu quarto e o encontrou no mesmo caos: as portas do armário estavam quebradas, o sofá-cama estava rasgado. Apressou-se para seu compartimento secreto, com uma sensação ruim dentro dela; Seu coração batia alto em seus ouvidos, e o desespero começou a tomar conta dela. Seu baú não estava mais lá.
Sentiu as lágrimas borrarem sua visão, e sua respiração falhar. Cambaleou pelo quarto, num último fio de esperança de encontrá-lo em outro lugar. Sentiu vontade de gritar em exasperação.
- Procurando por isso? - A voz gelada de Anthony em suas costas a congelou no lugar, lhe arrepiando a espinha. Virou lentamente para encará-lo, o encontrando com as duas mãos segurando suas coisas. Em uma, seu baú pendia debilmente pela tampa, na outra ele segurava as polaroides de e a carteira de dinheiro.
estava encurralada, sabia que aquele era o fim do seu plano. Não tinha mais nada que pudesse fazer.
- Então você pretendia me abandonar aqui, por conta desse moleque? - Seu pai tinha uma postura firme, quase ameaçadora. Deu um passo agressivo para frente, jogando o baú e as fotos no chão. - Eu não te criei pra ser uma puta, .
A vontade da garota era de responder que ele não a tinha criado, mas o medo a calou. Ele parecia sóbrio, e se aproximava rapidamente.
- Pai… - Até tentou começar uma súplica, com a voz embargada pelo choro, mas o tapa que ele desferiu em seu rosto a calou. Ela caiu sentada no sofá-cama, segurando o rosto que latejava com uma das mãos. As lágrimas já começavam a correr solta. Anthony se aproximou mais uma vez, fazendo-a se encolher na cama. - Por favor.
- Eu achei que tinha criado uma dama. - Ele a pegou pelo pescoço, jogando-a deitada no colchão. - Mas se você é uma puta, então vou te tratar como uma.
O pânico se instaurou em sua mente. Tentou se debater, porém sempre que se movia o aperto do homem em seu pescoço aumentava, tirando-lhe o ar. Em um momento, tudo o que ela fez foi observá-lo, enquanto ele desabotoava seu cinto, resmungando como ela era uma vadiazinha que teria o que merecia. Ela fechou os olhos, engasgando-se com as lágrimas e tentando não pensar na mão de Anthony que corria livremente pelo seu corpo, e lutava para abrir o botão do jeans da garota.
É aqui que tudo acaba. Pensou, perdendo as esperanças, quando de repente um som alto ecoou em seus ouvidos e as mãos do mais velho se afrouxaram. Abriu os olhos confusa, apenas para focá-los em segurando um pedaço de madeira na altura dos ombros e Anthony desmaiado no chão, ainda vestido.
Ao ver , sentiu que explodiria, sua respiração estava desregulada e o choro havia se transformado em soluços sôfregos. A vendo naquele estado, apenas largou a madeira no chão e abraçou com força. Sem dizer nada, somente a deixou desabar sobre ele.
- Ele tá… - Ela engoliu em seco, ao mesmo tempo que soluçava. - Ele tá morto?
Nunca havia desejado a morte de Anthony antes, mas naquele momento, havia uma parte dela que gostaria que ele estivesse. O rapaz só balançou a cabeça, acariciando seus cabelos.
- Só desacordado. A gente precisa sair daqui antes que ele acorde. - Ele levantou, segurando a mão da garota e a puxando delicadamente. parecia em choque, mas ainda assim conseguiu pegar a carteira com o dinheiro no chão, antes de seguir o namorado para o carro.

- Como você soube? - Ela perguntou após um tempo em silêncio, sentada com os pés em cima do banco, abraçada às pernas. Seu coração batia menos violentamente agora, e a sensação de segurança surgia timidamente. Eles estavam já na autopista, seguindo rápído sentido oeste. - Quer dizer, como você apareceu lá?
- Você disse que não demoraria. - Ele dirigia, segurando o volante com tanta força que os nós de seus dedos estavam esbranquiçados. - Fui ver o que tinha acontecido… … Eu devia voltar lá, e matar aquele filho da puta!
nunca havia o visto daquela forma. Seu semblante estava fechado em uma careta que parecia mais dor do que raiva. Ele fungou e logo depois a garota pode ver algumas lágrimas escorrerem por sua bochecha.
- Ei! - Ela se endireitou no banco e segurou sua perna, apertando-a apenas com a força necessária para transmiti-lo conforto. - Acabou, de vez! - Ele a encarou e ela sorriu para ele. - A gente tá junto, deu tudo certo. Eu te amo.
Deu tudo certo. Ele assentiu, respirando fundo. Finalmente tinha acabado, eles estavam indo embora, de vez. A garota sentia que tinha tirado um peso gigantesco do peito. Eles ficaram juntos. Nada mais importava.
- Eu também te amo.
era a única coisa que importava. Nem a chuva que começava a cair era o suficiente para os incomodar. Eles estavam absortos no mundo que era só deles. A única coisa que existia para eram os olhos e o sorriso doce do rapaz.
Talvez por isso que eles não perceberam que haviam pego a pista errada. Talvez por isso eles não tivessem se dado conta do caminhão que vinha na contra-mão, chocando-se com eles tão rápido que não havia dado tempo nem de buzinar.
Eles estavam juntos, e enquanto, o carro capotava, era a única coisa que passava na mente de . Eles estavam juntos e a chuva caía e cantava lentamente: você pode dormir agora.




FIM



Nota da autora: Eu finalmente acabei. Eu não consigo acreditar que finalmente acabei.
Born to die foi sem dúvidas a estória mais difícil que eu já escrevi. O tema era demasiado problemático e pesado, e eu enfrentei semanas e mais semanas de bloqueio criativo por conta dele, com um puta medo de ter romantizado demais essa relação entre a PP e o pai dela. Porém acabei, espero que vocês tenham chegado até o fim com a saúde mental intacta, mesmo que me odeiem um pouco pelo final. RSRS
Antes de acabar o textinho das notas, gostaria só de fazer um apelo, caso na estória ele tenha ficado confuso: Por favor, por favor, por favor não romantize violência doméstica, ou qualquer outro tipo de abuso, seja físico ou psicológico. Se você estiver passando por isso, ou conheça alguém que esteja passando, denuncie! Ligue 180, e denuncie. É anonimamente direto na Delegacia da Mulher. Não deixe passar batido algo que acomete milhões de mulheres no país inteiro. Seja parte da solução, não do problema.
Dito isso, espero que tenham gostado. Vocês poderão ver mais desse casal lindo que me doeu demais matar em 1. Ride, onde eu coloco alguns excertos dos dois porque eu não sei me desapegar.
Qualquer erro, tanto de script como de roteiro, dúvida, sugestão ou xingamento, podem me enviar por e-mail, ou por alguma das minhas redes sociais abaixo!
Beijos, amoras, até a próxima.





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