Finalizada em: Jul/2021

primeira morte

Faça a sua jogada
Faça a sua jogada comigo, agora
Faça a sua jogada
Faça a sua jogada comigo, agora
Qual é a minha jogada?
Qual é a minha jogada? Me fale agora
Me fale agora


A Billboard o deixou extasiado.
Mais um degrau acima foi a motivação suficiente para que estendesse seu horário na sala vip do pub da cobertura de Gangnam. As bebidas encheram a mesa redonda, o som alto era uma repetição de suas próprias músicas ao longo da carreira e as risadas eram um monólogo de um cara que parabenizava a si próprio. Sozinho, é claro. Ele sempre estava sozinho.
Gostava de pensar nesse fato como uma de tantas outras escolhas que apenas o beneficiaria no final. Quando precisasse de alguém, o dinheiro resolveria isso facilmente. Sua vida não tinha romance ou amigos e, quando alguma necessidade biológica dessas coisas fúteis batia, ele podia simplesmente fingir.
Mas nada o tiraria do topo. Nenhum sentimento, pessoa ou ocasião o afastariam do pódio do mundo, que acreditava estar destinado.
Naquela noite, ele acreditava nisso mais do que nunca.
O horário pago na pequena sala bateu seu limite, e ele entregou seu cartão sem limites para não apenas pagar, como para demonstrar. Não era sua primeira vez ali, mas gostava dos olhares receosos e admirados que arrancava das mesmas pessoas. Sentia como se sempre estivesse com um holofote brilhando acima de sua cabeça. Antes de sair, escutou a frase que alimentou ainda mais o seu ego farto: parabéns por ter sido indicado à Billboard. Ele riu e suspirou, caminhando finalmente para fora, sentindo que fez a coisa certa. Afinal, ele fez tudo. As pessoas pagas mexiam nos negócios e faziam o que lhes era dito, mas ninguém era tão genial e talentoso como ele, um potencial altíssimo para o sucesso mundial. Porque este era Min Yoongi: ambicioso. Um cara com a mente no futuro enquanto se mantinha egoísta e individualista no presente.
E sem qualquer interesse no passado.
Ele procurou seu carro, mas não conseguia se lembrar da onde o havia estacionado. Sua mente estava turva e o trânsito não parecia tão conturbado como sempre estava, mas as luzes dos faróis eram um completo borrão. Ele tentou olhar as horas no relógio de pulso e não enxergou nada além de números desconexos e chutou pelo céu escuro: o pico da madrugada. Com certeza deve ter deixado seu carro por perto, mas ele não poderia dirigir agora. Pagar alguém para levá-lo embora seria a melhor opção, a mais inteligente – ele gostava de ser inteligente – e seria uma tolice sem tamanho que deixasse algo acontecer a si mesmo antes de dar o passo à ascensão na conquista do mundo.
Lembrou-se do ponto de táxi. Carros cor de prata delimitavam linhas amarelas no chão do outro lado da rua, todos eles confeccionados com placas demonstrativas e auto explicativas de seu serviço. Ele só precisava atravessar.
Ao chegar na borda da calçada, observou o sinal vermelho à sua frente. Ele se embolou em seu cérebro e pareceu ficar verde, logo depois vermelho de novo e até podia jurar que o boneco dançou para ele. Yoongi balançou a cabeça, pensando de repente se não poderia ter trazido o sr. Nathan Valois para ao menos servir de motorista da noite. Mas pensar em ter de dividir aquele momento e bebidas com mais alguém que não fosse ele, causava-lhe logo uma rejeição automática.
Por fim, decidiu que o sinal estava verde, mesmo não sabendo exatamente qual dos dois, já que as cores mudavam e se misturavam à sua frente. A rua estava vazia e ele enxergava apenas à frente. Colocou os pés lentamente na faixa e atravessou, um pouco trôpego, mas focando na extremidade oposta da rua delimitada.
Ele não ouviu nada. Quando estava bêbado, costumava ficar surdo para barulhos externos, longínquos, porque nem isso considerava importante o bastante. Ele parecia estar debaixo d’água. Também não viu a luz à princípio; nem o grito louco do manobrista na frente do estabelecimento que havia saído.
Quando a luz ficou tão forte que o impossibilitou de olhar à frente no caminho, ele finalmente a notou. Com um sobressalto, os dois olhos enormes e brilhantes do caminhão se aproximaram de si cada vez mais, e tudo em sua mente não passou de um borrão. Ele não sentiu medo, desespero ou até mesmo angústia. Nada de nada. Também não teve a experiência extracorpórea de assistir a vida inteira passar pelos seus olhos – ele não se importava o suficiente com o passado para isso.
Tudo o que ele pensou foi que precisava chegar ao outro lado da rua. Porque a Billboard e o sucesso estavam lá, e era tudo o que interessava.
Os dois olhos fumegantes travaram bem à sua frente e, finalmente, ele sentiu um aperto no peito que era característico do terror. Suas pernas tremeram e pareciam fincadas ao chão. De repente, ele pareceu estar sóbrio e mais lúcido do que nunca. A boca se abriu em uma respiração pesada e rápida, e sua mente deu um estalo e se orientou sobre onde estava e o que estava acontecendo.
Ele sentiu o coração bater mais forte, sôfrego, como se lutasse incessantemente para ficar, ou para sair. Ele deu mais alguns passos para trás e olhou em volta. O caminhão estava parado, imóvel sobre o asfalto com os faróis ligados, mas ele não ouvia o barulho do motor. Ele não ouvia mais coisa alguma. Não sentia a vedação da bebedeira que tomava seus ouvidos como sempre, mas ainda assim se sentia surdo. Como se tudo tivesse parado.
A confirmação veio na forma de uma pessoa materializada no ambiente que o fitava bruscamente. Uma pessoa que não estava ali antes, mas ele não podia ter certeza. Ele não era uma pessoa que olhava para os lados.
O vento não balançava mais as folhas das árvores, as luzes das salas vips não piscavam mais acima e um homem de porte médio mantinha os braços levantados no ar enquanto mantinha a boca aberta em um grito inaudível. Ele também olhava em sua direção, mas estava simplesmente congelado.
As veias de Yoongi também se congelaram.
— Quem é você? — perguntou ele ao notar os olhos que queimavam fixamente para si. Ela estava com os pés descalços no asfalto, e de repente pareceu estar mais perto. No meio do tráfego, assim como ele.
Era uma garota de vestido preto e longo. Parecia uma garota agora, mas antes era apenas… uma pessoa. Ele não sabia definir. Algo parecia estar errado.
— Vida ou morte, Yoongi? — perguntou ela.
Ele olhou para os lados, mesmo sabendo que não tinha mais nenhuma outra pessoa que pudesse ser direcionada.
— Quem é você? — ele insistiu — O que é tudo isso...
— Vida ou morte — ela pontuou pacientemente. Inclinou a cabeça para a calçada adiante e então para o caminhão estático logo ao lado.
Ele seguiu o olhar pelas duas opções e não soube o que responder de imediato. Nunca ficou bêbado daquele jeito, e se preocupou de repente em estar sonhando aquele sonho louco enquanto seu corpo devia estar desmaiado em outra calçada. Era só uma brincadeira, um disparate.
Ele ergueu os ombros, confiante:
— O que acha que vou responder?
Ela puxou o canto dos lábios em um sorriso complacente.
— Sua boca responderá vida, mas seu coração o levará à morte.
Ele soltou uma gargalhada alta, tendo a certeza de que conversava com aquele restante de consciência chata que o faria repensar a própria vida. Por um instante, se sentiu confuso e desordenado, talvez pelo resquício da bebida que ainda continha dentro de si e até mesmo pelo fato de estar bêbado naquele ponto.
Yoongi não estava bem para que fizesse qualquer coisa, mas de alguma forma, resolveu por erguer seu olhar, encarando a mulher que o olhava de forma observadora, quase como se para ela, tudo aquilo fosse pura diversão.
Não era real. Era uma passagem avulsa de tempo. Ele não levaria a sério o bastante.
— Ainda não acredita? — disse ela.
Ele permaneceu imóvel, com um semblante desdenhoso. Yoongi nada respondeu, deixou que seus olhos permanecessem sobre os dela, como se tentasse adivinhar o que, de fato, ela poderia ser ou se por algum instante, pudesse ser mesmo real.
Ela sorriu, não de forma amena ou singela, mas sorriu esperta e com apenas o desviar de sua atenção para o lado, fez com que Yoongi seguisse sua direção. Os olhos escuros e sem brilho da mulher caíram sobre o veículo parado, não tão longe do rapaz, mas próximo o suficiente para que não fosse possível que ele desviasse para evitar qualquer acidente. Ela piscou uma vez, olhando para ele pela última, antes que tudo e todas as coisas voltasse a ter seu movimento normal.
Yoongi percebeu de súbito quando os sons que, antes inaudíveis por conta do parar do tempo, agora ressoavam pela avenida invadiram sua audição sem espera e até mesmo quando a luz do semáforo começara a piscar como antes, mas a única coisa que percebeu com nitidez e clareza foram os faróis do caminhão que antes também estava parado, agora em sua direção, em uma velocidade que Yoongi sabia seria seu fim. Não houve gritos, apenas o derrapar do pneu pelo acionar dos freios e a expressão assustada, beirando ao mais claro desespero. Ele só teve tempo de arquear as sobrancelhas pelo sobressalto do veículo a centímetros de si e escancarar a boca, sentindo seu corpo tremer por inteiro.
Mas o que deveria ter acontecido, não aconteceu. O caminhão parou novamente quase colado a seu corpo, a feição do motorista imersa em pavor e Yoongi por um segundo se perguntou o que tinha acontecido ali. Ele deveria estar morto, não? Seu corpo deveria ter sido lançado ao longe já sem vida, certo? Era o que ele havia pensado, mas um suspiro lento o fez piscar brevemente. Quando o rapaz levantou sua cabeça, deixando seus olhos ainda arregalados seguirem para frente, observou a mulher ainda parada no mesmo lugar, inexpressiva, o encarando. Ela não demonstrava surpresa e pânico como ele, mas algo em seus olhos negros lhe demonstravam que nada aquilo havia sido mera coincidência e que deveria acontecer daquela forma. — É a última vez, Yoongi — seus lábios se moveram, o fazendo permanecer estático. — Vida ou morte?
— Vida — não pensou muito para responder. Yoongi desviou o olhar rapidamente para baixo, olhando cada pequeno pedaço de seu corpo, tentando entender o que havia acontecido ali. Voltou a olhá-la. — O que você… Por que…
— Posso te conceder vida — respondeu, dando um passo à frente — Mas esse acordo vem com uma condição.
Ele piscou os olhos várias vezes, ainda tentando controlar a respiração pesada e rápida, como se fosse desabar a qualquer momento.
— Que condição?
— Uma mudança plena de atitude — disse. Yoongi franziu o cenho em dúvida — Traduzindo: precisa honrar uma segunda chance deixando de ser um imbecil.
Ele pensou no completo nada de imediato. Tudo parecia mais real, mas ao mesmo tempo também parecia só um sonho maluco guiado por êxtase. Ele lembrou-se de uma ex-namorada que, há muito tempo, havia lhe dito as mesmas palavras a ele. “Você precisa deixar de ser um imbecil”. Era um insight distante, deslocado da situação, mas que veio mesmo assim.
Ele não se achava um imbecil e talvez por isso não tenha respondido. A imagem da mulher adiante pareceu ter ganhado nova cor e nova forma. Transformou-se na pessoa que o direcionou aquelas palavras, uma antiga Fonda que ocupava um lugar tão distante do passado que a tornava um ser irrelevante em qualquer etapa de sua vida até então. Do que ela serviu? Além de ser uma descarga emocional e sexual, ou para perturbar sua mente com moralismo clichê e juvenil. Ele não achou que tais coisas seriam o suficiente para que se lembrasse dela depois.
— E então? — a voz da imaginária falou, em um mero tom sombrio — Dará às costas ao mundo de sucesso porque não se vê capaz de conquistá-lo sem pisar em algumas pessoas?
Ele de repente trincou os dentes, sentindo uma fúria mínima e distinta queimar seu peito. O tom das frases parecia ganhar outro significado agora que sua remetente havia ganhado um novo rosto. Aquele rosto. Uma feição associada somente à bondade desnecessária e solícita, agora proferindo palavras tenebrosas como aquelas, como se fossem água e óleo. As duas coisas não se misturavam. Por que ele estava vendo ela?
— Como quiser — ele resmungou, respondendo à contragosto. Aquilo tinha que acabar imediatamente, e se seguir suas pistas eram o caminho, ele faria.
— Temos um acordo? — ela deu mais um passo à frente. Por um momento, ele pode até sentir o cheiro dela.
A mão direita e delicada se estendeu em palma aberta. Ele encarou aqueles olhos familiares por alguns segundos antes de tomá-la para si, fechando-a contra a dele, quente e macia como se lembrava. Que sensação louca.
— Como se chama? — a pergunta saiu antes que ele se tocasse. Ele estava cético sobre a associação que estava fazendo no momento, mas estava cético sobre várias coisas há uma hora atrás.
Ela deixou escapar um sorriso aberto.
— Sou o karma.
E então ela apertou sua mão com mais força e tudo desapareceu.

Lentamente, eu abro meus olhos
Estou no meu local de trabalho, é o meu estúdio
As ondas passam
De forma sombria por mim, como um espasmo
Mas eu nunca mais serei arrastado para longe
No interior
Eu me encontrei, me encontrei


A vida de Yoongi não tinha romance.
Também passou a não ter pujança, prazer ou comprometimento com terceiros. Ele levantava todos os dias em horários malucos e trabalhava quando queria. Apesar da carreira já ter alcançado o ápice e permanecido por vários anos, ele não era totalmente alheio às movimentações da indústria. Ninguém ficava no topo para sempre se não demonstrasse o mínimo esforço em fazê-lo.
Mas um peso morto o travava ao chão sempre que se lembrava de acordar e fazer exatamente a mesma coisa. A vida de um artista em processo de produção agora poderia sim ser considerada rotineira e monótona, até. A maneira como trabalhava ou ouvia sobre seu trabalho já não lhe causava expectativa ou motivação. A própria música autoral, um projeto entregue por suas próprias mãos, um sucesso internacional, não estava rendendo o mesmo efeito interno de antes. A multidão já não era o suficiente, nada mais fazia sentido.
Ele estava doente.
Só podia estar, não é?
Desde o dia em que acordou no estúdio depois da bebedeira daquela noite específica, não soube decifrar ao certo se tudo aquilo havia sido apenas um delírio de sua mente por estar bêbado ou se, de alguma forma, havia mesmo acontecido. Ele se lembrava de sua cabeça latejar, dos flashes que invadiam frequentemente e tudo aquilo parecia louco demais para ser mesmo verdade.
Deixou uma risada fraca escapar.
A que ponto havia chegado para achar que, uma noite regada a álcool, o levaria a ver na sua frente? De até mesmo ter selado um acordo, apertando a mão de sua ex namorada. O quão surreal tudo aquilo poderia ser?
Mesmo que tudo tenha começado a desandar a partir dessa ilusão maluca.
O terceiro médico havia lhe dado a mesma resposta dos anteriores. Depois de exames caros e, segundo Yoongi, malucos demais que só serviam para arrancar mais dinheiro de clientes, nada havia mudado – ao mesmo tempo em que tudo havia mudado. Ele era constantemente tachado de saudável quando na verdade se sentia tão insanamente debilitado. E essa condição desconhecida – sombria – o deixava em pânico, roubava suas noites de sono, corroía seus neurônios e o deixavam à mercê do obscuro. Uma vida que deixou de ser vivida, uma alma que passou a somente existir.
Aquele dia. Tudo começou uma semana após aquele dia.
Dali há menos de dois meses ele estaria se apresentando em New York no palco do Prudential Center, elevando o seu nível às alturas, como gostava de pensar. Ninguém havia alcançado tal coisa, nenhum outro se atreveria a se comparar. Ele marchava a passos largos para o topo e pegaria o que considerava ser seu por direito. Mostraria aos que o desacreditaram o poder do sucesso, dos que nasceram para tal. Era essa imagem que via todos os dias no espelho.

Nenhuma música me afeta mais
Chorando em um grito silencioso
É como um oceano que tem toda a sua luz apagada, sim, sim, sim
Segurando meu tornozelo quando perco o caminho, sim, sim, sim
Não escuto nenhum som, sim, sim, sim
Isso está me matando agora, me matando agora
Você me ouve? Sim


Foi então que tudo sumiu. Que seu mundo caiu em um abismo de silêncio impenetrável e parcial. Ele conseguia se lembrar com muita clareza agora, mesmo que já estivesse cansado de repeti-la aos médicos: aconteceu de um dia para o outro. Era verdade. Ele se levantou como em todos os dias, tomou seu café da manhã farto e desnecessário que seria descartado ao lixo como de costume, dirigiu até o estúdio enquanto amaldiçoava o trânsito insistentemente e estacionou em sua vaga VIP e sigilosa logo aos fundos do prédio espelhado. Pegou o elevador vazio e entrou na sala acústica enquanto exigia ouvir mais uma vez a demo de seu último trabalho, disposto a não aceitar nada menos que a perfeição.
Mas nada veio. Absolutamente nada. Ele esperou, pediu para colocarem novamente, mandou que consertasse o aparelho, vociferou com empregados aleatórios sobre a falta de responsabilidade em tratar um projeto daqueles com tanto descaso – um projeto seu – e ainda nada veio. As pessoas não costumavam contrariá-lo, mas tiveram de fazer quando a situação chegou a um ponto extremo. Ele não sabe quantas vezes gritou a palavra “demitido” naqueles dois dias, mas o fato era inegável e apenas um: ele não estava ouvindo.
O silêncio era corriqueiro e absoluto. Ele ouvia o barulho da porta, o som de seus pés no piso de madeira, os gritos que sua própria garganta entoava, mas não ouvia a música. Nenhuma delas. Nem mesmo as canções bregas e toscas do rádio, nem as gravações um dia já lançadas, nem quando ele mesmo tentava cantar. Nada vinha, nada chegava. Nem mesmo um eco perdido no escuro.
O desespero foi chegando gradativamente, e Yoongi o enxergava, assim como fugia dele. Se desesperar era aceitar. Uma atitude tomada por quem desistia.
A situação era grave, e ao mesmo tempo não era. Ultimamente, ele andava tão chapado dos remédios prescritos por pelo menos dois psiquiatras que se sentia alheio à realidade, e tudo perdia o sentido com mais rapidez do que ele conseguia acompanhar. Ele não ouvia sua própria música. Não conseguia escrevê-las. Não suportava ser vítima de uma falha fisiológica ou cerebral daquele corpo que havia se esforçado tanto para manter intacto.
Um vazio sem precedentes tomava seus dias como uma sombra negra que o acompanhava de perto. Agora, com os pés descalços e a calça de moletom se arrastando pelo chão, ele olhava para a cidade de cima, na posição que o caracterizava como um rei, mas que agora o fazia se sentir como o soberano apenas de um jogo de xadrez. Descartável, sem importância, apenas esperando o dia em que o alcançariam e o derrubariam, sem que pudesse fazer nada.
Nada.
Tudo estava desmoronando.
— … E o James disse que você deveria descansar por mais um mês — uma voz vinda do meio da sala falou enquanto observava as costas do homem estáticas para a janela — Ele ligou para aquele médico japonês, e marcou uma reunião com a equipe de Oxford para algum tratamento experimental. Ele está preocupado que isso possa se ampliar, que possa tomar o cérebro inteiro…
— Já entendi, George — ele interrompeu, balançando o corpo de vidro nas mãos que antes esburrava de líquido âmbar da bebida cara que guardava para ocasiões especiais. Não tinha nenhuma naquele momento; as boas notícias que esperou ouvir do subordinado não vieram — Diz pro James continuar organizando tudo.
O garoto, que não deveria ter mais do que 22 anos, abriu a boca para sugerir, mas preferiu fechá-la. Ultimamente, Yoongi havia pego a mania de atirar coisas em pessoas que o causavam um mínimo de estresse. Os motivos iam desde parar a produção do novo álbum até o assunto proibido de pausa na carreira. George poderia se aproveitar desse conhecimento e sair ileso.
— Claro, claro — respondeu depois de pensar, captando o encerramento do assunto e voltando a guardar os documentos e papéis sobre os motivos da reunião repentina: cópias de raios x, ultrassonografias, pastas de rascunhos do estúdio e, claro, o cronograma da Billboard.
Ele encarou o rosto do homem ainda na janela, agora com o maxilar trincado e imóvel enquanto mantinha os movimentos repetitivos nos dedos. Por um momento, ele nem parecia estar ali; estava, mas não estava. Era como ver apenas a casca, pele sobre ossos.
— Ei, Yoongi… — George começou, não recebendo nenhum movimento em resposta — Aconteceu alguma coisa naquele dia em Gangnam?
O rosto de Yoongi se moveu em perfil, como se o assunto não merecesse atenção o suficiente.
— Hum?
— O dia da nomeação da premiação. Estávamos no estúdio e você pareceu bem feliz, e depois saiu para aquele pub… — George hesitou, ainda mais depois que Yoongi virou um pouco mais o rosto, desta vez com os olhos fundos e negros como se demonstrasse incômodo por ter os pensamentos interrompidos por aquele assunto trivial e desnecessário — Digo, será que não aconteceu nada lá dentro? Ou lá fora, tanto faz, vai que você sofreu um acidente como o daquela garota há uns três anos…
— Veio aqui pra encher meu ouvido de merda, George? — ele se virou completamente, cessando os movimentos no copo — Se já acabou, pode sair.
O garoto piscou os olhos algumas vezes e se aprumou imediatamente para sair pela porta da frente. Sua mente estava aturdida, tentando juntar as peças e se perguntar o que exatamente havia dito de errado, mas não valia a pena quando não estava acontecendo só com ele. Se Yoongi antes era detestável, agora ele havia se tornado insuportável. Uma provação em proporções bíblicas.
Ao fechar a porta, George escutou o barulho do vidro se partindo. Ele engoliu em seco e andou rápido até a entrada, sentindo de repente uma terrível necessidade de sair dali. A energia daquela casa andava cada vez mais pesada, e por mais que tentasse ignorar isso, não conseguia deixar de sentir.
O céu havia se tornado cinza como rocha. Yoongi encarou os cacos petrificados, bufando como um touro, vendo a fúria se alastrar de perto em seu peito. Revirou os olhos em busca dos remédios, dos vários remédios, pílulas que o dopariam e não o fariam pensar que tudo estava conectado. Que toda aquela odiosa sensação de medo e morte que sentiu naquele dia fora real. Se as sensações foram reais, então tudo o mais também foi. E isso não era possível, não podia ser…
Ele sentiu a corrente de frio rígida novamente e virou-se em sobressalto. Não existia absolutamente nada ao redor, nenhum movimento escondido da mais fina folha de uma das flores de algum vaso que George insistia em trazer – como presente da equipe. O único som que se ouvia era de sua respiração, e aquele outro ruído que se deslocava pelas paredes, pela sua cabeça, que atravessava seus poros como vento, arrepiando-o por inteiro. Aquele som alto e constante, que durava segundos a fio, mas que era o suficiente para que o desespero surgisse novamente à sua frente: os batimentos. Tum. Tum. Tum. Tum. O som de um coração fraco, mesmo que o dele estivesse esmurrando seu peito.
E então sumiu. Yoongi engoliu em seco, balançando a cabeça com força para se livrar da sensação fria e louca que o impedia de contar a qualquer um dos médicos. Ele não achava que ouvir barulhos desconexos e imaginários o ajudariam a ganhar a confiança de algum profissional, por mais cheques que assinasse.
Aquilo tinha que acabar. Ele não era louco e precisava provar isso. Primeiro para si mesmo, depois para os outros.
Se os métodos tradicionais não estavam funcionando, ele precisava fazer diferente. Tinha de voltar e dar ouvidos às vozes loucas e visões irracionais de uma noite de bebedeira. Odiou cada segundo de permissão que concedeu à sua mente de reviver toda aquela conversa, toda a sensação que ainda arrepiava sua pele e principalmente o ponto alto de toda a sua indignação.
Ela. Tudo começou com ela.
Furioso, ele se afastou dos cacos e puxou um casaco no cabideiro, junto com as chaves do Audi jogadas ao lado da porta. Calçou os sapatos e virou-se para a entrada, mas travou no mesmo lugar. Sua nuca emitiu um sinal de terror que prenderam suas pernas ao chão e o frio retornou como uma redoma em volta de si. De repente, a noite parecia ter chegado mais cedo e com ela a escuridão mais profunda e tenebrosa, vazia e opaca, oferecendo apenas o medo, aquele mesmo medo, e todo o frio cruel que gelava sua espinha como a morte.
Morte…
Ele piscou e tudo sumiu. As janelas emitiam toda a luz do dia e o tempo avisava que iria chover, assim como as chaves em uma mão e a outra à postos na fechadura, os pés aparvalhados nos sapatos e os cacos de vidro parados no mesmo lugar. Tudo exatamente como estava há um segundo atrás. Como se o momento fatal e sombrio não tivesse existido.
Ele vasculhou os bolsos e encontrou o pequeno recipiente das pílulas. Engoliu duas de uma vez, abrindo a porta em seguida, trincando os dentes e sentindo ódio da própria mente. Ele não era louco. Só estava dando uma chance para que a loucura se explicasse e então o deixasse em paz.
Ele iria em busca dessa tranquilidade espiritual, pois se tratava dele. Saiu para fora decidido, fechando o acesso atrás de si, caminhando a passos largos para o estacionamento.
Se prestasse atenção aos detalhes, veria que a luz do corredor batia forte contra seu rosto assim que saiu para ele. E, antes que partisse, uma sombra estreita e indistinta ia ficando para trás na soleira da porta.

Mais fundo
Sim, acho que estou indo mais fundo
Eu continuo perdendo o foco
Não, me solte
Deixe os meus próprios pés me guiarem
Eu mesmo vou correr e mergulhar
No meu mais profundo interior
Eu me encontrei


Yoongi não sabia que rumo sua vida estava tomando.
A verdade era essa.
Ele não sabia explicar o que tinha acontecido – o que andava acontecendo – nem mesmo se existia explicação, mas ele queria entender. Ele precisava.
Não aguentava mais toda a angústia que invadia seu peito ao compreender que ele não ouvia nada, nenhuma música, nenhum som, apenas aquela maldita batida. Aquela em que se alastrava por sua mente todas as vezes em que imergia para seus pensamentos obscuros e sôfregos. Ele constantemente a ouvia e da mesma forma que sempre estava evidente em sua mente, ele tinha certeza de apenas uma coisa. Tudo o que havia sido importante para ele um dia, tinha se reduzido ao nada.
Droga. Por que ele sentia que nada se encaixaria nem mesmo se tentasse?
Ele fechou os olhos brevemente, deixando que seus dedos caminhassem do volante que segurava, em direção aos botões do rádio ao notar que logo se aproximava da cidade que sua ex-namorada costumava morar. Girou os mesmos, aumentando o volume do rádio, mas não houve mudanças. Não houve nenhum barulho.
A frustração vinha à tona. Aquilo não podia mesmo estar acontecendo.
Quando colocou os pés para fora do carro, podendo sentir todo o peso que apoiava suas costas, pôde avistar o apartamento no térreo que costumava morar. Já tinha tempo desde que ele não seguia para Sokcho, não só para ver sua, na época, namorada, mas até mesmo para visitar o local. Ele não se lembrava muito bem de como costumavam ser seus arredores, apenas de como a arquitetura do lugar não era tão elegante como os prédios que recheavam Seul e que, de fato, nunca gostou muito de visitar o apartamento de .
Ele sempre achou que aquele tipo de lugar não merecia sua presença.
Respirou fundo, colocando uma das mãos no bolso da calça de moletom enquanto ainda estava parado do lado de fora do veículo, observando vagarosamente a fachada do apartamento da mulher, em como ele parecia estar mais antigo e ainda menos convidativo do que costumava ser.
Com isso, balançou a cabeça, deixando que todas aquelas lembranças meticulosas e desnecessárias fossem para bem longe dali, fazendo com que o desespero anterior voltasse a tomar conta de si. Yoongi caminhou a passos pesados e rápidos em direção a entrada, subindo as pequenas escadas e sem pensar muito, suas mãos encontraram a porta amadeirada, iniciando batidas incessantes.
! — iniciou, exaltado. Deixou que seus olhos vagassem ao redor, como se a qualquer momento ela fosse aparecer. — , me deixe entrar! O que foi que você fez comigo?! Eu preciso de uma explicação!
Yoongi dizia alto, quase como se estivesse gritando, mesmo não querendo chamar a atenção por ali e não era como se aquilo realmente estivesse o preocupando no momento. Ele sentia seu coração bater rapidamente e a veia de seu pescoço pulsar com todo o nervosismo que emanava de seu corpo. Ele não sabia o que fazer. Não sabia nem mesmo se estar ali seria o certo, mas por que ela não o atendia? Por que ela não abria a maldita porta para que Yoongi pudesse entender o que raios havia acontecido com ele?
, merda! — gritou, deixando uma batida mais forte na porta. — Abre essa porta!
Ele colocou os dedos nas têmporas, as massageando como se aquilo fosse amenizar tudo o que acontecia. Se ninguém o atendesse nos próximos dois minutos, ele seria capaz de arrombar aquela porta.
Posicionou a mão em punho mais uma vez, preparando-se para usar de toda a sua força para insistir, quando um barulho de trinco soou alto do outro lado. A porta se abriu pela metade e os olhos baixos e alertas surgiram pela fresta.
Ele não sabia se era realmente ela. Já estava escuro e a iluminação era escassa naquele fim de mundo. Ele não viu luz alguma vir do apartamento e por um momento se perguntou se ela ainda morava no mesmo lugar.
A resposta veio com a porta se abrindo novamente, desta vez revelando a garota que ele procurava.
— Yoongi? — ela perguntou, mostrando apenas o rosto — O que faz aqui?
Ele não soube o que responder de imediato. Ela não havia mudado absolutamente nada. Talvez algum emprego a tenha deixado com a expressão cansada e exaurida, mostrando círculos abaixo dos olhos que a deixavam mais velha, mas fora tais atributos do tempo, ela era a mesma de três anos atrás.
— Precisamos conversar — ele disse quando recuperou a voz e afastou as lembranças, sugerindo um passo à frente, que foi impedido por ela, que saiu primeiro, fechando a porta atrás de si.
Foi apenas por um segundo, e ele não soube como reparou em tal coisa. sempre fora alegre e espontânea, otimista com o mundo e a vida até demais – de uma maneira que o irritava – e ele achou que estava louco a princípio, mas realmente não via sequer um feixe de luz no apartamento. Também não foi capaz de ver aquele mesmo sofá amarelo e horrendo que ela tanto gostava, bem encostado à porta, e se ele não estava mais ali, dificilmente os outros também estariam. A pintura lascada ao lado da porta era característica do prédio inteiro, mas a do seu lado da porta era sempre mantida o mais apresentável possível.
E tinha o cheiro. Uma corrente de vento trouxe o aroma de várias coisas distintas que ele não conseguia ligar com a garota que havia se relacionado; uma mistura de carne estragada com roupas mofadas. A junção de todas essas coisas o deixou mudo novamente.
Em um instante raro, ele se perguntou o quanto exatamente havia feito mal para . Sabia que ela certamente o detestava pela forma como terminou tudo – por telefone, em um dia chuvoso, logo após ter conseguido assinar com a primeira agência. Ele não se arrependia de nada, ainda mais depois de todo o sucesso que alcançou. Nunca teria sido capaz de subir tão alto se a tivesse deixado mexer com sua mente e seus princípios, se tivesse seguido seu conselho de dar espaço a outros. Foi a melhor decisão que havia tomado. Ela havia ficado aborrecida pelas mensagens que enviou em seguida, mas depois, não teve qualquer notícia da mulher.
O que não era de todo ruim assim na época, pensou consigo mesmo.
— O que você quer? — ela perguntou novamente, cruzando os braços.
— Quero que me diga o que você fez — ele despejou, controlando a hesitação que ainda gritava a plenos pulmões em sua cabeça de que ele pareceria um maluco de qualquer forma — Aqui! — apontou para a cabeça — O que você fez comigo aqui?
Ela abriu a boca para responder e então tornou a fechá-la. Observou Yoongi como se estivesse totalmente fora da casinha, porém racional – como sempre era. Ou estava por enquanto.
— Não sei do que está falan…
— Corta essa, ! — gritou — Vai perder a pose de boazinha agora? Eu estou totalmente fodido e tenho certeza que tem um dedo seu nessa história! O que foi, não consegue superar o nosso fim? Passou a mexer com essas idiotices de médiuns para conseguir se vingar de mim? Olha só pra você…
Ele soltou uma risada seca, se sentindo ainda mais indignado do que antes. Não queria soar tão acusatório porque isso apenas afastaria as respostas verdadeiras, mas ele não se contentou. Uma raiva dissimulada tomou conta de si ao olhá-la depois de tanto tempo. Como se ela gritasse para ele com aquele par de olhos diferentes: está vendo o que fez comigo?
— Ainda não entendi o que você quer — respondeu ela pacientemente, com a expressão impassível — Minha resposta continua a mesma: não sei do que está falando. Não sei nem mais quem você é. Não que já não soubesse antes…
— Voltamos à era moralista de ferro? Não me fode, ! — ele grunhiu — Posso estar com tanto sonífero no corpo que seriam capazes de apagar Seul inteira, mas sei que não estou louco. Você tem algo a ver com o meu problema, você fez…
— Claro que tenho a ver com os seus problemas. Voltamos ao passado, Yoongi? — ela zombou, vendo-o se calar — Se tem algum problema com a sua cabeça que me mantém nela, o problema é realmente comigo? Ou a sua maldita consciência resolveu finalmente aparecer?
Ele trincou os dentes, olhando-a com raiva, sabendo que preferia morrer a concordar com tais palavras. Yoongi não se arrependia de nada. Mesmo que, estando perto dela naquele momento e recebendo o choque de realidade de como estava agora, sentisse o peito trêmulo e confuso. Como se tivesse que se desculpar, como uma emoção conduzida à força ao arrependimento por todo mal que havia lhe causado.
Mas ele nada disse. Preferia pensar que os efeitos colaterais das pílulas eram mais persuasivos do que imaginou, mas que ele lutaria contra todos eles.
— Você… — ele apontou um dedo para o rosto dela, que não se intimidou nem por um segundo e aquilo o desarmou por completo. Em um chacoalhar da mente, ele se tocou do caminho que percorreu até ali e que a ideia de fazer isso foi mais do que péssima. Tudo isso foi uma bobagem, céus, como cheguei nesse ponto…
Ele se afastou lentamente, dando uma última olhada nela antes de dar as costas e seguir novamente para o pátio abaixo, odiando as bochechas queimadas de constrangimento pela atitude impensada. Como essa garota poderia ter algo a ver com tudo isso? Fala sério…
— Ei, Yoongi — ela gritou atrás dele, que se virou imediatamente para a voz — Deveria ter aproveitado melhor a sua consciência.
Ela ergueu o canto dos lábios em um sorriso torto e entrou de volta para casa. Ele riu fraco e resmungou um palavrão enquanto trotava para o carro, dando uma última olhada pelo retrovisor antes de dar a partida.
A única coisa que conseguiu perceber antes de ligar a ignição e arrancar com o carro foi o vulto que apareceu em seu campo de visão no espelho, o fazendo virar o rosto rapidamente para trás, notando que não havia nada, nem ninguém dentro do veículo.
Um medo pavoroso e irracional o fez apanhar as pílulas e jogá-las pela janela, derrapando os pneus na vegetação o mais rápido possível.

Se isso não consegue mais ressoar
Não faz mais o meu coração vibrar
Então isso pode ser considerado a minha primeira morte
Mas e se isso estiver acontecendo agora mesmo?
Agora mesmo


O clima de New York estava abafado.
O cubículo do camarim era bem ventilado, apesar de ele sentir as pontas úmidas dos dedos da maquiadora, que finalizava a última camada de pintura antes de sua vez no palco. Ele encarava o espelho cravejado de lâmpadas nas laterais, satisfeito com sua aparência moldada a produtos estéticos, mas sem conseguir esboçar o menor dos sorrisos. Sua mente era um pano de fundo negro e espesso, fazendo com que ficasse parado e imóvel como uma escultura, demonstrando vida apenas em um mero piscar de olhos.
A concentração na qual havia se especializado a fim de afogar o desespero que o espreitava.
Ele mal percebeu quando os dedos da mulher se afastaram e a porta atrás de si abriu, deixando entrar um barulho confuso e distante do público em algum lugar lá fora.
James olhou para seu reflexo imóvel do rapaz no espelho e em seguida para a profissional encolhida ao seu lado. Inclinou a cabeça em um sinal claro de retirada e ela não hesitou em obedecer. Os nós dos dedos do homem estavam pálidos e gelados — típico de quando tentava buscar uma solução de forma imediata.
— Pela última vez, Yoongi… — disse ele, quase em um sussurro, pelo cansaço da repetição do mesmo assunto — Você não pode fazer isso. Não precisa…
— Achei que tinha dito pra não ser um pé no saco quando ultrapassamos mil quilômetros, James — interrompeu Yoongi, agora parecendo mais real com a têmpora dilatada — Infelizmente ainda escuto a droga da sua voz.
— Isso está passando dos limites, Yoongi — o homem insistiu, agora chegando ao seu lado — Como vai se apresentar na frente de milhares de pessoas sem conseguir escutar? Sem ficar ciente quando algum erro acontecer? Sem estar preparado para…
— Estou preparado pro que precisar. Agora tenho certeza de que aqui não é o lugar onde você deveria estar agora
— Mas…
— Ainda posso te demitir — ele ergueu um dedo para o reflexo do homem no espelho, sem virar o rosto — Lembre-se disso. Eu sou Min Yoongi e vou mostrar pra toda essa gente que não atravessei a porra de um oceano pra nada. Que se foda toda a baderna no meu cérebro, é exatamente isso que vou fazer.
James engoliu em seco, encarando aqueles olhos frios e terríveis que haviam se transformado em algo gélido e tenebroso nos últimos tempos. Não dava para encará-lo de frente por tanto tempo. Depois que se livrou dos remédios, sua condição havia piorado drasticamente até que entrasse no avião particular e seguisse para o objetivo almejado.
Ele, por fim, revirou os olhos e seguiu para fora, pretendendo apenas rezar para que as coisas não dessem tão errado como estavam fadadas a dar.
Ao fechar a porta, Yoongi encarou sua imagem mais uma vez, repassando a música novamente em sua cabeça. Ele respirou fundo, apoiando os cotovelos na penteadeira, olhando fixamente para as próprias pupilas como se pudesse enxergar a resposta através delas. A música ia sumindo aos poucos, assim como o ritmo, e nenhum maldito narcótico poderia ser culpado daquilo. O canto de seus olhos estavam bem, assim como as pálpebras estáticas e ele realmente não parecia uma pessoa louca, mesmo que a maquiadora tenha tido trabalho suficiente para disfarçar as olheiras gritantes que tomavam as bolsas abaixo de seus olhos como se parecesse realmente atribulado.
Ele pediu – para nenhuma divindade específica, ou para todas que estivessem ouvindo – para que se lembrasse. Para que ouvisse, pelo menos aquela noite. Só aquela noite. Depois dela, sua realização pessoal valeria bem mais do que doenças desconhecidas e surtos psicóticos extremos, pelo menos por um tempo.
Fechou os olhos e trouxe a melodia à mente. Cada detalhe de como se lembrava, cada frase da letra, e tentou encaixar os dois em um plano só. Tentou entoar, mas ainda não ouvia. Trincou os dentes ao tentar mais uma vez, porém sem sucesso. Afundou a cabeça entre os cotovelos e controlou a respiração, controlou os pensamentos malignos que só o fariam afundar naquele momento importante e tentou captar todo o otimismo de que precisava, porque tudo aquilo se tratava de si mesmo.
Abriu os olhos e não estava mais sozinho.
Por trás de seu reflexo, ele a viu de novo.
Girou as costas em um sobressalto, de repente amedrontado de que ela sumisse de repente. Não aconteceu. Ela estava parada bem ali, do mesmo jeito que aquela noite, com os pés descalços e o sorriso desdenhoso. Yoongi não conseguia organizar seus pensamentos com a imagem da mulher bem na sua frente. Ele tentou piedosamente se lembrar se havia lhe convidado, o que de fato, não o faria mesmo estando inteiramente dopado dos medicamentos. Nem mesmo soube dizer em qual momento ela havia adentrado o cômodo sem que ele percebesse.
Ele só conseguia continuar ali, estático em sua presença.
— 05 de Julho. — iniciou, sua voz ecoando por todo o camarim e aquilo fez com que ele sentisse um arrepio surreal percorrer por toda sua espinha. — Há três anos, neste mesmo dia. Você consegue se lembrar de algo, Yoongi?
— Do que você está falando? Não acha que já é loucura o suficiente você estar aqui sem ser convidada?
Perguntou, como se aquilo a fizesse entender que algo estava errado, mas nenhuma daquelas palavras a abalou. continuou parada e a única coisa que se mostrou diferente foi o sorriso contido no canto dos lábios.
— Você continuou exatamente da mesma forma. Não houve um pingo de mudança, ou melhor, você sequer pensou nisso. — inclinou a cabeça levemente para o lado, ainda o analisando. — E não é como se você costumasse pensar sobre seus atos antes de cometê-los. — deixou um suspiro vagaroso escapar de seus lábios, o que só fez com que Yoongi continuasse sem palavras. — Por que você tornou tudo tão difícil?
— Você ficou louca? Que droga é essa, ? — questionou, tentando não demonstrar que suas mãos já começavam a ficar trêmulas. Ele observou como ela o examinava meticulosamente de onde estava, parecia esperar alguma reação diferente da demonstrada. Aquilo fez com que ele descesse seus olhos para suas roupas, a forma como ela parecia intocável e precisamente como o dia em que a viu após o pub. Por que ela parecia tão diferente da que encontrou no apartamento?
— Não era difícil perceber o homem difícil e complicado que você era, qualquer um ao bater os olhos em você e analisar suas atitudes conseguia perceber que você, com toda certeza, tinha algum problema não solucionado. — sussurrou, se aproximando do rapaz lentamente. Ele ainda a olhava. — E ainda assim, você nunca procurou melhorar. Nem mesmo por um segundo. Todas as suas ações eram em prol de seu egoísmo, deixando evidente a forma com que suas ambições eram as únicas a importarem. — deu mais um passo para frente. — Você nem mesmo se importava com seu bem estar, Yoongi, a única coisa que queria e almejava era o sucesso. Era em ser o melhor, era conquistar tudo o que pudesse, sem se importar com o que isso custaria. — Yoongi podia perceber que ela caminhava em sua direção como se não tivesse pressa e como se aquilo não importasse para ela, nem mesmo para ele. Ele queria bufar, xingar e apontar dizendo o quão alucinada ela estava sendo naquele instante, mas algo em sua íris negra o fazia pensar o contrário. Os olhos da mulher transmitiam puro pavor. — E você realmente não se importou, olha onde chegamos.
— E onde é que chegamos, ?
Ela deixou um sorriso sem emoção transparecer em seus lábios, assim que se aproximou o suficiente para que ele pudesse observá-la com um pouco mais de nitidez.
— Ao dia 05 de Julho. Você consegue se lembrar agora?
Yoongi sentiu a respiração trancar com a proximidade e com o tom de sua pergunta, o fazendo se questionar se algo de importante deveria ter acontecido naquele dia. Ele não soube ao certo dizer do que se tratava já que seus pensamentos pareciam percorrer uma velocidade indecifrável em sua mente, vasculhando por todos os cantos o que raios havia acontecido naquele dia.
Ele permaneceu imóvel, ainda a encarando e por uma pequena fração de segundo, algo brilhou no fundo de sua obscura consciência.
— Nós terminamos naquele dia, não foi? É sobre isso? Todo esse teatrinho ridículo é sobre a droga de um término de relacionamento, ? — perguntou, sentindo as veias de seus pescoço sobressaltarem com o nervosismo.
Ela continuou o encarando, como se algo estivesse faltando em sua fala, mas ele não prosseguiu. Yoongi deixou os olhos caírem sobre ela mais uma vez.
— Nunca importou para você, Yoongi. Você não se lembra porque nunca teve relevância, nunca significou algo. Você se lembra de ter terminado em uma ligação, mas e depois? Você se lembra do que aconteceu depois das mensagens e chamadas perdidas? — aproximou o rosto do dele, deixando que seus olhos encarassem a profundidade dos de Yoongi. — Se lembra dos jornais ou noticiários? Ou isso era irrelevante demais para você?
O que é que você quer? — perguntou em um fio de voz, se sentindo levemente incomodado com o olhar pesado da mulher sobre o seu.
— Eu quero que você se lembre da minha morte.
E antes que ele pudesse pensar ou dizer qualquer outra coisa que evidenciasse o contrário do que ela havia dito, levou uma de suas mãos em direção ao rosto do homem à sua frente, o apalpando levemente, fazendo com que Yoongi fechasse seus olhos em questão de segundos imergindo em uma escuridão.

Ele não a atendia mais.
Um relâmpago atravessou o céu acima de sua cabeça com um estrondo violento, balançando as nuvens para que a chuva torrencial enfim caísse sem limitações. Ela andava pela calçada movimentada de Gangnam, agora tomada pela correria de pedestres que tentavam a todo custo escapar da tempestade. Seus ombros foram açoitados de ambos os lados enquanto ela segurava o celular com toda força, tentando trazer sua mente para o desespero coletivo mas se vendo incapaz de fazer isso após as últimas palavras proferidas pelo homem que amava do outro lado da linha.
O fim anunciado daquele jeito ainda não havia sido digerido. Ela nem poderia dizer que seu coração estava em pedaços porque ele ainda não havia entendido o que acabara de acontecer.
Ela ultrapassou as pessoas com afinco, discando o número novamente, tendo o mesmo resultado de antes. odiava o fato de não saber onde ele estava, muito menos onde estaria, ela só se via incapaz de caminhar para casa com aquelas palavras duras e odiosas martelando em sua mente.
— Vê se acorda, — ele disse com sua típica risada irônica, o tom que o deixava metros acima de qualquer um — Não vê que ficar com você só atrasa a minha subida? Gostaria de dizer que não é nada pessoal, mas sabe que sou bem franco: eu não preciso de você. Espero que entenda e não comece com o papo ridículo de injustiça.
Seu peito doeu com o tom das palavras, que a atingiram como uma faca. Tudo pareceu girar à medida que ela deixava que suas lágrimas se misturassem com a chuva. Não era raiva, parecia um descontentamento. Um desrespeito sem tamanho, mesmo que nunca esperasse palavras bonitas do cara que conhecia tão bem, mas aquilo ultrapassava tudo que já imaginou algum dia partir de Min Yoongi.
Ela pisou no meio fio. Seus ombros balançavam enquanto ela encarava a faixa disforme pelos olhos afogados em lágrimas. A chuva era curva pelo vento, e os carros passavam em alta velocidade por ela enquanto só desejava atravessá-la de uma vez, sair daquele lugar, se livrar do barulho alto e alegre do pub logo atrás de suas costas, amaldiçoando quem quer que estivesse sendo feliz naquele momento tão desolado de sua vida. Ela não podia aceitar que as últimas palavras pertenceriam a ele, não sem que ela fizesse uma última tentativa de abrir seus olhos, tudo menos aquilo…
O movimento do tráfego cessou e ela não pensou em mais nada. De cabeça baixa, andou por sobre o asfalto pintado, sentindo um zumbido nos ouvidos que era caracterizado por um choro intenso e sufocado. Ela não via mais nada, a não ser aquelas palavras. Palavras essas marcadas a ferro em seu cérebro, junto com a entonação fria e dolorosa.
Ela viu a luz tarde demais. A lembrança frenética do discurso ao telefone a impediu também de ouvir. A buzina forte soou bem ao lado de seu rosto apenas no exato momento do choque impetuoso, que lançou seu corpo como uma boneca de pano há metros incontáveis, arrebentando seus ossos como galhos. O sangue jorrou pela rua molhada, sendo varrido pela chuva e misturando-se à entrada do esgoto ao meio fio. Um vazio fosco tomou conta de sua mente. A luz do farol era a única coisa que brilhava em seus olhos agora, junto com a luz vermelha do semáforo que piscava acima do corpo que soltava seu último suspiro de vida.
Antes de perder o foco, ela viu o rosto dele e em como sua feição era tranquila ao dizer o que havia dito. E um desejo poderoso de justiça a fez deixar o corpo arruinado de bom grado, sabendo que ele pagaria, não importasse o tempo que levaria.
Ele conheceria o karma.

Ele sentiu seu corpo trêmulo e gélido, fazendo com que seus olhos abrissem de forma repentina, podendo avistar a feição de ainda a centímetros de si. Yoongi não entendia, sua cabeça transbordava confusão deixando nítido o caos que se impregnava ali. O que havia acontecido? O que era tudo aquilo? — Você está… Morta? O que é isso?! — sua garganta arranhou ao dizer as palavras. Ela continuou o olhando, ainda com aquele sorriso no canto dos lábios. Ele só conseguia sentir o pavor se alastrar por todo seu corpo. — Não é possível! Você vai me dizer o que é que está acontecendo agora? Eu vi você, bem perceptível na minha frente. Fui ao seu apartamento, falei com você. Pare com essa brincadeira ridícula, eu tenho mais o que fazer, . — disse sentindo sua respiração falhar, pronto para seguir para longe dali, mas suas pernas não o obedeciam. Yoongi não conseguia se mover, quase como se estivesse paralisado, mas pelo medo, o pânico que tomava conta de cada pedaço de si.
Ela sorriu um pouco mais, fazendo com que Yoongi pudesse ouvir seu coração bater mais rápido, mas aquilo era estranho. Aquele som ecoava por sua mente, tão alto e claro, ele podia ouvir.
Tum, tum, tum, tum.
Chegava a vibrar. Yoongi ouvia mais do que tudo, tão nítido.
Por que era tão alto?
— E é por isso que você está aqui hoje. — a mulher mencionou, o olhando meticulosamente. — Por todo seu egocentrismo, seu individualismo e sua arrogância. Você ainda não entendeu?
— Entendi o que? — respondeu. Naquele ponto, ele olhava ao redor procurando saber de onde vinha aquele barulho tão evidente. sabia o que estava acontecendo e aquilo só a fazia se sentir completa por saber que tudo estava se encaixando. Exatamente como deveria ser.
— Que você foi o único responsável por acabar consigo mesmo. — disse por fim, captando toda a atenção de Yoongi. Ele não piscou, nem mesmo abriu a boca para responder. O rosto da mulher ainda o observava. — Você teve tudo em suas mãos, podia ter feito tudo da melhor forma e ser uma pessoa melhor. Você podia. Nós selamos um acordo, se lembra? — O que…
— Quando você atravessou aquele pub, tão bêbado que ao menos conseguia enxergar os próprios passos, eu te encontrei. Eu lhe dei uma chance para melhorar, uma chance para mudar o rumo da sua vida, mas Yoongi… — ela balançou a cabeça veemente. — Você não se importou. Não fez o menor esforço de pelo menos tentar…
— Não. Não… O que você ‘tá falando…
— 7 dias. Foi o tempo que pensei que você, talvez, pudesse apresentar alguma mudança. Quando selamos o acordo, realmente acreditei em alguma parte de si, porque eu sabia da sua resposta naquele dia. — agora estava inexpressiva. — Não era para ser assim, Yoongi, mas foi você quem escolheu dessa forma.
— Eu não escolhi nada. Pare com isso, pare de entrar na minha mente dessa forma!
O barulho dos batimentos voltou mais uma vez. Mais alto, mais manifesto. Yoongi fechou os olhos com força, dizendo para si mesmo que aquilo tudo tinha que acabar. Ele não aguentava mais. se aproximou pela última vez, deixando que seus olhos se fixassem de forma tão profunda aos dele, agora avermelhados e marejados, buscando respostas nos seus, buscando uma solução.
— Sua boca respondeu vida, mas como eu imaginava, seu coração o levou à morte. — soprou em direção a ele. — E ninguém mais pode salvá-lo agora. — Eu não posso… Isso não pode ser real… — sussurrou, procurando forças para continuar.
Ele sentia seu corpo anestesiado, como se não estivesse ali, mas a única coisa que conseguia sentir percorrer cada pequeno pedaço de si, eram as batidas do coração. Os ruídos intrínsecos que deslizavam sobre todo o seu corpo.
— O que é isso, Yoongi? — ela perguntou em voz suave, retórica.
— Eu não sei, eu… — a garganta dele já arranhava suas cordas vocais. De repente, ele já não conseguia respirar direito — Parece que… Parece que eu estou…
— Morrendo? — ela sorriu — Ah sim, você está morrendo agora. Sua consciência era o seu último resquício de vida, e seu extermínio está acontecendo agora mesmo — suspirou.
Ele arregalou os olhos e pontos pretos e brancos brilhavam à sua frente. Ela se aproximou bem próximo de seu nariz e sussurrou:
— Na verdade, você já morreu faz tempo. — O que? — a pergunta saiu em um fio de voz. — Não pode ser verdade, eu.. Eu sinto meu coração bater, não posso estar morto...
deixou um pequeno sorriso ressurgir, quase cômico em seus lábios com os pensamentos do rapaz à sua frente.
— Mas e se isso estiver acontecendo agora mesmo?
Ela deixou escapar uma risada irônica – a mesma que a dele – e os pontos negros se fundiram diante de si, mergulhando-o de vez na escuridão.

Afundando lentamente, como em um transe, não, não não
Tento lutar, mas é como se estivesse no fundo do poço, não, não
Cada momento se torna uma eternidade, sim, sim, sim
Filme isso agora, filme isso agora
Você me ouve? Sim


Os corredores do centro médico central de Seul foram tomados por profissionais que estavam sendo muito bem pagos para impedirem aquilo de acontecer.
Para que aquele barulho agudo e constante não acontecesse.
Ao abrir a porta com um solavanco, eles viram o corpo dele, desacordado há mais de 60 dias, ainda imóvel como uma estátua. Ao menos era o que parecia. Até notarem os músculos retesados sobre a maca, os dedos brancos ao tentarem se mexer e os olhos abertos em puro pânico, seu coração já terminava a corrida incessante contra a morte, persistindo nos batimentos exaltados para que o sangue continuasse circulando. Yoongi o obrigava a continuar, exigiu que lutasse, mas ele já havia perdido há muito. Ele precisava de ajuda para continuar, mas não havia cultivado amigos o suficiente durante seus melhores dias para isso.
Quando cessou de uma vez por todas, ele se lembrou da segunda chance desperdiçada e das últimas palavras que disse a ela no telefone. Que quanto mais altos eram os degraus que escalava, maior a sombra atrás de si crescia e o engolia.
Percebeu, afinal, que nem na morte era possível fugir do karma.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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