02. Just The Way You Are

Última atualização: 02/09/2015

Capítulo Único

- Você é linda, – eu disse em um sussurro, vendo minha amiga se encarando no espelho como se visse a pintura mais triste e avassaladora de todas.
- Não, não sou – respondeu, ainda concentrada.
Eu sabia que a pior parte viria logo a seguir, quando ela subisse na balança há poucos metros dos seus pés. A sala branca em quadrado tinha apenas um espelho enorme, que ficava no centro. De frente ao espelho tinha uma balança moderninha que frequentemente se pesava.
Era a sala terapêutica. Onde ela dizia combater seus piores demônios.
Quem visse o olhar aterrorizado dela olhando para o próprio corpo seminu neste exato momento, não diria o contrário.
- , não precisa disso. São só algumas gramas, não vai fazer diferença naquela roupa que deve ser dois números maiores que o seu – tentei.
Ela me olhou acusatória, como se eu acabasse de xingar sua mãe.
Ela tinha olhos tão lindos...
- Não são só algumas gramas, . Essas gramas fazem diferença, porque compõe o quilo. Elas me compõem. E se eu não tiver as perdido depois de tanto tempo trabalhando por isso, do que vai adiantar meu esforço para o desfile? Como poderei ser a melhor se não fizer tudo direito e deixar excessos esparramados? – respondeu calmamente. Seu tom dava a impressão que ela estivesse ensinando matemática a uma criancinha de nove anos pela quinta vez, estando prestes a dar uma crise de falta de paciência.
Mas sua feição pálida demonstrava desespero, também. E medo. Era uma beleza delicada e sentimental, que qualquer artista gostaria de passar da sua tela para o telespectador.
Chegou o momento em que ela colocaria os dois pés na balança e respiraria fundo, para ver seu peso exato. Segurei o ar e aguardei.
Ela se mexeu graciosamente e subiu. Fechou os olhos, respirou fundo e antes de fazer qualquer encarou seu próprio rosto no espelho.
Eu daria tudo para saber o que ela estava pensando neste exato momento, mas daria até o que eu não tinha para afastar qualquer pensamento ruim que passasse por sua cabeça.
- Fica tranquila, . Vai dar tudo certo. – Minhas palavras foram calmas e cheias de segurança, na esperança de confortá-la.
abriu os olhos e olhou diretamente para os números entre seus calcanhares que indicavam seu peso atual.
Não deu tudo certo.
Ela não ficou tranquila.
O resultado foi pior do que esperávamos.

xxx


Manhattan, 08h37 da Manhã, Segunda-Feira.
- Clov, eu realmente preciso do vestido de gala antes de sexta. Eu sei que a Victoria Secrets tem modelos especiais pós-festa para as modelos, mas eu não quero saber. Preciso de algo novo, glamouroso. Preciso de mais influências pela beleza, está me ouvindo? – falei em um tom sério para o estilista do outro lado da linha enquanto caminhava inquieta pela minha sala.
- Sim, senhora. Mas não sei se vou terminar todos os detalhes a tempo...
- Como não? Não tenho mais tempo. Estamos em Nova York, Clov. Segundo os romances, a vida aqui não para. Por que a sua deve parar? E, por consequência, por que a minha deve parar?
Ouvi um suspiro tímido pelo telefone e a compreensão passou pelo meu corpo. Mas eu não podia ceder. Não era assim que as coisas funcionavam.
- O que pediu é especial e trabalhoso. Tenho outros compromissos – respondeu e eu quis rir desesperada.
- Eu também tenho. E me parece que mais um deles é ter que encontrar outro estilista.
Pelas paredes de vidro da minha sala, vi entrando todo atrapalhado na agência, passando por várias pessoas e dando olás simpáticos enquanto equilibrava um ou dois, três quadros.
Eu sabia que seu destino era minha sala e sorri afetada pela sua emergência diária.
- Entrego oito horas – seu tom era firme e decidido. – Ou então, pode me demitir e eu aceitarei dignamente.
Desliguei o celular e travei a tela, indo me sentar logo depois. estava há poucos metros de distância da minha porta e eu já podia sentir seu perfume.
Seu perfume e o cheiro de tinta óleo.
Tinta óleo.
Antes mesmo de terminar de entrar e fechar a porta eu já estava quase pulando em cima dele, como uma mãe muito brava.
- Você não fez isso – afirmei séria.
Ele arregalou os olhos e me olhou cheio de culpa. Seus cachos voaram para o seus olhos, deixando-o com a aparência de um adolescente delinquente.
- ... Deixa eu te explicar...
- Nada disso. – Funguei para sentir melhor o cheiro. – Você fez! – O olhei acusatória.
Logo ele deu uma risada sapeca e foi pendurar os quadros em uma das únicas paredes de firmes, de cimento, da minha sala. Eu juro, estava com tanta raiva que nem queria saber o motivo ou de explicações.
- Sua alergia pode ficar mais grave, pode ter danos sérios e... – Mas eu não tive como evitar descobrir e entender. Eu olhei os três quadros que ele havia trazido e perdi o fôlego.
Era normal sair das suas aulas extras de arte e do trabalho com quadros experimentais, de diversas culturas e que nunca eram comprados. Eu acabava comprando alguns, ganhando outros ou tendo minha sala redecorada por suas artes semanalmente, mensalmente.
Mas ele nunca havia feito algo como aquilo.
Vendo meu rosto em choque e tentando me reajustar, meu melhor amigo sorriu para mim e piscou. Ele parecia meio tímido e meio sapeca, mas eu não sabia exatamente como deveria reagir.
Meu coração pesou e minha respiração saiu enquanto eu olhava para o quadro de uma mulher tão bonita. Com traços iguais aos meus, olhos coloridos – azul, verde e laranja em cada uma, respectivamente -, nariz afiado e sobrancelhas em diversas expressões.
Era uma pessoa muito parecida fisicamente comigo, mas era outra pessoa. Era uma pessoa linda, que os olhos amavam o mundo e seu cabelo caía graciosamente pelos ombros.
- E aí? Gostou? – me analisou e sorriu, tirando a sua franja do rosto.
Olhei em volta pela sala, sem respostas. Me recompus meio confusa pela falta momentânea de postura. Era tudo tão acolhedor e preto e branco. Fotografias que eu tirava de lugares agraciados com uma boa arquitetura. Momentos congelados em um clique e depois jogados ao efeito preto-e-branco, onde ficavam ainda melhores.
Sofá quadrado, alinhado perfeitamente. Tapete em um retângulo peludo e os demais móveis seguindo o mesmo padrão, junto com as duas paredes de vidro cinza esfumado que faziam parte do meu pequeno cafofo.
E aqueles três quadros cheios de linhas, cores vivas – de tinta óleo – e formas encantadoras davam um jeito de desconcertar a decoração padrão da sala.
Seria algo esquisito se não mexesse tanto comigo.
- Terra para , Terra chamando ... – fez voz de capitão e procurou meu olhar.
- Desculpa. É... – Juntei as sobrancelhas e franzi a testa para voltar a ter o foco perdido. – Gostei. Estilo indiano?
- Com certeza! – Sorriu animado. – Foram os melhores. E eu queria achar alguém para decorar com pedrinhas na testa. Acho muito massa o que eles fazem, sem contar os tons de vermelho!
Sua voz era animada e inspirada. Me fez rir e voltar ao computador.
Mas aí eu lembrei o porquê que eu queria bater nele mais cedo...
- Você tem alergia à tinta óleo – lembrei ironicamente.
Ele fez uma carinha de desentendido e eu quis socar meu melhor amigo.
- Tenho? – A vontade de socar aumentou.
- Você tem. Teve crise? Foi para o hospital? – questionei impaciente.
- Ahn... Sim. Mas já tá tudo bem. Mesmo usando máscara e etc, eu já fui ao médico. – sorriu como um bom menino e se sentou na cadeira a frente da mesa do computador, de frente também à mim.
- Okay, assunto resolvido. Mas tem algo que eu quero te mostrar. – Fiz o login inicial no Mac e entrei na minha área de trabalho, indo direto para as pastas.
- Fotos suas?
- Não.
- Fotos de você?
- Também não. – Continuei procurando a pasta ao doce som de Lana Del Rey, Videogames, que tocava baixo ao meu lado. – Aqui.
Quando a abri, várias imagens do projeto do Grande Desfile apareceram. Detalhes do show, arquitetura, das roupas, do palco e mais. Muito mais.
estava olhando curioso para a grande tela, meio que encantado.
- Eu sei. É um máximo. – Sorri de canto.
Ele me olhou como se eu tivesse xingado a mãe dele.
- Um máximo? Um máximo?? Isso que você fez tem um nome! Chama-se eufemismo!
Me limitei a dar uma risadinha.
- Qual é, . – A música acabou e ele pareceu perceber, quando me olhou entediado.
Ele franziu o nariz, olhou para a tela novamente, todo expressivo com sempre e adorou o que viu.
- Isso vai ser enorme. Gigante. Glamouroso.
- E eu vou estar lá.
- E você vai estar lá. – Sorrimos.
- E você também.
- Ah, eu não sei bem não... – Deu um impulso com o pé no chão e empurrou seu corpo e a cadeira de rodinhas para longe, girando pelo centro da minha sala. – Sabe como é o mercado da arte...
- E você sabe como a tecnologia de hoje funciona – retruquei, novamente séria. – Você pode muito bem vender até para alguém da China.
- E você sabe bem como eu não gosto de tecnologia influenciando na minha arte. Cara, eu retrato o passado! Não vou sair por aí tirando foto delas e colocar no Mercado Livre.
- Pois deveria. Acha que vão simplesmente à sua casa, adivinhando seu trabalho e querer comprar umas mil? Você precisa fazer propaganda, .
- Preciso. – Fez careta e girou para o lado contrário, evitando ficar realmente tonto.
- E?
- E eu dou um jeito, como sempre. Vendo por aí, passo nas praias... Sei lá. Quem sabe eu puxo um dinheiro no banco e abro meu próprio negócio de vendas. Uma barraquinha bonitinha na feira onde eu imploro para as pessoas comprarem! – Sorriu.
No segundo em que eu pensei em abrir a boca para oferecer meu próprio dinheiro para ele abrir a loja, tive que afastar o pensamento rapidamente. era muito expressivo e intenso, gostava das coisas tradicionais. E se fosse para ele conseguir algo, seria com o suor dele.
- Mas prometa que você vai – eu disse, desligando o computador e dando toda a minha atenção para ele.
Ele sorriu e girou novamente. Como a minha fama de estraga-prazeres permitia, fui lá e segurei um dos braços da cadeira, fazendo-o parar.
- Estraga-prazeres – murmurou. – E seu namorado? – Sorriu simpático.
- Não mude de assunto. Te conheço.
- É, mas e ele? – Continuou com o mesmo sorriso.
- Ele vai, sim. E você?
- Hm... – Olhou pensativo e eu girei os olhos pela cerimônia. – E eu já deixei de ir?
- Desta vez é importante, .
- Eu sei, .
- Vai?
- Vou... – Sorri. -... Dar um jeito.
- !
Ele deu uma risadinha sapeca e concordou.
- Já estou lá.


xxx


Manhattan, 16h45 da Tarde, Quarta-Feira.
Estávamos descendo pela Times Square, procurando a minha sorveteria favorita, vulgo Ben & Jerry’s, não muito longe do Museu da Arte Moderna. andava reta e de cabeça erguida, como sempre. Seus quadris se movimentavam levemente curvos, um rebolado discreto que só uma modelo profissional poderia ter.
Ela era quente.
Às vezes eu me sentia até menor que ela em termos de altura e personalidade. Mas não era assim que a banda tocava. Não era como se fingíssemos que o problema não existisse, mas fingimos. Assim não a perturba totalmente, mesmo não saindo da minha mente.
A Times Square era muito colorida, o que puxava minha atenção muito facilmente com todos os anúncios e imagens brilhantes, como uma criança vendo pela primeira vez. E logo eu tinha que praticamente correr atrás da para recuperar o tempo que minha distração tomou.
Foi mais ou menos assim durante um bom tempo. Mas desta vez até ela parecia longe demais, em um lugar que eu não poderia alcançar.
- Seu aniversário está chegando, não é? – disse ela, sempre inexpressiva e uniforme. Olhando para frente, também. Mas acho que tinha a consciência que eu estava ao seu lado.
- Está. Dia 19. – Avistei de longe a sorveteria colorida de amarelo. Minha tão amada Ben & Jerry’s.
- Temos que fazer algo – ela comentou tranquilamente, como se não fosse uma afirmação e eu ri. Puxei uma das cadeiras para ela, que girou os olhos e sorriu para mim.
- Temos nada! Um ótimo presente seria sei lá, você em um vestido de banana... – brinquei e sentei esparramado, zoando a postura perfeita. – Suas costas não doem não?
- O quê? – Ela me olhou confusa, analisou e entendeu a situação. – Oh, não. Aliás, um vestido de banana seria como? Uma roupa colada, longa e amarela?
Seu voltou a viajado por aí, provavelmente pensando em alguma coisa. Mesmo conversando comigo, ela não estava.
- Rabibananacolau.
- Aham... Banana, legal.
Eu tive que rir e ir bagunçar o cabelo dela, recebendo um tapa forte na minha mão em troca. E sua atenção, também.
- O que foi isso? – reclamou e juntou as sobrancelhas, formando traços finos de futuras rugas entre elas. E mesmo assim, deixava-a com uma aparência maravilhosa.
Ela era tão linda, tão linda.
- ? – Estralou os dedos na frente do meu olho, e eu tive que gargalhar pela repetição.
- Sim? – Ela me olhou estranho.
- Desculpa por isso... E não toque no meu cabelo.
- Claro que não toco. – Sorri para ela. – O que vai querer?
- Eu não vou querer comer nada, não – disse segura, mas posso jurar que ouvi sua voz fraquejar lá no fundo.
Senti uma raiva e angústia dentro de mim, borbulhando e me machucando.
Seu olhar me dizia para não insistir mais e foi o que eu fiz. Me levantei humildemente e fui me servir.
Quando voltei, digitava freneticamente no celular e foi quando eu realmente fui reparar mais nela. Ela estava pálida e sua face estava ficando magra demais, deixando os ossos moldarem seu rosto. Seus olhos pareciam cansados e sem brilho.
Naquele momento, dentro de seus olhos, eu vi . Vi uma garota fosca, sem vida.
Eu não gostei do que vi.
E aparentemente, ela também não gostou disso, porque quando reparou meu olhar demorado me deu um inquisidor que gritava “o que você está fazendo aí?”, mas já sabia a resposta.
Eu me sentei com o copão de sorvete e a encarei. Ela guardou o celular e me encarou de volta.
- Quantos dias? – meu tom era quase que magoado.
- Não interessa – o dela era seco.
Sua linguagem corporal e seu olhar me passavam a mesma sensação de O Grito, de Edvard Munch. Angústia, medo, expressão presa entre as pinceladas. Mas seu rosto era pacífico, como se estivesse observando o mar durante a chuva grossa.
- Eu quero saber quando foi a última vez.
Ela negou com a cabeça.
- Foi recente.
- Quem era no telefone?
- Para que quer saber? – Ela me olhou ofendida. E naquele momento reparei que havíamos criado uma barreira no nosso relacionamento, onde o país dela era lá e o meu aqui. E nenhum dos dois tinha permissão para invadir o outro.
Arrependido e machucado, para tentar amenizar decidi mudar de assunto.
- E o Ben? – eu disse com pesar, mas ela abriu um sorriso discreto na hora.
Como eu detestava esse cara...
Uma vez cheguei a desenhar eu e ele em uma briga épica romana com cavalos, mas eu era o forte e campeão e ele o perdedor. A fantasia é sempre melhor que a vida real. É o que dizem.
- Ele... Ele está ótimo. Maravilhoso como sempre. – Se limitou a dizer e eu concordei. Mas acho que nem ela esperava continuar, mas o fez subitamente. – Mês passado viajamos para França, como você sabe. Mas eu não sabia que ele tinha tido tempo para falar com a família.
A observei sentindo meu coração se encolher como um cachorrinho no frio de uma chuva gelada.
- Continue.
- E então... Eu meio que descobri que ele pretendia me apresentar para eles.
Eu sabia tanto sobre ela. Ele sabia tantos nadas sobre ela.
Eu até sabia qual seria o assunto que ela tanto fazia suspense para falar.
- E aí?
- Como eu sou uma amiga secreta da irmã dele, ela me contou que ele vai propor. – Disse com um sorriso discreto brincando nos lábios, não se permitindo dar os gritinhos que sua mulher interior implorando para dar.
Mas o que eu podia falar? Eu também queria gritar. Meu coração estava sendo massacrado pela ideia de uma aliança em sua mão que não tivesse meu nome.
Friendzone era foda, meus amigos. O mais foda ainda era o fato que eu não queria desistir dela.
- Você está bem? – Ela perguntou levemente preocupada.
Ele sequer sabia que ela fazia aquilo. Ele sequer sabia!
Eu estava enjoado. Destruído. Destripado. E mais uns outros adjetivos deprimentes e dramáticos que eu iria imaginar ao longo do dia.
- Estou. – A encarei com uma expressão perdida.
Quem agora parece o quadro d’O Grito, hein, ?
- Não está feliz pela gente? – olhou séria.
Não, não estou.
- Sim! – Recuperei os modos, falso como na aula de teatro.
- Ah, não se preocupe. Vamos deixar você decorar e fazer a pintura da nossa casa e do casamento, não se preocupe. – Ela deu uma risadinha boba como se o motivo que eu estivesse vendo fantasmas fosse preocupação/ciúmes por não poder pintar algo para eles.
Ah, claro que era.
Eu adoraria pintar a cara dele de amarelo e vesti-lo de banana.

xxx


Dois dedos.
Apenas dois dedos escorregando para dentro da minha garganta e recebendo uma resposta imediata do meu corpo, mandando o tão aguardado vômito e todo o liquido avulso bebido.
Meus dois dedos, meus melhores e reais amigos.
O banheiro de cerâmicas brancas, o vaso luxuoso preto e cheio de artimanhas, mas o show acontecia bem ali. Onde eu ficava a cada segundo mais magra e perfeita.
Por apenas dois dedos.
Simples, não é? Tão simples...
O gosto azedo veio novamente e eu estava pronta para mais uma rodada, inalando o odor ruim que subia, mas nada veio. Tentei de novo, de novo e de novo até machucar a minha garganta e lacrimejar; senti meus intestinos se contorcerem com a falta de algo além de água para mandar de volta e suspirei derrotada.
Sentei-me no chão e minha cabeça latejou contra a ponta dos meus dedos, me dando a sensação de fraqueza e pré-desmaio. Respirei fundo e tentei me organizar, me levantar e tomar um banho frio para as melhorias chegarem logo, mas não foi o que aconteceu.
Cada vez mais fraca e perdendo a consciência, meu tronco foi caindo aos poucos, pausado pela pressão da parede contra minha pele, até o chão gelado que me enchia de arrepios. Minha bochecha tocou a superfície e eu senti um choque, uma vontade de contrair.
Minha dor de cabeça piorou.
Sem que eu me desse conta, começaram a cair lágrimas dos meus olhos enquanto eu encarava a cerâmica pálida com detalhes dourados bonitos. Meu rosto se molhou, mas minha mente estava limpa e clara.
O que só durou até que eu fechasse os olhos pesados sem escolha e mergulhasse em um pesadelo horrendo.

Flashback.

- Classe, hoje eu gostaria de mostrar nossa mais nova aluna, – a professora simpática apresentou, sorrindo para os alunos da velha escola pública do interior quente do Texas.
Uma garotinha rechonchuda entrou pela porta assim que ouviu o chamado, pronta para o desfile. Chegou sorridente, com os cabelos organizados e lambidos. Sua feição era de simpatia pura.
- O quê? – um dos coleguinhas murmurou chocado olhando para a garota. Virou seu rosto para o amigo, encarando-o. – Ela é uma baleia, não uma nova aluna.
Assim que foi dito, pelo menos as cinco pessoas em volta dele riram alto e olharam discretos para não causar desconfiança.
aguardava atentamente e obediente os olharem apreciando-a, que não vieram. Todos a encaravam e cochichavam baixinho, porém a criança se manteve positiva, acreditando que aqueles cochichos eram coisas boas.
Mas lá no fundo algo gritava que não era. E ela se encolheu de leve, meio assustada agora com os olhares.
- O que dizemos quando recebemos uma aluna nova, classe? – A professora deu um olhar rígido para a turma e sua voz foi claramente rude, uma maneira de repreensão discreta.
Sua saia xadrez deveria ser o problema. Ou quem sabe que a luz desbotada do sol que entrava na sala a deixava pálida demais e eles achavam que ela era um vampiro.
Ou...
- Seja bem-vinda, baleia! – Um garoto disse alto de braços abertos, como se fosse abraçar algo grande e toda a sala caiu em gargalhadas.
sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e se encolheu mais uma vez, andando para trás em direção ao quadro negro. Ela não achou nada engraçado.
A professora parecia chocada e morta de vergonha.
- Não fale isso, August! – Outro garoto ficou de pé e olhou para o colega do comentário em tom de reprovação. viu ali seu herói. – É claro que ela não é uma baleia. Não se ofende as baleias assim!
Seu herói se tornou um vilão.
Novamente, todos riram.
Aquele dia parecia ter sido o pior dos dias da vida de , mas era só o começo do que estava por vir em todos os próximos.


Flashback.


Arregalei meus olhos assustada e ofegante, banhada pelas sensações do trauma percorrendo o meu corpo molhado de suor. Encarei fixamente o teto branco e liso, tentando manter a consciência e acordar de uma vez, sem dar chance para acontecer de novo.
Era claramente mais tarde, mas não pareceu ter nem passado sete minutos. O barulho lá de baixo estava mais tranquilo.
Respirei fundo. Inspirei. Repeti.
Desci minhas mãos pela minha barriga, apertando qualquer parte mole que a academia ainda não tinha dado um jeito. Me tateei, senti e medi. Desci para o quadril que ainda tinha alguns malditos excessos, mas não me abalei e fechei os olhos concentrada. Mexi os dedos na área em movimento circular e abaixei para as cochas.
As abri, concentrada no trabalho e segurei em tudo que conseguia, alisei e puxei de leve, sentindo novamente minhas forças se esvaírem.
Abri os olhos para evitar cair na escuridão novamente e comecei a chorar. Eu chorei como se eu fosse uma criança recém-nascida que precisasse do apoio da mãe, o que eu nunca tive. Chorei ao ponto de sentir minha alma doer.
Lembrei onde tudo tinha começado. Pensei no ponto que tinha chegado. Relembrei quando foi a primeira ideia, o primeiro e único corte no início da cocha para aliviar as outras dores, quando perdi meu primeiro quilo completo em pouco tempo e como o mundo era fácil e brilhante.
Eu estava tão perdida e cega.
“O que eu fiz, Meu Deus?” me perguntei sem parar, pedindo uma ajuda silenciosa. Uma ajuda vazia.
Lembro de tentar comer naquela tarde e meu estômago, tão acostumado, colocar tudo para fora, rejeitando na hora. Eu estava tão faminta e era apenas uma maçã, mas ela simplesmente não entrava. Foi aí que eu reparei no que estava fazendo. E eu não senti medo, culpa ou qualquer outra coisa.
Senti vontade de desistir da vida, na verdade. Eu queria andar sobre caminhos descomplicados, simples e diretos. Mas o mundo não era assim e eu era uma criancinha crescida que não queria aceitar o fato. Então, lutando contra isso e toda as leis existenciais, dava um desânimo estúpido apontando o óbvio.
Chorei mais dar atenção ao que não saía da minha cabeça: fora o , eu não tinha ninguém. Meus pais diziam que o fato que eu desfilava de roupa íntima significava que eu era uma prostituta da pior categoria, já que eu estava vendendo a imagem do meu corpo.
Eu não tinha muito tempo para fazer amigos e era atualmente amarga demais para isso. Meu humor era direcionado levemente ao e só. Talvez na época que eu era mais nova a situação fosse diferente, onde poderia conseguir me aproximar das pessoas. Mas agora, não adiantava nem tentar.
Eu necessitava de amor como qualquer outra pessoa.
E as minhas colegas ao meu redor não eram muito diferentes de mim. Elas faziam as mesmas coisas. Se tocavam do jeito mais repugnante possível, assim como eu.
Levantei fraca do chão e me apoiei nas superfícies, indo diretamente ao banheiro tomar um banho gelado. O choque térmico foi grande demais e eu mal conseguia ficar de pé. Eu era um fracasso. Uma fraude em forma de mulher.
Como alguém pode ser tão burra quanto eu e insistir no erro eu não sabia. Mas aquela era minha vida agora e não ia sair mais dela, até alcançar meu clímax da perfeição ou morrer tentando.
Assim que a água gelada se derramou por meu corpo eu me senti renovada e ergui minha cabeça, recobrando o equilíbrio e a postura. Senti as gotas percorrendo todo meu corpo, me alcançando.
É aquela sensação gostosa do cinema, sabe? O poder psicológico entre estar nua, cabelos molhados e uma camada fina de água sobre o corpo, dando-lhe poder e sensualidade.
Deixei cair na minha cabeça também, escorrer por meus cabelos e me fazendo respirar pela boca. Aquilo esclareceu meus pensamentos de uma maneira grandiosa, o que me deu mais lucidez. Ainda assim eu sentia aquela sensação ruim na barriga. Tristeza. Uma tristeza acompanhada do meu tão velho orgulho.
Me lavando com o xampu por todo corpo e cabeça, enxaguei rapidamente e saí piscando várias vezes enquanto secava com uma mão meus fios de cabelo em uma toalha branca.
As pessoas simplesmente não entendem o motivo das outras serem frias. Das pessoas serem arrogantes, orgulhosas. Queixo-erguido. Mas a verdade é que se sua cabeça estiver erguida, você não dá espaço para que te machuquem, que doa. Não dá uma mínima brecha para se permitir cair de joelhos.
Quando sua arrogância lhe cobre, a proteção vem junto. A arrogância espanta qualquer medo de errar, falar bobeira ou tropeçar no salto. Porque você acredita que consegue. Você acredita que não acontecerá nada de ruim, que você consegue. E de tanto acreditar, a arrogância vem junto com o placar de mérito que diz que você é o melhor no que faz.
E a arrogância que me refiro não é aquela que você sequer olha para os perdedores, finge que eles não existem. A arrogância que falo é a que você adquire para si mesmo.
Me encarei no espelho, vendo as veias coloridas de cima do olho serem marcadas na pele pálida. Foi então um daqueles momentos em que você observa o próprio rosto como ele realmente é.
Quando não há câmeras e poses, efeitos e melhorias. Maquiagem, cabelo na frente ou o charme do sorriso e piscadelas. Quando você é... isso. Você simplesmente é.
O caminho até a VSecret foi muito longo e difícil, porém, eu continuava com orgulho das minhas cicatrizes de batalha. Muitas propostas recusadas para não cometer o erro comum e humano de fazer a escolha errada. Eu tinha meu objetivo atrás das minhas pálpebras todas as vezes em que eu fechava os olhos.
Eu sabia onde queria chegar. Exatamente o que queria fazer, onde iria fazer. E por isso nunca me perdi nas viagens da vida. Podia dizer com orgulho que não foi fácil, mas eu consegui.
E, por incrível que pareça, foi quando consegui que ficou fácil.
Tinham apenas uma roupa um número a menos? Sem problema, é uma modelo sensacional, ela pode fazer a roupa ser dela.
Tinham um ensaio para amanhã cedo e outro para hoje de madrugada? Sem problemas. pode tirar seus horários e se dedicar totalmente ao trabalho bem feito e organizado.
Precisam de voluntários, fotos novas e ideias? Precisam de gravações adicionais antes da estreia? Precisam de uma modelo para cobrir a outra? Seus problemas acabaram. A super está aqui e provavelmente irá fazer tudo que quiserem.
Porque a precisa da carreira. é bonita, audaciosa, alta. Sabe o que querem, o que precisam. Ela tem o que precisam e querem para dar.
Agora, me olhando no espelho, me perguntei se sabia o que ela queria.
A expressão séria e morta me encarou de volta do espelho. Sem vida. Fraca. Cansada.
Me dei conta desta grande verdade.
Eu não sabia o que queria. O que precisava. O que gostava. Apenas o que queriam, precisavam e gostariam. Minha cabeça trabalhava com força para se concentrar no time inimigo e o que lhe daria medo que parei de pensar no que meu time realmente precisava.

Assim que desci o apartamento encarei as ruas iluminadas da cidade. Nova York sempre fora cheia de vida, forte e pulsante; em outras palavras, um paraíso onde o tempo nunca parava. Era até mesmo excitante, animador. Aquela cidade tinha uma energia motivadora.
Mas não era esse meu interesse para ela esta noite. Saí e caminhei pelas calçadas um pouco mais vazias por não ser horário de pique. Concluí surpresa que já se passava de mais de onze horas da noite.
O trânsito estava o mesmo de sempre, mas fui me aventurar pelas ruas admirando as placas e outdoors, as pessoas e suas manias, carros e suas buzinas. E foi nisso que consegui distrair minha mente barulhenta durante um bom tempo.
Analisei a pessoa à minha frente, totalmente interessada no celular e na sua vida social; com todos os seus problemas e altos. Seu rosto era sério, seu cabelo de um liso falso, obviamente um cabelo ondulado com bastante chapinha. Uma maquiagem que deveria ter sido feita no início do dia, mas agora já de noite se tornava fraca e até mesmo borrada. Estava tão fora da realidade que era bonito de se ver.
O próximo parecia ser um homem de meia idade, cansado e com um terno barato. Tantas suposições do que ele poderia ser. Entretanto, estava em uma arrumação desleixada, como se estivesse voltando para casa depois de um bom tempo no trabalho ou qualquer outra atividade.
As rugas do seu rosto eram bem definidas, apesar de que eu tinha certeza de ter visto um leve toque de base no rosto dele. Com isso, fui analisar o próximo que daqui pouco tempo iria passar perto de mim.
Era um rapaz alto. Ele tinha luzes no cabelo de um modo bem style, óculos modernos e uma aparência bonita. Suas roupas eram cheias de estilo, chiques no ponto certo sem deixá-lo muito velho.
Se tinha uma coisa que eu entendia era de moda. Certas roupas, independente do quão bonitas ou das suas respectivas cores, tinham o poder de deixar a pessoa mais magra, mais gorda, mais discreta, mais sexy, e até mesmo mais velha. Era um truque tão simples e aparentemente tão bobo, porque não era para você. Era para o seu subconsciente.
O jeito que você usava as roupas ou o jeito que elas eram refletiam na sua aparência, no seu jeito. Consequentemente, na maneira que as pessoas viam você. Era psicologia pura. “A primeira impressão é a que fica” e isso é direto. A primeira impressão é o que veem.
O rapaz estava no ponto certo e reparou que eu o encarava. Talvez trabalhasse na Vogue.com. A vaidade estava presente nele.
E em todo mundo. Assim que ele passou eu constatei o óbvio.
Todos sabemos que as pessoas querem ser amadas, precisam disso. Mas o jeito que encontram de ser amadas é através da beleza. Elas, assim como eu, precisam da beleza.
A perfeição é atrativa, é encantadora. Não podemos alcançá-la, mas só pelo fato de procurá-la ao máximo a mantêm próxima, então o poder de atração dela passa para você.
Não há maneira melhor e mais fácil de encontrar o amor em pessoas que te acham atrativo. Assim como um fã “ama” seu ídolo.
De certa forma, isso é triste e doentio. Mas o mundo está doente pela beleza, uma pandemia que não se mostra tão ameaçadora a ponto de ser extinta ou quererem extingui-la. Eu, mais do que nunca, estava doente. Era vítima da doença da beleza social.
Minha beleza interior não existia mais, porque eu a dediquei à exterior.
Respirei fundo e ergui a cabeça, seguindo caminho para um pub bem longe, cujo o nome “Jack’s” era escrito em letra cursiva, grande e prata, chamando a atenção de longe. Mesmo que eu não conseguisse ler com perfeição naquela distância pude reparar.
Puxei meu capuz para cobrir mais meu rosto e continuei encarando o local enquanto chegava aos poucos. Sua parede de um preto fosco bem pintado, porta de madeira e música eletrônica agitando.
Aquela sensação gostosa de familiaridade e liberdade tomou conta do meu corpo.
Assim que adentrei o local, o cheiro de gelo seco de boate e álcool entrou em minhas narinas, me dominando completamente. Minhas energias se abasteceram e eu me senti... bem.
Eu me definia certas vezes como um rato de boate. Onde a boate era minha noite, quando os gatos dormiam e eu podia fazer a festa.
Fiz questão de entrar no clima agitado logo logo, tirando meu capuz e deixando o vestido solto que eu usava se aventurar por aí. O frio do ar-condicionado subiu minhas pernas e eu senti o alívio.
Jack’s era um lugar muito... diferente. Tinha sempre uma música boa tocando, mas nenhum DJ. Seu clima variava entre festas animadas, para tempo para pegação, para tempo para beber uma na fossa, para o tempo de debater política em um lugar agradável e com bebida e petiscos agradáveis. Entretanto, o estabelecimento sempre estava mais ou menos cheio em todas as partes.
Lotações aos finais de semana e nas segundas de manhã.
O local era gigante, mas ninguém nunca soube de onde vinha a quantidade de dinheiro que o abastecia e mantinha ou quem era o proprietário. Até especulávamos sobre, milhares de palpites com grandes empresários, porém nunca tivemos provas de nada.
A parte mais agitada era no subterrâneo e por mais que fosse esperado, lá não era abafado. Nem quente demais. Ou afobado. O clima era tão agradável e seguro quanto qualquer outra parte do negócio. Por outro lado, nos dava uma privacidade que o resto da cidade parecia tomar.
Era uma espécie de esconderijo, onde os nova-iorquinos fugiam de suas rotinas por um pouco de vodka.
Como se não fosse óbvio, o meu destino era justamente a parte debaixo. A única parte em que havia restrição de idade e seguranças nas portas, vendo quem entrava e saía.
O da vez era um homem negro bem alto, com o porte másculo e grande; aqueles caras prontos para destruir qualquer chance de confusão que você pensasse em arrumar apenas se lembrando de sua face.
- Documentos, senhorita – exigiu e eu procurei nos bolsos do casaco.
Ele sequer me olhava, entretanto parecia bem atento com o que estava acontecendo por todo lado. Não quis arriscar e lhe entreguei minha identidade logo depois tirando o cabelo do rosto para a verificação.
Ele encarou a pequena identidade em sua mão gigante e me analisou, tendo certeza que era eu. Quanto mais parecia um boi com raiva do seu toureiro de frente a mim, mais eu pensava em lhe confessar todos os meus segredos e chorar por clemência.
No entanto, o segurança abriu um sorriso simpático.
- ! – me reconheceu. – É uma honra te conhecer!
Eu não era uma das únicas ou primeiras celebridades que frequentava o Jack’s, mas mesmo assim me senti agradecida. Dei um sorriso de canto de volta.
- Olá. O prazer é todo meu – fui cortês.
Ele riu desacreditado e me cumprimentou.
- Pode entrar. – Liberou a passagem. – Tudo certo. E, aliás, tenho que lhe dizer. Sou seu fã; eu compro tudo que você usa para a minha esposa.
Eu meio que não tive uma reação a partir do que eu ouvi. Também não soube reconhecer o seu tom e o que ele queria dizer com aquilo. Para não ser rude, sorri amarelo como se entendesse e estivesse honrada e entrei na área.
Encarei o nada, confusa. Fiz questão de dar de ombros e continuar a andar até uma parte mais reservada onde três barmen atendiam o público rapidamente, com simpatia.
Quando você se dá conta do feito da sociedade, suas regras e seu funcionamento, quando você se dá conta que é um indivíduo dentro dela, a primeira coisa que se questiona é sobre o que deve fazer.
Como se entrosar. Qual é o seu lugar. Por quê. Você não quer saber se é assim que ela deve funcionar, porque ela funciona assim há anos e anos e nunca ninguém mudou. O que você precisa fazer é se adaptar.
Com isso, você pode acabar sendo arrastado para uma grande força de pensamento em massa, onde são levados ao mesmo padrão onde ninguém se interessa por ir além.
Sentei-me e pedi um copo de vodka com água e limão para começar a noite. Assim que tomei o primeiro gole a lucidez e atenção me acordou e me fez respirar fundo. O cheiro bom de gelo seco e ar-condicionado fazia uma mistura maravilhosa para o momento.
Continuando. Você cresce, se torna um indivíduo diferente, mas igual. Você pensa em A+B enquanto o outro pensa B+A. Com isso, a psicologia diz que você é único e diferente. Você gosta disso. Gosta da ideia das duas primeiras letras.
Você gosta do que está vivendo, se acostumou, amou. Gosta de como a vida funciona. E você então tem seus amigos, que lhe dizem para fazer tal coisa. Tem seus colegas que te ensinam outras. Você é um ser com influências, agora. Um ser conhecido, com argumentos e cultura.
Mas de repente, você para e acorda. Você faz parte de um todo, sim. E isso é reconfortante. O que não te falta são amigos e conversas, interesses. Paqueras.
Mas será que isto basta?
Mais um gole generoso da minha bebida.
Você começa a questionar. A se questionar. Você repara erros e não tem certeza se deve consertá-los. E quando você conserta, você quebra alguma coisa; que consequentemente quebra outra.
E então esse pensamento que aparentemente era inocente começa a destruir tudo que você acreditava e tinha, o que você era. Esse pensamento se torna perigoso aos seus círculos. A você.
E então, como a maneira primitiva humana de se afastar de problemas e perigos, você de repente começa a parar de pensar assim. É ofensivo. Ameaçador.
A vida segue. Você continua bem, reconstrói o que aquele pensamento um dia derrubou. E pronto, tudo continua dentro dos padrões.
Encarei o barman bonito que servia no canto, sorrindo sugestivo para a moça em sua frente. Ele parecia ser bom e tinha um sorriso lindo. O chamei para me servir de mais um copo que eu tinha tomado por completo, sem notar.
Notando-me, ele seguiu até mim e se debruçou, colocou os cotovelos sobre o balcão, me encarando e provavelmente cruzando as pernas afastadas e descansadas.
- O que vai querer? Mais uma dessas? – Sorriu de canto e ergueu a sobrancelha. Eu tinha que confessar que ele era extremamente gato e tinha seus efeitos em qualquer mulher que o analisasse melhor. Mas eu não estava nesta lista.
Era um bom exemplo do que acontecia quando alguém ignorava aquele pensamento intenso e resolvia se dedicar às coisas mais sociais. Como a sedução. Ele exalava confiança.
- Claro – confirmei também com a cabeça para logo me sentir estúpida por ter feito. Mais um argumento bom para a minha teoria. – E uma tequila separadamente, por favor.
Ele concordou e anotou no pequeno papel. E então, se virou e foi pegar uma das garrafas no armário para logo satisfazer meus desejos.
Certas vezes, em vez de se afastar assustado daquele pensamento, as pessoas se interessam por ele e o que ele pode causar. Assim como os amantes de filme de terror e a quantidade absurda de odiadores de filmes de terror.
Elas questionam tudo e todos; se questionam. Suas amizades mudam, seus interesses também, consequentemente suas vontades e pensamentos são outros. As pessoas se destroem para começar do zero.
Nasce aí a filosofia. Nascem também bêbados inconformados, pessoas magoadas com a vida e irônicos de plantão. Esse pensamento é um berço para um terço da população; eles renascem.
O barman me serviu e eu tomei o primeiro gole, acenando com a cabeça agradecida e recebendo uma piscada envolvente de volta. Sua atenção mudou de foco e meu olhar foi para a variedade de garrafas de diferentes épocas e embalagens à frente.
Na mitologia grega, Atena nasce do pensamento de seu pai, o grande poderoso Zeus. Isso causa um alvoroço geral, assim como em seu casamento. Mais um exemplo de como um simples pensar – igualmente lógico, cheio de razão e perspectiva – pode mudar as coisas e, apesar de tanto sentido adicionado, o resto perde a razão.
As coisas se tornam diferentes. E você quebra, tentando acompanhar.
Mas há aquele que consegue se manter; manter tudo. Seu pensamento crítico e seus amigos. Há aqueles que não viram bêbados insatisfeitos sem respostas para suas perguntas, porém viram uma máscara no mundo.
Sabem ser gentil, mas não questionam esta gentileza. Eles sabem como a sociedade está funcionando, mas não saem do ciclo da mesma. É aquele tipo de pessoa que sabe que se você beber irá ter problemas nos rins; mas é a vida e não vão parar de beber por um talvez.
Aquele tipo de pessoa que vomita para ficar magra, mesmo tendo noção; mas não para de fazer, porque funciona. Estão destruídos por dentro mas por fora ainda há aparências a manter e sorrisos para dar.


xxx


Assim que eu cheguei à casa de , reparei um estranho silêncio. Entrei e me sentei no sofá aguardando-a, já sabendo que ela estava lá dentro fazendo algo e logo aparecia.
Então, batuquei no sofá com a ponta dos dedos como se fossem baquetas e admirei a sala; a televisão enorme que deveria ser show de bola de jogar videogame, o outro sofá extremamente fofo igual à esse, a mesa de vidro grande com cadeiras brancas e um lustre gigante e maravilhoso – complicado de pintar, imagino – sobre a mesma.
Desde a primeira vez que conheci a casa, pensei que estava sem vida. Eram as cores discretas e chiques, marrom, preto, branco e seus tons diversos. Um design inteligente, discreto, chique. Mas isso não mudava o fato que apesar da elegância, parecia tudo morto. Não tinha aquele clima de morte, claro. Mas você não conseguia sentir a vida.
Ainda me lembro de quando a conheci – não a casa, a . Batuquei agora o ritmo da música que tocava no dia, uma batida de Do I Wanna Know, Artic Monkeys, acústica. Como em Nova York era comum encontrar artistas por todo lado sem serem acompanhados de milhares de paparazzis, não foi diferente com a minha amiga modelo.
Era uma casa de shows/bar/balada/uma-mistura-de-tudo-isso chamada de Jack’s, com um som ambiente gostoso e sensual; luzes baixas em uma parte, cheio de dançarinas, sofás de couro, mesinhas para conversas secretas... Era tudo bem bonito e profissional, da maneira artística. A decoração à base de madeira, couro e quadros pintados especialmente, suponho, para o estabelecimento.
Eram desenhos que me lembro bem: alguns traços bem feitos e seguindo padrões, outros eram paisagens em preto e branco de grandes cidades, como Londres, Paris, Atenas e mais. Eu estava bêbado na época, afogando minhas mágoas num copo de pinga brasileira da mais pura e alguns limões.
Então, cansado, me joguei em um dos sofás espaçosos no corredor que os quadros ficavam enquanto via dois casais se pegando às minhas laterais; cada um de um lado e eu lá no meio, me sentindo uma merda em forma humana.
A música trocava daquele tom gostoso de Do I Wanna Know? e indo para Feeling Good, que demorei para reparar que era do épico Michael Bublé. Concentrado na música envolvente enquanto me embriagava mais, vi que o banheiro feminino ficava há poucos metros na minha direita e de lá saía uma silhueta bem sexy e alta feminina, andando como se estivesse em uma passarela.
E foi pensando nisso que vi finalmente ir para a sala, com uma expressão perdida e uma roupa colada.
- Oi, . Está há quanto tempo aqui? – perguntou me fitando, enquanto eu estava praticamente perdido nas sensações do tal dia, por causa das lembranças fortes que minha embriaguez não me tomou.
- Faz pouco tempo. – Olhei para ela e sorri meio atordoado. Tanta coisa tinha mudado. Ela havia crescido tanto. Até sua aparência estava mais velha; isso não impedia de ficar mais linda ainda. – Você demorou. O que estava fazendo?
Ela sorriu fraco e se sentou ao meu lado, apoiando um braço em cima da grande almofada que apoiava as costas e virada totalmente à mim.
- Eu que lhe pergunto. Você parecia estar lendo um livro de fantasia enquanto olhava concentrado para o nada. – Ela deu uma risadinha e ergueu a sobrancelha, mordendo a almofada da mão.
Era tão incomum vê-la daquele jeito. Descontraída. Meu coração se aqueceu e eu a analisei mais um pouco; coisa que ela já estava acostumada e atribuía ao fato que eu sou artista e adorava decorar traços para desenhá-los depois. A coitada achava que eu fazia isso com todo mundo.
- Estava lembrando da primeira vez que te conheci.
Ela sorriu e riu, girou os olhos e pareceu pensar um pouco sobre a cena.
- Que parte estava?
- No começo, mesmo. Quando te vi desfilando saindo do banheiro.
Ela gargalhou.
- Eu estava ensaiando para o meu teste! O banheiro estava sem ninguém e eu imaginei que a entrada também não teria ninguém fora umas pessoas se pegando. Como eu ia imaginar que tinha um bêbado lá vergonhosamente me olhando? – Riu mais um pouco e tampou a cara de vergonha.
Eu tive que rir junto, com uma risadinha gostosa lembrando-me da cena.
parecia distraída, desfilando e com o queixo erguido, peito para o alto e andando como se nada no mundo importasse mais. Seu olhar estava lá no alto, então ela sempre conseguia um jeito de tropeçar nos próprios pés calçados com um salto gigante.
E então, ela refazia o caminho e voltada rebolando e mais ou menos tremendo, querendo de todo jeito encontrar a perfeição no ato.
Já eu, um bêbado confuso, fiquei olhando para ela com a testa franzida e me perguntando o que diabos ela estava fazendo, já que meu cérebro não queria trabalhar muito e o máximo que pude foi me dar o luxo da dúvida.
- Por que raios em vez de você estar em casa treinando, estava em um bar? – perguntei sorrindo, ainda com a mente na cena. Ela não estava diferente, olhando pro nada.
- Jack’s me acalmava. Eu estava uma pilha de nervos com o teste do dia seguinte e precisava estar naquele lugar para relaxar. E como não podia dar a louca lá, fui treinar – se desculpou e girou os olhos novamente, negando com a cabeça sem acreditar que tinha feito aquilo.
A admirei e sorri de canto.
Quando ela finalmente me notou olhando-a escondido e confuso, ela arregalou os olhos e morreu de vergonha ali na minha frente. Parecendo se dar conta que tinha sido observada e provavelmente se imaginando ridícula.
“Eu juro que te pago uma bebida se esquecer que viu isso!” ela disse desesperada, apontando para mim. Mal sabia ela que no fundo eu estava adorando a cena privilegiada em ver aquela moça bonita para lá e para cá, mostrando-me seu corpo sem perceber em diversas perspectivas.
Mas eu não poderia negar uma bebida. Minha grana já tinha sido torrada naquela noite e por isso fui ficar tonto e me odiando no sofá. Agora, tinha um bom motivo para continuar.
“Duas”, fui negociar. Ela me olhou incrédula.
- Eu estava tão ridícula. Queria parecer profissional e com o dom de nascença para aquilo, impressionar o mundo. Mas eu não iria impressionar o mundo se você sabia a verdade – se pronunciou, parecendo pensar na mesma cena que eu.
- Você estava tão desesperada que nem se tocou que eu estava bêbado e provavelmente não daria importância para uma cena qualquer na minha embriaguez. – Gargalhei e ela me encarou. – Se você não tivesse me reparado eu sequer tinha guardado a lembrança! – Ri mais alto da genialidade dela e veio me bater.
- Não é justo, ! – Emburrou e riu junto pelo erro bobo. Dando um leve tapa na própria testa. Eu estava bem surpreso pela espontaneidade atual dela. Era muito raro. – Eu estava apavorada no meu mundinho! – continuou.
- Eu te dou um desconto. Imagina, caso o contrário, não teria me conhecido. – Sorri alegre e balancei a cabeça imitando uma criança muito feliz e ansiosa. O leve tapa veio para minha testa, agora.
- Você me extorquiu três rodadas quando eu ofereci apenas uma! Como teve essa capacidade?
- Quando um viciado quer algo, ele consegue de qualquer maneira. – Pisquei para ela.
- Você não é um viciado, . – Me olhou como se eu fosse idiota.
- Shhhh. Espalha que sim. Já viu que os maiores artistas da história tinham um vício que os movia? Até Shakespeare usava maconha!
- E eram bissexuais – complementou e eu sorri. Seus olhos brilhavam em divertimento descontraído.
- Depois te apresento meus namorados.
- Mas, querido, do que eles importam? Deles eu já sei. Cadê suas namoradas? - Me zoou de uma verdade absoluta. Desde que a conheci, nunca me envolvi com garota nenhuma.
- Engraçado, . Muito engraçado – resmunguei e fitei seu rosto mais uma vez. Estava meio corado, o que a deixava bastante linda. A janela grande um pouco atrás dela pela maneira virada que estava sentada no sofá fazia seu rosto ficar mais deslumbrante ainda. A claridade que entrava destacava desde as bordas dos seus cabelos até o tom de sua pele, seus olhos.
Meu peito se aqueceu novamente e eu segurei a respiração. Reparando no meu olhar, ela me encarou de leve.
- O quê? – ergueu a sobrancelha meio confusa.
- Você é linda – deixei escapar em um murmúrio.
Desta vez ela pareceu acreditar, mesmo um pouco. Algo mais raro ainda...
Então a impulsividade não me deixou nem sequer pensar, antes de tirar o cabelo do seu rosto e beijá-la na boca. Eu não sei se foi o choque do momento, mas ela ficou quieta e eu também, congelados e apenas sentindo a sensação dos lábios juntos.
Mas assim que eu me afastei um pouco, sentindo minhas veias queimarem e meu corpo cheio de adrenalina, vi seus olhos se abrirem junto com os meus e me encararem perdidos. Ela foi abrir a boca para falar algo, mas apenas soltou o ar em um suspiro pesado pelos lábios entreabertos. Foi neste momento que eu senti o cheiro azedo de vômito.
A olhei magoado. Mais decepcionado comigo por nunca ter feito nada do que com ela. Ela tinha a droga de um problema e eu nunca fui capaz de fazer algo de verdade para ajudá-la. Que diabos de pessoa eu era?
Me levantei e respirei fundo, a encarando procurando algo para fazer.
- . – Ela se levantou subitamente e com isso seu olhar se perdeu novamente, com toda a força do seu corpo junto com a cor lhe abandonando rapidamente. Ela foi tentar segurar no apoio do sofá, mas acabou indo para o chão.
Infelizmente, eu estava longe demais para evitar a queda, mas pude pegar a mulher no colo e deitá-la no sofá.
- ? – chamei perto do rosto dela e vi os fios de cabelo lisos e pretos se destacar de uma forma bizarra com a pele pálida. Aquela imagem me lembrou a morte, o que me apavorou significativamente.
A chamei novamente, mas nem sinal de resposta. Ela abriu a boca para respirar melhor. Eu sabia que ela estava viva, mas queria que ela se recuperasse logo. Que ela melhorasse.
Vendo a pessoa mais preciosa para mim naquele estado me fez lacrimejar e ir correndo pegar o telefone.
- ... Não. – A voz fraca dela disse assim que eu fui digitar o número da emergência. Larguei o telefone e corri para perto dela.
- ? Você está bem, bananinha? – eu disse, procurando sinais. Qualquer sinal. – Quer uma água? Cobertor? – sussurrei. - O que está acontecendo, ?
Sua mão se arrastou devagar até a minha e sua respiração ficou mais forte.
- Desligue o telefone – pediu devagar.
- Mas estou ligando para a emergência...
- Eu sei... – Fez uma pausa. – Desligue.
Lembrei que li em um livro que a garota desmaiou e a coisa correta a fazer era colocar a cabeça da pessoa alinhada à horizontal junto com todo o corpo. Por isso a peguei e levei pro quarto, deitando o corpo em uma superfície reta, sem travesseiros. Abri as janelas e as cortinas, deixando o ar entrar mais.
No caminho da cozinha, passei na sala e desliguei o telefone com certo pesar. Depois eu tiraria a história a limpo. Não pensei mais e decidi agir. Cheguei na cozinha, peguei água e uma bolsa de gelo para melhorar a pressão dela. Decidi levar até mesmo sal e açúcar para ver se acontecia milagres.
Assim que voltei ao quarto, me olhava meio fraca. Porém, a cor do seu rosto parecia ter voltado junto com a respiração.
Cuidei dela como se fosse a coisa mais delicada e quebrável possível, mesmo sentindo uma mágoa rasgar meu peito em uma mistura de culpa e irritação.
Fui direto: - Há quantos dias você não come?
Ela não me respondeu, mas me encarou tímida. Durante um curto espaço de tempo foi assim.
- Três dias. – Soltei a respiração que segurava junto com a expectativa.
- Quando foi a última vez que se fez vomitar? – Não tinha uma maneira mais suave que aquilo de perguntar quando ela enfiou o dedo na garganta.
Ela hesitou por mais tempo desta vez, me olhando meio fora de órbita. Eu tive medo de sua resposta, assim como seus olhos me mandaram ter.
- Pouco antes de você chegar. Ou, pelo menos, enquanto eu não sabia que já tinha chegado. – Aquelas palavras me atingiram em cheio como um soco forte.
Levantei puto e olhei em volta, perdido. “Meu Deus...” Andei de um lado para o outro, tentando me recuperar.
O clima que se instalou no quarto foi muito tenso. Eu sentia tantas coisas que estava tonto. Ela encarava o teto aparentemente envergonhada e eu me senti culpado por não ter me controlado e a ajudado.
- Eu vou chamar um médico, – decidi e ela me olhou apavorada.
- Não. Não é para chamar. Por favor, não chama... – choramingou.
- Eu preciso... Por que fez isso? Estava tudo tão bem... – Juntei as sobrancelhas não entendendo. Soltei o ar devagar. – Seu desfile... Tão próximo...
Agora a mulher se cobria com a coberta, parecendo ter vergonha de si mesma e seu corpo. Sua voz foi delicada e tremida.
- Foi necessário.
- Como uma coisa dessas pode ser necessária, ? – Me alterei levemente, não acreditando no que ouvia. – Há muito tempo aguento você sofrendo com isso. Há muito tempo não abro a boca e te vejo se destruir, porque você busca a merda da perfeição e simplesmente não vê que já é perfeita! – gritei as verdades em sua cara. – Você simplesmente não entende que está se matando, mas não me deixa ajudar. Que droga de amigo eu seria se permitisse isso? E eu permiti! – Me olhei no espelho incrédulo, finalmente acordando para a vida e a situação.
“Eu estava tão preocupado com seus sentimentos, suas vontades de rainha na minha vida que sequer considerei que você não podia ter razão – continuei. – Porque é isso que está acontecendo. Você não tem a mínima razão, está fazendo merda atrás de merda e eu estou permitindo.
- – ela começou mas fiz questão de interromper.
- Você não tem o direito de falar nada. – Ela me olhou assustada, mais do que quando eu gritava. E tenho quase certeza que o motivo foi meu tom magoado que ela nunca tinha realmente visto em sua forma crua. – Fica quieta.
Tantas coisas se passavam por minha cabeça, o sentimento de inutilidade me inundando aos poucos. Eu rezava para que ainda tivesse maneira de consertar toda aquela bagunça.
Respirei fundo, me acalmando aos poucos e reparei que algumas lágrimas de frustração e mágoa desceram pela minha bochecha lentamente, porém eu não havia notado-as.
Finalmente mais calmo me sentei novamente à cama, e encarei a mulher da minha vida sério.
- Amanhã eu vou falar com uma psicóloga. – Meu olhar desceu, fraco. – E uma nutricionista.
- Se meu chefe descobrir... Minha vida acaba – ela me disse, olhando sofrida, suplicando para que eu não o fizesse.
- , você não entendeu. Sua vida já está acabando.

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Dias depois do acontecido eu ainda não falava com ela. Não era muito questão de ignorar, mas eu precisava absorver a situação. Precisava pensar. Quando ela se envolveu com aquele negócio de bulimia e anorexia, pedia ajuda nas crises e se controlava; poderia ter tido um fim nesta época. Mas hoje eu sei que ela pode implorar para o mundo todo que não adiantaria, mesmo não tendo uma plena consciência do problema que se tornou. Ela acharia que o problema era ela, não com ela.
Foi com esse pensamento em mente que adentrei ao meu “ateliê”: um quartinho escondido malfeito atrás da antiga casa dos meus pais, que agora eu morava. Bom, fui eu que construí aquele quartinho, tijolo por tijolo e depois decorei pintando abstratamente as paredes.
Lá era meio abafado e fazia um bom tempo que eu não entrava. Tinha quadros em branco por um canto, vários pintados esparramados por todo lugar e as tintas nas prateleiras – também esparramadas, para ter o que eu preciso perto da mão.
Suspirei e olhei em volta, vendo as partículas de poeira se agitarem assim que abri a porta e deixei a luz entrar. Tudo estava meio empoeirado pela falta de uso e limpeza.
Sentei no chão e contemplei o silêncio do local. Respirei fundo e encarei o nada.
Ela não via que era linda. Meu maior desejo era que ela se visse pelos meus olhos. Se visse como eu a vejo.
Suspirei. Tinha que achar um jeito de fazer isso. E se ela se amasse, poderia aceitar a ajuda. Poderia aceitar a psicóloga e a nutricionista. Poderia querer mudar, melhorar. Lutar pela sua saúde e sua vida.
Para pensar melhor, decidi ir pintar. Esbravejar. Soltar tudo que eu estava sentindo. Alguns lutam boxe, outros matam, outros fazem terapia. Eu pinto.
Me ergui e peguei alguns potes de tinta colorida e um quadro maior que eu. Organizei as coisas ao lado e o coloquei no apoio, para melhorar o jeito. Aproveitei e puxei para o centro da sala, abrindo as janelas e deixando a luz brilhar.
Senti uma inspiração repentina. Coragem. Respirei fundo e mãos a obra.
Algo aconteceu em mim. Simplesmente aconteceu. Minhas mãos não pareciam mais minhas, eu não parecia mais meu. As cores iam com força contra a tela, formando imagens que no princípio eu não fazia ideia do que eram, mas foi claramente se formando um rosto.
Eu reconhecia aquele rosto tão bem quanto minhas mãos.
Cada detalhe foi pintado, analisando as imperfeições e perfeições. Realçando ali, realçando aqui. Distribuindo as cores, os desenhos. Eu estava em um estado de inspiração intenso.
Tinha perdido a noção do tempo. Não sei quanto tempo se passou desde que eu comecei a desenhar, mas não parei. Não parei um segundo sequer, nem senti vontade de parar.
Assim que acabei, olhei admirando o serviço feito. Os olhos cabelos de corriam pela tela espalhados, enquanto seus olhos brilhantes e grandes encaravam – com um truque que usei onde não importava a posição que estivesse, estaria te encarando – o telespectador. Um sorriso dançava em seus lábios sem mostrar os dentes, mas era clara sua existência.
O desenho em aquarela era tão grande e belo que me tirou o fôlego. E o motivo nem era a pintura em si: era a beleza de .
Naquele momento uma ideia surgiu em minha cabeça e eu soube o que fazer.
ia voltar a ser a mesma. Eu iria mostrar para ela como ela é de verdade.

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- Senhor , eu admiro muito a sua dedicação assim por uma amiga – o empresário a frente de , acenando impressionado com a cabeça assim que ouviu a ideia. – Brilhante. Mas não sei se posso permitir tal coisa.
suspirou meio desesperado e tirou a franja cacheada do olho.
- Você precisa entender. Black é uma das suas grandes modelos, senhor. E sei que as angels são preciosas para vocês, principalmente a Black.
O homem de terno pareceu pensar mais sobre, encarando .
- Isso fará mudanças em praticamente quase todo o show. Não posso permitir. Ela não é a única e nem a pessoa mais importante da V Secrets. O senhor me contou bastante sobre a situação comovente e sua ideia foi genial, mas não pretendo abrir mão de tudo por este gesto. – Seu tom era severo e sério.
parou e pensou durante alguns minutos que pareceram incomodar o impaciente e ocupado empresário.
- Durante esse desfile terá cantores na passarela enquanto as angels passam, certo? – questionou e recebeu a confirmação. – Me dê menos de cinco minutos, como se eu fosse um dos convidados especiais para as apresentações.
O empresário o analisou.
- Justo. Mas o que nós ganhamos com isso?
- Se der certo, vocês amanhã vão estar muito bem falados – sugeriu. – Fora isso...
O homem se aproximou mais para ouvir.

xxx


´ - Por quê? – Os meus olhos se encheram de água e incredulidade. Eu simplesmente não conseguia acreditar no que estava acontecendo, muito menos que eu estava chorando na frente de alguém.
Alguém que não merecia a mínima lágrima que caía acompanhando as outras mais gordas e rápidas.
- As coisas chegam a certo ponto que não dá mais, . Um ponto crítico onde o “nós” não pode existir mais.
- E agora chegou esse ponto? – minha voz escorria sarcasmo.
Ben parecia tranquilo, apesar de tudo. Seus cabelos estavam penteados para trás com aquele ar de galã que ele fazia questão de ter, suas roupas em um estilo casual chique e ombros relaxados. Entretanto, seu rosto era sério e sem qualquer sombra de dúvida do que estava fazendo.
- Chegamos ao ponto faz um tempo, . Entenda. Desde que eu conheci Mary nas gravações do filme... Nada foi a mesma coisa. Eu poderia não saber na hora, mas eu soube depois. Estávamos apenas mentindo para nós mesmos.
Eu não acreditei no que eu ouvia. Me enchi de raiva.
- Não quero saber de nada sobre vocês, Ben.
- Você precisa entender. E... – olhou em volta, checando as pessoas pouco interessadas no drama que acontecia dentro do parque, envolto por árvores. – Você está sendo ridícula.
- Eu estou sendo ridícula? – Chorei mais, sangrei mais. E continuei não entendo a merda que estava acontecendo. – Eu achei que você ia me pedir em casamento, não ela!
Meu tom de voz estava subindo escalas e eu simplesmente não me importava. Estava em um momento egoísta com meu coração magoado e meu ego ferido. Meu orgulho também tinha lá suas queixas.
Ben apenas deu de ombros, sorrindo como se sentisse muito sobre isso.
- Estamos acabados, . Acabados. – Repetiu devagar e uma parte em mim quis defendê-lo, dizer que não era um cara babaca. Apenas tinha me entregado à pessoa errada.
- Já percebi, Ben.
- Só queria lhe pedir desculpas. Mas acho que com o final de tudo estamos todos aliviados por não ter que levar um relacionamento que não ia dar certo adiante.
Concordei silenciosamente.
Enxuguei as lágrimas e encarei as folhas verde escuro das grandes árvores que tinha no local. A madeira escura se destacava, também. Tudo parecia se destacar naquele momento nublado.
Será que é assim que vê o mundo?
Como tinha aparecido, Ben me deu um último olhar, ergueu os ombros e sorriu sem graça, de canto. Um ato respeitoso, até. Pronto para ir.
- Até. Vá até meu novo filme – me disse.
- Claro – menti.
E ele foi. Virou as costas para mim e seguiu em direção contrária, saindo do mar de plantas até chegar à calçada, onde seu carro estava estacionado no meio-fio.
Eu observei de longe até entrar, ligar o carro e sair da minha vista para o trânsito nova-iorquino.
Isso mudava tanta coisa. Meus planos, uma parte do meu futuro. Minha condição psicológica estava até não muito confiável, no entanto. Então decidi fazer algo para não ficar parada no nada, congelada e perdendo minha preciosa hora.
Com uma coragem que eu não tinha e um fôlego bem tomado, comecei a caminhar até o lago e ativar o cérebro, pensando em outras circunstâncias e universos. Tudo que me tirasse do mundo atual que eu me encontrava. Mais precisamente, tudo que me tirasse do meu corpo naquele instante.

De longe, um garoto de cabelos cacheados observava a cena apoiado no muro de um dos prédios que ficava de frente ao parque. Sua concentração lhe fez ter noção do assunto e dos detalhes do que via.
chorando silenciosamente de queixo erguido. Ben falando sério com ela, de cabeça baixa e feição dura. A intensidade dos dois quase o atingiu do outro lado da rua.
Foi o empurrão que lhe faltava para colocar seu plano em prática sem nenhum medo do futuro ou das consequências.

– Um dia antes do Grande Dia –


- ? – franziu as sobrancelhas negras, não entendendo muito bem o que o rapaz fazia naquela hora em sua casa.
Seus pensamentos podres e culpados lhe fizeram acreditar que ele jamais voltaria a falar com ela depois do episódio, quem dirá aparecer em carne e osso, sem ter uma expressão voraz e olhos com desprezo.
Na verdade, sua expressão estava suave. Um sorriso de canto não muito bem humorado decorava seu rosto, dando um auxílio para os olhos que transmitiam paz. Ele parecia decidido.
- Posso entrar? – perguntou. Ela lhe deu espaço, ainda que hesitante.
- O que veio fazer aqui? – Assim que ele entrou ela reparou que seu amigo trazia uma sacola de papel em suas mãos, que foi logo deixada em cima da mesa.
Sua curiosidade acordou na hora e teve que fitar , mais uma vez. Desta, em busca de explicações.
- Amanhã é o Grande Dia.
Ela engoliu em seco. “O que será que ele quer? Ele veio me dizer que contou para meu agente?”, pensou desesperada, sentindo seu coração acelerar e arder no peito. “E o que isso tem a ver com a sacola?!”
Limitou-se apenas a responder: - Sim, é.
- E eu vou te ajudar.
- O quê? – Ela franziu a testa, não acreditando no que ouvia. – Achei que me odiasse.
- Você é intensa quando quer – deu um sorriso de canto mais animado. – Mas não te odeio. Não seria capaz de tal coisa.
- Não? – O olhar desconfiado de não a abandonou.
- Não. E é por isso que vou te ajudar.
- Com o quê? A ensaiar como desfilar? – arriscou a piada interna e sorriu quando viu que ele se lembrou do Jack’s e entendeu a referência.
- Você ainda não aceitou a nutricionista – lembrou.
Depois de responder, apenas tirou a franja do rosto e caminhou calmo até a mesa em que a sacola estava. Abriu e pegou uma banana, chacoalhando devagar na mão e olhando atentamente para , como se fosse a primeira vez que ela via uma banana.
- Eu sei o que é uma banana – respondeu o óbvio.
- Sh. Isso é comida.
- ... – começou, cansada. “Aquele assunto nunca irá sumir, não é?”
- Sh – repreendeu, desta vez um pouco mais alto. Puxou a cadeira de madeira de perto da mesa e fez a amiga sentar. – Preste atenção.
concordou com a cabeça.
- Isso é comida. Uma fruta. Energia para o seu corpo, vitaminas para seu funcionamento. Saúde em forma de doce – falou devagar, não tirando nunca sua atenção da mulher à frente. Nem mesmo para olhar para a banana. Quando viu que a mesma iria abrir a boca, tratou logo de interromper. – E sabe o que isso significa?
parou e pensou por um minuto, mas não sabia onde ele queria chegar. Negou.
- Que você precisa. Seu organismo precisa.
- E quem não gosta de banana? – desafiou e ergueu uma sobrancelha.
apenas a ignorou. Pegou o próximo alimento; um pão francês branco.
- Isto aqui é pão – prosseguiu. – Massa. Carboidrato. É extremamente necessário para você ganhar forç-
- Engorda – o interrompeu.
O rapaz a olhou irritado.
- Isso importa, quando seu organismo necessita desta gordura ao ponto de queimá-la rapidamente?
A morena não respondeu, já sabendo onde iria acabar. Sua cabeça começou a latejar.
- Nutrientes, . Nutrientes. – Colou em cima da mesa, ao lado da banana. Enfiou a mão no saco e procurou por pouco tempo até finalmente retirar a mão com uma garrafa de leite. – Sabe o que isso aqui é?
- Leite de vaca.
- E o que significa? – Olhou em seus olhos.
- Gordura, gosto ruim, bebida inútil?
, com toda calma existente no Cosmos, respondeu:
- Nenhuma comida que eu vou te mostrar é inútil. Não vão te dar infartos, pressão alta, obesidade ou qualquer outra coisa.
- Ser inútil não é apenas dar doenças ou valer a boca que as come.
- Leite é repleto de nutrientes, vitaminas e etc. Nesta coisinha aqui tem de tudo um pouco. Ela aumenta a saúde de quem às consome, a força, a nutrição. Leite tem suma importância.
- Onde você quer chegar com isso, ? Me dando aulinha de alimentação?
- Quero que coma isso, – sussurrou, dando-lhe sua total atenção – com isso, deixando o leite de lado. A mulher o olhou, incrédula.
- Leite tem gordura. Não quero isso. Prefiro um mais... light.
ignorou e foi buscar um copo. Ok, mal sabia o que diabos era leite light e se isso existia. Mas sabia que teria que começar do básico para poder ter uma chance. Para que ambos pudessem ter.
Colocou o copo na mesa e o serviu com leite.
- Beba. Por favor. Por mim. – Pediu. E com pesar, suspirou e levou o copo até a boca.
- Ok. – E com isso ela derramou o liquido na garganta e sentiu medo de que o estômago colocasse para fora. Bebeu lentamente, gole por gole que ao todo fizeram o pequeno copo de leite demorar uma eternidade para acabar.
Porém, discordava. Ele sabia que comia coisas, mas poucas e nada nutritivo de verdade. Aliás, seu lema era de quanto menos calorias, melhor. Se ela pudesse comer apenas bolachas de 20 calorias o dia todo, ela comia.
- E então? – quebrou a tensão e ela riu, como se não tivesse acontecido nada demais.
Era uma das primeiras vezes que ela não havia vomitado imediatamente. Tinha sim acontecido algo demais.
- Sim?
- Como se sente?
- Como deveria me sentir ao beber um leite?
- Agora, coma isso. Devagar. – Entregou o pão.
- Eu vou engordar. Quer me deixar gorda para o Grande Dia? – questionou, meio traída.
- Não, . Não engorda. Irá fazer bem a você. Por favor.
Ela o fez. Mastigando devagar, vendo o alimento se dissolver na boca ao longo do tempo. Sem nunca tirar os olhos de .
- Eu prometo que isso lhe fará bem.
- Tem um gosto estranho... De mel. – Ela comentou.
- Eu coloquei algumas vitaminas a mais aí... – confessou e sorriu sapeca.
- Desde quando virou um pequeno aprendiz de nutrição e obsessivo com nutrir seres humanos?
- É para o caso da carreira em artísticas não der certo. E é, claro, por você.
- Por mim?
- Vamos te fazer se amar aos pouquinhos, ok? Podemos começar amando seu corpo?
Ela riu e concordou fracamente.
- Aonde quer chegar?
- Come essa banana e descobre. – Piscou pra ela.

O prédio onde aconteceria o Grande Desfile de hoje era imenso e luxuoso. Antes mesmo de virar a esquina para entrar nele mais cedo, pude notar que já estava lotado de jornalistas e fotógrafos na porta, onde com a fraca luz de fim de dia iluminava e dava tons dramáticos. Se isso era possível.
Impulsivamente, senti vontade de fotografar sem parar aquela bela cena. Franzi o nariz e me contentei em entrar pela porta dos fundos, subindo o elevador e apertando seus botões devagar para não estragar minha unha feita.
Era o grande dia. O grande dia tinha finalmente chegado.
E apesar de ser profissional, de trabalhar há tantos anos no ramo, eu me sentia apavorada. Estava fazendo tratamentos de beleza fazia semanas, mas ainda não me sentia pronta. Não sentia que devesse mostrar tudo isso ao mundo, sendo tão pouco. Borboletas no estômago e suor na palma das mãos.
Apesar de tudo e tanto, eu me sentia bem. De uma maneira estranha. Minha cabeça não latejava e não estava muito acostumada com meu estômago não doer; às vezes atribuía a dor que não me deixava tropeçar e cair no palco.
Eu confiei em e sabia que não tinha engordado por aquele pouco que havia comido ontem e hoje. Não esperava que me dessem a força que deu.
Suspirei porque sabia que não estaria lá. Pelo menos não agora. Já de sandália de salto aberto, caminhei até a sala onde todas as modelos se preparavam e vi as lindas meninas conversando, rindo, brincando e experimentando roupas. O clima era excitante. Como se fôssemos noivas.
- ! – uma loira me chamou. Bethany, se não me engano com seu nome.
- Oi! – correspondi e fui até ela, lhe dando um abraço e um beijo animado na bochecha. – Estão preparadas?
- Eu nasci preparada! – Adry, uma das modelos mais altas subiu na cadeira, deu o grito de guerra e ergueu os braços, fazendo pose de machão. Consequentemente, soltamos uma risada empolgada.
Antes de desviar os olhos tive a chance de ver alguma menina puxá-la risonha e mandar parar de envergonhar o mundo. Tudo parecia maravilhoso.
- O fotógrafo vem em cinco minutos. Já conheceu algum dos cantores? – Bethany me perguntou enquanto a maquiadora roubava sua atenção.
- Ainda não. Nem ideia. – A analisei e procurei na multidão o meu maquiador. – E você? Manteve contato?
Ela deu um sorriso sapeca enquanto a moça se concentrava em pintar os olhos de Bethany. Eu já sabia o que viria pela frente.
- Já peguei, até. – Piscou e sorriu de canto.
- Não acredito! – Riu incrédula. – Mas já? Ou conhecia antes?
- Eu o tinha visto na festa de anteontem. Alguns olhares, flertes discretos e nada mais que isso. Mas rolou tudo hoje.
- Meus parabéns. Ouvi dizer que o desfile de hoje contará com homenagens de grandes personalidades musicais. Qual o nome dele? – Assim que meu maquiador chegou para me dar os toques finais e realçar novas partes, tive que diminuir a atenção à Bethany.
Eu estava nervosa. Eu queria aquele momento.
Assim como toda a equipe sabia que o show estava para começar.
- Obrigada. Ed Sheeran.
- O ruivinho? – Me limitei a encarar o reflexo de Bethany no espelho, meio desacreditada. – Ele não era todo romântico e saía com garotas decentes?
- Esta é a questão. – Arrumou os cílios assim que a maquiadora se afastou, fitando-me direito. – Não saímos. – Seu tom era quase decepcionado.
Ela estava linda. Como todas as outras.
- Enfim, tenho que ir. – Disse Bethany, depois de um tempo e se levantou. Deu mais uma olhada no espelho e foi seguir caminho. – Sou uma das primeiras que vai entrar, então tenho que ir vestir as lingeries logo e tirar as fotos. Vejo você na passarela! – Mandou beijo se despedindo de mim, sorriu e saiu desfilando suavemente.
Fui me preparar correndo, com a adrenalina percorrendo meu corpo e o sorriso teimoso não saindo do meu rosto. Devo confessar que o maquiador fez maravilhas e assim que terminou eu estava uma nova mulher.
Deveria ter me acostumado com a sensação maravilhosa de pré-desfiles, mas desta vez era diferente. A energia era outra. A loucura era outra. O grau era outro. Tudo estava mil vezes mais acelerado e eu me senti uma artista.
Era agora que o show iria começar. O glamour. As fotos. O Grande Desfile estava aí com a mais nova coleção maravilhosa pronta para o público.
Eu estava pronta.
- ! - alguém me gritou e eu virei para ver o que era. Um buquê de flores bem gordo foi me entregado e eu não pude conter o sorriso. - É para você. Mandado em anônimo. - O assistente saiu e voltou a trabalhar, me deixando lá sozinha apaixonada pelo que via.
Cheirei as rosas brancas cheirosas e abracei o buquê contra o corpo. Dentro daquele mar de flores tinha um bilhete com detalhes dourados amarrado em uma delas. Peguei a tal rosa separada e abri o bilhete, mal esperando de ansiedade.

"{...} Pois ela era cinquenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve - em todo o passado do mundo - alguém que fosse igual ela. E depois, em três trilhões de anos - não haveria uma moça exatamente como ela. - Clarice Lispector, para você.
Eu vou você se ver como eu te vejo, ."

Enquanto lia, senti meus olhos e meu nariz arder internamente. Derramei uma ou duas lágrimas, não sei. Mas não era de tristeza, disso eu tinha certeza. Eu não podia explicar o que sentia. E acho que jamais serei capaz de explicar.

Havia estranhado o fato que o produtor tinha me deixado como a última a entrar antes de uma rodada completa com todas as modelos. Não entendi muito bem o porquê, e cheguei a ficar bem irritada; porém, era o Grande Dia e só de eu estar lá já era algo ótimo. Aguardei e concordei. Por um momento fraquejei, meio insegura e com milhares de coisas na minha cabeça.
E então, ansiosa e meio nervosa, andei de um lado para o outro respirando fundo até esperar o meu momento. Mais uma garota entrou e em breve seria eu.
Para me distrair – o que eu não sabia se deveria fazer, me distrair naquele momento – eu comecei a pensar em como encontrar na plateia sem parecer um rosto confuso e perdido procurando na multidão.
Eu tinha certeza que tinha sido ele que me mandara o buquê e o bilhete, sem sombra de dúvidas. E percebi naquele momento que sempre tinha sido ele em tudo. Sempre tinha sido ele a me apoiar, a cuidar de mim. A me mostrar o caminho. A me amar.
E isso ficou tão claro de uma hora para a outra porque só agora eu havia pensado direito no lado dele. Eu quis me socar.
Como você nunca percebeu isso, criatura?, me perguntei furiosa e murmurando irritada contra o nada. Com isso, recebi olhares estranhos de um dos organizadores e sorri sem graça.
Fazia tanto sentido. E eu sequer havia retribuído tudo que ele havia feito por mim. Nem em mil vidas eu iria merecê-lo, e isso era um fato que a partir de hoje eu iria suar para tornar mito. Nem que tivesse que me dedicar a ele nas próximas mil vidas.
Assim que ouvi os primeiros toques doces que anunciavam uma outra música de outro cantor, minha vez chegou. O rapaz checou minhas roupas mais uma vez e eu concluí em seu olhar: eu estava radiante. Estava linda. Eu me sentia linda.
Me sentindo envolvida com o toque gostoso com vozes em acapella que surgiam junto dando um tom agradável à música, saí de trás das cortinas com o queixo erguido e um sorriso discreto desenhado no rosto.
Estava tudo bastante incrível, que assim que saí pude notar o glamour.

Ooh, seus olhos, seus olhos,
Fazem as estrelas parecerem que não brilham.
Seu cabelo, seu cabelo
é perfeito mesmo quando ela não tenta.
Ela é tão linda.
E eu lhe digo todos os dias.

Desfilei tentando me lembrar de todas as aulas, treinos, minha vida toda. Mas principalmente tentando transparecer descontração. Eu sabia o que fazer e fiz com maestria. Meu quadril rebolando timidamente a cada passo que eu dava e minhas pernas firmes no palco. Os detalhes da minha roupa e das asas que eu vestia balançavam devagar, seguindo o ritmo dos meus passos.
O ambiente estava escuro e apenas uma luz gigante focada em mim. Estranhei um pouco, mas adorei. Como não tinha reparado muito nas outras garotas, acredito que tinha sido assim com elas também. De certa forma, o estranho dia estava cada vez melhor e isso despertou desconfiança em mim. Logo as luzes foram iluminando todo o palco e me dando uma visão mais clara do que acontecia.
A música continuava a tocar, seguida por algumas várias vozes e uma destacada. Eu não reconhecia a canção e a letra.

Eu sei, eu sei,
quando eu a elogio ela não acredita...
É tão, tão triste pensar que
ela não se vê como eu a vejo.


Olhei a plateia discretamente enquanto andava e me senti congelar quando reconheci a voz que cantava. Como eu não havia percebido antes? Será que a beleza daquele momento me fez congelar e esquecer todo o resto?
Evitando encará-lo, olhei no rosto das pessoas que pareciam maravilhadas com meu visual e provavelmente com a canção. Antes mesmo que eu me tocasse no que estava acontecendo ou chegar até a metade do palco eu vi parado, sorrindo me encorajando e com o microfone em mãos.

Mas toda vez que ela me pergunta se parece bem,
eu digo:
Quando eu vejo seu rosto...
Não há nada que eu mudaria.
Porque você é incrível,
apenas do jeito que você é.

, parado no largo palco prata em que eu caminhava. Minha cara de choque foi extrema, eu podia ter certeza. Quando eu ia murmurar o que estava acontecendo, com o semblante confuso... Imagens começaram a rodar por todo o espaço. Vi nas paredes slides rotativos de pinturas e fotos de mim.
Me vi sorrindo, chorando, brincando. Comendo – uma das fotos que tirou discretamente, certeza. Me vi em tantas posições e sorrisos que paralisei. Eu sorri junto, maravilhada com tal coisa e foi então que meus olhos se encheram de água.
Eu simplesmente não podia acreditar que isso estava acontecendo.

E quando você sorri...
O mundo todo para por um tempo.
Porque, garota, você é incrível,
apenas do jeito que você é.

Ainda paralisada em choque, mudei o foco para o que estava no meio do palco. Me toquei que deveria continuar meu trabalho e andar, desfilar. Meu choque parecia ter atraído olhares orgulhosos e cúmplices da plateia toda. Os fotógrafos não paravam.
Os olhos dele brilhavam, praticamente sorriam junto com todo o rosto radiante. Eu estava amando aquilo.

A risada dela,
ela odeia mas eu acho tão sexy.
Ela é tão linda,
e eu lhe digo todos os dias.
Você sabe que eu nunca te pediria para mudar.

Ele me encarou, olhando em meus olhos. E então, caminhei até meu amigo de cabelos cacheados. Todo o glamour, importância, pessoas, brilho, luzes... Tudo, tudo parecia ter sumido diante daquele momento. Porque a coisa que realmente estava fazendo tudo ser especial, que era especial mesmo, era aquela música, aquela letra, aquele cara.

Então, quando você me pergunta se parece bem
Sabe o que direi.
Quando eu vejo seu rosto,
não há nada que eu mudaria.

Era apenas eu e . Eu só via nós. cantando para mim com um coral de vozes o seguindo e dando mais encanto no momento.
Foi então que eu reparei na letra que antes não me atingia; e chorei de verdade. Eu entendi tudo e captei toda a mensagem que ele queria me passar. O mundo todo deixou de existir e eu tampei minha boca e senti... Uma quantidade absurda de sentimentos.
Eram tantas emoções que eu não podia descrever. Era algo que eu simplesmente não conseguia entender, digerir. Não sabia como me senti, mas assim que ouvi o início do refrão todos os meus problemas pareceram sumir. Eu me senti consertada.

Porque garota, você é incrível.
Apenas do jeito que você é.

As imagens ainda rodavam e eu fui observá-las, vendo como eu era bonita e interessante nelas. E todas eu estava pura, bagunçada, moleca. Algumas até fazendo caretas espontâneas. E eu queria que o estivesse em todas elas também, porque eu sabia; aquelas caras e bocas, modelos e sorrisos; era tudo por ele.
Quando olhei para trás, - quebrando um protocolo que eu sabia que não deveria fazer em um desfile, mas já tinha quebrado coisas demais só hoje – percebi que as outras modelos e produtores encaravam a cena sorrindo animadas/os, como se já soubessem de tudo aquilo. Pareciam maravilhados, tanto quanto eu estava.

Quando eu vejo seu rosto...


Algumas seguravam gritinhos e outras me apoiava para continuar e ir até o fim.
E eu fui até o . Ele estava do meu tamanho por conta dos meus saltos, mas isso não parecia ser um problema, mas sim algo extremamente certo.

Não há nada que eu mudaria.
Porque você é incrível,
apenas do jeito que você é.

Flashs surgiram, gritos vieram e eu não conseguia parar de chorar naquele momento tão sensível. Eu entendi tanta coisa que me sentia tonta. Toda a minha vida... Aquele pensamento. Aquele pensamento que foi capaz de destruir e mudar tudo na vida de alguém era algo mínimo no tamanho deste momento que ao invés de destruir para reconstruir, consertava e mostrava um novo horizonte.
Toquei o braço de , tomada pelo momento e emoção. Eu sorria que nem uma idiota e as pessoas gritavam animadas. As modelos saíram e foram ao nosso encontro, cantando junto o refrão e se abraçando.

E quando você sorri...
O mundo todo para por um tempo.

Papéis dourados e prateados caíam aos montes do teto, dando mais um toque sensacional àquele momento. Com um último suspiro, ele cantou para mim:
- ‘Cause girl you’re amazing... sussurrou a última parte perto de meu rosto, sorrindo para mim com ternura. -... just the way you are.


Fim.



Nota da autora: Eu não acredito até agora que terminei essa fic enorme e especial. Eu gostaria de deixar claro que o assunto de bulimia e anorexia é muito mais complexo que isso e se de qualquer modo eu ofendi alguém, desculpa, não foi o propósito. Se a fic ficou fraquinha também, sinto muito mesmo! Eu não podia passar de 40 páginas e ficou estourando.
Eu peguei essa música incrível já no fim do prazo e tive a ideia na hora. Foi a maior e mais complexa short que já escrevi e agradeço a cada pessoinha que leu! Vocês são demais e têm muita paciência hahaha.
*O desfile que eu retrato é um mix com o de 2014, que aconteceu em Londres.
Detalhe: Eu não sei como funciona o VS, mas provavelmente todo desfile deve ser um Grande Desfile e não precisam de tanto alvoroço que eu causei. Entretanto, imaginem que esse é um maior ainda (se é possível) ou um especial.
Aliás, minhas dedicatórias especiais ao Harris, como sempre. Que escolheu uma das versões e eu escrevi a outra, só de zoas. Que canta ridiculamente quando estou mal, mesmo detestando músicas. Você é meu nos dias sombrios.



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