Rock With
Baby, hold on, baby, hold on
I wanna rock with you
I wanna stay with you
I wanna rock with you
I wanna stay with you
Bloqueei a tela novamente. A notificação de “enviado há 2 dias” feria um pouco o meu ego por não ter obtido resposta até então, mas era assim que as coisas caminhavam com o Dr. Otávio Bittencourt, o residente de Medicina que eu achei no Tinder: devagar, quase parando. Os últimos anos da faculdade e os plantões no Bonsucesso não permitiam que ele passasse muito tempo comigo. Aquilo não me incomodava, afinal, só saímos algumas vezes e não trocamos mais que beijos e amassos. O que me incomodava era que eu, aos meus 21 anos, nunca tinha tido um namorado sério nem a primeira vez. E meu corpo, apesar de se divertir bastante com o vibrador que eu comprei na Shopee, estava começando a pedir que eu resolvesse logo aquele pequeno atraso biológico.
Molhei o dedo na ponta da língua e testei a temperatura do ferro de passar, aplicando a chapa aquecida no tecido grosso e verde-escuro esticado na tábua. O cheiro do amaciante subiu e , minha amiga e uma das minhas colegas de quarto, espirrou na hora.
— Desculpa, amiga. — continuei passando a saia lápis. — O Downy estava de promoção. O seu Sebastian, do mercadinho aqui de baixo, disse que eles “caíram do caminhão” e por isso custaram metade do preço.
— Agora temos mercadoria roubada em casa? — , a outra amiga com quem dividíamos nosso sobradinho em Realengo, interveio enquanto preparava sua marmita com as sobras do jantar. — O que vão dizer disso lá na sua unidade militar, ?
— Eu duvido muito que a força tática do IME monte uma operação de busca e apreensão de amaciantes clandestinos, amiga. — virei a saia ao avesso para engomar o outro lado. — Se fizerem isso, lascou. Eu comprei uns 10 litros.
— Lascou? — perguntou do sofá e eu dei uma risada. Às vezes eu deixava escapar algumas expressões tipicamente cearenses e confundia minhas duas amigas cariocas.
— Fudeu. — traduzi para ela e pendurei a saia junto com a camisa numa cruzeta. — Agora que minha farda está limpa, cheirosa e lisinha, eu declaro encerrada a noite e vou me recolher. Praia da Barra amanhã? — perguntei diretamente para , porque tinha pavor de mar.
— Fica pra próxima, amiga. — recusou. — Por mais que eu esteja precisando de um bom mergulho, eu não estou com energia para 1h30min de ônibus até a Barra da Tijuca.
— Tudo bem. — guardei uma edição de Fundamentos da Mecânica na minha bolsa. Era um livro bem caro, mas eu tinha conseguido um exemplar usado num sebo do centro por uma pechincha. — Seremos só eu e a Física na areia quentinha da praia.
— Essa Física que você conhece é uma chatice, . — bocejou. — Vê se arruma alguém para te ensinar Física na prática, se é que você me entende… — ela arqueou as sobrancelhas.
— Eu bem que estou tentando, sua tarada. — peguei meu celular em cima da mesa. — Mas o Dr. Otávio não está querendo brincar de médico comigo.
— E? — deitou-se no chão da sala. — Ele é o único pau do Corcovado, por acaso?
— Ele é o mais prático. — argumentei como se calculasse uma equação. — Eu já o conheço, sei que ele beija bem e sei que não existe chance nenhuma de eu me apaixonar. Ele é um motor ideal, 100% de aproveitamento e 0 riscos.
— Acontece que sexo é mais complicado que esses motores que você constrói no seu curso de Engenharia, amiga. — mexeu-se no sofá e agarrou uma almofada. — Você não acha que deveria perder a virgindade com alguém que signifique alguma coisa?
— Eu acho que você está vendendo muitos ingressos de filmes românticos lá no cinema e por isso está molenga assim, . Agora eu vou me deitar. — rebati, deixando um beijo na cabeça dela e outro na testa da .
— Sai de perto de mim! — reclamou. — Tá calor.
— Boa noite, minhas pirulitadinhas. — desejei enquanto caminhava rindo até meu quarto.
***
A tontura dos solavancos do ônibus finalmente tinha passado e, depois de uma água de coco e uns trinta minutos à procura de um espaço para estender minha toalha na disputada orla, eu podia, enfim, me livrar da minha camiseta do Thanos e do short jeans para ficar de bunda para cima aproveitando o Sol e meu livro. Coloquei o clip-on escuro por cima dos meus óculos de grau e comecei a folhear as páginas, desviando minha atenção para o movimento dos ambulantes vez por outra na esperança de que o vendedor de chegadinha passasse por ali. Salivei com a lembrança do gosto do biscoito e voltei para o capítulo sobre mecânica de motores até ser surpreendida com uma bola molhada que rasgou a página em que eu estava:
— Puta que pariu! — gritei e me levantei ao mesmo tempo. — Quem foi o baitola que…
— Foi mal aí, moça! — alguém chamou de longe, fazendo com que eu me virasse na direção da voz, que vinha da parte baixa de um banco de areia, bem perto da água. — Bola, por favor!
— “Bola, por favor” é teu ovo esquerdo! — bradei enquanto o culpado subia o declive. — Tu me rasgou a página do livro, seu destrambelhado!
— Me desculpa! — a figura de pele caramelada foi chegando cada vez mais perto, bloqueando todo meu campo de visão com um peitoral imenso salpicado de areia e gotinhas de água misturadas com suor escorregando por uma barriga trincada. — Eu pesei a mão no saque, perdão… Pera lá! Tu me chamou de quê?
— Destrambelhado! — repeti na cara dele, mas precisei levantar o pescoço e ficar um pouco na ponta dos pés para alcançar a dita cara. Que era muito bonita, por sinal. — Olha o estrago! — agitei o livro.
— Eu já pedi desculpas, não precisa ser tão grossa! — ele respondeu, apertando os olhos que já eram repuxados. Ele tinha um sinalzinho lindo na bochecha e, quando ele falava, os caninos grandes e pontudos escapavam da boca carnuda. Era muita coisa para ver, tanta que eu sequer percebi que o vendedor de chegadinha já tinha passado por nós com seu triângulo e já estava a uma distância considerável, levando com ele o meu tão desejado doce.
— Vai vendo! — empurrei a bola no tronco nu na minha frente com um pouco de força. — E tu ainda me fez perder a hora da chegadinha! Agora ele só vai passar aqui de novo daqui mó tempão!
— Por que tu não vai dar um mergulho pra esfriar essa cabeça, hein? — ele disse tudo num bico enorme e enganchando nos “s”. — Eu posso ser destrambelhado, mas tu é bem estressadinha, viu?
— Então vai ser destrambelhado lá no seu jogo de vôlei que eu vou ser estressada aqui com o que sobrou do meu livro. Passar bem. — suspirei e ele saiu resmungando.
Coloquei a página rasgada de volta no miolo e resolvi que o melhor a fazer era guardar o livro bem guardado de volta na bolsa. Remexi inquieta na toalha, tentando inutilmente parar numa posição para o bronze, mas a imagem do corpo escultural que eu reprisava mentalmente me causava um calor e uma agitação estranhos. Bom, talvez fosse o Sol. Tinha que ser. Consegui me acalmar quando decidi por outra leitura, uma fanfic do McFly, agora no celular. O clima abrandou um pouco, me oferecendo sombra, e eu perdi a noção de tempo. A bateria do meu sofrido iPhone, que eu ganhei dos meus pais quando fui aprovada no IME, me deixou na mão e a última coisa que eu consegui ver foi o horário: quase cinco da tarde.
— Caceta! — reclamei comigo mesma. — O ônibus pra Realengo já vai passar!
Juntei minhas coisas rapidamente e me meti de volta no short, pendurando a blusa no ombro e caminhando com pressa até o calçadão. Escondi o celular entre o biquíni e o jeans e apertei a bolsa contra o corpo, rumando o ponto de ônibus mais próximo, quando senti um puxão forte no meu cabelo e uma pressão dolorosa no meu braço.
— Sem caô e sem gritar, hein. — o assalto foi anunciado, fazendo meu coração disparar. — Celular e carteira, dona.
— Não tenho! — menti. Uma das mãos do assaltante estava no meu rabo de cavalo e a outra segurava violentamente o meu antebraço. A não ser que ele fosse um mutante, não sobrava mais nenhuma mão para segurar uma arma, então meu plano era me desvencilhar dele e correr.
— Passa logo! — ele insistiu, me fazendo inclinar a cabeça para trás com o puxão. — Ou eu quebro esse teu bracinho!
— Solta ela agora ou eu que vou te quebrar inteiro. — ouvi o “s” familiar de uma língua presa. O assaltante girou nossos corpos e eu reconheci que quem estava me defendendo era o destrambelhado de mais cedo.
— Não te mete, mauricinho! — o agressor começou a me soltar quando percebeu que o mauricinho em questão era muito mais alto e forte que ele e, quando ele ameaçou o primeiro passo, o assaltante me liberou por completo e saiu fugido.
Senti o sangue faltar nos lábios e minha pulsação disparar, lançando meu corpo numa tremedeira involuntária. Minha única reação foi me agarrar ao peito que tinha acabado de me resgatar, enlaçando a cintura fina e recebendo um par de braços musculosos em volta do meu pequeno corpo trêmulo como resposta. Um cheiro gostoso de maresia misturado a um perfume amadeirado que resistiu na pele invadiu minhas narinas. Era bom. Parecia o Coffe Man Duo, do Boticário.
— Tá tudo bem. — ele sussurrou, me abraçando. — Eu não vou deixar você sozinha, OK? Vem aqui. — ele me guiou cuidadosamente, sem me soltar, até um quiosque. Algumas pessoas no entorno comentavam o episódio e eu recebi um copo de água com açúcar que veio não sei de onde.
— Obrigada. — murmurei, quase sem voz.
— Você tá bem? Ele te machucou? — os olhos pretos me analisaram por inteiro e se arregalaram por um momento. — Ahn… Teu biquíni desamarrou. — ele traçou uma linha no próprio pescoço. — Me dá licença?
Assenti com a cabeça e em seguida tomei outro susto. Então eu estava com os seios na rua? Olhei para baixo e constatei que não, porque ainda apertava a bolsa contra o peito como se minha vida dependesse daquilo. E, no momento, meio que dependia. O rapaz deslizou os dedos delicadamente pela minha nuca exposta e atou a peça de volta, fazendo com que eu relaxasse um pouco a musculatura tensa e enfim conseguisse dar um gole na bebida.
— Olha, meu nome é . — ele se apresentou. — Meu irmão é médico e está de plantão não muito longe daqui, se você quiser, eu te lev-
— Imagina. — cortei, notando que ele olhava o meu braço marcado. — Eu fico roxa muito fácil mesmo, já vai passar, não preciso ir ao hospital.
— Você quer ligar para alguém?
Porra! Eu tinha perdido o ônibus e estava incomunicável. A e a já deveriam estar na delegacia com uma foto minha. Revirei a bolsa procurando o carregador portátil e o cabo, mas quando tentei encaixar o fio branco na entrada do meu celular, percebi que aquele era um cabo de Samsung. Eu tinha pegado o cabo da no lugar do meu. De novo. Maldita miopia.
— Toma. — , que acompanhava tudo, me estendeu um iPhone que estava uns 6 modelos a frente do meu. — Usa o meu.
Sorri curto em agradecimento e ele desbloqueou a tela, revelando um papel de parede de um céu bonito cheio de nuvens gordinhas. Digitei nervosamente os números do telefone da , o primeiro que lembrei, e em apenas uma chamada ela me atendeu com um “alô” ansioso.
— Amiga, sou eu… — comecei.
— Onde é que tu se meteu, sua lesada? Tá tentando matar a gente do coração? — ela falou sem pausa e eu ouvi a voz de perguntar por mim ao fundo. — Vou te colocar no viva-voz.
— A bateria morreu e eu trouxe o cabo errado outra vez. Escuta, eu estou bem, OK? Sofri uma tentativa de assalto.
— Assalto? — as duas exclamaram.
— Tentativa. — enfatizei. — O cara estava desarmado, não me levou nada.
— Tu reagiu, sua maluca? — me censurou. — E se ele tivesse te batido? Te sequestrado? Te estupr-
— Eu estou bem. Eu fui salva por um… — olhei para o rapaz preocupado diante de mim. O semblante dele mudou sutilmente, iluminando os olhos de filhotinho e curvando a boca num sorriso ladino.
— Um destrambelhado? — ele sugeriu baixinho.
— Um amigo. — respondi para o telefone, mas olhando para ele. — Eu fui salva por um amigo. — confirmei e o sorriso pontiagudo de aumentou.
E eu sem querer sorri também.
🎸🚁
Acordei no dia seguinte com uma puta dor de cabeça causada pela insolação, pelo couro cabeludo sensível do quase roubo e pela falação da e da , uma jurando que nunca mais me deixaria sair sem ela e outra com a promessa de se matricular numa aula de defesa pessoal imediatamente. Eu só queria tomar meu café e dar aquele assunto por encerrado, mas, por algum motivo, não conseguia parar de pensar no sem camisa que cuidou de mim mesmo depois do meu acesso de raiva por conta da bolada. Foi uma verdadeira comoção na frente do mercadinho do seu Sebastian quando eu cheguei de carona no carrão dele, porque sim, ele fez questão de me trazer em casa. E nós fizemos questão de usar os bíceps dele para subir o nosso garrafão de água. Os ombros largos quase não passaram pela escada, mas tudo acabou bem e, ao final, trocamos os contatos.
tinha feito muito por mim, era fato. Bem mais que o Otávio, que tinha me mandado uma mensagem com um “desculpa pela demora, como você está?” e um emoji que eu responderia depois. Estava mais preocupada com a roupa que eu usaria à noite no meu rolê com as meninas pelos barzinhos da Lapa. Soubemos de um pub com música ao vivo que faria cover do Fall Out Boy, uma das minhas bandas favoritas, e esperamos a semana toda por isso. Nós três trabalhávamos duro para sustentar o aluguel e as despesas da casa, eu, com minha bolsa de pesquisadora, , como revisora no jornal, e , como atendente de rede de cinemas. Merecíamos exibir nossas roupas parceladas e curtir umas caipirinhas ao som de músicas emo de vez em quando. E eu pretendia me esbaldar num vestidinho preto mais tarde.
— Bom dia, flor do dia. — me cumprimentou quando me viu na cozinha e veio acenando atrás. — Chegou encomenda pra você. — ela apontou uma caixa bonita em cima da mesa.
— Pra mim? — estranhei. — Eu nem pedi nada. Meu cartão não tá no dia bom.
Terminei de coar o café e me servi de uma xícara antes de abrir o misterioso pacote. Quando desfiz o laço, a etiqueta me arrancou um riso. O presente, identificado como “do destrambelhado”, era um volume novinho do Fundamentos da Mecânica, uma edição mais atual e mais bonita do que a que foi danificada na praia. Além do livro, a caixa estava toda forrada com vários pacotes de chegadinha.
— Mentira que ele fez isso! — exclamou atrás de mim. — , procura no Google quanto que é esse livro!
— Caro. — me adiantei. — Muito caro.
— Tu vai aceitar? — quis saber, já beliscando uma chegadinha.
— Tá me achando com cara de Anastasia Steele pra recusar presente de macho rico? Claro que vou! — meti também a mão no biscoito.
Abri a conversa com no WhatsApp, já um pouco extensa pelas figurinhas que mandamos durante a madrugada, tirei uma foto do recebido e enviei:
“Se eu soubesse que tu era tão rico, teria te deixado me dar outra bolada.”
A resposta veio. Instantânea. Aquilo era novidade para mim.
“Eu não sou tão rico. O vendedor que fez a chegadinha a 2,50.”
Ensaiei uma risada e cuidei em ajudar minhas amigas nas tarefas domésticas do dia para dar tempo de fazer as unhas e retocar o preto do meu cabelo antes de sairmos. Anoiteceu logo e, após alguns minutos esperando que o Uber baixasse de preço, um motorista aceitou nossa corrida e os clientes do mercadinho viram as três mulheres mais produzidas e bonitas de Realengo e adjacências entrando num Fiat. Afivelei o cinto cuidadosamente para não amassar a seda fake do vestido minúsculo de costas nuas e paguei calcinha para todos os presentes na hora de descer do carro quando chegamos ao barzinho. A fila andou rápido, recebemos as pulseiras liberando a entrada e pedimos os primeiros shots. Nossa estratégia era comer bem em casa para conseguir beber bastante sem gastar muito e, se a glicose quisesse cair, tinha sempre um estoque de pirulitos dentro da bolsa.
A banda começou a arrumar os instrumentos no palanque e fomos chegando mais perto para curtir o show. O guitarrista, agachado num canto ajeitando a fiação, usava uma camisa social preta que estava torando no trapézio definido e nas costas e braços largos. Aquele tamanho todo não me era estranho, assim como o corte de cabelo nuquinha batida e o sorriso de vampirinho que apareceu quando me viu.
— Ei, guitarrista! — acenei para o risonho. E gato. Caralho, como ele era gato. — A noite é curta! Eu quero dançar! — avisei.
— Baby, hold on! — ele gritou de volta. — Quando eu plugar a guitarra, eu vou dançar com você até o mundo acabar!
posicionou-se atrás de um pedestal (que ele precisou ajustar por ser um poste de tão alto) e a banda abriu com Tiffany Blews. Além da guitarra, ele fazia voz de apoio e quando o vocalista puxou a ponte para o primeiro refrão, cantou me encarando e piscando para mim:
— Oh, baby, you’re a classic, like a little black dress…
Cantei junto erguendo as mãos no ar, pulando e dançando com e o set inteiro, até nossos coturnos e All Stars não aguentarem mais. A banda encerrou o show e o líder começou a apresentar os integrantes, para os quais eu não dei muita bola. Meus olhos estavam fixos no botão que lutou bravamente, mas acabou abrindo, exibindo um pouco do peito maravilhoso de , subindo e descendo enquanto ele, suado, virava uma garrafa de água. Eu nunca quis tanto ser uma.
— Na guitarra, diretamente da Coreia… Kim! — o vocalista anunciou e eu fiz questão de soltar um assobio.
— Gostoso! Destrambelhado, mas gostoso! — brinquei e ele gargalhou, me mandando um beijo voador.
Voltamos para a mesa para uma água e mais uma rodada de drinks. Pouco depois, e resolveram enfrentar a fila do banheiro e eu fiquei para guardar o lugar e as coisas das duas. Prendi o cabelo bem alto e procurei lencinhos na bolsa para amenizar a tragédia que estavam as lentes do meu óculos, embaçadas pelo calor da aglomeração e pelo meu bate-cabeça quando tocou Dance, Dance. Limpei como pude e dobrei o lenço para enxugar o suor que acumulou no meu decote. Nesse momento, o maior par de peitos que eu vi na vida, mais uma vez, tapou tudo à minha frente.
— A estressadinha que estava com um livro de Física em plena praia da Barra é a mesma que está aqui agora se acabando no Fall Out? — sentou-se. — Perdida no personagem, hein, ? Nerd ou emo?
— Os dois. — enfiei o lenço na fenda dos seios e os olhos de foram junto sem discrição. — E você? Guitarrista, destrambelhado e o que mais?
— Piloto executivo em formação. — ele levantou o indicador, pedindo uma cerveja. — Escola de Aviação Civil.
— Valha, meu Deus! — exclamei, sacudindo o gelo e limão da caipiroska. — Tu é rico pra caralho, ! Habilitado pra qual aeronave?
— Até agora, só meu helicóptero. — ele acompanhou quando levei o copo à boca.
— TEU HELICÓPTERO? — quase engasguei.
— Ele se chama Darumdarimda. — ele riu e a long neck dele chegou. — Eu e meu irmão inventamos esse nome quando éramos crianças, é a nossa palavra mágica para ficar feliz.
Era adorável a forma como falava do tal irmão, que, a julgar pelo tom de admiração que ele usava, deveria ser mais velho. Eu tinha quase certeza de que era o caçula porque o carinho com que ele se referia ao irmão era parecido com o que Theo, meu irmão mais novo que ficou no Ceará, tinha por mim.
— E o motor do Dario da Silva? — tentei repetir o nome do helicóptero e falhei. — A engenheira mecânica em mim ficou curiosa.
— Dois, de turbina. Lotarev D-136, 11.400 cavalos. — ele entornou o gargalo e apoiou um cotovelo na mesa, segurando o rosto bonito e batendo os cílios devagarinho.
— Quantos cilindros nas belezinhas? — espelhei o movimento dele e inclinei para mais perto. Deu para sentir o perfume. Era o Coffee preto, com certeza.
— Seis. — ele me olhava fixamente. — Quer dizer, cinco agora. Um deles queimou e estou esperando reposição, mas essas peças vêm de fora, demoram bastante.
— Temos alguns pistões de liga de alumínio forjado lá no IME. — ia tomar outro gole e desisti, afastando o copo. — OK. Eu acabei de te entregar uma informação militar confidencial. O álcool solta a minha língua.
— Só o álcool?
— Como? — perdi a última parte.
— Nada. — levantou os olhos e deu um tchauzinho simpático para e , que se aproximavam. — Suas amigas estão voltando e eu vou embora antes que elas me façam subir outro garrafão de água.
— Esperto. Me dê notícias do Dario da Silva, OK? — pedi.
— Vou fazer melhor. — ele se levantou e dobrou a manga da camisa, evidenciando as veias no braço. — Assim que ele se recuperar totalmente, te levo para dar uma volta.
— Eu nem vou me fazer de difícil. Aceito. — sorri e me estalou um beijo quente na bochecha.
🎸🚁
Desde o quase assalto e o encontro inesperado no barzinho, e eu continuamos mantendo contato diário. Ele até compartilhou comigo o código de rastreio do cilindro do helicóptero e me ensinou, enfim, a dizer Darumdarimda. Falávamos sobre tudo, desde noções básicas de aerodinâmica até animes e frivolidades da nossa rotina. Além das mensagens, depois que o GPS da Mercedes dele gravou o trajeto para Realengo, era uma visita frequente no nosso sobradinho, onde ele, mesmo tão cheio da grana, parecia ficar bem à vontade. Ele jogava conversa fora, tirava umas músicas no violão da e já era seguro dizer que, apesar da clara diferença social, desenvolvemos uma boa amizade.
— O outro pé agora. — , sentado num pufe pequeno demais para o seu tamanho (como tudo na nossa casa), bateu no próprio colo e eu apoiei o calcanhar nas pernas dele.
— Eu tenho que admitir que isso é a fantasia de qualquer mulher. — confessei vendo-o balançar o vidro de Rebu, da Risquè, para amolecer o esmalte. — Um galalau de macho fazendo as unhas dela.
— Eu sempre acabo trabalhando quando venho aqui. — ele resmungou.
— Tuas ventas. — deixei escapar o cearês e ele gargalhou. — Tu que se ofereceu pra vir e pra pintar meu pé. Aliás, não me desce que tu seja essa lapa de homem e goste de trabalhos manuais minuciosos assim.
— Só porque eu sou grande eu não posso gostar de coisas delicadas, tipo costurar e cozinhar? — ele fingiu ultraje.
— Você pode gostar do que quiser, desde que faça alguma coisa pra gente comer.
— Tem leite e ovos aí? Pensei em fazer um bolo de cenoura com chocolate, as meninas gostam, né? — ele perguntou e eu confirmei, já com o estômago cantando. — Ótimo. Preciso agradá-las, elas mal ficam aqui quando eu venho…
— É porque faz parte do nosso plano pra enricar fácil. — expliquei. — Elas têm que nos deixar a sós pra eu poder te seduzir e dar o golpe da barriga em você. E aí vamos viver da generosa pensão que tu vai pagar para a pobre menina que engravidou na primeira vez que deu.
deu uma risada irônica — ele ria em “hehehe” — e beliscou minha panturrilha de leve. O celular dele apitou e ele quase derrubou a acetona para alcançar o aparelho, levantando-se bruscamente e num pulo que, eu juro por Deus, balançou a estrutura do sobradinho.
— Meu cilindro chegou! — ele avisou, animado. — O Darumdarimda decola amanhã! Você vem comigo, não é?
— Sim! — a empolgação dele me contagiou. — Eu quero ir com você! Pra qualquer lugar!
Depois de fazer o bolo e acertar o horário e outros detalhes do voo no outro dia, foi embora e me deixou num pico de euforia que me fez revirar o guarda-roupa de cima a baixo em busca do que vestir. estava quase sumindo atrás da pilha de roupas em cima da minha cama e testava a caneta delineadora no dorso da mão, treinando a maquiagem que faria em mim.
— Vou fazer fininho, mas vou puxar bastante o traço. — concluiu. — Teu olho é pequenininho e ainda tem o óculos por cima…
— Vê se amarra bem o cinto de segurança, , pelo amor de Deus! — me aconselhou com seu tom maternal, apesar de ser a mais nova de nós três.
— Prometo que não vou me esborrachar no chão. — dobrei o conjunto de top e calça de alfaiataria com um blazer super fofo na cadeira ao lado da réplica de um Nike preto e branco e de uma bolsinha. — Obrigada pela ajuda, amigas.
Nos demos as boas-noites e eu demorei para conseguir dormir. Fiquei vendo alguns reels no Instagram e chequei minhas dms, achando entre elas uma resposta do Otávio a um story que eu tinha postado, me elogiando. E dizendo que queria me ver. Apenas curti e caí no sono em seguida, acordando na manhã seguinte bem descansada e com tempo hábil para me produzir. Coloquei primeiro o top e a calça, por causa do calor, e fiquei parada enquanto segurava uma luz de ring light que ajudou a contornar meu olho.
— Trá! — ela disse, tapando a caneta. — Na régua! Não tem quem diga que esse delineador custou só 7,99 lá no Saara.
— Tá gata, amiga. — reforçou. — O já tá vindo?
— É o carro dele lá embaixo. — confirmou, olhando pela janela e guardando suas maquiagens de volta na necessaire.
— Então eu vou indo. — peguei minhas coisas e pus de volta o óculos na cara. — Vejo vocês lá de cima!
— Para com isso, menina, parece que vai morrer! — repreendeu e eu desci as escadas ansiosa por entrar na Mercedes e sentir o geladinho do ar-condicionado.
— Eita, porra! — soltou assim que me viu. — Que mulher linda!
— Eu sei. — beijei o rosto dele, macio apesar da barba nascente. Ele estava com uma camisa polo branca com o brasão da escola de aviação estampado no peito e um óculos escuro estilo aviador, óbvio.
Chegamos ao aeroclube e fomos direto para o hangar onde o Darumdarimda nos aguardava. me deu algumas instruções, me explicou o curso do voo e me ajudou a subir no helicóptero como se eu não pesasse nada para aqueles braços malhados. Ele se certificou de que eu estava segura no assento do copiloto e assumiu seu lugar no comando da cabine, encaixando os headphones em mim primeiro e nele depois. Acionou os botões do painel e puxou a alavanca do assoalho da aeronave, provocando um barulho estrondoso das turbinas trabalhando, e o senhor Dario da Silva começou a levantar voo.
— Eu vou te deixar nas nuvens. — ele falou bem alto para se sobrepor ao ruído das hélices. — Pronta?
Fiz um sinal positivo e iniciamos o itinerário, sobrevoando alguns pontos do Rio por cerca de meia hora. não parava de sorrir, era nítido o quanto era apaixonado por estar nas alturas. De todas as belas paisagens que tive o privilégio de admirar, ver o tão plenamente feliz e realizado com certeza foi a melhor delas.
— Quer fazer a curva comigo? — ele perguntou quando estávamos passando por Copacabana, manuseando o controle cíclico, uma espécie de câmbio de marcha entre os joelhos dele, com a mão direita.
— Eu sabia que tu planejava me matar, Kim. — desdenhei, incrédula da proposta. — Só não imaginava que tu queria se matar junto.
— Não tem erro. O RPM está ajustado, é só colocar a sua mão na minha aqui no joystick.
— Você quer que eu meta a mão nesse negócio duro no meio das suas pernas assim? Esqueceu que eu sou virgem? Ao menos diz que eu sou bonita. — brinquei.
— Você é a mulher mais linda que eu já vi. Agora anda logo! — ele disse, com uma cara de canalha. — Eu sei que você quer.
Pus meus dedos nervosos sobre a mão grande de , sentindo a vibração do controle através das nossas palmas, e guiamos suavemente o helicóptero de volta à base. Ele fez todo o trabalho, é claro, mas o simples fato de estarmos nos tocando era sempre uma sensação boa. Pousamos em segurança e ele me tirou os headphones com o entusiasmo de um cachorrinho:
— O que você achou?
— Incrível! — continuei berrando, tentando me acostumar novamente ao silêncio do helicóptero desligado. — , tu é incrível!
— ? — ele repetiu num sorriso entreaberto que mostrava a pontinha das presas.
— Abreviação de . — dei de ombros. — Gostou?
— Eu adorei. — ele demorou os olhos em mim e depois chacoalhou a cabeça, como se só agora tivesse aterrissado. — Guenta aí, eu vou te ajudar a descer.
E, mais uma vez, como se levantasse um peso de papel, me tomou nos braços e finalizamos os procedimentos de desembarque. Nos despedimos do Darumdarimda, da equipe de apoio e fomos até o carro dele, decidindo no caminho que, já que estávamos pertinho do Forte de Copacabana, deveríamos parar para um café na Confeitaria Colombo. Era um lugar tradicional, mas relativamente acessível, e eu estava no meu dia de madame com a fatura do Nubank fechadinha. Podia me mimar com um tartelete de nozes e uma bomba de chocolate.
— Aí, o tempo fechou geral, mané. — observou, batendo a xícara no pires. — Vai cair um toró. Ainda bem que voamos antes disso.
— Ah, é verdade! — engoli o último pedaço do doce e tirei um moleskine pequeno e uma caneta de dentro da bolsa, abrindo o pequeno caderno na mesa.
— Qual é? Vai escrever uma cartinha pro Dr. Otário? Ele demora tanto a te responder que eu acho que vocês se comunicam por carta mesmo…
— Otávio. — corrigi e tracei uma linha com força. — E não é carta, é minha lista de desejos. — ergui a página com a lista de coisas que eu queria fazer. — Estou riscando o “voar de helicóptero”.
— Nesse caso, de nada. — bateu continência. — O que mais tem aí?
— Não muito… Fazer uma tatuagem, ir num show do BTS com a e a , dar um beijo de cinema… — li em voz alta.
Um sonoro trovão estourou e trouxe as primeiras rajadas de chuva que tinha previsto, engrossando rapidamente e obrigando os clientes do lado de fora a correrem para se abrigar na parte coberta. analisou a movimentação, pensou um pouco e chamou o garçom, fazendo o sinal da conta.
— Agora? — estranhei. — Tu quer sair daqui nesse pau d’água?
— É. Eu tive uma ideia! — o garçom chegou e aproximou um cartão black da maquineta sem nem olhar o valor que estava pagando. Pegou minha bolsa, o blazer e me puxou pela mão. — Vem! Rápido!
Fui arrastada para fora do estabelecimento convencida de que não conseguiria vencer a força de ou a sua gracinha de risada, que parecia a de uma criança prestes a aprontar. Quando, ensopados, chegamos ao carro dele, ele abriu a porta dianteira apenas para jogar minhas coisas no banco e travou o veículo novamente antes que eu entrasse.
— Tu é um desmiolado, sabia? — acusei. — O que tu tá fazendo?
Em vez de responder, tirou meus óculos e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha. Ele encaixou a mão no meu rosto, me prensando contra si, e os tecidos encharcados das nossas roupas nos grudaram um no outro. Sem aviso, os lábios mornos e molhados dele encontraram os meus calmamente num beijo regado a gotinhas de chuva, quando uma língua tão lenta e gostosa quanto pediu passagem e dançou por uns bons minutos dentro da minha boca. O braço em volta da minha cintura me apertou mais um pouco e a mão que estava no meu rosto foi parar na base das minhas costas, erguendo o meu corpo e tirando meus pés do chão. nos rodopiou no nosso eixo e me colocou de volta em pé, terminando o beijo com um selar e um sorriso aceso. O tronco definido estava completamente delineado pelo efeito da água na camisa branca e o que a transparência denunciava era tão lindo que eu admirei mesmo sem óculos.
— O que foi isso? — perguntei, tonta.
— Um beijo de cinema. — ele respondeu, abafado pelo som da chuva. — Mais uma coisa pra você riscar da sua lista.
🎸🚁
Não contei sobre o beijo a ninguém porque também não tocou no assunto quando me deixou em casa ou mesmo no dia seguinte. Por mais que aquilo tivesse agitado o meu mundinho, eu precisava usar a parte racional do meu cérebro. O que um cara bem de vida a ponto de ter um helicóptero ia querer com uma pesquisadora iniciante do Instituto Militar de Engenharia além de uma amizade? Aquele beijo não tinha significado nada, é isso. Mesmo que tivesse me feito arder em febre (que nem era pelo mormaço, essa era toda na conta do com aquele cheiro amadeirado e aquela boca deliciosa), o beijo de cinema não era nada, não foi nada, pronto.
Desliguei o computador do laboratório, todos os outros alunos já tinham ido embora e eu continuava quebrando cabeça para equacionar os materiais isolantes para um teste de resistência elétrica. Peguei o celular para usar um aplicativo de calculadora científica e vi que tinha recebido a seguinte mensagem do Otávio:
“Estou de folga hoje. Posso te ver mais tarde?”
Confirmei sem pensar muito, mandando o endereço de casa. Era o que eu precisava, transar de uma vez com o médico, sossegar o facho. Sendo dia de pré-estreia da Marvel, não estaria em casa antes do amanhecer e não ficaria muito feliz com a ideia, mas poderia dormir na casa de alguma amiga da revisão. Fiz um chek-list mental: cafofo limpo, a depilação estava em dia, o anticoncepcional que eu tomava apenas para regular a menstruação também, tinha um vinhozinho lacrado na despensa… Agora eu só tinha que servi-lo com alguma coisa. Talvez uma massa. Mas eu sabia fazer massa?
— ! — uma luz acendeu na minha cabeça e eu liguei para ele. — Me ajuda! — disparei sem sequer cumprimentá-lo quando ele atendeu. — Eu preciso fazer uma massa chique.
— E o que eu tenho a ver com isso? — provocou do outro lado da linha.
— Você sabe cozinhar melhor do que eu. — adulei. — É uma ocasião especial, preciso de uma coisa mais elaborada.
— Dr. Otário vai jantar, é? — ele perguntou com tédio.
— A massa e eu, se Deus quiser. — desejei para o universo. — E o nome dele é Otávio. — frisei novamente.
— Foda-se ele, eu não gosto desse cara. — teve um pequeno ataque de testosterona, típico de quando outro macho era citado. — Faz miojo.
— Por favor, ! — insisti, adoçando a voz no apelido. — É a minha primeira vez, eu não posso oferecer só água e buce-
— Tá, tá. — fui interrompida. — Eu vou te mandar mensagem com a lista de ingredientes e chego aí, OK?
🎸🚁
— A residência no Bonsucesso está uma loucura, mas que bom que finalmente consegui te ver. — Otávio finalizou o segundo prato limpando a boca que era fundinha nos cantos. — Eu senti sua falta, sabia?
— Eu também senti sua falta, . — suspirei, aérea.
— Otávio.
— Oi?
— Você me chamou de . — ele riu contido e frustrado. — Umas três vezes.
— Oh… Me desculpa. — gelei dos pés a cabeça, apertando a mão dele. — Eu…
— Tudo bem. — ele se aproximou de mim, acariciando meu pulso. — Vamos esquecer isso e pensar só na gente, pode ser?
Podendo ou não podendo, o fato é que um bipe alto e contínuo apitou no bolso de trás de Otávio e matou o clima. Soprei o ar, sabia bem o que aquilo significava. Ele me olhou atônito e ficou de pé de repente:
— Eu sinto muito, . É do hospital. Eu preciso ir. — ele se desculpou e saiu, se despedindo de mim com um beijo casto e sem graça na testa.
Apaguei as velas, juntei as louças na pia e me joguei no sofá agarrada ao que sobrou do vinho. Não pude dar um gole sequer porque alguém bateu na porta, o que era estranho, as meninas tinham a chave. O Otávio devia ter esquecido alguma coisa. Levantei para abrir sem perguntar quem era e o perfume no qual eu não parava de pensar subiu de repente.
— Ah, oi, . — meu coração errou algumas batidas ao vê-lo e eu procurei acalmar as borboletas por causa dele e daquele peito que não cabia em camisa nenhuma. — Entra aí, o Otávio foi embora. Teve uma emergência no hospital.
— Eu sei. — ele fechou a porta atrás de si.
— Sabe como? — abandonei a garrafa na bancada e me apoiei na parede.
— Quem tu acha que convocou o Dr. Otário? — foi chegando mais perto e me encurralou, um braço na altura da minha cabeça e outro na altura da minha cintura. — Eu era a emergência. Eu liguei fingindo ser do hospital.
— Porra, , tu tinha que tirar onda justo hoje? — me enfureci pelo trote. — Tu sabe o que deveria acontecer hoje!
— Foi exatamente por isso que eu liguei, . — os olhos negros me leram inteira e o cheiro de café e sândalo me inebriou completamente.
— O quê?
me prendeu em mais um beijo, que mesmo sem a chuva dessa vez, prometia matar a sede que eu tinha dele. Um arrepio gostoso me subiu a espinha quando ele afundou as mãos no meu cabelo e me esmagou contra o corpo quente, sussurrando enquanto passeava pelo meu rosto com um carinho na ponta dos dedos:
— Para alguém que estuda tanto você até que demora a entender algumas coisas, . Eu não suporto a ideia de outro cara aqui contigo quando… quando deveria ser eu aqui contigo.
Respirei fundo, tomada por uma onda repentina de alívio e felicidade. Respondi com um beijo e mãos que buscavam livrá-lo da camisa, arranhando o abdômen dele de leve por baixo da peça.
— … acho que nós não devemos. — ele me parou. — Alguém pode se machucar.
— , relaxa. — entendi a preocupação, afinal, eu estava prestes a entregar minha virgindade a ele. — Eu tô pronta. Pronta pra você. Eu não vou me machucar.
— Eu sei. Eu estava falando de mim. — ele juntou minhas mãos no peitoral e as beijou. — Eu não quero só a sua primeira vez, eu quero todas. Eu quero te dar tudo e, se eu puder ter você, eu não vou quebrar seu coração. Eu estou apaixonado por você, .
Selei os lábios dele e sorri enlaçando seu pescoço, dando um pequeno impulso para enganchar minhas pernas em volta do quadril alheio:
— Para alguém que pilota tão rápido você até que demora a entender algumas coisas, Kim. Eu também estou apaixonada por você, seu destrambelhado!
riu, apertou minhas coxas à mostra pelo vestido e me levou até meu quarto, onde ele me amou pela primeira vez e me levou às nuvens pela segunda, numa viagem muito mais doce e alucinante que a do helicóptero. Nossas peles nuas, ligadas por suor e prazer, se descobriram e se aproveitaram até ficarmos cansados.
— Tudo bem se agora a gente tomar um banho junto? — ele sugeriu, roçando o nariz no meu.
— Não vejo por que não. — concordei. — Você já me viu pelada mesmo…
— Eu ainda quero ver tanta coisa, . — ele me beijou repetidamente. — Quero ver como você fica quando acorda. Quero ver você dormir no meu peito. Quero ver que vestido você vai usar pra conhecer minha família.
— Um da Shein. — respondi na hora. — Bem comportadinho. E por baixo, uma lingerie que você vai amar, piloto.
— Ótimo. — um selar longo. — Porque eu só quero amar você.
Rock With
I just want to love you
I won't leave you alone
I just want you, I need you
I won't leave you alone
I just want you, I need you
— Achei! — exclamei em alto e bom som na sala do apartamento que dividia com minhas amigas.
— Ai! Que susto. — reclamou. Era a única que estava em casa. já tinha saído para o trabalho. — Achou o quê?
— Desde o seu quase assalto, eu tô procurando uma academia que ofereça qualquer aula de luta ou defesa pessoal e que caiba no meu orçamento. Lembra? — comecei a explicar.
— Nosso orçamento. — corrigiu. E ela tinha razão. O nosso orçamento era sempre compartilhado para que no final do mês conseguíssemos pagar todas as contas.
— No nosso orçamento. — repeti. — E agora eu achei. Fica a duas quadras da redação. Tem aula de Krav Magá lá.
— Aula de quê? — ela franziu as sobrancelhas para mim.
— Krav Magá, . É um tipo de defesa pessoal estrangeira aí que envolve várias técnicas de luta pra ajudar você a se defender de várias situações usando só o corpo como arma. — expliquei. — Se eu não gostar, tem Hapkido na academia também, e tem o mesmo princípio. É bom que eu já faço duas coisas em uma: aprendo a bater em quem merece e perco os quilos que foram parar na minha bunda.
— Parece complicado e caro. Como tu vai pagar por isso, amiga? — perguntou com uma careta.
— As aulas são em dois dias na semana. No dia que eu não for, eu faço extra. — suspirei. — E a academia não é franquia, então o preço não é um absurdo.
— Tu vai lá amanhã? — ela quis saber.
— Vou. Me deseje sorte. Eu vou precisar.
🥋
Assim que saí da sede do jornal onde trabalhava como revisora das notícias que iam para o site e para as redes sociais, andei as duas quadras que separavam a academia da redação. A fachada era de vidro e o lugar parecia cheio, com várias pessoas carregando pesos.
— Boa noite. — desejei à recepcionista e arrumei a mochila no ombro. Ela só me sorriu sem responder. — Vocês têm aula de luta aqui, né?
— Sim. Você tem interesse? — ela quis saber.
— Bom, eu pensei se de repente eu não poderia assistir uma aula de Krav Magá ou Hapkido. Ainda tô em dúvida. — sugeri. Eu não sabia se aquilo era permitido.
— Os dois têm o mesmo princípio, sabe? — ela sorriu. — E você chegou bem na hora. O professor Choi vai começar a aula de Hapkido em cinco minutos. — ela parecia animada. — Eu vou liberar sua entrada.
A catraca fez um barulhinho e eu passei para dentro. Quando pensei em perguntar se o professor era asiático, vi um cara de olhos puxados, cabelo escuro e com um peito forte escapando do quimono vindo na nossa direção. Os olhos dele encontraram os meus e ele sorriu. E no segundo seguinte ele tropeçou em um dos halteres largados no chão e quase caiu. Virei o rosto tentando segurar o riso, mas a recepcionista estava rindo, o que me fez rir também.
— Reforce o aviso de não deixar halteres no chão. — uma voz grave disse atrás de mim.
— Sim, senhor. — a recepcionista respondeu tentando não rir.
— Posso te ajudar? — ele me perguntou.
— Eu queria saber se eu posso assistir uma aula de Hapkido ou de Krav Magá. — sorri amarelo.
— Bom, acho que nunca tivemos ninguém observando a aula, mas eu posso ver com o dono. — ele sorriu.
— Ah. Então eu vou nessa e volto outro dia. Obrigada pela atenção.
— Não. — ele segurou meu pulso. — Eu já decidi.
— Mas você não ia ver com o dono? — franzi as sobrancelhas para ele.
— Choi. O dono. — ele me estendeu a mão.
— , revisora ali do jornal. — apertei sua mão tentando controlar minha careta, mas tinha a certeza de estar falhando.
— E futura aluna? — ele pareceu interessado.
— Isso veremos. — sorri sem mostrar os dentes.
— Bom, vamos. A aula vai começar. — ele sorriu. Ele sorria demais. Era simpático demais. Engraçadinho demais. Eu já estava achando minha ideia ruim demais, mas o segui até a sala de treino. Três pessoas vestindo quimonos entraram logo depois. — Boa noite, galera. A… senhorita vai assistir nossa aula hoje. Talvez ela se torne uma de nós.
As pessoas na sala acenaram pra mim e a aula começou. Era bacana ver a luta, parecia útil para a vida. E não parecia tão difícil de aprender. Mas tinha um impedimento: o quimono. Devia ser caro.
— Por hoje é só, pessoal. — bateu palmas. Os alunos fizeram uma reverência e bateram palmas também, saindo em seguida. Então ele se aproximou de mim. — E aí, convencida a ficar na minha aula?
— Eu achei bem legal. — levantei do chão onde estava sentada. — Mas vocês usam quimono e meu salário não cobre um desses. — balancei a gola do quimono que mostrava demais o peito dele.
— Eu… Eu posso te arrumar um. — ele me analisou com os olhos. — Que tamanho você veste, um G?
— Sei lá. — dei um passo para trás.
— Uma aluna foi embora do país e deixou o quimono aqui. Eu posso te emprestar até você conseguir comprar o seu. — ele sorriu. De novo.
— Obrigada pela oferta, mas eu vou pensar. — dei outro passo para trás. — Então até qualquer dia.
— Só faz a matrícula. A gente vê o quimono depois. Foi um prazer. — ele deu dois passos para a frente e me estendeu a mão.
— Eu já disse que vou pensar. — apertei sua mão estendida. — Tchau.
Saí da academia desejando boa noite à recepcionista e peguei a condução até em casa. Suspirei assim que abri a porta.
— Como foi lá? — perguntou da cozinha.
— A aula é até legal, mas o professor é um coreaninho marombado e dono da academia. — larguei os sapatos e me joguei no chão da sala.
— Ele é gato? — ela quis saber.
— Parece mimado. Muito engraçadinho.
— Mas ele é gato? — ela insistiu na pergunta.
— Você não me ouviu dizer que ele é irritante? — sentei no chão.
— E daí? Uma coisa não anula a outra. — ela deu de ombros.
— Anula sim. — levantei do chão e fui para a cozinha atrás do cheiro de batata-frita na Airfryer. — Ele me ofereceu um quimono de aluna que foi embora do PAÍS, ! — enfatizei o final.
— Então aceita. — ela rebateu como se fosse simples. E talvez fosse, eu que estava complicando.
— Eu vou pensar. — suspirei. — Eu vou tomar banho. E tu vai, por favor, terminar de assar essa batata que eu tô com fome.
🍟
E, no fim, uma coisa anulou a outra. Digo, eu me matriculei na aula de Hapkido. Não porque era bonito, mas porque eu sentia que precisava daquilo. Aceitei o quimono que me foi oferecido depois de a quase gritar que eu deveria aceitar.
Nas aulas, sempre dava um jeito de pegar em mim, fosse me fazendo de cobaia quando estávamos em número ímpar (às vezes apareciam outros alunos), fosse arrumando meu quimono ou pegando no meu cabelo. Hoje apenas eu havia aparecido na aula.
— Aula particular hoje, Soares? — ele me chamou pelo sobrenome quando entrou no CT.
— Parece que sim, Choi. — rebati.
— Você quer sair e tomar alguma coisa ao invés de ficar e suar? — ele sorriu. Ele sorria demais para mim, acho que estava realmente tentando me derrubar com aquele sorriso fácil e aqueles toques leves. Coitado.
— Ah, não. Eu prefiro suar. Tô com muita energia acumulada, preciso gastar. — suspirei. Ele sorriu largo e prendeu o lábio inferior entre os dentes. — Para.
— Mas eu nem disse nada, pô! — ele riu alto.
— E precisa, ? Olha a sua cara. Safado. — reclamei a última parte bem baixinho. — Vamos começar logo o ca…
— Ei, sem palavrão no meu CT. — ele me interrompeu.
— Eu ia dizer pra começar a aula. — posicionei as mãos e fiz a reverência. me imitou. — O que vai ser hoje?
— Eu vou te ensinar a se soltar quando for agarrada. — ele respondeu com um sorriso de canto.
— E se eu não quiser me soltar? — perguntei olhando nos olhos puxados.
— Tem certeza de que não quer sair e tomar uma cerveja? — ele se aproximou um passo.
— Tenho. Tô pagando pela aula, . — arqueei uma sobrancelha.
— E se eu te compensar? — ele sugeriu.
— A aula, . Pare de flertar comigo. — briguei, mas ri.
— Vamos lá. — ele suspirou. E pelos 45 minutos seguintes, tentou me explicar como eu deveria me soltar não importasse por onde o meu provável agressor me agarrasse.
— Agora é pra valer? — perguntei, já cansada, suada e descabelada. Em um movimento rápido demais para a minha cabeça processar, me derrubou no chão, prendeu meu quadril entre os joelhos e segurou minhas mãos acima da minha cabeça.
— Como sai daqui agora? — ele perguntou com um sorriso de canto. O peito dele, exposto pelo quimono aberto, estava bem diante dos meus olhos e eu me forcei a olhar para cima. Seus olhos rasgados encaravam minha boca e peguei o exato momento em que ele passou a língua nos lábios e mordeu o inferior de leve. Arrastei as mãos para baixo em um movimento de meia-lua, me livrando de seu aperto, e agarrei a gola do quimono, o puxando para baixo e o beijando. correspondeu de imediato e ajustou o corpo ao meu. O beijo era envolvente e o quente do corpo dele em cima do meu só estava deixando tudo melhor. Uma de suas mãos desceu para a minha cintura e se arrastou mais para baixo, puxando minha coxa para cima. Foi o momento de partir o beijo.
— Não tão rápido, gatinho. — sussurrei para ele e o empurrei levemente, deslizando para o lado. — Não é tão fácil. Me leve para sair primeiro. Eu sou humilde, mas sou decente. — rindo, levantei do chão e ajustei o quimono no corpo. sentou sobre os calcanhares e me encarou. — Me leve ao cinema, sei lá. Eu gosto do MCU. — disse displicente sabendo que estrearia um novo filme da Marvel em breve. — Se for DC, não me chame. Não gosto dos filmes, são escuros. — comecei a desatar o nó da faixa.
— Eu ia ver com os caras, mas podemos adicionar uma cadeira na compra. — ele sorriu.
— Bom, você pode decidir e me ligar. — tirei a blusa do quimono e ajustei o top. — Valeu pela aula. — fiz a reverência que me foi ensinada e dei as costas para sair da sala.
— ! — ele chamou e eu parei, sem me virar para olhar para ele. — Você não me deu seu número. Como eu vou te ligar?
— Me poupe, . — dei meia-volta. — Você manda nisso aqui. Caça lá na recepção. Tá na minha ficha. — acenei um tchau contido e saí da sala de treino. Precisava me sentar, estava sentindo as pernas tremendo. — Que ódio. Eu não acredito que seu sorriso me derrubou, . — resmunguei sozinha.
🎬
Era quarta, dia de pré-estreia no cinema. Eu tinha burlado a aula de Hapkido e estava em casa, me arrumando. empurrou a porta do meu quarto, pronta para falar alguma coisa, mas se deteve quando me viu terminando o delineado. Arrumei as pontas e me virei para ela.
— Fala.
— Parece que seu professor chegou. Sebastian disse que um motoqueiro perguntou por você. — ela avisou e eu franzi as sobrancelhas. Aquele não era o combinado. — Você disse que não ia de preto.
— E eu tenho outra cor de roupa, amiga? — ergui as sobrancelhas.
— Não, né? — ela perguntou. Apenas neguei com a cabeça. — Vai antes que ele... — ela se interrompeu quando meu celular começou a tocar. O nome Choi piscava na tela.
— Oi. — atendi com um suspiro.
— Estou aqui embaixo. — avisou.
— Você realmente saiu da sua casa pra me pegar aqui? — perguntei e riu.
— Eu não podia te deixar ir de ônibus até a Barra. — ele respondeu. — Traga um casaco. Andar de moto deixa a gente com frio.
— Eu não vou com você. — rebati imediatamente, já pegando a jaqueta de couro (falso, comprada na Shein e parcelada) e minha bolsa.
— Você não tem saída. Eu tô na frente da escada. — ele riu. — Sebastian me mostrou onde era.
— Eu faço luta, sabia? — o lembrei.
— Sim, e o professor sou eu. Desce logo. — e desligou.
— Ele desligou, . — encarei o celular e depois minha amiga.
— Tem certeza de que vocês vão num date? Nem saíram e já tão brigando. — ela riu.
— Você me conhece. Ele é um gatinho, mas é tão irritante. — dei de ombros.
— Totalmente o seu tipo. Agora vai antes que ele suba aqui. — ela me guiou pelos ombros até a porta, esperou que eu calçasse o coturno e me empurrou para fora. — Boa sorte. — e fechou a porta atrás de mim.
— Traidora. — resmunguei. Desci as escadas e dei de cara com segurando dois capacetes.
— Antes que você pergunte, eu peguei seu endereço na sua ficha. — ele se adiantou com um bico fofo nos lábios, mas virei o rosto e recebi o beijo na bochecha. Ele me encarou de olhos estreitos.
— Não tão fácil, senhor. Eu avisei. — sorri sem mostrar os dentes. — E eu ia perguntar o que aconteceu. Combinamos de nos encontrarmos no cinema.
— Os idiotas dos meus amigos me dispensaram. Compraram nossos lugares separados dos deles. — ele explicou.
— Você não vai atrapalhar meu filme, Choi. — avisei e tomei o capacete da sua mão. Comecei a arrumar o cabelo para não chegar assanhada no cinema.
— Não vou, eu juro. — ele riu e me olhou por inteiro. — Você está bonita.
— Você também. — devolvi sem o encarar. Coloquei o capacete e finalmente o olhei. — Vamos?
— Vamos. — ele tomou minha mão na dele e me puxou até a moto. Imaginava ele em uma moto esportiva barulhenta, mas lá estava uma Harley-Davidson brilhando limpinha.
— Estamos seguros nessa coisa? — perguntei.
— É só você segurar firme em mim. — ele sorriu, colocou o capacete e subiu na moto.
— Você armou tudo isso, não foi, ? — segurei em seu ombro e subi também, me agarrando ao seu corpo.
— Não solte. — ele disse alto por cima do ombro.
— E que outra opção eu tenho? — suspirei.
Ele pilotou entre os carros até o Barra Shopping e quando finalmente parou, desci da moto imediatamente.
— Eu preferia ter vindo de ônibus. — comentei quando tirei o capacete.
— Você adorou, confessa. — ele riu e se aproximou para arrumar meu cabelo atrás da orelha.
— Minhas pernas tão tremendo. — confessei.
— Eu te seguro. — ele me abraçou pela cintura.
— Você vai fazer a gente perder o filme, isso sim. — respondi com uma careta e tratei de me afastar. Comecei a caminhar em direção ao elevador que certamente nos levaria ao cinema.
— , você tá com raiva de mim? — ele quis saber.
— Imagina. Você só chegou lá na minha casa numa moto cara e falou com o cara que é quase um pai pra mim. E mais tarde eu vou ter que explicar pra ele onde a gente se conheceu e se estamos namorando. — suspirei.
— É só dizer que sim. — ele sorriu quando as portas do elevador se fecharam.
— Sim o que, ?
— Que estamos namorando. — ele sorriu.
— Você tá mesmo empenhado nisso, né?
— Acho que vale meu empenho. — ele deu de ombros e saiu do elevador quando as portas se abriram no andar do cinema.
— E o que sua família acha disso? Você aí empenhado pra namorar uma…
— Pessoa incrível. — ele me interrompeu. — Fica quieta, .
— Você não me manda ficar quieta, . — estreitei os olhos. — Quer apanhar?
Vi quando ele riu desacreditado, olhou para cima e murmurou um "ai, meu Deus".
— Vem, vamos comprar pipoca. — ele agarrou minha mão e não soltou, mesmo que eu tivesse tentado. — Combo da pipoca com dois refris.
— E tu vai comer o quê? — perguntei interessada. me olhou visivelmente confuso. — Eu como uma dessas sozinha.
— Mas hoje a gente vai dividir porque é romântico. — ele respondeu. E então encarou o moço atrás do balcão. — Só isso mesmo, fera. — e tirou um cartão dourado do bolso. — Débito.
Fiz uma careta. era lindo e rico, e eu não podia negar que era um bom partido. Era interessado, trabalhava, se esforçava. Mas a realidade dele era tão diferente da minha…
Suspirei mais uma vez.
— Arrependida? — ele perguntou.
— Você não me levaria de volta se eu dissesse que sim, né?
— Não. Eu ia me esforçar mais pra fazer você gostar. — ele sorriu e finalmente conseguiu me roubar um beijinho rápido. — Você pode pegar a pipoca? Eu vou ao banheiro.
— Vai. Eu pego e te espero na entrada ali. — apontei para a fila. Com um sorriso, ele saiu. Peguei a pipoca e fui em direção à fila que já começava a se formar.
— Levou bolo? — a voz de perguntou em algum lugar.
— Puta merda, . Parece uma assombração. — reclamei. — Eu não levei bolo. Ele foi ao banheiro.
— Queria ver. — ela fez um bico.
— Mas não vai. Vai logo pro seu lugar antes que o Jorge venha te carregar daqui. — empurrei seu ombro.
— Me conta depois. Bom filme. — ela soltou um beijo no ar e saiu para onde Jorge estava quase infartando.
— Vamos? — chegou e pegou o suporte dos copos da minha mão. O segui até a entrada. A moça sorriu apenas para ele e me entregou os óculos da sala 3D.
— E seus amigos? — perguntei quando nos sentamos.
— Estão por aí em algum lugar. — ele deu de ombros. — Não atrapalhar o filme, né?
— Nem pensar. — confirmei.
E o filme correu como tinha que correr: muita ação, eu chorando em algum momento e fingindo que não, minha mão e a de se esbarrando na hora de pegar a pipoca, ele segurando minha mão quando me ouviu fungar. Saímos da sala quando o último crédito subiu e eu já não vi mais do lado de fora. insistiu muito e me convenceu a me deixar em casa. Sebastian já tinha fechado o mercadinho há muito tempo e a única luz da rua era a luz fraca do poste.
— Então é isso. — passei as mãos sobre a calça.
— Quando nos vemos de novo? — ele sentou de lado na moto e me puxou pela cintura.
— Segunda, na aula. — apoiei as mãos no peito forte dele.
— Em um encontro, . — ele deixou um beijo na minha bochecha. — Eu quero fazer isso de novo.
— , você acha…
— Acho. — ele me interrompeu de novo.
— Você nem sabe o que eu ia perguntar, porra. — eu ri.
— O mesmo que perguntou mais cedo. — ele deixou outro beijo no meu rosto. — Mas eu não tô interessado no que pensam. Eu tô interessado em você. — ele beijou meu rosto de novo.
— Para de beijar meu rosto. — briguei. Ele sorriu sem mostrar os dentes e então beijou minha boca. As mãos na minha cintura me apertaram mais contra ele e a língua quente me pediu passagem no mesmo beijo quente ele envolvente que eu já conhecia. Senti a mão dele escorregar para a minha bunda e tive que partir o beijo para rir. — Mas a sua mão não para, né?
— Sempre buscando o melhor. — ele riu e passou a mão no cabelo. — Sábado eu venho te buscar. Passeio surpresa. E é bom você já ter dito ao Sebastian sobre nós. — ele me deu um selinho.
— Eu nem concordei em sair com você. — puxei os fios do cabelo dele que estavam ao alcance da minha mão. Ele beijou meu queixo e raspou os dentes ali. Um arrepio percorreu meu corpo e eu fechei os olhos. — Tá, sábado. — ele comemorou em silêncio e beijou meu rosto várias vezes seguidas e eu ri.
— Eu te mando mais informações depois. Agora vai. Tá tarde. — ele bateu as duas mãos no meu quadril. — Boa noite. — ele desejou com um bico nos lábios. Deixei um beijinho ali.
— Boa noite. E cuidado na volta. — desejei e subi. Felizmente e já estavam dormindo e não acordaram quando eu entrei. Adiava as muitas perguntas que eu tinha que responder. Sentei na cama e fiquei contemplando o escuro do quarto. — Se você me machucar, Choi… — ameacei. Deitei na cama e peguei o celular para uma última olhada. Tinha uma mensagem ali.
"Mal posso esperar por sábado.
E conte ao Sebastian.
Durma bem e pense em mim 😉"
Ri sozinha e nem respondi, tinha que dormir. E provavelmente sonharia com ele.
Rock With
Want to give everything
If I can just have you
Won’t let them break your heart
If I can just have you
Won’t let them break your heart
— Já terminou de bater o caixa?
Fechei o zíper do pequeno malote e bati a gaveta, escutando a trava de segurança, por fim me virando para a direção da voz de Jorginho.
— Sim, senhor. — joguei o malote contra ele, que pegou no ar. — Agora é só esperar as salas cinco, nove e dez finalizarem e podemos ir embora.
— O que ainda falta quase duas horas para acontecer. — ele reclamou, ajeitando o cabelo comprido que sempre caía nos olhos. Segui seu desânimo, me escorando no balcão com os braços cruzados e fazendo um bico.
— Posso aproveitar para revisar os meus estudos da prova de amanhã? — sorri falsa para ele, piscando rápido.
— Não ficou nada para fazer? — neguei. — Mesmo? — assenti freneticamente. — Pode. Mas tenta não ficar com o celular muito à vista por causa das câmeras.
— Pode deixar, chefinho! — gesticulei como um soldado acatando uma ordem superior e ele me deu as costas, indo para sua sala terminar os fechamentos administrativos de todos os dias.
Peguei o meu celular e coloquei em cima do balcão, logo me dando conta da pouca bateria. Cacei meu carregador dentro da minha mochila que estava em uma das repartições e não achei, lembrando que muito provavelmente havia pego achando que era o dela — ela tinha um iPhone, diga-se de passagem, e isso acontecia com muita frequência. Naquela manhã eu saí tão apressada e atrasada de casa para pegar a carona de moto táxi até o ponto de ônibus que acabei esquecendo de checar se eu tinha mesmo colocado o bendito cabo na bolsa antes de dormir; com certeza eu deixei em cima da mesa mais uma vez quando cheguei na noite anterior, e como a bateria do meu aparelho ainda estava muito boa, eu não precisava carregar todo dia.
Então não seria possível estudar para a matéria de matemática financeira. Teria que contar com a sorte do professor Henrique estar num dia muito bom e não inventar de fazer pegadinhas com o conteúdo, porque era uma quarta-feira de pré estreia e, mais uma vez, eu era a única funcionária responsável que não meteu o caô em cima de Jorginho e cabulou o trabalho, então estava de hora extra (somente na folha, porque a compensação disso não viria em dinheiro depois e sim em banco de horas a descontar). Com isso, eu chegaria em Realengo muito tarde, mal teria duas horas para dormir já que precisava sair de casa ao menos cinco e meia da manhã. Minha mente estaria mais do que na lua para fazer a dita prova, lembrando do uso de antialérgicos nos últimos dias.
Trabalhar em um shopping, com uma única folga no meio da semana e apenas um domingo a cada quinze dias e fazer faculdade era uma luta diária. Quando eu não estava trabalhando, eu estava estudando; quando não estava estudando, estava dormindo ou trabalhando, considerando que dormir servia como um luxo.
Respirei fundo, refletindo a minha única opção: não surtar e manter a pose. Observei em volta, o salão de recepção do cinema vazio às vinte e três e quinze, e soltei o ar pesado, mas em cansaço. Não havia um dia sequer que eu não desejava viver a vida de uma nepobaby. Mas no fim tudo poderia valer a pena, como aprendi com Gisele, minha amiga da faculdade: a sigla sempre seria “VDC”, que poderia ser “vai dar tudo certo” ou, como eu dizia, “Vitória da Conquista”.
Me apoiei no balcão, ficando de frente para o salão, apenas olhando o vazio e tentando repassar a matéria na mente. Eu precisava ir bem na prova, não tinha a menor chance de tirar ao menos uma merreca de nota, porque já fiz isso na primeira tentativa e pegar uma substitutiva seria humilhação demais para o meu ego. Contando mentalmente a fórmula do cálculo de juros composto ao dia, mês e ano, notei uma movimentação estranha.
Ou nem tão estranha assim.
— Eu ainda vou tentar entender o porquê… — olhei para o lado, vendo Jorginho se apoiar com os cotovelos no balcão. — Não está nem na metade do filme. Outra vez.
Saindo da sala cinco e cruzando o salão, um dos clientes mais assíduos e que eu jamais esqueceria o rosto sereno demais, marcante demais, lindo demais, com um sorriso fofo demais e lentes grossas demais, corria com o celular no ouvido. Isso era recorrente, tanto que Jorginho e eu sempre fazíamos a nossa aposta de que ele não ficaria na sessão inteira (que eram sempre pré-estreias, das quais ele vinha com um grupo de outros nerds e uns caras marombeiros, tipo os famosos ratos de academia, que faziam o maior escândalo enquanto ele ficava quietinho na fila).
— Seu crush te fez perder cinquenta reais de novo, . — Jorginho riu fraco. — Mas pode ser só o almoço de amanhã como pagamento.
Não respondi novamente, continuei quieta, vendo o fulano correr pela vida dele. Em minha mente eu tentava não desvendar o motivo de ele fazer aquilo, para não perder o enquanto em minha paquera, afinal homem comprometido não é presente de Deus e tampouco admirável como um quadro de museu.
— Eu ainda vou ver ele sair no final de uma sessão, Jorginho. Tenho fé. — disse, sem deixar de encará-lo e notando que algo havia ficado para trás. — Pô, não é possível que ele seja tão milionário assim a ponto de não se importar de pagar caro naquela sala tão chique e cheia de tecnologias, e sair sem ver o filme inteiro.
— Acredite, pode ser possível sim. Estamos na Barra da Tijuca, querida. — ele riu, se virando e encostando-se no balcão para encarar meu perfil. — Tu tá aqui já faz três anos, ainda não se acostumou com esse universo?
Suspirei, curiosa com o que caiu perto da escada rolante.
— Não tem como me acostumar com aquilo que não me pertence, Jorginho. Esse mundo é muito diferente do meu, eu jamais vou saber o que é isso.
— Vira essa boca pra lá! — me deu um peteleco leve na testa. — Tu estuda pra quê, menina? Se mata de trabalhar aqui para pagar a faculdade e pensa que vai ficar o resto da vida atrás desse balcão? Caô, hein.
— Não, claro que não… Mas as coisas para nós são mais difíceis, cê sabe… Eu vou me enfiar onde com administração se não for uma carreira aqui no Cinegrand? — dei de ombros, me afastando para sair do balcão.
Não ouvi se Jorginho me disse mais alguma coisa, apenas caminhei até o objeto caído e quando me aproximei, vendo que era uma carteira de couro legítimo da Tommy Hilfiger, estremeci o corpo. Abaixei e peguei, olhando para os lados e para frente, sem sinal nenhum dele, com certeza já estava longe o suficiente para eu não alcançá-lo com minhas pernas curtas. Levantei o corpo e olhei para Jorginho, que me encarava confuso.
— É a carteira dele… — ergui a mão, caminhando de volta, mas ficando do lado de fora.
— A gente tem que guardar. O que você está fazendo? — o tom saiu esganiçado conforme eu fui abrindo a carteira.
— Quero ver se tem alguma coisa aqui que dê pra entrar em contato com ele.
— Enlouqueceu, foi? O protocolo é guardar e esperar ele vir atrás, ! — Jorginho tentou pegar de mim e eu me esquivei. — !
Ergui o rosto para ele.
— Jorginho… É o meu crush nerd impossível que a gente fala há três anos… — fiz bico e ele suspirou. — Por favor, eu não vou roubar nada, mas se tiver alguma coisa aqui… Eu posso ligar… Sei lá! Pode ser a minha chance, cara!
— Patético, você jamais conseguiria trocar meia palavra com ele. Toda vez que ele chega aqui tu vem com papo pra eu atender! — cruzou os braços, arqueando a sobrancelha.
— Mas e se… — insisti e ele apontou, gesticulando para eu seguir adiante. — Você é o melhor! — sorri empolgada.
Não era nem um pouco ético e educado da minha parte, mas eu realmente queria ver se tinha alguma forma ali de eu descobrir como devolver a ele. Pelo jeito como saiu, duvido muito que voltaria atrás.
A carteira tinha apenas dois cartões, um preto internacional e um do banco Itaú Personnalité — coisa de rico mesmo —, havia algumas notas de cem reais e uma de duzentos — feia que só ela podia ser, e eu odiava recebê-la no caixa porque nunca havia troco o suficiente. Mas também tinha um cartão branco, que na verdade eu descobri ser um crachá quando puxei para cima. Um crachá com foto, nome e número de registro num hospital particular, o tão conhecido Hospital São Lucas.
— Certo, esse sorriso está me dando medo. O que tu tá pensando? — Jorginho me tirou a atenção.
— Ele é cirurgião no Hospital São Lucas… — ergui a identificação, sorrindo de lado. — Da faculdade até lá não deve ser tão diferente do caminho até aqui… E eu tenho horas a descontar, sabe…
— … — ele tombou a cabeça para o lado. — Não! De forma alguma! Isso fica aqui. Podemos devolver para aqueles caras que vem com ele! Eles sempre estão juntos.
Jorginho tentou tomar de mim e eu dei um passo para trás, segurando contra o peito e de mal jeito.
— Por favor! Por favor! Por favorzinho! — fiz bico. — Isso pode ser o universo me dando uma chance, Jorginho!
— A chance de ele voltar aqui para buscar e não para assistir meia sessão. A resposta é não! — insistiu, estendendo a mão para pegar.
— Por favor. Confia em mim! Eu vou até o hospital amanhã e entrego.
— E o que ele vai achar disso, ? Tá maluca? O protocolo é guardar.
— O protocolo nunca deu certo. — abracei mais a carteira contra o corpo. — Por favor… São três anos que eu-
— Ta bom, inferno! — Jorginho me cortou, levando as mãos ao rosto. — Mas se a Helena não vier amanhã e eu ficar sozinho até você chegar, eu juro que corto suas regalias.
— Corta nada, no fundo você me ama porque eu sou a única que te ajuda e trabalha de verdade nesse lugar! Fala aí, Jorginho, quem é que tá contigo agora, hein? — apontei, voltando para o balcão para apoiar a carteira e guardar o cartão. — Você sem não é nada…
— Não exagera. — fez uma careta e eu sorri mais, empolgada, dando a volta para ir até o lado dele enquanto cantarolava:
— Avião sem asa, fogueira sem brasa… É o Jorginho sem a …
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Respirei fundo, a minha mania de sempre, e olhei para trás.
— Vai, você consegue! — Gisele me lançou um sorriso animado, com metade do corpo para fora da janela do carro do namorado, o Leo. — Me liga quando terminar!
— E pegue um Uber até o Barra Shopping, não vá de ônibus, vai chover daqui a pouco! — Leo berrou, esticando o corpo. Ele havia me oferecido uma carona quando Gisele comentou que estava indo para Copacabana depois da aula, e eu nada boba aceitei, claro. Menos gasto com passe de ônibus.
Apenas assenti para os dois e soltei o ar pesado, tomando coragem de seguir a caminhada para dentro do hospital. Depois de alguns passos olhei para trás e vi o celta branco de Leo bem longe na rua, não havia mais volta.
Entrei no saguão, meio perdida, e segui até a recepção, repassando na minha cabeça o que eu tinha ensaiado para falar quando chegasse o momento. E o momento era agora.
— Olá, boa tarde. — raspei a garganta, tentando a atenção de uma recepcionista. Minha voz estava muito anasalada por conta da minha crise alérgica que só piorava desde que tinha inventado de aproveitar a promoção de Downy clandestino do mercadinho de Sebastian, o argentino que alugava para nós e o sobradinho. Ter rinite crônica era o meu maior pesadelo, muito mais do que ser pobre. — Com licença… — tentei de novo, enfim tendo a atenção da loira de salão.
— Pois não? — ela me perguntou, me olhando estranho. Não precisa, claro, eu sabia que a cara de pobre destoava bastante do ambiente.
— É… Eu… — raspei a garganta de novo, impedindo um espirro que queria sair. — Eu estou procurando pelo Doutor Kim, ele é neurocirurgião aqui…
Ela estreitou o olhar para mim, olhando para a colega, ruiva de salão, e demorou a me responder.
— Quem é você? O Doutor só fala com familiares da UTI depois das cinco, quando finalizar as visitas.
Engoli a seco.
— Eu sou…
— ! — a voz inconfundível de Gisele ecoou no vazio do saguão. Me virei para trás imediatamente, ela corria até mim com algo nas mãos. — Você deixou cair o cartão do seu namorado, mulher! Que caô! — ela ria ao passar o braço por cima dos meus ombros. Demorei a entender. Era o meu cartão de passe.
— Ah… Nossa… Que cabeça a minha, e o que eu ia devolver a ele, não é mesmo? — tentei ser atriz.
As duas recepcionistas me olharam estranho e olharam em seguida para Gisele, que sorriu amarelo para elas, logo se despedindo e me deixando para trás, sozinha com as duas novamente. Coloquei o cartão, que não era o dele, no bolso do jeans, e apertei as mãos no fichário em meus braços, quase fundindo meu corpo ao rosa e dourado da decoração dele. A loira pegou o telefone e ligou para alguém, sendo super baixa no volume da voz. Ao desligar, me encarou ainda com superioridade.
— O Doutor Kim está em cirurgia, se você quiser pode aguardar ele ali na sala de espera. — ela apontou para os sofazinhos e eu assenti.
— Você sabe me dizer quanto tempo vai demorar? — olhei no meu relógio de pulso, preocupada com meu horário de bater o ponto.
— Não.
A resposta restrita dela foi tudo e eu me dirigi ao local de espera. Peguei uma revista qualquer para gastar o tempo, depois de ler toda ela e descobrir as fofocas do mundo dos famosos no ano de 2013, decidi aproveitar o tempo para fazer alguma coisa da faculdade. Antes de abrir o fichário e pegar meu estojo, enviei uma mensagem para Jorginho, avisando que estava no hospital e que iria demorar, usando o último suspiro de bateria do celular. Ele me respondeu curto e simples: “VDC”.
Vitória da Conquista. Podia ser a cidade da Bahia, ou melhor, o sinal de que tudo daria sempre certo.
Demorou bastante, porque deu tempo de eu terminar um artigo sobre a relação econômica da oferta e demanda. Quando fechei o fichário, me sentindo patética e impaciente pelas quase quatro horas gastas ali, me levantei, juntando minhas coisas, mas fui surpreendida por uma figura esguia parada na recepção.
Era ele. Ao contrário das tão comuns roupas pretas que o via usando, usava um jaleco branco por cima de um conjunto azul escuro e tinha uma touquinha na cabeça, também na mesma cor da roupa. O Crocs era a única coisa preta, além da armação do óculos que eu pude ver nitidamente ao erguer o rosto e vê-lo me encarando de longe.
A loira de salão apontava para mim e ele me encarava confuso.
Droga! Que vergonha! Ele não era meu namorado coisa nenhuma!
Me encolhi quando ele começou a se aproximar, sentindo meu corpo tremer não só pelo que estava para acontecer, mas também porque eu estava realmente com a minha crise alérgica a mil e possivelmente estava se tornando uma sinusite. A poluição da cidade também não ajudava muito.
Ou era fome. Eu não tinha almoçado. E a vista estava embaçada.
Não era somente ele chegando tão perto que estava me deixando mole, era o meu estado não saudável.
— Oi. — ele foi o primeiro a dizer. — Você é a pessoa que está esperando por mim?
Eu era, não era?
Raspei a garganta de novo, pela milésima vez, e assenti, abraçando o fichário contra meu peito.
— E… Nós nos conhecemos de onde? Você é parente de algum paciente? — perguntou e eu neguei, ainda sem abrir a boca. — Então no que posso te ajudar? É algum trabalho da faculdade? — acho que ele perguntou isso por ser notório que eu seja estudante, quem dera fosse de medicina.
— Não, não é. — tossi, quase me afogando. Era a alergia. Ele me encarou preocupado e ainda confuso. — É… Me desculpa. Eu sou atendente do cinema no Barra Shopping e… — tomei uma pausa, vendo-o manter a mesma expressão dura. — Ontem tu… É… Tu deixou cair — abri o fichário, pegando do bolsinho dele a carteira — isso aqui. — estiquei o braço, totalmente trêmula.
Lentamente, ele suavizou a feição, olhando para a minha mão.
— Pô, tu não tinha dado conta que perdeu? — ri fraco, ainda com o braço esticado.
— Não. — a resposta foi curta e ele pegou a carteira, tocando os dedos nos meus e me causando um arrepio.
— Geralmente nós mantemos guardado o que é achado, mas ninguém volta para buscar… — dei de ombros. — Não sei porque gente rica não se importa com coisas perdidas. — comentei baixo, ele abriu a carteira e olhava tudo, me senti um pouco retraída. — Está tudo aí, não tiramos nada. Eu só abri para ver se tinha alguma coisa que me pudesse trazer até você pra devolver e tinha, né mesmo? — ri novamente, mas desta vez pelo nervosismo, tanto que mal dei pausa entre as palavras. Ele tirou o cartão de identificação do local em que estava e colocou no bolso do jaleco.
— Eu pensei que tinha deixado isso em casa. — diferente da feição anterior, agora ele me encarou com um sorriso de lábios fechados. Isso me aliviou um pouco. — Mas não tinha tempo de ir buscar.
— Você está aqui desde ontem? — ousei perguntar e ele assentiu. — Caô!
— Não é não. — ele riu com a minha reação. — Caô é você estar me esperando há mais de quatro horas para devolver isso aqui… Gente rica geralmente não liga para itens perdidos.
Não aguentei e ri, sentindo meu rosto esquentar — mais, porque eu já devia estar em febre.
— Achei que esse cartão aí fosse importante… — apontei, tentando respirar sem me afogar pela congestão. — Bem, é melhor eu ir… — olhei para o lado de fora. — Se eu pegar chuva, é capaz de ficar pior e aí vou ter que lidar com e querendo me levar para hospital lotado.
— Pior?
— É… Essa voz pra dentro não é a minha normal, Doutor.
— É, dá para notar que você não está legal. O que está sentindo? — ele se aproximou de mim em mais um passo, tirando o estetoscópio de um dos bolsos do jaleco. — Posso? — pediu e eu assenti lentamente. tirou o fichário dos meus braços com cuidado e colocou em cima do braço da poltrona, a fim de checar meu pulmão com o negócio nos ouvidos. — Respira fundo. — fiz, olhando-o nos olhos apenas com o olhar erguido. A altura entre nós era muito diferente. — Agora solta. — ele repetiu isso mais algumas vezes, passando o negócio pelas minhas costas. Também checou minha temperatura com as mãozonas cobrindo minha testa e bochechas.
— Eu vou tentar passar no postinho amanhã depois da aula…
— Postinho? — ele voltou a ficar na minha frente.
— Sim. Não tenho convênio. — ri fraco. — Descontaria muito do meu salário… Ou eu pago faculdade ou eu gasto com hospital.
Ele franziu o cenho e levou algum tempo até olhar no relógio em seu pulso, em seguida analisando o ambiente.
— Vem, eu tenho mais alguns minutos antes de ir atender os familiares.
Sem me dar tempo de qualquer coisa, ele pegou meu fichário e com a outra mão me puxou para algum lugar que eu não saberia onde era. Me perdi na nossa caminhada, não perdendo a chance de ver a cara da ruiva e loira de salão na recepção.
Logo entramos numa sala que tinha uma maca, uma mesa com alguns itens e um laptop da maçã mordida mais cara do mundo. abriu a porta e acendeu a luz, me deixando entrar primeiro. Então eu pude ver o quadro de quatro fotos em cima da mesa. Era uma galera que eu não conhecia e uns rostos familiares, que deviam ser seus acompanhantes do cinema.
— Senta na maca, senhorita…
— . Meu nome é , mas pode me chamar só de . — disse, notando que ele queria saber meu nome, e fiz o que ele disse, deixando minha mochila e fichário na cadeira de frente com a mesa.
lavou as mãos na pequena pia que tinha ali e depois de se higienizar vestiu um par de luvas, pegando um palito de madeira de dentro de um pote de vidro em cima da mesa que tinha materiais ao lado da maca. Enquanto isso eu observei sua sala toda decorada com itens infantis e alguns brinquedos. O que me deixou confusa, porque na identificação dizia que ele era neurocirurgião.
— Consegue colocar isso aqui embaixo do braço? — chacoalhou um termômetro em minha frente e eu assenti, pegando e colocando por dentro da camiseta. — Abre a boca e põe a língua para fora, vou ver tua garganta. — assenti, fazendo o que ele mandou mais uma vez. O palito foi em minha língua e ele apontou uma lanterna para dentro, me deixando com vergonha porque eu já estava muito tempo sem comer, o que poderia ter gerado um péssimo hálito. — Certo… — ele fez um bico se afastando e jogando o palito na lixeira, em seguida voltou com as mãos enormes para meu rosto, na altura das maçãs faciais, apertando e me fazendo gemer de dor na mesma hora.
— Ai! — por reflexo, toquei seu punho, forçando-o para baixo, o que fez com que ele as posicionasse entre meu pescoço e mandíbula. — Isso doeu.
— Imagino. Você muito provavelmente está com uma sinusite bacteriana. Você estava resfriada?
— Não.
— Então é de uma crise alérgica. Geralmente quem lida com alergias têm mais chances de ter sinusite bacteriana porque se torna mais fácil para as bactérias infectarem os seios da face. — enquanto falava, massageava meu rosto suavemente, me fazendo sentir um certo alívio. — Como não é um caso complicado, não vou te submeter a uma tomografia. Vou te dar uma receitinha boa e você melhora em dois dias. Mas tem que repousar. Tu vai precisar de quatro dias em casa, pelo menos.
Aí ele tocou num assunto muito sensível. Eu podia ver os pulos nervosos de Jorginho ao ouvir a palavra atestado vindo de mim. Ainda mais com um atestado me tirando do cinema no final de semana.
— Não, não posso! Obrigada. Eu tomo os remédios certinhos, mas preciso trabalhar.
— De jeito nenhum, . — ele foi sério. O termômetro apitou e eu tirei, entregando a ele. — Veja, 38 graus de febre. É antibiótico e repouso, mocinha.
Fiquei quieta, vendo-o sentar na cadeira e abrir o laptop para digitar algo. Meu coração travou só de pensar no valor alto que eu teria que deixar na farmácia, então me levantei para a humilhação. Médicos de postinho já eram acostumados a fazerem receitas com remédios acessíveis em valor e eu conseguia pegar alguns na farmácia do SUS (e viva o Sistema Único de Saúde que só o Brasil podia oferecer).
— Sabe o que é, Doutor… É fim de mês e eu… Eu acabei de pagar o boleto da faculdade. Até o quinto dia útil tem chão, entende? Antibiótico é uma parada bem carinha… Tu não acha que um antialérgico, sei lá, algo que ajuda a descongestionar funcione? Eu tomo direitinho, vai melhorar, confia! — parei ao lado da mesa dele, recebendo seu olhar estranho. Talvez não estivesse acostumado com gente pobre, faria muito sentido.
— Certo… Bem, eu vou te dar a receita mesmo assim. Mas tenho Decongex aqui… — abriu a gaveta maior da sua mesa, tirando uma caixa cheia de caixinhas do dito remédio. — É infantil… Mas ajuda. É só você tomar 20ml a cada 8 horas, entendeu?
— 10ml a cada oito horas. Certo. É o dobro da dose infantil, não é?
— Não. — ele riu nasalado, voltando para o laptop, em seguida pegou o bloquinho de receitas e começou a prescrever, enquanto eu guardei o contrabando de remédio infantil na bolsa. Decongex era bom, mas eu estava acostumada com o Polaramine.
Depois de me explicar a receita e também me dar um vidrinho de Neosoro em spray, me explicando em detalhes como eu devia fazer a limpeza do nariz — até isso existe, até o ranho deve ser bem tratado —, e eu chegamos ao fim do encontro.
— Então é isso. Posso confiar que tu vai usar esse atestado? — me perguntou em tom sério, ajeitando o óculos no nariz. Fiz uma careta pela incerteza. — …
— Eu não posso deixar o cinema na mão, sabe? Só eu trabalho direito lá e o Jorginho surtaria! E tu não tem ideia de como aquele homem perde a linha quando eu não estou lá, são anos de confiança-
— Tu vai pra casa descansar. Tua saúde tem que vir em primeiro lugar. Você se alimentou enquanto estava me esperando aqui? — fiquei sem resposta. — Certo, então eu vou te levar pra comer e depois te levo para a tua casa.
— Não, isso é demais. Já tomei muito do teu tempo. — me virei apressada para a cadeira com as minhas coisas, sendo uma péssima ideia porque fiquei tonta, senti a mão dele segurando na minha e o encarei por reflexo.
— Eu insisto. Tu se preocupou em trazer minha carteira até mim, então me deixa cuidar de ti em troca.
Amoleci com a voz baixa e grossa demais, até um tanto rouca, com o olhar nublado por trás das lentes grossas demais, olhando-o em pé ao meu lado, quase me cobrindo por inteira com o tamanho de seu corpo alto demais em relação ao meu.
Não tive resposta outra vez e apenas acatei, sendo levada para o restaurante chique dentro do hospital, que eu logo descobri, pelos meus olhos curiosos no meio do caminho que captaram as placas com aquela parada toda de história e bla bla bla, ser da família Kim. E bem, ele era um Kim. Seria o herdeiro?
Depois de se sentar comigo para comer também, precisou atender uma ligação de seu residente de outro hospital. Então eu acabei comendo sozinha e em silêncio, escutando-o instruir o fulano do outro lado a como fazer um procedimento numa criança.
— Eu chego em 15 minutos. — ele finalizou a ligação, empurrando o prato. — Tu me desculpa por não poder te levar? Eu chamo um Uber, me fala teu endereço.
— Não se preocupe, eu pego a van logo ali e rapidinho tô em casa. Não se incomode não.
— De jeito nenhum, tu não me passa confiança de que vai para casa. E você tem que descansar. — foi sério novamente. — Anda, me fala teu endereço.
— É em Realengo, um Uber até lá fica caríssimo. — falei quase sussurrado, olhando-o por baixo. Ele insistiu com a feição séria. — Tá… Me dá ai que eu coloco. — Ele me deu o celular e eu meti meu endereço, devolvendo depois de ver o preço alto que o aplicativo estava dando lhe devolvi.
— Pronto, eu vou saber quando tu chegar em casa. Já avisa seu chefe que são quatro dias de repouso.
— Se ele me der a conta depois eu venho aqui pedir emprego na recepção do teu hospital, sem caô. — me levantei, vestindo a mochila nos ombros. Ele fez o mesmo, rindo. — O meu cabelo castanho pelo menos não é de salão. — resmunguei.
— É, eu vivo dizendo nas coletivas que só temos recepcionistas ruivas e loiras, talvez seja a hora de uma morena simpática mesmo. Mas acho que você não está estudando para ser recepcionista.
Fiquei petrificada, olhando-o e me sentindo presa numa realidade totalmente fora do que estou acostumada.
era irreal demais para mim.
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Entrei em casa me sentindo meio sonolenta. O trajeto de Copacabana até Realengo, na zona oeste da grandessíssima Rio de Janeiro, levou mais de uma hora por causa do trânsito devido a um acidente na frente da UPA de Madureira que acabou por fechar a rua José, um dos principais acessos pelo caminho que o motorista tinha que seguir. Ficou uma quiçaça que só!
O senhor Antônio, o velhinho que dirigia o carrão que o Uber do encontrou como o tal do black, mais confortável e chique, era simpático e aceitou que eu estava caótica demais para ficar conversando, então eu tomei ali mesmo meu comprimido de Polaramine e arrumei um cochilo.
A primeira coisa que fiz foi caçar meu carregador, não encontrando ele DE NOVO.
— ! — berrei pros cômodos vazios, tentando fazer meu celular funcionar, sem sucesso. No dia anterior ela tinha pegado e eu aposto que ainda não havia notado, por isso não deixou ele antes de sair. Eu estava, basicamente, sem celular desde a metade daquela manhã porque não consegui carregar na madrugada quando cheguei do trabalho.
Assim que adentrei meu quarto, me joguei na cama, deixando a mochila e o fichário caírem no chão. Levei um tempo de bruços no colchão, até ter um lapso histérico e, contra meu sono, puxar o fichário e a mochila, pegando a receita e o monte de Decongex infantil.
Meu cérebro já não estava funcionando bem, poucas horas sem dormir e um comprimido de Polaramine adulto com certeza seriam como um blackout total. Nem me dei conta, abri o Decongex e apertei ele para que o líquido espirrasse na minha língua direto, sem paciência para ir até a cozinha atrás do copinho medidor ou de contar as gotinhas que estava prescrito na receita de .
Receita de . Com a letra dele.
Segurei o papel contra meu peito, rindo com a lembrança de ter ele todo preocupado comigo, me examinando sem cobrar nada, pagando meu almoço e o motorista pra casa. Tal qual um rico ajudando um pobre.
— A letrinha toda cuidadosa… — suspirei lendo o papel e rolei para o lado na cama, abraçando o ursinho que eu jamais teria coragem de abandonar. O senhor 2Yang. — Eu cheguei em casa, Doutor… — murmurei, fechando os olhos que estavam pesados.
E foi como um corte, porque de repente eu ouvi um barulho de discussão muito perto, então abri os olhos rapidamente, me assustando com Sebastian na porta do quarto e, logo atrás dele, iluminado pela luz da sala, a figura esguia que estava em meu sonho.
Me levantei rápido, ainda tonta, meio dopada eu acho.
— Hija! Tu está bien? — Sebastian tinha um taco de beisebol na mão e estava pálido demais, foi o primeiro a falar, misturando seu espanhol com português. Apenas assenti. — O Doctor pediu para abrir… y… yo no estava certo de que lo conoces.
— Conheço sim, Sebastian. Está tudo bem… É um amigo.
Sebastian me olhou desconfiado e olhou para .
— Hazme saber si necesitas algo. Estoy lá embaixo. — me devolveu, dando licença.
Esperei ele sair e me ajeitei, sentando na ponta da cama, com um bocejo longo e passando as mãos no rosto. Notei que estava escuro, já era noite.
— Você veio até aqui… — constatei, me sentindo envergonhada. Ele tomou o lugar de Sebastian, se escorando na soleira da porta com as mãos nos bolsos. Não usava mais a mesma roupa e eu conseguia sentir seu cheiro de quem tinha tomado banho e estava perfumado. Talvez um pouco molhado por ter tomado a chuva que o tempo prometia.
— Eu vi que você chegou e não me disse nada. — deu de ombros, ficando levemente corado. — E como tu colocou no Uber o teu número para um usuário diferente, tentei ligar no teu celular e fiquei preocupado de ir direto na caixa postal.
— Ele está sem bateria. É uma longa e repetitiva história.
— E aí quando cheguei aqui na frente o carro do motorista estava estacionado.
— Ah — ri baixinho. —, tem uma igreja na rua de trás, o seu Antônio disse que ia aproveitar e pegar o culto ali das seis. Durante a semana começa mais cedo, sabe…
— Descobri isso quando eu e Sebastian entramos. — ele riu, parecendo envergonhado. — Você parece sonolenta.
— É… Eu acho que estava muito cansada. E tu ainda encheu meu buchinho e me deu mais remédio… — bocejei outra vez.
O olhar dele recaiu na minha cama e eu fiquei parada no lugar. Com certeza tinha visto a cena deplorável de eu dormindo agarrada no 2Yang.
— Você tomou o vidro inteiro? — entrou no quarto, por fim, pegando o Decongex em cima da cama e chacoalhando ele. — !?
Encolhi os ombros.
— Eu acho que sim? No caminho pra casa tomei o Polaramine, quando cheguei aqui eu devo ter tomado…
Ele suspirou, voltando-se para mim.
— Você é maluca. — riu desacreditado, checando minhas pupilas. — Está um pouco frio agora a noite, você pode ir tomar um banho enquanto eu peço o jantar.
Estranhei.
— Precisa se preocupar com isso, não, homem. — me levantei, ficando pertinho dele e rindo nervosa. — Daqui a pouco a chega e ela faz o jantar. Não esquenta com isso.
— Que horas ela chega? Vem de que? Está chovendo muito lá fora. O trânsito está muito lento.
— Ih… — murchei. — Quando chove ela e a chegam bem tarde porque todas as vans ficam lotadas e os ônibus demoram demais… — suspirei.
— Então. Eu vi que tem uma pizzaria logo ali, vou pegar uma enquanto você toma banho para tirar o cansaço do dia.
Foi como um ultimato. me deu as costas de ombros largos cobertos por uma jaqueta preta de couro e saiu, pegando o capacete em cima do sofá. Eu fiquei parada igual um boneco The Sims esperando comando, raciocinando o que estava acontecendo.
Nem mesmo a Anastasia Steele do livro de putaria que a me fez ler previa isso. Nem mesmo teria algum comentário sobre isso.
O que caralhos estava acontecendo com o universo? Que coisa mais estranha era essa?
O barulho de um motor de moto esportiva me fez pular no lugar e eu corri para a janela do quarto, vendo uma moto esportiva azul, com ele em cima dela, saindo a toda por hora naquela vielinha que chamávamos de rua — e isso atraiu a atenção de toda a vizinhança.
— Caralho, mermão. Nerd, médico, herdeiro… E pilota uma BMW… Que tipo de gostoso é esse que o universo tá me dando? Logo aqui, em Realengo? — arregalei os olhos, olhando para o céu nublado, chuvoso.
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— Trouxe trabalho para casa outra vez? Passei por trás de , sentada no sofá, e fui para a cozinha, atrás da água gelada que meu corpo clamava desde que vi a figura de em cima daquela moto robusta, quando me obriguei a ficar esperando a chegada dele olhando pela janela. Eu, que sempre achei que o calor do Rio de Janeiro me mataria primeiro que qualquer outra coisa, estava começando a pensar diferente desde que começamos a trocar mensagens e ele decidiu, por bem, me chamar para sair. Ou ao menos tentar, já que ele era chefe do setor de cirurgia pediátrica do São Lucas e como único neurocirurgião pediatra, se fazia sempre muito requisitado, sem mencionar a chefia de residência no Bonsucesso.
Começaríamos com um almoço e depois ele iria me levar para o Barra Shopping. Jorginho tinha me dado duas horas de banco para descontar, então tudo daria certo.
— Melhor do que ficar naquele lugar insuportável em pleno sábado. — ela respondeu, no instante que eu abria a geladeira e pegava a jarra cheia.
— Melhor ficar aqui nessa casa quente com um único ventilador que preste do que numa sala fresquinha pelo ar condicionado? — coloquei o recipiente no balcão que dividia os dois ambientes, enchendo o copo. virou o rosto para mim, me olhando por cima da armação do óculos.
— Vai aonde? — perguntou. — Esse não é seu uniforme triste daquele trabalho trágico.
— Está muito quente lá fora, eu não vou aguentar duas horas de condução até o Barra Shopping se estiver vestida com toda aquela camada de tecido. — fiz careta, dando de ombros. não se convenceu, porém.
— Tu nunca se arrumou tanto para pegar duas horas de Realengo até a Barra da Tijuca. — arqueou a sobrancelha. — E o Jorginho é casado. Tu não tá de graça com homem casado, não, né, !?
— Ai, credo! Claro que não. — revirei os olhos, voltando a jarra para a geladeira e lavei o copo, saindo da cozinha. ainda me encarava duvidosa da minha palavra. — Eu vou indo nessa. Não tenho hora para voltar, OK?
— Como não tem hora? Hoje não é dia de pré-estreia.
— Mas é sábado e final de semana com filme nerd aquilo fica uma loucura... Eu preciso agradar a Sônia... Meu aniversário está chegando, lembra?
respirou fundo e voltou o óculos ao normal em seu rosto, voltando-se para o trabalho, se despediu apenas com um aceno de mão, mas eu tive um lapso estranho em, por trás do encosto do sofá, a abraçar pelo pescoço e lhe dar um beijo na bochecha.
— Valha-me, meu Deus! — a voz de ecoou no mesmo instante que eu assustei . Nem eu e nem ela éramos do tipo que dividia carinho, principalmente publicamente.
— Sorte a tua que a míope chegou, se não tivesse ela de testemunha eu saberia muito bem onde e como esconder teu corpo. — me fuzilou com o olhar e eu ri, me afastando. Passei ao lado da recém-chegada, parada à porta e assustada. segurava meu carregador.
— Por que tu não compra logo um Samsung, hein? — questionei, pegando o objeto. — Não me esperem acordadas.
— E por um acaso aquele cara lá embaixo tem algo a ver com isso? Ele tem um capacete extra, com detalhes em rosa, !
— O quê? Tu vai subir numa moto? Finalmente tá dando pra alguém e não contou pra gente? — voltou a me encarar por cima das lentes.
Fiz uma careta para elas, apontando para as duas:
— Decidi aceitar o que o universo está me dando há três anos. — sorri cínica. — E vocês não façam alarde, eu ainda não dei para ele. Só trabalho, na verdade. Então bico fechado. — eu já estava saindo.
— Só conta pra gente quando acontecer, que aí eu me preparo para o fim do mundo!
Escutei a voz alta de quando a porta se fechou e corri escada abaixo, saindo apressada. Obviamente as duas estavam na janela do meu quarto — a única que dava para a rua e que eu consegui a muito custo: ser a responsável por lavar o banheiro da casa para o resto da nossa vida morando juntas.
— E aí, morena! — sorriu aberto para mim quando eu surgi, desencostando-se da moto. Fingi tranquilidade, como se minhas pernas não tivessem tremido ao ouvi-lo e quase ser engolida viva com seu olhar que me mediu de cima a baixo.
— Desculpa a demora. — o cumprimentei com os dois beijinhos (o último resvalando no canto dos lábios), parando em sua frente.
— Sem problema… — esticou para mim o capacete que tinha citado e eu vesti, sentindo que quase sumi. Em seguida, afivelou corretamente e tirou a própria jaqueta, vestindo ela em mim. — Para você não passar frio.
— É enorme, o vento vai entrar pelos vãos. Mas ta ótimo. — ri fraco e ele riu junto, pegando o próprio capacete e colocando.
— Sabe como subir?
Fiz um “joia” com o polegar e ele assentiu, subindo primeiro. Olhei para cima, vendo as duas patetas me encarando da janela, tentando não surtar ao pensar que para isso acontecer elas tinham que estar em cima da minha cama, neste caso, amassando o lençol. Ignorei tudo e qualquer coisa, até os vizinhos fofoqueiros, ao pensar que há três anos eu só fazia babar pelo cliente assíduo do cinema, cheio de adendos que acompanhavam o uso de “demais”, e que quase nunca terminava uma sessão. Agora eu estava subindo na moto dele, porque em algum realinhamento estranho do universo, a gente tinha que se esbarrar de qualquer forma, e eu tinha que agarrar a cintura dele e apoiar meu queixo em sua coluna.
— Pronta? — perguntou alto para eu poder ouvir.
— Uhum.
— Segura firme. — seu tom saiu preocupado, eu tinha dito a ele que só andava de moto táxi ali pelo Realengo mesmo, e era um trajeto de motinha bem fraquinha, às vezes bicicleta motorizada.
— Tô segurando, neném. — apertei os braços, suspirando e sentindo ele estremecer (segundo suas palavras em um áudio que me mandou dia desses, ele gostava quando eu o chamava assim, igual eu quando o ouvia me chamar de morena). — Vitória da conquista. — soltei de forma automática.
— O quê?
— Vitória da conquista, neném. Pode ser a cidade ou como pode ser vai dar tudo certo. — expliquei rindo. — VDC.
Vi no retrovisor que ele riu, mostrando os dentes alinhados e o sorrisão gigante que encolhia mais os olhos já naturalmente puxados, ao passo que deu a partida na moto, saindo com ela.
Bem, diferente dos coreanos da e da , o meu em potencial não tinha um bundão, um peitão ou pernões de marombeiro. Ele tinha um sorriso enorme que me engolia e isso estava sendo muito mais que suficiente.
Na verdade, tinha ombros bem largos, e eu estava amando poder me apoiar ali quando tivesse a chance. E isso era um gerador de vício.
Rock With Everybody
This time I wanna rock with you
acordou antes que o Sol clareasse o pequeno quarto de . Deixou um beijo na testa dela e a arrumou melhor na cama, depois vestiu sua camisa e caminhou silenciosamente até a cozinha. Aquela era a rotina quando ele dormia na casa da namorada: sair logo depois de deixar o café da manhã pronto. Afinal, dividia o sobradinho com duas amigas e uma presença masculina constante não permitia que as mulheres da casa ficassem perfeitamente à vontade, por isso ele ia embora cedinho.
Abriu o armário em busca da frigideira para preparar os ovos, mas assim que apertou o cabo do utensílio, teve o movimento pausado por um barulho de tentativa de chaves na porta. Empunhou a sua “arma”, estava decidido a atacar caso fosse um invasor, até que a porta finalmente abriu e um par de Crocs pretas se puseram dentro do cômodo.
— AAAAAAH! — os dois gritaram e se encararam ao mesmo tempo.
deixou cair a frigideira, causando um barulho alto que ecoou pelos cantos do aposento.
— O que tu tá fazendo aqui, ? — perguntou, sobressaltado.
— Eu? — arrumou o óculos. — O que é que tu tá fazendo aqui?!
— Mermão, é o seguinte, tu escolheu a casa errada, parceiro, seja quem for que estiver aí, eu quebro na por- — parou o discurso que vinha fazendo desde que abriu a porta do quarto de e também ficou petrificado no meio da sala ao ver os dois presentes. — ? ? O que vocês tão fazendo aqui?
Os três estavam posicionados como um triângulo, usando as mãos para apontar os respectivos vizinhos, tal qual o meme dos três Homem-Aranha se encontrando.
— Eu tô com a , e tu? — virou-se para .
— Eu tô com a , e tu? — devolveu a pergunta para .
— Bom, eu tô com a…
— Neném! — surgiu e correu para , pendurando-se no pescoço dele. — Faz tempo que tu chegou? — ela lhe beijou a face rapidamente.
sorriu, balançando a cabeça e abraçando-a por trás, enquanto entrava em cena, apanhando a camiseta de que ficou pelo caminho.
— Te veste, praga. — ela chicoteou o tecido nas costas dele. — A regra da casa é usar roupa nas áreas comuns.
— Tu só me esculacha, hein, cheirosa? E na frente dos meus parças… — fez um bico que recebeu um selinho. — Tirei a blusa porque achei que era ladrão, queria meter medo, pô.
— Então mete vergonha na tua cara e deixa de ficar nu na frente das… — varreu a sala com os olhos e parou em . — Visitas? Ô, , o que é isso aí agarrado em ti, criatura?
apertou as mãos de , enlaçadas na frente da sua barriga, e fez menção de falar, mas foi interrompida por um bocejo de , que acordou por último.
— Momô, faz bruaca pra mim? — caminhou sonolenta até , deitando a cabeça em seu peito e colocando os óculos no rosto, finalmente percebendo a pequena aglomeração. — Opa. Bom dia? Por que tá todo mundo com essa cara de ponto de interrogação?
— Ainda tô fazendo o download da alma no corpo, mas, pelo que eu entendi, parece que os três Power Rangers aqui são amigos. — expôs.
— Pois é. De onde a Força Ninja se conhece? — quis saber.
— Mô… — arrastou o apelido para chamar . — Lembra que eu te disse que tenho um irmão mais velho? — ele apontou . — Então…
— Neném… — foi a vez de chamar . — Lembra que eu te disse que tenho um irmão mais novo? — ele apontou de volta. — Então…
— Morena… — chamou e o bico de indignação apareceu novamente. — Lembra que eu te disse que tenho dois amigos traidores? São esses dois filhos da puta. Eles nem se deram ao trabalho de me apresentar, mas eu sou só o vizinho e melhor amigo deles. — ele cruzou os braços, emburrado. — Depois dessa desfeita, nenhum dos dois vai mais pilotar a minha moto, ouviram?
— E cadê ela que eu não vi lá na frente do mercadinho, ? — estava confuso. — E teu carro, irmão?
— Eu fui tocar na Tijuca ontem e depois eu e a momolad- Er, eu e a quisemos tomar uma. — esfregou as têmporas. — Ou várias. E aí voltamos de Uber, umas 3 da manhã…
— Por isso que eu não te vi chegar. — concluiu. — 3 da manhã eu e a estávamos…
— Dormindo, Choi. — cortou, beliscando-o. — A gente tava dormindo.
— Vocês fazem muito barulho quando dormem… — provocou, indo até a janela com ainda grudado nela feito um coala. — Eu não quero assustar ninguém, mas a moto do não está mesmo lá embaixo.
— Querem que eu chame o Pipoca? — sugeriu. — Ele é de confiança do Zezé, dono do morro, só mandar que ele acha a motoca em dois tempos. E ainda devolve com o tanque cheio.
— Ele vai ter que encher lá na oficina. — esclareceu. — A bonita tá na manutenção.
— E sobrou pra outra bonita aqui ir te buscar na academia. — resmungou.
— Do jeito que o princeso que eu sou merece. — fez um carinho no rosto dela.
— Não me estressa, . Eu ainda nem acordei e vocês já criaram uma puta duma confusão na minha cabeça.
Houve um breve silêncio dos cérebros semi-despertos processando o volume de informações e a insanidade daquela coincidência maluca. Depois de alguns minutos de caretas e considerações internas, todos explodiram em gargalhadas.
— Eu não acredito! Três amigas que moram juntas se arranjaram com dois irmãos e um melhor amigo? — foi rápida na conta.
— Eu não acredito que tem metade do PIB da Zona Sul aqui na nossa sala! — brincou.
— E eu não acredito é que o sobradinho não desabou ainda com esse tanto de gente aqui ao mesmo tempo. — duvidou. — Cuida todo mundo em tomar seu rumo, avia!
Assim, cada qual seguiu seu curso, balançando juntos em seus próprios ritmos.
FIM?
Nota da autora: Obrigada por ter chegado até aqui! Esses personagens têm um lugar especial no coração das autoras, esperamos que eles tenham divertido você tanto quanto foi divertido pra nós escrevê-los. E pra quem quiser nos acompanhar, segue a gente no insta! Um beijo e até a próxima!
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