Finalizada em: 01/06/2020

Capítulo Único

Quando abriu os olhos naquela manhã, seu corpo ainda se recusava a acreditar que finalmente o grande dia havia chegado. O calendário na porta exibia um grande círculo vermelho em volta do dia dois, o dia em que finalmente sua liberdade seria lhe concedida, o dia em que sua vida finalmente recomeçaria. Ela levantou da cama com um sorriso nos lábios e rodopiou pelo quarto enquanto colocava sua última troca limpa de roupas no corpo e jogava seus poucos pertences dentro da pequena mala antes de fechá-la de vez.
não levou muito consigo quando foi internada na clínica St. Pauli. Algumas trocas de roupas, seu livro preferido, alguns objetos pessoais. Todo o resto ficou esquecido na grande e antiga casa dos pais, um lugar que ela provavelmente nunca mais veria ou ouviria falar – assim como seus próprios pais. O sentimento que levava consigo era de que agora tudo que acontecera antes fazia parte de uma outra vida, algo que ela jamais faria parte novamente. Algo que ela jamais gostaria de fazer parte novamente.
Todas as lembranças que carregava eram apenas dolorosas e insuficientes. St. Pauli definitivamente não era o lugar mais alegre do mundo. Os rostos tristes e tão magros que pareciam deformados a cercavam por todos os cantos, as paredes brancas pareciam engoli-la e transportá-la para outro universo. Era uma luta diária para se manter sã. Todo mundo ali estava, de fato, muito doente. Ela também esteve doente por muito tempo, mais do que podia se lembrar ou contar nas mãos.
Ela não se lembrava de quando tudo começou, nem de quanto as coisas começaram a ficar realmente muito ruins. Entre idas ao banheiro para vomitar e jejuns que duravam dias, a perda e ganho absurdamente rápida de peso, o choro, o desespero e angústia, não sabia como deixou as coisas chegarem aquele ponto. E também não sabia como sua família poderia se importar tão pouco a ponto de ignorarem todos os sinais e fingirem tão bem que tudo estava bem. Sempre bem, sempre servindo as boas aparências que precisavam para manter o nome da família.
Quando ela foi encontrada à beira da morte em um hotel na beira da estrada, sufocando em seu próprio vômito, a única condição de sua família em pagar a cara clínica de reabilitação em que se encontrava, era a de que após sair ela não deveria procurá-los nunca mais. Ela nunca soube o que eles disseram a todos ao redor, se simplesmente apagaram a existência dela de sua árvore genealógica por puro capricho. Tão facilmente, como se ela não fosse nada. Apenas porque ela estava doente.
Mas não importava mais, ela repetiu para si mesma pela milésima vez. De certa forma, a garota sentiria falta da rotina simples da clínica. Café da manhã, terapia, jogos na sala que compartilhava com várias outras garotas – a maioria adolescentes e novas demais para sofrerem tanto -, terapia, psiquiatra, passeios pelo jardim e piscina... E seu tão amado dia de visitas. Uma vez por semana as mulheres poderiam receber visitas de sua família e entes queridos, e com certeza aquelas eram as melhores horas da semana de todos. não tinha muitas pessoas para receber, mas havia uma, apenas uma, que nunca deixou de visita-la sequer uma semana.
era a única pessoa na vida dela que decidiu ficar. Se manteve incansavelmente ao seu lado em todas as crises, todos os dias em que ela quase desistiu e que quase acreditou que ninguém mais aguentaria sua existência, ele se manteve fielmente segurando sua mão ao longo da grande tempestade que ela chamava de vida. E naquele dia, seu último dia em St. Pauli, ela sorria, pois sabia que era ele que a esperaria do lado de fora.
Apesar do longo tempo que ficou ali – exatamente 525 dias -, ela não havia feito fortes conexões e não haviam muitas pessoas da qual se despedir. Por isso, após tomar seu café da manhã, rumou até a sala de sua psicóloga, a Dra Wolfstein. Era impossível colocar em palavras o quanto ela devia aquela mulher. Graças a Dra., ela conseguiu se libertar do lugar mais sombrio da sua mente.
- Bom dia, ! Como você está se sentindo hoje? – ela disse sorridente enquanto a garota se sentava.
- Melhor do que imaginava, pra ser sincera. Pensei que ficaria com mais medo.
- Medo?
- De sair daqui e ter que encarar a realidade. Tudo é muito fácil aqui dentro, com todos vocês me protegendo. Mas lá fora, sozinha, eu tenho medo de não ser capaz de conseguir. – ela segurou com força a perna que começava a tremer e esboçou um sorriso triste.
- Você sabe que não estará sozinha lá fora. E seu tratamento continua, também. Tenho certeza de que você está pronta para essa nova etapa da sua vida. Eu confio em você. Você está pronta. Seus avanços aqui foram impressionantes. Como eu sempre te disse, a paciência é a chave para o progresso. E você foi incrível, .
- Eu sei.
- Só te chamei aqui hoje para me despedir, não quero que você vá embora sem um abraço. E também quero que saiba que, se precisar de mim, você tem todos os meus contatos. Eu confio cem porcento na nova profissional que vai lhe acompanhar, mas sei também que é difícil fazer essa transição, então pode contar comigo, certo?
- Obrigada. De verdade.
As duas se abraçaram por longos segundos e voltou ao seu quarto para encarar as paredes brancas e buscar suas coisas. Aquela seria a última vez que encarava aquele lugar, a última vez que prendia a respiração para sair do cômodo, a última vez que precisaria medir seus passos. O medo se misturava com a felicidade e excitação e um sentimento completamente novo se apoderava dela: esperança.
Todos os funcionários sorriam gentilmente enquanto ela carregava a pequena mala pelas escadas e rumava até a recepção. Recebeu alguns abraços e desejos de sorte, saúde e felicidade.
Quando chegou até a recepção, estava sentado brincando com as chaves do carro entre os dedos. Dali, iriam para o novo apartamento que iriam dividir. Dali, ela começaria o resto da sua vida. Ele sorriu e se levantou ao vê-la, correndo para beijá-la na bochecha e pegar a mala. Os dois se encararam por alguns segundos enquanto sorriam, a felicidade inegavelmente estampada em seus rostos.
- Você está pronta? – ele perguntou enquanto segurava a mão dela com força.
- Sim. Vamos embora.
E finalmente, sua vida iria começar.




Fim.



Nota da autora: Sem nota.

Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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