Drunk

Última atualização: 22/10/2017

Capítulo Único

I wanna be drunk when I wake up On the right side of the wrong bed And never an excuse I made up Tell you the truth I hate What didn't kill me, It never made me stronger at all Love will scar your make up Lips sticks to me, so now I maybe lean back there I'm sat here wishing I was sober I know I'll never hold you like I used to



Uma brisa suave agitou os cortinados, arrepiando-lhe a pele exposta e arrancando-o do sono profundo em que se encontrava. Por algum motivo, os seus olhos pareciam pesar mais do que chumbo e as pálpebras recusavam-se determinantemente a abrir para encarar o dia de sol que despertara no exterior da casa. Pouco a pouco, foi tomando consciência do que o rodeava: uma respiração estranha, uma dor de cabeça insuportável e a certeza de que se ia arrepender assim que abrisse os olhos. Vagas lembranças da noite anterior diziam-lhe que, apesar da doce ilusão que vivera na noite anterior, se encontrava no lado direito de uma cama bastante errada. O corpo ao seu lado já não era mais tão desconhecido como fora umas horas antes e, ainda assim, sentia-se incapaz de se recordar do nome dela.

“Second round?”, a voz feminina e por demais estridente ecoou ao seu lado, no exato momento em que sentia uns braços magros enrolarem-se ao seu redor.
“Não devíamos nem sequer ter passado do primeiro.”, retorquiu asperamente carregado de remorsos, abrindo os olhos abruptamente. Assim que reconheceu o seu quarto dos tempos de solteiro, soltou um suspiro e obrigou-se a levantar. “Olha, hum…”
“Chloe.”, a loira elucidou-o revirando os olhos.
“Certo… Chloe…”, repetiu. “A noite de ontem, aliás, a madrugada, foi incrível, mas eu preciso ir trabalhar.”
“Não precisas de inventar uma desculpa, sabes? Disseste o nome dela a noite toda. , não é mesmo? A que te tira o sono?”, provocou com um sorriso amargo nos lábios ainda borrados de batom. Sentindo o desconforto que causara, prosseguiu. “Não te preocupes, conheço o caminho para a saída. Já agora, se vais tentar remediar alguma coisa, experimenta tomar um banho. O teu cheiro a álcool é capaz de se sentir a quilômetros de distância, queridinho.”

Minutos mais tarde, deixava o espaço arrogantemente, desencadeando uma onda de pensamentos duvidosos em sobre como se tinha envolvido com alguém tão diferente da pessoa que amava e mesmo assim ter chamado o seu nome. Não era uma mentira que tinha que ir trabalhar, porém, o seu turno tardio atrás do balcão de cinema ainda lhe concedia tempo suficiente para a autocomiseração. Durante o último mês, tinha conseguido embrenhar-se num novo grupo de amigos: a vodka que o deixava eufórico, o whisky com quem partilhava as mil e muitas mágoas da relação que tinha fracassado, a cerveja quando ainda era muito cedo para que os outros lhe pudessem fazer companhia, o gin mais sério e confiável, os infinitos shots coloridos que pareciam deixar a cidade mais excêntrica… Já recebera inúmeras chamadas de atenção devido à sua fraca prestação no emprego, trocava sessões, enganava-se a dar trocos, servia pedidos errados, indicava salas de cinema no qual não estava qualquer filme em exibição no momento. O pesadelo de uma recém licenciatura gasta num emprego que nada tinha a ver com aquilo que desejava fazer da sua vida aliada ao final de uma relação de tantos anos, chegavam para acabar com a sanidade de qualquer um. Principalmente, de qualquer um que decidisse que se ia deixar acompanhar pelos melhores amigos efusivos da solidão.
era o verdadeiro motivo para que se sentisse tão perdido e sem rumo. Deixara o apartamento no centro da cidade em que viviam juntos já há um ano e meio e dera por si de malas e bagagens à porta do seu antigo quarto dos tempos da Universidade, ligando para o seu antigo senhorio indagando se poderia permanecer por tempo indefinido, responsabilizando-se – claro está! – pelas contas que teriam de ser pagas. As paredes azuis que presenciaram os primeiros momentos que tinham vivido enquanto casal já não tinham o mesmo encanto, os pôsteres e bandeirolas alusivos à Universidade que os unira já não lhe diziam absolutamente nada. Esquecera o momento em que Direito passou de ser um sonho dele a um sonho vivido a dois, o momento em que as suas vidas tinham ficado tão ensarilhadas que já não sabia mais qual era o começo e o fim de uma. Tinha perdido tudo. Tudo! Agora, sentado na cama que tresandava ao perfume de alguém que não era ela, reconhecia que poderia viver perfeitamente bem sem a ressaca e a dor de cabeça que ela trazia consigo. O velho ditado de que tudo aquilo que não nos mata nos deixa mais fortes era uma verdadeira palhaçada. Ele não tinha morrido. Não tinha morrido de amor, não tinha morrido de coração partido… Ele ainda nem tinha morrido de ressaca ou de cirrose e, contudo, sentia-se morrer aos poucos. Cada dia mais um pedaço de si desaparecia, evaporando-se no tempo e no espaço. Queria ter estado suficientemente sóbrio nos primeiros dias para poder retroceder na atitude que o levara a fazer as malas e sair. Queria ter estado suficientemente sóbrio para pedir desculpa e admitir que a única coisa que o incomodava era já ter conseguido um emprego de sonho numa firma de advogados, recebendo um bom ordenado enquanto que ele se limitava a trabalhar num cinema. O amor vencia tudo e até isso ele conseguira contrariar deixando o orgulho tomar a vitória e destruir uma vida a dois. Agora, além do emprego que detestava ainda tinha perdido a mulher que amava e com quem tinha jurado passar o resto da vida. Ridículo até para ele que, um mês depois, ainda bebia para esquecer em vez de procurar dar um jeito de arrumar a sua vida e permitir que algo ganhasse sentido outra vez. Em vez disso, enchia a cara todas as noites, deitava-se com mulheres que no dia seguinte só lhe diziam que tinha chamado por outra e – mesmo que não fosse por culpa delas – o enojavam. Enojavam porque o faziam lembrar que era um perfeito idiota. O nojo, no fundo, não era delas. Era somente daquilo em que ele se tornara.


But a house gets cold when you cut the heating
Without you to hold I'll be freezing
Can't rely on my heart to beat in
'Cause you take parts of it every evening
Take words out of my mouth just from breathing
Replace with phrases like 'when you leaving me? '

Should I? Should I?
Maybe I'll get drunk again
I'll be drunk again, I'll be drunk again
To feel a little love



Dois meses depois...
rodou a chave na fechadura e empurrou a porta entrando em casa. O seu enorme Chow Chow, Hatchii, correu para a entrada, recebendo-a com a cauda a abanar num gesto claro de boas vindas. Os pais tinham-lhe dado o animal como uma forma de amenizar a tristeza pela separação que ela tinha sofrido três meses antes. Refugiara-se impiedosamente no trabalho, fazia horas extras com a maior das facilidades, levava religiosamente um monte de papelada para casa a fim de continuar distraída. As pessoas tinham formas muito estranhas de lidar com os corações partidos, desenvolviam todo o tipo de vícios para se absterem de pensar no que tinha acabado. Ela não era diferente e, por mais que o mundo estivesse convencido de que era uma mulher forte como existiam poucas, a verdade é que, para ela, chorar e sofrer jamais foram sinônimos de fraqueza. Por isso, habituara-se a esconder e a sofrer e chorar sozinha e em silêncio. Aprendera que se poderia distrair facilmente se tivesse outras preocupações. O caso que de momento lhe tirava o sono – aparte da sua certeza de que jamais voltaria a amar alguém – era de um casal idoso cujo senhorio falecera, deixando a casa ao filho que a queria vender sem piedade, expulsando de lá aquelas pessoas que não tinham qualquer outro lugar para onde ir. Estava a ser complicado fazer com que ele desistisse da ideia ou que, pelo menos, indemnizasse aquele casal tão amoroso que estava na iminência de ficar sem um teto e ter apenas a luz das estrelas. Eles sorriam amavelmente e repetiam bastantes vezes que, não importava o mal que pudesse existir e quão miseráveis pudessem ser financeiramente, eles sempre teriam a sorte grande por se terem encontrado e estarem juntos e ainda se amarem passados tantos anos.
decidiu erguer-se e ligar o computador para continuar a ler a sua enorme carga de trabalhos. Nunca aquela casa lhe parecera tão fria como nos últimos tempos, como se um frio interior tivesse grudado cada milímetro de si. Parecia apoderar-se das paredes, dos tetos e do chão, para não falar do seu peito que parecia ter congelado. Embrenhou-se no trabalho por várias e várias horas, voltando a si quando olhou o relógio e constatou ser de madrugada. Era fim-de-semana, a pior altura da semana. A única altura em que distrair-se podia ser uma tarefa quase impossível. As amigas convidavam-na para sair, frequentar bares e discotecas. Uma altura existira em que teria ido feliz e contente, mas agora, sabia que todos pertenciam ao mesmo círculo de amigos e que ia doer rever os velhos hábitos que tinha quando estava com . Sempre que lhe perguntavam se não se cansava de trabalhar, se não tinha mais nenhum sonho, se apenas se importava com a carreira, encolhia os ombros e falava em prioridades, procurando enganar não só os outros, mas a si mesma também. Tinha construído uma ideia idílica de futuro e de vida a dois, mais tarde a três e talvez até a quatro ou cinco se os filhos fossem chegando. Achara que era com ele que ficaria durante largos anos da sua vida e, afinal, o sucesso dela acabara por o espantar. Ele só precisava ter esperado, o emprego do sonho dele também chegaria logo e, até lá, ela não queria saber o que é que ele fazia. Não lhe importava se ele era o maior dos advogados ou se estava desempregado. Só queria que tivesse compreendido que eles eram tudo o que interessava. Lembrava-se de quando as coisas tinham deixado de serem carinhosas, quentes, apaixonadas. Lembrava-se bem de quando os pensamentos bobos de quem estava apaixonada tinham sido substituídos pelas perguntas sem fim acerca de quando iria ele deixá-la. Lembrava-se, muito infelizmente, de quando deixaram de serem apenas os dois a partilhar a cama para passarem a ter o álcool como companhia. Lembrava-se de como começara a refugiar-se das discussões justamente naquilo que os fazia discutir, o seu trabalho. E, então, para evitar perguntas, para evitar conversas fiadas sobre o que acontecera ou tentativas de reuni-los novamente, já que sabia que não iria resultar, preferia ficar em casa para não sonhar nem se iludir, enterrada em legislação e enormes volumes poeirentos de direito embriagando-se com as letras e os problemas alheios para, no final das contas poder sentir-se um pouco melhor e amada por si mesma, enquanto lá fora, a vida acontecia sem ela.

I wanna hold your heart in both hands
Not watch it fizzle at the bottom of a Coke can
And I got no plans for the weekend, so should we speak then?
Keep it between friends
Though I know you'll never love me like you used to


Quatro anos depois...

“De um a dez quão nervosa estás?”, sorria para Claire, a sua melhor amiga prestes a casar.
“Cem?”, a outra protestou encarando-se no espelho. “Vou casar, porra. Alguma vez imaginaste? Eu sempre achei que ias casar primeiro.”

desviou o seu olhar do espelho. Em tempos há já muito idos, também ela achara que casaria primeiro. Principalmente quando Claire era a alma das festas, não mantinha relações sérias e se dispunha a viver a vida intensamente e sem compromissos para, como tão sabiamente dizia, não prestar contas a ninguém.

“Essas coisas não vêm com prazos de validade, nem filas de espera.”, tentou sorrir para a amiga. “E o Phillippe sempre tentou ficar contigo. Tu é que eras demasiado tosca para notar.”
“Ainda bem que ele não desistiu.”, gargalhou Claire, piscando para o espelho. “E tu? Sabes que o é o padrinho, não sabes? Estás preparada para o ver?”
“Eu sei que ele é o padrinho. Sei que ele vai estar cá. Sei que vou ter que o ver.”, repetiu o mesmo mantra que tinha recitado a semana toda.
“Então, é desta vez que aproveitam para falar?”
“Não devias estar preocupada com o teu casamento em vez de quereres dialogar sobre a vida alheia?”
“Devia. Estou a tentar distrair-me da possibilidade do Phillippe desistir, de eu entrar na igreja e ele não estar lá à espera junto do altar para me receber.”
“Não digas disparates. O sonho de vida deste homem sempre foi casar contigo e estás linda, já agora.”



A viagem para a igreja pareceu tão curta como uma batida de coração ou um pestanejar. Se Claire estava numa pilha porque ia casar e o seu futuro estava ali bem na sua frente, sofria com a possibilidade de enfrentar um passado que nunca estivera preparada para reviver. Era uma história que, tantos anos depois, ainda lhe causava mágoa. Em tudo tinham sido um casal maravilhoso. Em tudo, exceto na falta de aceitação que ele tivera face à vida dela, ao cargo que ocupava e às diferenças que tinham sido encaradas como impossíveis de superar. Da última vez que permitira que alguém lhe falasse sobre ele, soubera que ele tinha ido para uma clínica de reabilitação. Os seus problemas com o álcool tinham feito com que fosse perdendo os muitos empregos precários que arranjava, com que não arranjasse nenhuma oportunidade na área… Soubera da desgraça em que a vida dele se tornara e, apesar de a vida amorosa dela ser igualmente deplorável, não queria encará-lo. Não queria ver aquilo em que ele se tornara, não queria ver o que o estúpido vício que ele desenvolvera tinha feito com ele.
“É agora.”, sussurrou para amiga, assim que se aproximaram das enormes portas de carvalho. Sorriu amigavelmente para transmitir força e iniciou a caminhada até ao altar já que teria que caminhar na frente da amiga, numa espécie de cortejo improvisado que fora ensaiado nos dias anteriores. Os passos pareciam pesar chumbo e ia observando as pessoas, esboçando sorrisos aqui e ali para algumas caras conhecidas evitando olhar para o único local em que imaginava que o padrinho do noivo pudesse estar. Evitaria até não poder mais. Evitaria constatar a forma em que ele se poderia encontrar até não ter outro remédio que não fosse saber. Chegada ao altar, caminhou para o lado em que tinham combinado que ficaria, acenou encorajadoramente a Phillippe e viu o pai de Claire entregá-la àquele que seria, agora, a pessoa que iria cuidar dela. Não que todos os presentes não tivessem a mais pura certeza de que Claire podia perfeitamente cuidar-se sozinha e ainda fazer feridos pelo caminho, tal era a sua energia e vontade de viver. Assim que vislumbrou os cabelos ruivos do outro lado do casal, o seu coração pareceu entrar numa corrida enfurecida. Como era possível que ele ainda tivesse aquele efeito nela? estava mais bonito ainda, se é que isso era possível. Contrariamente a todas as expectativas, parecia saudável e bem cuidado. Tinha deixado crescer uma barba que lhe assentava perfeitamente e os seus olhos cravados nela, não tinham mudado nem um pouco. Viu-o sorrir-lhe, meigamente, estranhando um gesto tão familiar e simultaneamente tão conhecido. Aquele não era de todo o reencontro que tanto receara.



Os noivos tinham-se erguido dos seus lugares para abrirem a pista de dança. Claire tinha preparado toda uma primeira música que dançariam como casal e brilhava mais do que em qualquer outro dia, irradiando uma felicidade plena e calma de quem sabia que tinha encontrado o amor da sua vida e que, ainda por cima, tinha sido correspondido ao ponto de casarem. Phillippe nem parecia mais o menino nervoso que um dia tinham conhecido, emanava uma confiança que só podia ter sido desencadeada por, finalmente, estar a casar com a mulher com quem sonhara grande parte da sua vida. mantivera-se sentada, a perna cruzada balançando ao som de “A Thousand Years” enquanto bebericava coca-cola por uma palhinha. encheu o peito de ar e caminhou até ela, ocupando uma cadeira vazia ao seu lado.

“Oi.”, murmurou encavacado e esperando não levar um pontapé na bunda por se ter atrevido a introduzir um tópico de conversa com ela. “Como estás?”
“Muito bem.”, respondeu a mulher, assim que o espanto inicial a deixou. “E tu?”
“Também estou bem.”

O silêncio instalou-se momentaneamente entre os dois corações. Um silêncio tão denso que até a música parecia não conseguir penetrar.

“Ainda a trabalhar na mesma firma?”, voltou a perguntar, não sabendo bem o que dizer enquanto a observava tomar a sua bebida. Sabia que vê-la destruíra toda e qualquer determinação que pudesse ter existido acerca de a deixar em paz na vida dela, sabia que queria voltar a agarrar o seu coração com ambas as mãos e a mantê-lo seguro do mundo ao invés de apenas a ver beber a sua coca-cola como se nada mais no mundo importasse. Notava-a mais fria, menos calma. Distante.
“Sim. Agora tenho um lugar como uma das principais advogadas.”
“Boa! Bom cargo! Fico feliz por ti.”, exclamou, assistindo aos olhos dela encarando-o duvidosos e cheios de um fogo que só podia significar que ela bebia coca-cola porque sabia já ter atingido o seu limite no quesito do álcool. “Fico mesmo, .”
“Como ficaste quando eu arranjei emprego fazendo decidir-te ir embora?”, ironizou.
“Não queria chegar a esse ponto.”
“Então, não devias ter perguntado pela firma que te fez deixar-me.”
“Desculp…”
“Não, não peças desculpa. Não por isto. Vamos mudar de assunto. E tu? Como tens estado?”
“Agora, estou bem. Arranjei trabalho como advogado finalmente. Tive uns tempos negros e sem rumo, estive numa clínica, viajei para alguns países quando estava melhor num processo de autodescoberta.”
“Que países?”, aquela parte da história dele, ela não conhecia. Pensou em perguntar aos seus amigos o motivo para não terem mencionado isto, contudo, rapidamente se lembrou da facilidade com que tinha bloqueado todas as referências a e ao que ele fazia, das desculpas que tinha inventado para não saírem juntos quando lhe diziam que iam todos e ela desconfiava que esse “todos” o incluísse.
“Estive no Ghanna, no Sri Lanka, em Timor e no Congo.” enumerou.
“Uauu! Deve ter sido uma ótima experiência.”
“Sim, foi. Talvez tenha me tornado uma pessoa melhor.”
“Tu nunca foste má pessoa, .”
“Não, . Não fui. Mas sabia como ser egoísta, não achas?”

A mulher ficou silenciosa novamente. Não achava que ele tivesse sido egoísta, não achava que ele fosse assim porque queria. Hoje, mais afastada de todo o problema, ela sabia que ele tinha feito o que tinha feito pela incerteza que aquela fase de transição entre uma vida de jovens e a vida de adulto tinha despertado. Era normal e, provavelmente, aconteceria a 99,9% da população. Com ela apenas não acontecera, pois tivera a sorte de achar logo uma ótima oportunidade para brincar de ser adulto e ter um emprego e uma casa.

“Não, eu realmente não acho.”, respondeu.
“Queria pedir desculpa, sabes? Por tudo? Eu devia ter falado contigo e não ter simplesmente saído. Sei disso agora”, confessou.
“Não tens que pedir desculpa. Doeu, . Doeu muito. Já não dói tanto agora. Foi muito estranho nos primeiros tempos e vivi uma luta interna entre culpar-me por ter arranjado aquele emprego ou culpar-te a ti por não teres entendido que a tua vez também ia chegar e por teres deixado tudo à nossa frente. Agora, não. Deixei isso ir. Eu tinha que trabalhar e tu… Bem, tu tinhas que descobrir por ti mesmo que eras capaz de ter um bom emprego também.”

notou a honestidade com que ela dissera aquelas palavras. Encheu o peito de ar e procurou fazer-lhe um pedido que ia revelar que a sua luta por não ser egoísta ainda estava a ser travada.


, eu queria…”
“Sim?”, indagou quando o viu hesitar.
“Será que seria possível que ficássemos, pelo menos, amigos? Eu sei… Sei que é um pedido difícil e que eu nem o devia estar a fazer, mas, eu sinto a tua falta. A falta da tua personalidade e da tua presença. Passaram anos e ainda sinto. Achas que, já que nunca me vais amar da mesma forma, podemos tentar manter-nos como amigos?”
“Eu…”, começou, chocada com o desabafo que o homem despejara de uma vez só. “Eu… Claro, nós podemos ser amigos, . Somos do mesmo grupo, afinal de contas e eles saem para se encontrar algumas vezes. Não vejo por que motivo devemos continuar sem nos falar. Somos adultos, afinal de contas.”

O sorriso com que ele a presenteou valeu por qualquer incerteza que este novo rumo pudesse ter causado. Eram eles no fim de tudo. Conheciam-se como ninguém, tinham sido uma parte enorme da vida um do outro e podiam, claramente, ser amigos agora que tinham percebido como a vida mudara.


There may be other people like us
Who see the flicker of a clipper when they light up
Flames just create us but burns don't heal like before
And you don't hold me anymore

On cold days cold plays out like the band's name
I know I can't heal things with a handshake
You know I can change, as I began saying
You cut me wide open like landscape
Open bottles of beer but never champagne
To applaud you with the sound that my hands make


Dez meses mais tarde...

“Sim, Phillippe. Daqui a nada entro.”, confirmou ao amigo pela milionésima vez.
“Nós vamos ver-te, vamos só apanhar a pelo caminho.”
“Ok. Sem problemas.”, disse tentando soar calmo. Era vulgar, aos fins-de-semana, tocar num barzinho que conhecia. Gostava de fazer música e percebera há uns anos como isso poderia ser libertador. No entanto, era a primeira vez que estaria presente num desses momentos. Tinham-se encontrado, tomado café com e sem os amigos, tinham trocado algumas mensagens e era vulgar procurarem saber como o outro estava. Os amigos tinham comentado que ela, finalmente, começara a ter um volume de trabalho normal e que parecia mais sociável e disposta a dar-se com as outras pessoas ao invés de permanecer como um bicho enfiado numa caverna. Desligou a chamada assim que se despediu e preparou-se para enfrentar aquela noite.
Entrou no pequeno palco segurando a sua guitarra e cumprimentou a plateia com um sorriso e algumas palavras de boas vindas. Um breve olhar bastou para que encontrasse os seus amigos e, claro, aquela que sem nem sequer sonhar inspirara grande parte das suas composições. Ia tocar algumas delas, tinha-se comprometido a tocá-las e os presentes pareciam apreciar o seu trabalho e a autenticidade com que ele interpretava cada tema. A melodia preencheu o espaço e viu quando os olhos dela se arregalaram reconhecendo algumas das peripécias que ele retratara nas suas músicas enchendo-o de coragem para fazer daquela noite os pequenos passos de que precisava rumo ao novo capítulo que desejava escrever com . Ela, por outro lado, apoderou-se das garrafas que iam sendo pousadas na mesa e emborcava-as, temendo a onda avassaladora de sentimentos que começavam a manifestar-se. Era decidida e não queria, nem podia voltar a escolher o percurso que deixaria o seu coração em jogo. Tinha desistido da ideia de uma relação e de amor e, agora que, finalmente, tinha aceitado como verdade que cada pessoa tem os seus próprios sonhos e que nem todos precisamos passar por encontrar alguém com quem passar o resto da vida, lá vinha , mostrando ao mundo que nunca tinha sido bem resolvido quanto a ela e aos sentimentos dos dois.

“Hey”, ouviu a voz que queria evitar murmurar assim que o concerto terminou e ele se aproximou da mesa dos amigos após ter sido bastante felicitado pelos presentes.
“Hey.”, respondeu, olhando apenas para o gargalo da garrafa de cerveja.
“Está tudo bem?”, a preocupação evidente na voz dele quase a fez gritar e correr dali para fora.
“Ótimo. Tudo ótimo.”
“Senti a ironia. Não achas que já bebeste demasiado?”
“Eu posso ficar bêbada uma e outra vez que isso não vai fazer com que eu queira algum dia ter que lidar com a tua preocupação.”
“Calma, . Eu só queria conversar.”, ergueu os braços num gesto de rendição perante a atitude dela.
“Sobre as várias músicas que cantaste hoje?”
“Por exemplo. Na verdade, só queria passar tempo contigo.”, admitiu.
“Tenho a certeza que reconheci algumas das coisas de que falaste nas músicas.”, choramingou.
“Não preferes conversar lá fora?”, indagou vendo a cara dos seus amigos.

ergueu-se sem sequer responder e caminhou até ao exterior do bar. O frio parecia cortar e sacudia-lhe os cabelos. Abraçou-se automaticamente assim que sentiu o beijo do vento na sua pele. seguiu-a, apertando o fecho do casaco, tentando simular uma calma que não sentia.

“Falavas muito em beber…”, começou a mulher. Sabia que ele tinha tido problemas, mas custava saber que, a maior parte deles, tinham sido causados pela dor da separação e do fracasso que a relação deles tinha sido.
“Não foram tempos fáceis.”
“E como estás?”, odiou o som temeroso que pintou a sua voz.
“Estou bem. Estou realmente bem. Sou capaz de me controlar ao ponto de beber uma cerveja com os meus amigos e não sentir vontade de beber mais. Tenho levado a minha vida de forma mais calma, agora tenho um emprego e a música. Tu já sabes disto tudo, . Para quê essas perguntas?”
“Eu sei que já sei disso tudo. Sei que já falamos dos problemas que existiram e de como os foste ultrapassando. Só que ouvir-te… Ouvir-te fez-me sentir que foi mais complicado do que aquilo que disseste antes. E… e eu só queria que soubesses que não foi fácil para mim também. Ver-te sair. Ver-te sem compreender a minha posição, foi horrível.”
“Desculpa. Eu sei que é só uma mera palavra e que eu posso fazer pouco mais do que isso, mas eu lamento imenso o que fiz. Se eu pudesse voltar atrás…”
“Voltavas?”
“Sem dúvida que sim.”, exclamou. “Eu voltava num pestanejar, . Ainda te amo, sabes? Nunca passou.”
“É, eu entendo. Também nunca me passou, mas as queimaduras que ficaram de como deixamos que tudo ardesse não se curam assim.”, ela disse, afastando-se do abraço que ele lhe tentava dar.
“Eu sei que não te posso curar apenas com palavras bonitas e músicas que mostram o que sinto. Eu sei que tens que saber que eu mudei, mas, acredita, eu entendi que errei. Entendi sem que fosse preciso que alguém me explicasse. Entendi, porque sempre te quis e porque tu és definitivamente a pessoa que quero do meu lado.”
“As coisas que tu cantas…”, começou uns segundos mais tarde. “Elas são todas verdade?”
“Mais do que verdade. Senti cada pedacinho do que compus.”
“Eu não vou negar que sinto a tua falta.”, assumiu.
“Andamos nisto há meses, . Tu sabes que a minha vida está direita agora, nós saímos juntos, nós trocamos mensagens todos os dias, nós ligamos um ao outro. Para quê continuar a negar? Para quê?”
“Para que não se perca este pedacinho que conseguimos?”
“Isso nem sequer é uma resposta decente, , e tu sabes disso. Tentas? Por nós?”


I'll be drunk again
To feel a little love

Três anos depois...

“Prometes que não vais perder o controle?”, perguntava apertando o telemóvel com força. “Eu sei que é a tua despedida de solteira, mas quero ter a certeza de que amanhã não te vais queixar da cara de ressaca nas fotografias. Por que é que não quiseste fazer isto antes?”
“Sério? Estás a falar das fotografias? E eu a pensar que aquilo que te assustava era eu não pôr um pé na cerimónia.”, gargalhou com vontade. “E sabes bem que, hoje, é que é a minha despedida de solteira. Não quero saber se devia ter feito mais cedo, não tem jeito nenhum chamar de despedida de solteira quando vão existir mais dias pelo meio.”
“Tem juízo.”
“Prometo ter. E tu vê se te portas bem também! Quero ter um noivo lindo amanhã.”
“Marido.”
“Marido.”, ela repetiu saboreando a textura da palavra na sua boca agora que ganharia um novo significado.
“Até logo, amor.”
“Até logo. Amo-te.”



!”, berrou para o telemóvel horas mais tarde.
“Que se passa? Estás bem? O que aconteceu?”, o homem quase saltou da cadeira do bar em que se encontrava com os amigos quando detectou o teor de uma bebedeira na voz dela.
“Tenho saudades e isto é estúpido.”, reclamou.
“O que é que é estúpido, princesa?”, indagou voltando a sentir que era apenas uma fase momentânea da bebedeira dela.
“Ter uma despedida de solteira. Eu já não sou solteira há anos, estou contigo. Não tenho que me despedir de nada. Devíamos estar os dois em casa a despedir da nossa vida de namorados.”
“Isso é um bom ponto.”
“Vem buscar-me.”
, os nossos amigos matam-nos.”
“Vem buscar-me em segredo.”

Após trocarem algumas informações sobre a localização dela, não demorou mais do que meia hora a chegar até onde o seu coração ficava guardado. não estava num estado tão lamentável como seria de esperar e ele, nervoso como se tinha sentido com o dia seguinte, tinha optado por não beber com os amigos. Álcool e nervos eram duas coisas que, com ele, não se deviam misturar. Jamais. Os resultados poderiam ser desastrosos e ele não queria descobrir, muito menos na noite anterior ao dia pelo qual esperava tinha imenso tempo. entrou no carro, tirando de imediato os enormes saltos vermelhos que decidira calçar para a ocasião. Depositou um beijo quente nos lábios dele e ligou o rádio.


“Finalmente, estou onde queria estar.”, comentou parecendo descansada e pousando a sua mão sobre a dele.
“No carro?”
“Não. Ao teu lado.”

Naquela noite e por todos os dias e noites que se seguiram, e souberam que não precisavam de álcool ou de qualquer outro estimulante para que se sentissem bem e profundamente amados. Tinham ultrapassado diversos obstáculos na jornada para que ficassem juntos. Tinham estado separados. Tinham-se reencontrado. Erros podiam gerar afastamentos, o passado poderia interferir de mil e uma formas no futuro que as pessoas construíam para sim. No entanto, no final do dia, era o amor que importava. E haveria melhor sensação do que se sentir embriagado pelo amor e pela presença de alguém?





Fim.



Nota da autora: Sem nota.



Nota da beta: Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Para saber quando essa fic vai atualizar, acompanhe aqui.


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