03. Begin

Finalizada em: 12/12/2017

Capítulo Único

Há uma tênue linha entre o consciente e o inconsciente de uma pessoa. Essa linha pode ser resistente como aço ou delicada como seda, separando o ser de um indivíduo de seu interior mais profundo. Embora tênue, a linha existe, e é um constante lembrete do que você deve sentir e o que sente de verdade.
Jungkook não tinha mais consciência dessa linha. Embora soubesse de sua existência, a sua presença não era mais sentida há um bom tempo. Sabia que, em teoria, as suas duas partes deveriam estar em sintonia. Mas não era assim que funcionava.
Jungkook sabe o que deve fazer. Acordar, levantar, comer, ensaiar, ensaiar, ensaiar, gravar vocais no estúdio, sorrir para câmeras, ensaiar, ensaiar... Tem seguido essa rotina há quase três anos agora, e essas ações são muitas vezes feitas no modo automático, como se fosse uma casca vazia funcionando sem um piloto humano. Não era algo ruim, de certa forma. É importante deixar o corpo funcionar por si só às vezes, dar um breve descanso para a sua inquieta mente.
Mas a questão do inconsciente é que ele não pode ser impedido. Não há como deixá-lo no banco de reserva enquanto analisa minuciosa e friamente seus movimentos no espelho do estúdio, procurando por imperfeições. O inconsciente está sempre ali, observando e tendo suas independentes reações, estas que Jungkook não conhece até que seus olhos finalmente se fechem no fim do longo e cansativo dia. A sensação é que quando adormece, pesadas cortinas de veludo se abrem e um espetáculo é apresentado a si, mostrando sem qualquer tipo de filtro tudo aquilo que o piloto automático reprime. Vê seus pais em Busan, chorando de saudades de seu filho. Vê o menino que não o deixava em paz na terceira série se contorcendo de inveja de seu sucesso, se dando conta de que jamais chegaria perto de sentir o gosto dos holofotes ou dos brilhantes flashes contra suas bochechas cobertas de maquiagem.
Mas o clímax do espetáculo era sempre um que Jungkook não queria ver. Há uma sensação de impotência ao ser surpreendido com um tapa na cara, e era esta que inundava o peito do menino quando aquele fragmento específico do seu inconsciente começava a se desenrolar diante de seus olhos. A primeira coisa que sentia era um confortável sofá abaixo de si. Estava deitado nele, e o cômodo estava escuro demais para ver qualquer cor. A TV estava ligada por perto, fazendo com que um pálido brilho se espalhasse pela sala de estar como uma presença independente. Era então que a segunda sensação se fazia presente: o toque. Sentia um corpo acima do seu, um que não tinha qualquer intenção de tocá-lo inocentemente. Sentia lábios contra os seus, se movendo de forma decidida e um tanto provocadora. Em seu sonho, podia sentir seu próprio corpo respondendo, ansiando por mais pontos de contato como um beduíno perdido que anseia por água. Seu desespero era assustador para si próprio, porque não tinha nenhuma lembrança de estar tão desesperado na vida antes. Mas o Jungkook do sonho não parecia absorto nesse tipo de pensamento, pois pedia por mais de uma forma quase petulante, quase imperativa.
“Jungkook.”
Era então que um estalo se dava em sua cabeça. Um estalo tão intenso que era quase audível, ecoando pelas áreas da sua mente ainda regidas pela sua moral e dever. Pelo que era certo e errado, pelo que era normal e anormal. De repente, os traços reconhecíveis no escuro escorregavam para o consciente, como o peito firme e plano, as mãos fortes e o grave tom de voz.
Jungkook estava beijando um menino.
A partir desse momento, tudo se dissolvia em caos. Seu coração se acelerava bruscamente e uma sensação desagradável se estabelecia em seu estômago, por cima da calma e prazer de antes. Seu corpo era puxado de volta para a realidade, onde se via sentado em sua cama, com suor caindo pelo seu pescoço. Percebia que estava arfando como se houvesse visto o diabo em pessoa em seu sonho, tentando escapar de suas garras cobertas de pecado e pensamentos proibidos.
Os sonhos não eram o problema. Era fácil se levantar no dia seguinte rotulando toda a experiência como um pesadelo absurdo e ignorar como havia se sentido bem nele. Como parecia certo, ao ponto de beirar o óbvio. É claro que estava beijando um menino. Fazia todo sentido em seu mundo inconsciente, onde podia sonhar com unicórnios e carros voadores. Mas quando ultrapassava o delicado tecido da realidade, onde as coisas eram mais opacas em uma sociedade com princípios heteronormativos demais, tudo se quebrava e tomava uma aparência repulsiva.
Os sonhos nunca foram o problema. Era fácil ignorá-los. Jungkook já não podia dizer o mesmo sobre Park Jimin. O garoto que era feito de água, dançando como se fosse um rio fluindo por uma montanha, desaguando em um intenso mar azul. Que tinha a aura amarela como girassóis, brilhando incessantemente quando dava um sorriso largo o suficiente. Que não fazia ideia do poder que tinha em suas pequenas mãos, vendo incapacidade em cada gesto que fazia quando na verdade podia convencer Namjoon de que a Terra era plana se assim desejasse. Jimin não fazia ideia do seu efeito no resto do mundo, do seu efeito em Jungkook. Era melhor que permanecesse assim.
Era quase cômico que uma única pessoa o fizesse abrir novamente, às quatro da manhã, suas anotações em um bloquinho empoeirado e deixado de lado desde Love Is Not Over. Era ridículo que uma única pessoa o deixasse tão desconfortável e sufocado na própria pele a ponto de precisar derramar seus pensamentos em algum lugar para não transbordar em lágrimas. Quando Jungkook abriu a página em branco e começou a enchê-la de confissões e desejos que jamais falaria em voz alta, foi exatamente assim que se sentiu. Ridículo.
Mas o dia amanheceu e com ele o bloquinho voltou ao seu lugar dentro da gaveta. O trataria como os seus sonhos; o deixaria intacto, existente apenas de madrugada quando sua cabeça está dando piruetas e seu coração batendo rápido demais. Não estava sendo covarde, em sua opinião. Estava apenas sobrevivendo, lidando com um peso que seria fatal para as pessoas que amava. Precisava guardá-lo para si ou veria seu mundo caindo aos pedaços, se desmanchando como areia. Precisava ser forte, e Jungkook sempre fora bom isso.
Com a sua decisão veio a necessidade de escrever uma música. Seus hyungs lutavam com um novo conceito, um novo álbum e sete músicas solo. Era um risco, mas sabiam que era o certo a se fazer. Fãs gostavam de ver as personalidades individuais dos grupos, e nada melhor do que fazer uma música que representasse esse lado escondido atrás de câmeras e maquiagem. Jungkook assentiu com todas as decisões, sentou-se com seu caderno e começou uma música nova, ignorando as anotações que havia feito naquela noite. Podia escrever algo sobre si que não fosse relacionado ao conflito com o qual lidava todos os dias. Havia algo além, algo seguro e igualmente profundo que pudesse explorar sem reviver aquelas letras desesperadas. Transformar os pensamentos em palavras e palavras em música era tornar real o que sentia, e Jungkook jamais faria aquilo.
Seu inconsciente discordava e logo o deixou ciente desse fato.
Jimin tomou o lugar da figura masculina de seus sonhos. Lhe assombrava em seu sono, preenchendo o silêncio de seu cérebro com sua risada e se fazendo presente em cada canto de sua memória. Lembranças lhe tomaram como uma violenta corrente, o deixando sem ar. Os braços de Jimin ao redor de si anos antes quando começou a chorar debaixo dos cobertores, com saudades de casa. Sua voz preocupada lhe perguntando se queria conversar meses depois quando não pôde voltar para Busandurante o Chuseok. Sua constante atenção, sua aura cativante que parecia sempre pulsar no canto do seu olho. Jimin estava sempre ali, se certificando que ele não cairia aos pedaços. Dando fragmentos de si como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Jungkook suspirou. Sabia reconhecer uma derrota quando via uma.

You make me begin
Smile with me
Smile with me
Smile with me


As palavras fluíram mais naturalmente do que ele gostaria, se mostrando com uma simplicidade assustadora. Ao escrever, amplificou tudo que sentia, se dando conta de várias coisas conforme os últimos anos passavam pela sua cabeça como um filme. A primeira vez que havia de fato se apaixonado por um homem, mesmo que momentaneamente, quando viu Namjoon como Rap Monster pela primeira vez. Pequenos atos de seus hyungs e a adoração incondicional que sentia por eles, colocando-os no centro de seu Universo. A maneira com a qual, agora, Jimin tinha toda a sua existência na ponta de seus dedos, despertando nele algo que não podia ser outra coisa além daquela assustadora e intensa palavra. No fim da música, quando levantou os olhos do papel e se assustou com a hora, um peso parecia ter saído de seu peito. Se sentia ridículo novamente, por motivos diferentes. No fim das contas, havia feito a coisa mais clichê do mundo, que era escrever sobre seus amores. Não de uma forma magoada ou rancorosa, mas sim grata e consciente de que sua pessoa havia se baseado em cada um deles.
Como podia estar tão apavorado por amar um homem quando havia amado tantos até agora?
Naquela noite, apagando as luzes acima da mesa e deitando-se na cama com um suspiro aliviado, Jungkook não sonhou. Não precisava mais.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.



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