Finalizada em: 14/05/2021

01. Sobre meias verdades e primeiras impressões

— Por favor, professora! Você tem que me ajudar com isso.
A aula havia sido encerrada minutos atrás. A turma, com exceção de , saiu em disparada para o almoço. Enquanto se ocupava em juntar os materiais em uma pilha, a professora da disciplina de Estruturas de Concreto, também coordenadora do curso de Engenharia Civil da universidade, foi abordada com um pedido inusitado.
, você está no final do curso. O estágio e o trabalho de conclusão deveriam ser responsabilidades suficientes para assumir no momento. Por que está interessado em trabalho voluntário agora?
O estudante soltou o ar pela boca pesadamente.
— Porque meu irmão passou por essa experiência e disse que foi engrandecedor. Gostaria de tentar também — contou meia verdade.
Falar que tinha vontade de trabalhar de graça estava sendo mais por obrigação à devoção. , o irmão mais velho, havia cumprido trabalho comunitário, mas não compartilhara nada sobre a experiência.
— É um ótimo aluno, . Deveria reservar um tempo para si, porque daqui para frente é só paulada no curso.
bufou. Se o mais velho tinha conseguido ministrar o tempo e sobreviver, por que as pessoas não davam créditos a ele também? Mais tempo para ficar com a mente vagando em neuras era o que ele menos queria no momento.
— Por favor, professora! — Tentou fazer a melhor cara de cachorro abandonado possível. — Preciso de alguém que me dê uma direção, uma indicação. Meu irmão passava o tempo visitando e conversando com pacientes no Hospital Central, mas descobri que não estão aceitando gente por enquanto.
A mulher semicerrou os olhos, batucando os dedos contra a pilha de livros que ainda teria que carregar.
— Eu ainda estou com um pé atrás a respeito desse seu interesse repentino por voluntariado, mas acho que posso te indicar alguma coisa.
— Opa, valeu, professora! De verdade!
— Quando encontrar algo, eu te chamo.
— Beleza! Valeu! Por isso, você é a melhor!
A mais velha não se deixou levar pelas palavras. Limitou-se a revirar os olhos enquanto escondia o sorriso.

✨✨✨


Quando praticamente implorou por ajuda, não achou que tivesse sido levado tão a sério, até a indicação chegar mais rápido do que imaginava.
O ônibus que haviam pegado próximo à universidade parava há poucas quadras do destino pretendido. Com o papel do endereço em mãos e os amigos barulhentos ao redor, a consciência começava a pesar. Ele deveria estar afetado quando aceitou trabalhar em uma creche para o jardim de infância.
Essa nem era a sua vontade de verdade!
Faltava apenas essa atividade para se igualar ao currículo impecável do irmão mais velho. Aparentemente, as crianças catarrentas seriam sua salvação. Quem sabe dessa maneira as cobranças e comparações diminuíssem em casa.
Quando chegaram à portaria, o grupo se deparou com uma garota, que parecia ter a mesma idade que a deles, aguardando.
— Vocês todos estão pretendendo entrar para o trabalho voluntário aqui na escola? — Foi a primeira coisa que ela conseguiu dizer com o cenho franzido — Porque nas instruções que recebi, havia só um nome na lista. — chamou, checando nas mensagens do celular.
— Sou só eu — finalmente se acusou. — Eles estavam apenas me acompanhando.
— Hm, ok. — A garota não poderia se importar menos. — Me chamo e serei sua colega e instrutora. Podemos começar?
se despediu dos demais com um toque de mão em cada. A sós, pôde ouvir a nova colega debochar:
— Que bonitinho, precisa ser trazido até a porta pelos amigos! Já sabe atravessar a rua sozinho, ?
Ele ficou carrancudo, se segurando para não ser demasiado mal educado já no primeiro dia. Trataria de descobrir qual era a dela e o papel que exercia dentro da instituição. Depois, repensaria se seria de todo ruim mandá-la para o quinto dos infernos em voz alta.
— Ha. Ha. Ha. Deu curso para quantos palhaços para achar que teve graça?
Ambos se entreolharam com faíscas no olhar. Se antes já não compartilhava da empolgação de estar lá, não estava tornando tudo melhor. A tensão inicial permaneceu com o casal durante todo o dia.
— Caralho! — soltou chocado, ao adentrarem a sala de recreação das crianças mais novas.
Em sua mente, o cômodo estava mais para uma selva. Havia pedacinhos de gente correndo, tropeçando, outros mergulhados em uma brincadeira esquisita de bater com os brinquedos. Tudo ao mesmo tempo. O estudante tinha que assumir que nunca foi uma criança introvertida ou angelical, mas aquilo o intimidava mais que a entrada para o ensino médio.
— Agradeceria se não falasse essas coisas perto delas — pontuou sobre o palavrão, fazendo-o se lembrar de que estava acompanhado. — Não queremos pais reclamando com a direção de novo. — Ele pensou em contestar o “de novo”, mas lembrou que estava fazendo greve de conversa com a chata — Enfim, são raras às vezes que vai precisar interagir com elas. — A garota o fitou apenas para se certificar de que estava digerindo tudo. — Você pode brincar, se for convidado. Do contrário, ficar no canto observando, garantindo que ninguém coloque fogo nas coisas está de bom tamanho.
O modo de falar de fez se sentir menos mal por comparar aquelas criaturas ingênuas com animais selvagens. Seria como uma batalha diária: no primeiro vacilo, pularia de caçador para a caça.
Engoliu seco.
A determinação de não conversar com a foi mandada para o espaço no momento que perguntou:
— Como é que crianças poderiam atear fogo em um ambiente desses?
Todos os móveis tinham acabamentos arredondados. Não havia presença de qualquer aparelho que pudesse causar faísca. O piso ainda era todo revestido de borracha. Tirando eles, restavam brinquedos educativos.
sabia exagerar no discurso.
Ou não.
— Quer mesmo saber? — Ele assentiu. — Não subestime o cérebro dessas pestinhas, elas são criativas. Tipo no ano passado, quando uma decidiu que deveria espalhar melhor as decorações de Natal pela sala. Meu deus... — Pôs uma mão no peito para dar dramaticidade. — Só de lembrar, eu fico pasma.
— O que aconteceu?
quis acertar um dardo na testa dela pela enrolação. Mal conseguia acreditar que tinha sido picado pelo mosquito da curiosidade.
— Ela tirou um dos laços presos na árvore de Natal, daqueles que são presos por duas pontas de alumínio, sabe? Tipo os arames que vêm fechando os pacotes de pão de forma. — entendeu bem. — E...
— E... — insistiu.
— Enfiou uma ponta em cada buraco da tomada que estava livre.
Os olhos de só faltaram saltar para fora.
— Porra, e aí?
bem que tentou, mas o semblante de choque do recém-chegado era tão expressivo que ela riu. Era um assunto sério, que tinha movimentado a creche inteira no final de ano e deixado todos em alerta, mas agora que estava tudo bem, ela podia dar risada e contar como uma grande história de vida.
— Não deu nada, amém! A tomada sofreu um curto-circuito, pelo material impróprio enfiado obviamente. Perdemos o laço e a mão da criança ficou preta. — Deu uma risadinha ao se recordar. — Nada que um banho bem tomado e muita esfregação não tenha resolvido.
assobiou com o desfecho.
— Quem diria...
— Pois é. — Retomou a pose séria. — Podemos passar para o próximo ambiente.

✨✨✨


Ao relatar as experiências e as primeiras impressões sobre a colega de trabalho, acabou virando piada na rodinha de amigos.
— Cara! — Só faltava eles limparem uma lágrima de tanto esforço. — Não acredito que ela te disse isso.
Além de manter as crianças na linha, também era boa em dar respostas irônicas. Alguns dos funcionários da creche até o notificaram de que, apesar de tudo, a garota era legal e que ele não deveria se assustar por pouco.
Aquilo era uma piada.
Ele jamais ficaria por baixo de uma garota daquelas.
— Querem ver como faço ela se apaixonar por mim para depois ficar se remoendo pelo jeito escroto que me tratou? — Sorriu determinado, mas nenhum dos outros achou ser uma boa ideia.

✨✨✨


“Crianças sabiam ser endiabradas”, relembrava sozinha ao agachar para guardar as peças de Lego espalhadas por toda a sala de recreação. Nem havia chegado à casa dos trinta e já sentia as articulações dos joelhos reclamarem a cada inclinada, sem mencionar a falta de postura com a coluna. Enquanto caçava os componentes menores, olhou de soslaio para o companheiro com aparência abatida, fora do normal.
Se tinha uma coisa que e não tinham era proximidade. Com pouco mais de uma semana de trabalho, a garota ainda não tinha conseguido formar uma opinião sobre o novato. O estudante de engenharia tinha comportamentos discrepantes. Em um dia só faltava lhe cair a boca de tanto que tagarelava sobre experiências internacionais e mais um monte de coisas, no outro aparentava ter se afogado no próprio silêncio.
— Qual o seu problema, ?
— O que eu fiz agora? — Exasperou, interpretando a pergunta dela como uma afronta erroneamente.
— Vixe, está atacado? — Devolveu no mesmo tom, sem paciência para desaforos. — Só queria saber o que você tem!
estava tão distraído com os próprios pensamentos que acabou sendo grosseiro sem intenção. Então, viu-se obrigado a baixar a guarda. Os ombros, que nem tinha percebido tencionarem, relaxaram.
— Foi mal — pediu. — Não estava esperando que puxasse conversa.
— Acredite, nem eu.
— Só problemas de família. Eles são um saco às vezes.
— Não conheço uma pessoa que não tenha isso. O que aconteceu? — percebeu que talvez estivesse sendo intrometida demais. — Se é que você pode me contar.
De repente, desabafar com a companheira de trabalho soou tentador. Eles eram praticamente estranhos. Depois que cumprissem as horas, cada um seguiria para seu canto e ele não precisaria dar mais satisfações, ou lidar com julgamento alheio. e a escolinha de jardim de infância poderiam ser as suas válvulas de escape.
— Eu sempre fiz tudo que precisava e o que os meus pais queriam. Estudei para um caralho, fui um dos melhores no ensino médio, passei em Engenharia...
Ao perceber que estava realmente disposto a desabafar, parou com os trabalhos de organização para ouvi-lo. Arrastou um dos minúsculos banquinhos coloridos de plástico que as crianças usavam e se sentou, sentindo que a bunda tinha ficado mais para fora do que abrigada pelo assento, mas esse não era o foco no momento.
— Mas parece que eles não me reconhecem. Nunca ganhei um “parabéns” decente. Sempre tem um “na próxima você faz melhor”. Não importa o que tente, meu irmão mais velho parece estar sempre na frente. — Os olhos que estavam fixados no chão forrado de E.V.A buscaram os da garota.
se surpreendeu por encontrá-la mais atenta do que imaginava.
— Hm, entendi. — assentiu com a cabeça, sentindo que esse era o momento que deveria dizer algo. — Quer dizer, acho que entendi, né? Acha que o seu irmão é o favorito dos seus pais?
— Não sei se é bem isso — afirmou incerto. — Sempre ganhamos tudo igual, nas discussões ninguém era favorecido também. A gente se fodia na mesma intensidade — lembrou assustado da mãe com o cabo de vassoura em mãos. — É só que eles estão sempre querendo que eu faça as mesmas coisas que o meu irmão. Porque ele foi sucedido em tudo, devo fazer igual para trazer os mesmo méritos e alegrias, mas quando consigo, não parece tão interessante, exatamente porque meu irmão já fez. Os mais velhos são sempre privilegiados — deduziu com amargura.
— Pois me diz em que país isso acontece, que eu vou voando! — brincou para afastar o clima ruim que estava ficando. — Em casa, é tudo ao contrário. No caso, eu sou a mais velha e não tenho prioridade nenhuma. Meus pais acreditam que, por ter mais idade, minha cabeça é mais apta para abrir mão dos mimos e cedê-los ao meu irmão.
— Faz sentido... — deu os ombros.
— Eu também acho — confessou. — Em partes. Têm dias que ganhar um sorvete para alegrar faz toda a diferença do que eu mesma ir comprar, sabe? — A voz começou a adquirir um tom emocional indesejado. — Já pensou em fazer algo fora do que esperam? — Optou por mudar o rumo da conversa rapidamente. — Tipo um curso que não fosse Engenharia.
— Não sei. Na real, não me importo muito com essa parte. Vocação, o que eu gosto de fazer... Aceito qualquer coisa desde que paguem bem. — Percebendo que estava sendo encarado de forma estranha, arqueou as sobrancelhas. — O que foi?
— Meio estranho você falar que o mais importante é receber quando você está metido no meio de um trabalho voluntário, não é? — fechou a cara.
Por instantes, ela se deixou levar pela narrativa que contou, quase carregando as dores do outro para si. No quesito família, eles pareciam ter muitas semelhanças.
No entanto, tudo aconteceu como nas outras vezes que tentaram manter uma conversa civilizada: não importava o assunto que surgisse, o estudante de engenharia sempre atropelava tudo e as boas impressões ficavam tampadas pela postura mesquinha.
— Estou mandando a real. Já devia ter sacado que não estou aqui porque quero.
Lá estava ele, contando outra meia verdade.
O trabalho voluntário era para equipará-lo com o irmão e essa seria sempre a desculpa para estar enfiado ali. Ainda custava muito para admitir que gostava de fazer parte daquele grupo.
Dessa forma, retornaram ao silêncio. Invertendo os papéis sem querer, foi quem passou a acompanhá-la pelo canto dos olhos. A maneira agressiva com que essa jogava as peças assassinas-de-solas-de-pés na caixa deixava transparecer que estava zangada.
Um pequeno suspiro escapou dos lábios dele. Não havia dito nada de errado. Ela deveria estar satisfeita por ele não ser um filho da puta mal intencionado disposto a enganar todos com palavras bonitas e fáceis de ouvir. Buscando amenizar o mal estar, iniciou outra tentativa de conversa.
— Por que, ?
— Por que o quê? — Ela replicou impaciente.
— Por que o interesse nos meus problemas?
— Ah! — a assistiu dar os ombros. — Sabe como é, tenho alergia a garotos bonitos tristes.
? — Os olhos do estudante de engenharia se arregalaram um pouco com a repentina afirmação.
— O quê? — franziu o cenho, com a maior expressão de inocência. — Eu tenho mesmo essa alergia. — Ergueu a mão, como se jurasse diante da Corte. — Agora só falta acharmos um garoto bonito, né? Porque o que tenho aqui na minha frente é um bebê chorão. — Sorriu sem mostrar os dentes.
— Você é ridícula.
rangeu os dentes. Ele a faria se arrepender de tratá-lo assim. Além de um bom trabalho, buscaria uma maneira de fazê-la comer em sua mão.


02. Sobre problemas de família

A lista de exercícios de cálculo passada há quase um mês precisava ser mandada até meia noite, por meio do portal da universidade, para o e-mail do professor. ainda lutava para fechar algumas questões. Nove horas era o que os relógios marcavam quando o estudante decidiu começar a tarefa, bem-disposto a resolver tudo sozinho.
O trabalho na creche e o estágio estavam consumindo todo o tempo que poderia estar usando para dormir e resolver as pendências do curso, mas, ao contrário do que imaginou, estava feliz. Passar a primeira metade da tarde com , inventando jogos para entreter duas dúzias de cabecinhas inquietas era desafiador e muito engraçado. Por mais que não quisesse assumir, aprendia muito lá. Sentia-se mais humano e, pela primeira vez em muito tempo, realizando algo fora das expectativas das pessoas. Depois, vinha o estágio, onde era a parte legal do curso. Sem todo o blá, blá, blá e as teorias, tinha a chance de acompanhar os projetos diretamente dos canteiros de obras da construtora.
Faltando pouco menos de uma hora para o prazo, a paciência estava batendo no limite. sentiu uma pontada de desespero. A merda de lista ia compor uma parte importante da nota. Poderia bater na porta ao lado e pedir ajuda na resolução, visto que havia um engenheiro formado na família, contudo o orgulho falou mais alto outra vez.
Ele não queria baixar a cabeça para o irmão mais velho.
Correu para o celular, abrindo no grupo da turma para encontrar meia dúzia de pessoas que já choravam pelas respostas. Nesse meio tempo, duas notificações no topo da tela o fizeram sorrir satisfeito.
aceitou a sua solicitação.
começou a te seguir agora.

Sem se desligar das obrigações acadêmicas, correu para o perfil da garota para espiar.
era difícil e um quê de misteriosa.
No início, achou que ela se impressionaria se contasse todas as histórias que vivenciou em viagens e intercâmbios, afinal todo mundo gostava de aprender sobre outras culturas. poderia gostar, mas não reagia o suficiente para que uma conversa fosse desenvolvida. As respostas monossilábicas mostravam bem que ela era indiferente.
Então, a ficha caiu: se quisesse conquistá-la, precisaria mudar de tática. Talvez estivesse falando demais, ouvindo de menos. Justificando demais para alguém que não pediu por explicações. Contudo, esse era ele, , um cara que cresceu dependente de reconhecimento e boas impressões.
Por outro lado, não colaborava. Toda vez que engatavam em uma conversa e ele devolvia a pergunta para descobrir mais dela, recebia só uma resposta genérica, senão uma bola curva que os obrigava a mudar de assunto.
Ao abrir o perfil da rede dela, se surpreendeu por não encontrar nada do que imaginava. Sentimento esse que era recorrente tratando-se da garota. imaginou fotos conceituais, legendas poéticas por causa de toda a pose que mantinha, e não fotos simples, sem filtros, que se descritas com um emoji eram muita coisa.
Ela bem que revelou, dias atrás, não ter muita paciência para redes sociais.
Fotos sozinha, com amigas e um garotinho mais novo que deduziu ser o irmão. Todas as fotografias postadas podiam se enquadrar nessas três categorias. Distraído, permitiu-se pensar em como ficava bonita sorrindo, totalmente diferente das expressões que recebia diariamente na creche.
Coitada dela que não imaginava que o mais novo estava disposto a derreter todo o gelo que guardava aquele coração duro.
Batidas na porta, que estava entreaberta, o fizeram soltar o aparelho em mãos de supetão.
— Opa! Se assustou por quê?
deixou escancarado o descontentamento com a visita ao revirar os olhos, seguido de uma bufada.
— Fala logo o que quer, .
— Quem te vê largar o celular assim imagina que estava com um pornozão aberto — o mais velho zombou, com a metade do tronco para dentro do cômodo.
— Vai tomar no cu. Desembucha, caralho!
A simples materialização do irmão era o suficiente para despertar a ira adormecida. Não era normal, ele estava ciente. Eles eram irmãos, dividiam os mesmos pais, moravam na mesma casa, em quartos vizinhos, entretanto o ressentimento falava tão forte que optava por evitar o máximo de contato, caso contrário brigariam.
— Soube pela mãe que entrou para o trabalho voluntário em uma creche.
— E o que tem? — Vociferou.
O acontecimento já tinha duas semanas. Isso comprovava o pouco contato que tinham em casa. Ou em qualquer outro lugar.
— Nada, apenas surpreso.
— Ah, é? E por quê?
— Sei lá... — exibiu uma careta. — Não parece ser muito a sua cara.
— E o que parece ser a minha cara? — Linhas de expressão marcaram a testa do mais novo ao fechar a cara. — Contar histórias para os velhos no hospital também não era a sua cara, mas não vi ninguém implicar.
ergueu as mãos, como se estivesse se rendendo no campo de batalha.
— Só queria puxar assunto e conversar, maninho! Não está mais aqui quem falou.
— Ótimo. Se manda!
O mais velho fechou a porta ao mesmo tempo em que dava um suspiro pesado.
parecia mudado. Os boatos diziam que a fase revoltada de cada um coincidia com a adolescência. No caçula, observava que estava retardado, acontecendo agora.
Quando eram mais novos, raramente faziam alguma coisa separados. Nas festas de família, lembrava-se dos parentes brincando que pareciam gêmeos. E assim agiam, as fotos não mentiam: dois garotinhos com corte de cuia, flagrados com a mão na terra ou subindo em árvores. estaria mentindo se dissesse que não sentia falta.
Atualmente, eram totalmente estranhos.

✨✨✨


— Seu irmão é uma pessoa e você é outra. Não entendi qual a dificuldade de entender. Sinceramente, não deveria se doer com isso. Você tem o seu valor.
bem que desejou engolir as comparações dos progenitores com essa facilidade que a garota mostrava ter. Desabafar sobre os dramas de casa com a colega tinha virado um costume. Ainda que suspeitasse que 90% de fosse constituído de respostas atravessadas, vez ou outra saíam palavras de conforto que o faziam se sentir mais leve de verdade.
— Para alguém do seu tamanho, você chora demais, — ela continuou.
— E você é igualzinha a eles: só sabe me criticar. — Cruzou os braços.
— Eu deveria me ofender com isso ou me compadecer? — fez uma cara de desdém. — Porque não funcionou. Escuta, , se quer ser melhor que o seu irmão, ou só diferente, deveria tentar sair das sombras dele e fazer algo por si só. Repetir todos os passos dele na faculdade me soa como um tiro no próprio pé.
— E o que propõe que eu faça? — Indagou com exaltação, cansado dos desaforos da .
— E eu é que tenho que saber? Não sou oráculo, não, querido!
— Obrigado por nada, para variar. — Devolveu o livro para a estante com força.
— Ai, foi mal. Só estou em um dia ruim.
— Se for assim, acho que todos os seus dias são ruins.
Com toda a maturidade que tinham acumulado, iniciaram uma guerra silenciosa de caras feias para o outro.


03. Sobre primeira saída

O homem responsável pela bilheteria do cinema encarava a discussão, nada nova ou original, do casal diante de si, entediado.
— Escuta aqui, , se fui eu que convidei, nada mais justo que eu pagar!
— Escuta você, , convidar é sinônimo de pagar e eu não fiquei sabendo? E eu nem estou fazendo questão de pagar tudo.
A sorte deles é que não havia fila. Poucas pessoas tinham o atrevimento de ir ao cinema à tarde, em uma segunda-feira.
Na empresa onde estagiava, era aniversário de um dos diretores. Enquanto esse saía para comemorar, os demais chefes concordaram em abrir uma exceção para o dia, liberando todos os funcionários. Em vez de colocar as coisas em dia, ou ir diretamente para casa, pareceu mais interessante aos olhos dele ir ver um filme. E antes que pudesse avaliar melhor o que estava prestes a fazer, sua boca traiçoeira já havia aberto para fazer um convite a .
Mais inesperada que a própria proposta foi a resposta positiva dela.
O filme escolhido e aprovado por ambos era do gênero de terror. Mal havia passado dez minutos da sessão e só faltava desmanchar na cadeira de horror. Com a sala praticamente só para eles, ela não poderia se importar menos com os escândalos que estava fazendo.
estava indeciso se acompanhava o filme ou a colega. Com um salgadinho na mão, prestes a colocar na boca, finalmente fez o questionamento que estava entalado:
— Você não disse que era uma grande apreciadora de filmes de terror? — Arqueou as sobrancelhas, ora mirando a tela, ora mirando a medrosa.
— Escuta aqui, só porque gosto, não quer dizer que não possa ter medo ou me assustar.
Ao fundo, a trilha de suspense iniciava outra vez, com o volume aumentando cada vez mais e, com ele, as palpitações da .
— Ai, minha nossa senhorinha... Eu vou morrer! — Choramingou, encolhendo-se e enroscando os próprios braços nos de , que ao reparar no contato deixou um sorriso crescer.
Ao término da sessão, o garoto continuava a caçoar da postura da colega durante o filme todo.
— Já checou a sua calça?
sentiu um frio percorrer a espinha toda só de cogitar que o celular e o cartão poderiam ter caído. Quando as mãos alcançaram o bolso traseiro da calça, o alívio foi imediato.
— Já. Tem alguma coisa grudada? — Quis saber, começando a se retorcer para tentar enxergar atrás.
— Não. Era mais para conferir se você não se mijou toda com tanto pavor. — gargalhou, posicionando as mãos sobre a barriga.
— Vai tomar no cu.
— Você é hilária. Ficou o filme todo: “ui, eu vou morrer” e agarrando nos meus braços assim. — Enganchou um dos braços dela e começou a reproduzir as caretas de horror.
Sem vontade nenhuma para presenciar aquela palhaçada, se limitou a virar o rosto para os lados onde não estivesse dentro do campo de visão. Por outro lado, determinado a ficar no pé dela, ele começou a mover a cabeça freneticamente, seguindo para os mesmos lados dela, como se fosse sua sombra. Nesse meio tempo, parou subitamente, obrigando-o a fazer o mesmo e só então a ficha de que eles estavam próximos demais caiu.
As mãos dele se moveram naturalmente até o rosto dela, como se fosse um costume. Sem dar indícios de que queria fugir, o garoto parou de enrolar e por fim, acabou com a pouca distância entre eles.
Depois que se afastaram, foi a primeira a se pronunciar:
— Amanhã é um novo dia — ofegou. — Vamos esquecer o que aconteceu aqui.
concordou de prontidão, jurando que os lábios ainda estavam dormentes pelo contato há pouco.


04. Sobre a última saída

— Porra, obrigado pelos seis meses, pessoal! Cresci muito e vou levar todos comigo. Valeu mesmo, de coração.
Todos na mesa gritaram em celebração, erguendo as canecas e taças para um brinde.
Finalmente, tinha fechado as horas prescritas no contrato de voluntariado e, ao longo desse meio ano, conseguira cultivar amizades interessantes dentro da escola do jardim de infância. Pensando dessa forma, achou que seria injusto se não convidasse os mais próximos para comemorar o feito.
Aquele era oficialmente o último dia dele. O crachá e toda a documentação haviam sido entregues à instituição. Talvez nunca tivesse chance de reencontrar alguma daquelas.
O restaurante mexicano localizado a duas quadras do trabalho pareceu uma boa opção para a integração. Para recepcioná-los, logo no início da entrada, havia um grupo de mariachis tocando animadamente. Por dentro, as luzes eram baixas e amareladas, atribuindo uma sensação intimista, as mesas eram de madeiras redondas e a decoração seguia para o rústico, tudo nas colorações da bandeira do México, mas sem ficar caricato.
, que estava sentada no lado oposto ao do anfitrião na mesa, sentia-se desconfortável. Sempre que podia, tirava o celular do bolso traseiro para checar as horas. Torcia, sem maldade, para que surgisse uma mensagem de repente que a obrigasse a sair dali.
Uma das colegas percebeu a inquietação e a deu uma cotovelada discreta.
— Larga esse celular, menina! É o último dia do , vamos aproveitar!
Feito criança repreendida, os lábios de se fecharam em um leve bico. A noite deles mal havia começado, mas já tinha arquitetado tudo. Aguardaria uma pessoa ir embora antes, para não ser taxada de chata do rolê, e voaria para casa logo em seguida.
Ela não estava feliz.
Ou triste.
Apenas estranha.
E depois impaciente.
O tempo passava e ninguém parecia disposto a tirar a bunda da cadeira. havia se entupido tanto de tortillas e do chá em refil que em um momento da noite achou que passaria mal. Se não estivesse ali, as amigas e ela com certeza já teriam aberto os botões das calças.
Céus, ela estava prestes a explodir.
Pediu licença e se levantou com sérias dificuldades para buscar o banheiro. Quando retornou, não menos cheia, viu a mesa praticamente deserta. Contornou o móvel para chegar até o anfitrião ao mesmo tempo em que olhava para todos os lados em busca das colegas.
— Ué, cadê todo mundo? — Questionou, vendo que nem ao menos fila tinha no caixa.
— Ah! — coçou a nuca. — Todas falaram que precisavam ir e como você estava demorando... Tiveram que ir! — O garoto riu por ter se embolado com as palavras.
— Meu deus, você está bêbado?
— Te juro que não.
— Certo — concordou em um tom de quem não acreditava muito. — Vamos indo também?
— Não quer comer mais?
— Não! Nem se quisesse, entrava mais.
Enquanto se certificava de que ninguém do trabalho esqueceu nada na mesa, se adiantou até o caixa para pagar a sua parte. Pelo menos, era o que a garota acreditava até chegar lá e o garçom revelar que a parte dela também havia sido quitada.
— Eu... — Piscou pesadamente. — Não vou nem comentar sobre essa baixaria que acabou de acontecer — disse quando o alcançou já na calçada.
— Que bom. — deu um sorriso satisfeito, enfiando as mãos nos bolsos da calça.
Nenhum dos dois soube como proceder.
O clima constrangedor era perceptível no ar.
— Er, vai chamar um uber? — quis saber.
— Ah, não, vou a pé. Moro bem pertinho. Estava esperando você chamar o seu antes.
— Te acompanho até em casa, é perigoso de noite.
— Não é! — Ela balançou a cabeça freneticamente. — Conheço a região com a palma da minha mão. Estamos no meu território, querido.
— Faço questão.
— Então, deixa para lá. Chamo um uber.
— Pode ser. Paramos no seu endereço primeiro e depois sigo com o meu.
— Aí você vai demorar mais para chegar em casa de qualquer jeito — falou inconformada. — Vai de uber e eu a pé e acabou!
— Poderia disfarçar melhor que não me quer por perto. — Mordeu o lábio inferior para segurar a risada.
— Não é isso! — Ela gesticulou exageradamente com as mãos. — É que eu... Fico um pouco nervosa de estar sozinha com você fora da creche. — Desviou os olhos para qualquer ponto aleatório da rua.
— Por quê? — franziu o cenho.
— Você sabe... — Limpou a garganta. — O que aconteceu aquele dia no cinema.
— Achei que não era para comentarmos sobre o beijo.
— E não é! — Desesperou-se, arrancando um risinho malicioso do garoto.
— Hoje vejo que ao invés de ter concordado em ignorar o beijo, deveria ter feito outra coisa.
— É mesmo? Fazer o quê?
— Ter te beijado outra vez — concluiu, mirando a boca dela sem discrição nenhuma.
Maldito fosse aquele garoto que a fazia ficar sem reação com frequência. Malditos fossem os hormônios e, acima de tudo, malditos fossem os instintos traidores que também ansiavam por aquilo.
Os dedos dela se moveram sorrateiramente até a nuca dele, puxando-o com força até que as bocas já conhecidas se encontrassem outra vez.


05. Sobre despedidas

Pela centésima vez daquele ano, se encontrava enfornada na biblioteca, organizando os livros infantis em ordem alfabética. A tarefa demorava, mas não era algo que exigia muito. Pelo contrário, uma sensação muito prazerosa a envolvia ao fim, pela visão satisfatória de tudo em seus eixos. Agora que estava sozinha outra vez, sem nenhum para mais atrapalhar do que ajudar, demorava-se um pouco mais nas tarefas.
Em meio ao troca-troca de posição dos livros, pois a letra “M” ainda vinha antes da “N”, a bibliotecária surgiu por trás, dando dois toques delicados nos ombros dela.
, interfonaram para avisar que estão te esperando na recepção.
A expressão de tranquilidade da voluntária mudou para o pânico instantaneamente. Os pensamentos haviam sido levados automaticamente para o irmão mais novo.
Alguma coisa poderia ter acontecido.
— Ai meu deus, eu volto logo — avisou, saindo em disparada, apesar de ser proibido correr dentro da biblioteca, ainda a tempo de ouvir um:
— Sem nenhuma pressa, querida.
até suava frio. A apreensão era tanta que se imaginou rolando escada abaixo várias vezes. Então, a ambulância chegava e a carregava desacordada, enquanto o mundo pegava fogo, ao estilo de uma boa novela mexicana. O coração que bombeava mais rápido só ficou mais leve quando os olhos enxergaram a figura de parado ao lado do balcão de atendimento.
O raciocínio rápido não demorou a juntar os pontos e concluir que as coisas estavam bem em casa.
Assim esperava.
é quem havia ligado chamando por ela.
— Seu filho de uma mãe! — Ela se aproximou em passos largos, agarrando-o pela camiseta com violência, sem se importar de fazer cena na frente dos outros funcionários.
Entre risadas, as mãos dele cobriram as dela, usando da delicadeza para tentar se desprender.
— Morrendo de saudades, bombonzinho? — Ofereceu um sorriso galanteador, que foi prontamente ignorado pela outra, cega de raiva.
— O ódio que eu estou sentindo por você no momento não pode ser descrito! — Vociferou, empurrando-o pelo peito até chegarem ao lado externo da creche. — Mas se pudesse, seria do nível de esfregar a sua cabeça pelo asfalto.
Ao interligar que estavam indo em direção à rua, a expressão no rosto de mudou instantaneamente.
— Opa! — Outra risada nervosa. — Vamos com calma! — Dessa vez, aplicou mais força para tirar as mãos dela de si. — Posso saber o que eu fiz dessa vez?
— Como todas as outras vezes, está existindo!
— Ainda bem que eu não levo mais essas suas respostas malcriadas a sério. Do contrário, estaria com depressão.
— Pateta.
— Pateta é quem usa essa palavra achando que vai ofender.
— Perfeito! Agora me diz o que quer, porque eu quase sofri um ataque do coração achando que tinham ligado de casa para avisar alguma tragédia.
— Credo! — fez o sinal da cruz para afastar as atrocidades. — Em vez disso, deveria pensar que são notícias boas.
— Tipo? — Indagou de sobrancelhas arqueadas ao mesmo tempo em que tinha as mãos na cintura e batia o pé.
— Não sei... — Colocou a mão no queixo. — Tipo seus pais terem ganhado na Mega-sena?
— Com pobre essas coisas não acontecem. — Rolou os olhos.
— Bom, queria falar com você sobre uma coisa.
A cabeça cheia de conspirações da ficou em alerta, criando um monte de hipóteses do que poderia ser. Entre elas, só havia uma que fazia as pernas dela bambearem.
— Tinha que ser agora? No meio do meu turno?
— Pensei em mandar mensagem, mas não seria a mesma coisa. — Ele desviou o olhar para os próprios pés. — Você é bem escorregadia quando quer e essas coisas a gente tem que falar com olho no olho. — O estômago dela formigou em antecipação. — Poderia te pegar em outro lugar, mas a questão é que não sei de nenhum outro onde posso te encontrar. — Deu um sorriso que ela jamais havia presenciado.
A cada palavra dita por , sentia o nervosismo crescer. A postura, os sinais e a aura os envolvendo... Tudo a levava para crer que seria aquilo.
Talvez não.
Entretanto, se fosse, ela não saberia como lidar.
— Por favor, , não quero ouvir o que acho que vai falar. — O rosto se contorceu em uma careta.
— Não pode se recusar a ouvir uma coisa que não sabe, .
— Tudo bem — concordou entredentes, sabendo que se arrependeria logo. — Vá em frente. Diga o que tem para dizer de tão importante.
podia sentir o que estava por vir e o coração até bateu mais forte. Torcia muito para que estivesse errada.
— Acho que estou gostando de você.
Mas não estava errada.
Tão previsível.
— Não, você não gosta.
— Sim.
— Não — ela aumentou o tom.
— Sim. Eu gosto — repetiu, copiando o tom dela.
— Não. Gosta — sibilou em tom ameaçador.
— Sim, eu gosto para um caralho de você, Haper. Você pode não saber o que eu sinto, mas sei que você também sente! — Exasperou.
soltou uma risada nasalada. Era insensível agir daquela forma diante de uma declaração, mas ela não podia fazer diferente. Alguém tinha que representar a cota sensata dali.
Juntar alguém emocionado, como , a alguém que não sabe lidar com as próprias emoções, como ela, não era promissor.
— Não seja ridículo. Está falando coisas sem sentido. Quer dizer que eu... — ela apontou o dedo para si — não sei sobre os seus sentimentos, mas você pode concluir o que estou sentindo? Se toca, !
— Por que não acredita em mim?
O modo terno de falar adotado de repente, combinado com o olhar penetrante, a desarmou. , que estava muito confiante na conversa, começava a vacilar pela primeira vez.
O coração falhou em uma batida.
— Estou apenas tentando provar que está equivocado, . — deu as costas a ele para fitar o parquinho deserto no outro lado, enquanto recobrava os sentidos — Você não gosta de mim — reafirmou pela enésima vez no curto período em que estavam juntos. — Gosta da sensação de estar comigo.
— E não é a mesma coisa? — Ele deu a volta, buscando estar de frente para ela outra vez.
— Não é. E agradeceria se parássemos de falar nesse assunto, ou sairá machucado. — Cruzou os braços
Foi vez dele de gargalhar.
— O papel de menina má não é para você, .
— Interprete como quiser, mas só apague essa conversa que tivemos.
contraiu o maxilar, insatisfeito. Nos segundos que se sucederam, ambos ficaram lado a lado, em silêncio. A garota pensou que finalmente estava em paz. A qualquer instante, se cansaria e iria embora e quando isso acontecesse, ela ficaria tranquila de verdade.
— Você está com medo de admitir que gosta de mim, não é? — finalmente virou o rosto para encará-la, exibindo indícios do que seria um sorriso.
Uma pontinha de esperança foi plantada. era uma das pessoas mais difíceis de alcançar que ele já havia conhecido. Entretanto, a falta de um soco no meio da cara dele ou simplesmente uma saída dramática dela eram pistas suficientes para provar que existia um pouco de consideração. Ou não?
Enquanto se agarrava a qualquer resquício que indicasse que os sentimentos eram correspondidos, ponderava os próximos passos, sem saber exatamente o porquê de toda a cautela. Só de olhar para , ela concluía que era um garoto bem crescido. Então, por que estava custando tanto partir o coração dele?
— Você quer mesmo a verdade?
— Por favor.
— Eu não gosto de você e você também não gost... — Um grunhido dele a impediu de concluir a fala.
— Quando achei que estávamos avançando na conversa, descobri que voltamos para o começo.
— Como estava dizendo... — Ignorou o surto. — Você não gosta de mim, . Gosta da sensação de estar comigo... — Quando viu que estava prestes a ser interrompida de novo, ergueu o dedo para que este não se atrevesse. — Que é uma coisa totalmente diferente de gostar de mim. É normal que esteja confundindo os sentimentos. Você gosta da sensação de me ter ao lado para ouvir os seus desabafos e só. Seus pais estão sempre em casa, mas é como se não estivessem, então você é carente e deposita todas as expectativas em mim.
sentiu tudo ao seu redor embaçar por uns instantes.
Mesmo sentindo que as palavras atingiram o futuro engenheiro, viu que precisaria ser ainda mais vaca se quisesse que ele desistisse de vez daquelas ideias sem cabimento.
— Já se olhou no espelho? É inseguro, chato e vive chorando pelos cantos, porque acham o seu irmão melhor. Talvez ele seja mesmo! Vai ter que aprender a viver com isso. Não precisa de um amor agora. Ame a si antes. — Fez uma careta. — Uma terapia também cairia bem. — “Para os dois”, completou em pensamentos. — Me ter do lado não vai te ajudar em nada. Acredite.
O remorso foi instantâneo. Independente da fama de respondona e língua afiada que sabia que carregava, nunca se atreveria a dizer aquelas coisas pelo simples fato de não acreditar naquilo. tinha os seus momentos de exagero, mas era apenas uma pessoa tentando ganhar um lugar no mundo.
Seus olhos começaram a arder e os lábios a tremer, abrigando um amargor das próprias afirmações. Depois veio a vontade de rir, embora não estivesse achando graça nenhuma no drama. As palavras pareciam ter afetado mais a ela do que em quem mirava.
Não importava.
Porque qualquer leigo em matemática poderia prever que, nesse caso, duas pessoas ferradas não somavam.
Já no garoto, a consciência começava a bater. Ele precisava aceitar a realidade. Desde o começo, nos primeiros dias de trabalho voluntário, ele se dispôs a conquistar , fazê-la se apaixonar apenas pela satisfação de ser admirado. No entanto, tudo não passava de desculpa fajuta para mascarar que os sentimentos dele haviam sido corrompidos antes. O fato de sentir mais do que o necessário não implicava necessariamente nela sentindo as coisas na mesma intensidade.
E isso era difícil de engolir.
Justo quando estava prestes a desistir de ser um espírito livre pedindo por amor, as memórias da primeira e última vez que saíram vieram à tona.
— Você me beijou...
Ela soltou uma risada de escárnio, disposta a refutar qualquer motivo que ele arranjasse.
— E quando beijo virou sinônimo de paixão?
simplesmente tinha apagado da mente o quão irritante conseguia ser. O show de negação mostrava bem que a parte que precisava crescer na relação não era ele.
— Sabe, ... Eu posso ser um bebê chorão, como você sempre me chama. Também posso ser um filhinho da mamãe. Mas o papel de idiota orgulhoso fica para você. Custa admitir os seus sentimentos?
— Está fazendo papel de otário insistindo assim por uma coisa que existe só na sua cabeça.
— Eu sei que está mentindo. — exibia uma expressão magoada. — Por isso, nem vou me dar o trabalho de ficar ofendido. Você não tem todo esse poder sobre mim, .
Ela quis chorar e rir de desespero ao mesmo tempo.
— Você não se cansa de repetir as mesmas coisas? — Revirou os olhos, que estavam ficando embaçados. — De ficar dando voltas nessa conversa, esperando me vencer pelo cansaço? — abriu e fechou a boca várias vezes, estupefato. — Já que não tem mais o que falar, pode dar a conversa por encerrada? — Deu as costas, na tentativa de esconder os olhos mais úmidos do que o usual. — Se gosta de mim como diz, deveria aceitar minhas palavras e dar meia volta.
baixou um pouco a cabeça, com o olhar perdido, e conforme os segundos iam passando, sentia que a cabeça iria estourar com o silêncio.
Não adiantava mais.
Eles estavam se levando à exaustão e não queria mais brigar sozinho por uma causa que parecia perdida.
— Tudo bem — aceitou, por fim, mas não se sentiu muito melhor. — Como sempre, você venceu, . Sabe? — Riu forçado. — Eu costumo insistir no que acho que vale a pena, mas agora vejo como fui um idiota. Não precisava de tudo isso. Está cheio de ’s no mundo, alguma delas vai me querer.
Ela se virou com agilidade, pronta para protestar, mas os atos impulsivos foram freados a tempo de evitar soltar algo que pudesse prolongar ainda mais a discussão.
Se o coração dela fosse composto de vidro, teria sido possível ouvir o som de algo se rachando. Infelizmente, ninguém era insubstituível e ela sabia que em breve seria passado.
logo estaria bem arranjado.
só não conseguia saber se ficava feliz, ou não, com isso.
— Escuta... — a voz dele saiu rouca e os pares de olhos se cruzaram brilhantes de tristeza. — Estarei dando meia volta. Se não disser nada, entenderei que não devo olhar para trás. E se um dia nos encontrarmos novamente, não vai ser porque eu quis, .
O nó inexistente na garganta de se apertou. Sentiu a vontade de pedir para que ficasse cutucar o íntimo, mas atropelou esse sem piedade. Ela não tendia a voltar com a palavra. Imóvel e calada, assistiu lhe dar as costas em câmera lenta.
não conseguiu dar mais de cinco passos até sentir um ímã invisível o prender no mesmo lugar. Não olhou para trás, mas ficou esperando que fossem ter um desfecho diferente. A expectativa de ouvir a boca dela chamando pelo seu nome permaneceu só na expectativa.
— Continue o seu caminho, . — Pôde escutar a voz dela quase que em um sussurro. — Está fazendo o correto.
Às vezes, ela se surpreendia consigo mesma pelas habilidades de mentir. Chegava a ser tão convincente, que se via quase enroscada na própria teia. Entretanto, isso não era nada muito significativo para quem estava acostumada a se sabotar a vida toda.


FIM



Nota da autora: Socorro? Cry Baby sempre foi e para sempre vai ser um dos meus hinos favoritos da vida! Honrada em poder escrevê-la <3
Talvez o fato da música ser tão significativa tenha contribuído para os meus inúmeros surtos e mudanças de plot que, no fim, resultaram nisso.
Não sei nem o que dizer ~risos~. A Ste (maravilhosa, abençoada que seja) que lute para betar quase 30 páginas de muito chororô irritante hahaha. Na vida real, eu não tenho paciência e ACHO que não seguiria nada dos rumos do casal da história. Mas é só achismo mesmo, porque não podemos dizer que dessa água não bebereis, né?
Espero que tenham gostado e que eu tenha conseguido passar um por cento da essência desses personagens que precisam de uma long toda para se fazer compreendidos. Foi dificílimo de escrever, principalmente porque não estava conseguindo entrar nessa vibe meio de sofrência e draminha rsrsrs.
Quanto aos detalhes da vida da principal, optei por deixá-los mais de lado por enquanto, apesar de ter arquitetado todo o contexto.
Enfim, o que acharam? Ansiosa para receber opiniões.

Xx, Ale.

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