Essa não é uma história que agrada os olhos. É o tipo de história que pais, se descobrissem que seus filhos a andam lendo, os colocariam de castigo e os dariam um belo sermão. Não é uma história comum, que se vê todo o dia. Contudo, não há nada completamente extraordinário que a faça ser melhor que as outras. Na verdade, todo o enredo a faz ser ainda pior.

Pule para o seguinte cenário: um bar podre de estrada. Cheio de caminhoneiros e cheirando a mijo. Umas mesas de madeira do lado de fora, cobertas de poeira. Eu, sentado em uma das cadeiras, calado. Vê essa garota sentada na minha frente? Do outro lado da mesa? Sim, a que está tentando, sem sucesso, alinhar o fogo do isqueiro e o fim do cigarro. E ela tentou, nas minhas contas, umas cinco vezes antes de conseguir. Quando conseguiu, se esqueceu de acender o isqueiro, fazendo o sucesso virar outro fracasso. "Fracasso". Talvez essa seja a palavra chave. Ou quem sabe "mediocridade".

Eu estendo a mão, alcançando o isqueiro e o erguendo. Ela ainda com dificuldade alinha o fogo e a ponta do cigarro e finalmente o acende, usando dois dedos cujas unhas estão cobertas com lascas de esmalte. Eu não consigo desviar meus olhos dela, o que seria talvez um problema se eu não estivesse de óculos escuros ou se ela sequer se importasse em ser olhada. Ela não se importava. Ela, equilibrando o cigarro nos lábios por alguns minutos, faz riscos e curvas aleatórias com o dedo na mesa empoeirada, deixando a ponta de seu indicador suja, vermelha como o barro que cobre o chão. Depois esfrega a ponta do indicador e a ponta do polegar, vendo a poeira vermelha voar pelo ar, logo antes de voltar a segurar o cigarro. Eu continuo olhando-a por trás dos óculos. .
- Do que você está fugindo? - ela me pergunta de um jeito embolado, sem abrir a boca, sem quase mexer a língua, com o cigarro pendurado nos lábios.
Foram as primeiras palavras que ela proferiu a mim depois das três horas de silêncio anteriores.
- Da morte - eu respondo
Ela não faz nenhum outro comentário e continua a desenhar curvas aleatórias na mesa.
- E você? - eu finalmente a questiono
- Da vida.
E um caminhão passa na estrada, em alta velocidade, levantando o barro vermelho do chão pelo ar. Ela olha as partículas de poeira voarem pelo ar com enorme interesse por alguns segundos, mas o perde nos segundos seguintes. Parecia que nada conseguia prender sua atenção por muito tempo.

Volte um pouco o filme. Agora eu estou dirigindo em alguma estrada pouco movimentada de Nevada. Piso fundo no acelerador, com um braço para fora, sentindo o vento passar com força pelo meu cabelo. A música para de tocar e eu percebo que provavelmente o lado da fita acabara, então, deixando apenas uma mão no volante, eu a ejeto e mudo o lado. Era uma mixtape que eu havia feito quando ainda era adolescente. Modéstia à parte, eu tinha um ótimo gosto musical desde cedo. E o meu eu de 16 anos talvez imaginaria viver a vida que vivo agora, mas não acharia possível estar realmente vivendo-a. Enquanto concentrado em trocar o lado da fita, me desconcentro em relação à estrada. Quando volto meus olhos ao horizonte, tenho que freiar o mais forte possível. No meio da estrada, em uma curva, ela estava parada. Com o braço direito estendido, a mão em punho com somente o polegar para fora. O cigarro na boca, a alça da mochila suportada em apenas um ombro, o esquerdo. Os meus pneus cantam e deixam uma marca preta no asfalto, mas consigo parar antes de atingi-la. Meu chassi podia ser de um Mustang Fastback de 1968, mas o motor e praticamente todas as outras partes eram de carros diferentes, roubados. Eu sabia que estudar mecânica como matéria optativa no inferno chamado colegial um dia serviria para alguma coisa. Assim que freio, fazendo meu amortecedor trabalhar ao máximo, ela sai do meio da estrada e, sem ao menos perguntar, abre a porta do carona e entra. Eu mal tenho reação. Eu não consigo dizer nada, muito menos expulsá-la. Volto a dirigir, dando partida de novo.
- Essa música é boa - ela comenta, com a voz um pouco rouca
Rouca não por timidez, é óbvio. Rouca por causa do ar seco e empoeirado. Rouca de tanto fumar. Rouca de nunca usar suas cordas vocais. E foi esse comentário rouco que fez com que eu aceitasse dar carona à desconhecida. Digo isso como conforto: eu não tive a menor escolha em relação a querer ou não dar uma carona a ela. Ela simplesmente me roubou esse direito.
- Para onde você está indo? - resolvo perguntar
- Para onde você está indo? - ela rebate minha pergunta
- Não sei.
- Estou indo para o mesmo lugar - ela dá um meio sorriso
E foram assim que começaram as três horas de silêncio. Tudo o que se podia ouvir eram minha mixtape, o barulho do motor e o vento passando rápido pela janela.

Pule algumas cenas agora. O cenário é um apartamento antigo, que ela jurava que pertencia a ela. Eu sabia que não. Um apartamento escuro, com apenas alguns móveis ali e aqui. Móveis que provavelmente foram comprados no século passado. Havia panos de crochê em todo o lugar. Havia lembrancinhas de batizado e casamento em todas as prateleiras. Os porta-retratos eram mais uma evidência: fotos de crianças, de família, fotos de um casal na década de 30. Mas ela continuava insistindo que o apartamento era dela. E insistiu não só a mim, mas a todos que encontramos em um bar de estrada. E todas essas pessoas, em sua maioria homens nada respeitáveis, estavam agora também nesse mesmo apartamento. Alguém colocou um disco para tocar, provavelmente um que pertencia ao apartamento. Edith Piaf? Mais uma evidência. Só que ninguém estava se importando com a música. Ela era a única atração do lugar. E eu estava em um canto, assistindo-a dançar. Todos estavam assistindo-a dançar também, mas eu era o único com o punho fechado, pronto para atingir um soco em qualquer um que tentasse tocá-la.

Volte um pouco para quando ela se trancou no banheiro do hotel de estrada que estávamos. Nos primeiros momentos, penso que ela estava passando mal, mas, depois de quarenta minutos e nem ao menos um barulho vindo de dentro do cômodo, eu resolvo bater e perguntar. E pergunto de novo. E de novo. E tudo o que recebo é silêncio. Eu não deveria me importar tanto, mas eu me importava. Tento abrir a porta trancada em vão. Eu sabia que o banheiro era pequeno demais, se eu tentasse chutar a porta eu provavelmente a machucaria. E eu não queria machucá-la mais do que ela mesma se machuca. É difícil tentar proteger alguém que não quer ser protegido. Eu faço mais força na maçaneta, tentando quebrá-la. Em vão. E me lembro das aulas de mecânica e tento pensar fora da caixa. A porta ficava em um dos cantos do banheiro e eu torcia para que ela não estivesse sentada com a cabeça logo ali. Eu tiro minha arma de dentro da calça, seu habitat natural, e miro o lado oposto da maçaneta, acertando a primeira dobradiça. E acerto depois a de baixo. E desperdiço duas balas para tentar salvar alguém que eu esperava já não estar morto. A porta agora balança e eu consigo abri-la pelo lado oposto, quebrando a madeira vagabunda. Encontro-a debaixo do chuveiro, a água gelada correndo. Na pia, eu consigo ver uma bagunça de cocaína e cinzas de cigarro. A maquiagem preta dos olhos escorrendo e se juntando com o sangue que saía de seu nariz. A água levava tudo para o ralo imundo do outro lado do cômodo e ela estava desacordada, sem noção do que acabara de acontecer, sem ouvir minha voz, sem ouvir os tiros, sem sentir a água congelante. Ela me odiaria assim que acordasse e percebesse que ainda estava viva. .

Voltem o filme para quando compartilhamos - seria essa a palavra certa? - três horas de silêncio no meu carro. Nesse silêncio, eu percebi que acabara de deixar desastre entrar tanto no meu carro quanto na minha vida, como se eu precisasse de mais tragédia.

- Por que você não está se divertindo?
E agora estamos na cena do apartamento de novo. Ela veio até mim, dançando fora do ritmo, me olhando firme. Eu me concentrei nos círculos de maquiagem em volta do seu olho ao invés de me concentrar em sua blusa praticamente aberta.
- Porque não está divertido - eu disse
E para ela pareceu uma ofensa.
- Isso é uma festa! No meu apartamento! Não é isso o que pessoas normais fazem para se divertir?
Eu não queria mais discutir sobre o apartamento não ser dela. E muito menos queria discutir sobre "como não somos pessoas normais", como discutimos alguns dias atrás.
- Você só está achando divertido porque está bêbada.
Ela sorriu. E foi a primeira vez que eu a vi sorrindo.
- Eu não estou bêbada - ela sussurrou - Eu não tinha dinheiro. Isso é água de torneira.
E levantou o copo que eu jurava ser vodka. Eu também sorri, mas antes que eu pudesse vê-la sorrir de novo, ela voltou a dançar e se distanciou de mim. Ela não estava totalmente sóbria, mas também foi a primeira vez que eu a vi sem estar completamente embriagada.

De volta a quando eu a tirei do chuveiro, desacordada, vejam a seguinte cena: eu sentado em uma cadeira que pertencia a uma mesa suja encostada em uma parede do quarto. Ela deitada na cama bem à minha frente. Eu havia tirado suas roupas molhadas, mas estava abafado demais para cobri-la com o lençol. Honestamente, eu não quis cobri-la. Ela começa a se mexer, mas ainda não acorda. Eu apago meu cigarro no cinzeiro ao meu lado e respiro fundo. Tento não olhar para seu corpo, mas é impossível. Ela vira seu corpo para cima, ficando de costas. Passa a mão por sua cintura e, nesse momento, eu penso que vou ficar completamente maluco. Eu tinha duas opções: eu poderia fazer o que meu corpo queria que eu fizesse. Eu poderia dar um passo para frente, me ajoelhar na cama e a tocar como eu queria. Eu sabia que ela não iria dizer não. Ou eu podia dar um passo para frente, mas virar à esquerda, saindo pela porta do quarto e deixando com que ela se recuperasse e se cobrisse.

Eu dirigindo. Ela com o braço para fora, sentindo o vento. Esse era o cenário agora. A mixtape tocando alto. Eu fugindo, como sempre. Sabe quando dizem para nunca aceitar carona de estranhos? Deviam dizer para nunca dar carona a estranhos também. Agora eu estava preso a essa estranha no banco do passageiro e era uma sensação boa e ruim ao mesmo tempo. Quando desvio meu olho da estrada e tento olhar para ela, não é somente seu braço que está pendurado do outro lado da janela e sim metade de seu corpo. Ela se senta no buraco da janela e eu diminuo a velocidade.
- O que você pensa que está fazendo? - eu grito, de um jeito grosseiro
Tento, com minha mão direita, puxá-la pela perna de volta para dentro do carro, mas ela aproveita para se jogar ainda mais para fora do carro. Metade de seu corpo pendurada para fora, eu imaginava seu cabelos quase encostando no asfalto. Eu tento a difícil tarefa de dirigir e a segurar ao mesmo tempo. Eu me irrito e piso no freio até o carro parar, encostando-o na beira da estrada. Puxo-a pela perna para dentro, ela me olha como se não tivesse feito nada. Eu sei que eu estou prestes a explodir de raiva, meu rosto está vermelho e eu tento respirar fundo.
- Que porra foi essa? - eu grito
Ela me olha com desprezo.
- Você quase se jogou do meu carro! - eu grito de novo - Você tem noção da merda que daria para mim caso você morresse? Você já pensou se você morresse?!
- Eu penso nisso o tempo todo.
Eu fico calado, com os dedos no volante, tentando me acalmar, tentando entender o que estava passando na cabeça dela.
- Eu só não achei o melhor método ainda - ela continua.
Eu dou partida no carro de novo, pensando se continuo dirigindo sem rumo ou se vou direto para algum hospício.

- Pular de um prédio é meio complicado - ela continua um monólogo - Você nunca tem garantia de que vai realmente morrer. E você ainda pode atingir outras pessoas.
- Então você pensa em outras pessoas? - eu pergunto, sentado na varanda do hotelzinho de estrada.
Ela já estava vestida e acordada, mas seu cabelo ainda estava molhado. E agora vocês já podem imaginar qual opção eu escolhi: eu dei um passo à frente, mas, ao invés de me ajoelhar na cama, eu virei à esquerda, saindo do quarto. Quando ela se virou, mostrando a tatuagem na parte de trás de sua coxa direita, eu quase escolhi a primeira opção. Todavia, seria de péssimo gosto me aproveitar de alguém que mal se lembraria do que aconteceu. Seria de péssimo gosto até mesmo para um cara como eu.
- Sim. Eu quero morrer, não matar alguém.
- Mas, tecnicamente, você está matando alguém. Você está matando si mesma.
- Veneno - ela fingiu não me escutar - Eu já pensei em veneno. Mas depois percebi que é uma morte um pouco covarde, é querer se matar sem sentir nada.
Eu pensei em dizer que para mim não era covardia. Que precisava de coragem até demais para tirar sua própria vida, mas fiquei calado. Era a primeira conversa com mais de três falas desde que a encontrei, eu não ia desperdiçar esse momento tentando argumentar. E, por mais que o assunto me assustava, afinal de contas não é todo o dia que você bate papo sobre os métodos de suicídio que a pessoa já tentou, eu estava gostando de ouvir sua voz. E eu não sabia até quando poderia ouvir sua voz.
- Você já pensou nisso? - ela me pegou de surpresa.
- Sim. Penso sempre. Só que na minha imaginação não sou eu me matando, e sim um capanga de algum mafioso dono de cassino com uma arma apontada à minha cabeça, que estaria coberta com um saco preto.
- Mafioso dono de cassino? Por quê?
- Porque eu roubei um cassino.
Ela me olhou desconfiada. Ou talvez seus olhos quase fechados eram por causa da cocaína.
- E se eu ficar muito tempo em algum lugar, essa cena pode virar realidade. Vamos embora - eu me levantei, andando até o carro e continuando minha fuga

Passe o filme um pouco pra frente. Ela estava deitada na mesa de sinuca. O ar quente e abafado do bar não era o que estava me fazendo suar. Seus joelhos estavam dobrados, deixando seus pés pendurados para fora da mesa. Ela tinha atrapalhado a partida de sinuca que eu tentava ganhar. Eu dividia meu olho entre o bolo de dinheiro da aposta ao lado da mesa e seu corpo. Meu adversário não reclamou, ele estava rindo da situação. Eu não. Eu estava com um nó na garganta.
Ele se debruça contra a mesa, fazendo uma tacada na lateral. A bola branca bate em uma bola azul. A bola azul contorna a cintura da garota deitada na mesa e entra na caçapa. Ela mexe seus braços e eu reparo que, se ela continuar parada, eu consigo acertar duas bolas de uma vez e acabar o jogo. Eu vou para o lado da mesa onde suas pernas estão. Seguro o cigarro forte em meus lábios e, com a mão que está livre do taco, abro suas pernas devagar e encaixo meu quadril ali, me debruçando sobre seu corpo e fazendo a tacada. Eu mantenho meu foco com dificuldade. Saber que suas pernas estão entre meu quadril e meu rosto está perto demais de seu busto me faz suar mais. A bola branca bate em uma bola vermelha, que é encaçapada, depois em um lado da mesa, volta e atinge uma bola amarela. Eu acompanho essa bola amarela contornar seu braço, passar por sua cintura e cair na caçapa. Eu solto um meio sorriso, ainda segurando o cigarro nos lábios.
A fronte do meu adversário se fecha.
- Isso foi trapaça - ele diz.
Contudo, quando ele termina sua frase, o dinheiro já está no bolso da minha calça. Meu pé já está metade para fora do lugar. Minha mão está puxando a garota que me acompanha.
Eu entro no carro e acelero antes mesmo da minha companhia fechar a porta. E fujo, levantando poeira ao som de tiros.
- Você também quer morrer - ela diz.
Eu a encaro, ainda acelerando.
- O quê? - falo embolado com o cigarro na boca.
Ela o retira de meus lábios e o coloca entre os seus, antes jogando as cinzas para fora da janela.
- Você também quer morrer - ela repete - Você fica caçando perigo.
- Eu aposto. E ganho.
- Você trapaça.
- Eu não trapaceei.
E ela me olha como se eu não tivesse percebido que eu havia trapaceado com a ajuda de seu braço. Ela havia me ajudado e eu pensava que ela não estava nem ao menos prestando atenção no jogo. A palavra chave aqui é "adrenalina". Ou "vício".

Corte a cena para outro bar de estrada. Não faz muita diferença, todos têm o mesmo cheiro podre de suor e urina. Acho que já estava chegando no Tennessee quando paramos nesse bar.
Ela falou que ia esperar no carro. Eu somente fui ao banheiro e pedi uma dose de uísque. Foram no máximo quatro minutos longe dela. Quando volto ao carro, ela não estava mais lá. Eu olho ao redor, tentando encontrá-la dentro do bar, ou sentada do lado de fora dele. Foi uma buzina contínua de caminhão que denunciou sua localização. Ela estava no meio da rodovia, brincando de se equilibrar na faixa amarela entre as duas mãos. Eu grito seu nome. As buzinas e o barulho dos carros e caminhões passando diminuem o volume da minha voz. Eu tento achar algum espaço, algum intervalo, para que eu entrasse na rodovia e a tirasse de lá. Quando um dos carros diminui, eu corro até ela e a pego pela cintura, colocando-a em meus ombros e ela grita. Eu atravesso a rodovia até meu Mustang, agradecendo ao carro por ter diminuído. Coloco-a no chão sem delicadeza e suas costas se encostam no capô do meu carro empoeirado.
Eu ia gritar, passar um sermão. Era a segunda vez que ela tentava algo para tirar sua vida. Mas, quando olho em seus olhos, eu não vejo brilho algum. Ela fecha suas pálpebras devagar enquanto eu passo minha mão por seu rosto, vendo a maquiagem forte que já havia deixado um círculo permanente em seus olhos, vendo seus lábios rachados de tanto fumar. Eu não consigo dizer nem uma palavra. Não é muito difícil competir com todos os homens que pousam seus olhares nela, afinal de contas, é comigo que ela está por enquanto. É no meu carro que ela entra. O difícil é tentar competir com um adversário muito mais perigoso: a morte.

Eu mal percebo, mas eu sorrio quando ela expulsa todo mundo do "seu" apartamento.
- Esses caras são muito chatos. Quem os convidou? - ela solta.
Eu a encaro.
- Você mesma?
- Era uma brincadeira.
- Uma brincadeira?
Ela não responde. Era inusitado vê-la falando qualquer coisa sem um teor dramático e fúnebre.
Com tanto espaço no apartamento, resolvemos sentar no chão, ao lado da cama perfeitamente arrumada. Ela havia resgatado duas taças da cristaleira e enchido de água. Não havia nada além de água e suco no lugar, e eu sabia, e ela sabia, que, para nós, era melhor que fosse água.
- Um brinde - ela levanta sua taça.
- A quê?
Ela pensa um pouco.
- À estrada. Ao asfalto. À poeira. Ao motor do seu Mustang.
Eu dou um sorriso de lado e levanto a taça, bebendo a água depois. Ela não disse "morte". E a água veio em boa hora, minha garganta estava ardendo e eu sabia o motivo.
- Um brinde ao apartamento da sua bisavó - eu brinco
Ela ri, fechando os olhos e se deitando no carpete. Eu não havia dito "dinheiro". Seu pé, à minha frente, alcança meu peito e eu tomo a liberdade de passar minha mão por sua perna, descendo, ou subindo, até sua coxa direita. Ela levanta mais a perna e eu consigo ver sua tatuagem direito. Passo meu dedo por ela, lendo a frase que sempre ficava escondida pela barra de seu short. "Se duas pessoas amam uma à outra, não pode haver final feliz." E eu vi a assinatura de Ernest Hemingway tatuada logo abaixo.

Voltem o filme pelo menos uns 10 anos. Eu reclamando de uma tarefa escolar. Literatura sempre fora um pé no saco para mim e ser obrigado a ler era pior ainda. O livro era "Adeus às Armas", um clássico da literatura americana. Eu comecei a ler com má vontade. Não me culpo, eu era só um pré-adolescente mais preocupado em quebrar o record no fliperama do que estudar. Eu não quis admitir no começo, mas o livro estava me ganhando. Toda a temática de guerra e o relacionamento dramático de Frederic e Catherine me cativaram. Eu falei para meus colegas de classe que tinha odiado o livro de "mulherzinha", mas eu ainda o tinha na minha mente.

De volta ao apartamento, ainda com a ponta de meus dedos circulando sua tatuagem, eu arrisco citar Hemingway.
- "Eu te amo o suficiente agora. O que você quer fazer? Me arruinar?" Ela para de mexer o pé e o ambiente fica silencioso enquanto eu torço para que ela saiba que era apenas uma frase. Por mais que chamar esta frase, tão verdadeira no momento, de "apenas uma frase" fosse rebaixá-la a algum cliché encontrado em biscoitos da sorte.
- "Sim. Eu quero te arruinar" - ela responde, descolando suas costas do chão e voltando a olhar para mim
- "Bom. É isso o que eu quero fazer também".
E ela me olha como se não acreditasse. E eu a olho como se ela não tivesse uma frase depressiva de um escritor que se suicidou, disparando uma arma em sua própria boca, tatuada na coxa. A palavra chave aqui é "tragédia". Ou "caos". Em ambos os casos, os olhares que trocamos ainda podem ser descritos com a palavra "devaneio". Porque, pelo menos naquela noite - que os raios de sol entrando pelas frestas da janela insistiam que era dia - ela se distraiu da morte e eu me distraí da vida.

Pule para a seguinte cena: eu de um lado das grades. Ela de outro. Sou eu quem não posso me livrar da cela. Essa visão ocorreu em questões de segundos, quando ela era arrastada para longe. Eu era o criminoso, ela era apenas uma lunática que eu havia arranjado como cúmplice, ou assim todos naquela prisão diziam. As acusações que pesavam contra mim eram: roubo de carros, desmanche dos mesmos, algumas multas de trânsito nunca pagas e agora, a mais recente, invasão de domicílio. Nada constava sobre trapaças em cassinos e apostas que terminavam mal. O tipo de gente com o qual eu apostava não fazia denúncias. Eles tinham crimes muito piores nas costas, eles faziam sua justiça distorcida com suas próprias mãos. Eu estava, de certo modo, seguro dentro da prisão. Só que minha mente não conseguia parar de pensar nela. Se ela já tinha essa obsessão com a morte fora de um hospício, imagine dentro de um. A palavra chave aqui é "tormenta".

Retroceda algumas horas. Eu juro que ainda consigo sentir cada pedaço de pele em meus lábios, ainda consigo sentir sua mão fraca nas minhas costas, seu cabelo se arrastando pela minha bochecha. A ponta dos meus dedos ainda se lembram de cada detalhe. O polegar se lembra de passar delicadamente por debaixo de seus olhos, tentando limpar a maquiagem preta sem sucesso. Meu indicador ainda se lembra de passear por seu pescoço, fazendo curvas com a ponta de minha unha. O dedo do meio ainda lembra perfeitamente de seus dentes o mordendo. O anelar lembra de sua língua. O mindinho lembra-se de contornar seus seios de leve. Corte a cena para quando dividimos seu último cigarro ainda nus na cama que pertencia a um casal desconhecido.
- Acho que eu talvez tenha encontrado o melhor método para uma morte feliz.
Eu a encaro. "Morte" e "feliz" não faziam sentido juntas.
- E qual seria?
- Assim, nessa cama, com você junto de mim, me invadindo, me deixando pensar que vou pro céu de algum jeito. Só que ao mesmo tempo me dá vontade de viver só para fazer tudo de novo.
Ela sabe que eu estou sorrindo, por mais que o cigarro não deixe meus dentes aparecerem por meus lábios.
- "Você vai ser bom para comigo, não vai?" - ela volta a citar o livro que eu conhecia até bem demais - "Você vai, não vai? Porque nós vamos ter uma vida estranha."
Eu sorrio com o cigarro nos lábios.
"Deus sabe que eu não queria me apaixonar por ela". Esta era a frase do livro que me veio à cabeça, mas eu não a proferi.
Nesse momento, eu nem imagino que não estávamos sozinhos no apartamento. Antes mesmo que eu sorrisse de novo a ela, feliz em ver sua boca finalmente em um sorriso largo, somos surpreendidos. Os donos do apartamento chamaram a polícia. E a polícia nos encontrou sem roupa, abraçados, com cinzas de cigarro pelo lençol e taças de cristal cheias de água no chão. Eu nunca estive tão contente, apesar de estar sendo algemado. Eu pude ver que ela estava gostando de sua vida naquele momento também, apesar de estar sendo arrastada para dentro de um carro de polícia.

Passe algumas cenas para frente. Vê essa pessoa se jogando no chão de uma cela imunda? Sou eu. Fingindo ter um surto psicótico. Honestamente, aquela prisão estava realmente me deixando maluco, mas, se eu quisesse vê-la de novo, ou pelo menos tentar vê-la de novo, eu teria que sair dali e ir para onde ela provavelmente estaria. Era a sexta vez naquela semana que eu havia atuado estar completamente insano. Na décima-quarta vez, eu fui considerado um caso que não cabia mais ao presídio. E nessa décima-quarta vez, eu vi a chance de vê-la de novo se realizar.

Corte para o final. Nós dois de roupas brancas, em um lugar decadente. Não sei dizer se somos mais ou menos malucos do que todos naquele lugar.
- De todas as vezes que eu já tentei encontrar a morte... Você foi o único que realmente tentou me salvar dela.
- Não é engraçado? - eu comento - Foi você quem acabou me salvando.

Horas antes. A palavra chave dessa cena é "aflição". Eu estava aflito, procurando-a por todos os lados. Eu sei que estou no lugar certo, foi para ali que a mandaram. Eu torcia para que ela não tivesse fugido ou conseguido descobrir o melhor método para finalmente acabar com sua vida. O homem atrás de mim me empurrava pelo lugar, e eu estava empacando o caminho, procurando por ela. O homem me faz sentar em uma mesa vazia e grande onde outros pacientes comem um mingau com colheres fracas de plástico. Eu continuo a procurar por ela. É quando uma colher chega até mim deslizando pela longa mesa. Eu olho para a direção na qual a talher havia surgido. Encontro seus olhos sem maquiagem, porém ainda sim pretos. Ela sorri e depois volta a tentar comer o mingau, mas percebe que não tem mais colher. Eu sorrio enquanto todos os supervisores pensam que é só mais um ato de maluquice. A palavra chave final é "inferno", mas eu não desejaria o céu sabendo que ela não estaria lá.


Fim.




Nota da autora:
Espero não ter assustado ninguém com essa fic! Haha! Caí de total surpresa nesse especial do AM, entrando no lugar da Gabee. Essa história toda na verdade foi uma mistura de “One For The Road” e “You’re So Dark” (que está no single de OFTR e pra mim as duas se combinam muito bem). Espero que a ordem nada linear da história não tenha deixado ninguém confuso. Não sei mais o que falar, então:
“Todas as histórias, se prolongadas o suficiente, acabam em morte.
 E aquele que vos esconda esta verdade não é um escritor.”
- Ernest Hemingway, Death in the Afternoon, Capítulo 11.




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