Capítulo Único
Eu já estou preso em suas mãos
Eu flutuo para o oeste e aí para o leste
Vagando pelo espaço, acabei encontrando logo você
— Saúde! — levantou a taça fina e eu fiz o mesmo, com medo de quebrar o utensílio delicado na hora do brinde. — À engenheira mecânica mais inteligente e mais gostosa que o IME já formou. — ele arrumou a alça enrolada do meu biquíni, contornando meu pescoço num carinho que me relaxou mais que a água termal da hidromassagem em que estávamos.
— E que está sendo sondada para um cargo na maior estatal do país. — cruzamos os braços e demos um gole.
Minha vida tinha dado uma guinada naquele último ano e parecia que eu, enfim, estava começando a assumir os lugares onde eu queria estar: ao lado de , a grata surpresa que a praia da Barra me preparou; com o curso pelo qual eu deixei família, amigos e minha cidade natal concluído; com uma posição avançada no processo de seleção da Petrobras e, claro, com o meu maior saldo desde que vim do Ceará para o famoso “Errejota”, minhas duas melhores amigas e colegas de apartamento, Daphne e Maria.
Colegas de “apartamento” era um eufemismo da nossa parte, afinal, o nosso sobradinho, que ficava em cima da mercearia de um argentino paternal, não era muito como um apartamento. O nome dava a ideia de um prédio e comodidades de um condomínio e, sendo eu uma engenheira mecânica recém-formada, Maria uma estudante de Administração e Daphne revisora de um jornal, não tínhamos muitas.
Realidade totalmente oposta à dos homens que, como Maria gostava de dizer, o universo colocou nas nossas vidas.
, meu namorado e piloto executivo, me tirou de Realengo para um final de semana romântico — e caro — numa pousada super exclusiva em Búzios, onde a diária mais em conta custava a bagatela de dois mil reais. É claro que eu estava feliz com o gesto dele de comemorar minha formatura num lugar que cobrava por dia quase o que eu ganhava por mês, mas, em pouco mais de um ano de relacionamento, as nossas diferenças sociais ficavam a cada dia mais evidentes e pensar naquilo me formava um vinco no cenho, que nunca passava despercebido por :
— Momô, eu sei o que tu tá pensando. — ele abandonou o champanhe no tablado de madeira em volta do ofurô e ocupou as mãos do meu rosto, alisando minhas bochechas. — Se tu estiver desconfortável com isso, a gente…
— Não tô desconfortável. — segurei os pulsos dele, beijando-os. — Pelo contrário. Aquela cama é aquecida, o xampu nos vidrinhos do banheiro dá de dez a zero no meu Seda, todo mundo mostra os dentes pra mim e me chama de senhora com a voz bem pianinho… Eu nunca estive tão confortável na vida.
— Então qual o motivo dessa ruguinha na testa? — ele deslizou o dedo no espaço entre as minhas sobrancelhas e desceu até o meu nariz, tocando a pontinha. — Não vai me dizer que é porque tu tá sem óculos.
Ri baixinho e empurrei o peito dele de leve, espirrando um pouco da água perfumada naquele tronco nu que eu amava tanto. Apesar de estar todo borrado da minha miopia, era o homem mais lindo do mundo, ainda mais depois que a pele teve a cor natural realçada e que Búzios lhe devolveu o amorenado quente no corpo, junto com um vermelho maravilhoso nas bochechas. Momentos como aquele seguiam me deixando descrente da sorte que eu tive e eu abracei meu namorado cansado de sol, daquele enfado gostoso de fim de praia, me demorando ali no meu lugar preferido. Ele era, em todos os sentidos, um peito em que eu me amparava. Nas noites em que eu me via aflita, longe do meu sangue e do meu chão, simplesmente me puxava para mais perto e me dizia com um afago que ele era a minha casa.
E, de certa forma, sim. A gente morava um no outro. Até porque eu não tinha muito mais o que oferecer além de mim, além de todo amor que eu sentia por ele, e aquilo parecia bastar.
— É só que é surreal pensar que tu me trouxe até esse paraíso no teu helicóptero e no nosso aniversário de namoro eu… Eu enfeitei teu quarto com uns balões de 3,50, sabe?
— E eu adorei. — ele me selou. — Deixei lá até murcharem e guardei um que secou na caixinha de coisas que eu tenho da gente.
— Não! — exclamei, me arrumando no colo dele e devolvendo o selar no meio de uma risada gostosa. — O que tem nessa caixa?
— As cartinhas que você me escreve, o bilhete do primeiro cinema que a gente pegou junto, um potinho com a areia da praia que a gente se conheceu…
— ! — ri incrédula do meu namorado que só tinha tamanho e era todo açucarado por dentro. — É por isso que eu te digo que tu é meu favo de mel. Tu é a coisa mais doce do mundo, menino!
— Tu não me acharia tão doce se soubesse o que eu pensei quando te vi naquele biquíni minúsculo pela primeira vez… — ele umedeceu os lábios. — Ou o que eu estou pensando agora…
— Por que que você não me conta aqui no meu ouvido que pensamento é esse, hein, ? — provoquei, encostando sutilmente meu perfil contra a boca dele.
— Eu penso… — ele apertou minhas coxas e minha cintura por baixo da água rasa, me deixando ansiosa com o encaixe, e sussurrou. — …que a tua parte de baixo também é de amarrar e vai ser bem facinho te fazer minha aqui mesmo.
— Pois faça. Eu já estou presa nas tuas mãos. — confessei num beijo.
***
Brilha mesmo se estiver em órbita, lá longe
Você brilha tanto
Você brilha tanto
Arrumei meu vestido mais sério, um midi drapeado na cintura que cobria totalmente o colo e me deixava com cara de empresária bem-sucedida que dirigia uma companhia inteira e ainda achava tempo para o pilates.
— Tá parecendo uma crente. — Daphne cortou minha fantasia. — Mas tá uma crente chique, é o que importa.
Agradeci pela opinião sincera, calçando uma sandália de tiras com um salto razoável. Por mais que tivesse conseguido me relaxar na nossa escapada para Búzios, a realidade da segunda-feira e da última etapa da seleção da Petrobras chegaram me esfriando o estômago e me impedindo de comer direito. Maria insistiu com seu cuidado maternal, conseguindo que eu desse umas mordidas numa torrada e um gole no café, mas, não satisfeita, enrolou uma maçã no filme plástico e enfiou na minha bolsa junto com uma barra de cereal.
— Vai que eles te botam pra fazer mais cálculos estrambólicos. — ela explicou o lanche. — A última prova demorou seis horas, você não pode ficar esse tempo todo sem comer.
— Hoje não tem prova, amiga. Hoje tem coisa muito pior. — puxei um lenço e o limpa-lentes, higienizando minha armação. — Eu preferia resolver uma equação quilométrica a ter que fazer uma entrevista.
— Vai dar tudo certo, amiga. — Maria fez um joinha, sua linguagem secreta de amor e apoio. — Vitória da Conquista.
— Já deu. — Daphne corrigiu. — Preciso de uma amiga rica e tô apostando em você. Não esqueça de nós quando for engenheira da Petrobras e começar a ganhar 10 mil por mês.
— Até parece que vocês não se arranjaram com um médico e um dono de academia. — apontei Maria e Daphne na sequência, me referindo aos respectivos namorados, João Vitor e Samuel. — Vão dar golpe nos patrimônios aí de vocês que se a Petrobras não me quiser, eu vou para o plano B.
— Que seria… — Maria incentivou.
— Esposa troféu do piloto mais gostoso e peitudo do Rio de Janeiro. — brinquei.
— Falando no dito cujo, ele está te ligando. — Daphne apontou meu celular vibrando em cima da mesa.
Sorri para a tela antes mesmo de atender porque sorrir era a única resposta possível a foto no contato de , uma das muitas que eu tirava quando ele estava distraído, cozinhando, dormindo ou fazendo qualquer coisa: tudo nele era encantador para mim e merecia ser eternizado numa imagem. Minha galeria estava repleta dele e de nuvens gordinhas, resultado dos nossos passeios pelos ares, e eu soprei o ar pelo nariz ao constatar que “andar” no Darumdarimda — era assim que a aeronave dele se chamava — era rotineiro. Não sabia ao certo em que momento da minha vida subir num helicóptero se tornou algo cotidiano, mas o fato era que tinha colocado o céu ao meu alcance.
— Oi, vida. — a voz atravessada dele me cumprimentou carinhosamente. — Já conquistou o mundo hoje?
— Bom dia, momô. — respondi manhosa, alheia à Daphne e Maria fazendo caretas e simulando enjoos ao se afastarem. — Estou pra pedir o Uber e fazer isso agora.
— Seu Uber chegou. — ouvi uma buzina ao telefone e, ao mesmo tempo, lá embaixo. Corri para a janela com o aparelho no ouvido e encontrei sorrindo alumiado, piscando lentamente os olhos infantis, feito uma criança pega em flagrante.
— Mô, não acredito que tu acordou cedo assim pra me levar! — chequei o relógio de pulso enquanto pegava a minha bolsa e me preparava para descer as escadas.
— Eu não perderia isso por nada. — ele respondeu e eu cheguei à calçada, desligando o telefone e me adiantando para um selinho nele antes mesmo de entrar no carro.
deu a partida apoiando a mão livre no meu joelho. Não dissemos nada por um tempo, nem era preciso. Chegamos a um ponto em que o silêncio era confortável, um ponto em que eu era tão perfeitamente legível para ele que as palavras eram dispensáveis às vezes. Tudo o que eu precisava ali, a caminho de um momento decisivo na minha vida profissional, era tê-lo ao meu lado, cantarolando baixinho a música no rádio e me procurando para beijos rápidos nos sinais fechados. Era reconfortante não estar sozinha, pra variar, e a adolescente estudante que saiu do calor da sua terra e da sua parentela para se meter num avião pela primeira vez se sentiu acolhida por aquele gentileza de : uma carona. Um cuidado imenso em sua simplicidade e na delicadeza que ele imprimia a tudo que fazia por mim.
— Quando eu cheguei aqui, antes de conhecer as meninas, ninguém foi me buscar no aeroporto. — confessei. — Eu me perdi umas três vezes até achar o alojamento militar onde eu ia morar. — riu, apertando minha coxa. — Foi assustador não ter ninguém por mim.
— Mas agora você tem. — ele encontrou minha mão e me encarou rapidamente, voltando a olhar para o volante enquanto a boca me marcava o dorso. Demorei um pouco para perceber que havíamos chegado e que já estava, na verdade, estacionando na vaga de visitantes. — Quando você sair daquele prédio com boas notícias, eu vou estar aqui te esperando.
— E se as notícias não forem boas? — perguntei baixinho, contornando nervosamente a fivela do cinto de segurança.
Ouvi o clique me liberar, as mãos grossas de foram mais rápidas que as minhas, trêmulas, e ele me desafivelou com a firmeza de um piloto, seguro de todos os movimentos. Tomou meu rosto entre os dedos e me beijou demorado, encostando a testa na minha:
— Se não forem boas, aí é que eu vou estar mesmo. — ele deslizou pelas laterais e sussurrou no meu ouvido. — Eu te amo.
Desci do carro com a declaração dele ecoando pela minha mente, reprisando-a para me carregar de confiança. Eu era uma boa engenheira, mas não existiam centenas de engenheiros tão bons quanto? Melhores, até, com mais experiência? Afastei o pensamento, pisando mais forte no porcelanato e aumentando o barulho do salto contra o piso, e entreguei os documentos de identificação para a recepcionista. Não sabia o que fazer enquanto não era chamada, então só me ocupei de umas palavras cruzadas que achei esquecidas numa pilha de revistas antigas.
— ? — fui chamada por um rapaz magrinho e apressado quando faltava apenas uma linha diagonal para completar a página. — Sou o Tavares, assistente de relações. Araújo vai te receber agora, tá bem?
Assenti com a cabeça, seguindo-o, e entrei na sala depois que Tavares me anunciou. Era uma coisa com a qual eu precisava me acostumar, aliás: todo mundo se tratava pelo sobrenome. Achei engraçado, até. Coisa típica de macho hétero, praga que infestava o departamento de engenharia. Em todas as fases do processo seletivo, eu fui a única mulher a concorrer e só havia sido avaliada por outros homens. Até abrir a porta e dar de cara com Araújo.
— Na… — gaguejei diante da mulher de cabelos vermelhos e óculos meia-lua. — Doutora Nadine Araújo?
— Só Nadine. — ela ajeitou a armação na ponte e me estendeu a mão. — Ou Araújo, como todo mundo me chama por aqui. — Nadine apontou meu lugar. — , certo?
— Sim. — minha voz quase não saiu e eu errei a cadeira ao sentar, cruzando as pernas rapidamente para disfarçar. — Desculpe, estou um pouco nervosa em conhecer você. É como conhecer uma celebridade. — deixei escapar com uma nota a mais de empolgação. — Eu li sua tese de doutorado, você é brilhante!
— Você também é. — ela disse num tom sincero. Apertei o couro do estofado, tentando transferir minha agitação para o objeto inanimado. Aquela validação vinda de uma autoridade acadêmica no campo me valeu o mundo. — E é a primeira mulher que eu entrevisto em muito tempo.
— A Engenharia Mecânica não é um ambiente muito feminino… — lamentei e ela me seguiu.
— Vamos trabalhar para mudar isso. — ela juntou e bateu os papéis espalhados pela mesa, e eu reconheci neles os esquemas de motores que desenhei para o meu TCC. — Sua alternativa à liga de carbono é muito interessante. De onde veio isso?
Engatei a explicação e a fundamentação científica no automático, assimilando em segundo plano a ideia de estar de frente com a doutora Nadine Araújo, alvo da minha admiração desde que a vi num simpósio no primeiro semestre do curso. Acompanhei o trabalho dela desde então e a estabeleci como meu parâmetro. Se ela estava agora analisando o meu trabalho, significava que eu estava no caminho certo.
— Entendi. — ela colocou os óculos sobre a mesa quando terminei. — Quero que você desenvolva os testes no nosso laboratório junto à equipe do Lee. Acredito fielmente que você se encaixa na pesquisa dele.
— Lee Seokmin? — reconheci o nome de um artigo que li.
— O próprio. Nosso pesquisador-chefe importado. — ela arqueou as sobrancelhas, torcendo um pouco o nariz. — Devo avisar que ele é um tanto convencido, mas não se acanhe. Ele é muito bom, mas você também é. Não tenha medo de deixar isso bem claro para ele. — ela sorriu curto e modulou a voz num volume que me obrigou a inclinar para frente para escutar. — Preciso de uma mulher que o coloque no lugar dele de vez em quando.
— Conte comigo. — sorri mais descontraída com o alerta bem humorado dela.
— Estou contando. Você começa na segunda-feira. — ela sorriu curto e deu uma piscadela. — Seja muito bem-vinda, .
Agradeci polidamente e esperei não estar mais ao alcance da vista de Nadine para relaxar a musculatura e derreter num dos cantos da parede do corredor, incapaz de sentir minhas pernas. Tavares me encontrou depois de sair da sala dela com mais papéis e me olhou incerto, prestes a pedir que o zelador viesse me secar com o mop giratório. Em vez disso, ele me levou até os Recursos Humanos para oficializar a admissão, onde eu recebi o contrato com o valor inicial do salário e tive um siricutico interno. Daphne estava certa, afinal. Mesmo com os descontos trabalhistas, ainda era uma quantia bem maior do que qualquer uma que eu tinha recebido.
Acertados os detalhes, horários e regras gerais de funcionamento do laboratório, eu saí do prédio com um crachá provisório que me arrancou lágrimas. Queria ligar para os meus pais para ver minha mãe chorar de felicidade e meu pai fazer algum trocadilho. Queria ouvir um palavrão de comemoração do meu irmão. Queria contar para a minha avó que a campanha do círculo de oração dela tinha funcionado. Queria dizer para Maria e Daphne prepararem o churrasco na laje. Mas, mais do que o carrossel de emoções que me atravessavam o coração ali, no meio da calçada da sede da Petrobras, eu queria me jogar no peito do meu e ver o sorriso pontudo que aquela minha conquista plantaria no rosto dele.
Desci os degraus e o encontrei muito à vontade tomando um café e abocanhando um enroladinho de salsicha de procedência duvidosa, sumindo em meio a caras e bocas que ele fazia ao ouvir atentamente um caso narrado pelo vigia do edifício. Quem visse aquele pedaço de homem sentado numa banqueta de uma barraquinha do centro, trocando ideia com o segurança e fofocando com a senhora que vendia salgados, nem imaginaria que era nascido em berço de ouro. A simplicidade de me quebrava e eu corri para o meu projeto de filhotinho sem me importar com a multidão que transitava pelos arredores.
— Mô! — gritei enquanto corria. — Eu consegui! — me lancei nos braços fortes.
— Eu sabia! Eu já sabia! — gargalhou, me rodopiando. — Parabéns, vida! — o sorriso acendeu, genuíno, e ele me beijou com gosto de café.
— Coisa boa, menina! — o vigia não se importou em ter acabado de nos conhecer para me felicitar. — Começar a vida assim, num empregão. Vai dar pra casar é cedo!
— A gente vai convidar o senhor, viu, seu Valdeci? — respondeu prontamente e eu estremeci com a naturalidade com que ele recebeu a ideia de casamento. — E a senhora também, tia! — ele exclamou, me abraçando por trás. — Passe aqui um café bem caprichado pra minha princesa! Ela vai vir trabalhar aqui, ó! — apontou a placa. — Grandona, né? É minha namorada. A senhora fica de olho nela? Faz a tapioquinha dela todo dia?
Dei risada de como meu namorado ficava confortável com as pessoas. Qualquer pessoa. Inflamado, soltou a língua por horas, costurando histórias umas nas outras e me recomendando mil cuidados antes de voltarmos para o carro em tempo de sermos adotados pela tia e pelo seu Valdeci. A caminho de casa, espalhei as boas novas pelos grupos, fiz ligações, recebi parabéns, enfim. Aquela efervescência gostosa de uma vitória sendo dividida.
— Eu te vejo de novo mais tarde. — me beijou o lembrete na testa quando me deixou na porta de casa. — Hoje você é só minha, viu?
Devolvi o beijo atrás da orelha dele, deixando-o arrepiado, e lhe sussurrei alguma safadeza no pé do ouvido, já pensando na minha lingerie mais indecente e no meu pijama mais quentinho para dormir no ar-condicionado do quarto de — pijama que certamente voltaria na minha bolsa do mesmo jeito que iria, porque ele sempre me enfiava em alguma camisa sua no final das contas. E porque os convites para dormir na casa dele não envolviam muita roupa mesmo.
Por mais que a minha cama apertada e meu ventilador ligado na velocidade três trouxessem uma camada de romantismo utópico, algo meio “só precisamos um do outro para sermos felizes”, a superpopulação do sobradinho nos impedia de ficar mais à vontade. Já onde ele morava, na cobertura constantemente vazia e grande demais da Zona Sul, nós podíamos assaltar a geladeira em roupas íntimas ou simplesmente se pegar na bancada da cozinha sem se preocupar com flagrantes. E, é claro, fazer tanto barulho quanto quiséssemos enquanto isso. Os plantões de João Vitor, médico e meu cunhado, e as viagens longas dos pais deles nos garantiam o espaço livre para desfrutar da nossa privacidade. Era quase como brincar de casinha. Numa puta casa que de “inha” não tinha nada.
Foi quando eu percebi que eu amava “brincar de casinha” com e que eu queria muito morar com ele um dia. Mas não numa casinha, muito menos num casarão. Apenas numa casa. Do nosso jeito e do nosso tamanho.
— Toda sua, sim, senhor. — bati continência para o meu piloto. — E pode colocar o moscatel que a gente comprou pra comemorar pra gelar.
— Já tá na geladeira desde ontem. — os caninos apareceram no sorriso.
— Já? — arrumei os fios da franja dele. — E se eu não tivesse passado na seleção?
— Eu confio na minha pequena. — fui envolta na maciez dos lábios carnudos outra vez. — Sabia que você ia brilhar, amor.
***
Faça assim, faça assim
Quente, quente, quente, quente…
Quente, quente, quente, quente…
Junho deu o ar da graça trazendo consigo suas tímidas chuvas e minha época favorita do ano: as festas juninas. Um pedacinho do meu Ceará no Rio, um alento na falta de casa. Não havia saudade que um prato abarrotado de baião de dois, paçoca e vatapá não curasse, nem tristeza que um forró não enganasse. Estava ansiosa para meter a cara numa canjica com queijo coalho e canela polvilhada, apressando minhas duas amigas na arrumação. Daphne tinha um pé e o coração no Nordeste, e Maria, pela convivência conosco, sabia apreciar uma farofa e uma carne de sol. Assim, o grande evento no Arraiá do Downtown, nosso destino naquela noite, seria ver a tríade carioca-coreana se esbaldando com as comidas típicas, porque mesmo nascidos em solo brasileiro, os três bonitos quase não conheciam a culinária regional.
— Primeira rodada do quentão por minha conta hoje? — sugeri, arrumando a bolsa.
— Nossa, duas semanas de emprego e já tá metida a madame! — Maria riu.
— Parece que alguém recebeu o primeiro contracheque. — Daphne estalou a língua. — Estou amando esse negócio de você trabalhar na Petrobras, amiga.
Trinquei a mandíbula, esmorecendo um pouco. Eu tagarelei incansavelmente sobre todos os benefícios do meu novo emprego, especialmente o pagamento quinzenal que me dava a vantagem de nunca ficar sem dinheiro, mas um deles eu omiti propositalmente. Um deles era difícil de explicar. Um deles me exigia as palavras certas para contar, mas como eu não sabia muito bem usar as palavras, muito menos as certas, apenas adiei o confronto. No entanto, alguns confrontos eram como o estalar de dedos do Thanos. Como a perda de calor ao converter energia em trabalho. Como uma oscilação numa trajetória retilínea. Alguns confrontos eram derivados de mudanças de estado e, por isso, eram inevitáveis.
— Eu só contei pro , mas… — comecei, desfiando as linhas na barra da minha saia. — Eles me deram auxílio-moradia.
— Auxílio-moradia pra quê? — Daphne olhou por cima do óculos. — Você vai morar lá no meio do mar tirando petróleo?
— Não, mas o deslocamento até o laboratório, me tacar daqui pra sede do centro… É bem inviável. — contornei o tampo de vidro da mesa, desenhando coisas sem sentido. — Eu preciso me mudar para um bairro mais perto e a empresa vai me sublocar um apê em Copacabana. — falei rápido, como se arrancasse um curativo de uma vez para ser indolor.
Mas doeu do mesmo jeito.
Maria suspirou alto e Daphne atrasou a reação. As duas guardaram silêncio, olhando uma para a outra e para os próprios pés, incapazes de formular resposta àquele banho de água fria. Éramos três, sempre fomos. Todas as despesas eram divididas pelo número ímpar, rigorosamente registradas em planilhas por Maria e, mês a mês, fazíamos nossas acrobacias para quitá-las. Tira uma parte daqui, completa de lá, repõe o que foi tirado com aquele outro que vai cair no quinto dia útil… Uma pessoa a menos no orçamento, assim, do dia para a noite, faria diferença. Uma diferença vermelha e negativa.
— Eu sei que é repentino, mas eu não vou deixar vocês na mão. — quebrei o silêncio sepulcral. — Eu vou continuar rachando as contas daqui pelo tempo que for precis-
— Não é esse o problema, sua bocó! — Daphne levantou a voz para me cortar, impaciente e um pouco ofendida. — A gente se vira com as contas! A gente sempre se virou! O problema é que…
— O problema é que lá de Copacabana o teu Downy contrabandeado não vai me fazer espirrar. — Maria abriu os braços. — E lá de Copacabana não vai ter como tu pegar meu carregador no lugar do teu. Tu não vai poder ir comigo no mercadinho pra comprar Coca-Cola de madrugada, esse é o problema!
— A gente vai sentir tua falta, vagabunda! E a gente vai morrer de preocupação! — Daphne ralhou do jeito dela, a doçura camuflada na pose de durona. — Como que tu vai morar sozinha se tu não consegue nem descer as escadas sem cair?
— É só eu morar no térreo. — tentei uma piada.
As duas não sabiam se riam ou se estavam surpresas e zangadas demais para isso. Como ninguém disse nada, eu dei meu sorriso mais amarelo e mais idiota num pedido de desculpas, erguendo os dois polegares e arrematando a anedota numa cartada infalível que aniquilava qualquer resquício de ira: o joinha duplo.
— Mas tu é uma palhaça mesmo, viu? — Maria se rendeu e me abraçou.
— Vê se arruma um condomínio com piscina e churrasqueira, pelo menos. — Daphne se venceu e se juntou ao abraço.
— Eu só faço questão de que tenha espaço suficiente para receber minhas melhores amigas. — disse espremida entre as duas.
— Ainda bem que me cabe em qualquer canto. Noite do pijama todo mês? — Maria propôs.
— Sim! — dei pulinhos no lugar. — E a Daphne tem que fazer o brigadeiro!
— A Daphne não tem que fazer nada. — ela falou de si mesma na terceira pessoa, apanhando a chave do Celta. — E vamos logo que a gente combinou de encontrar os machos lá na Barra e não podemos deixar os três patetas sem supervisão.
— Ainda mais numa festa junina cheia de mulher solteira colocando Santo Antônio de cabeça para baixo pra desencalhar. — completei e meu comentário aumentou a nossa pressa de sair.
O trânsito nos ajudou a chegar rápido e, quando avistei as bandeirinhas ao longe, meu coração esquentou um pouco. Havia balões coloridos por toda parte, rodopiando com as rajadas de vento, quase como se estivessem dançando junto com a quadrilha. Um cheiro de churrasco misturado ao mormaço do chão batido, pipoca doce estourando em algum lugar, gente arrastando o pé ao som da Elba Ramalho, bonitona e loira em cima do palco. Desci do carro, eufórica, não demorando muito para encontrar , um poste de tão alto se destacando na aglomeração, acompanhado por João Vitor, que apertava os olhos por causa das luzes de quermesse atacando o astigmatismo, e Samuel, já atracado numa espiga de milho.
— Morena! — Samuel exclamou quando nos aproximamos e Daphne lhe deu um beijo na bochecha (a boca estava ocupada). — Vamo comigo na tia do caldo? Ela gostou tanto de mim que encheu o copo até a tampa assim, olha. — ele fez um gesto mensurando a quantidade.
— Tu já comeu tanta coisa desde que a gente chegou que eu não sei pra onde que tá indo. — entregou o amigo, me trazendo para um beijo e um abraço rápidos.
— Pra bunda. — Daphne examinou o jeans justo do namorado. — Daqui a pouco não vai ter calça que abarque…
— Uns com tanto, outros sem nada… — João Vitor interveio, agarrando-se em Maria.
— Eu gosto da sua bundinha de pombo, neném. — ela brincou.
— Vocês vieram pra ficar falando de bunda ou foi pra dançar forró? — reclamei com o corpo já querendo remexer sozinho.
— Eu vim pra comer. — Samuel falou de boca cheia.
— Eu vim para os dois. — passou o braço pelos meus ombros e me prendeu na chave. — Mas a dona Lurdes pediu pra gente esperar aqui. — ele beijou o topo da minha cabeça.
— E quem que é dona Lurdes, ? — perguntei para a minha borboletinha social. fazia amizades tão fácil quanto respirava, principalmente entre as senhorinhas que sonhavam em tê-lo como genro.
— Uma senhora que vai montar a barraquinha dela, pediu pra gente ajudar. — foi o outro , João Vitor, quem respondeu. — Disse que precisava de rapazes fortes e bonitos.
— Mas como só tinha eu de forte e bonito, ela teve que se contentar com o Samuel e o João Vitor mesmo. — provocou.
Apertei os bíceps marcados na malha xadrez que usava, estranhando um pouco a última exigência. Maria e Daphne me acompanharam e dividimos um olhar em sintonia, compartilhando a mesma sensação esquisita de que havia algo errado com aquele pedido. Dei de ombros, ou quase isso, porque os braços ao meu redor eram muito pesados, e uma pequena senhora num vestido florido se achegou a nós, sorridente e serelepe, satisfeita até demais. Ela enfiou-se entre , João Vitor e Samuel, indiferente à nossa presença, e anunciou com uma voz estridente:
— Vamos lá, meninos? — ela bateu palmas. — Eu já vendi um montão de fichas!
— Maravilha, dona Lurdes! A senhora quer que a gente ajude a carregar alguma coisa?
— Ah, não, meu filho. — ela começou a puxar João Vitor e pela mão. — O meu marido já montou tudo pra mim. Agora é só vocês ficarem lá na barraca do beijo.
— COMO É QUE É? — eu, Maria e Daphne gritamos em uníssono.
— A barraca do beijo! — dona Lurdes respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Tá cheio de menina pagando pra beijar esses três.
— Pois pode ir me dizendo quem é uma por uma que eu arranco os cabelos. — Daphne arregaçou as mangas e virou-se para Samuel. — Mas antes eu arranco os teus!
— Eu não tenho nada a ver com isso, amor! — ele derrubou a espiga de milho com o choque. — O que chegou falando de ajudar a tia, eu achei que era pra levar panela!
— Eu também sou inocente, neném! — João Vitor soltou-se de dona Lurdes num movimento educado, como eram todos os movimentos dele, e procurou amansar a sua pequena fera de braços cruzados e semblante fechado.
— Doutor João Vitor está querendo comparecer à emergência como paciente, é? — Maria bateu os pezinhos.
— A gente não sabia disso! — intercedeu pelo grupo desavisado. — Ô dona Lurdes! A senhora não disse que era essa ajuda que a senhora queria! Olha só a minha cheirosa! — ele me agarrou a cintura outra vez depois que eu me desvencilhei dele. — Não tem ninguém solteiro aqui, a gente não pode participar desse negócio de barraca do beijo não.
— E o que eu digo para as meninas, hein? — dona Lurdes apoiou-se nos quadris feito uma mãe dando bronca. — A fila já tá dobrando, olha lá!
— Diga que elas podem ir pra casa do c- —Daphne foi interrompida pelo “calma, amor” de Samuel, que conseguiu o efeito contrário ao que ele pretendia.
Foram precisos dois copos d’água para acalmar a dona Lurdes — mais uns seis para acalmar Samuel, que estava com uma surra prometida — e uns bons minutos de negociação para convencê-la de que nossos namorados não estavam disponíveis para participar da empreitada. Como castigo e como forma de solucionar o mal entendido, os três reembolsaram o prejuízo de dona Lurdes, pagando o equivalente às fichas vendidas e devolvidas debaixo de muita reclamação. João Vitor ria da irritação de Maria, encarando seu 1,53m de puro ciúme e explicando pacientemente que fora enganado, e Samuel agradava Daphne de todo jeito. , sabendo-se culpado de tudo, apenas torcia os lábios e brilhava os olhos carentes, tal qual um cachorrinho atrapalhado ciente de que tinha feito uma bagunça e chateado a dona.
— Eu disse que essa tua energia golden retriever ainda te meteria em encrenca, seu filhote gigante. — resmunguei, meio bicuda.
— Momô, perdoa, vai. — dobrou os joelhos para se enterrar no meu pescoço, espalhando beijos pela área na tentativa de me amaciar. — Tu sabe que é a única mulher no mundo que eu quero beijar.
— Fala isso pra aquelas sirigaitas na fila. — virei o rosto, mesmo sabendo que as tais “sirigaitas” não tinham culpa. Eu também pagaria para beijar , mas não contaria isso a ele.
— Vem, deixa eu te dar um docinho pra tirar esse amargo. — ele girou meu corpo com facilidade e me abraçou por trás, nos forçando a caminhar entre as barracas de comida. — A gente tá aqui pra comer, dançar e namorar bem muito, certo?
— E pra comemorar também. — me rendi aos carinhos e à barba nascente me arranhando. — Contei para as meninas sobre a mudança.
— Alguma delas chorou? — ele me deixou direcionar os passos e eu segui um cheiro de açúcar caramelizado.
— Ainda não, mas eu acho que quando eu começar a encaixotar as coisas, elas não se seguram. — paramos em frente à barraca de maçã do amor e escolheu a maior e mais granulada de confeito para mim.
— O rapaz também vai querer uma ou vão dividir? Casal que divide maçã do amor divide a vida, viu? — o doceiro nos alertou. — É simpatia forte pra amarrar o moço! — ele deu uma piscadela.
— Nesse caso, a gente vai comer junto. — sorriu largo, tirando uma nota da carteira sem pedir troco, e colocou a maçã na minha boca. — Pega o primeiro pedaço que eu quero ser amarrado!
Aceitei a oferta, completamente esquecida do incidente da barraca do beijo. Não conseguia ficar mais que dois minutos zangada com porque qualquer fração de tempo brigada com ele parecia um desperdício. Estava acostumada demais com a pele morna, com o perfume Coffee Black, com os lábios suaves e com o ceceio que fazia ele enganchar em todos os “s”. A superstição da maçã pouco importava, minha vida já estava enroscada na dele e as duas se teciam juntas agora. Me perdi nos pensamentos e no cenário ao alternarmos as mordidas, sentindo a maçã suculenta derreter nas nossas línguas. me limpava os cantos da boca rindo de mim quando a plateia formada diante do palanque intensificou os gritos, chamando a nossa atenção para o palco, um pouco mais adiante, e eu reconheci o arranjo de sanfona tocando a introdução da minha música preferida.
— Mostre pra esse povo que você é quente, mostre pra essa gente que você é meu xodó… — cantarolei, rodopiando , que ria tímido apegado no que restou da maçã do amor.
— Xodó? — ele repetiu divertido, batendo os cílios devagarinho, como sempre fazia quando não entendia algo ou quando estava prestando muita atenção.
— Você é meu café com leite, meu bem, você me sacuda, me acuda e me dê um nó. — continuei, tirando o palito vermelho e melado de maçã da mão dele e arrastando-o para uma dança.
— Eu não sei dançar forró, viu? — ele avisou meio hesitante, mas já me puxando pela cintura.
— É mais fácil que pilotar o Darumdarimda. — expliquei e peguei a mão direita dele, encaixando a coxa grossa entre as minhas pernas. — Dois pra cá e dois pra lá, certo?
começou a balançar o corpo e até que tinha molejo naquele tamanho todo. Colamos os rostos e ele não demorou muito a aprender o ritmo, soltando mais o quadril ao som da zabumba, mas a distância entre nós ainda estava grande demais para um xote gostoso daquele.
— Avia, homem! — reclamei, manhosa, selando a boca doce. — O nome da música é Chameguinho, me arroche!
— Hein? — ele gargalhou, lindo, com as presas que eu tanto amava me mordendo o lábio inferior.
— Me pegue de jeito, carioca! — traduzi e me apertou de uma vez, me amassando contra o peito.
— Nem precisa pedir. — ele sussurrou no meu ouvido e eu arrepiei.
— Agora tu vai ver o que é um fungado no cangote, seu cabra. — respirei forte o cheiro amadeirado de café do pescoço dele e se torceu todo, amolecido.
Dançamos até as pernas cansarem, arriscando giros e passos básicos. Ensinei o chuveirinho e a dobradiça para o meu aluno completamente cativado, entorpecido pelo encanto que o forró tinha em quem experimentava pela primeira vez e que fazia a gente não querer parar mais. O arrasta-pé entrou pela madrugada e nós, suados, continuamos no vai e vem feito os balões de São João, trocando juras de amor debaixo da lua cheia e do tilintar do triângulo.
— Momô… — me chamou, ofegante.
— Hm?
— Me dá outro cheiro daquele no cangote, dá?
***
Em meu olhar, os sentimentos crescem por você
É como uma balão que infla o dia todo, sem parar
É como uma balão que infla o dia todo, sem parar
— Prontinho.
largou o pincel e bateu as mãos brancas de massa corrida no calção velho e minúsculo, vibrando o peitoral nu e úmido de suor com a manobra. Lambi os lábios involuntariamente ao perceber a cintura baixa descendo, revelando as entradas, e lutei para guardar a língua de volta dentro da boca. Mesmo com o gosto de tinta, valeria a pena passear por ali.
— A sua barriga está começando a trincar. — arranhei a curva no meio do peito grande demais para uma cintura tão fina em direção ao abdômen, trazendo-o para mais perto de mim pelo elástico no cós, sem me importar com o fato de ele estar suado.
— Tô fazendo as séries bonitinho na academia. — ele se sacudiu, arrepiado, enquanto a minha unha contornava as divisões ainda discretas dos gomos querendo aparecer. — Pra você não precisar comprar máquina de lavar e usar meu tanquinho.
O corpo imenso e esculpido que me cobria facilmente emanava um calor delicioso de pós-esforço e eu me perguntava se ainda tinha energia para se esforçar um pouco mais em outra coisa. Beijei a boca dele, cheia de intenções, e ajeitei o cabelo desgrenhado atrás da orelha, puxando suavemente os fios da nuca.
— Quanto eu te devo pela pintura do quarto, bonitão? — brinquei.
— Que tal a gente discutir meus honorários enquanto toma um banho junto? — ele deslizou pela minha bunda, marcando meu short preto.
Um gritinho fino ecoou pelo quarto completamente vazio de mobília quando recebi o tapa cheio. me tirou da blusa e se tirou do calção, nos enfiamos no box apertado espalhando o resto das roupas no meio do caminho e nos amamos debaixo do chuveiro. Era assim desde que a mudança tinha começado, qualquer momento era propenso para ceder ao desejo que nutríamos um pelo outro. Mesmo na falta de uma cama, minha próxima compra para o quarto recém-pintado, todos os cômodos da casa estavam devidamente inaugurados.
— Acho que já dá pra passar a primeira noite aqui. — fiz um balanço mental ao testar a temperatura do secador na mão: um colchão na sala, roupas de cama limpas, comida na geladeira parcelada em 12 prestações sem juros e uma televisão no chão. E como eu estava mesmo metida a madame, o ar-condicionado já estava instalado.
— Isso é um convite? — me deteve delicadamente, me tomando o utensílio e colocando-se atrás de mim para secar meu cabelo.
— Isso é uma intimação. — aceitei ser mimada. — E tem mais, agora que a gente fez a feira, você vai fazer o meu almoço da semana.
O apartamento novo era uma gracinha, aconchegante e funcional. Comecei a equipá-lo pela cozinha, que já contava também com fogão e uma airfryer (presente mais que especial de Daphne e Maria), além de um conjuntinho charmoso de mesa com quatro cadeiras. Os ímãs de helicóptero e da fórmula de cinemática na geladeira conferiam identidade ao ambiente, porque por mais que não fosse um morador oficial, ele fazia parte da casa.
Com o passar do tempo, tornou-se comum que ele dormisse lá às sextas-feiras e esticasse a estadia até a segunda, quando saíamos para trabalhar juntos. Reservei uma gaveta do meu guarda-roupa para ele assim que o móvel chegou, e o pote do banheiro tinha uma escova de dentes azul ao lado da minha. Espremer o tubo de pasta virou uma epifania matinal, era a constatação, por vias de fato, de uma presença masculina que eu não achei que teria. Não fazia parte do plano dividir o pote de escovas do banheiro, o cobertor, a gaveta… A vida. Bem que o rapaz da maçã do amor avisou.
E eu não podia estar mais feliz.
— Nada do chefe ainda? — passou a blusa por dentro da calça, se preparando para mais uma das nossas segundas de manhã.
— Parece que ele tinha férias acumuladas e resolveu tirar tudo de uma vez. — procurei os cubos de melão na salada de frutas. — Tô com um mês de laboratório e ainda não conheci meu superior, o todo-poderoso Lee Seokmin. — debochei da patente.
— Ele não deve ser tão babaca quanto dizem. — abriu a boca, pedindo uma colherada. — E se for, a doutora Nadine te deu carta branca para confrontá-lo. — ele continuou, de boca cheia. — Mas cuidado para não ser incisiva demais. Você fica sexy dando ordens, eu tenho ciúmes.
— Vou tentar meu melhor, tá? — o selei rapidamente e nos aprontamos para sair.
A semana correu atropelada e logo era sexta-feira outra vez. A vantagem de trabalhar com o que se ama talvez fosse essa, eu nem sentia os dias indo embora porque os testes de fluidos térmicos e os cálculos que acompanhavam a pragmática me mantinham empolgada. Os colegas engenheiros eram receptivos e, embora eu precisasse me impor vez por outra, a atmosfera do laboratório era agradável e a dinâmica da equipe funcionava bem. No entanto, depois de uma rodada intensa de verificação de protótipos, eu estava especialmente cansada e desejosa do fundo da minha rede.
Entrei em casa cega pelo meu objetivo, largando sapatos e bolsa num canto. Corri descalça pela varanda, sentindo o geladinho do piso, e me estirei preguiçosamente no gabardine, tecido vistoriado e aprovado pela minha mãe, que me presenteou com o descanso legítimo do cearense: uma linda rede trançada de retalhos. Balancei um pouco, ansiosa agora pelo meu barulho favorito, o som da cópia da chave de girando na fechadura e anunciando que meu namorado chegava para mais um final de semana.
— Momô? — fui acometida do nervoso que me dava sempre que ele me chamava. — Eu cheguei. — uma pancada. — Ai!
— Mozinho, você é grande demais pra essas portas. — ri sem me levantar e ele seguiu a minha voz. —Tem que passar de ladinho, lembra?
— Eu esqueci. — a língua presa sibilou e ele tomou a primeira providência de costume quando chegava, arrancar de si a camisa. — Carinho!
soltou limpo e simples, sem elaborar o pedido, aninhando-se na rede comigo. Ele remexeu-se nas minhas pernas, tentando acomodar o corpo imenso no pano estendido, e os punhos estalaram com o peso dos músculos, fazendo o armador ranger. O rosto lindo e caramelo esperava o afago com o sorriso afiado e eu, rendida, mergulhei os dedos no cabelo dele, começando o cafuné que ele aceitou dengoso. Gastamos alguns minutos aliviando o cansaço no pra lá e pra cá lento da rede, deitado à altura do meu decote já quase se deixava ser derrotado pela fadiga do dia. Pressionei o trapézio tenso, resultado das muitas horas na cabine do helicóptero, e tirei dele um gemido de alívio.
— Eu tenho que passar em casa. — os lábios dele arrastavam na fenda entre os meus seios conforme ele falava. — Já usei todas as roupas que eu trouxe pra cá.
— Eu posso te emprestar uma camisola. — abracei o peito morno e descamisado em cima de mim. — E um vestido pra você ir trabalhar na segunda.
— Eu adoraria. — o hálito quente da risadinha melódica dele me eriçou a pele. — Mas lá na base aérea venta muito, sabe…
— … — cravei as unhas nas costas dele, errando a respiração. — Eu estava pensando que, em vez de uma gaveta, você podia ficar com um lado inteiro do guarda-roupa. E que em vez de passar o final de semana aqui e ir embora na segunda, você podia passar o tempo todo aqui e não ir embora… nunca.
— Você quer que eu… — ele levantou a cabeça, pedinte.
— Que você more aqui comigo. — soltei, simplesmente. — Eu quero.
— Eu também quero. Porque quando eu estou em casa, tudo o que eu faço é sentir saudade de você.
Viramos uma confusão de pernas emboladas e nossas posições se inverteram no meio de um beijo demorado. A rede esticou por causa da movimentação, afundando cada vez mais em direção ao chão até romper as cordas e nos fazer cair, gargalhando e reclamando de dor. muito mais do que eu, porque ele me amorteceu a queda e ganhou um hematoma roxo, que só baixou depois de muita compressa de gelo. Com o cozinheiro lesionado pelo pequeno acidente, partimos para a opção mais prática de jantar e pedimos uma pizza.
E meio que virou uma tradição. Nas sextas-feiras que se seguiram, o dengo na rede (que teve os cabos reforçados) e a giga metade calabresa, metade pepperoni com uma coca de dois litros foram incorporadas à nossa rotina de casal domesticado. A casa já tinha cara de casa, algumas plantas, fotos e o cheiro insistente de café, tanto da garrafa sempre cheia quanto do perfume de , além da cama queen que finalmente o acomodava, sem, no entanto, deixar muito espaço entre nós.
Era o que eu queria. Era o que eu sempre quis. Esse singelo desenrolar cotidiano de “quem lava a louça?”, “o que é a janta?”, “que filme a gente vai ver hoje?”. Depois de anos de empenho, eu queria desfrutar da facilidade. Eu queria a doçura. Eu queria o prazer da intimidade e até mesmo o complicar de uma briguinha ou outra, de uma discussão tola que se desmanchava num sexo meio violento que, ironicamente, abrandava os corpos estressados que depois nem lembravam mais o motivo da desavença. Eu queria as conversas no escuro, ritual nosso antes de dormir. Aquele espaço sem telas, sem distrações. Apenas eu e ele, respirando o mesmo ar.
— Às vezes eu acho que vai tudo explodir, . — confessei num sussurro, me virando no travesseiro e encostando meu nariz no dele. Bem baixinho, como se o mero fato de verbalizar aquilo pusesse em risco o paraíso que construímos. — Às vezes eu acho que tudo isso vai desaparecer, que nem um balão quando estoura. É surreal estar aqui. Parece que eu vou acordar a qualquer momento.
— Bom, com a massagem que eu vou te fazer e o tanto de chamego que eu vou te dar, tu só vai acordar amanhã lá pras 9 horas. — sussurrou de volta, intercalando as frases com beijos rápidos no meu arco do cupido. — Eu te garanto, . Não importa o que aconteça, não importa o que exploda, eu ainda vou estar aqui.
— Eu te amo tanto que acho que vou espocar, sabia? — o sono chegando me embaralhou as ideias e as palavras. — Pang, pang, pang! — balbuciei a onomatopeia, sonolenta. — Pedacinho de pra todo lado.
— Eu junto todos eles e colo de volta. Eu te amo. — riu na minha boca e eu adormeci ébria dele.
O sol me acordou na manhã seguinte e eu me vi obrigada a tatear pelos lençóis ainda com os olhos cerrados da claridade. Não achando o moreno de quase dois metros de altura que ocupava a pequena porcentagem da cama que eu cedia, testei as pernas e levantei desgostosa, indo sonâmbula para o chuveiro. Escovei os dentes, borrifei a água de colônia e me enfiei na primeira camiseta do que eu achei, depois, é claro, de colocar o óculos na cara para finalmente enxergar o que eu estava fazendo. Abri a porta do quarto e culpei meu estado semidesperto pelo que eu estava vendo, porém, mesmo piscando várias vezes, o cenário diante de mim não mudou.
A sala estava cheia de balões vermelhos presos ao teto, apontando fitas de cetim que terminavam com fotos nossas. A mesa farta tinha tudo o que eu gostava de comer e se arriscou até no preparo da bruaca, massa que divergia de uma panqueca comum pelo açúcar por cima e pela base mais carregada de manteiga. Os cabelos molhados dele, penteados para o lado, tinham alguns fios teimosos caindo pelos olhos e ele foi diminuindo no meu campo de visão até me obrigar a olhar para baixo, porque ele estava ajoelhado na minha frente, tomando a minha mão direita na dele, trêmula.
— Eu pensei num monte de jeitos mirabolantes de fazer isso, escrever no céu com fumaça ou pendurar uma faixa enorme no Darumdarimda… — ele começou, com os olhos marejando. — Mas eu percebi que o que eu quero mesmo é só a gente, . Ficar na rede jogando conversa fora, testar receita do TikTok, caminhar na orla no final do dia e pular no mar de roupa e tudo, só pra voltar ensopado pra casa… — acendeu um sorriso que fez a lágrima fugir para o canto do olho. — Eu quero isso que a gente já tem. Pra sempre.
— … — engatei também um choro tímido.
— … — ele puxou uma caixa preta da calça de moletom, abrindo-a no meio do movimento e revelando um brilhante clássico e romântico. — Quer casar comigo?
A sensação era de não caber em mim, de estar inflando a ponto de romper pelas extremidades. O coração batucando doido, sístoles, diástoles. Eu me sentia tonta, alguma coisa estalava no meu estômago e rompia na minha garganta. E a única palavra em que eu pensava pulando que nem pipoca na minha cabeça. A única resposta possível.
— Sim! — balancei a cabeça e aumentei o volume. — Sim! É sim, eu caso sim!
Não esperei se levantar para colocar o anel no meu dedo, na verdade, só lembramos desse detalhe muitos beijos depois. Nos jogamos no tapete e, debruçados, a vista do teto enfeitado ficava ainda mais bonita. Bem ali, toda a física que eu estudei diluiu no meu cérebro. Bem ali, a atração que o planeta exerce sobre os corpos em sua superfície sumiu.
Não havia mais força peso.
Não havia mais gravidade.
Não havia mais chão.
Só havia nós dois, flutuando feito balões.
Fim...
Nota da autora: Eu espero que você tenha lido com um copo d’água por perto pra matar a sede depois de tanto doce. Obrigada por chegar até aqui, no final dessa historinha que só girou feito algodão-doce num espiral de açúcar. Às vezes é bom, né?.
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