Finalizada em: 04/10/2021

Capítulo Único

— Horário do óbito: 07:30 da manhã do dia 15 de setembro de 2020.

Todos os médicos presentes abaixaram suas frontes em respeito, o suave movimento que indicava a vitalidade do paciente não viria ocorrer outra vez...O silêncio esmagador prolongou-se por alguns minutos; a jovem figura da mulher sobre o leito era algo demais para que eles pudessem processar. fora parte da equipe de médicos, dedicara seus esforços e noites de descanso em prol da vida.
O corpo fora embalado, o caixão lacrado e a cerimônia fora breve enquanto poucos puderam de fato participar. Um vírus jamais visto, uma variável que abalara toda a humanidade, o Globo Terrestre sofrera incontáveis vítimas para o COVID–19. Desde os mais abastados à população carente, uma doença sem cor ou etnia mas que se alastrara por todos os países deixando incontáveis vítimas, famílias que carregariam cicatrizes para sempre.
Observando o mausoléu da família de , estava a figura solitária de , o frio característico da capital Paranaense não parecia afetá-lo. Era como se ele estivesse preso em outra realidade, sua falta de expressão e lágrimas pouco revelava a dor esmagadora em seu interior, , assim como , era médico, companheiros no trabalho e na vida cotidiana...
— O que será de mim agora, ? — O nome de sua esposa escapou num tom carinhoso, o amor de sua vida escapara de sua realidade por culpa de um genocida no poder.
O ultraje e enojo sentido pelo presidente da república e os governantes esmagava-lhe os nervos. A população estava morrendo devido a negligência dos políticos, eles estavam mais interessados em rechear seus bolsos do que oferecer ajuda a nação. A máscara era um acessório necessário de extrema importância para evitar a contração do vírus mortal, mas piadas sobre tal acessório era comum na boca do governante.
Com passadas intrépidas ele atravessou o local, deixando de uma vez o sufocante cemitério. mal enxergava o seu arredor, o táxi fora selecionado ao invés do comumente transporte de aplicativo do qual fazia uso quando deixava seu carro na garagem. As ruas haviam perdido os tons, os ipês e pinheiros destoavam em tons de cinza em seu estado atual. Após a morte de , seu mundo havia perdido as cores.
No momento em que adentrara sua residência, seu celular vibrou, indicando uma ligação silenciosa. O contato provinha de sua mãe, no entanto, ele apenas deslizou o indicador sobre a tela encerrando a ligação, colocando o aparelho no modo avião, ficando fora de área para sua família. A máscara em sua face fora retirada, ele estava seguro, mas ali, naquele espaço dividido durante 15 anos de casamento, as memórias o lembravam da ausência de .
Ele era como um astronauta, ele estava no lado escuro da Lua; a TV fora ligada apenas para preencher o grito ensurdecedor do silêncio... Más notícias, a mídia dizia como deveria ter de pensar, as emissoras se contradiziam quanto a ideologias diante o atual governo, o voto deveria solucionar a atual situação?! A gravata fora deixada sob a almofada do sofá enquanto o estalar de uma cerveja ecoou, o álcool enfim adentrara seu sistema; isso o ajudaria?

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!
— Amor!
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Uma voz indistinta o puxava da doce escuridão para a realidade, a névoa do sono afetava seu discernimento; abriu os olhos lentamente, deixando um bocejo escapar enquanto a figura de sua esposa tomava forma e nitidez em seu campo de visão. A leve rugas entre as sobrancelhas e um leve repuxar em seus lábios indicava que não estava em seu melhor humor. Ele se sentou com um sorriso preguiçoso e levemente manhoso enquanto esticava uma mão para , a qual estalou um tapa sobre a mesma, levando-o a soltar um chiado de dor.
— Não me venha com esse olhar ferido! — estalou a língua levemente mal-humorada deixando o quarto dos dois com passadas pesadas.
— Um furacão em forma de gente. — O riso escapou dos lábios de enquanto espreguiçava-se, achando a cena divertida.
Conhecendo a esposa que ele tinha, não demorou-se em levantar, seguindo-a. estava sentada de costas para ele enquanto lia artigos científicos em seu tablet, por ser uma cirurgiã, estava sempre de olho sobre os avanços da medicina; a xícara de café preto descansava sobre o pires indicando a bebida intocada.
— Eu tenho uma boa esposa, hein?! — O beijo estalado sobre a fronte de desmanchou a expressão irritada, porém os olhares ferozes ainda enfeitavam a face dela. — Obrigada por me esperar.
Ambos procuravam fazer o máximo de refeições na companhia um do outro; um tempo só deles no qual desfrutavam da companhia e buscavam dialogar de modo a fortalecer o matrimônio mesmo após tantos anos juntos.
— Na próxima vez deixarei seus ovos queimarem. — Ela o respondeu enviesada, embora possuísse o fantasma de um sorriso nos lábios.
gargalhou, cobrindo a boca para que a comida não escapasse enquanto ria; o silenciou com um olhar, embora segurasse o sorriso que ele tanto amava. Conversas foram surgindo enquanto a refeição prosseguia, o olhar admirado de sobre a figura de escapava da percepção dela enquanto ouvia sobre os feitos e rotinas da qual ela contava animada.
não podia deixar de admirar sua esposa, ele a conhecia desde o primeiro ano na faculdade de medicina na capital paranaense; filho de agricultor no interior do Paraná com o sonho de se tornar doutor, se apaixonou pela cidade de Curitiba e por no instante em que ambas surgiram em seu campo de visão, ele teve a certeza de que a amava quando a ouviu se apresentar com aquele brilho no olhar de menina-mulher-heroína , com sede de salvar vidas e disposta a sacrificar seu tempo em prol disso. Horas e plantões o uniram embora as áreas de interesse fossem diferentes, um relacionamento repleto de dificuldades porém os sentimentos eram o ponto chave que os uniam.
O casamento ocorreu após a conclusão da residência de ambos, o contrato de trabalho de ambos em um hospital em comum, a vida a dois seria cheia de obstáculos, mas eles se amavam e entendiam-se como ninguém! era de assim como ela era dele! Um amor épico e inspirador que levava os amigos e familiares a desejarem ter o que eles possuíam; embora os plantões e profissões deixassem pouco tempo para eles havia aquela parceria mútua que não deixava a chama apagar.
Um combinado fora tratado como um tratado e retificado na ação de que se houvesse a oportunidade de estarem tendo uma refeição juntos assim seria. Desse modo, as refeições entre eles eram sagradas, um momento a sós de marido e mulher. Mesmo durante as férias, não importava se possuísse hábitos matinais e trocasse o dia pela noite, eles tomariam o desjejum juntos assim como o almoço, afinal todo e qualquer momento juntos era precioso para eles.
Anúncios na TV trouxeram más notícias, um vírus mortal, uma convocação surgiu e vida “pacata” dos dois mudariam para sempre.

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A vista para o parque Barigui havia perdido a beleza, não admiraria o nascer e o pôr-do-sol da sacada; sequer poderia ser envolvida em seus braços outra vez... não poderia mais recitar os velhos poemas clichês que ele escrevera a ela enquanto a conquistava nos tempos da faculdade... Como um astronauta fora de órbita, ele deixava as lágrimas saírem enquanto afogava-se nas lembranças deles, a TV não era ouvida, muito menos os seus soluços excruciantes, pois a sua outra metade jamais poderia ser sentida outra vez...
Como um astronauta, preso no lado escuro da Lua, sem ter como retornar a Terra assim era sem .




Fim.



Nota da autora: Gostaria de deixar gravado essa história de modo a não esquecermos o tempo em que vivemos; milhares de vidas foram perdidas para esse vírus. Inúmeras famílias perderam seus entes queridos, não podemos ignorar ou esquecer o que passamos.

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