Finalizado em: 25/12/2020

Capítulo Único

No primeiro instante do dia em que se deu conta de que estava desperta, pôde sentir que o dia seria um “daqueles” dias. O coração tinha amanhecido pesaroso por ainda ter as veias pulsando forte pelo sonho incrível que tivera e ainda estava fresco. Suspirou pesadamente e abraçou o cobertor com mais força. Antes fosse o pior pesadelo do mundo, mas havia sido um apenas um sonho. E a parte ruim é que quando ela acordou, ele continuou sendo apenas um sonho.
Idealizações fora da realidade.
Contudo, o que nocauteava a era a consciência de que um dia esse sonho foi real.
Era real até três meses atrás.
Três meses.
Três, mas quase quatro meses.
Ela se questionava de onde vinham essas recaídas que estavam ficando constantes, quando a resposta era óbvia: o retorno de às redes sociais.
Fazia pouco mais de cem dias desde que tinha cruzado sua porta, entrado em seu apartamento, que foi palco de inúmeros acontecimentos memoráveis, para anunciar que estava indo embora. O homem que ela amava havia tido a audácia de dizer que estava saindo da vida dela no mesmo tom que dizia para darem uma volta na padaria.
Imbecil.
Como mecanismo de defesa, teve uma crise de riso nervosa e entrou em negação.
- Você... Você está... Como pode estar falando uma coisa dessas assim para mim?
- ... – o homem suspirou – As coisas sempre foram fáceis entre nós. Estou tentando mantê-las assim até o fim.
- Mas assim... Do nada? Você está me dizendo que do dia para a noite resolveu comprar a porra de uma passagem para um oceano de distância e está me pedindo paciência?
- Não foi de repente. Vem... – as mãos dele buscaram as dela para guiá-la até o sofá – Você disse que se um dia tivéssemos que ter um relacionamento à distância, era melhor não ter.
permaneceu quieta, com a mente buscando o momento em que havia soltado aquilo. Sentados frente a frente, não demorou para a raiva subir mais um pouco e a vontade de quebrar alguma coisa na cabeça do homem se fazer presente.
- Aquela era uma conversa hipotética! – exasperou, desvencilhando-se do toque dele – Estávamos conversando sobre o relacionamento dos outros, . Inclusive, você puxou o assunto e perguntou sobre o que achava se um dia tivéssemos que morar em países difere... – não conseguiu concluir, pois os pensamentos deram um estalo e os pontos foram se ligando na cabeça da mulher – Idiota! Você é muito idiota, ! – levantou-se do sofá em um impulso – Você já estava pensando nessa droga de viagem desde a conversa. Você estava me testando.
- ... – A mulher travou. Ela não queria ouvir as explicações dele. Os olhos ficaram úmidos e ela se viu segurando o choro – Surgiu uma oportunidade de emprego na Espanha. – baixou o olhar – Irrecusável. Jamais teria a coragem de te pedir para largar tudo e ir comigo.
- Da mesma forma que você sabe que jamais teria a coragem de te pedir para ficar. – complementou em um sussurro, com os olhos fazendo um trabalho descomunal para prender as lágrimas. – Você... – engoliu o incômodo na garganta – Está certíssimo. – crispou os lábios com força antes de prosseguir – Se um dia você escolher ficar, vai ter que ser por você.
- Eu te amo. – a declaração fez o coração dela dar um solavanco, como se fosse a primeira vez. No entanto, havia um teor salgado nas emoções. estava recebendo uma declaração, mas naquele momento se sentia a pessoa mais infeliz do mundo. Era como se tivessem a arremessado um buraco sem luz, em queda livre sem um fim visível. Ela podia sentir cada muro que construíram da relação com muito afinco ruindo em segundos. – Poderíamos mesmo tentar...
- Eu não quero. – foi firme, limpando uma lágrima teimosa com o dedo. Ela sabia onde ele queria chegar – Eu não aguentaria. Pessoas bem resolvidas e evoluídas podem se submeter a essas coisas. Nesse momento, quero mais é que elas se danem. Não vamos manter uma relação à distância – à medida que as palavras revoltadas iam escapando, o choro ia aumentando – Eu... Eu não sei como agir. – confessou, escondendo o rosto vermelho com as duas mãos.
se sentiu péssimo. era uma das mulheres mais fortes que havia encontrado. Não era à toa que tinha caído de amores. Vê-la tão frágil por causa de si era uma tortura. Ele não era digno de causar essas reações. Alguém tão egoísta que estava se movendo pelos próprios objetivos não era merecedor de um coração tão grande como o da mulher diante de si. Os olhos dele começaram a piscar mais rápidos para fugir da ardência.
- Ei... – murmurou, levantando-se também e a puxou para um abraço – Me desculpe.
O contato terno e quente fez com que ela finalmente desmoronasse. Primeiro foi um soluço tímido, depois veio outro e depois dele muito mais outros.
- Me desculpe mesmo, . – o pedido sincero saiu trêmulo. Ela ainda chorava contra seu peito. Com uma mão na nuca e o outro braço em volta do pescoço dela, estreitou o contato, puxando-a contra si com mais força. Naquele momento, ele tinha o único dever de fazê-la se sentir protegida.
Eles ficaram juntos até o último instante possível no aeroporto. Então ele fez uma promessa a qual ela não pediu:
- Eu te amo. Nada e nem ninguém vai me fazer esquecer isso, eu prometo.
devia ter cara de palhaça. Palhaça, não, porque eles eram levados a sério. se enquadrava mais no termo “otária”. Era isso que era. Nem seis meses se passaram desde a separação e já tinha um novo status de relacionamento nas redes. Também não era como se seis meses fossem um parâmetro, contudo ela não conseguia encontrar uma justificativa.
Em algum momento da vida, ela tinha que ter errado muito feio para estar sendo fodida por todos os lados.
simplesmente não conseguia segurar o ímpeto masoquista de assistir todas as atualizações dele. Eles não conversavam mais, foi um acordo mútuo de que seria mais saudável, mas ela sempre queria saber mais. Portanto, toda vez via o bendito contorno colorido em volta da foto em miniatura de , indicando stories novos, os dedos dela não demoravam a clicar.
Então, ela descobriu. Em dias alternados, ela se obrigava a assistir o homem que era para toda a vida pedalando pelas ruas de Barcelona com um sorriso de rasgar o rosto ao lado de uma mulher igualmente incrível. Não havia textos de declaração como ele fazia consigo, apenas emojis de coração e todas as variações existentes, no entanto isso não era o suficiente para fazer tudo doer menos.
No perfil da nova namorada, desmoronava vendo as fotos de uma mulher radiante pelas diversas paisagens dos pontos turísticos da Espanha. Ainda havia o detalhe de que a desconhecida, agora tão conhecida, fazia questão de marcar o namorado como o responsável de todos os cliques.
Eles combinavam.
Pareciam dois modelos cotados para um comercial de pasta de dente.
Eles tinham todo o direito do mundo de ser felizes.
Todavia, havia sido tão fácil de superar? Tão substituível? Mais uma vez se viu perdida, questionando as próprias ações em busca do erro. As crises partiam do medo de nunca encontrar alguém tão bom como fora para si. E se o certo fosse ela ter ido com ele? Ou melhor: ter pedido para que ficasse? A consciência respondia “não” com todas as letras para as indagações. era independente para seguir em frente, porém vinham os pequenos, breves e cruéis momentos em que o cérebro parecia sofrer um apagão, logo toda a sua segurança ia para o inferno, sem mencionar na merda que era a saudade. Talvez o saudosismo nem fosse pela pessoa, mas dos momentos bons dos quais foram capazes de criar.
Imóvel sobre o colchão macio, só conseguia pensar em como o sonho havia sido malvado. Nele, e ela nunca haviam rompido, estavam inseridos em um cenário do que poderiam estar vivendo hoje.
Gemeu manhosa.
Ela estava atrasada para o trabalho.
Ninguém pareceu ligar ou querer questionar o atraso de quase duas horas dela no escritório. Respirou aliviada. Durante a primeira parte do expediente, o antecedente do almoço, optou por ficar quieta diante de todas as fofocas e piadas que os colegas estavam contando. sabia reconhecer que não estava exatamente no melhor humor, poderia acabar destratando alguém injustamente, ou seja, sendo a grande babaca que ela sabia que conseguia ser. Felizmente, tinha bons colegas que pareceram entender o recado. Novamente: ninguém questionou nada. Poderia apostar que todo mundo conseguia ver uma nuvem carregada soltando raios sobre sua cabeça.
Os minutos se arrastaram para o almoço.
- Está tudo bem? – quis saber, chegando com o próprio refratário guardando a mistura do almoço, já requintada pelo micro-ondas compartilhado da empresa.
Não.
Não estava.
queria gritar desesperadamente aquilo, os pulmões pareciam queimar de tanto ar que estava comprimindo para “segurar a barra”, mas o porre de mecanismo altruísta que tinha desenvolvido a fazia frear. Os olhos levemente ardentes foram da própria marmita para a colega de trabalho, amiga maravilhosa e agora mãe.
tinha dado à luz há oito meses. Ela e o marido ainda estavam se adaptando à rotina do bebê com a atenção constante que tinham que manter, as fraldas para trocar, os choros de madrugada e a amamentação. Mesmo eles se alternando entre as primeiras tarefas, não havia tempo suficiente para colocar o sono em dia. Há poucas semanas, o casal também resolveu se mudar para uma casa maior. Eles queriam mais um quarto para deixar as coisas da criança. O planejamento cuidadoso, o zelo pelo bebê e as reformas eram um investimento que traria conforto e tranquilidade a um longo prazo. Enquanto os refrescos não vinham, a pilha de boletos e contas para pagar do casal só crescia.
se compadeceu.
Era no meio dessa batalha exaustiva que se perdia e entendia que não merecia mais uma dor de cabeça. Então, toda vez que era questionada sobre o próprio estado, ela só tinha uma opção de resposta:
- Está. Está tudo bem. – arriscou um sorriso pequeno – Só estou em um dia nublado.
- Ué? Achei que você achasse os dias nublados bons e bonitos.
De fato, achava. As nuvens cobrindo a extensão do céu, criando uma paleta neutra, transmitiam uma falsa sensação de paz. No entanto, não era delas a quem a mulher se referia. Quando menciona dias nublados, ela se recorda dos dias em que parecem existir nuvens densas tampando todas as extensões do cérebro. E essas nuvens são tão incômodas que o sistema nervoso não raciocina direito, porque as sinapses contendo a razão simplesmente não conseguem atravessar as barreiras para chegar ao coração. Então, embora saiba a solução para sair dessa fossa e ela pareça óbvia, os sentidos não conseguem obedecê-la.
- E continuo achando. Só estou trabalhando muito mesmo. – soltou a usual risada ácida.
- Nem me fale. – revirou os olhos, espetando o garfo em um pedaço de cenoura – Merecíamos um aumento e... – parou para dar mais ênfase – Você deveria tentar ser menos workaholic. Os chefes não vão morrer do coração se você demorar um dia a mais para fazer suas coisas, .
Ela se sentia idiota. Era tão refém de e principalmente de si mesma que tinha pavor de ficar com a mente vazia e acabar retornando ao vício de reviver o passado e desejar permanecer lá. Sendo assim, enquanto existisse trabalho que fosse encaminhada de eliminar do escritório, ela iria fazer, tudo para não cair no ciclo vicioso de relembrar. Entretanto, a mulher estava em um dia tão nublado que mal se dava conta de que o ciclo já estava acontecendo.
Como o bom alecrim dourado que não era, o dia de permaneceu correndo ladeira à baixo. Nada diferente do esperado, uma vez que todo dia ruim sempre piora. Perto dos relógios marcarem 15h, todos assistiram o chefe deixar sua sala para chegar a passos pesados à sala da equipe.
- Quem foi que apagou uma pasta do sistema?
As palavras haviam soado tão claras e sérias que os funcionários acreditaram que elas poderiam cortar. A equipe trocou olhares com interrogações sobre as cabeças. O sistema que usavam sincronizava todas as informações que eram adicionadas ou deletadas dos computadores em tempo real. Muito diferente do que funcionava na área de trabalho individual, uma vez que algo fosse apagado, o arquivo tornava-se irrecuperável. Foi nessa hora que percebeu que com seu intuito de fazer muito, acabou por fazer demais.
O rosto empalideceu instantaneamente.
O superior não havia mencionado qual era exatamente a pasta, então ela ainda tinha aquela pontinha de esperança de que as coisas não fossem cair em suas costas.
Os burburinhos começaram e a pôde ouvir alguns se inocentando de prontidão.
- Ninguém apaga nada do sistema. – alguém comentou mais à frente, sem entender como chegaram à situação atual.
Outros segundos se passaram, e ninguém se acusou.
- Eu ainda estou esperando uma resposta. – o homem alertou, parado no mesmo lugar desde que chegara.
As trocas de informações baixas continuaram, com todos se justificando sobre o que haviam feito o dia inteiro, na intenção de provar que não havia sido ninguém dali.
A quem queria enganar?
Lentamente e com pesar, a mulher foi esticando o braço para o alto, sem saber onde esconder o rosto.
A sala mergulhou em um silêncio profundo.
- Para a minha sala. Agora.
Dito, o chefe saiu do mesmo jeito impaciente que havia chegado. se levantou, evitando criar contato visual, sob o olhar de pena dos amigos. No meio do caminho, pôde sentir um nó se formar na garganta.
Ela não estava bem.
- Licença. – pediu quase sem voz, batendo delicadamente com os dedos na porta semiaberta.
- Entre, por favor, . E encosta a porta.
Sentada diante do superior, a mulher tinha os ombros encolhidos e os dedos das mãos entrelaçadas sobre o próprio colo, como uma criança que havia sido flagrada nas travessuras e estava a ponto de ser castigada.
Ela queria muito chorar.
- Eu não vou brigar com você. – o homem começou, fazendo-a encará-lo um mínimo mais aliviada – Podemos... – respirou fundo, fazendo se dar conta de que talvez ele não estivesse tão calmo como estava alegando – Podemos só tentar descobrir como tudo terminou assim?
- Só para confirmar: estamos falando da pasta do anuário, com os registros do ano?
- Isso.
Um suspiro escapou. Agora ela havia sido sentenciada à culpa com todas as letras. A confirmação foi como um soco certeiro no estômago. Por breves milésimos, sentiu o ar dos pulmões se esvaindo.
- Eu era a encarregada do anuário. Como o meu trabalho com ele já havia sido todo feito, estava concluído... Pensei que poderia liberar espaço no sistema, deletando-a, já que ninguém mais ia mexer.
Contando em voz alta o que havia feito e a motivação, percebeu o papel de estúpida que havia se colocado sozinha. Por todo o amor da Santa Paciência, como ela era idiota. Até parece que uma mísera pastinha dando bobeira ia fazer peso no avançado sistema de informações que tinham comprado. Pior do que isso era a sensação de saber que aquela maldita pasta estava intocada há meses. A mulher poderia ter simplesmente a deixado lá por outras dezenas de anos, mas a Lei de Murphy jamais deixaria.
- Pois é. – o timbre do superior a tirou do devaneio – Acontece que eu estava mexendo. Inclusive, redigindo um documento que pretendia terminar hoje.
não conseguiu segurar o ímpeto que os olhos tiveram de se arregalar.
- Meu Deus, desculpa. Desculpa mesmo!
- Já foi, . – a mente dela a alertou para o fato dele não ter dito que ela estava desculpada, ou que tudo estava bem – Entendi as suas intenções, mas vamos não fazer isso nas próximas vezes, por favor.
- Sim, sim. Claro. – concordou, pronta para se voluntariar a ajoelhar no milho por misericórdia, se necessário.
- Pode ir.
deixou a sala sem olhar para trás. Ao retornar à sala que toda equipe dividia, deparou-se com um silêncio esmagador. Ninguém olhava para ela, porém sabia que todos queriam saber o que aconteceu. Era um acordo interno: se alguém fosse chamado para a direção, ninguém deveria fazer questionamentos até que a pessoa em questão optasse por compartilhar. Isso evitava constrangimentos. sempre foi uma das mais “bocudas”, contudo, da mesma maneira que tinha pisado no escritório de manhã, ela continuava sem vontade para conversas.
Em passos envergonhados, sentou-se de qualquer jeito na própria cadeira e soltou um suspiro longo, cheio de frustrações. Geralmente, ela era a pessoa que reclamava que 24 horas em um dia não era suficiente, no entanto este parecia estar acontecendo há séculos.
Não demorou para que o celular depositado ao lado do computador vibrasse. Pela tela, espiou uma mensagem de perguntando se estava tudo bem. Ignorou, retomando os afazeres.
O dia estava tão perdido que não esperou fechar oito horas diárias de trabalho para recolher os pertences e correr para o sofá de casa. No meio do caminho, parou no mercado. Como a boa jovem adulta que ainda teria que trabalhar no dia seguinte, se contentou em levar uma caixa de bombons sortidos artesanais e uma garrafa de chá gelado.
Um porre não era a solução.
Com a bolsa jogada no chão, a caneca cheia e os bombons expostos, deitou no sofá, pronta para uma overdose de açúcar e crises. No Spotify, a playlist favorita de músicas tristes se fez presente no volume máximo. Algumas letras não batiam com a história dela, deles, mas tudo que a queria era um melodia dramática o suficiente para forçar os sentimentos para fora e voltar a ser a matraca ambulante que era.
As lágrimas não vinham.
Ela decidiu mudar a tática e cantar com todas as forças. Quem sabe dessa forma, as frustrações fossem embora, acompanhadas de seu fôlego.
O cover de The Scientist de Gabriella Laberge tocava pela sexta vez no repeat, sendo acompanhada pelo tom sofrido e desafinado da quando alguém bateu na porta.
- Não se pode sofrer em paz hoje em dia... – praguejou, dando uma pausa no próprio show.
Sem esconder nenhum traço do descontentamento, abriu a própria porta.
- Pois não?
- , você está precisando de alguma coisa?
Ela encarou o vizinho, com o cenho franzido.
- Não? – a resposta saiu mais em formato de pergunta do que uma afirmação – Não, eu acho. Digo... Se eu precisasse, eu pediria, não é, Prochmann?
O homem riu, erguendo as mãos em sinal de rendição.
- Opa, calma, aí. Voltou a me chamar pelo sobrenome e quer que acredite que não precisa de nada?
bufou.
- , é bom você desembuchar e me dizer logo o que quer, pois eu não estou em um bom dia.
- Longe de mim duvidar. Coldplay está tocando no seu repeat há mais de meia hora. Max está seriamente preocupado com você. – apontou por cima do ombro para a porta atrás das costas dele.
arqueou as sobrancelhas e se escorou de braços cruzados no batente da porta.
- O Max ou o dono dele? – alfinetou.
era instrutor de academia, dono do vira-lata mais adorável que já havia conhecido, vizinho de porta e solteiro. Eles se davam bem. Eram próximos o suficiente para que ele confiasse o cachorro e as chaves do apartamento nos finais de semana a ela, quando voltava para visitar os pais no interior. Aparentemente, íntimos o bastante para bater na porta do outro quando bem entendessem apenas para trocar algumas palavras, como estava acontecendo.
- Não podem ser os dois? – o homem rebateu – Você não é a melhor cantora do mundo, sabe? Max não parou de latir um segundo enquanto você recitava os versos de The Scientist. Acho que ele queria mesmo que eu viesse dar uma checada.
sentiu o rosto esquentar um pouco pela vergonha.
- Eu não percebi os latidos. – deu um sorriso amarelo.
- Óbvio, estava ocupada queimando os nossos tímpanos. – massageou as orelhas ao mesmo tempo em que fingia uma careta de dor. Em troca, recebeu um empurrão forte no peito pela mulher.
- Idiota. Veio bater na minha porta para me ofender? Vai tomar no cu. Passar bem. – bateu a porta.
não estava brava. Esse era o ritmo da relação deles, com a camaradagem e implicância andando lado a lado. Ela mal tinha conseguido encher a caneca na cozinha que bateram na porta outra vez.
Rolou os olhos.
Era de novo, mas diferente da primeira vez, ele já foi entrando no apartamento com um saco de limões e uma garrafa de vodca.
- Vamos beber!
- Eu trabalho amanhã, . – ela foi preparando a recusa ao mesmo tempo em que seguia atrás do homem que ia direto para a cozinha.
- E daí? Eu também! – largou a garrafa próxima a pia e começou a remexer nos armários – Nós dois sabemos que você não recusa uma boa caipirinha. – a voz saiu abafada, pois tinha acabado de enfiar a cara dentro da geladeira – Você tem a geladeira de um universitário desnutrido. – concluiu, fechando a porta.
estava prestes a manda-lo para o inferno outra vez até que os olhos pousaram na garrafa com líquido transparente nunca aberto. A cota de dignidade do dia já tinha acabado, então a mente da mulher não viu problemas em aturar o vizinho enquanto ele mantivesse o copo dela cheio.
- Como foi o seu dia, ?
não conseguiu não cerrar os olhos para o homem que agora estava de costas cortando os limões. Ele estava mais abusado que o usual, constatou internamente. invadira sua casa, sua cozinha, sua geladeira, reclamara da geladeira e estava preparando bebidas para eles. O quão fora da curva isso era!
Um suspiro atraiu a atenção para que ele parasse todas as atividades. a observou rapidamente por cima do ombro à espera de uma resposta.
- Muito ruim. Péssimo. Uma merda em níveis catastróficos. Era isso que queria ouvir?
Ele assobiou impressionado.
- Tanto assim? – a anfitriã se encostou logo ao lado e pelo canto dos olhos ele a viu confirmar com um aceno – Você, por acaso, atropelou alguém, não chamou o socorro e escondeu o corpo?
- Eu não tenho carro. – rolou os orbes – E não dirijo nem carrinho de supermercado.
- Eu sei. – riu – Só queria que percebesse que você pode estar fodida, mas não é a fodida dessa história hipotética.
- Jeito estranho de tentar me fazer sentir melhor. – fez uma careta, estendendo os copos assim que o viu finalizar o drink.
- Valeu, é o meu charme.
Depois de encherem os copos, o casal retornou à sala em um silêncio um pouco constrangedor. Os dois sentados no chão, de frente para o outro, separados pela mesa de centro que sustentava a jarra. Os goles eram alternados e tentava encarar a mulher do modo menos furtivo possível. , por outro lado, tinha o olhar perdido. Enquanto a bebida meio doce e meio amarga descia na garganta, ela ponderava se deveria se abrir. Antes que a mente pudesse se decidir, a boca dela se adiantou:
- Hoje eu tive um sonho... – soltou no ar e buscou os olhos de para se certificar de que estava sendo acompanhada e o viu atento.
Melancólica, contou todas as cenas do sonho. Depois, emendou a história do relacionamento, contou sobre a decisão repentina e a promessa de Taubaté. Todas as informações que havia guardado nos últimos tempos para não despejar sobre acabavam de receber um novo hospedeiro. Nas partes onde os olhos doeram de lacrimejar, não hesitou em enfiar a bebida goela a baixo.
Terceiro copo, o cérebro alertou.
Inesperadamente, se deu conta de que era um melhor ouvinte do que poderia esperar. Ele não a julgou. Se ele achava que ela estava fazendo drama demais, também não falou.
se sentiu abraçada.
Quente.
- Já divaguei muito sobre a minha vida. – alertou serena, muito mais leve – Sua vez, bonitão. Como foi o seu dia? – quis saber, curiosa.
Disposta a ser tão atenciosa e acolhedora quanto ele foi, largou o copo, posicionando os cotovelos sobre a mesa e apoiando a cabeça com as mãos.
- Normal.
fez um estalo com a boca.
- Ok. Tudo bem. – respitou fundo – Já fez ENEM, querido? – indagou sem esperar uma resposta – Assim como a redação de lá, eu quero que você disserte. Tomou café da manhã? Ele foi bom? E o trabalho? Encontrou alguém diferente do pessoal de todos os dias? Alguém interessante? – instigou, tirando uma das mãos para dar falsas cutucadas – Enfim, essas coisas.
tirou os olhos dela para encarar a jarra quase vazia.
- Quem me dera encontrar alguém interessante. Tenho fobia de relacionamentos desde que descobri ser corno.
não conseguiu esconder o choque nas expressões. Todavia, permaneceu em silêncio, pronta para absorver a história dele.
[...]

Como se fosse um déjà vu, ela despertou cansada. Remexeu-se um pouco zonza e reparou que não estava em sua cama. Com as pálpebras ainda grudadas, tateou o sofá buscando o celular.
Era outro dia?
se levantou meio preguiçosa, coçando os olhos. Através dos vidros da janela, ela pôde reparar que ainda estava escuro. As cenas da bebedeira com vieram como bombas, mas ela estranhou não haver nenhum sinal dele. A mesa que deveria estar ocupada pelas bebidas estava limpa.
Balançou a cabeça.
Aquilo não podia ter sido um sonho.
Sonolenta, conferiu todos os cômodos do pequeno apartamento para se certificar de que estava sozinha. Até espiou o lixo para encontrar as rodelas de limão no topo da montanha de resíduos e comprovar de que estava acompanhada algumas horas atrás.
Tinha sido real.
Os olhos ainda permaneciam meio fechados. Desnorteada, voltou para o sofá e encontrou o celular caído no pé do móvel. Recolheu o item e voltou para o acolchoado confortável. Uma nova pergunta surgia a cada instante, mas ela estava tão sem forças para raciocinar. Seria um erro deixar para resolver tudo amanhã?
provavelmente tinha voltado para casa.
Apurou os próprios ouvidos para ver se captava algum ruído do apartamento ao lado, porém o silêncio reinava.
Na tela inicial do celular, poucas notificações, entretanto o par de olhos foi atraído para uma mensagem em especial.
“Quem tem a vizinha mais vacilona do mundo? EU! Quando estiver lendo isso, provavelmente vamos estar em outro dia. , você dormiu sentada enquanto eu abria meu coração. Imperdoável. Está me devendo uma noite regada à álcool pt. 2. Lavei a louça para que não precisasse se preocupar. Se precisar de algo mais, sabe qual porta bater. Prochmann”
deitou no sofá, pensativa.
Ela estava em dívida com o vizinho.
Ela era um livro aberto agora.
Precisava de um banho, listou. Colocar o pijama e cair na cama. Contudo, não se moveu. Ainda estirada, olhando para o teto branco, aguardava ansiosamente pelo dia em que acordaria e estaria indiferente com tudo que envolvesse .
Ficaria tudo bem.
Enquanto esse milagre não vinha, ela teria de continuar dançando a música da vida com os olhos marejados.




Fim.



Nota da autora: Olá? Não sei exatamente quando o ficstape entra no ar, mas estou apreensiva! É a primeira história que envio para o site sem um romance escancarado como o enredo principal. Apesar do amor ser a motivação para muitas das ações da personagem principal, queria que entendessem que o foco está no processo que todo mundo precisa passar para superar. A pp pensa demais, remói demais e sabe disso. Não é o jeito mais prático e nem glamuroso de se lidar com as coisas, mas é o dela e ela sabe que vai passar. Teary Eyes é um hino que desencadeia muitas reflexões sobre isso: cada um seguindo no seu tempo. Fico muito feliz e agradecida pela oportunidade de escrever sobre ela <3

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