FFOBS - 03. Chocolate, por Thaay Marques


03. Chocolate

Finalizada em: 19/08/2018

Now we run, run away from the boys in the blue
(Agora nós fugimos, fugimos dos caras de farda)
Oh, my car smells like chocolate
(Oh, meu carro cheira a chocolate)
Hey now, I think about what to do
(Ei agora eu penso sobre o que fazer)



I

Vício.
O dela era o chocolate, mas, poderia ser chamado de paraíso. Poderia comê-lo diversas vezes na semana, mas, sempre tinha a mesma reação: ficava extasiada ao sentir aquele sabor tão viciante inundar seu paladar, deliciosamente doce, mas, naquele momento tinha o sabor amargo.
Todo prazer que sentia ao comê-lo desapareceu.
mastigava o último pedaço da sua barra de chocolate enquanto estava encostada no capô do carro. Havia perdido a noção do tempo em que estava ali esperando que aparecesse. Sangue manchava suas roupas pretas, seu rosto estava respingado de vermelho feito uma obra de arte macabra.
O alto daquela colina em San James era o ponto de encontro delas. Deveriam esperar uma pela outra até o anoitecer. O sol já estava se pondo e nada da parceira aparecer.
Caso uma delas não retornasse, a outra deveria partir sem chance de acabar atrás das grades.
E isso, não faria.
Jamais abandonaria sua melhor amiga e irmã.


II

- Oh, we go where nobody knows. With guns hidden under our petticoats... – Tocava a música no rádio do carro em que dirigia tranquilamente.
- Qual será o nosso próximo destino? – Perguntou enquanto dava uma enorme mordida em sua barra de chocolate. Seus pés estavam descansando no painel, o vento bagunçando seus cabelos.
- Ei, sua egoísta! – Reclamou enquanto via a amiga devorar o chocolate sem ao menos lhe dar uma mordida.
Era final de tarde, seguiam pela estrada que cortava o deserto de San James com destino ao centro da pequena cidade que estava a alguns quilômetros à frente.
- Mari? – Chamou à amiga enquanto mastigava seu doce, saboreando-o.
Ela apertou o volante até os dedos ficarem brancos, por tanta força. percebeu a reação da amiga, pois, a conhecia perfeitamente bem até mais do que a si mesma. Ambas cresceram juntas em um orfanato na pequena Mindsville, tendo apenas uma a outra e quando completaram dezoito anos, fugiram com apenas as roupas do corpo.
Depois de muita dificuldade nas ruas, conheceram Federico e o mundo do crime. Ficaram anos com ele, fazendo pequenos roubos e quando ele foi morto, passaram a ser apenas as duas.
- O que acha de pararmos? – Perguntou Mari repentinamente soltando o ar dos pulmões enquanto encarava a estrada a sua frente.
encarou-a em silêncio por alguns instantes até que soltou uma gargalhada alta, assustando a amiga.
- O que foi? – Perguntou irritada desviando o olhar da estrada por alguns segundos para encará-la, mostrando que realmente estava falando sério.
- Você só pode estar me zoando! – Declarou debochadamente enquanto jogava a embalagem do chocolate no chão do carro, bebendo água em seguida. Bochechou, cuspindo pela janela em seguida. Limpou a boca com o antebraço e se aconchegou melhor no banco do passageiro.
Ambas permaneceram em silêncio por alguns minutos. Estavam realmente considerando aquela possibilidade.
- Não, . Nós jamais iremos parar com isso! – Falou seriamente ajeitando seus óculos escuros, fechando os olhos enquanto fingia estar declarando o assunto encerrado.
Elas sabiam que a vida que tinham não permitia que tivessem esperanças de viver uma realidade melhor.
- Como você pode ter tanta certeza, sem ao menos tentar? – Perguntou Mari irritada enquanto dirigia sem desviar o olhar da estrada, aumentou a velocidade fazendo com que o vento que entrava no carro, bagunçasse ainda mais os seus cabelos.
- Você já me viu desistir de alguma coisa? Por acaso venci o meu vício em chocolate? – Questionou cruzando os braços na frente do corpo, encarando o teto cinza do carro.
- Cara, estamos falando de uma vida sem roubar ninguém e não sobre seu vício em chocolate. Eu acredito que podemos ter uma vida normal, podermos andar por aí sem ter medo da polícia! – Respondeu dando uma breve olhada na amiga que parecia estar dormindo, seus olhos escondidos pelos óculos escuros.
- E como vamos comer? Quem vai pagar nosso aluguel? Quem vai pagar os consertos dessa lata velha? Como vamos nos vestir? – Perguntou irritada enquanto se virava na direção da amiga.
- Eu não sei se você sabe, mas, existe emprego. –
- Ah! Sério?! E quem vai empregar duas mulheres que nunca frequentaram a merda de uma escola? – Perguntou debochada enquanto desligava o rádio e voltava sua atenção para a paisagem desértica.
suspirou, reduzindo a velocidade até parar o carro, desligando o motor. Tirou o óculos do rosto, colocando-o no topo da cabeça e se virou em direção a amiga.
- Lanna, presta a atenção em mim – Pediu calmamente enquanto suspirava novamente.
A mulher se virou em sua direção, a expressão triste.
- Eu não quero continuar vivendo assim. Sei que a vida real não é fácil, que podemos arranjar empregos que vão nos escravizar e que o salário não dará para nada, mas, eu prefiro ter paz. Quero andar por aí despreocupada, ter um teto fixo, não precisar me esconder toda vez que a polícia aparece. Preciso ter uma vida normal, ! Nós precisamos! – Desabafou enquanto algumas lágrimas teimavam em molhar o seu rosto.
secou as lágrimas da amiga, abraçando-a forte em seguida.
- Que tal o nosso último assalto antes de nos tornamos pessoas normais? Propôs risonha ao se afastar da amiga, ligando o rádio novamente.


III

Era quase quatro da tarde quando chegaram ao posto de gasolina que ficava ali no deserto de San James. Ambas vestiam preto da cabeça aos pés, um capuz cobria o rosto de ambas e seguravam suas pistolas prateadas.
- Se der merda, nos encontramos na colina? – Perguntou com o olhar atento a entrada da loja de conveniência.
- Até o anoitecer. Se eu não voltar, você some. –
riu negando com um gesto de cabeça.
desceu do carro com o rosto coberto por seu capuz, vestia roupas pretas e tinha uma mochila preta nas costas. Caminhou tranquilamente pelo posto que estava sem movimento, tendo apenas um carro além do delas, estacionado.
A noite estava com um vento frio que bagunçava os cabelos de , os grilos era o único barulho na beira da estrada que raramente passava algum veículo. Uma música tocava baixinho dentro do veículo enquanto ela observava o movimento dentro da loja. Vislumbrou em alguns momentos, a amiga andando pela loja e enchendo a mochila.
Bocejou entediada enquanto observava a hora no relógio.
Despertou repentinamente ao ouvir um disparo. Ajeitou-se no banco do motorista agitada, seus coração foi na boca e voltou ao ver a viatura da polícia estacionada na frente da loja de conveniência. O desespero tomando conta ao perceber o deslize que havia cometido.
havia cochilado e colocado sua melhor amiga em risco.
Cobriu o rosto com a touca, sacou sua arma e saiu às pressas do veículo. Seguiu até a porta de vidro da loja de conveniência, as batidas do seu coração eram muito aceleradas. O silêncio voltou a reinar novamente. Caminhou a passos lentos e silenciosos, a arma destravada, pronta para a reagir a qualquer sinal de perigo.
E tudo aconteceu muito rápido.
A porta da loja se abriu repentinamente, por puro susto, seu dedo afundou no gatilho e um disparo foi feito. Sentiu os respingos de sangue lhe atingir a face e as roupas. Congelou em choque ao ver quem havia acertado.
havia assassinado um homem.
Ele já estava caído sem vida com um disparo certeiro no pescoço. Ela começou a gaguejar, dizia coisas desconexas, estava em choque. Nunca havia atirado em ninguém, nem mesmo nos reféns que costumavam frequentar as lojas de conveniência que ela e costumavam assaltar. Esse era o sustento delas, assaltar lojas de conveniência em cidadezinhas pequenas ou beira de estrada.
Mas, nunca haviam matado alguém.
Nunca.
Mas, na vida sempre vão existir as primeiras vezes.
- PARADA AÍ! – Gritou o policial que apareceu pela lateral da loja de conveniência.
- TEMOS MAIS UM SUSPEITO! – Continuou enquanto apontava a arma em direção a uma em estado de choque que estava com a boca escancarada enquanto encarava o corpo banhado por uma poça de sangue aos seus pés.
O policial deu mais alguns passos em direção à mulher.
Outro disparo pôde ser ouvido, parecendo despertar a jovem do estado de choque em que se encontrava. Ela finalmente encarou o policial que lhe apontava a arma, seus pensamentos voaram até a sua melhor amiga que parecia não estar mais ali.
, o morto e o policial estavam parados na porta da loja de conveniência. O silêncio reinava entre eles enquanto o policial tinha a arma apontada na direção da mulher.
- Não se mova! Você está presa por matar este homem! – Ordenou o policial se aproximando mais alguns passos.
Ela em desespero mirou em direção a uma das pernas do policial e atirou, acertando-lhe a perna esquerda. Ele teve tempo de reagir, atingindo-a de raspão no quadril enquanto a mesma corria em direção ao carro. Abriu a porta, jogando-se nele, ligou o motor e pisou fundo no acelerador. Alguns outros disparos foram feitos em sua direção, viu pelo espelho retrovisor o policial se arrastando até sua viatura.
- A colina, a colina... – Repetia numa tentativa de se acalmar enquanto sentia a ardência em seu quadril que estava sangrando pelo disparo do policial que lhe acertou.
Dirigiu o mais rápido que pôde, observando pelo caminho se sua melhor amiga estava por ali. Tentou reunir toda a esperança que tinha, enquanto milhares de pensamentos que se resumiam em uma atrás das grades lhe dominavam.
Alguns quilômetros depois, avistou o ponto de encontro. Subiu com o carro, desligando o motor em seguida. Arrancou o capuz da cabeça, pegou uma barra de chocolate no painel e saiu do carro. Abriu a embalagem em desespero, arrancando com os próprios dentes. Parecia desesperada, como se sua vida dependesse disso. Mordeu desesperada, engolindo quase sem mastigar. O chocolate estava amargo enquanto o salgado das lágrimas se misturava ao doce.


IV

chorava sem parar, quase perdendo o folego. Continuava firme ao capô do carro enquanto o sol ia se pondo no horizonte. O terror lhe dominava ao imaginar que poderia ter sido pega ou pior, ter sido morta durante os disparos.
O prazo estava se esgotando e sua esperança também.
Fungou algumas vezes, secou as lágrimas que ainda insistiam em molhar seu rosto em todos os momentos em que se lembrava do rosto do homem que assassinou na porta da loja de conveniência.
Ela era uma assassina. – Pensou desesperada ao encarar suas mãos. Cobriu o rosto com elas, chorando ainda mais.
Como pôde ter sido tão descuidada? Ela deveria ter entrado no lugar da sua melhor amiga e realizado o último assalto.
O arrependimento, a culpa lhe corroíam por dentro enquanto chorava até perder o ar dos pulmões. Tinha ciência de que não queria mais essa vida e a ideia foi toda dela, ela inventou de fazerem um último assalto em despedida à velha vida e lá estavam elas naquela enrascada.
Acertou alguns tapas em seu próprio rosto enquanto chorava cada vez mais.
Infelizmente, o sol se pôs e já era noite. recomeçou a chorar em lamentos pela sua melhor amiga. O prazo havia se esgotado e nada dela retornar. A culpa pesava toneladas em seus ombros. Ela havia sido responsável por esse desastre e por ter perdido a sua melhor amiga, ainda assassinou um homem que poderia ter uma família, filhos e esposa.
destruiu uma vida, uma família.
Ela chorou por mais algumas horas, andando de um lado ao outro em desespero. Não sabia se deveria realmente ir embora ou continuar ali. Queria encontrar a sua melhor amiga e pedir perdão pelo o que acontecera.
Observou o céu estrelado e pediu baixinho que lhe trouxesse a sua melhor amiga de volta. Ficou em silêncio, as lágrimas rolando por seu rosto.
O motor de um carro pôde ser ouvido se aproximando, assustando-a e fazendo com que caminhasse até o carro, pronta para escapar caso fosse necessário. Relaxou ao ver que não era um carro da polícia que saía da estrada repleta de árvores.
saltou do carro, sua roupa estava repleta de sujeira assim como, seus cabelos. Ela tinha um olho roxo e sangue escorria da sua boca. Quando ambas constataram que estavam ali, correram em desespero e se envolveram num abraço apertado.
Choraram juntas de alívio, desespero, culpa.
- Senti falta do seu cheiro de chocolate – Confessou com a voz rouca, ambas riram em seguida.


Fim



Nota da autora: Sem nota.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus