Finalizada em: 27/03/2021

Capítulo Único

O cheiro de café fresco dominava a pequena copa. Já passava das nove horas da noite, mas estava longe de conseguir ir para casa. O chefe convocara uma reunião de emergência para tratar dos últimos detalhes com a filial que ficava em Nova Iorque e, por conta do fuso horário, elas deveriam permanecer todos no escritório até tarde da noite. Se estivesse com sorte, às 23 horas estariam todos em casa, ela queria muito que eles estivessem com sorte. Não queria ter que passar mais uma madrugada trabalhando, mas suas contas não se pagavam sozinhas, então teria que sacudir o cansaço mental para fora, nem que seja pelas próximas duas horas, porque era ela a responsável da tradução da videoconferência.
Suspirou cansada, não gostava do que fazia, mas foi o que conseguiu arrumar ao sair da faculdade e estava naquele emprego que nada a estimulava há seis anos. Gostava dos seus colegas de trabalho, eram pessoas gentis e sempre a trataram bem, não tinha o que reclamar do seu chefe. Era um homem duro, de poucas palavras, mas justo e extremamente competente em saber gerir e lidar com a equipe de sua responsabilidade. Ela trabalhava como tradutora de textos coreano-inglês e ajudava às vezes como intérprete quando Yerin não estava disponível para exercer a função.
Àquela noite, Yerin estava de férias, então sobrou para interpretar e traduzir o que Joshua, gerente de marketing da filial de Nova Iorque, falaria para seu chefe e todos que estavam agora debatendo alguma coisa sobre a próxima campanha da empresa. A máquina parou de trabalhar, tirando a mulher de seus devaneios. Pegou a xícara e antes de dar um pequeno gole, inspirou o a fumacinha que saía do pequeno recipiente cheio de café. O aroma da bebida amarga acalmou um pouco seus pensamentos. Ela gostava bem mais do cheiro que do gosto do café, mas não desperdiçaria alimento apenas para perfumar o ambiente, com alguns torrões de açúcar, qualquer coisa amarga ficava maravilhosamente bem para ela.
A cápsula que inserira na máquina era de café com avelã, já estava adoçada, talvez até muito doce para o gosto dela, mas serviria para espantar o sono e ajudaria a limpar a mente um pouco antes de ser bombardeada com termos técnicos e ter que forçar seu cérebro a trabalhar mais rápido para poder acompanhar o sotaque sulista extremamente forte de Joshua.
Desfrutar uma bebida quente era um dos pequenos prazeres da vida que tinha. O pequeno ritual de ter que escolher cápsulas ou colocar a água para ferver, ficar em pé ao lado da cafeteira ou fogão enquanto se espera o resultado desejado, ver o vapor subir da bebida recém feita, ter o prazer de sentir no ar o cheiro do café ou chá que está se servindo, isso tudo era uma limpeza de pensamento muito eficiente para ela.
Ela estava soprando levemente a bebida ainda quente quando não só sentiu, como também ouviu a pessoa entrar no pequeno espaço. O arrastar de pés, o som de dedos sendo estalados, e logo depois, um barulho que parecia ser um pescoço estalando e, em seguida, um pequeno gemido de satisfação, só denunciavam mais ainda quem entrava no recinto. jogou seu peso de qualquer forma sobre a cadeira que havia ali. olhou para o colega de trabalho e sorriu contra a xícara que estava à frente dos lábios.
sempre foi um homem reservado, que levava seu trabalho a sério até demais, às vezes; vê-lo reclamar de qualquer coisa era raríssimo e aquela clara demonstração de cansaço no ambiente de trabalho era quase como assistir com seus próprios olhos o cometa Halley cruzando os céus. Sem que ele falasse alguma coisa, colocou na máquina uma cápsula de chocolate quente na cafeteira e, depois de pronto, levou a bebida até o homem que se encontrava agora sentado da forma correta e apoiando a cabeça sobre as mãos, encarando a mesa cabisbaixo.
passou a xícara com o chocolate fumegante entre o vão que os braços dele formava na mesa. levou um susto e esticou-se na cadeira, como se ciente pela primeira vez que não estava sozinho no lugar. Olhou espantado da xícara para o rosto de mulher, pronto para se desculpar de seus modos, mas ao ver que era , ele relaxou. Sorriu de lado envergonhado, agradeceu elevando levemente a xícara e sorveu o líquido com cuidado para não queimar os lábios e a língua.
“Longo dia, não?” puxou a conversa. “Por que ainda está aqui?” perguntou genuinamente preocupada, o horário de saída dele era às cinco da tarde.
“Depois da reunião com Nova Iorque, tenho que mandar as informações para Pequim, que de lá eles vão falar com Londres.” Ao perceber a expressão de confusão no rosto da mulher, completou “É, eu sei, por que não conectar diretamente, certo? Joshua só tem horário disponível às oito e Mary só horário disponível às 15 horas. E isso pra gente significa às 22 e meia da noite.” Soltou um suspiro segurando a ponte do nariz. “Eu só vou ter uma hora pra traduzir, revisar e enviar pra Sichang.”
“O que aconteceu com Samiya? Seria apenas enviar a transcrição da reunião pra ela. Diminuiria seu trabalho a quase zero.” comentou antes de bebericar do seu café.
“Samiya está escalada para a reunião de outro projeto, vai fazer a ponte entre Mumbai e Pequim. Tentaram chamar a substituta, mas não conseguiram contato, então resolveram lembrar que eu tenho um diploma de Inglês-Mandarim e me colocaram nessa reunião.” Levantou a xícara, como se propondo um brinde “E viva a incompetência de quem marcou essas reuniões uma em cima da outra.” Soltou um riso debochado antes de beber.
estava impressionada. estava tecendo comentários ácidos. Ela estava vendo o cometa Halley pela segunda vez em vida. Fato histórico, no mínimo. No entanto, a mulher entendia a revolta e frustração, ela mesma se sentia dessa forma. Era quarta-feira à noite, a noite que ela e suas amigas costumavam sair para beber depois do expediente. Pela hora, já era para ela estar bêbada e ajudando Yeji a entrar no táxi para irem para casa; ririam o caminho inteiro até o apartamento que dividiam em Hongdae e poucos minutos depois de cruzarem a porta, receberiam mensagens de Mina e Yubin querendo saber se já tinham chegado em casa.
“Pense pelo lado bom” disse enquanto deixava xícara sobre o balcão e passava a limpar a área da cafeteira. “Ao menos amanhã não teremos que vir; ter um dia de folga sempre é bom, não?”
“Sim, mas eu teria que passar esse dia sozinho, porque Tan está com meus pais e, apesar do apartamento ser pequeno, eu sinto falta dela.” Ele comentou.
“Como vai Tan? Ainda arranhando a mobília nova?” riu ao lembrar da história que contou há um tempo, sobre a sua gatinha que não gostou que ele substituiu uma cadeira velha e desconfortável por uma poltrona nova e melhor, mas que não foi do agrado da pequena gata que fazia questão de arranhar a almofada do assento, fazendo com que tivesse que trocar o assento ao menos três vezes.
“Os assentos já não são mais os arqui-inimigos dela” riu lembrando da pequena companheira “mas meu equipamento de ciclismo tem sofrido com os ataques. Tive que enviá-la para a casa dos meus pais, ela sempre volta melhor depois de ser muito paparicada por eles.”
“E como eles estão? Ainda procurando uma nova casa?” perguntou enquanto terminava de secar a xícara que usara.
“Não, desistiram da ideia de vender a casa. Agora estão focados em conhecerem o mundo. No próximo mês vão à Bali.”
“Ah, Bali!” suspirou relembrando sua viagem pela ilha. “Eles vão gostar. E por que você não vai com eles? Certamente você tem férias para tirar... Bali é um lugar ótimo e - não me ache doida pelo o que vou dizer - mágico. Capaz de recarregar suas energias só de você respirar o ar de lá quando chega na ilha.
“Não te acho doida por achar isso” comentou rindo de forma gentil “eu vivi uma experiência parecida em Katmandu. Naquela confusão de pessoas indo e vindo pela praça Darbar, só de observar as pessoas vivendo suas vidas enquanto eu tomava minha água, me deixou feliz e trouxe uma sensação boa pra mim.” Ele fechou os olhos e sorriu “Quando eu me sinto muito sobrecarregado, eu fecho meus olhos e tento reviver o que senti enquanto estava lá. Faço um pequeno tour pela praça mentalmente, me imagino de novo lá naquele lugar, respiro lentamente, conto até 20 e depois de abrir os olhos...” Disse a encarando “já me sinto bem melhor e mais calmo, e volto a fazer o que tenho que fazer.” Bebericou o chocolate ainda com um sorriso dançando em seus lábios.
sentiu as bochechas vermelhas e tratou de sair do pequeno cômodo o mais rápido possível. Ela não estava preparada que trouxesse aquela viagem que fizeram juntos no ano passado quando ainda estavam se relacionando. Não exatamente um namoro, talvez uma situação como amigos com benefícios, mas por relutância de não transformaram em algo à mais. Há tantos meses, quando estavam no Nepal, ele chegou a se declarar para ela, mas a mulher não pensava em nada que não fosse sua carreira e não queria um relacionamento no caminho da sua promoção.
Rejeitou todos os avanços de , mas a promoção não veio e muito menos o namoro deles, este último já esperado, pois deixou bem claro que não queria mais nada com o homem que deixara com um sorriso na copa. Há meses eles não trocavam nenhuma palavra de maneira romântica ou que remetesse àquela época, e não apenas ele tocou no assunto, como falou da praça Darbar, justamente o local onde ela confessou que também correspondia os sentimentos dele, mas tinha medo do futuro. Foi na praça Darbar que ele disse que também tinha medo do futuro, mas que se dividissem os medos um com o outro, as coisas seriam mais fáceis para os dois.
Foi na praça que ela experimentou pela primeira vez o que era amar e ser correspondida. Naquela praça movimentada, ela teve uma das melhores experiências de sua vida. E, pelos próximos dois dias que eles ficaram em Katmandu, foi um verdadeiro paraíso na terra, mas a realidade bateu e a tirou do mundo das nuvens ao voltarem à Coreia, a promoção mostrou-se ser possível e ela priorizou a carreira. Não se arrependia, mas cada escolha tem sua renúncia e ela tratava de viver com as escolhas e consequências delas.
-x-

O relógio marcava meia noite e quarenta e cinco quando finalmente pôde largar o peso do corpo sobre o seu sofá multicolorido totalmente destoante da decoração minimalista, mas o móvel horrendo, palavras de sua tia - a arquiteta responsável pelo projeto -, era confortável e parecia dar o que ela tanto queria no momento: um abraço. O móvel um tanto grande demais para os modelos convencionais parecia abraçar o corpo da mulher e a sensação era divina.
Depois de um tempo jogada ali na sala, a mulher resolveu levantar e tomar um banho para finalmente dormir. Precisava descansar e, mesmo sabendo que não precisaria levantar cedo para trabalhar, não queria deitar muito tarde, porque precisava preparar e adiantar alguns documentos que usaria quando voltasse ao trabalho na sexta. Yeji chegara há pouco no apartamento, conversaram rapidamente como fora a noite com as amigas e logo depois rumou para o quarto para descansar.
estava debatendo, se levantava naquele instante ou continuava mais um pouco onde estava quando ouviu o celular apitar seguidas vezes em cima da mesinha de centro. Apesar do horário avançado, não estranhou receber mensagem tão tarde da noite, pois imaginava ser Mina ou Yubin querendo saber se Yeji já estava em casa.
Se o que eu falei na copa hoje mais cedo
Te fez se sentir desconfortável
Por favor, me desculpe.

Foram as três mensagens de que apareceram na tela inicial bloqueada. Por alguns segundos, ponderou se responderia as mensagens naquele instante ou deixaria para depois, quando mais mensagens chegaram e ela lia tudo pela barra de notificação.
Levou um tempo para que as coisas entre nós voltassem ao normal
Não quero ficar longe de você de novo
Perdoe a minha boca grande
Nos vemos na sexta!

Ela estava abrindo o aplicativo de mensagens para retornar o contato quando o celular começou a tocar e vibrar na mão dela, não deu tempo de atender a chamada, pois desligara. Certamente ele ligou sem querer, porque o primeiro toque não chegou a completar e logo parou. Se ela fosse uma pessoa má, poderia perfeitamente ir para cama dormir e apenas respondê-lo de manhã, fazendo com que o pobre homem passasse a noite em claro, porque ela conhecia e sabia que agora ele estava muito provavelmente andando de um lado para o outro em qualquer cômodo que estivesse àquela hora.
A mulher resolveu por tirá-lo da miséria e retornou a ligação. Ela ouviu o som da chamada tocar duas vezes e, após, apenas silêncio. Afastou o aparelho do ouvido para saber se a ligação tinha caído, mas não, o timer indicador de duração da chamada estava marcando já quatro segundos. Levou novamente o celular à sua posição inicial e passou a prestar atenção na pessoa do outro lado da linha e agora conseguia ouvi-lo respirar.
“Oi, eu vi suas mensagens. Está tudo bem.” Disse e logo em seguida ouviu o mais soltar a respiração com mais força, como se antes estivesse respirando apenas superficialmente.
“Realmente me desculpa a ligação, eu apertei errado aqui.” soava extremamente envergonhado. conseguia imaginar que até mesmo as orelhas dele estavam vermelhas.
“Eu imaginei! Eu apenas retornei, porque assim ficaria mais fácil de falar do que por mensagem.” Riu do pequeno gemido que ouviu saindo do outro lado da linha. “Eu não fiquei desconfortável. Eu realmente não parei para pensar sobre como me senti naquele momento...”
Os dois ficaram no telefone por bons minutos, tiveram uma conversa franca. A mulher expôs, mais uma vez, seus sentimentos e medos. Não entendia por que estava falando das coisas que falava pra ele, conversava com como se estivesse tentando salvar uma relação de anos. A DR que rolava na madrugada daquela quinta chuvosa estava tendo efeitos quase que terapêuticos para o casal.
“Que barulho é esse? Você esqueceu a sua janela aberta?” perguntou ao ouvir o barulho da chuva mais alto do que falava.
“Não, eu apenas fui expulso do restaurante.” disse rindo e parecia falar com alguém perto dele. “Senhor Hongdong está me forçando a ir até sua casa.” Riu mais uma vez “Mas eu estou indo para casa.”
“O quê?” ela correu até a janela do seu quarto que dava vista para o pequeno restaurante tradicional e viu a silhueta de três pessoas.
Ela pode distinguir do casal de idosos, ele ajudava a senhora Minsuh com o guarda-chuva, caminhava ao lado dela, protegendo-a da chuva, mesmo que isso fizesse com que ele mesmo terminasse com metade do corpo molhado.
“Eu disse que estou indo para casa.” falou pouco depois de atravessar a rua com a simpática senhora. “Boa noite!” ele disse.
ficou confusa, não sabendo que ele falava com ela ou com o casal. Seja qual fosse, ela não ficou para descobrir. Saiu em disparada para a porta do apartamento, por sorte vivia no primeiro andar, com um lance de escada, já estava no térreo. Calçando roupas sociais com chinelos, ela pode ver que ainda estava na calçada do seu prédio, encarava o telefone como se tentando entender por que ela desligara na cara dele.
“Hey!” ela teve que gritar para se fazer ouvir sobre a chuva torrencial que agora caia. “O que você falou é sério?” disse quando estava mais perto dele.
“Muito sério!” disse sem desviar o olhar. “Eu nunca parei de gostar de você, eu apenas não demonstrava, porque você disse que não queria nada e tê-la como amiga, era melhor que não tê-la mais.”
soltou um suspiro e envolveu os braços ao redor do corpo do mais . Ele ficou sem reação por alguns segundos, mas depois ela sentiu os braços dele a segurando forte. Sua roupa estava agora parcialmente molhada, mas não ligava. Afastando os corpos um pouco, ela fechou os olhos ao sentir os lábios macios de pressionando sua testa. O homem estava se afastando quando ela segurou a nuca dele e colou os lábios dos dois. O beijo começou devagar, como um longo selar que depois evoluiu para um beijo lento e cheio de sentimento.
Ela riu durante o beijo quando os levou para debaixo da chuva. Um beijo na chuva era um dos desejos mais estranhos que tinha e no ano passado ela compartilhou isso com ele, e apenas o fato dele lembrar, mostrava que fizera a escolha certa em investir mais uma vez na relação, dar mais uma chance para o para sempre dos dois.




Fim.



Nota da autora: Olá! Mais um ficstape e mais uma fic escrita num surto! Hahaha A Angel me deu um plot maravilhoso pra essa música, mas a história desse casal foi ganhando vida própria e terminou do jeito que terminou.
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