Finalizada em: Out/2023

#00: I'm a full on freak, l'm the saint of the sinners

Sunoo era o maluco de carteirinha que os outros não queriam colecionar.
Tudo aconteceu tão rápido, como aqueles 15 segundos que mudam sua visão de uma pessoa, como dizem em um livro famoso por aí. Era noite de show, a cerveja estava pronta, o baseado para depois também, as garotas foram selecionadas e 2000 pessoas eram aguardadas. Talvez 1800. Mesmo tendo visto a previsão de chuva na TV, os Nebula M83 ainda eram capazes de convencer pelo menos 1500 pessoas a saírem de casa para assistirem ao seu espetáculo musical.
Ele estava sorrindo muito antes de qualquer coisa começar. Normalmente, aquele sorriso sempre era falso. Sunoo tinha essa característica passivo-agressiva de tentar sair por cima de qualquer situação. Em seu interior, despreza coisas demais para um garoto tão jovem. O motivo pelo qual um rapaz com uma vida tão despreocupada como a de Sunoo precisou aprender a fazer uma expressão falsa de felicidade de um modo tão rápido e convincente estava além da compreensão de Jake, Niki e Heeseung. Ele era o cara que sempre tinha o que dizer em todas as reuniões da banda, às vezes uma grande merda ou às vezes algo que até ajudava, porque dizer não era o problema. O negócio de Sunoo era o tom. Seu tom de voz não era amigo da diplomacia. Sua vontade de ajudar era massacrada pelo desespero de ser ouvido.
Antes daquela noite, Niki jurou que ouviu um pouco de infelicidade na voz sempre tão radiante dele, uma emoção que ainda carregava a altura elevada de seu tom de voz, mas que não parecia mais tão eufórica. Parecia aérea, pensativa, calculista. Ele perguntou se estava tudo bem, e Sunoo respondeu que sim, mas seu rosto o traiu. Um vinco na testa dizia coisas que ele não colocaria para fora. Mas nem sempre Sunoo colocava as coisas pra fora, e como um bom vocalista, costumava ficar introspectivo antes de apresentações, então no fundo, estava tudo certo.
Ele gostava de estar ali, 100% bem para receber o público. Era sua maior façanha.
Naquela noite, quando entraram no palco, o pico dos sorrisos estava constante. A voz dele soou grave e bem articulada quando deu o primeiro boa noite. Os dedos deslizaram com a maestria de sempre quando tocaram o primeiro acorde da guitarra. Nada mais importava depois que ele soltava o primeiro grito e as pessoas o respondiam. Mesmo sem a fama objetificada nos últimos anos, o vocalista dos Nebula M83 dava o que falar. Tinha pose, tinha prestígio, tinha um jeito único de fazer as coisas. As gerações antigas se manifestavam nos ouvidos dos fãs assim que ele abria a boca. Se o tempo não era capaz de voltar, Sunoo fazia o serviço de manter a memória viva. Um cara que tinha tudo pra ser um ícone aclamado mundialmente do rock ‘n roll, mas que assim como tantas bandas de garagem de qualidade, não tinha oportunidade. Só tinha aquele público, aquelas 1200 pessoas que poderiam ou não divulgar seu trabalho por aí.
Isso era péssimo para alguém como ele, ansioso e estressado, sedento pela fama e reconhecimento. Mais da metade daqueles idiotas estava tão entupidos de cocaína que nem sabiam o que ele estava cantando. Só levantavam um braço, fechavam os dois dedos do meio e batiam cabeça pelo som alto e estrondoso, vindas da sua guitarra e da bateria de Niki. O restante só cantava bem na hora em que ele fazia um cover, mesmo tendo dezenas de músicas já upadas em serviços de streaming na internet. Mesmo com tanta divulgação por rede social. Mesmo ele sabendo que era bom, que eles eram bons.
Já chega. Estava na hora disso acabar.
Sunoo ouviu o sussurro gelado da coisa no seu ouvido quando o momento chegou: É agora, Sunoo.
Estava na hora de conquistar o seu posto.
Sorrindo como antes, ele aproximou a boca do microfone depois do intervalo do fim de uma música para a outra e gritou:
— E aí, escória de Boston! — mais berros em resposta. Talvez nem ouviram o que ele disse de verdade, e também não importava. — Uau, que público incrível. Lindos, calientes, animados, ferrenhos. Vocês brigaram pra estar aqui, não é? Espero muito que tenham brigado com namorados, mães, pais, avós, com o mundo todo. Aqui é um lugar onde a gente acumula o ódio e deixa ele se dispersar — Sunoo abriu os braços. Ouviu os gritos de concordância e já sentiu aquela energia varar sobre todo o corpo, entrando no estado de empolgação que a coisa disse que ele entraria. — Isso, sintam exatamente isso. Não fiquem com pesos nas costas, não se curvem às regras da sociedade. Se curvem aqui, onde suas vontades não serão censuradas. Se curvem diante do Deus do Rock ‘N Roll!
Jake olhou para os lados pelo canto do olho, segurando uma risada. Ele estava muito animado mesmo, aquele companheiro louco. Nem parecia que estava carregando uma caixa de cereal amassada hoje de manhã, perguntando-se onde estava suas moedinhas. Sunoo pulou de alegria com a animação do público; ainda parecia que eles não estavam distinguindo uma palavra do que ele dizia, mas se sentiam compelidos a responder. A agir. A… Simplesmente gritar, ou sentir.
Mal sabiam todos eles que estavam dentro de uma enorme caixinha de cereais abstrata, e que uma outra coisa espiava de fora para dentro, sorrindo e aguardando o espetáculo.
— E agora o Deus do Rock ‘N Roll vai apresentar uma música nova pra vocês. Com meu novo Transformer — Sunoo se livrou da guitarra no pescoço e correu para outra caixa jogada ao palco. Foi a hora exata em que Jake e os outros dois finalmente pararam de achar graça e franziram o cenho. Música nova? Guitarra nova? O maluco não tinha dito nada! Estava saindo da setlist no meio de um dos maiores shows da banda.
— Ei, Sunoo… — Niki tentou falar, mas o companheiro já estava voltando correndo para a frente do microfone. Jake trincou os dentes e estava pronto para deixar seu lugar e ir puxar Sunoo para uma conversa, mas Heeseung o parou, balançando a cabeça em negativa. Não era a primeira vez que aquele idiota queria improvisar, sempre tentando ser igual às lendas do passado, e os outros do Nebula geralmente conseguiam entrar na onda. Não era algo que precisava de brigas ou carros de polícia. Sunoo sempre avisava sobre essa idiotice antes, mas não deixava de ser um improviso. Eles podiam relaxar.
Sunoo olhou para o público, sem sorrir. A nova guitarra era pesada e quente. Se a tocasse por tempo demais, seus dedos iriam sangrar. As cordas eram de arame farpado e cheirava a enxofre. Era uma guitarra especial de um pedido especial para um público especial. Ainda assim, ele olhou para aquelas pessoas inúteis que não deviam nem saber o seu nome e não sorriu. Engoliu em seco com força e disse:
— Minha nova música está bem aqui. Vocês vão apreciá-la como se fosse a última vez.
Os gritos foram estrondosos. Sunoo sorriu e sentiu um pouco de medo. Mas o medo não era maior do que a repulsa de enxergar aquelas pessoas que erguiam a cabeça e não o viam realmente, então ele tomou um grande fôlego de coragem e dedilhou a primeira nota.
O som passeou por cada pedaço de pele do espaço como vento de tempestade. Jake, há alguns metros atrás no palco, sentiu o chão tremer, mas achou ser apenas uma ilusão de ótica. Aquela guitarra era estranha e de um material que ele nunca tinha visto, mas de que importava? Não queria saber onde Sunoo arrumava aquelas coisas. Então, continuou prestando atenção em onde o amigo queria chegar com aquele som para poder tentar seguir o mesmo fluxo.
No entanto, aquela música era diferente de tudo que ele já viu. Quando pegava um ritmo, mudava para outro. Sunoo movia apenas seus dedos e quando grudou a boca no microfone novamente, não estava cantando… em inglês. Aquela era uma outra língua, uma que Jake nunca tinha ouvido. Olhou para Niki e Heeseung, mas os dois permaneciam vidrados, olhando para aqueles movimentos nos dedos de Sunoo enquanto começavam a ficar vermelhos. A pingar para o chão. Pingar… sangue. Jorrando de seus dedos indicadores, tocando e tocando ainda mais rápido enquanto a língua dele se embolava naquelas frases esquisitas sem parar.
Jake percebeu um segundo tarde demais. Percebeu que o sangue descendo para o tablado não vinha apenas dos dedos de Sunoo. Vinha de mais acima. Vinha de seus ombros. Vinha de seus braços. Vinha de seus olhos. E…
O sangue estava por toda parte.
Havia sangue em seus próprios braços, em seus próprios dedos, em seus próprios pés. Molhando-o como chuva, empapando suas botas. De repente, o grito do público que enchia aquela parte longínqua do parque soou com outra melodia. Não uma linear e constante, mas estrondosa e dolorida. Desesperada. O primeiro grito de dor veio com o barulho do forte impacto do corpo no chão. Um após o outro, eles começaram a esganiçar e cair. A chuva, a tão temida chuva, não lavava seus rostos; sujava. Cada gota de sangue caída dos céus formava um novo grito na garganta, uma nova cratera no âmago do ser. A gota caía, o estômago explodia. Uma garota vomitou as próprias tripas, literalmente. Um outro cara cravou as unhas na própria garganta. Uma pequena parte tentou correr, mas a chuva estava por toda parte. Acabaram tendo as pernas decepadas por vermes que escaparam dos ossos.
Sunoo continuava cantando. Alegre, confiante, dominador.
A morte era a resposta de todas as suas orações macabras.
Jake não sabia de mais nada. Assustado, olhou para o lado, para os outros amigos, mas não é que eram mais seus amigos. Niki era um corpo jogado de lado em cima do tambor da bateria, com uma das baquetas fazendo volume na pele da garganta, enquanto a outra era inserida pelo nariz até vazar pelo crânio. Heeseung era um tronco curvado sobre o teclado, pingando de sangue pela chuva macabra que caía, mas seu rosto escondido não deixava Jake ver muita coisa. Só um corpo parado e imóvel, não mais vivo, não mais respirando.
Jake tentou atravessar aquela pequena parte do palco na direção de Heeseung, mas sentiu o corpo pesar. Caiu no chão na mesma hora em que o pé tremeu e virou, quebrando o osso por completo. Caiu sozinho, quebrou sozinho. Ele gritou e se contorceu, caindo na pequena poça de sangue que empapou seu rosto. Gritou o nome de Sunoo, gritou para qualquer coisa. O amigo da guitarra girou o pescoço devagar, vidrado, e Jake sentiu raiva daqueles olhos. Não eram os de Sunoo, eram negros e diluídos em maldade. O rapaz tentou se arrastar pelo chão, tentou pensar em algo que o impedisse. Seu outro pé torceu. Sunoo riu de maneira sincronizada com que cada osso se partia. O tipo de risada maléfica que emanava de um só corpo, mas de uma alma que não estava sozinha. Sunoo não estava sozinho.
Jake tentou mais uma vez. Os gritos de agonia enchiam seus ouvidos assim como a chuva de sangue enchia sua boca, seus dentes, seus olhos. Sentia tudo se quebrando dentro de si, ligações de tendões se rompendo, as caras de agonia dos outros se desmanchando no mar de vermelho. Os dedos de Sunoo foram parando lentamente, imersos em feridas e sangue, mas que pareciam estar se fechando automaticamente. O vocalista soltou uma gargalhada à medida que o pátio ia entrando no silêncio, a morte tomando conta e calando as últimas gargantas da plateia.
Sunoo se virou para o amigo ainda meio vivo, agonizando no chão molhado, os olhos de besta tomando seu rosto acompanhando a linha do sorriso imensa enquanto se abaixava ao seu lado e dizia:
— Dói, Jake? Eu imagino que sim. Doeu em mim também — ele estendeu os dedos em carne viva e esmigalhados até os ossos para o garoto, mas o tecido tinha parado de jorrar sangue. Estavam voltando ao normal aos poucos — Doeu pensar que o sacrifício tinha que ser tão grande, mas quem se importa? Foi divertido no final, você não achou?
Jake não estava mais raciocinando. A consciência dele caminhava para a morte, caminhava para a escuridão total. A única coisa que sentia era a raiva e o ardor. E o brilho do sorriso de Sunoo emitia uma vitória certa.
— Não se preocupe, Jake — o sussurro grotesco e macabro ressoou nos ouvidos do garoto quase morto — Eu consegui o que queria. Agora sou o novo Deus do Rock ‘N Roll.
E então, levantando-se de novo, Sunoo segurou a guitarra bizarra e se voltou para o seu público imerso em vermelho de sacrifício, e a última imagem que se fechava no olho de Jake era de que outra silhueta estava ao lado do amigo, pareado, o dono da morte e que havia anotado o nome de Sunoo quando pegou sua alma.
O verdadeiro Deus do Rock ‘N Roll.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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