capítulo único
O casamento começaria às três da tarde.
Definitivamente atrasada, eu desci do Uber na Avenida Boa Viagem para esperar uma amiga rica de Luana, a noiva, me dar uma carona até Aldeia – o município bem pertinho (mas longe se você não tiver um carro) de Recife, onde normalmente aconteciam os casamentos que pretendiam esboçar uma vibe mais campestre. Em Recife, quanto mais rico você é, mais perto da praia você mora. E a tal amiga da noiva morava bem na frente, que era onde eu estava para esperá-la, sem internet, por não ter pagado a conta por alguns meses. Tinha certeza de que Virgínia me mandava mensagens que eu nem ao menos recebia.
Estava no lugar marcado uns vinte minutos depois. Meu sapato, pessimamente escolhido num lapso aleatório de atraso, não cabia direito no meu pé. Por sorte, o vestido longo cobria o meu tornozelo onde o fecho não atacava, mas eu andava com certa dificuldade. Não tinha me preparado para o casamento – essa era uma falta minha e que eu assumia sem muita culpa. A maquiagem leve e o cabelo solto com certeza se destacariam diante da performance quase angelical dos penteados complicados das outras mulheres que frequentariam o evento. Da própria Virgínia.
Já meio suada pela correria e pelo calor, quis fumar um cigarro enquanto esperava, só pelo tédio mesmo, só para me distrair da ansiedade de ter atrasado tudo e talvez não conseguir me comunicar com a garota insuportável que gentilmente se propôs a me dar uma carona. Mas não precisei, porque ela chegou pouquíssimo tempo depois.
— Oi, — ela me cumprimentou enquanto eu entrava no carro.
— Nossa, desculpa por ter atrasado. Deu tudo errado.
Virgínia era simpática, gostava de puxar assunto e sorrir, o que facilitou um pouco as coisas. Eu sabia algumas coisas sobre ela: morava na avenida, gostava de ir para o Carvalheira e tinha se formado em administração pela Católica, que era conhecida como PUC em outros estados, mas que, lá em Recife, não tinha tanto prestígio assim. Costumava frequentar a mesma igreja que eu e trabalhar naqueles Encontros de Jovens com Cristo, porém não era lá muito envolvida.
— Tudo bem. A Lua também atrasou. Parece que Bernardo levou a camisa errada pra Aldeia.
Eu ri. Era típico de Bernardo lembrar de coisas inúteis e esquecer coisas importantes. Não que estivéssemos tão próximos assim na época do casamento, mas alguns anos antes, sim, com certeza. Teve uma liberdade jamais vista em frequentar a minha casa. Meus pais, que nunca gostavam de ninguém, o adoravam, e Luana esteve sempre comigo por um bom tempo. Foi no meu quarto, enquanto Bernardo tocava violão e fazia piadinhas bizarramente engraçadas de péssimo gosto, que ela se apaixonou por ele. E, agora, Bernardo e Luana iriam se casar.
— Ele não vai mudar nunca.
Acho que ela não notou, naquele momento, o tom nostálgico na minha voz. Todo mundo achava que nós ainda éramos incrivelmente próximos, e não os julgo, mas fazia meses que eu não trocava uma mensagem com ele. Nem com Luana. Nada além de um WhatsApp meio desinteressado explicando para ela que eu não tinha carona para o casamento, torcendo para que ela me dissesse que estaria tudo bem se eu não fosse, mas com um “como você tá se sentindo?” no final para que não soasse tão apática. Ela me respondeu que estava bem, que era uma noiva calma e que com certeza daria um jeito para que eu fosse. Ela deu. No dia do seu casamento, me mandou algumas mensagens durante a manhã para resolver essas questões burocráticas.
Foi assim que acabei no carro com uma patricinha simpática. Virgínia parecia meio desesperada em não deixar o silêncio tomar conta do carro, e eu agradeci mentalmente porque eu não queria me esforçar. No caminho, pegamos outras duas amigas de Luana. Elas conversaram entre si por um tempo, elogiando a maquiagem, o cabelo e o vestido uma da outra, falando sobre o quão bonita estavam. Me perguntei, naquele momento, se eu não estava bonita também, mas tentei deixar para lá. Elas estavam dentro do padrão. O padrão que eu, secretamente, queria me encaixar, e eu me repreendi por me importar naquele momento. Me forcei a me desinteressar de novo e acho que consegui.
Me mantive em silêncio por quase todo o percurso, dando uma risadinha ou outra quando alguém me mencionava ou fazendo comentários pontuais quando conseguia pensar em algo interessante para dizer, só pela obrigação social, só para não parecer tão amargurada. Conversavam sobre festas que eu não ia e casamentos que eu nem sabia que tinham acontecido, mas que pareciam ser eventos imperdíveis. Perdi um pouco do interesse em algum momento entre a vez que uma menina do banco de trás mencionou o nome da maquiadora que tinha lhe atendido por trezentos e cinquenta reais ou a vez em que Virgínia comentou sobre quando disse à amiga prestes a casar que ela não iria caber no vestido pois estava gordinha demais. O álbum mais recente do Justin Bieber tocava no fundo. Fiquei, na verdade, impressionada com a quantidade de amigos dispostos a casar que elas tinham. Os meus estavam mais para engravidar sem querer ou passar num concurso em outro estado.
— , por que tu não foi pra despedida de solteira da Lua? Achei que você ia...
Porque eu não fui chamada.
— Ãhm… Eu nem lembro, visse? Mas com certeza algo que eu não podia faltar. Jamais perderia.
Me puni mentalmente logo depois de dizer – puta merda, quem diz que não lembra de algo que aconteceu no mês anterior? Mas preferi ignorar o constrangimento pela pergunta inconveniente e seguir torcendo para que o trajeto demorasse o mínimo possível. Eu perderia, sim, como perdi o jantar de noivado e toda a organização do casamento, como eu perdi o chá de panela. Foi a primeira vez que me senti mal sobre estar sendo uma amiga relapsa para Luana e Bernardo depois de nos afastarmos.
Mas o inferno mesmo começou quando eu cheguei lá. Tudo estava muito bonito, realmente, algumas mesas com flores, o lugar aberto e uma mesa cheia de doces que eu planejava roubar depois. O céu aberto esbanjava uma luz amarelada no jardim arbóreo em que as mesas estavam colocadas, bem perto de onde aconteceria a cerimônia. Não era um casamento tão grande assim, com, em média, cento e vinte pessoas. O problema é que eu não sentia vontade de interagir com nenhuma delas.
Reconheci por rosto algumas que eu conhecia e cumprimentei rapidamente. Pamela, uma dessas pessoas, me viu de longe e me chamou para sentar na mesa dela.
Conversamos um pouco. Eu a conheci antes mesmo de Luana, mas ela foi escolhida para ser uma das madrinhas do casamento. Aproximaram-se porque passaram a frequentar a mesma igreja, com os mesmos ideais presbiterianos. Ela me perguntou algumas coisas. Tinha vinte e três anos, casou cedo. Pensava em ter filhos. Perguntou se eu não tinha essa vontade.
— Não muito. Morro de medo do parto.
— Ah, eu quero uns cinco — ela disse com um sorriso aberto.
— Sério? Depois do governo Bolsonaro?
Riu, meio sem graça. Ela havia votado em Bolsonaro.
— Eu quero ter uns cinco. Seis, sete. Quanto mais melhor.
Contive um arregalar de olhos.
— Nasceu pra ser mãe.
Mas eu estava sendo secretamente irônica. Ela não precisava saber.
— Lembro que você queria também. A gente super conversava sobre isso.
— Eu era bancada pelos meus pais na época.
Pamela riu por educação, eu sabia. Tinha certeza de que ela julgava minhas escolhas por dentro, estranhava minhas mudanças. Eu já tinha feito isso com outras pessoas também. Era comum nas pessoas que cresceram imersas na igreja evangélica brasileira: achar que a única forma de ser feliz é tendo uma família tradicional, casar cedo para transar, ter filhos, talvez um deles virar pastor ou ministro de louvor. Pamela falou sobre ir para a igreja de manhã e de noite nos domingos. Deve ser cansativo, eu respondi. Ela me disse que o trabalho de Deus sempre recompensava.
Eu discordei. Sentia que os anos perdidos numa igreja fundamentalista jamais voltariam para mim.
— E você, tá indo pra qual igreja?
— Nenhuma.
Respondi, simplesmente. Ela assentiu. Talvez realmente não se importasse, mas sabia que fofocaria sobre depois. Eu não ligava. Queria mesmo procurar um lugar para fumar um cigarro sem que se tornasse um evento. Pensei sobre ser viciada e ignorei o pensamento.
Não havia passado quarenta minutos e eu já me sentia exausta de todo aquele dia, de todas aquelas pessoas. Não que todo cristão fosse insuportável, eu mesma costumava ser uma das legais. Me considerava mente aberta. Mas aquela impressão inconsciente de que todos os outros estão errados e que você, de alguma forma, é superior por ter o Deus verdadeiro se tornava meio irritante à medida que o discurso se repetia.
Como se não tivessem outro assunto. Como se não soubessem como não colocar Jesus ou uma piadinha homofóbica no meio da conversa.
E, quando eu achei que não poderia piorar, senti alguém tocar meu ombro insistentemente.
— ?
Era o meu ex-namorado.
— Oi — eu disse, forçando uma empolgação que não existia. Era bonitinho, charmosinho, cheirosinho, um almofadinhas. Alto. Transava mal. Tinha algumas tatuagens, usava o cabelo para o lado, agia como um cristão progressista, mas era dono de opiniões extremamente conservadoras. No entanto, naquele ponto, cinco anos antes, eu só queria que alguém chupasse minha boceta, mesmo que chupasse mal. Nós fomos impuros juntos várias vezes, mas pedíamos perdão depois. Só consegui terminar com ele na terceira vez que tentei porque ele sempre acabava chorando muito. Terminei porque achei que Deus tinha me dito para fazê-lo, porque o meu pastor me aconselhou que este não era o plano divino, que ele não era o homem para mim, e chorei culposamente todas as vezes que cedi em voltar porque achei que estava sendo desobediente. E também achei que deveria ser missionária no Sertão e coisas do tipo.
— Quanto tempo!
— É.
— Fiquei pensando se você vinha.
— É claro que viria. É Luana e Bernardo.
— Ele me falou que vocês não têm se visto.
— Eles estavam ocupados em planejar o casamento. Eu estava ocupada com a monografia. Sabe como é, vida adulta e tal.
— Você apresentou?
— Sim, foi bem legal.
Ele sorriu, meio admirado. Enquanto eu olhava para ele como se a existência fosse um constrangimento absoluto, ele parecia ignorar a tensão contínua que se instalava entre a gente, como se fôssemos próximos.
— Que massa! O que acha de a gente tomar um sorvete depois daqui? Eu quero saber como você tá. Acho que deve acabar pelas nove da noite.
Não. Sorvete?
— Claro, vamo sim, eu te procuro — mas eu obviamente não iria.
— Você não quer sentar comigo? Veio com alguém?
— Vim. Com a Virgínia. Ela deve estar me procurando feito doida…
Menti. Ele riu.
— Como se você fosse ficar amiga de Virgínia.
Eu fiz uma careta. Ele estava acostumado com as minhas caretas, por isso não se importou. Costumava gostar.
— Eu sei que você tá desviada. E que agora assumiu que é petista. Fica fumando maconha pelo Antigo, né? Eu sei.
Eu não estou desviada, pensei – o tal caminho só não é o caminho certo para mim. Mas petista sempre fui. De todo jeito, desviei da pergunta. Ele falava do Recife Antigo, point dos maconheiros e da esquerda alternativa de Recife, o qual eu realmente frequentava.
— Eu sempre assumi que era petista.
— Seu maior defeito — brincou, mas, à certa altura do campeonato, estava cansada dessas brincadeiras. Estava cansada das conversas permeadas por um julgamento esdrúxulo e pedante.
Revirei os olhos sem pesar.
— Vou no banheiro.
— É pro outro lado.
Mas o ignorei e segui sorrindo para pessoas aleatórias enquanto encontrava um lugar escondido para fumar. A cerimônia estava prestes a começar, mas eu precisava urgentemente ficar sozinha sem ter que ouvir sermão ou ter pessoas questionando as minhas escolhas. Era um ambiente de muito julgamento, acho que como a maioria dos ambientes, mas esse era pior. Como se não fossem erros, como se não fossem decisões: eram questões de vida ou morte, eram pecados. A sensação era de que tudo que eu trabalhava incessantemente em terapia perdia um pouco de força toda vez que eu tinha uma dessas conversas.
Era uma das coisas sobre a igreja que me incomodava muito também: um forte sentimento de que eu era completamente descartável caso não andasse na linha, porque me tornaria uma escarnecedora, e Davi disse em algum salmo que não deveríamos andar com eles porque nos afastavam de Deus. Naquele lugar, eu sentia como se tivesse uma placa pendurada no pescoço: precisa ser evangelizada. Ela não está feliz, isso é um pedido de socorro. Mas, naquele momento mesmo, eu só precisava de um cigarro. Era quase como se Deus fosse o meu ex-namorado.
Me escondi perto de uma pequena casa de tijolos amadeirados onde ficava a cozinha e me recostei numa pilastra, fechando os olhos logo depois de tirar o cigarro do bolso e acendê-lo. Traguei como se minha vida dependesse disso e soltei como quem vomita. A nicotina fazia eu me sentir menos ansiosa. Pensei estar viciada de novo, mas ignorei o pensamento de novo, como eu sempre fazia porque não queria parar de fumar.
Alguma coisa sobre fixação na fase oral etc. Enquanto fumava, eu pensei que, às vezes, sentia falta do conforto que a ideia de Deus me trazia. Quase como uma paz. Era passageiro e momentâneo, mas não consigo discernir se era real ou não. Talvez fosse. Ou talvez fosse algo que tinha surgido da minha cabeça porque eu precisava de um lugar seguro e alguém que me amasse incondicionalmente.
Eu sentia, sim, muitas vezes, que Deus, ou Jesus, ou o Espírito Santo me amavam muito. Como se eu tivesse sido escolhida para algo, criada com um propósito. Acho que permaneci viva, algumas vezes, por esse sentimento. É realmente incentivador. Uma pessoa que me amasse independentemente de qualquer coisa, que estava em todos os lugares, que cuidaria de mim e se vingaria por mim. Eu conversava com essa pessoa todos os dias da minha vida. Era quase transcendental receber uma resposta. Se havia uma certeza dentro de mim, era a de que o amava de volta. De que estava disposta a fazer qualquer coisa por esse amor.
Hoje, me perguntava quem era essa pessoa com quem eu conversava. Uma parte de mim? Uma outra personalidade? O próprio deus que eu não acreditava mais?
Nunca consegui encontrar uma resposta.
Um rapaz de terno azul marinho se colocou ao meu lado, mas nem ao menos me percebeu. Ele andava de um lado para o outro, tinha uma pequena flor presa no peito e parecia nervoso. Eu traguei meu cigarro olhando para ele enquanto tentava reconhecê-lo. Talvez eu devesse apagar, pensei, mas não me motivou o suficiente para fazê-lo, então eu só esperei que ele fosse embora. Porém, ele tomou um susto ao me ver.
— Puta merda, ?
Era primo de Luana. Eles sempre foram bem próximos, mas eu não falava muito com ele. Notei quando ele levantou o rosto e olhou para mim. Estava crescido. Mais alto e encorpado, bem bonito na verdade. Eu nunca tinha olhado para ele antes. Ele era só o primo mais novo de Luana, e eu namorava. Não podia olhar para nenhum outro cara.
— Oi, .
O nome dele era , mas todo mundo o chamava de , então eu chamava também. Ele deu uma risada.
— Você? Fumando?
Contive um “e daí, porra?”, mas sorri.
— É. Loucura, né?
— Você era tão…
— Crente?
— Aham.
— É.
Rimos juntos.
— Você tá fazendo o que aqui?
— Me escondendo, tentando não surtar. E você?
— Ué, fumando. Se escondendo de quem?
— De todo mundo. Eu… fico nervoso em aparecer em público — expirou. — O que eu não faço por Luana, né?
— É.
Respondi com um sorrisinho. Realmente. O que eu não faço por Luana.
Luana era uma das melhores pessoas que eu já havia conhecido, o que me fazia pensar seriamente sobre a minha teoria de odiar pessoas que haviam sentado o dedo no dezessete. Era compassiva, alegre, carinhosa, preocupada, mas muito certinha, e não abria mão de um bom sermão quando necessário. Nossa amizade era muito bonita, nós cuidávamos muito uma da outra, dávamos incentivo uma à outra a ler a Bíblia, conversávamos muito sobre Deus e sobre nossa missão no mundo. Ela havia acabado de sair de um relacionamento ruim, eu também, e ela também tinha uma postura muito maternal quando a minha mãe sempre era rígida demais. Ela fazia tudo por mim, eu faria qualquer coisa por ela. Nós trocávamos mensagens o dia todo por WhatsApp e nos víamos mais de uma vez durante a semana por uns bons anos. Em determinado momento, acho que cansamos de nos doar tanto uma pela outra. Foi logo quando Bernardo me contou que estava tendo sentimentos por ela. Foi na mesma época, também, em que comecei a questionar minha vivência na igreja pela primeira vez.
De todo jeito, era bonito que a família de Luana fosse tão unida. Ele provavelmente era um dos padrinhos, eu não teria certeza porque não sabia de nada daquele casamento. A gente se olhou um pouco sem saber muito o que falar, afinal, era a primeira vez em todos os anos que a gente se conhecia que a gente conversava de verdade, e era a primeira pessoa de toda a festa com quem eu não me sentia terminantemente ansiosa.
— Posso tentar?
— Não fui eu que te dei.
Dei meu cigarro para ele, que tentou tragar, tossiu com uma expressão de repulsa e me devolveu.
— Isso é horrível. Que gosto horrível.
Eu dei uma risada.
— Por que você pediu, então?
— É bom pra ansiedade, né?
— É mesmo. Rivotril talvez tenha um gosto melhor.
— Luana me mataria.
Dei de ombros. Ele riu de novo. Eu ri também, mas não sabia necessariamente do que estávamos rindo, então eu perguntei.
— Por que você tá rindo?
— Olhar pra sua cara me dá vontade de rir — ele disse, passando a mão no rosto. — É sério. Eu não posso olhar pra tu lá na frente. Você me ofereceu Rivotril.
— Ei, calma, eu sugeri. Meu Rivotril ficou em casa.
Acho que ele levou como uma piada, mas eu falava sério. Ouvimos, do microfone, a organizadora chamando todos os padrinhos e madrinhas para se colocarem em posição. Ele fez uma expressão desesperada.
— Vai dar certo. É só não tropeçar.
Ele assentiu e saiu andando.
— Não olhe pra mim enquanto eu estiver lá na frente.
Eu me sentei sozinha, numa das fileiras lá atrás. A música começou a tocar, e eu fiquei instintivamente nervosa. Era uma música do Tiago Iorc chamada Cataflor, de quando ele ainda fazia músicas boas e não estava quebrando tabus por aí. Era uma música que Bernardo tocava no violão e nós cantávamos juntos na sala da minha casa numa das infinitas tardes que passamos juntos, nós três, só porque nós éramos grudados assim. Havia certa nostalgia dentro de mim, era estranho. Eu e Luana, principalmente, sonhávamos muito com o dia do casamento, como todo cristão. Receber a benção do pastor, declamar votos e promessas de eternidade, celebrar o matrimônio e, finalmente, ser liberado para transar. Algo que continuou sendo importante para ela, que continuava virgem apesar das puladas de cerca com o namorado anterior, mas perdeu o sentido para mim com o passar do tempo e o distanciamento da religião. Havia também uma tristeza em não me identificar mais com aquilo. Quero dizer, era divino, um orgulho até, o sentimento de propósito. A vida ter um propósito, o casamento ter um propósito, como duas pessoas que tiveram seu destino traçado para se encontrar, algo que Deus planejou e fez acontecer. Era seguro. Puro. Cintilante. Eu sentia que isso havia sido roubado de mim, às vezes arrancado, e, em momentos como aquele, eu quase os queria de volta, só pela beleza. Mas, rapidamente, me lembrei de como tudo isso tinha gosto de um sonho do qual eu já tinha acordado, e me pareceu coerente acordar.
Outras músicas tocaram, os padrinhos foram entrando, um por um, a família de Bernardo e a de Luana, até que ele entrou com sua mãe, Gabi, que me viu lá da frente e sorriu para mim como quem vê uma estrela cadente. Bernardo, emocionado, deu um sorrisinho para algumas pessoas, e eu sabia que ele havia me visto, nossos olhares se cruzaram, mas ele não exprimiu nenhuma reação. Devo admitir, eu estava orgulhosa e emocionada.
Não me entenda mal. Talvez eu esteja mesmo muito ressentida com essa coisa toda de igreja, mas estava feliz que eles estavam felizes. E, naquele momento, enquanto Bernardo procurava ansiosamente por Luana com o olhar, esperando incansável que ela finalmente entrasse pelo caminho do tapete por cima do gramado, eu percebi que para sempre o amaria.
Em determinado momento, depois de alguns minutos, a marcha nupcial tocou, e todos se levantaram. Eu olhei para ela. Os celulares estavam todos levantados, mas eu nem peguei o meu, porque eu só conseguia sentir um calorzinho palpável no meu peito. Luana estava linda, entrava de braços dados com o pai. O vestido era composto, com mangas, alguns detalhes de renda no busto e tinha uma cauda enorme. O cabelo trançado para trás e um sorriso enorme no rosto. Eu vi que eles se olhavam. Eles sibilavam piadinhas enquanto ela andava porque Bernardo não conseguia se conter. E, quando ela se posicionou, virou-se para frente, sorriu para algumas pessoas e finalmente nossos olhos se encontraram. Ela assentiu pra mim. Sustentamos o olhar por alguns segundos quase espirituais. Por fim, virou-se para Bernardo.
Ali, senti que havia feito a minha parte. Que estava tudo bem. E senti que a amaria para sempre.
Logo depois, desviei o olhar para . Ele estava olhando para mim e ria discretamente com a mão no lábio.
O pastor falou por alguns longos minutos sobre aquele capítulo famoso, Coríntios 13, que fala sobre o amor ser paciente e benigno. Pensei que ele poderia ser menos óbvio. Pensei que eu poderia estar ministrando aquele casamento se tivesse seguido minha vida de pastora, ou se continuássemos muitíssimo amigos como éramos, ou se Bernardo não fosse tão presbiteriano assim. Pensei em todas as coisas que se poderia pensar, mas o tempo não passava. Tentei me distrair encarando , então.
Eu nunca tinha me sentido atraída por ele, mas, de repente, ele havia ganhado alguma coisa. Não sei se era porque eu achava que era fofo que ele estivesse tão nervoso aparentemente sem motivo, não sei se era porque não tinham outras opções de pessoas com quem fosse possível conversar, mas alguma sinergia magnética aconteceu por ali – eu podia sentir no jeito que ele olhava para mim. Achei o cabelo bonito, os olhos curiosos. Ele parecia emocionado também. Luana era quase uma irmã para ele. Senti vontade de chamá-lo para conversar depois da cerimônia.
Eventualmente, depois da cerimônia, vi Bernardo e Luana tirando fotos com todas as pessoas da festa, passando de um por um, enquanto os fotógrafos os seguiam. Assim que saí da fila do bufê, com meu pratinho cheio, eu olhei ao redor e me senti deslocada. Não tinha mesa para sentar. Todas pareciam estar preenchidas por seus pequenos grupos, e eu não me sentia confortável para chegar em nenhuma. Olhei ao redor, o ex-namorado conversava com alguns amigos de Bernardo. Respirei fundo e fui me sentar num pequeno sofázinho que ficava mais distante de onde a pequena festa acontecia. Os garçons passavam por mim com água, suco e refrigerante. Eu fiz severas reclamações mentais. Como assim um casamento e eu não tenho nem mesmo uma tacinha de gim com tônica para tomar? Um champagne? Um vinho? Jesus tomava vinho. Não foi num casamento que ele transformou água em vinho? Onde é que ele estava, afinal, quando se precisava d’Ele e de sua mágica alcoolista? Foi para isso que me desloquei por mais de oitenta quilômetros?
Me sentei, meio frustrada, e peguei meu celular. Por sorte, a casa de festas era tão chique que providenciava uma rede de wi-fi que funcionava o suficiente para eu mandar uma mensagem de socorro no grupo com as minhas amigas e dar uma checada no Instagram. As pessoas já estavam postando stories do casamento. Enquanto comia com o prato no meu colo, que era de uma massa bem gostosa com molho de queijo e filé mignon (por Deus, eu nem lembrava a última vez que tinha comido carne. É difícil comprar carne no governo Bolsonaro quando se mora sozinha). Enquanto comia, distraída, olhando em volta e finalmente em paz por não precisar interagir com nenhum liberaleco, eu notei que alguém caminhava até mim pela visão panorâmica. Era . Talvez tenha tido dó da minha solidão. Mas eu estava ok. Digo, estava tentando colocar em prática aquele ditado: antes só do que mal acompanhado. Mas me parecia a menos pior das companhias ali. Sentou-se ao meu lado, com seu próprio pratinho.
— Eu lembrava de você ser mais simpática e popular entre os crentes.
Encolhi os ombros como quem não se importava muito.
— Eu até que sou simpática até hoje, mas popular eu acho que é um conceito relativo. Por exemplo, na minha bolha, eles é quem não são populares.
riu.
— Eles não têm muitos assuntos à parte dessa coisa de igreja, namoro, casamento, né? — criticou. — Foi uma coisa que sempre me incomodou. A Lua não é muito assim comigo. Acho que porque eu nunca fui muito interessado.
— É. Mas acho que é estranho pra ela que eu não faça mais parte desse mundo. Foi como a gente se aproximou etc. Eu costumava ser bem…
— Rígida? Moralista? Metida a sabe tudo da Bíblia?
Eu ri.
— Você guardou essas por um bom tempo, né?
— Fazia questão de dizer que já tinha lido a Bíblia inteira e blá blá.
— Ei, eu precisava ganhar do Bernardo! Ele terminou depois de mim! Nunca vou deixar de esfregar isso na cara dele, por mais que, hoje em dia, o conteúdo esteja em desuso.
— Acho que gosto mais de você agora — ele disse, e olhou para mim com um sorriso.
— Eu acho que eu também.
Voltamos a comer, mas o silêncio não era desconfortável, apesar de não sermos muito íntimos. Pensei sobre o que ele disse, sobre ter dificuldade em aparecer em público, sobre estar sozinho comigo e distante de todas as outras pessoas que pareciam querer sua atenção. Julguei, por meus próprios critérios, que ele fosse introvertido, no mínimo tímido. E me senti bem com o pensamento de que talvez eu também fosse a pessoa dessa festa com quem ele se sentia confortável, além de seus pais.
Ele deu uma risada.
— Você quase me fez passar vergonha lá na frente. Eu te falei pra não olhar pra mim.
— Você tava olhando pra mim primeiro! — eu respondi, rindo um pouco.
— É verdade. Mas é porque você tava bem bonita lá de longe.
Dei uma risada e me virei para ele, que estava um pouquinho virado para mim também. Ele me encarava intencionalmente, os olhos, as sobrancelhas, os ombros tensos e o rosto próximo.
— De longe, né? — balancei a cabeça em negação, passando a língua pelos lábios. — De longe, você ficou bem bonito também.
A gente se olhou por um tempo. Tinha um ar meio frio que nos rondava, era noite de lua cheia, a parte do sofá que ficava perto da piscina era a menos iluminada. Observei os traços do seu rosto e de seu penteado agora que estava desfeito, no qual seus cabelos caíam pela testa. Não usava mais o terno, só uma camisa social azul que caía muito bem no seu torso e braços. Eu poderia beijá-lo ali, mas, num lapso de consciência, não o fiz. Só para não escandalizar.
— Quer dar uma volta?
— Pelas mesas?
— Pelo condomínio. — ele deu de ombros. — A gente fuma um beck, dá uma volta e vem matar a larica nas mesas do bufê. Ninguém vai notar.
— Eu me sinto com catorze anos de novo escondendo do pastor que tinha tomado uma Ice.
Ele riu.
— Vamo ou não?
— Você me ganhou no “beck”. Tem colírio?
— Eu sou um profissional, . Só me siga.
Deixei meu prato na mesinha de centro, assim como ele fez com o dele, e só o segui andando até a parte de fora da casa de onde acontecia a cerimônia. Andamos um pouco, descemos uma ladeira gigantesca e meio escura até, e eu me segurava no braço dele porque o meu salto não atava e isso dificultava um pouco as coisas. Ele riu quando eu expliquei.
— Como você vem para um casamento com um sapato que não ata?
— Eu estava atrasada. Mas eles estariam lindos no meu pé se tivessem atados, ó. Belíssimo.
— E você não tá 100% me enrolando porque também tá triste de ter vindo com o sapato errado?
Suspirei.
— Tô, tô te enganando. Eu ligo. Mas parece que não quando o meu inconsciente me coloca nessas situações.
— Não acho que tenha sido seu inconsciente.
— E o que foi, então?
— Sei lá. Talvez você só não queria lidar com o fato de que seus antigos melhores amigos estão casando.
— Eu tô feliz por eles.
— É, mas acho que deva ser estranho que vocês achassem que isso ia acontecer de uma forma e agora você tá aqui, meio deslocada. Não pensou nem no sapato que ia usar.
— Tudo tá diferente demais.
Nos sentamos numa pedra perto das árvores. Já era noite. A gente sentou longe o suficiente para que ninguém sentisse o cheiro. Estava meio escuro, um pouco frio, de certo tinha o friozinho na barriga de estar num lugar desconhecido. Ele me pediu o isqueiro e eu dei. Acendeu o baseado.
— Com você e a Lua?
— É. Com o Bernardo também.
— O que aconteceu…?
A gente passava o baseado um para o outro logo depois de tragar. Me perguntei até que ponto eu poderia me abrir sobre isso, mas não podia mentir, existia em mim uma vontade de conversar sobre. Olhei para o rosto dele, que também me encarava atentamente. Não parecia mais tão tímido quanto antes, só interessado. Eu abraçava as minhas pernas no vestido com o rosto virado para ele, que apoiava o cotovelo em seus próprios joelhos.
— A gente cresceu, eu acho. É difícil manter uma pessoa na sua vida que só… não faz mais sentido. Por mais que tenhamos tentado.
— Porque você saiu da igreja?
— Não. Acho que porque nós não conversamos sobre muitas coisas e, ao mesmo tempo, discordamos sobre todas as outras. Tudo piorou com as eleições também, eu até silenciei o Bernardo no Instagram. Ele descobriu depois, ficou chateado, eu fiz piada, ele continuou chateado etc.
Ele riu.
— Acho que também ficaria chateado.
— Eu não queria deixar de gostar dele — dei de ombros. — E também não queria deixar de gostar da Lua.
— Teve um aniversário que eu perguntei por você. Acho que foi logo o primeiro ou o segundo que você não foi. Ela disse que você só frequentava lugares legalizados.
Eu ri.
— Que debochada! Eu fui pra porra da colação de grau dela!
— Com uma calça jeans e camisa do Metallica. Você tem uma certa dificuldade com as roupas dos eventos da Lua.
— Você lembra?
— Claro que eu lembro. Tudo que eu conseguia pensar era: por que raios uma camisa de banda? E ela escuta Metallica? Não deveria ser algo do tipo Aline Barros?
Virei um pouco os olhos, meio chapada e rindo, pensando na maneira como ele parecia me perceber nos lugares ou a minha ausência.
— Pra ser sincera, eu sempre me planejo pra dar uma desculpa e não ir, mas sempre acabo vindo. O que é que eu não faço pela Luana.
— Ela sempre fica feliz quando você vem.
— Não sabia que você prestava tanta atenção assim.
— Não tem muito como não prestar atenção em você — ele deu de ombros. Guardou a bituca para jogar no lixo e nos encaramos. Eu achei que ele fosse se inclinar para me beijar, mas não o fez. Os meus sentidos, aguçados pela cannabis, sentiam o cheiro gostoso do perfume que ele usava. A minha percepção alterada parecia sentir tudo mais intensamente, inclusive a tensão, a química que a gente estava trocando. Gostava do jeito que ele me olhava e de como parecia atento ao que eu dizia, de como nossos olhares sempre se cruzavam de longe. — Não quando você aparece com uma camiseta de banda enquanto todo mundo tá de roupa social etc.
A gente riu, e essa era mesmo uma risada de deboche contra todas as minhas decadências.
— Eu não escuto Metallica. A utilização da camiseta é puramente estética — dei de ombros. — Naquele dia, eu tinha ido pra outro lugar, só pra poder ter uma desculpa. Mas quando ela me ligou pela segunda vez, eu só… — suspirei.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. A maconha dele era fraca, mas boa o suficiente para me deixar entorpecida.
— É engraçado porque, mesmo que você não tenha se esforçado muito, ainda te acho a pessoa mais bonita da festa. — ele disse. — Fora a Lua, mas acho que essa é mais uma questão de respeito com a noiva.
Eu dei uma risada e queria beijá-lo. Mas Luana me mataria.
— Não. A Luana vai me matar.
— A gente tem que prometer que não vai falar pra ela. — estendeu o mindinho para frente. Eu debochei, com as sobrancelhas arqueadas, sem acreditar no seu método de juramento. — Anda. Só vou te beijar depois que você prometer.
Dei um sorrisinho controverso e estendi o meu dedinho também, que se cruzou com o dele. E a gente se beijou. A mão dele foi parar na minha perna enquanto a outra segurava meu pescoço, e ficamos assim por um tempo. A gente desceu, meio chapado e risonho, toda a ladeira que dava para o estacionamento onde o seu carro estava e fomos para o banco de trás, torcendo para que ainda fosse cedo o suficiente e que as pessoas não fossem embora ainda – pelo menos nenhuma que pudesse nos ver. Lá, eu me sentei no seu colo, com uma perna em cada lado de seu torso. Tirei o seu cabelo da testa e observei todo o seu rosto enquanto ele apertava as mãos ao redor da minha cintura e me pressionava contra o seu quadril.
A gente se beijou. E foi como se o dia inteiro tivesse valido a pena.
Bernardo estava na frente do portão enquanto nós andávamos até o casamento de novo. A camisa de levemente amassada, meu cabelo já tinha ido com Deus. Por sorte, a minha maquiagem era leve demais para borrar. Eu sorri para ele, que me encarava com certa surpresa e braços cruzados.
— Aí é loucura — ele nos encarou. — O que porra vocês estavam fazendo juntos? — Riu. — Ah, e , você perdeu a foto da família.
Ele olhou para mim com o rosto espremido em certa dor.
— Eu vou lá limpar minha barra.
Mas eu não me aproximei dele. Nos despedimos levemente com o olhar.
— Vai lá.
— Passa no banheiro antes!
Bernardo gritou. Eu dei uma risada.
— Você tava guardando essa?
— Guardando o quê?
Eu o abracei. Senti, em mim, um calorzinho se apropriar. Era um sentimento nostálgico, que aquecia e apertava. Ele me abraçou de volta. Tinha certeza de que não sabia sobre a maconha, mas com certeza tinha notado algo entre mim e .
— A sua forma de se vingar da Lua por ter te trocado por mim — falou, em forma de piada ácida, que eram as únicas que ele sabia fazer.
Acho que por isso que nos tornamos tão amigos. Eu não me ofendia.
Na verdade, acho que foi por isso que deixamos de ser tão amigos, também. Ele sempre acabava se ofendendo.
— A vingança nunca é plena, Bernardo, ela mata a alma e envenena.
Revirou os olhos.
— Conta logo o que aconteceu com você e porque já já chega um chato querendo tirar foto.
— A gente só beijou de boca na mata um pouco.
Ele me encarou. E depois riu.
Bernardo era sempre assim, não levava nada a sério, apenas umas coisas específicas que a gente tinha que adivinhar para que ele não acabasse ficando meio puto, porque, de certeza, ele não sabia lidar com frustrações mínimas inesperadas. Parecia, no entanto, ter amadurecido nessa questão.
— Quem é você? Lembra que você queria fazer corte?
Eu tapei a boca dele com as minhas próprias mãos enquanto ele debochava da minha cara. Corte é um modo de se relacionar comum à igreja evangélica em que o beijo só é permitido depois do casamento.
— Para, Bernardo, eu tô implorando! Não lembra disso!
— Você tinha convencido a Lua a entrar nessa!
— Bom, pelo menos eu desisti e transei antes de casar.
— É, não posso argumentar contra essa — ele deu de ombros.
Bernardo fazia piadas assim, mas a escolha era dele, também. Eu achava a fé dele muito bonita, na verdade. Daquelas que se abalaram várias vezes antes de se estabelecer. Bernardo parecia acreditar em Deus como se Ele fosse algo que se pode tocar.
— Eu estou feliz por você. De verdade. Eu sei que esse era o seu sonho desde sempre. Que você sempre amou a Lua.
Ele assentiu.
A gente estava bem na entrada ainda, em pé, e conversávamos meio distantes de todas as outras pessoas. Eu sentia que precisava dizer todas aquelas coisas para ele depois de todos os anos de rancor e ressentimentos em que eu fingia não me importar com o quão afastados nós estávamos. Precisava que ele soubesse que eu não tinha inveja dele por ter tomado para si a minha melhor amiga e feito dele. Que sim, eu me senti abandonada, mas que eu também os abandonei e reconhecia isso naquele momento. Ainda com alguns resquícios da erva na minha mente, eu queria ficar abraçada com ele por muito tempo.
— Eu só sempre achei que você fosse, sei lá, participar mais.
— Pamela ocupou meu lugar. Vocês vão ter que ser ricos pra poder acompanhar os presentes da quantidade de filhos que ela quer ter, inclusive. Boa sorte.
— Tio Bernardo vai mandar aquele help. Como sempre. Foi só por isso que me casei com a Luana. Você sabe. E também porque ela é bem gostosa. Foi depois daquele dia que a gente foi na praia que eu decidi. Lembra do biquininho roxo? Eu nunca vou esquecer.
Eu dei uma risada sincera. Sim, o pai de Luana tinha muito dinheiro. E também se chamava Bernardo. Eu o abracei de novo.
— Te amo pra sempre — eu disse.
E fui verdadeiramente honesta em cada palavra.
— Ninguém nunca vai ocupar o teu lugar pra gente.
E, quando a gente se afastou, alguém o chamou, e ele foi.
Estava com muita fome, o que minha classe chama de lara. Reencontrei com na fila do jantar. Em determinado momento, eu e éramos os únicos que continuavam comendo. A gente deu muita risada com o passar da noite, fazendo piadas bobas e comendo docinho de festa como se fosse um crime, mesmo que ninguém soubesse que a gente tinha usado qualquer coisa. Nós não mantivemos muito contato físico ali, porque o casamento era relativamente pequeno e toda a família de Luana e estava por perto.
O clima mudou um pouco quando uma música lenta que ele conhecia começou a tocar, e ele me tirou para dançar. Digo, porque as únicas músicas que tocavam eram lentas, e não tinha mais literalmente ninguém na pista de dança além de nós dois.
Eu achei que essas coisas só aconteciam em filmes, na verdade. Acho que ninguém nunca havia me chamado para dançar uma música lenta com tanto ânimo. Champagne Supernova tocava bem alto. Lembrei que Bernardo era muito fã de Oasis.
— Você gosta de Oasis?
— Aham.
— Você ainda tá chapado?
— Aham.
Eu ri. Ele tinha as duas mãos na minha cintura e estava bem mais alto porque eu tinha tirado o sapato e decidido ficar descalça. Ele, portanto, tirou o dele também, e nos tornamos literalmente as únicas pessoas descalças da festa. As mãos dele estavam na minha cintura e ele olhava ao redor. Estava achando meio estranho.
Eu nunca havia percebido o . Além de alguns anos mais novo, ele nunca havia sido tão bonito para mim como naquele dia do casamento. O rosto dele parecia maduro. A timidez dele me atraía.
Enquanto estávamos no carro, foi tudo muito natural, sem nenhuma pressa. Eu sentia que ele aproveitava cada toque e me deixei aproveitar também, porque, enquanto eu tirava as alças do vestido, ele passava a mão por cada centímetro do meu corpo com uma atenção vislumbrada. Eu gostava da sensação de ter o controle da situação. Deixava muito claro cada vez que olhava para mim como quem pede permissão. Depois de muito tempo em que nos beijávamos como se não houvesse mais nada de tão importante quanto acontecendo, levantei o vestido e sentei por tempo suficiente até que as ondas de prazer tomassem conta do meu corpo. Enquanto tirava a camisinha e nos encarávamos tentando entender o que havia acabado de acontecer, ele me disse que, de alguma forma, sabia que aquilo iria acontecer algum dia.
— Como é que você sabia?
— Eu não sei — ele deu de ombros e voltou a olhar para mim. — Acho que sempre tive uma quedinha por você.
Eu pisquei algumas vezes tentando assimilar o que estava acontecendo quando percebi que o mala do meu ex nos encarava de longe e me senti desconfortável. Voltei a me sentir desconfortável de maneira geral, na verdade. De repente, parecia que todo mundo estava olhando para a gente, que toda a família rica de Luana e nos julgava — me julgava por ser quem eu era, o julgava por estar comigo. Não sei até que ponto era uma insegurança ou uma noia. Mas me perguntava até quando deixaria que aquelas pessoas em suas áureas pomposas e castas me afetassem.
Sem muitas explicações, dei um passo atrás. Não sabia muito bem que desculpa dar. Eu sabia que estava sabotando um momento legal por pura necessidade de autoafirmação, mas, puta que pariu, eu precisava de um cigarro pra recobrar o controle da situação de novo.
— O que foi? — Ele me perguntou.
— Eu preciso falar com a Lua. Depois te encontro, tudo bem?
Mas, dessa vez, eu não me escondi. Eu peguei o meu cigarro e fui até um ponto aberto e espaçado de onde acontecia a festa. Respirei fundo, acendi o meu cigarro e traguei, sentindo um negocinho nervoso se revirar dentro de mim. Eu posso fumar se eu quiser. Eu posso transar se eu quiser. Eu posso desacreditar de Deus e eu posso amar as pessoas de longe. Eu pensava sobre essas coisas enquanto a nicotina se espalhava pelo meu corpo e eu vivia meu momento de paz. A opinião daquelas pessoas não precisava mais ser um critério para mim. Eu era mais feliz agora.
— O que você pensa que está fazendo? — Luana, que segurava a cauda do vestido e seu próprio véu, parou na minha frente, estarrecida. — Você tá fumando no meu casamento?
Eu sorri amarelo. Ela me bateu algumas vezes, e eu ri.
— Eu nem sabia que você tinha voltado a fumar. Esse negócio tem um cheiro horrível, . Vem cá, pelo amor, você não precisa acender um outdoor de fumante. Isso não te faz ser mais legal, não importa o que seus amigos maconheiros dizem.
Nós andamos juntas até um ponto atrás de onde a banda estava montada. Ela me puxou pelo braço. Paramos num batente de madeira.
— Eu me sinto mais legal que todos vocês.
— Pelo menos eu vou pro Céu.
— Eu não quero ir pro Céu se eu tiver que ficar sóbria o tempo todo.
Ela quase sorriu.
— Você não deveria estar fumando no meu casamento. Tá tão viciada assim?
— Por que é que te incomoda tanto?
— Eu acho que é porque não sei mais agir com você.
— Eu tô aqui, Luana.
— Eu sei.
Ela me olhou bem nos olhos. Acho que fazia muito tempo que não ficávamos assim, juntas, eu e ela, como fizemos por muitos e muitos anos a fio. Das últimas vezes que nos encontrávamos, em eventos especiais, ela sempre estava com Bernardo.
— Você tá feliz?
— Eu acho que nunca estive tão feliz. Até te ver agora.
Porra. Essa daí doeria por um tempo. Ela repousou a cabeça no meu ombro e soltou o véu na grama enquanto eu terminava de fumar. Era boa a sensação de estar perto dela. Era engraçado que ela estivesse vestida de noiva porque, apesar de eu mesma ter chorado, parecia irreal. Parecia brincadeira.
— Também tenho outra coisa pra te contar.
— Você pegou o . O Bê me falou.
— Fofoqueiro pra porra.
Ela riu.
— Ele sempre foi meio a fim de você.
— Você sabia também?
— Eu vi a criatura nascer, ô, . Conheço ele. Mas você tava na sua pior fase.
— A da corte, né?
— Enquanto transava com o mala do seu ex.
E a gente riu de novo.
— Ele me chamou pra tomar um sorvete depois daqui.
— Que dó! Mas você tá muito bonita hoje mesmo.
Ela levantou a cabeça e olhou pra mim. Eu olhei para ela também.
— Eu vim com um sapato de salto que não atava.
Luana tapou o rosto com as mãos.
— Por quê?
— Não sei, Lua. Você e o Bernardo tão casando. Tem noção disso?
— Às vezes. Às vezes eu acho que, sei lá, talvez não seja nada tão absurdo assim. Não fico mais com medo.
— Entendi.
— Acho que Deus fez a gente um pro outro mesmo.
— É.
— E tudo isso só tá acontecendo porque você existe. Então, acho que você também foi feita pra gente.
Eu dei um sorriso de lado.
— Eu penso em você quase todo dia. Mas hoje…
— Eu achei que você não ia vir. Por um momento, eu achei mesmo.
Os meus olhos se encheram de água.
— Eu sempre venho, Lua.
— Não sei o que faria se você não viesse. Acho que… eu ia ter que cancelar, sei lá, pagar tudo de novo.
Eu estendi a minha mão, e ela segurou. “Eu amo muito você, Lua”, eu disse. E ela disse que sabia e que me amava também. Disse que eu sempre fui a pessoa mais corajosa que ela já conheceu. Nós passamos mais algum tempo ali, conversando só nós duas, onde ninguém nos encontraria. Quando saímos, o fotógrafo tirou uma foto nossa. E, depois, uma minha, dela e do Bernardo. Foi a última vez que falei com eles naquela noite, porque eles voltaram para o seu grupo de amigos com o qual eu não queria estar perto.
Eu procurei por , mas não o achei. Recebi, depois, uma mensagem no Instagram em que ele pedia meu número e se desculpava por ter tido que ir embora, explicando que me procurou para se despedir, mas que eu e Luana parecíamos estar tendo uma conversa que ele não quis interromper. No fim das contas, fiquei feliz que ele não tivesse interrompido. Nós duas precisávamos daquele momento.
Sem amigos, sem carona, sem um sapato decente, me voltei para o ex-namorado, que me pagou realmente um sorvete pelo drive thru do McDonald’s na volta de Aldeia. Era o mínimo que me devia depois de ter que aguentá-lo por uns quarenta minutos tentando me convencer sobre as benesses do liberalismo econômico, mas não o deixei subir quando me perguntou se poderia entrar ao me deixar em casa.
Definitivamente atrasada, eu desci do Uber na Avenida Boa Viagem para esperar uma amiga rica de Luana, a noiva, me dar uma carona até Aldeia – o município bem pertinho (mas longe se você não tiver um carro) de Recife, onde normalmente aconteciam os casamentos que pretendiam esboçar uma vibe mais campestre. Em Recife, quanto mais rico você é, mais perto da praia você mora. E a tal amiga da noiva morava bem na frente, que era onde eu estava para esperá-la, sem internet, por não ter pagado a conta por alguns meses. Tinha certeza de que Virgínia me mandava mensagens que eu nem ao menos recebia.
Estava no lugar marcado uns vinte minutos depois. Meu sapato, pessimamente escolhido num lapso aleatório de atraso, não cabia direito no meu pé. Por sorte, o vestido longo cobria o meu tornozelo onde o fecho não atacava, mas eu andava com certa dificuldade. Não tinha me preparado para o casamento – essa era uma falta minha e que eu assumia sem muita culpa. A maquiagem leve e o cabelo solto com certeza se destacariam diante da performance quase angelical dos penteados complicados das outras mulheres que frequentariam o evento. Da própria Virgínia.
Já meio suada pela correria e pelo calor, quis fumar um cigarro enquanto esperava, só pelo tédio mesmo, só para me distrair da ansiedade de ter atrasado tudo e talvez não conseguir me comunicar com a garota insuportável que gentilmente se propôs a me dar uma carona. Mas não precisei, porque ela chegou pouquíssimo tempo depois.
— Oi, — ela me cumprimentou enquanto eu entrava no carro.
— Nossa, desculpa por ter atrasado. Deu tudo errado.
Virgínia era simpática, gostava de puxar assunto e sorrir, o que facilitou um pouco as coisas. Eu sabia algumas coisas sobre ela: morava na avenida, gostava de ir para o Carvalheira e tinha se formado em administração pela Católica, que era conhecida como PUC em outros estados, mas que, lá em Recife, não tinha tanto prestígio assim. Costumava frequentar a mesma igreja que eu e trabalhar naqueles Encontros de Jovens com Cristo, porém não era lá muito envolvida.
— Tudo bem. A Lua também atrasou. Parece que Bernardo levou a camisa errada pra Aldeia.
Eu ri. Era típico de Bernardo lembrar de coisas inúteis e esquecer coisas importantes. Não que estivéssemos tão próximos assim na época do casamento, mas alguns anos antes, sim, com certeza. Teve uma liberdade jamais vista em frequentar a minha casa. Meus pais, que nunca gostavam de ninguém, o adoravam, e Luana esteve sempre comigo por um bom tempo. Foi no meu quarto, enquanto Bernardo tocava violão e fazia piadinhas bizarramente engraçadas de péssimo gosto, que ela se apaixonou por ele. E, agora, Bernardo e Luana iriam se casar.
— Ele não vai mudar nunca.
Acho que ela não notou, naquele momento, o tom nostálgico na minha voz. Todo mundo achava que nós ainda éramos incrivelmente próximos, e não os julgo, mas fazia meses que eu não trocava uma mensagem com ele. Nem com Luana. Nada além de um WhatsApp meio desinteressado explicando para ela que eu não tinha carona para o casamento, torcendo para que ela me dissesse que estaria tudo bem se eu não fosse, mas com um “como você tá se sentindo?” no final para que não soasse tão apática. Ela me respondeu que estava bem, que era uma noiva calma e que com certeza daria um jeito para que eu fosse. Ela deu. No dia do seu casamento, me mandou algumas mensagens durante a manhã para resolver essas questões burocráticas.
Foi assim que acabei no carro com uma patricinha simpática. Virgínia parecia meio desesperada em não deixar o silêncio tomar conta do carro, e eu agradeci mentalmente porque eu não queria me esforçar. No caminho, pegamos outras duas amigas de Luana. Elas conversaram entre si por um tempo, elogiando a maquiagem, o cabelo e o vestido uma da outra, falando sobre o quão bonita estavam. Me perguntei, naquele momento, se eu não estava bonita também, mas tentei deixar para lá. Elas estavam dentro do padrão. O padrão que eu, secretamente, queria me encaixar, e eu me repreendi por me importar naquele momento. Me forcei a me desinteressar de novo e acho que consegui.
Me mantive em silêncio por quase todo o percurso, dando uma risadinha ou outra quando alguém me mencionava ou fazendo comentários pontuais quando conseguia pensar em algo interessante para dizer, só pela obrigação social, só para não parecer tão amargurada. Conversavam sobre festas que eu não ia e casamentos que eu nem sabia que tinham acontecido, mas que pareciam ser eventos imperdíveis. Perdi um pouco do interesse em algum momento entre a vez que uma menina do banco de trás mencionou o nome da maquiadora que tinha lhe atendido por trezentos e cinquenta reais ou a vez em que Virgínia comentou sobre quando disse à amiga prestes a casar que ela não iria caber no vestido pois estava gordinha demais. O álbum mais recente do Justin Bieber tocava no fundo. Fiquei, na verdade, impressionada com a quantidade de amigos dispostos a casar que elas tinham. Os meus estavam mais para engravidar sem querer ou passar num concurso em outro estado.
— , por que tu não foi pra despedida de solteira da Lua? Achei que você ia...
Porque eu não fui chamada.
— Ãhm… Eu nem lembro, visse? Mas com certeza algo que eu não podia faltar. Jamais perderia.
Me puni mentalmente logo depois de dizer – puta merda, quem diz que não lembra de algo que aconteceu no mês anterior? Mas preferi ignorar o constrangimento pela pergunta inconveniente e seguir torcendo para que o trajeto demorasse o mínimo possível. Eu perderia, sim, como perdi o jantar de noivado e toda a organização do casamento, como eu perdi o chá de panela. Foi a primeira vez que me senti mal sobre estar sendo uma amiga relapsa para Luana e Bernardo depois de nos afastarmos.
Mas o inferno mesmo começou quando eu cheguei lá. Tudo estava muito bonito, realmente, algumas mesas com flores, o lugar aberto e uma mesa cheia de doces que eu planejava roubar depois. O céu aberto esbanjava uma luz amarelada no jardim arbóreo em que as mesas estavam colocadas, bem perto de onde aconteceria a cerimônia. Não era um casamento tão grande assim, com, em média, cento e vinte pessoas. O problema é que eu não sentia vontade de interagir com nenhuma delas.
Reconheci por rosto algumas que eu conhecia e cumprimentei rapidamente. Pamela, uma dessas pessoas, me viu de longe e me chamou para sentar na mesa dela.
Conversamos um pouco. Eu a conheci antes mesmo de Luana, mas ela foi escolhida para ser uma das madrinhas do casamento. Aproximaram-se porque passaram a frequentar a mesma igreja, com os mesmos ideais presbiterianos. Ela me perguntou algumas coisas. Tinha vinte e três anos, casou cedo. Pensava em ter filhos. Perguntou se eu não tinha essa vontade.
— Não muito. Morro de medo do parto.
— Ah, eu quero uns cinco — ela disse com um sorriso aberto.
— Sério? Depois do governo Bolsonaro?
Riu, meio sem graça. Ela havia votado em Bolsonaro.
— Eu quero ter uns cinco. Seis, sete. Quanto mais melhor.
Contive um arregalar de olhos.
— Nasceu pra ser mãe.
Mas eu estava sendo secretamente irônica. Ela não precisava saber.
— Lembro que você queria também. A gente super conversava sobre isso.
— Eu era bancada pelos meus pais na época.
Pamela riu por educação, eu sabia. Tinha certeza de que ela julgava minhas escolhas por dentro, estranhava minhas mudanças. Eu já tinha feito isso com outras pessoas também. Era comum nas pessoas que cresceram imersas na igreja evangélica brasileira: achar que a única forma de ser feliz é tendo uma família tradicional, casar cedo para transar, ter filhos, talvez um deles virar pastor ou ministro de louvor. Pamela falou sobre ir para a igreja de manhã e de noite nos domingos. Deve ser cansativo, eu respondi. Ela me disse que o trabalho de Deus sempre recompensava.
Eu discordei. Sentia que os anos perdidos numa igreja fundamentalista jamais voltariam para mim.
— E você, tá indo pra qual igreja?
— Nenhuma.
Respondi, simplesmente. Ela assentiu. Talvez realmente não se importasse, mas sabia que fofocaria sobre depois. Eu não ligava. Queria mesmo procurar um lugar para fumar um cigarro sem que se tornasse um evento. Pensei sobre ser viciada e ignorei o pensamento.
Não havia passado quarenta minutos e eu já me sentia exausta de todo aquele dia, de todas aquelas pessoas. Não que todo cristão fosse insuportável, eu mesma costumava ser uma das legais. Me considerava mente aberta. Mas aquela impressão inconsciente de que todos os outros estão errados e que você, de alguma forma, é superior por ter o Deus verdadeiro se tornava meio irritante à medida que o discurso se repetia.
Como se não tivessem outro assunto. Como se não soubessem como não colocar Jesus ou uma piadinha homofóbica no meio da conversa.
E, quando eu achei que não poderia piorar, senti alguém tocar meu ombro insistentemente.
— ?
Era o meu ex-namorado.
— Oi — eu disse, forçando uma empolgação que não existia. Era bonitinho, charmosinho, cheirosinho, um almofadinhas. Alto. Transava mal. Tinha algumas tatuagens, usava o cabelo para o lado, agia como um cristão progressista, mas era dono de opiniões extremamente conservadoras. No entanto, naquele ponto, cinco anos antes, eu só queria que alguém chupasse minha boceta, mesmo que chupasse mal. Nós fomos impuros juntos várias vezes, mas pedíamos perdão depois. Só consegui terminar com ele na terceira vez que tentei porque ele sempre acabava chorando muito. Terminei porque achei que Deus tinha me dito para fazê-lo, porque o meu pastor me aconselhou que este não era o plano divino, que ele não era o homem para mim, e chorei culposamente todas as vezes que cedi em voltar porque achei que estava sendo desobediente. E também achei que deveria ser missionária no Sertão e coisas do tipo.
— Quanto tempo!
— É.
— Fiquei pensando se você vinha.
— É claro que viria. É Luana e Bernardo.
— Ele me falou que vocês não têm se visto.
— Eles estavam ocupados em planejar o casamento. Eu estava ocupada com a monografia. Sabe como é, vida adulta e tal.
— Você apresentou?
— Sim, foi bem legal.
Ele sorriu, meio admirado. Enquanto eu olhava para ele como se a existência fosse um constrangimento absoluto, ele parecia ignorar a tensão contínua que se instalava entre a gente, como se fôssemos próximos.
— Que massa! O que acha de a gente tomar um sorvete depois daqui? Eu quero saber como você tá. Acho que deve acabar pelas nove da noite.
Não. Sorvete?
— Claro, vamo sim, eu te procuro — mas eu obviamente não iria.
— Você não quer sentar comigo? Veio com alguém?
— Vim. Com a Virgínia. Ela deve estar me procurando feito doida…
Menti. Ele riu.
— Como se você fosse ficar amiga de Virgínia.
Eu fiz uma careta. Ele estava acostumado com as minhas caretas, por isso não se importou. Costumava gostar.
— Eu sei que você tá desviada. E que agora assumiu que é petista. Fica fumando maconha pelo Antigo, né? Eu sei.
Eu não estou desviada, pensei – o tal caminho só não é o caminho certo para mim. Mas petista sempre fui. De todo jeito, desviei da pergunta. Ele falava do Recife Antigo, point dos maconheiros e da esquerda alternativa de Recife, o qual eu realmente frequentava.
— Eu sempre assumi que era petista.
— Seu maior defeito — brincou, mas, à certa altura do campeonato, estava cansada dessas brincadeiras. Estava cansada das conversas permeadas por um julgamento esdrúxulo e pedante.
Revirei os olhos sem pesar.
— Vou no banheiro.
— É pro outro lado.
Mas o ignorei e segui sorrindo para pessoas aleatórias enquanto encontrava um lugar escondido para fumar. A cerimônia estava prestes a começar, mas eu precisava urgentemente ficar sozinha sem ter que ouvir sermão ou ter pessoas questionando as minhas escolhas. Era um ambiente de muito julgamento, acho que como a maioria dos ambientes, mas esse era pior. Como se não fossem erros, como se não fossem decisões: eram questões de vida ou morte, eram pecados. A sensação era de que tudo que eu trabalhava incessantemente em terapia perdia um pouco de força toda vez que eu tinha uma dessas conversas.
Era uma das coisas sobre a igreja que me incomodava muito também: um forte sentimento de que eu era completamente descartável caso não andasse na linha, porque me tornaria uma escarnecedora, e Davi disse em algum salmo que não deveríamos andar com eles porque nos afastavam de Deus. Naquele lugar, eu sentia como se tivesse uma placa pendurada no pescoço: precisa ser evangelizada. Ela não está feliz, isso é um pedido de socorro. Mas, naquele momento mesmo, eu só precisava de um cigarro. Era quase como se Deus fosse o meu ex-namorado.
Me escondi perto de uma pequena casa de tijolos amadeirados onde ficava a cozinha e me recostei numa pilastra, fechando os olhos logo depois de tirar o cigarro do bolso e acendê-lo. Traguei como se minha vida dependesse disso e soltei como quem vomita. A nicotina fazia eu me sentir menos ansiosa. Pensei estar viciada de novo, mas ignorei o pensamento de novo, como eu sempre fazia porque não queria parar de fumar.
Alguma coisa sobre fixação na fase oral etc. Enquanto fumava, eu pensei que, às vezes, sentia falta do conforto que a ideia de Deus me trazia. Quase como uma paz. Era passageiro e momentâneo, mas não consigo discernir se era real ou não. Talvez fosse. Ou talvez fosse algo que tinha surgido da minha cabeça porque eu precisava de um lugar seguro e alguém que me amasse incondicionalmente.
Eu sentia, sim, muitas vezes, que Deus, ou Jesus, ou o Espírito Santo me amavam muito. Como se eu tivesse sido escolhida para algo, criada com um propósito. Acho que permaneci viva, algumas vezes, por esse sentimento. É realmente incentivador. Uma pessoa que me amasse independentemente de qualquer coisa, que estava em todos os lugares, que cuidaria de mim e se vingaria por mim. Eu conversava com essa pessoa todos os dias da minha vida. Era quase transcendental receber uma resposta. Se havia uma certeza dentro de mim, era a de que o amava de volta. De que estava disposta a fazer qualquer coisa por esse amor.
Hoje, me perguntava quem era essa pessoa com quem eu conversava. Uma parte de mim? Uma outra personalidade? O próprio deus que eu não acreditava mais?
Nunca consegui encontrar uma resposta.
Um rapaz de terno azul marinho se colocou ao meu lado, mas nem ao menos me percebeu. Ele andava de um lado para o outro, tinha uma pequena flor presa no peito e parecia nervoso. Eu traguei meu cigarro olhando para ele enquanto tentava reconhecê-lo. Talvez eu devesse apagar, pensei, mas não me motivou o suficiente para fazê-lo, então eu só esperei que ele fosse embora. Porém, ele tomou um susto ao me ver.
— Puta merda, ?
Era primo de Luana. Eles sempre foram bem próximos, mas eu não falava muito com ele. Notei quando ele levantou o rosto e olhou para mim. Estava crescido. Mais alto e encorpado, bem bonito na verdade. Eu nunca tinha olhado para ele antes. Ele era só o primo mais novo de Luana, e eu namorava. Não podia olhar para nenhum outro cara.
— Oi, .
O nome dele era , mas todo mundo o chamava de , então eu chamava também. Ele deu uma risada.
— Você? Fumando?
Contive um “e daí, porra?”, mas sorri.
— É. Loucura, né?
— Você era tão…
— Crente?
— Aham.
— É.
Rimos juntos.
— Você tá fazendo o que aqui?
— Me escondendo, tentando não surtar. E você?
— Ué, fumando. Se escondendo de quem?
— De todo mundo. Eu… fico nervoso em aparecer em público — expirou. — O que eu não faço por Luana, né?
— É.
Respondi com um sorrisinho. Realmente. O que eu não faço por Luana.
Luana era uma das melhores pessoas que eu já havia conhecido, o que me fazia pensar seriamente sobre a minha teoria de odiar pessoas que haviam sentado o dedo no dezessete. Era compassiva, alegre, carinhosa, preocupada, mas muito certinha, e não abria mão de um bom sermão quando necessário. Nossa amizade era muito bonita, nós cuidávamos muito uma da outra, dávamos incentivo uma à outra a ler a Bíblia, conversávamos muito sobre Deus e sobre nossa missão no mundo. Ela havia acabado de sair de um relacionamento ruim, eu também, e ela também tinha uma postura muito maternal quando a minha mãe sempre era rígida demais. Ela fazia tudo por mim, eu faria qualquer coisa por ela. Nós trocávamos mensagens o dia todo por WhatsApp e nos víamos mais de uma vez durante a semana por uns bons anos. Em determinado momento, acho que cansamos de nos doar tanto uma pela outra. Foi logo quando Bernardo me contou que estava tendo sentimentos por ela. Foi na mesma época, também, em que comecei a questionar minha vivência na igreja pela primeira vez.
De todo jeito, era bonito que a família de Luana fosse tão unida. Ele provavelmente era um dos padrinhos, eu não teria certeza porque não sabia de nada daquele casamento. A gente se olhou um pouco sem saber muito o que falar, afinal, era a primeira vez em todos os anos que a gente se conhecia que a gente conversava de verdade, e era a primeira pessoa de toda a festa com quem eu não me sentia terminantemente ansiosa.
— Posso tentar?
— Não fui eu que te dei.
Dei meu cigarro para ele, que tentou tragar, tossiu com uma expressão de repulsa e me devolveu.
— Isso é horrível. Que gosto horrível.
Eu dei uma risada.
— Por que você pediu, então?
— É bom pra ansiedade, né?
— É mesmo. Rivotril talvez tenha um gosto melhor.
— Luana me mataria.
Dei de ombros. Ele riu de novo. Eu ri também, mas não sabia necessariamente do que estávamos rindo, então eu perguntei.
— Por que você tá rindo?
— Olhar pra sua cara me dá vontade de rir — ele disse, passando a mão no rosto. — É sério. Eu não posso olhar pra tu lá na frente. Você me ofereceu Rivotril.
— Ei, calma, eu sugeri. Meu Rivotril ficou em casa.
Acho que ele levou como uma piada, mas eu falava sério. Ouvimos, do microfone, a organizadora chamando todos os padrinhos e madrinhas para se colocarem em posição. Ele fez uma expressão desesperada.
— Vai dar certo. É só não tropeçar.
Ele assentiu e saiu andando.
— Não olhe pra mim enquanto eu estiver lá na frente.
Eu me sentei sozinha, numa das fileiras lá atrás. A música começou a tocar, e eu fiquei instintivamente nervosa. Era uma música do Tiago Iorc chamada Cataflor, de quando ele ainda fazia músicas boas e não estava quebrando tabus por aí. Era uma música que Bernardo tocava no violão e nós cantávamos juntos na sala da minha casa numa das infinitas tardes que passamos juntos, nós três, só porque nós éramos grudados assim. Havia certa nostalgia dentro de mim, era estranho. Eu e Luana, principalmente, sonhávamos muito com o dia do casamento, como todo cristão. Receber a benção do pastor, declamar votos e promessas de eternidade, celebrar o matrimônio e, finalmente, ser liberado para transar. Algo que continuou sendo importante para ela, que continuava virgem apesar das puladas de cerca com o namorado anterior, mas perdeu o sentido para mim com o passar do tempo e o distanciamento da religião. Havia também uma tristeza em não me identificar mais com aquilo. Quero dizer, era divino, um orgulho até, o sentimento de propósito. A vida ter um propósito, o casamento ter um propósito, como duas pessoas que tiveram seu destino traçado para se encontrar, algo que Deus planejou e fez acontecer. Era seguro. Puro. Cintilante. Eu sentia que isso havia sido roubado de mim, às vezes arrancado, e, em momentos como aquele, eu quase os queria de volta, só pela beleza. Mas, rapidamente, me lembrei de como tudo isso tinha gosto de um sonho do qual eu já tinha acordado, e me pareceu coerente acordar.
Outras músicas tocaram, os padrinhos foram entrando, um por um, a família de Bernardo e a de Luana, até que ele entrou com sua mãe, Gabi, que me viu lá da frente e sorriu para mim como quem vê uma estrela cadente. Bernardo, emocionado, deu um sorrisinho para algumas pessoas, e eu sabia que ele havia me visto, nossos olhares se cruzaram, mas ele não exprimiu nenhuma reação. Devo admitir, eu estava orgulhosa e emocionada.
Não me entenda mal. Talvez eu esteja mesmo muito ressentida com essa coisa toda de igreja, mas estava feliz que eles estavam felizes. E, naquele momento, enquanto Bernardo procurava ansiosamente por Luana com o olhar, esperando incansável que ela finalmente entrasse pelo caminho do tapete por cima do gramado, eu percebi que para sempre o amaria.
Em determinado momento, depois de alguns minutos, a marcha nupcial tocou, e todos se levantaram. Eu olhei para ela. Os celulares estavam todos levantados, mas eu nem peguei o meu, porque eu só conseguia sentir um calorzinho palpável no meu peito. Luana estava linda, entrava de braços dados com o pai. O vestido era composto, com mangas, alguns detalhes de renda no busto e tinha uma cauda enorme. O cabelo trançado para trás e um sorriso enorme no rosto. Eu vi que eles se olhavam. Eles sibilavam piadinhas enquanto ela andava porque Bernardo não conseguia se conter. E, quando ela se posicionou, virou-se para frente, sorriu para algumas pessoas e finalmente nossos olhos se encontraram. Ela assentiu pra mim. Sustentamos o olhar por alguns segundos quase espirituais. Por fim, virou-se para Bernardo.
Ali, senti que havia feito a minha parte. Que estava tudo bem. E senti que a amaria para sempre.
Logo depois, desviei o olhar para . Ele estava olhando para mim e ria discretamente com a mão no lábio.
O pastor falou por alguns longos minutos sobre aquele capítulo famoso, Coríntios 13, que fala sobre o amor ser paciente e benigno. Pensei que ele poderia ser menos óbvio. Pensei que eu poderia estar ministrando aquele casamento se tivesse seguido minha vida de pastora, ou se continuássemos muitíssimo amigos como éramos, ou se Bernardo não fosse tão presbiteriano assim. Pensei em todas as coisas que se poderia pensar, mas o tempo não passava. Tentei me distrair encarando , então.
Eu nunca tinha me sentido atraída por ele, mas, de repente, ele havia ganhado alguma coisa. Não sei se era porque eu achava que era fofo que ele estivesse tão nervoso aparentemente sem motivo, não sei se era porque não tinham outras opções de pessoas com quem fosse possível conversar, mas alguma sinergia magnética aconteceu por ali – eu podia sentir no jeito que ele olhava para mim. Achei o cabelo bonito, os olhos curiosos. Ele parecia emocionado também. Luana era quase uma irmã para ele. Senti vontade de chamá-lo para conversar depois da cerimônia.
Eventualmente, depois da cerimônia, vi Bernardo e Luana tirando fotos com todas as pessoas da festa, passando de um por um, enquanto os fotógrafos os seguiam. Assim que saí da fila do bufê, com meu pratinho cheio, eu olhei ao redor e me senti deslocada. Não tinha mesa para sentar. Todas pareciam estar preenchidas por seus pequenos grupos, e eu não me sentia confortável para chegar em nenhuma. Olhei ao redor, o ex-namorado conversava com alguns amigos de Bernardo. Respirei fundo e fui me sentar num pequeno sofázinho que ficava mais distante de onde a pequena festa acontecia. Os garçons passavam por mim com água, suco e refrigerante. Eu fiz severas reclamações mentais. Como assim um casamento e eu não tenho nem mesmo uma tacinha de gim com tônica para tomar? Um champagne? Um vinho? Jesus tomava vinho. Não foi num casamento que ele transformou água em vinho? Onde é que ele estava, afinal, quando se precisava d’Ele e de sua mágica alcoolista? Foi para isso que me desloquei por mais de oitenta quilômetros?
Me sentei, meio frustrada, e peguei meu celular. Por sorte, a casa de festas era tão chique que providenciava uma rede de wi-fi que funcionava o suficiente para eu mandar uma mensagem de socorro no grupo com as minhas amigas e dar uma checada no Instagram. As pessoas já estavam postando stories do casamento. Enquanto comia com o prato no meu colo, que era de uma massa bem gostosa com molho de queijo e filé mignon (por Deus, eu nem lembrava a última vez que tinha comido carne. É difícil comprar carne no governo Bolsonaro quando se mora sozinha). Enquanto comia, distraída, olhando em volta e finalmente em paz por não precisar interagir com nenhum liberaleco, eu notei que alguém caminhava até mim pela visão panorâmica. Era . Talvez tenha tido dó da minha solidão. Mas eu estava ok. Digo, estava tentando colocar em prática aquele ditado: antes só do que mal acompanhado. Mas me parecia a menos pior das companhias ali. Sentou-se ao meu lado, com seu próprio pratinho.
— Eu lembrava de você ser mais simpática e popular entre os crentes.
Encolhi os ombros como quem não se importava muito.
— Eu até que sou simpática até hoje, mas popular eu acho que é um conceito relativo. Por exemplo, na minha bolha, eles é quem não são populares.
riu.
— Eles não têm muitos assuntos à parte dessa coisa de igreja, namoro, casamento, né? — criticou. — Foi uma coisa que sempre me incomodou. A Lua não é muito assim comigo. Acho que porque eu nunca fui muito interessado.
— É. Mas acho que é estranho pra ela que eu não faça mais parte desse mundo. Foi como a gente se aproximou etc. Eu costumava ser bem…
— Rígida? Moralista? Metida a sabe tudo da Bíblia?
Eu ri.
— Você guardou essas por um bom tempo, né?
— Fazia questão de dizer que já tinha lido a Bíblia inteira e blá blá.
— Ei, eu precisava ganhar do Bernardo! Ele terminou depois de mim! Nunca vou deixar de esfregar isso na cara dele, por mais que, hoje em dia, o conteúdo esteja em desuso.
— Acho que gosto mais de você agora — ele disse, e olhou para mim com um sorriso.
— Eu acho que eu também.
Voltamos a comer, mas o silêncio não era desconfortável, apesar de não sermos muito íntimos. Pensei sobre o que ele disse, sobre ter dificuldade em aparecer em público, sobre estar sozinho comigo e distante de todas as outras pessoas que pareciam querer sua atenção. Julguei, por meus próprios critérios, que ele fosse introvertido, no mínimo tímido. E me senti bem com o pensamento de que talvez eu também fosse a pessoa dessa festa com quem ele se sentia confortável, além de seus pais.
Ele deu uma risada.
— Você quase me fez passar vergonha lá na frente. Eu te falei pra não olhar pra mim.
— Você tava olhando pra mim primeiro! — eu respondi, rindo um pouco.
— É verdade. Mas é porque você tava bem bonita lá de longe.
Dei uma risada e me virei para ele, que estava um pouquinho virado para mim também. Ele me encarava intencionalmente, os olhos, as sobrancelhas, os ombros tensos e o rosto próximo.
— De longe, né? — balancei a cabeça em negação, passando a língua pelos lábios. — De longe, você ficou bem bonito também.
A gente se olhou por um tempo. Tinha um ar meio frio que nos rondava, era noite de lua cheia, a parte do sofá que ficava perto da piscina era a menos iluminada. Observei os traços do seu rosto e de seu penteado agora que estava desfeito, no qual seus cabelos caíam pela testa. Não usava mais o terno, só uma camisa social azul que caía muito bem no seu torso e braços. Eu poderia beijá-lo ali, mas, num lapso de consciência, não o fiz. Só para não escandalizar.
— Quer dar uma volta?
— Pelas mesas?
— Pelo condomínio. — ele deu de ombros. — A gente fuma um beck, dá uma volta e vem matar a larica nas mesas do bufê. Ninguém vai notar.
— Eu me sinto com catorze anos de novo escondendo do pastor que tinha tomado uma Ice.
Ele riu.
— Vamo ou não?
— Você me ganhou no “beck”. Tem colírio?
— Eu sou um profissional, . Só me siga.
Deixei meu prato na mesinha de centro, assim como ele fez com o dele, e só o segui andando até a parte de fora da casa de onde acontecia a cerimônia. Andamos um pouco, descemos uma ladeira gigantesca e meio escura até, e eu me segurava no braço dele porque o meu salto não atava e isso dificultava um pouco as coisas. Ele riu quando eu expliquei.
— Como você vem para um casamento com um sapato que não ata?
— Eu estava atrasada. Mas eles estariam lindos no meu pé se tivessem atados, ó. Belíssimo.
— E você não tá 100% me enrolando porque também tá triste de ter vindo com o sapato errado?
Suspirei.
— Tô, tô te enganando. Eu ligo. Mas parece que não quando o meu inconsciente me coloca nessas situações.
— Não acho que tenha sido seu inconsciente.
— E o que foi, então?
— Sei lá. Talvez você só não queria lidar com o fato de que seus antigos melhores amigos estão casando.
— Eu tô feliz por eles.
— É, mas acho que deva ser estranho que vocês achassem que isso ia acontecer de uma forma e agora você tá aqui, meio deslocada. Não pensou nem no sapato que ia usar.
— Tudo tá diferente demais.
Nos sentamos numa pedra perto das árvores. Já era noite. A gente sentou longe o suficiente para que ninguém sentisse o cheiro. Estava meio escuro, um pouco frio, de certo tinha o friozinho na barriga de estar num lugar desconhecido. Ele me pediu o isqueiro e eu dei. Acendeu o baseado.
— Com você e a Lua?
— É. Com o Bernardo também.
— O que aconteceu…?
A gente passava o baseado um para o outro logo depois de tragar. Me perguntei até que ponto eu poderia me abrir sobre isso, mas não podia mentir, existia em mim uma vontade de conversar sobre. Olhei para o rosto dele, que também me encarava atentamente. Não parecia mais tão tímido quanto antes, só interessado. Eu abraçava as minhas pernas no vestido com o rosto virado para ele, que apoiava o cotovelo em seus próprios joelhos.
— A gente cresceu, eu acho. É difícil manter uma pessoa na sua vida que só… não faz mais sentido. Por mais que tenhamos tentado.
— Porque você saiu da igreja?
— Não. Acho que porque nós não conversamos sobre muitas coisas e, ao mesmo tempo, discordamos sobre todas as outras. Tudo piorou com as eleições também, eu até silenciei o Bernardo no Instagram. Ele descobriu depois, ficou chateado, eu fiz piada, ele continuou chateado etc.
Ele riu.
— Acho que também ficaria chateado.
— Eu não queria deixar de gostar dele — dei de ombros. — E também não queria deixar de gostar da Lua.
— Teve um aniversário que eu perguntei por você. Acho que foi logo o primeiro ou o segundo que você não foi. Ela disse que você só frequentava lugares legalizados.
Eu ri.
— Que debochada! Eu fui pra porra da colação de grau dela!
— Com uma calça jeans e camisa do Metallica. Você tem uma certa dificuldade com as roupas dos eventos da Lua.
— Você lembra?
— Claro que eu lembro. Tudo que eu conseguia pensar era: por que raios uma camisa de banda? E ela escuta Metallica? Não deveria ser algo do tipo Aline Barros?
Virei um pouco os olhos, meio chapada e rindo, pensando na maneira como ele parecia me perceber nos lugares ou a minha ausência.
— Pra ser sincera, eu sempre me planejo pra dar uma desculpa e não ir, mas sempre acabo vindo. O que é que eu não faço pela Luana.
— Ela sempre fica feliz quando você vem.
— Não sabia que você prestava tanta atenção assim.
— Não tem muito como não prestar atenção em você — ele deu de ombros. Guardou a bituca para jogar no lixo e nos encaramos. Eu achei que ele fosse se inclinar para me beijar, mas não o fez. Os meus sentidos, aguçados pela cannabis, sentiam o cheiro gostoso do perfume que ele usava. A minha percepção alterada parecia sentir tudo mais intensamente, inclusive a tensão, a química que a gente estava trocando. Gostava do jeito que ele me olhava e de como parecia atento ao que eu dizia, de como nossos olhares sempre se cruzavam de longe. — Não quando você aparece com uma camiseta de banda enquanto todo mundo tá de roupa social etc.
A gente riu, e essa era mesmo uma risada de deboche contra todas as minhas decadências.
— Eu não escuto Metallica. A utilização da camiseta é puramente estética — dei de ombros. — Naquele dia, eu tinha ido pra outro lugar, só pra poder ter uma desculpa. Mas quando ela me ligou pela segunda vez, eu só… — suspirei.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. A maconha dele era fraca, mas boa o suficiente para me deixar entorpecida.
— É engraçado porque, mesmo que você não tenha se esforçado muito, ainda te acho a pessoa mais bonita da festa. — ele disse. — Fora a Lua, mas acho que essa é mais uma questão de respeito com a noiva.
Eu dei uma risada e queria beijá-lo. Mas Luana me mataria.
— Não. A Luana vai me matar.
— A gente tem que prometer que não vai falar pra ela. — estendeu o mindinho para frente. Eu debochei, com as sobrancelhas arqueadas, sem acreditar no seu método de juramento. — Anda. Só vou te beijar depois que você prometer.
Dei um sorrisinho controverso e estendi o meu dedinho também, que se cruzou com o dele. E a gente se beijou. A mão dele foi parar na minha perna enquanto a outra segurava meu pescoço, e ficamos assim por um tempo. A gente desceu, meio chapado e risonho, toda a ladeira que dava para o estacionamento onde o seu carro estava e fomos para o banco de trás, torcendo para que ainda fosse cedo o suficiente e que as pessoas não fossem embora ainda – pelo menos nenhuma que pudesse nos ver. Lá, eu me sentei no seu colo, com uma perna em cada lado de seu torso. Tirei o seu cabelo da testa e observei todo o seu rosto enquanto ele apertava as mãos ao redor da minha cintura e me pressionava contra o seu quadril.
A gente se beijou. E foi como se o dia inteiro tivesse valido a pena.
Bernardo estava na frente do portão enquanto nós andávamos até o casamento de novo. A camisa de levemente amassada, meu cabelo já tinha ido com Deus. Por sorte, a minha maquiagem era leve demais para borrar. Eu sorri para ele, que me encarava com certa surpresa e braços cruzados.
— Aí é loucura — ele nos encarou. — O que porra vocês estavam fazendo juntos? — Riu. — Ah, e , você perdeu a foto da família.
Ele olhou para mim com o rosto espremido em certa dor.
— Eu vou lá limpar minha barra.
Mas eu não me aproximei dele. Nos despedimos levemente com o olhar.
— Vai lá.
— Passa no banheiro antes!
Bernardo gritou. Eu dei uma risada.
— Você tava guardando essa?
— Guardando o quê?
Eu o abracei. Senti, em mim, um calorzinho se apropriar. Era um sentimento nostálgico, que aquecia e apertava. Ele me abraçou de volta. Tinha certeza de que não sabia sobre a maconha, mas com certeza tinha notado algo entre mim e .
— A sua forma de se vingar da Lua por ter te trocado por mim — falou, em forma de piada ácida, que eram as únicas que ele sabia fazer.
Acho que por isso que nos tornamos tão amigos. Eu não me ofendia.
Na verdade, acho que foi por isso que deixamos de ser tão amigos, também. Ele sempre acabava se ofendendo.
— A vingança nunca é plena, Bernardo, ela mata a alma e envenena.
Revirou os olhos.
— Conta logo o que aconteceu com você e porque já já chega um chato querendo tirar foto.
— A gente só beijou de boca na mata um pouco.
Ele me encarou. E depois riu.
Bernardo era sempre assim, não levava nada a sério, apenas umas coisas específicas que a gente tinha que adivinhar para que ele não acabasse ficando meio puto, porque, de certeza, ele não sabia lidar com frustrações mínimas inesperadas. Parecia, no entanto, ter amadurecido nessa questão.
— Quem é você? Lembra que você queria fazer corte?
Eu tapei a boca dele com as minhas próprias mãos enquanto ele debochava da minha cara. Corte é um modo de se relacionar comum à igreja evangélica em que o beijo só é permitido depois do casamento.
— Para, Bernardo, eu tô implorando! Não lembra disso!
— Você tinha convencido a Lua a entrar nessa!
— Bom, pelo menos eu desisti e transei antes de casar.
— É, não posso argumentar contra essa — ele deu de ombros.
Bernardo fazia piadas assim, mas a escolha era dele, também. Eu achava a fé dele muito bonita, na verdade. Daquelas que se abalaram várias vezes antes de se estabelecer. Bernardo parecia acreditar em Deus como se Ele fosse algo que se pode tocar.
— Eu estou feliz por você. De verdade. Eu sei que esse era o seu sonho desde sempre. Que você sempre amou a Lua.
Ele assentiu.
A gente estava bem na entrada ainda, em pé, e conversávamos meio distantes de todas as outras pessoas. Eu sentia que precisava dizer todas aquelas coisas para ele depois de todos os anos de rancor e ressentimentos em que eu fingia não me importar com o quão afastados nós estávamos. Precisava que ele soubesse que eu não tinha inveja dele por ter tomado para si a minha melhor amiga e feito dele. Que sim, eu me senti abandonada, mas que eu também os abandonei e reconhecia isso naquele momento. Ainda com alguns resquícios da erva na minha mente, eu queria ficar abraçada com ele por muito tempo.
— Eu só sempre achei que você fosse, sei lá, participar mais.
— Pamela ocupou meu lugar. Vocês vão ter que ser ricos pra poder acompanhar os presentes da quantidade de filhos que ela quer ter, inclusive. Boa sorte.
— Tio Bernardo vai mandar aquele help. Como sempre. Foi só por isso que me casei com a Luana. Você sabe. E também porque ela é bem gostosa. Foi depois daquele dia que a gente foi na praia que eu decidi. Lembra do biquininho roxo? Eu nunca vou esquecer.
Eu dei uma risada sincera. Sim, o pai de Luana tinha muito dinheiro. E também se chamava Bernardo. Eu o abracei de novo.
— Te amo pra sempre — eu disse.
E fui verdadeiramente honesta em cada palavra.
— Ninguém nunca vai ocupar o teu lugar pra gente.
E, quando a gente se afastou, alguém o chamou, e ele foi.
Estava com muita fome, o que minha classe chama de lara. Reencontrei com na fila do jantar. Em determinado momento, eu e éramos os únicos que continuavam comendo. A gente deu muita risada com o passar da noite, fazendo piadas bobas e comendo docinho de festa como se fosse um crime, mesmo que ninguém soubesse que a gente tinha usado qualquer coisa. Nós não mantivemos muito contato físico ali, porque o casamento era relativamente pequeno e toda a família de Luana e estava por perto.
O clima mudou um pouco quando uma música lenta que ele conhecia começou a tocar, e ele me tirou para dançar. Digo, porque as únicas músicas que tocavam eram lentas, e não tinha mais literalmente ninguém na pista de dança além de nós dois.
Eu achei que essas coisas só aconteciam em filmes, na verdade. Acho que ninguém nunca havia me chamado para dançar uma música lenta com tanto ânimo. Champagne Supernova tocava bem alto. Lembrei que Bernardo era muito fã de Oasis.
— Você gosta de Oasis?
— Aham.
— Você ainda tá chapado?
— Aham.
Eu ri. Ele tinha as duas mãos na minha cintura e estava bem mais alto porque eu tinha tirado o sapato e decidido ficar descalça. Ele, portanto, tirou o dele também, e nos tornamos literalmente as únicas pessoas descalças da festa. As mãos dele estavam na minha cintura e ele olhava ao redor. Estava achando meio estranho.
Eu nunca havia percebido o . Além de alguns anos mais novo, ele nunca havia sido tão bonito para mim como naquele dia do casamento. O rosto dele parecia maduro. A timidez dele me atraía.
Enquanto estávamos no carro, foi tudo muito natural, sem nenhuma pressa. Eu sentia que ele aproveitava cada toque e me deixei aproveitar também, porque, enquanto eu tirava as alças do vestido, ele passava a mão por cada centímetro do meu corpo com uma atenção vislumbrada. Eu gostava da sensação de ter o controle da situação. Deixava muito claro cada vez que olhava para mim como quem pede permissão. Depois de muito tempo em que nos beijávamos como se não houvesse mais nada de tão importante quanto acontecendo, levantei o vestido e sentei por tempo suficiente até que as ondas de prazer tomassem conta do meu corpo. Enquanto tirava a camisinha e nos encarávamos tentando entender o que havia acabado de acontecer, ele me disse que, de alguma forma, sabia que aquilo iria acontecer algum dia.
— Como é que você sabia?
— Eu não sei — ele deu de ombros e voltou a olhar para mim. — Acho que sempre tive uma quedinha por você.
Eu pisquei algumas vezes tentando assimilar o que estava acontecendo quando percebi que o mala do meu ex nos encarava de longe e me senti desconfortável. Voltei a me sentir desconfortável de maneira geral, na verdade. De repente, parecia que todo mundo estava olhando para a gente, que toda a família rica de Luana e nos julgava — me julgava por ser quem eu era, o julgava por estar comigo. Não sei até que ponto era uma insegurança ou uma noia. Mas me perguntava até quando deixaria que aquelas pessoas em suas áureas pomposas e castas me afetassem.
Sem muitas explicações, dei um passo atrás. Não sabia muito bem que desculpa dar. Eu sabia que estava sabotando um momento legal por pura necessidade de autoafirmação, mas, puta que pariu, eu precisava de um cigarro pra recobrar o controle da situação de novo.
— O que foi? — Ele me perguntou.
— Eu preciso falar com a Lua. Depois te encontro, tudo bem?
Mas, dessa vez, eu não me escondi. Eu peguei o meu cigarro e fui até um ponto aberto e espaçado de onde acontecia a festa. Respirei fundo, acendi o meu cigarro e traguei, sentindo um negocinho nervoso se revirar dentro de mim. Eu posso fumar se eu quiser. Eu posso transar se eu quiser. Eu posso desacreditar de Deus e eu posso amar as pessoas de longe. Eu pensava sobre essas coisas enquanto a nicotina se espalhava pelo meu corpo e eu vivia meu momento de paz. A opinião daquelas pessoas não precisava mais ser um critério para mim. Eu era mais feliz agora.
— O que você pensa que está fazendo? — Luana, que segurava a cauda do vestido e seu próprio véu, parou na minha frente, estarrecida. — Você tá fumando no meu casamento?
Eu sorri amarelo. Ela me bateu algumas vezes, e eu ri.
— Eu nem sabia que você tinha voltado a fumar. Esse negócio tem um cheiro horrível, . Vem cá, pelo amor, você não precisa acender um outdoor de fumante. Isso não te faz ser mais legal, não importa o que seus amigos maconheiros dizem.
Nós andamos juntas até um ponto atrás de onde a banda estava montada. Ela me puxou pelo braço. Paramos num batente de madeira.
— Eu me sinto mais legal que todos vocês.
— Pelo menos eu vou pro Céu.
— Eu não quero ir pro Céu se eu tiver que ficar sóbria o tempo todo.
Ela quase sorriu.
— Você não deveria estar fumando no meu casamento. Tá tão viciada assim?
— Por que é que te incomoda tanto?
— Eu acho que é porque não sei mais agir com você.
— Eu tô aqui, Luana.
— Eu sei.
Ela me olhou bem nos olhos. Acho que fazia muito tempo que não ficávamos assim, juntas, eu e ela, como fizemos por muitos e muitos anos a fio. Das últimas vezes que nos encontrávamos, em eventos especiais, ela sempre estava com Bernardo.
— Você tá feliz?
— Eu acho que nunca estive tão feliz. Até te ver agora.
Porra. Essa daí doeria por um tempo. Ela repousou a cabeça no meu ombro e soltou o véu na grama enquanto eu terminava de fumar. Era boa a sensação de estar perto dela. Era engraçado que ela estivesse vestida de noiva porque, apesar de eu mesma ter chorado, parecia irreal. Parecia brincadeira.
— Também tenho outra coisa pra te contar.
— Você pegou o . O Bê me falou.
— Fofoqueiro pra porra.
Ela riu.
— Ele sempre foi meio a fim de você.
— Você sabia também?
— Eu vi a criatura nascer, ô, . Conheço ele. Mas você tava na sua pior fase.
— A da corte, né?
— Enquanto transava com o mala do seu ex.
E a gente riu de novo.
— Ele me chamou pra tomar um sorvete depois daqui.
— Que dó! Mas você tá muito bonita hoje mesmo.
Ela levantou a cabeça e olhou pra mim. Eu olhei para ela também.
— Eu vim com um sapato de salto que não atava.
Luana tapou o rosto com as mãos.
— Por quê?
— Não sei, Lua. Você e o Bernardo tão casando. Tem noção disso?
— Às vezes. Às vezes eu acho que, sei lá, talvez não seja nada tão absurdo assim. Não fico mais com medo.
— Entendi.
— Acho que Deus fez a gente um pro outro mesmo.
— É.
— E tudo isso só tá acontecendo porque você existe. Então, acho que você também foi feita pra gente.
Eu dei um sorriso de lado.
— Eu penso em você quase todo dia. Mas hoje…
— Eu achei que você não ia vir. Por um momento, eu achei mesmo.
Os meus olhos se encheram de água.
— Eu sempre venho, Lua.
— Não sei o que faria se você não viesse. Acho que… eu ia ter que cancelar, sei lá, pagar tudo de novo.
Eu estendi a minha mão, e ela segurou. “Eu amo muito você, Lua”, eu disse. E ela disse que sabia e que me amava também. Disse que eu sempre fui a pessoa mais corajosa que ela já conheceu. Nós passamos mais algum tempo ali, conversando só nós duas, onde ninguém nos encontraria. Quando saímos, o fotógrafo tirou uma foto nossa. E, depois, uma minha, dela e do Bernardo. Foi a última vez que falei com eles naquela noite, porque eles voltaram para o seu grupo de amigos com o qual eu não queria estar perto.
Eu procurei por , mas não o achei. Recebi, depois, uma mensagem no Instagram em que ele pedia meu número e se desculpava por ter tido que ir embora, explicando que me procurou para se despedir, mas que eu e Luana parecíamos estar tendo uma conversa que ele não quis interromper. No fim das contas, fiquei feliz que ele não tivesse interrompido. Nós duas precisávamos daquele momento.
Sem amigos, sem carona, sem um sapato decente, me voltei para o ex-namorado, que me pagou realmente um sorvete pelo drive thru do McDonald’s na volta de Aldeia. Era o mínimo que me devia depois de ter que aguentá-lo por uns quarenta minutos tentando me convencer sobre as benesses do liberalismo econômico, mas não o deixei subir quando me perguntou se poderia entrar ao me deixar em casa.